oliveira, valdemar de. frevo capoeira e passo

77
(alaBj-; - í m U J E M A R , HE OLIVEIRA

Upload: lucas-de-freitas

Post on 11-Aug-2015

17.144 views

Category:

Documents


96 download

TRANSCRIPT

Page 1: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

(alaBj-; -

í

m U J E M A R ,

H E O L I V E I R A

Page 2: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

%% c v ü M v c 3

I ^ SBUOTiECAJOACRBMrAnnnTnl I Jp* Ce**' •> de A4ss » ... > r

£ ! o T Í 6 I i ^ / o m ; 4tUjo::: £ (JJIÀ 6/1 H O

VALDEMAR DE OLIVEIRA

f r e v o , C a p o e i r a

e " P a s s o "

COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO CAIXA POSTAL 2964 - END. TELEGRÁFICO ; " C E P E C "

R U A C O Ê L H O L E I T E , S30 - RECIFE - PERNAMBUCO

1 9 7 1

Page 3: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

Em memória de MÁRIO DE ANDRADE

e homenagem a CURT LANGE

Page 4: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

m 19b5, por ocasião da visita que fêz ao Recife, o eminen-te musicólogo Curt Lange me convidou a escrever sôbre o frevo e o "passo" de Pernambuco, que tanto o haviam impressionado. Accedi, sempre interessado no estudo das manifestações popu-lares de minha terra.

O trabalho foi publicado, com cativante destaque, no volu-me VI, ano VI, do "Boletim Latino-Americano de Música", pu-blicação que representa uma das mais importantes contribui-ções de Curt Lange ao que êle próprio chamou "americanismo musical", alta política de validação e revalidação dos interesses superiores da Música, através do Instituto Interamericano de Musicologia, iniciativa sua, de irrecusável significação cultural.

No prefácio que escreveu para a referida edição, Curt Lan-ge insiste em que "a música popular precisa de maior dedica-ção, como o comprova o estudo de Otávio Bevilaqua sôbre o "Samba carnavalesco carioca", elemento paralelo ao frevo per-nambucano, como manifestação coreográfica citadina de mas-sas . A despreocupação pela música popidar tem sido grande em tôcla a América Latina e, salvo o estudo de Daniel Castave-cla sôbre Agustin Lara, não conhecemos um só ensaio sério, dig-no de menção, nem sequer cia música popidar rioplatina".

Foi animado por êsse espírito de pesquisa, cie que me con-tagiei, que Curt Lange me convocou para o aludido trabalho, agora refundido e aumentado por novas achegas, úteis ao me-lhor conhecimento dessas duas fabulosas realidades do Recife. Justifica-se, desse modo, a homenagem que lhe tributo, ao de-dicar-lhe êste livro, ao tempo em que evoco — e invoco — a

Page 5: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

6 VALDEMAR DE OLIVEIRA

memória, de Mário de Andrade, figura ímpar no cenário da musicologia nacional e meu inesquecido amigo.

Devo frisar, por último, que não pretendi escrever uma história do carnaval do Recife, como a que prometi, accedendo a convite, enviar à Editora cia Casa do Estudante do Brasil. Cingi-me a estudar a origem do frevo e do "passo", seus carac-teres estruturais e plásticos, além de abordar outros aspectos que me pareceram importar à compreensão dêsse notável fenô-meno social. Tudo veio a consumar-se diante da oferta gentil que me fêz José do Rêgo Maciel Júnior, abrindo-me, de par em par, as portas da CEPE — a modelar Companhia Editora de Pernambuco.

Agradeço, por fim, a Abelardo Cavalcanti e a Terezinha Gonçalves de Oliveira, as excelentes reproduções, em nanquim, dos documentos musicais inseridos neste volume.

V. O.

O FREVO

Q frevo — palavra exótica — tudo que é bom, diz, exprime. É inigualável, sublime, termo raro, bom que dói. . . Vale por um dicionário, traduz delírio, festança, tudo salta, tudo dança, tudo come, tudo rói...

Page 6: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

CAPÍTULO I

NÃO SEI SE DEVO OU NAO DEVO DIZER, MAS ; DIGO AFINAL: — SE ATÉ ROMA FÔSSE O FREVO TERIA BÊNÇÃO PAPAL.

AÜSTRO-COSTA

0 frevo de Pernambuco. 0 nome de batismo. Os clubes-de-rua. As associações profissionais que lhe deram origem. A troça. O bloco. A estrutura do clube-de-rua: o balisa, o estandarte, a fanfarra, o cordão, a onda.

Page 7: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

O FREVO DE PERNAMBUCO

] P ernambuco (somente Pernambuco, não há falar nem mes-mo em seus vizinhos mais próximos) possui uma música e uma dança carnavalescas que são coisa sua, original, que se criou no meio do povo, quase espontâneamente, e se cristalizou de-pois, como traço marcante de sua fisionomia urbana. Urbana, sim. Até seria mais justo dizer o Recife, do que Pernambuco. Porque foi, de fato, no Recife, que isso tudo aconteceu, no Re-cife dos fins do século XIX , começos dêste, que a música foi aparecendo, conduzindo a dança, ou a dança foi tomando corpo, sugerindo a música. É impossível distinguir bem: se o frevo, que é a música, trouxe o passo ou se o passo, que é a dança, trouxe o frevo. As duas coisas se foram inspirando uma na ou-tra — e completaram-se. É possível, porém, afirmar que o fre-vo foi invenção dos compositores de música ligeira, feita para o carnaval, enquanto o passo brotou mesmo do povo, sem regra nem mestre, como por geração espontânea. O compositor, que não posso apontar como erudito, longe disso, mesmo porque nem sabia o que estava fazendo, e o povo, êste muito agreste ainda, até para saber imitar — os dois bem que traziam, na massa do sangue, os germes de sua criação, um e outro agindo em função dos folguedos do carnaval. Os músicos pensavam em lhe dar mais animação e a gente de pé no chão queria, isso sim, música barulhenta, impetuosa, viva, que convidasse ao esper-neio, no meio da rua. Sucedeu, assim, um trabalho recíproco de ajuda, de colaboração, uma como anfimixia, que esteve lon-ge de ser feita premeditadamente. Tudo de palpite, de impro-viso, para pegar ou não, e pegando. Quando menos se viu, a música tinha ganho, ano a ano, características próprias, incon-fundíveis e, do mesmo modo, a dança, que já não se parecia com nenhuma outra, nem mesmo com os passos que estavam no seu subconsciente, quando o povo começou a sua invenção. Os nomes de batismo vieram depois de nascida a criança, já ela crescida e dona de si. A palavra " frevo" veio tarde, quando a música — que era uma "marcha" para todos os efeitos — se impunha no carnaval. Quanto à outra, é palavra comum, de aplicação fácil, natural à coisa que ela define.

Page 8: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

100 VALDEMAR DE OLIVEIRA

As raízes do frevo e do passo são muito superficiais. Um botânico diria: fasciculadas. Não são como as do maracatu, que mergulham na escravidão. Nem como as dos caboclinhos,'que vêm dos tempos dos colonizadores, sabe-se lá. Nem negro,'nem índio, nem branco luso, espanhol ou holandês. Se se tivesse de despistar a filiação genealógica, avós e pais apareceriam bem mestiços. Mulatos. Foi o capoeira do Recife, o ancestral do passo. E o frevo, êsse surgiu de uma mistura heterogênea, cujos ingredientes têm menos interesse do que a criação cole-tiva que dêles nasceu. Talvez fôsse até melhor tomar por em-préstimo ao vocabulário da Química — "combinação" em vez de "mistura". Porque o frevo constitui, na verdade, um tercei-ro corpo, nada parecido com os que lhe deram vida.

O NOME DE BATISMO

A palavra vem de ferver. Por corruptela, frever, dando naturalmente, frevo, palavra já consagrada no 'Dicionário de

' ' ' P J ^ ^ W I B * a s ! j e i r i s m ° s " ^ d e Rodolfo

' * ser curiosa a observação de JL\ ( * „ „ ; Fernando Wanderley, de que

I ' m u m n u m a t e r r a canavieira, P T • • , d o que a " frevura" — fervu-

ra dos tachos de mel, nos cri-§ S-enhos de açúcar, "forvura <1 ^ lenta, bern quente, mal con-í » f ^ ^ S i d ^ < t Í d a " ' " ' q U e j a m a i s P ° d e r i a

j È T ' ' " escapar aos olhos do popular ' '"f . pernambucano.

%.:•••,:* . Criou-a, diz-se, Osvaldo de Almeida, escritor sempre es-condido em pseudônimos: Paula Judeu, das revistas teatrais, Pierrot, das crôni-cas carnavalescas. Teria lan-çado o vocábulo, que pegou. Ou divulgado o que a bôca

. . anônima do povo já espalha-va. A primeira referência que encontro é no dia 12 de feve-reiro de 1908, no "Jornal Pequeno". Já em 1909, o dito do ano

Osvaldo de Almeida (Paula Judeu), o "dono" da palavra frevo. Foto ti-

rada quase 40 anos após a data presumível.

FREVO, CAPOEIRA E «PASSO» 101

era "Olha o frevo!" , conforme se lê no mesmo jornal de 22 de fevereiro. A palavra caiu no gôsto da população e daí passou aos livros mais responsáveis (1) . Designa, ao mesmo tempo, a música típica do carnaval recifense e o esfregado da massa-em crise carnavalesca.

Parece, todavia, que a palavra já bolia na mente dos car-navalescos do Recife, desde muitos anos antes. Ainda com o "e " antes do " r " — mas, já presente. O Teatro Santo Antônio, que existiu no Recife, anunciava, no clia 4 de fevereiro cie 1888, o seu " . . . e coante , vertiginoso, fervorescente e rutilante baile de estréa". Mais para nós, a palavra mágica daria todas as variantes possíveis — frevança, frevolência, frevolente, frevió-ca, frevar (2) , por aí afora, entrando na fala comum como si-nônimo de barulho, de folia, de reboliço, até cie confusão, cie briga doméstica (3) . Senão de valentia, a decantada valentia

( x)—"Efervescência, agitação, confusão, reboliço: apertão nas reuniões de grande massa popular no seu vai-e-vem em direções opostas, como pelo c a r n a v a l . . . " — PEREIRA DA COSTA, "Vocabulário Pernambucano". Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, volume X X X I V , pág. 191, Recife, 1936. Em sucessivas notas no "Pequeno" de 1909, o jornal que manti-nha a melhor secção carnavalesca da época, há alusões à palavra: " . . .em São José, onde êste ano o frevo está num calor b a i t a . . . " (5 de janeiro) ou "foi um frevo e s tupendo . . . " (3 de fevereiro) . Até então, porém, a expressão não se ligava à música, mas, à ani-mação das reuniões. Só mais tarde, se estenderia à música que nela interferia e veio a expressamente condicioná-la.

( 2)—Pereira da Costa, op. cit., consigna quase todos êsses termos, valendo-se de recortes de jornais: "O clube levará em um de seus carros uma pipa do saboroso binlio berde para distribuir com o pessoal da frevança". ("Jornal Pequeno", n.° 39, de 1917). "Do mundo a gente se esquece, / pinta a manta, pinta o bode. / E se o frevar recrudece, / mais a gente se sacode". ("Diário de Per-nambuco", n.° 66, de 1916). Quanto à expressão "frevióca", pas-sa de "pândega, folia, divertimento" a clube, troça, cordão car-navalesco: "Essa bem feita frevióca dos Carregadores de Piano pre-para-se cada vez mais para os dias de carnaval". ("Jornal do Re-cife" , n.° 50, de 1914) . "Um viva à rapazeada escovada da fre-vióca" . ( "Pernambuco", n.° 55, de 1914).

( 3 ) — " L á dentro está um frevo danado!" — Frase de personagem que aconselha alguém a afastar-se de uma briga doméstica. — LUIZ MARINHO, "Um sábado, em 30", peça teatral. Imprensa Universi-tária, 1968, Reci fe .

Page 9: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

15 9 VALDEMAR DE OLIVEIRA

pernambucana, presente na "disposição" do passista (4) . Ruy Duarte, em seu excelente trabalho "História Social do

Frevo", recorda "o sentimento de medo, de receio de que algu-ma coisa vai acontecer", que se apossa de quem ouve, de longe, no Recife, a aproximação de um clube-de-rua, arrastando a mul-tidão. Não seria o "vai acontecer", mas, seria o "pode aconte-cer" , Isso se observava, porém, nos tempos em que havia, na "onda", muito filho de capoeira — e o Recife parecia ter mais gente, ou tôda ela se acotovelava na rua da Imperatriz ou na rua

. Nova, esperando que, do alto da ponte da Boa Vista, se ouvissem os clarins anunciadores. As famílias subiam ao meio-fio, a pro-curar as soleiras das lojas, para ver melhor e, também, para se pôr a salvo dos cotovelões da massa bruta que atravessava a rua como líquido grosso pelo bico de um funil.

OS CLUBE S-DE-RUA

A expressão é de Katarina Real, antropóloga que por aqui andou, entusiasmada com o nosso carnaval e querida de todos. Expressão que veio substituir o "clube pedestre", com a qual já estávamos acostumados, mas, que podia definir qualquer outra agremiação carnavalesca.

Traz-nos, a estudiosa norte-americana, em seu livro "O fol-clore no carnaval do Recife", importantes subsídios para a his-tória dos nossos clubes-de-rua, através de transcrições de Ro-ger Bastide, que lhes aponta as nascentes nas corporações pro-fissionais que, na passagem do século, proliferavam no Re-cife (5) .

( 4 ) — " A sugestão belicosa é constante na palavra ( f revo ) . Quando não lembra briga, lembra valentia". — RUY DUARTE, "História Social do Frevo" . Editora Leitura, Rio, 1968.

( 5 ) — " . . . os artesões se uniam em corporações, as profissões em asso-ciações profissionais. Tôda a cidade participava das festas, quais-quer que fossem, religiosas ou profanas, e participava com sua es-trutura hierárquica própria, confrarias religiosas, corporações de homens bons, autoridades e corporações, milícias e conventos. Ca-da grupo tinha seu papel e exercia uma função determinada. O papel das associações profissionais era de introduzir o elemento co-reográf ico" . — (Grifo da cópia) — ROGER BASTIDE, "Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto", pág. 199, apud Katarina Real, "O folclore no carnaval do Recife" , Ministério da Educa-ção e Cultura, 1967, pág. 23.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109 17

Sempre escavando na área radicular do frevo, Katarina Real chega a Pereira da Costa, que alude a antigas corporações do Recife, constituídas, as primeiras delas, de carregadores, em fins do século XVIII e começos do X I X . Tais "companhias" eram "formadas de pretos no bairro comercial do Recife, diri-gidos por mestres, capatazes, ou até "governadores" (6) . Des-filavam elas, sob possíveis sugestões dos "ternos de Reis" da Bahia, pelas ruas do Recife, como réplicas às procissões visto-sas, a do Corpus Christi especialmente, com cânticos, brandões acesos, música acompanhante, andores, guardas-de-honra, cuja influência, segundo Katarina Real, se teria feito sentir nos clu-bes-de-rua, na luxuosidade de suas fantasias, nos seus ricos bor-dados, "no simbolismo, na presença de espadas, plumas, capa-cetes, tricórnios, etc., das figuras masculinas e dos cordões cie "lanceiros" e de "soldados".

Já em 1888, provavelmente antes da Abolição, sai às ruas o "Bloco das Pás de Carvão", representativo dos carvoeiros, que eram numerosos na faixa do cais, a descarregar o carvão de Cardiff que nos traziam os cargueiros inglêses. Era, decerto, a mais importante das corporações já mencionadas, que ainda na década de 30 pesava na agitada área social do Recife, sob as vestes da célebre "Resistência", englobando, ainda, os esti-vadores .

Consolidada a Abolição, houve euforia geral entre os liber-tos, que viram aproximar-se o carnaval do ano seguinte como excelente oportunidade de expansão de suas alegrias. Com efei-to, logo em 1889 (note-se a particularidade: num dia de Reis), Teodoro Matias da Rocha funda o "Vassourinhas", que pro-vàvelmente reunia os varredores da cidade, sendo admissível que o "Ciscadores" tenha resultado de uma dissidência.

Mais um ano, 1890, o "Bloco das Pás de Carvão" se trans-forma no Clube das Pás, o popular "Douradinhas". (Outra versão dá 1886 como data de fundação das "Pás" . Nesse ano,

( 6 )—"Os pretos dêsse serviço, livres ou escravos, não trabalhavam na véspera de Reis; e reunidos, pela manhã, alegres e contentes e formando um numeroso cortejo, indo no eoice um dêles sentado num caixão, empunhando uma bandeira, e carregado aos ombros pelos companheiros, partiam, então, cantando uns versos em uma toada de marcha, e dirigiam-se às casas dos seus fregueses e pes-soas diversas para dar-lhes as boas festas, e todos os quais, em agradecimento pelas espórtulas prodigalizadas, erguiam vivas ao estourar de foguetes". - PEREIRA DA COSTA, "Folclore Per nambucano", pág, 238

Page 10: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

16 VALDEMAR DE OLIVEIRA

dia de Reis, a Cory Brothers concordou em pagar duplamente a carvoeiros para que atendessem à descarga de um de seus vapores, recém-chegado de Liverpool. Embolsada a dinheira-ma, saíram os carvoeiros, com suas pás aos ombros, para o Baile dos "Caiadores", na rua de Hortas. No curso do desfile, ajustaram a fundação do seu clube próprio, que se teria exibi-do por uns três anos. A Abolição perturbou tudo. Somente em 1892, ter-se-ia restaurado o antigo "Bloco das Pás de Carvão", já agora transformado em 'Clube das Pás" . E isso foi no dia 19 de março, razão de ter São José sido proclamado padroeiro do clube) . De chorrilho, uns atrás de outros, competitivamen-te vêm o "Ferreiros", o "Talhadores", de vida curta, o "Le~ nhadores" (fundado por Juvenal Américo Brasil, em 5 de março cie 1897, como um cisma do Clube das Pás) e, mais, o "Caiadores", o "Vasculhadores", o "Parteiras de São José" e seu homônimo "da Boa Vista", o "Abanadores", o "Espanado-res", o "Empalhadores do Feitosa", o "Ciscadpres", o "Chalei-ras de São José", o "Carpinteiros", o "Suineíros", o "Tanoei-ros", o "Regadores", o "Ferreiros", o "Bilheteiros do Recife", o "Cigarreiras do Recife", o "Bilontras", o "Remadores Olin-denses", o "Viúvas Contentes", o "Engrossadores da Boa Vis-ta", o "Remadores do Recife" e diversas "troças femininas", como "Verdureiras", "Africanas", "Ciganas", "Caixeiras" e outros mais que enchem tôda a primeira década do século, en-tre êles os que congregam elementos portugueses dos balcões de comércio do Recife, como "Imigrantes Portugueses", "Bair-rinos Portugueses" e "Caninha Verde". Segundo Severino Bar-bosa, cêrca de 100 agremiações carnavalescas se exibiram no carnaval de 1900.

Mais tarde, numerosas outras aparecem: "Cachorro do Homem do Miúdo", em 1910, "Pão Duro" e "Toureiros de San-to Antônio", em 1916, "Prato Misterioso" e "Amantes das Flo-res", em 1919, "Pão da Tarde", em 1941, "Papagaio Falador", em 1943, "Folha Dourada", em 1946, outros de menor signifi-cação, mortos por inviabilidade. Note-se, aliás, que os mais re-centes já não congregam grupos profissionais (como ainda, em nossa época, o "Quitandeiras do Arruda" e o "Lavadeiras de Areias") , porém gente do mesmo bairro que se anima a fundar um clube, às vêzes começando por uma "troça" —- e fundam.

A "TROÇA"

Muita troça começou como qualquer agrupamento de "su-j os " . Várias, progredindo, transformaram-se em clubes-de-rua

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

("Toureiros", "Lavadeiras", "Papagaio Falador" foram tro-ças) . Outras morreram cedo, no grupo etário de 0 a 1 . . . Ex-pliquemos, ainda, que a troça se exibe de dia, algumas não passando do meio-dia, como a que se intitulou "Até meio-dia" ,

Orquestra de "troça" de la. categoria. Notar a presença do pandeiro c, no primeiro plano, um passista com seu guarda-chuva enrolado. Pelas

sombras, observa-se que o desfile se dá ao meio-dia.

Classificadas como troças, "Pitombeiras dos Quatro Cantos", de Olinda, e sua rival "Elefante de Olinda", nada ficam a de-ver aos clubes de primeira categoria do Recife. E o curioso é que vêm revivendo, em seu cortejo, os antigos clubes de alego-rias. Cito essas troças porque elas são, pràticamente. clubes-de-rua, tocando frevo e fazendo passo. Vêm, entretanto, as tro-

Page 11: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

17 VALDEMAR DE OLIVEIRA

ças autênticas, das classes sociais mais pobres e mantêm or-questras mais modestas (as de l . a categoria se compõem de 18 músicos, as de 2.a, de 13, as de 3.a, de 10), arrastando, entre-tanto, grande massa de gente (7) .

O " B L O C O "

Os blocos começaram, aqui, a partir de 1915, mais ou me-nos . Os primeiros surgiram com Filinto Moraes, com Raul Mo-raes, outros, numa enfiada que alcança os nossos dias: o "Apois fum! " , o "Bloco das Flores", o "Batutas da Boa Vista" (1920), "Madeiras do Rosarinho" e "Inocentes do Rosarinho" (ambos de 1926), o "Batutas de São José", de 1932, o "Rebeldes Im-perial", de 1941.

A origem dos blocos se liga à rapaziada que gostava de fa-zer serenatas e vinha também às ruas, em dias de carnaval. Acabaram por organizar-se famílias inteiras, pais com suas f i -lhas, maridos com suas esposas, namorados e namoradas, todos pertencentes à classe média, moradora em bairros burgueses, gente a quem não agraciava o rojão do frevo, nem mistura com o povo. As primeiras exibições dos blocos foram comoventes, dou meu testemunho. Adiante da orquestra de "pau e corda", sem nenhum metal, ia o numeroso elenco feminino — crian-ças, jovens, vitalinas, matronas — a quem se entregava, espe-cialmente, a parte coral. Formavam um círculo fechado, inex-pugnável, que nenhum engraçado teria coragem de furar, .por-que logo atrás iam pais, maridos, irmãos, com seus violões, vio-linos, cavaquinhos, bandolins, até contrabaixo, que o músico conduzia como uma imensa hidrocele. E cada instrumento po-dia transformar-se, num fechar de olhos, em arma de ataque.

( 7 ) — " A s maiores diferenças que separam clubes-de-frevo das Troças são quase todas de natureza psicológica. As Troças são mais "li-vres", mais alegres, mais "carnavalescas". Podem sair "ruim" ou "bonito", mas saem para brincar, com a "onda" fazendo passo ao som duma orquestra que talvez falhe na melodia, mas, nunca na animação ( . . . ) . É importante notar que a onda do frevo, os pas-sistas populares, a massa em folia, seguem hoje as Troças, não sòmente nas avenidas como também pelas ruas e ladeiras dos su-búrbios" . — KATARINA REAL, op. cit., pág. 45.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

Orquestra de "b loco" ( "pau-e-corda") . Sendo bem recente, vê-se a pre-sença de instrumentos estranhos: o tamborim e a cuica, além do pandei-

ro, que é de sua composição original.

Concordo com Katarina Real quando vê no bloco uma tro-ca ou fusão de elementos da troça e do clube-de-rua, embora não desdenhe a enorme influência que sôbre sua criação e so-bre sua estrutura exerceram os "ranchos" cariocas, senão mes-mo os "ranchos de Reis" e Pastoris que também existiam em Pernambuco, ao tempo do seu advento.

O que grandemente diferencia, dos clubes-de-rua e das tro-ças, os blocos, é a composição musical de que se servem, todas cantadas, servindo a introdução, simples e alígera, para evolu-ções da enfeitada vanguarda do cortejo, sem nada, todavia, que

Page 12: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

20 VALDEMAR DE OLIVEIRA

lembre o passo. A dança se assemelha, antes, à das "pastoras", não lhe faltando uma certa e ingênua poesia, que vem sendo manchada pela participação de homossexuais.

O CLUBE-DE-RUA

Sendo as mais representativas agremiações carnavalescas, os clubcs-de-rua merecem estudo mais demorado. Formaram-se, vimos, por conta de vários fatores, sujeitos aos mais diver-sos afluentes culturais: o desfile de bandas militares, com os seus dobrados estridentes, a capoeira, que encontrava, nesses binários, a excitação ideal, as farândolas da véspera de Reis, com os seus cortejos que são, já, um embrião dos futuros clu-bes, as procissões, não apenas pelo que ostentavam em luxo, em côr, em espetaculosidade, como pelos "máscaras", pelos ha-lisas e pelo pendão que haviam de transferir-se, quase copiada-mente, para a sua vanguarda, no curso de suas exibições clc rua ( 8 ) .

Os balisas (ou porta-balisas ?) tinham, nos clubes, as mes-mas funções dos irmãos, que, à frente das procissões, lhes dão o norte, atuando, pois, como mestres de cerimônias, mandando e desmandando à frente do seu grêmio. Logo depois, ainda de-fendido por alguns elementos fantasiados, o estandarte, tão sa-grado quanto a bandeira de um regimento. É o estandarte que se curva em reverências a quem as merece; é o estandarte que, representando o clube, se aproxima de outro, face a face, em contacto rápido de confraternização; é o estandarte que. con-duzido, sempre, pelo mais credenciado dos homens do clube (há clubes que têm mais de um porta-estandarte). substituem os pendões das irmanclades, as bandeiras de santo, os pavilhões nacionais à testa dos batalhões, sua guarda e sua defesa se cons-tituindo deveres supremos de honra, para a agremiação.

( 8 )—"Vê-se essa influência (a das procissões religiosas) nos luxuosos estandartes dos clubes com suas pinturas religiosas de santos e milagres e "reinterpretação" do , simbolismo da Igreja Católica. Sente-se esta influência no gosto dos clubes pela luxuosidade. Ainda mais, quando a Igreja Católica não quis tolerar mais cer-tos elementos "burlescos" nas procissões das irmandades e con-frarias — diabo, os "sete pecados mortais", morcegos, a Morte, bobos e palhaços, êsses elementos se iam integrando nos clubes carnavalescos que lhes ofereciam um lar mais cômodo e talve? mais apropriado". — K A T A R I N A REAL, op . cit., pág. 25.

FREVO ; CAPOETRA E «PASSO» 2 ]

Geralmente, em seguida ao estandarte, ferve a corrente humana, constituindo a "onda" . Quanto maior é esta, tanto maior é o "pêso" do clube. Explique-se: "pêso" é vocábulo em-pregado para dar idéia de potência, prestígio, supremacia. Diz-se ^"Vassoura" (abreviatura do "Vassourinhas") vinha ontem num "pêso" formidável" — ou "Não há quem enfrente o "pêso" de "Vassoura". Essa, a razão de o cognominarem, os seus adep-tos mais fervorosos, o próprio povo que o admira — o "Camêlo de São José", por ser, o camelo, capaz de agüentar m u i t o . . . — "pêso", resistindo, inclusive, à sêde. Responderam, os dos "Le-

nhadores", alcunhando, a êste, cie "Leão", animal feroz, sím-bolo do próprio Estado. "Pás", mais cordata, desenhou, no es-tandarte, um anjo. Foi aclamada "o anjo da Boa Vista", sem deixar de ser as "douradinhas", pelo dourado de suas pás.

E logo vem a fanfarra (9 ) , os músicos caminhando incó-lumes, n(Tmeio da massa. Por fim, fechando o cortejo, o "cor-

(" 9)—Fanfarra é, sabe-se, conjunto de metais, clarins, banda marcial. As orquestras de frevo são comumente assim chamadas porque se constituem preponderantemente de metais, fora os instrumentos de percussão e uma ou outra "madeira", geralmente requinta e clarinetes.

Page 13: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

13 VALDEMAR DE OLIVEIRA

dão" . Não se trata de cordão 110 sentido em que o têm os ca-riocas. O a que chamamos "cordão" é, restritamente, o grupo de sócios do clube, que, desde muito tempo, fecham o desfiie, realizando "manobras" na cauda dos préstitos, pitorescamente

A fanfarra caminha no grosso da "onda", sem ser molestada. — (Rabelo)

vestidos e empunhando um distintivo do clube. Tais "mano-bras" não são o passo estabanado. Lembram, mais, certas f i -guras de quadrilha e certas jornadas de pastoril, comandadas por um maioral (10) . Tenho visto êsses cordões manobrarem logo após o estandarte, sem oferecerem o menor sinal de passo. Nos cordões atuais vêem-se velhos sócios que ali fazem, tão so-mente, um ato de presença, tão enferrujadas andam suas per-

(10)—Confesso haver lido "cordões" com a significação de clubes-de-rua, parece-me, mesmo, que essa era uma designação generaliza-da a qualquer agremiação carnavalesca, costume que vinha, tal-vez, do Rio (ver peça "O cordão", de Artur Azevedo) . Exemplos: "Outros clubes (cordões) estão igualmente em preparat ivos . . . " ( " A Rua", ano II, n.° 8, de 1904). Mais tarde: "Espanadores". Êste apreciado cordão carnavalesco . . . " ("Jornal Pequeno", de 4 de janeiro de 1909). Mais perto de nós: "Esteve bem o ensaio efetuado pelo apreciado "cordão" carnavalesco 18 de março" . ("Jornal Pequeno", n.° 38, de 1914, apud Pereira da Costa, op . c i t . ) . (Os grifos são das próprias notícias).

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

nas. São os mais comovedores exemplos de fidelidade, fideli-dade às vêzes perturbadora. Quando Aaron Copland esteve no Recife, tivemos de interferir junto à diretoria do "Pão Duro" para que o seu "cordão" se afastasse um pouco de modo a que pudéssemos observar melhor a "canalha da rua" fazendo o passo autêntico. Isso realmente entusiasmou Copland (11) .

Não acredito que os cordões que fecham os cortejos dos clubes-de-rua do Recife sejam, como querem alguns estudiosos, "derivações festivas dos cortejos místicos e reais africanos", nem mesmo apontando-os como "decaídos da sua funcionali-dade social primitiva". Criaram-se, na cauda dos préstitos, pa-ra a ostensiva participação dos sócios mais categorizados do clube, que outra forma não tinham de participar dos desfiles de sua agremiação. Deram-lhes a uniformidade do indumento, puseram-lhes à mão o distintivo do clube, imaginaram-lhes al-gumas marcações e os puseram na rua. Mesmo porque os "cor-tejos místicos e reais africanos" tinham outra organização, outra estrutura, outra altitude. O próprio Mário de Andrade o esclarece, quando frisa que "as danças dos maracatus, pelo que sei delas, são coreografias eminentemente religiosas e tradicio-nais, repudiando por isso o caráter improvisatório", que atri-bui estritamente ao passo.

(11)—Idéia mais clara do que eram êsses clubes-de-rua, tem-se ao ler as descrições seguintes, publicadas em 1915, na imprensa do Re-cife: "Conquistaram palmas a valer, os campeões das "Pás" . Com um figurino soberbo, as "Pás" tiveram a felicidade de aliar ao conjunto uma orquestra magnífica, cujas marchas ecoaram vi-brantemente pelas ruas, dominando quem acompanhava. O cor-dão trajava calças curtas de cetim encarnado, com guarnição de gase branca e fita liberty, jaquetão da mesma fazenda, verde, com guarnição também de fita liberty, cabeleira branca, sapa-tões de verniz de entrada baixa, meias marron" E, sôbre o "Vassourinhas", na mesma época: "Com excelente orquestra e luzldo cordão, trajando calça de fia-nela branca, camisa de seda côr de rosa, gravata de cetim verde e sapatos de lona, apresentaram-se os valentes foliões do "Vas-sourinhas", que é um dos mais populares do Brasil. O porta-bandeira, Manuel José de Oliveira, trajava calças curtas de pelú cia côr de ouro, palito da mesma fazenda, côr de grená, colete de cetim verde pintado a óleo e bordado a ouro, cabeleira loura, com diadema, sapatões de verniz de entrada baixa e meias de sO da côr de lírio. Êsse traje constituiu nota chic do vestuário do» porta-bandeiras, sendo bastante apreciado".

á

Page 14: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

T T

CAPÍTULO TI

« . . . ESSAS COISAS, QUANDO NASCEM NA CONSCIÊNCIA DA GENTE, ISTO É, QUANDO A GENTE VERIFICA A IMPORTÂNCIA SOCIAL QUE ELAS ESTÃO TOMANDO, JÁ FAZ MUITO-QUE NASCERAM DE MISTURAS, INFLUÊN-CIAS E INVENÇÕES OCASIONAIS DO POVO. E O POVO NAO COSTUMA DATAR OC ATOS CORRIQUEIROS DE SUA VIDA. . .»»

MARIO DE ANDRADE

A oriç/em do frevo, como música. A modinha. 0 "dobrado". 0 "maxixe". A polca. Frevos cantados. 0 frevo-canção. 0 frevo cie bloco. 0 frevo propria-mente dito (frevo-de-rua) . Confronto com a marchi-nha carioca. Títulos e outras características.

Page 15: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

O s primeiros compositores cie frevo, compreende-se, não imaginaram nada de original. Foram aproveitando os elemen-tos harmônicos, rítmicos e melódicos das músicas em voga, dan-çadas ou cantadas. A pena corria ao gosto popular da época. E o mais que se fazia era apelar para os instrumentos de metal e para um aligeiramento dos desenhos melódicos, em certas partes da obra, destinadas à dança. Veja-se a composição das primeiras fanfarras: clarineta, requinta, 2 trombones, 2 pis-tons, 2 baixos e 1 bombardino, para os floreios do contracanto. Por outro lado, em 1901, na fanfarra do "Caiadores", apareceu, pela primeira vez, o tarol, para sustentar melhor o ritmo, fun-ção que veio a caber, também, ao surdo, que o comandante Al-berto Gavião Pereira Pinto, do 40.° de Infantaria, introduziu, em 1906, nas orquestras de "Pás" e "Lenhadores". Um e ou-tro nunca mais abandonaram as fanfarras de frevo.

AS FONTES DO FREVO

As fontes onde se dessedentavam os compositores carnava-lescos da época era a modinha, o dobrado, a quadrilha, a polca e o maxixe. Até que o frevo apurou, as mesmas influências continuaram agindo, no correr dos tempos . E os exemplos são muitos.

A MODINHA

A princípio, bem pobre era a melódica, que se inspirou, por muitos anos, nos lânguidos desenhos da modinha. O qua-ternário das modinhas imperiais se vestia de binário, tomava um gosto mais desempenado e saía à rua, arrastando o pova-réu. Repare-se nesta primeira parte da Marcha n.° 1 (12) , dos "Lenhadores", escrita em 1903, por Juvenal Brasil:

(12)—Não se trata de princípio de numeração. As marchas denomina-das n.° 1 são aquelas que, aceitas entusiàsticamente pelo povo, nunca passaram de moda e, repetidas todos os anos, acabaram por identificar, ao longe, o clube, valendo como uma espécie de hino. Neste mesmo trabalho, o documento n.° 12 se refere à Mar-cha n.° 1 do "Vassourinhas".

Page 16: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

16 VALDEMAR DE OLIVEIRA

4 s ± 3 1 1 • _ —K-,jJêsLJ. \4

fH 4 -v —«1 r1-^ «r—sr <•

H MS

Fd

l i 3E

modelada, sem dúvida, na conhecida modinha "Quem sabe?", de Carlos Gomes:

A m U n t e t o m e > p « S 5 i o

S 5 S 3 c : r s ,

TOE

Já a segunda parte dessa mesma marcha, eonvidava à dan-ça, uma vez cessada a cantoria da primeira. E note-se ainda a clara marca da jornada de pastoril, divertimento preferido, nos tempos das "festas", clesde o de Santa Rosa, no Teatro da Capunga, em 1870, até, recentemente, o de Herotides, na En-cruzilhada ou o de "Canela de Aço", em Santo Amaro. Ve-ja-se:

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

O " D O B R A D O "

"Dobrado" foi coisa que influenciou muito a produção car-navalesca da época. Em vários frevos de então, sua marca e-evidente. Lembro-me de anotar o seguinte exemplo, tirado do frevo "Canhão 75", de Faustino Galvão, que e, direitmho, um trio de dobrado:

A "QUADRILHA"

Influência forte foi a das quadrilhas, a cuja voz, já dizia o padre Lopes Gama., "mexe-se o Norte, remexe-se o Sul e an-da tudo em bolandas". Certas progressões de quadrilha estão, flagrantemente, em alguns frevos. Assunte-se, por exemplo, nesta 4.a parte da quadrilha "Os domingos no Poço", de Cân-dido Lira, escrita por volta de 1890:

E compare-se com esta introdução do frevo "Carnaval de Pernambuco"', de Plácido de Souza:

_ t.

, A ? I P u ü J

CALHtTAS

' ' M m m i * *

Ou com esta outra de "Chegou fervendo", de Zumba:

Page 17: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

17 VALDEMAR DE OLIVEIRA

Progressões semelhantes se observam nos primeiros com-passos da transcrição seguinte, do frevo "Come e dorme", de Nelson Ferreira, um renovador constante da melódica do f revo :

O " M A X I X E :

Quanto ao maxixe, começaríamos por dizer, simplistamen-te, que as peças de frevo podem ser tocadas como maxixe. O andamento é o mesmo. Só o ritmo se altera, ligeiramente, por-que o acompanhamento se aproxima do da polca, com a aplica-ção contínua de semicolcheias.

Versão responsável sobre a origem do maxixe é a que o atribui a certo farrista apelidado Maxixe que, entre 1870 e 1880, dançou, num clube do Rio ("Os Estudantes de Heidel-berg" ) , o lundu, "de maneira diferente e nova", versão abona-da por Villa-Lobos. A linhagem é inegável. Intervindo na quí-

* mica do frevo, o maxixe deixa, em sua fórmula, a semente africana.

Onêida Alvarenga nos dá interessante roteiro sôbre a for-mação do maxixe, como música e como dança. Os ingredientes que nêle entraram foram a polca, de procedência européia, que fizera sua invasão vitoriosa, nos salões do Brasil, aí pelos mea-dos do século XIX , a habanera cubana, na qual entra, como no lundu, boa porção de melanina e, por fim, o próprio lundu, que, representado principalmente pela sincopa, acusa o legítimo tim-bre negro.

Uma segunda etapa dessa formação se opera na segunda metade do século XIX , com a irrupção do tango, de proveniên-cia afro-platina (lundu habanerado ou polca habanerada) . Er-nesto Nazaré viria a fixar a " forma livre de influência brasi-leira", conservando, porém, o título de "tangos" para todos os seus maxixes. ("Tanguinhos" seriam, também, mais tarde, as composições amaxixadas de Tupinambá).

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109 29

De Renato Almeida é, também, um entre-aspas expressivo, referente ao maxixe: "fusão da habanera, pela rítmica e da polca, pela andadura, com adaptação da sincopa africana" — entre-aspas que bem poderia ser aplicada ao frevo, metendo-se-lhe, de mistura, pequenas doses de modinha, dobrado, qua-drilha e música de jornadas de pastoril.

Embora Manuel Bandeira, em "Crônicas da Província do Brasil" escreva que um velho amigo seu, ao chegar ao Rio, em 1865, já encontrara o maxixe, e França Júnior, nos seus " F o : lhetins" de 1876, aluda à nova dança, esta só vem empolgar verdadeiramente o Rio, nos começos do século (13) , época em que a revista teatral "O Maxixe", de Bastos Tigre e João Foca, faz furor, no palco carioca. É êsse maxixe, de que o "Vem cá, mulata!" representa o padrão, que chega ao Recife, onde atin-ge o apogeu, em janeiro de 1908, com Brandão Sobrinho apre-sentando com Maria Lino os tremendos maxixes da revista "Prá burro", no Helvética. Como acontecera no Rio, tudo quanto é casa de mulher-da-vida onde, principalmente aos sábados,^ se dança, toma o nome de maxixe, como o "maxixe da Júlia Peixe-Boi", e o "maxixe da Rosinha", ambos em altos da rua do Im-perador, em Santo Antônio. Foi por êsse tempo, precisamente, que o frevo começou o seu processo de cristalização, crescendo, ganhando fama e se batizando.

A POLCA

Por aí, pelos caminhos do maxixe, êle estende uma raiz tí-mida para a música africana (a primeira obra de Ernesto Na-zaré foi uma "polka-lundu"), para a música européia (a polca) ou hispano-americana (a habanera), se quisermos pensar com Artur Ramos, que Renato Almeida cita (14) , como cita, ainda, Luciano Gallet, êste esquematizando a filiação histórica: polca brasileira, tango, maxixe.

(13)—"Êsse gênero cie dança, e música, popularmente conhecido como o maxixe, está em moda (1906). Dançar o maxixe é chic. Todos sabem dançar. Não há quem não o cantarole e o assobie. A po-pulação inteira vive-o. Aplaudem-se com calor os mais exímios dançarinos. Jornais e revistas ilustradas tecem comentários a res-peito. Divulgam-se fotos. É a coqueluche da época" . — RAI-MUNDO DE MENEZES — "Bastos Tigre e La Belle Epoque" — Etard — Livraria-editora, São Paulo, 1966, págs. 241/42.

(14)—RENATO ALMEIDA — "História da Música Brasileira, 2a. edi-ção, F . Briguet Comp., Rio, 1942.

Page 18: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

100 VALDEMAR DE OLIVEIRA

A influência das músicas hispano-africanas da América na formação do frevo me parece, realmente, muito clara, fa-zendo-se sentir através do maxixe que recebeu, como afirma Mário de Andrade (15) , os estímulos rítmicos e melódicos da habanera, cio tango e da polca. É na altura de dizer isso que Mário reproduz, em sua "Pequena História da Música", uma introdução instrumental de habanera peruana oitocentista, que se liga diretamente a introduções de maxixes nossos e — por-menor para o qual chamo a atenção cios estudiosos —• se asse-melha, extraordinàriamente, à introdução-padrão dos nossos frevos-de-bloco. Eis o documento musical:

Certos dos nossos frevos "ventania" também lembram es-sa amostra. Repare-se em alguns dos exemplos que vão adiante.

Mário Melo traz importante achega à melhor compreensão do papel da polca na fórmula do frevo. Escreve: "Foi ao tem-po das polcas ( . . . ) Havia as saltitantes e as de ritmo não mui-to violento. Às últimas ciavam o nome de marcha-polca ou de polca-rnarcha. Era como uma marcha mais acelerada ou uma polca menos vio lenta. . . Apesar da evolução, guardam ainda alguns frevos de hoje reminiscências de marcha-polca na se-gunda parte. Não tinha a marcha-polca introdução e foi a in-trodução sincopada com quiálteras que começou a estabelecer a diferenciação para o f revo" .

Aludindo, em seguida, a Zuzinha, que viera de Pau d'Álho para ser mestre da banda do 40.° Batalhão de Infantaria, afir-ma que êste escrevera certa composição, que, segundo sua opi-nião, constituiu uma "linha divisória entre o que depois passou a chamar-se frevo e a marcha-polca", composição que, acrescen-ta, passou a pertencer ao repertório de sua gaitinha, "nos seus tempos de acadêmico".

A marca da polca está presente a diversos frevos destes últimos anos, no Recife, parecendo nunca mais ter abandonado a mnemônica dos compositores. Não quero, porém, dizer, com is-so, que a polca ressurgiu recentemente. Não. Ela se conservou habitualmente presente, em numerosas composições. Daremos alguns exemplos, a começar pelo frevo "Picadinho", de Artur

(15)—MARIO DE ANDRADE — "Pequena História da Música". Li-vraria Martins Editora, São Paulo, 1944, pág. 186.

FREVO, CAPOEIRA E «PASSO» 101

Gabriel, cujo título é bastante expressivo, por ser, justamente, o "picadinho", uma constante, na polca. Queira o leitor obser-var o primeiro exemplo da página 54, detendo-se nas partes atribuídas aos saxofones.

Outro exemplo se tem em quase tôda a segunda parte do frevo "Capenga", de Eugênio Fabrício, que vai a seguir:

Mais outro é o de alguns compassos do frevo "Come e dor-me", de Nelson Ferreira, como se vê abaixo:

Volte o leitor ao exemplo da pág. 30 e aí encontrará um desenho melódico ascendente (e logo descendente) que é pura polca (com reminiscência de modinha) .

Vejam-se, por fim, os 10 primeiros compassos da segund i parte do frevo "Na última hora", de Eugênio Fabrício, repro-duzido na parte final deste volume.

Recuando-se, dêsse modo, de uma geração para outra — de pais, a avós, bisavós, trisavôs, compreende-se a dificuldade em conceituar, rigorosamente, a origem do frevo, isto é, em abrir caminho na terra do Tempo para descobrir até onde vão suas radículas. De comêço, é claro, não era maxixe, nem polca, nem quadrilha, nem dobrado ou modinha, e era tudo isso, no f im de contas, em solução perfeita. Tinha graça que o frevo nascesse puro, sem eiva alguma, numa terra adubada com tan-to adubo estrangeiro. Impossível, à história, guardar as pri-

( 1 6 ) MÁRIO MELO •— "Origem e significado do frevo" , in Anuário do Carnaval pernambucano, 1938, publicação da Federação Car-navalesca Pernambucana.

Page 19: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

34 VALDEMAR. DE OLIVEIRA

meiras reações dessa combinação heterogênea, porque a quími-ca popular se mostra sempre confusa (17) ,

Está longe, porém, o frevo, de ser folk-music, porque se fêz e se criou sem nada pedir à alma do povo, ao seu sangue, à sua raça — mas, satisfazendo-a. Foi coisa que lhe deram e êle aceitou, porque soube bem ao seu paladar, já se conhecendo as exigências dêsse paladar. O povo do Recife nunca fêz, nunca compôs, um frevo. Nunca, que se dissesse, surgiu um motivo, uma sugestão de assobio, uma "deixa" subida da massa. Nun-ca colaborou nêles, a não ser quando era cantado e uma que outra quadrinha podia aparecer, alusiva a fatos do tempo. Fo-ra disso, alheamento completo até à época dos ensaios dos clu-bes, quando lhe oferecem o prato sem lhe dar direito a escolha em cardápio. Agora : pode recusar, como recusou, alguns dê-les. Como refugou, por exemplo, frevos de Zeferino Bandeira que vieram à rua, por volta de 1920, forçando motivos de ope-retas vienenses, a "Baiadera", a "Dança das libélulas", a "Scug-nizza" e outras, exibidas com grande sucesso — mais de elite do que de povo — por Clara Weiss, no Teatro Santa Isabel.

FREVOS CANTADOS

Isso foi há muitos anos. logo no princípio, quando se plas-mava a nebulosa do frevo. Surgiam melodias chulas, com ver-sinhos sem maior interêsse poemático. Tal foi o caso da Mar-cha n.° 1, de "Vassourinhas", devida a Matias da Rocha, cujos versos sugeriam singela jornada de pastoril:

"Se essa rua fôsse minha eu mandava ladrilhar com pedrinhas cie brilhante (de diamante) para o meu bem passear (amor passar) .

A melodia é muito conhecida:

(17)—Benício Whatley Dias me refere haver Orson Wells, em visita ao Recife, descoberto semelhança entre o frevo e a tarantela. Fo-ra o binário, nenhuma afinidade encontro eu entre os dois, con-vindo lembrar que a tarantela se dança aos pares.

FREVO, CAPOEIRA E ,(PASSO., 29

Sempre me pareceu, porém, que tais versos não eram can-tados com a melodia acima, introdutória da parte mais canta-bile, a segunda da composição. Ruy Duarte, porém, à pág. 23 de sua "História Social do Frevo", divulga outros versos que constituiriam, em seu conjunto, matéria para a referida segun-da parte, casando-se bem o espírito poético com o desenho on-dulado da melodia:

" A saudade, ó Vassourinhas, invadiu meu coração, ao pensar que talvez nunca nunca mais te veja não. A saudade, ó Vassourinhas, enche d'água os olhos meus, ao pensar, ó Vassourinhas, neste derradeiro adeus".

Não sei onde Ruy Duarte encontrou tais versos, mas, con-cordo com êle, dada a sentimentalidade da estrofe, em que essa música era, na verdade, uma "marcha-regresso", embora não escrita em menor, modo da maioria delas, o que as torna bem brasileiras, mas, em compensação, menos pernambucanas. Mui-to saudosas, o clube as tocava, nas madrugadas das quartas-fei-ras de cinzas, ao recolher à sua sede.

A "Marcha n.° 1" de "Vassourinhas" tornou-se o verda-deiro hino do carnaval do Recife, infalível nos nossos bailes carnavalescos, capaz cie animar e reanimar qualquer dança e endoidecer o passista, no meio da rua. Já não é cantada. Tor-nou-se, para todos os efeitos, um frevo-de-rua, embora muito despojado dos seus melhores "efeitos". Superou certo "hino" que obteve o primeiro prêmio num concurso especialmente pro-movido pela federação Carnavalesca Pernambucana. De auto-ria de Marambá, com letra de Aníbal Portela, apoiava-se sôbre um "evoé" que o indispôs imediatamente com o povo, de nada valendo que a Federação impusesse sua execução prévia a to-dos os clubes que passavam diante do seu palanque. Há a la-mentar, na execução dessa marcha, hoje em dia, o andamento extremamente rápido e os floreios de saxofone da segunda par-te, coisa improvisada por certo virtuose do sax e logo aperfei-çoada por outros. É uma desfiguração lamentável, que respon-de pelo aceleramento incômodo do andamento.

Page 20: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

100 VALDEMAR DE OLIVEIRA

Provavelmente, outras marchas cios primeiros anos da his-tória do frevo foram cantadas — mas, já não o são (18) . Mui-tas delas, de vez em quando exumadas, têm a melodia arrasta-da, cantabile, oferecendo-se para a cantoria, tal qual desenho melódico composto para jornadinha de pastoril. Assemelhar-se-iam aos atuais frevos-canções, senão aos frevos-de-bloco.

O frcvo-canção ou marcha-canção se parece com a marchi-nha carioca: uma parte introdutória, outra cantada, começan-do ou acabando por estribilho. Duas coisas, porém, as diferen-ciam. Primeira: a parte introdutória tem todas as caracterís-ticas do frevo autênticamente pernambucano, rasgado, desabri-do, furioso. Depois, ameniza, abrindo passagem ao canto. Se-gunda: o andamento da marchinha carioca é moderado; o do frevo-canção, bem mais vivo.

A introdução da marcha-de-bloco é pura jornada de pasto-ril. No miolo da peça, a melodia é, via de regra, movimentada, saltitante, sucedendo-se, livremente, quiálteras e semicolcheias. Resulta mais ingênua, mais singela, mais sentimental. Até na letra, à qual não se aplicam certas licenças, comuns, até neces-sárias, ao condimento do frevo-canção. Ainda hoje, os blocos, já de orquestra enxertada de metais, mantêm o caráter de sua música e estão longe de fazer concessões ao passo, cuja presen-ça, em sua estrutura, é, por assim dizer, proibida. De resto, o passista não encontra clima para expandir-se, nos blocos.

O FREVO-DE-RUA

O frevo-de-rua, ao contrário dos anteriormente focalizados, tem sua "personalidade" bem recortada e nada deve, um pou-co como os dois citados, à marchinha carioca. Desta nunca so-freu e, provavelmente, jamais sofrerá influência alguma, por mais remota que seja. Quando comparo os dois, penso em coi-sas de contraste extremo: em casa de sapé e arranha-céu; em rebocador e couraçado de guerra; em água de flôr de laranja e jalapa. Não conheço músicas populares menos parecidas, sal-vo no binário. Mas, isso não identifica gênero algum: o biná-rio dá o paso cloble, o shimmy, a polca, o cã-cã, sei lá.

Começa que, na carioca, a predominância é melódica. Há solistas, há partes corais. Ora, não há garganta ou pulmão ca-paz de acompanhar a sucessão galopante de semicolcheis. os imprevistos das síncopas, as alturas da tessitura, as negaças da

( 18 )—A coleção de janeiro e fevereiro de 1903, do "Jornal Pequeno", se refere, constantemente, a "ensaios de cantorias" em troças e clubes.

FREVO, CAPOEIRA E «PASSO» 101

linha melódica do frevo, a admitir que alguém se dispusesse a lhe pôr urna letra. Se, ao iniciar-se a segunda parte, o desenho convida ao canto, logo se percebe o engodo: os metais se intro-metem, "crescem", ascendem pauta acima, detêm-se numa nota aguda (os pistões dão o si, o dó, o ré) e descaem subitamente, sem animar a nova investida. Numa, tudo é cantabile, frouxo, fácil, endereçado à mnemônica do povo. Noutra, tudo é sacudi-do, eriçado, difícil. Há, no frevo, um ritmo motor que a outra não tem. Sobretudo isso, eis o que caracteriza a essência mes-ma do frevo : sua dinamogenia. A marchinha carioca é asse-xuada. O frevo é viril. Ela convida a cantar, a entrar no côro, a assobiar baixinho o estribilho contagioso, a fazer "cobra" no salão, de braços para cima. Êle não convida: arrasta. Sua efer-vescência rítmica tem qualquer coisa de magnético, contra a qual é difícil resistir. Enquanto a marchinha carioca flui, ri-sonha ou irônica, triste ou sarcástica, como uma "Cidade Ma-ravilhosa" ou uma "Máscara Negra", que falam em amor, em mulher, em malandragem, o frevo, que não se canta, denuncia sua violência, seu desenfreio, sua disposição, até nos títulos com que se batiza: "É de frevê", "Freio de ar", " A r -reliada", "Furacão no frevo", "Fuxico", "Chegou ferven-do", "Bicho danado", "Tempestade", "Lá vai tempo!", "Apa-re essa bomba!", "Segure essa brasa!", "Malassombrada", "Bu-liçosr", "Vale tudo", "Mexe com tudo", "Diabo solto", "Ti jolo quente", "Agüenta o repuxo!", "Bomba de sete estouros", "Co-mendo fogo" , "Encapetado", "O pau cantou", "Derruba mo-cambo". . . Com a guerra à porta, a de 1914 ou a de 39, o que surge tem cheiro de pólvora: "Canhão 75", "Carabina", "Me-tralhadora pesada", "Lança-torpedo", "Vôo picado", "Base aérea", "Fortaleza voadora", "Granada de mão", "Metralhado-ra Ina". Não há, nêles, sinal de doçura, cie apaziguamento, de bondade, de tristeza, nem mesmo quando escritos era menor e com títulos que fogem à regra geral, tais os de Levino Ferreira

"Lágrimas de folião", "Retalhos de saudade", "Recordando Bom Jardim", "Último d ia " . . . Tudo é de maus modos, fanfar-rão ou heróieo, chamando pra brigar, decidido. E, porisso mes-mo, quase sempre escrito em maior, fá natural, si bemol, sol.

Nos frevos escritos em modo menor (19) , há um indeci-frável encanto, uma certa força nostálgica na fusão da melodia

(19)—Costumava dizer Zuzinha que frevo em modo menor não era fre-vo. Faltava-lhe a "garra". Adocicava-se. Deixava de ser per-nambucano. É o caso de lembrar o padre Jaime Diniz, ao escre-ver sôbre as valsas de Ernesto Nazaré: " . . o compositor trat«-as

Page 21: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

21 VALDEMAR DE OLIVEIRA

triste com o rasgado repentino dos metais em " f f " , quase uma contradição, espécie de tristeza desesperada, arranque de pes-soa que passa de um pranto amargo a uma revolta incontida. É exemplo a segunda parte de "Luzia no frevo", de Antônio Sapateiro, contrabaixista de notável inspiração musical:

O eminente folclorista Alceu Maynard Araújo, no seu li-vro "Danças — Recreação — Música" escreveu que a "música (do frevo) não passa de uma marchinha" e "se assemelha mui-to às marchinhas cariocas". Já vimos que não. E acrescenta: " . . . é mais popular do que propriamente folclórica, mas não resta dúvida de que nasceu da capoeira". Salve-se a referên-cia feita à música, que realmente não é folclórica, mas, conve-nhamos em que a capoeira nada tem a ver com o frevo, senão apenas com o JMSSO, sua dança, esta, sim, folclórica.

Também o comediógrafo Ariano Suassuna escreveu que o frevo-canção é "a forma popular de frevo que mais anima o carnaval". Engana-se — e o engano já foi desfeito pelo jor-nalista Ruy, Duarte, em obra aqui citada. Salvo jovens -no ar-dor do corso, ninguém canta, nas ruas, os frevos-canções, ads-tritos, quase totalmente, ao recinto fechado dos clubes sociais, isto é, aos bailes carnavalescos. Nas ruas, o que impera, o que arrasta o passista, o que provoca a "onda", não é a marchinha do alto-falante, que ninguém acompanha (como tanto se faz no Rio) e leva, quando muito, a um passo sem motivação psicoló-gica. É o frevo autêntico. Insisto, aproveitando a "deixa" : passista não canta. Frevo-canção só anima dança de clube. Na rua, enche tempo, vomitado pelos alto-falantes.

c o n t u d o c o m u m a graça , u m a d o ç u r a e de l i cadeza , q u e a g e n t e se p e r m i t e a i n g e n u i d a d e . . . de dizer q u e as valsas de Nazaré qua-se tôdas m a i o r e s p o r f o r a , são " m e n o r e s " p o r d e n t r o " . A s s i m , os f r e v o s escr i tos n o m o d o m e n o r , são " m a i o r e s p o r d e n t r o " .

CAPÍTULO III

*A MÚSICA POPULAR Ü NÍTIDA E ESSENCIALMENTE UM FENÔMENO DE SEMICULTURA. SEUS CRIADORES, NAO POSSUINDO MAIS O QUE SE PODERIA CHAMAR DE ES-P O N T A N E I D A D E : DOS SÊRES INCULTOS, NÃO CHEGAM A ATINGIR A CONSCIÊNCIA TEÓRICA, TÉCNICA E ES-TÉTICA, O REQUINTE E A INTELECTUALIZAÇÃO DOS MÚSICOS CULTOS. E UMA DAS RAZOES QUE A TOR-NAM GERALMENTE ACEITA E USADA É EXATAMENTE ESSA CIRCUNSTANCIA DA SUA COLOCAÇÃO A MEIO.CA-MINHO ENTRE POSIÇÕES EXTREMAS. MÚSICA POPU-LAR É A MÚSICA QUE, SENDO COMPOSTA POR AUTOR CONHECIDO, SE DIFUNDE E É USADA, COM MAIOR OU MENOR AMPLITUDE, POR TODAS AS CAMADAS DE UMA COLETIVIDADE».

O X E Y D A A L V A R E N G A

Compositores de frevo. Os pioneiros. Alguns nomes mais em evidência. Nelson Ferreira, um inovador. O frevo-de-rua evolui naturalmente, atualiza-se. Ele-mentos de expressão. A autêntica orquestra de frevo.

Page 22: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

-AL O encarar o frevo como obra musical, é bom considerá-lo, desde logo, em sua verdadeira posição de música popular — e não folclórica, pois não revela uma ascendência — ou um "pas-sado" a que esteja o povo ligado de qualquer modo. Já abor-dei o assunto quando focalizei o absoluto alheamento do ele-mento popular à produção do gênero, nada fornecendo, à sua "confecção", de sua alma ou de sua história. O autor do frevo nunca é anônimo e os elementos cie que se serve não se envol-vem no anonimato, como sucede na música folclórica. Se o fre-vo-canção ou o de bloco marcam-se particularmente pelo senti-do de suas letras, sujeitas à influência de modos e modas do tempo (valendo algumas, só e só, por essa letra, como se esta fôsse o "princípio ativo" da fórmula e a música, apenas, o "veí-culo") , o frevo se situa diferentemente, não recebendo e, por-tanto, não refletindo, qualquer influência estranha, "adquiri-da" . É a obra de um homem, aceita por uma coletividade. Não responde àquele "gôsto do dia", a que se refere Oneyda Alva-renga, sendo, ao contrário, sem embargo do que deve à inven-tiva inquieta dos compositores, uma das mais estáveis manifes-tações de nossa cultura popular, enquadrada em moldes que ten-dem à folclorização. Podem, essas ou aquelas composições, to-madas isoladamente, viver, apenas, o efêmero de um carnaval ou ressuscitar, de vez em quando, numa "hora da saudade", em baile de carnaval, mas, o gênero, isto é, a categoria frevo, se estabilizou, já, como expressão da índole própria e exclusiva de um corpo social urbano.

COMPOSITORES DE FREVO

Os compositores de frevo pernambucano pertenceram, e ainda pertencem, a uma classe especial, à parte dos que se de-dicam, por exemplo, ao samba. Gente que nunca foi de salão ou de teatro, nunca se misturou com os outros, só ocupada em sua postura anual: mestres de banda — Juvenal, Zuzinha; con-tra-mestres — Zeferino Bandeira, José Aniceto (Casaquinha) ; músicos de banda — Antônio Sapateiro, Levino Ferreira, Lou-rival de Oliveira; bons pistonistas — Carnera, Toscano Filho, Plácido de Souza; clarinetistas — John Johnson, Zumba, que começou mestre da Banda Independência, de Limoeiro; trom-bonistas como José Felipe, "mal-assombrados" como Edgar Morais, Ulisses de Aquino, Alcides Leão, muitíssimos outros,

Page 23: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

23 VALDEMAR DE OLIVEIRA

da mesma estirpe. Sem a bossa, ninguém se aventura a escre-ver frevo, no Recife. Alfredo Gama, Manoel Machado, José Ri-bas, Luiz Figueiredo, Sérgio Sobreira, Rinaldo Silva, Alberto Figueiredo, compositores de famosas "valsas pernambucanas", de muito pas-de-quatre e muita cançoneta bonita do Recife dos primeiros lustros do século XX (para não falar de pianistas e artistas outros cie nossa época, que temem o gênero) nunca se meteram com o frevo. Os que tentaram, fracassaram. Alguns se inclinaram para outras modalidades de frevo. Mas, o de-rua mesmo, não. Entre êles eu próprio me incluo, a boa jus-tiça devendo começar por ca-sa.

A uns e outros, fugia-lhe o jeitão do frevo, que nem tôcla a gente nega. Ainda num concurso de frevos, or-ganizado p e 1 a Federação Carnavalesca Pernambucana, por volta de 1937, surgiu uma composição teoricamen-te certa, caligrafada e sere-lepe, querendo ser frevo, mas, longe disso. Afirmou-se que o autor era Ernan' Braga, compositor de méri-to indiscutível. Foi chama-do, pelo pseudônimo, em le-tra de fôrma", nara explicar certas coisas. Não apareceu. Parece que era mesmo. A composição ficou como uma prova da incapacidade do músico erudito em escrever um frevo para o povo do Re-cife aceitar de corpo aberto. Isso só o tem conseguido um número limitado de compo-sitores populares que conhe-

cem a arquitetura do gênero, jogam hàbilmente com os „ . . ,„ timbres e sabem dar à pro-duçao o seu jactes especifico.

Os ases do frevo surgiram, sempre, das bandas, porque as bandas são ricas da matéria prima para a confecção da obra —

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109 29

os metais. Os metais e as madeiras. Mas, principalmente, os metais, que também não faltam em orquestras, de onde saem, freqüentemente, verdadeiros gênios do frevo. Zuzinha, que veio a ser o capitão José Lourenço da Silva, já referido, foi quem começou a delinear melhor os contornos do frevo, cuja massa saíra das mãos de Juvenal Brasil, do "Lenhadores" e Manuel Guimarães, do "Vassourinhas".

Capital do frevo, explica-se por que possuía, o Recife, tão elevado número de compositores de qualquer de suas modalida-des. Uma centena, bem contada, de gente possuída do demônio dessa música, com sua bossa própria, destacando-se pela perti-nácia no comparecimento aos festivais cie músicas carnavales-cas, pela presença constante no repertório de clubes, troças e blocos, pela quase obsessão na fidelidade ao gênero preferido. Fora do Recife, a espécie não é encontrada, salvo ligeiras in-filtrações pelo interior de Pernambuco. Assim mesmo, poucas.

A partir da maioridade do frevo, já distantes os pioneiros Matias da Rocha e Juvenal Américo Brasil, grandes nomes sur-giram, no terreno da composição do frevo. Além dos já citados no documentário musical de páginas atrás, outros nomes vêm surgindo, ainda integrantes de bandas, de orquestras, de con-juntos outros, o que nos dá confiança no futuro de nossa mais individualizada forma de música popular. Tais um Clóvis Pe-reira, um Guedes Peixoto, um Duda, um Miro de Oliveira, um José Menezes, um Eugênio Fabrício, um Ademir, entre outros.

Não cabe, num trabalho como êste, referência aos muitos compositores (como Capiba, os irmãos Valença, Gildo Branco, Mário Griz) do frevo-canção e do frevo-de-bloco que antes me-recem ser chamados marcha-canção e marcha-de-bloco, sem em-prego do vocábulo frevo, por ser esta uma espécie musical de-finida, segundo modelos, como os têm outros gêneros musicais. Os que se dedicam às categorias derivadas procuram utilizar o frevo apenas na introdução, isto é, na parte não cantada. Na marcha-de-bloco, submetem-se ao figurino dos ranchos, das or-questras de pau-e-corda, das entradas de pastoras — e nisso são fiéis às características da forma. Na marcha-canção ten-tam alguns o grande frevo, mas, não conseguem autenticidade: ou porque não sabem ou porque a própria unidade composicio-nal impõe um tratamento musical morigerado, a evitar con-traste forte entre a primeira e a segunda parte.

Compositor capaz de dominar qualquer dos campos é Nel-son Ferreira: o que melhor consegue, nas introduções da mar-cha-canção e da marcha-de-bloco (vejam-se suas "Evocações") , a marca justa, sem pretender introduzir nelas os "matadores" do frevo (que lá não cabem) . E, do mesmo passo, um dos mais

Page 24: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

32 VALDEMAR DE OLIVEIRA

pessoais compositores de frevo, para o quê nasceu positivamen-te feito. Nesse terreno, produziu verdadeiro impacto com a di-^vulgação,^ em^ 1950^_do ^ seu

tivas imprevistas à produ-ção do gênero.

Tão importante foi essa contribuição que o presente trabalho publica uma com-pleta redução para piano de "Gostosão", sem dúvida um marco na evolução do frevo-de-rua. O estudo dessa obra permite observar a conso-nância admirável entre al-guns dos seus achados e cer-tas figuras do -passo, nota-dametite o desenho descen-dente que inicia a segunda parte, tôdas as notas caindo N e l s o n Ferreira, alta expressão de nos tempos fracos dos com- compositor de carnaval passos e abolida, o que é mais importante como inovação, aque-la "terra de ninguém", que via de regra se intercada entre ? duas metades dos frevos. Êsse trecho, genial como quebra de rotina, leva o passista a uma figuração miúda para urn lado só, estacando o corpo na incidência do grave, já o compasse seguinte convidando a uma volta completa do corpo e os de-mais ascendendo pauta acima até ao climax, que ainda sofre uma queda brusca para acabar numa ligeira depressão. Exa-minem os entendidos a partitura, reproduzida adiante.

Quem analisa, com olhos cie ver, òs primeiros frevos-de-rua, onde a marca do dobrado é patente, e os confronta com os mais recentes — de Nelson, cie Lourival, de Clóvis, de Zumba, de Duda, de Fabrício, sente que o frevo-de-rua sofre uma constan-te renovação nos seus recursos dinamogênicos, embora se man-tenham inalteráveis o ritmo e o andamento e se mostre incólu-me a teia harmônica, sem dissonâncias buscadas e rebuscadas. A melódica superior, porém, se enriqueceu extraordinàriamen-

PRFIVO, CAPOEIRA E «PASSO» 24

te e se pode clizer que novos "matadores" surgiram no penta-grama cios autores mais profundamente empenhados na busca da originalidade. Compare-se, com os mais modernos, velhos frevos (como o antigo "Fogão" ) e veja-se quanto o gênero evoluiu. Tomei nota, certa vez, de algumas linhas lidas não sei onde: "Só podemos preservar o frevo em sua competição com o samba, na medida em que o frevo assimile novos valores que o samba urbano assimilou".

Por boa fortuna, o frevo, que constantemente se atualiza, não assimilou nenhum "nôvo valor", dêsses que não vão além, na composição cio samba, (cio samba-de-rua, não do do morro) , de "novidades". O do morro permaneceu imune; o de-rua já voltou, hoje, às suas fontes primitivas. As formas mu-sicais populares mais autênticas não se deixam atingir por in-fluências suspeitas como as dos gênios da televisão, que, fun-damente comercializados, pretendem impôr, ao mesmo tempcf, as novidades cie sua inspiração e as de sua indumentária. Um grande (e grosso) público parece consagrar tais novos acha-dos . Logo se vê como é ilusória essa consagração: as águas de enchente voltam ao leito maior do rio e, quando muito, opera-ram, nas margens, uma colmatagem benéfica, onde futuras com-posições, fiéis à tradição, encontrarão solo fértil para a pouco e pouco renovar-se. Repita-se o conceito: o frevo-de-rua, em Pernambuco, vem evoluindo naturalmente. Será êrro introdu-zir nêle valores novos, que o povo refugará, com a mais absolu-ta certeza. Os atuais compositores de frevo-de-rua o respeitam e os seus achados vão sendo aceitos porque não o desfiguram. É um gênero sempre remoçado, sem rugas. Não precisa de ma-quilagens, nem de máscaras. No dia em que lhe meterem ingre-dientes de bossa-nova, de iê-iê-iê, de "bop" e quejandos, por mais belos e ricos e importantes que sejam, perderá o grau de concentração de que precisa para atiçar a chama do vasso.

A reprodução do frevo "Qual é o tom" (1969), de Nelson Ferreira, visa a justificar, ao mesmo tempo, a atualização cons-tante do frevo e a notável participação que, freqüentemente, tem nela o autor de "Gostosão". Pormenor curioso é o modo com que Nelson Ferreira escreve suas composições, inaccessí-vel à melhor técnica pianística, mas, muito preciso como rotei-ro para instrumentação. Veja-se "Gostosão", no f im cio volume.

ELEMENTOS DE EXPRESSÃO As orquestras de jazz deturpam o caráter heróico do fre-

vo, aveludam sua estridência metálica, roubam-lhe arestas, tor-nando-o, porisso mesmo, menos brilhante. Os saxofones tomam relêvo na textura harmônica, romantizando a execução. Em

Page 25: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

25 VALDEMAR DE OLIVEIRA

desvantagem numérica, os trombones passam a plano secun-dário . O piano sacrifica o equilíbrio dos timbres. Há uma efe-minação geral. Às vezes, uma ou outra corda acaba por estra-gar tudo. É perigoso desdenhar essas coisas quando se trata de apresentar um artigo musical tão individualizado já, como é o f revo . Por essa razão, quem quiser ouvir um frevo tipicamen-te pernambucano, não vá para o rádio, a televisão ou para o baile das sociedades mundanas, onde nunca se encontra uma fanfarra, mas, procure o clube pedestre em desfile, com seus mú-sicos, no seu ambiente. Aí é que se pode ouvir o frevo e ver o passo. Na fonte mesma. Acompanhando o "pêso" com 1 re-quinta, 3 clarinetes, 3 saxofones, 3 pistons, 10 trombones, 2 hor-nes, 3 baixos tubas, 2 taróis, um surdo (20) . "O "Garrafinha", famoso regente do "Vassourinhas", punha "15 trombones de frente" . Apesar disso, o clube era anunciado pelo povo, assim: — Lá vem "Vassoura" com sua delicadeza, calça de flanela, camisa de sêda j a p o n e s a . . . " Tudo o mais é falso. Animal selvagem só está bem — e só se observa bem, na mata, sôlto. Os grandes clubes pedestres do Recife podem vir exibir-se no centro da cidade, mas, seu habitat é outro. Também o mara-catu se sente melhor nos seus terreiros, lá para Beberibe ou Casa Amarela. E os Caboclinhos, perto dos mangues dos A fo -gados. Em São José, êle encontra um bom "cl ima".

É curioso: o frevo não se dá bem nos descampados. Nas ruas largas. Nas avenidas. Talvez porque lhe falte ressonân-cia, a ressonância que vem das ruas estreitas, de casas altas, onde êle se criou. Também em Harlem escutaremos melhor a música dos negros norte-americanos, na Mouraria, o bom fado, num rancho, um bom desafio. Além disso, nas avenidas sobra espaço para o apertão da massa humana, que é o frevo em si rtiesmo.

(20 )—O maestro João Cícero de Souza indicou-nos, no caso de desejar-se um conjunto mais ampliado, o seguinte instrumental: requin-ta em mi bemol — 1; clarinete em si bemol — 5; saxofone alto mi bemol — 2; saxofone tenor em si bemol — 1; cornetim em si bemol — 4; trombone em dó — 7; tuba em mi bemol — 2; tuba em si bemol — 1; saxhorne alto em mi bemol — 1; caixa clara — 1; caixa surda — 1; pandeiro — 1; reco-reco — 1, somando um total de 28 músicos. Subentende-se que o saxofone tenor em si bemol e a tuba em si bemol fariam, respectivamente, as partes de saxofone alto em mi bemol e tuba em mi bemol, observada a conveniente transposição". (Nota da direção do "Boletim Latino-Americano de Música", Ano VI, Tomo VI, 1946, Rio, Imprensa Nacional) .

CAPÍTULO IV

TO FREVO NASCEU EM PERNAMBUCO E SÓ EM PERNAM-BUCO É QUE VIVE A SUA PLENITUDE ATÁVICA»».

GASTAO DE BETTENCOURT

Ensaio de morfologia do frevo. A introdução. A "passagem" ou "terra-de-ninguém". A segunda par-te. O acorde final. O intervalo nas execuções. Mo-dalidades do frevo. A execução do frevo reclama san-gue pernambucano nas veias. O transplante do frevo.

Page 26: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

A MORFOLOGIA DO FREVO

O frevo, música curta, que se pode escrever numa única página, tem andamento moderado, tendendo para o alegreto, não se compreendendo o alegro por onde estão clesembestando agora. Desdobra-se em duas partes, cada uma com 16 compas-sos, raramente chegando a 24 (ver no f im do volume a intro-dução do frevo "Na última hora", de Eduardo Fabrício) .

À primeira parte do frevo chamam "introdução", mas, já é a própria música. A princípio, a introdução ainda era calma. O povo se mexia pouco, talvez porque, nesse tempo, a Polícia tivesse começado a campanha contra os capoeiras, acabando com os Valdevinos, os Joões de Totó, os Jovinos dos Coelhos. Pouco a pouco, as introduções foram tomando o seu caráter violento, impetuoso, desabrido. O povo se foi expandindo, dei-xando de cantar, tomando gôsto pela coreografia, firmando o passo.

Na introdução do frevo, que se inicia inalteràvelmente por anacruse, não há um fôrma arquitetônica única. A imagina-ção do compositor intervém arbitràriamente, embora submissa a certas constantes composicionais. Êle utiliza colcheias e se-micolcheias como um perdulário, visando a um único f i m : a movimentação da melodia, que se desenvolve em imprevistos e surprêsas. Pode dizer-se mesmo que o frevo é tanto mais dina-mogênico quanto mais explora êsses imprevistos e essas sur-prêsas, principalmente à custa das síncopas e dos grupos de 2 semicolcheias e 1 colcheia. Exemplo frisante dessa preocupa-ção é o frevo "Sussuarana", de Hermes da Paixão, no qual se pode observar que quase nenhum compasso é igual a outro, obe-decendo, cada um deles, a um esquema rítmico particular:

Page 27: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

50 VALDEMAR DE OLIVEIRA

As mais das vêzes, as frases musicais são alinhavadas den-tro do mesmo compasso, sem esperar ponto final no primeiro tempo do compasso seguinte, como se pode verificar em mui-tos dos exemplos citados. Freqüentemente, a rítmica se diver-te em deslocar tempos fortes e fracos, desarticulando a métrica para melhor estimular o passista, como se lhe quisesse aplicar leves choques elétricos. Exemplo é esta entrada de "É de fre-vê ! " , de Ulisses de Aquino:

Vale reparar que, na gravação feita no Rio, dessa mesma música, os executantes atribuíram maior valor ao pentagrama das semicolcheias, lançando a plano secundário a frase melódi-ca dos quatro primeiros compassos (e de outros mais), espé-cie de ingrediente maior no aviamento da receita.

Observação digna de nota é o imponente acorde, em tutti, que se ouve, quase sempre, no 11.° ou no 12.° (às vêzes no 13.°) compassos, o climax da composição. Tais acordes são antece-didos, às vêzes, por simples colcheias; outras, porém, por quiál-teras, quiálteras que, sendo um dos melhores condimentos da iguaria, me proporcionam a imagem visual dos passos alonga-dos que os corredores dão, junto ao vencedor, para franquear o último obstáculo da carreira. Não surgem imprevistamente. São "preparados", à custa de progressões bem características da composição. Estude-se, no caso, os exemplos das páginas 38 e 52.

À introdução, segue-se o que comumente se denomina a 2.f parte, mediante um traço-de-união, conhecido por "passagem", que constitui um dos aspectos mais impressivos do frevo, um sêlo de sua originalidade. Intervém, nela, todos os instrumen-tos, sobressaindo-se os metais, num "rasgado" violento. Ora es-sas passagens são bem limitadas na arquitetura geral da obra, ora se estendem, por um, dois compassos, para dentro da melo-dia constitutiva da 2.a parte, já sendo ela mesma, quando pa-rece ser ainda uma transição.

Vejamos algumas dessas passagens, de inconfundível tra-ço. Uma, em 4 compassos, o segundo dos quais inicia, já, a 2.a

parte ("É de f revê ! " ) , de Ulisses de Aquino:

Outra, nas mesmas condições ( "Arrel iada") , do mes-mo autor:

Ainda outra, sempre o segundo compasso dando comêço, já, à referida parte ( "O Bando no f revo " ) , de Filinto Carnera:

Uma, penúltima, esta de Plácido de Sousa, em "Lança torpedo":

^ i • 3 —

«i • • r

/ / L

* —

} etc

E, por fim, a de Clóvis Pereira, ("Capiba no f revo" ) , de 1971:

E entra-se na 2.a parte. Logo, à sonoridade vermelha dos metais sucede o aveludado morno dos clarinetes e, mais moder-

Page 28: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

VALDEMAR DE OLIVEIRA

namente, porque trazido com o jazz, dos saxofones. Descansam os metais, interferindo, apenas, em notas secas, como quem es-poreia, de leve, um animal. Ou em comentários rápidos, re-lampagueantes, muito ligados, em tessitura alta, tal se pode ve-rificar no exemplo seguinte ("Furacão no f revo " ) , de Edgar Morais:

MET. uer.

V ^

Em geral, do 8.° ao 13.° compassos, os metais voltam a do-minar, avançando, fogosamente, pauta acima, para um nôvo climax. Tendo atingido aquelas alturas, entram em pausa de repouso, largando a melodia para madeiras e saxs, que se en-carregam de concluir a parte. Ilustra suficientemente o que foi explicado o documento seguinte, de Plácido de Souza ("On-das largas") :

Após a segunda parte, sempre repetida a partir da "pas-sagem", vem-se ao comêço por umas cinco vêzes. Tudo acaba no 2.° tempo do compasso final, num acorde perfeito, agudo e longo (21) , apoiado ora na tônica, ora na dominante, ora, o que é mais característico, na mediante, não faltando, infeliz-mente, quem americanize o final, introduzindo no acorde algu-ma nota espúria. O tarol e o surdo continuam batendo, enquan-to a fanfarra e os passistas descansam até trilar novamente o apito do mestre. Essa batida não é a mesma, em tempo, que vi-gorou durante a execução do frevo, inalteràvelmente.

No descanso do pessoal, há variantes do tarol, mantendo-se sem alteração a batida do surdo. Mas, o andamento é mais rápido. Muito mais rápido.

(21 )—"O frevo é uma música que não termina. Estrangula-se". LI-MEIRA TEJO, "Carnaval do Recife", in "Anuário do Carnaval Pernambucano", 1938.

T FREVO, CAPOEIRA E «PASSO»

100

Revelaram-me a razão do fato : o povo, no passo, prende muito a marcha do clube. A fanfarra caminha lentamente, no enfarofado da massa, o que, aliás, facilita o trabalho dos músi-cos. É durante os intervalos da execução que se tira a diferen-ça, obrigando o povo a locomover-se mais depressa. Mesmo porque o itinerário, aprovado pela Polícia, é longo e o contrato com os músicos estipula um prazo máximo para prestação dos seus serviços. Porisso, puxa-se na andadura.

Cabe uma palavra, ainda, sôbre o acompanhamento har-mônico da composição, reduzida, tão somente, aos graves, nada mais.

Acrescentem-se, por fim, as três modalidades mais comuns do frevo :

— o frevo ventania, tecido, quase exclusivamente, pelo menos na introdução, por semicolcheias, como êste de Joaquim Wanderley ("Tempestade") :

. . . v i -

sem música. ;õem num só, o espetá-

-5"!Cruzeiro", edição de 17 de

Page 29: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

32 VALDEMAR DE OLIVEIRA

o frevo coqueiro, de melodia escrita em tessitura alta, no exemplo de "Picadinho", de Artur Gabriel:

TI súbito « idi3t===t

,10 JUÍttP

— o frevo abafo, sobrecarga de trombones e pistons, em fortíssimo, para "abafar" o adversário, tal é o caso de "Freio de ar", de Paulo Ramos:

SANGUE PERNAMBUCANO

Reclama, a execução do frevo, sangue pernambucano nas veias. Não é tarefa para quem nunca o ouviu, num terceiro dia de carnaval, no Recife. Nem valores individuais pesam, isola-damente, na balança, como, de resto, em nenhuma orquestra. Também não se trata de homogeneidade, afinação, justeza. É preciso um cachet especial, de cada músico em particular e do conjunto global, para emprestar ao frevo o seu corte rítmico iv^onfundível. Enquanto a Federação Carnavalesca Pernambu-

" mandou ao Rio pessoa capaz — Zuzinha — para en-t r e g a d a s c ]a s gravações dos frevos premia-

•- /ais, o que de lá nos mandavam era ' f a . As notas certinhas, sim,

FEÊVO ; CAPOEIRA E «PASSO» 29

mas, o andamento, errado, o ritmo, frouxo. Foi necessário re-escrever as instrumentações, controlar a execução, encrespar os músicos.

Do maxixe, disse Mário de Andrade que " . . . a originali-dade consiste apenas no jeitinho. No jeitinho de tocar e de can-tar" . Também o frevo exige "jeitinho", além do tudo o mais que o singulariza no populário musical do Brasil.

O TRANSPLANTE DO FREVO

O frevo não é planta que se transplante. Tôdas as tentati-vas feitas nesse sentido têm falhado. A de Vitorino Rio, por exemplo, na Guanabara. Não só a colônia pernambucana, ali, é pequena para constituir a massa que o frevo reclama como também quem não o leva no sangue, não se deixa arrastar por êle, sendo o passo, ademais, das danças mais extenuantes que há. Numa terra inteiramente empolgada pelo samba, excitante exclusivo do seu carnaval, o frevo surge como surgiria a taran-tela se com ela quisesse divertir-se a colônia italiana do Rio. Um desfile de frevos, na belacap, resultaria diluído no asfalto das avenidas cariocas, mincho, invertebrado (23) .

E sucede mais: os clubes que se vêm apresentando no Rio se mostram progressivamente desvirtuados. Seguem a linha de blocos e ranchos cariocas, com figuras de Debret, baianas, jan-gadas, tarrafas, palhaços e outras tolices que desgraçadamente já se vão infiltrando nos próprios clubes-de-rua do Recife. Con-ta-se que, no carnaval de 70, no Rio, os "Lenhadores" apresen-taram "índios, onças, cobras e um sujeito que mordia a cabeça sangrenta de um degolado".

Como há de suceder com centenas de músicas, cantos e dan-ças por êsse mundo afora, o frevo possui sua moldura própria

(23 )—"No Recife, o frevo é a maior explosão do carnaval, mas, no Rio, principalmente dentro da noite da Avenida, êle é modesto, sem a grande expressão que tem em Pernambuco. Os conjuntos são pequenos, no máximo centena e meia de figurantes e uns poucos passistas que se perdem na ampliação do asfalto carioca. Mur-chas, as orquestras: umas "bandinhas" de coreto municipal, onde as figuras grisalhas produzem um som tão pequeno, que a últi-ma ala não chega a escutar, e por isso faz evoluções sem música. Mesmo que os cinco conjuntos se misturassem num só, o espetá-culo ainda seria pobre" . — De "O Cruzeiro", edição de 17 de fevereiro de 1970.

Page 30: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

38 VALDEMAR DE OLIVEIRA

— o Recife, seu clima próprio — o das ruas do Recife, o seu espírito próprio — o que inspirou a criação das "Vassourinhas", das "Pás" ou dos "Lenhadores". Ao transplantá-los, só o nome vai, como foi para o Rio, tal pele de cobra deixada depois cia muda. O resto não passa de saudosismo, de respeitável — e malogrado — saudosismo. Pois, nem a portos mais próximos, Maceió ou João Pessoa, se aventura o frevo, fechado, por sua própria natureza, ao mercado de exportação. Tão poderosa c sua marca.

Compreendam-se bem as razões: frevo não é espetáculo, que nem as Escolas de Samba, mas, participação do povo. Se não há povo participante, em quantidade e, sobretudo, em qua-lidade, que lhe dê corpo e alma, desfilará um ajuntamento de virtuosi ou pseudo-virtuosi, não frevo. Aproveito a "deixa" : uma das causas do declínio do frevo, no Recife é que. aos des-files carnavalescos, a "onda" não comparece. É, pelo visto, proi-bida. Quer dizer: de participante, o povo passou a espectador. Se a capoeiragem é, como pretende Adolfo Morales de Los

Rios Filho, "uma criação dos fracos, o negro e o mestiço, con-tra o forte: o branco", onde ela se apurou melhor que no Reci-fe de cavalgados contra Cavalcantis; que nesta nossa Florença americana de cabras afoitos e de negros arreliados, ao serviço de vagas reivindicações políticas, encarnadas ora por um Pe-droso, ora por um Nunes Machado ou por um José Mariano e a encobrirem aspirações sociais também um tanto imprecisas, tur-vadas por muito ressentimento cie natureza pessoal, mas no fun-do sociais?

GILBERTO FREYRE

Page 31: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

CAPÍTULO V

NUNCA LOUVAREMOS SUFICIENTEMENTE OS NEGROS ESCRAVOS, O POVO DESPROTEGIDO, INJUSTIÇADO E POBRE QUE PÔDE E CONSEGUIU PRESERVAR, EM MEIO A TÔDAS AS DIFICULDADES, NA MAIOR DAS DESGRA-ÇAS — A ESCRAVIDÃO — OS BENS DE CULTURA DE QUE HOJE, NÓS, POVO BRASILEIRO, DESFRUTAMOS. ÊSSE CANTO E ESSA DANÇA FORAM DEFENDIDOS NAS SENZALAS. ESSA ALEGRIA DE VIVER, ESSA FÔRÇA IMORTAL, ESSA POESIA, ESSA GRANDEZA DE POVO. DEPOIS, TUDO SE MISTUROU, FUNDIRAM.SE AS MA-TRIZES, CONSTRUIU-SE A CIVILIZAÇÃO BAIANA.

JORGE AMADO

Origens do "passo". O "galope". As festas de São Gonçalo do Amar ante. O Teatrinho João Minhoca. A capoeira. Origem do vocábulo. 0 "n-golo" da Angola. Evolu-r cão de dança propiciat.ória a recurso de luta.

Page 32: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

O passo, passo no sentido puramente recifense (e, porisso mesmo, grifado em todo êste trabalho) é o conjunto de passos que caracterizam o bailado solista executado, nas ruas carna-valescas do Recife, sob o estridor metálico de uma orquestra de frevo.

É comum, entre escritores menos familiarizados com essas particularidades, empregar a palavra frevo como significando, igualmente, a música e a dança. Não estão totalmente errados, sendo o frevo, como lembra Mário de Andrade, uma "espécie de substantivo coletivo, singular usado pelo seu plural, tão cio gos-to da nossa fala brasileira popular".

SINCRONISMO DA MÚSICA E DA DANÇA

Lembro-me de antiga dúvida, por muito tempo me verru-mando o espírito: quem teria aparecido primeiro — o frevo (música) ou o passo (dança) ? Entenda-se bem: foi o frevo que, já definido ou caminhando para isso, provocou o apareci-mento do passo ou foi o passo que, tendo-se incorporado, já, às manifestações da alma popular, deu aso à música?

Eu não faria, hoje, semelhante pergunta. Matutando me-lhor sôbre o caso, chego à conclusão, como já expliquei no iní-cio deste trabalho, de que nascem juntas, geralmente, a músi-ca e a dança que com ela se dança. Quando o charleston invade as orquestras, os dancings são também invadidos pelo charles-ton. Quando o shimmy chega aos nossos ouvidos, chega também aos nossos olhos. O cavalheiro que (outrora) convidava uma jovem para uma valsa, já era arrastado pela doce melodia cie um Strauss. Assim devem ter surgido, pelo mundo, através dos tempos, a polca, o maxixe, o paso cloble, o rock'n roll ou o surf, do mesmo moclo que o black-bottom ou o iê-iê-iê dos nossos dias, todos vasados em binário, mas, com desenho e tintas próprias, determinando o advento de uma dança segundo o figurino no-vo . Não tenho lembrança de haver presenciado determinada música receber uma nova modalidade de dança e a ela se adap-tar, como um casamento feliz em segundas núpcias; nem de dança nova que se haja afeiçoado a música já consagrada, acei-ta sem restrições pelos dançarinos. Sempre uma coisa vem li-

Page 33: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

62 VALDEMAR DE OLIVEIRA

gada à outra, com ela vive e com ela morre, se tem de morrer. É possível admitir que um desses elementos —- a música e sua pele, a dança — tenha inspirado o outro, mas, essa prioridade 110 tempo se mostra tão sutil que se torna insignificante. A im-pressão é a de puro sincronismo. Letra, não —- e isso já é ou-tra coisa: o compositor pode sentar-se ao piano (ou à mesa) com os versos diante de si, nêles se inspirando, seja verista ou não; ou já tem composta a obra musical para a qual pedirá ver-sos, depois, ao seu libretista, entregando-lhe o "monstro" — ou deixando-lhe, livre, a inspiração. Mas, música e dança, estas nascem xifópagas, pouco significando qual delas vem do pri-meiro óvulo fecundado, qual a que vem do segundo. O compo-sitor e o dançarino funcionam como vasos comunicantes, o ní-vel do líquido sendo comum: o "achado" na pauta musical re-percute nos pés cio dançarino, plasmando uma nova forma ou modulação coreográfica; ou a idéia de um novo passo sugere uma novidade qualquer na estruturação da música.

Certo não nasceram subitamente, o frevo e o passo, como sucedeu a novidades lançadas, calculadamente, por empresários bastante hábeis, useiros e vezeiros no aproveitamento de circunstâncias ocasionais. Se o passista, como se verá, trazia no sangue o legado do capoeira, o compositor trazia o da polca, o do dobrado, o da quadrilha. Dança e música viriam paralela-mente se definindo, ano a ano, só mais tarde cristalizando suas formas, formas, aliás, sujeitas à infalível influência do tempo que, embora ligeiramente, as modificaram (e continuam modi-ficando) . O fato incontestável é que com o frevo não se dança outra coisa que não seja o passo; e, para o passo, outra coisa não se toca senão o frevo, isto é, a marcha, como gostavam de chamá-lo os primeiros compositores.

ORIGEM DO PASSO

O padre Lopes Gama se insurge contra o "galope", dança viva, violenta, desabusada, que invade o Recife, em 1837 (24) ;

( 2 4 ) — " . . . e lá se atiram rapazes e senhoritas aos pinotes, dando pa-tadas com que estremecem as salas, porque enfim arremedar um dos andares dos cavalos não pode deixar de ser coisa agradável e muito própria das luzes do século. Acabam eles e elas essas des-graçadas andanças ou correrias botando a alma pela boca, alaga-dos de suor e mortos de cansaço". "Os mártires das modas", in "O Carapuceiro", de 26 de abril de 1837.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

que passa a alinhavar, depois, a quadrilha francesa; e se con-tinua, até o 1900, nos finais de farra, no Moulin Rouge, em Pa-ris —• e se espalha ainda mais pelo mundo, trazido ao Brasil por mulheres ou conjuntos de mulheres que vêm "faire l 'Ame-rique".

Não podia compreender, o satírico padre, que "moças, ve-lhas, rapazes e velhos" entrassem a dar coices, arremedando cavalos e pondo em risco a casa. Disseram-lhe que "um dêsses pares galopadores, começando pela sala, foi calcurriando e es-pivateando pelo corredor e daí eclipsaram-se ambos (êle e ela) pelas escadas abaixo e ninguém mais lhes pôs o ôlho". O que levou Mauro Mota a admitir que, ganhando a rua, o galope ti-vesse sido a generosa semente de onde brotou o frevo (25) .

Não acredito nessa ancestralidade coreográfica, mesmo dis-farçada. Apesar de estrompa, o galope era dança de salão e não contaminou o povo da rua. Dançava-se aos pares, ao con-trário do passo, que é individual. Não há nada que identifique uma coisa e outra, salvo o binário, que, entretanto, difere no andamento, que, no galope, é presto, tal e qual no cã-cã.

Há quem recue mais no tempo para ir buscar, nas festas profano-religiosas de São Gonçalo do Amarante (o Recife pos-sui a sua Igreja de São Gonça lo . . . ) as raízes profundas do frevo, senão, mais propriamente, do passo. Pura imaginação, creio eu (26) .

Também li, certa vez, que o frevo se teria originado cio apertão do povo que acompanhava o Teatrinho João Minhoca

(25)—"Daí em i diante, os outros pares teriam de fazer a mesma coisa: ganhar a rua e desapartar para a confraternização geral. O "san-to galope" evoluía para o frevo, pois o frevo é dança de rua, em-bora se possa fazer o passo individualmente no "pequeno âmbito". — MAURO MOTA, "Terra e Gente", pág. 166.

(26 )—Ao ler Pereira da Costa, que se ocupa, no seu "Folclore Per-nambucano" dessas coisas, escreve Pessoa de Morais: "Em Per-nambuco, aliás, durante as festas de São Gonçalo do Amarante, outro santo casamenteiro além de Santo Antônio, essas cenas atin-giam um crescendo impressionante: a bandeira do santo num cor-rupio enorme; os zabumbas e maracás em ação. As moças sara coteando as ancas, remexendo o corpo, saltando, pulando e can-tando. Tudo sob o olhar ávido dos espectadores, para maior lon-vação do casamenteiro". — PESSOA DE MORAIS — "Tradição e Transformação do Brasil", Editora Leitura S/A. , 1965, pág. 2!),

Page 34: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

142 VALDEMAR DE OLIVEIRA

Grande era a animação que a imprensa do Recife imprimia, nas primeiras décadas do século, aos festejes carnavalescos, embo-ra limitada, senão escassa, fôsse a matéria para o noticiário. Êste, porém, se alongava, ag i tando , por vêzes, o "bestialógico" car-navalesco, em atônicas e entre-vistas nem sempre autênticas, em perfis imaginosos e ditados da época, em falsos relatos e ir-reverentes alusões, em tudo quan-to pudesse estimular os foliões jernambucanos.

Prova-o o desenho ao lado, in-serido, por ocasião do carnaval de 1901, abrindo a secção carna-valesca, jamais ausente em qual-quer jornal, s?.a '<A. Província".

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO» 69

(27) , do Clube Cara-Duras, fundado em 1901, de um ponto para outro da cidade, "ansioso de novas "representações" e "no-vas gargalhadas" ( 2 8 ) . Seria bom lembrar, porém, que nem sempre o João Minhoca se deslocava tanto pela cidade, tendo chegado a levantar, no Pátio de Santa Cruz, onde tinha sua se-de, o teatrinho onde exibia suas patacoadas (29) . Não creio que o Cara-Duras tivesse tido algo a ver com o passo ou o f re -vo. Com o Zé-Pereira ninguém dança passo. Nem Zé-Pereira (melodia francesa dos bombeiros de Nanterre, que ninguém s i -be como veio parar aqui — ou foi parar l á . . . ) é, sequer, em-brião de frevo. Outra música, decerto, pol^.a ou pas-de-auatre, era tocada no Cara-Duras, acompanhando as cançonetas da Companhia de Variedades Ki-ki-ri-ki. . .

Acredito que as origens do passo se inserem numa nebu-losa onde, à frente das bandas militares que há mais de cem anos passados percorriam as ruas do Recife, já se distinguiam vultos de negros e de mulatos, brincando ou brigando. Pouco a pouco, essas sombras viriam a definir seus contornos, até que, após a fase difícil da Abolição, da República, do Governo Pro-

(27)—Desconheço a origem dessa expressão. Será, talvez, sinônima de "mambembe", teatro nômade, reles, insignificante. Pereira da Cos-ta não a consigna, no seu "Vocabulário Pernambucano". Vou en-contrá-la à página 167, das "Memórias da Cidade do Rio de Ja neiro", volume 3, de Vivaldo Coaracy, sempre com significação de nonada: " . . . não faltavam aquelas (as barraquinhas) em que os freqüentadores ( . . . ) assistiam às habilidades de burlatins e "mágicos" ou a espetáculos de João Minhoca".

( 2 8 ) — " A Polícia não concedeu licença para os passeios de clubes fora dos três dias determinados e se a conceder será apenas na últi-ma semana antes do domingo gordo. Aludindo ao Clube Cara-

Duras acrescenta o periódico: "Estes feliões não se podendo con-formar com um completo retraimento, privados dos seus espalha-fatosos passeios, procuraram obter e obtiveram concessão para exibir ao público em frente à sede o seu popular teatrinho João Minhoca". — " A RUA" , Ano II, n.° 8, de 26.1.1904.

( 29 )—"Um mês antes, composto quase todo de oficiais do exército (o Cara-Duras) realizava, nas noites de sábado, barulhentos zé-pe-reiras, levando numa carroça um palco onde, em pontos movi-mentados da cidade, dançavam seus arremedos de pastoril e can-tavam cançonetas maliciosas". — MÁRIO SETTE, "Entrado e Frevo" , in "Anuário do Carnaval Pernambucano", 1938.

Page 35: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

66 VALDEMAR DE OLIVEIRA

visório, da Revolta da Armada, do Encilhamento, começa, tam-bém para o Brasil, uma "belle époque".

A libertação dos escravos é o grande impacto que sacode, em seus alicerces, o País, inclusive os do Trono, que se desmo-rona. A escravatura marcara fundo o Segundo Império, tôda a vida nacional girando em tôrno dela. O negro condiciona o futuro da nação. O complexo social se entretece com seu braço, com sua presença, passiva apenas na aparência, na realidade, porém, pressão e ameaça constante. Os escravagistas castigam, isto é, defendem-se. Mas, não cessa a resistência do negro — do negro fugido para os palmares, do negro acuado no mato, do negro assassino afundado no mundo, do negro cativo gozan-do suas horas de folga, do negro forro desafiando a Polícia, do negro onipresente, útil e perigoso, riqueza perecível que nin-guém podia evitar escapasse da senzala para a capoeiragem. Do negro e de todos os seus descendentes, puros ou mestiços.

Não estou divagando. Já se verá que, num estudo sôbre o passo, a referência à capoeira é indispensável.

A CAPOEIRA

O vocábulo tem origem controversa. Macedo Soares opina que provém do guarani caá-puêra (mato miúdo nascido em lu-gar onde existiu mato virgem) . Beaurepaire Rohan discorda, preferindo coó-puêra, que deu capuêra e, logo, capoeira, sem-pre a designar vegetação rasteira, espontânea, nascida em ro-ça abandonada ou destruída. Vale lembrar que capoeira é tam-bém "cesto para guardar capões", no que, parece-me, não há fundamento algum, pois uma coisa é "capões" (frangos cas-trados) e outra, zonas geobotânicas, encontradiças em cert regiões do país. Brasil Gerson aventou haver a capoeira nas-cido na rua de D. Manuel, grande mercado de aves do Rio de Janeiro, onde se reuniam escravos para transportar capoeiras Cos tais cestos já citados), aí se entregando a esbórnias e brin-cadeiras que não raro degeneravam em brigas. Por metonímia res pro persona, "o nome da coisa passou para a pessoa com ela relacionada", parecer, igualmente, de Antenor Nascentes. O têrmo, aliás, se estenderia à conceituação de certos locais imundos e vergonhosos, como foi, no Recife, o pretenso "Teatro de Ópera" (para imitar a "Casa da ópera", do padre Ventura, 110 Rio) , que funcionava na rua do Imperador como até pouco

Page 36: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

142 VALDEMAR DE OLIVEIRA

funcionou, na Praça da República, outro "capoeira" •— o Mar-rocos (30) .

A aceitar essa opinião, teríamos de admitir, com Waldeloir Rego (31), que a capoeira seja uma "inovação dos africanos no Brasil, desenvolvida por seus descendentes afro-brasileiros". O que teria ocorrido, também, em Trinidad e em Cuba, onde Hers-kovitz viu, em concentrações negras, jôgo semelhante.

Todavia, há opiniões divergentes. Edison Carneiro supõe que a capoeira nos teria vindo de Angola, não de tribo ou de tribos de Angola, mas, de tôda a Angola. Lamartine P . da Costa acredita que sua forma primitiva chegou ao Brasil com os bantos, originários da África Ocidental. Câmara Cascudo supõe acharem-se por lá suas raízes, decorrência de cerimonial de iniciação, aspecto que perdeu, no Brasil. Em suas viagens, nenhuma dança encontrou, na África, que lembrasse a capoei-ra. Aludiu, apenas, a " jogos atléticos de Angola, onde empre-gam unicamente pernas e cabeças, jamais armas brancas".

O "N-GOLO" DE ANGOLA

Albano de Neves e Sousa, de Luanda, entretanto, lhe man-dou, a Cascudo, achega preciosa, que vale transcrever: "Entre os Mucope do sul de Angola, há uma dança da zebra N'golo, que ocorre durante a Efundula, festa da puberdade das rapa-rigas, quando essas deixam de ser muficuemas, meninas, e pas-sam à condição de mulheres, aptas ao casamento e à procria-

(30)—Curioso anotar: "uma casa particular, tão acanhada, e péssima, que ninguém a ela concorre", referência feita, em Mensagem à Assembléia Provincial, pelo Presidente Francisco do Rêgo Barros, então Barão da Boa Vista. Focalizava um teatrinho, existente na rua do Imperador, mais ou menos defronte do atual Gabinete Por-tuguês de Leitura, erguido para imitar a Casa da Ópera, do Rio de Janeiro, de Vila-Rica e tantas outras do sul do país. Foi ba-tizado por Teatro São Francisco, mas, crismado, pelo povo, Tea-tro Capoeira, ou, simplesmente, o Capoeira. A sinonímia é ex-pressiva. O padre Lopes Gama depõe, em 1843: "Apenas tínha-mos uma baiuca chamada teatro, onde se enterravam as melhores produções dramáticas". E Tollenare a apontava como "uma casa de aspecto bastante mesquinho a que chamam de casa de espetá-culos" .

(31)—WALDELOIR RÊGO — "A Capoeira Angola", Editora Itapuã, Co-leção Baiana, Bahia, 1968.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO» 69

ção. O rapaz vencedor do N'golo tem o direito de escolher es-posa entre as novas iniciadas e sem pagar o dote esponsalício. O N'golo é a Capoeira". E, continuando: "Os escravos das tri-bos do sul que foram aí (ao Brasil) através do entreposto de Benguela levaram a tradição da luta de pés. Com o tempo, o que era em princípio uma tradição tribal foi-se transformando numa arma de ataque e defesa que os ajudou a subsistir e a impor-se num meio hostil". Mais adiante: "Os piores bandidos de Benguela em geral são muxilengues, que na cidade usam os passos do N'golo como arma". Depois: "Outras das razões que me levam a atribuir a origem da Capoeira ao N'golo é que no Brasil é costume dos malandros tocarem um instrumento aí cha-mado de Berimbau e que nós chamamos hungu ou m'bolum-bumba, conforme os lugares e que é tipicamente pastoril, ins-trumento êsse que segue os povos pastoris até a Swazilândia, na costa oriental da Áfr ica" .

Anote-se uma referência de Mário Barcelos, no seu "Aru-anda": "Além dos Cambindas, existia um outro povo que jo -gava capoeira. Eram os Mazingas, do Congo, que eram os eter-nos adversários dos Cambindas de Angola naquela arte".

A origem negra não sofre, pois, contradita. Mas, conti-nuemos .

Há, no "Dicionário" de frei Domingos Vieira (Pôrto, 1873), a seguinte definição, apuei Cascudo: "Capoeira, negro que vive no mato e acomete os passageiros a faca" . Sem dis-crepar, Lamartine da Costa admite que "os capoeiras eram os guerreiros dos capões" ou, seja, os homens que se escondiam nas matas e saíam para enfrentar os seus perseguidores.

DE DANÇA A RECURSO DE LUTA

Conclusão fácil, na linha dêsses elementos: negros de An-gola, trazidos ao Brasil, fugindo de seus senhores, ganhavam o mundo, ocultando-se nas capoeiras. Acuados pelos capitães-de-mato, vinham enfrentá-los com a arma única do N'golo, que, no Brasil, como escreve Cascudo, "amplia não somente a técni-ca como os recursos de agressão, incluindo facas e preferencial-mente navalhas". O escravo se defende. Reconduzido à senza-la (ou de lá nunca tendo saído), entrega-se, nos breves momen-tos de folga, ao jôgo natal, com o qual se diverte, se desafoga da vida penosa — e treina. . .

Como brinquedo de homem cheira a defunto, muita fol-gança dessas viria acabar em sangue e morte. Daí para tor-

Page 37: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

38 37 VALDEMAR DE OLIVEIRA

nar-se recurso de luta foi um nada, recalques longamente com-primidos subitamente explodindo, defesa da liberdade susten-tada nas fugas, reação natural à pressão de brancos e ricos.

Pouco a pouco, ia-se revestindo de regras e preceitos, com sua técnica e seu virtuosismo, a agilidade e a destreza aplican-do-se a exibições de destemor e coragem, que refletiam a ínti-ma revolta contra o status amesquinhante (32) . A certa al-tura, deve ter-se transferido do campo para a cidade, do escra-vo para o fôrro, este ainda mais necessitado de impor a sua nova condição, dentro da igualdade sonhada.

Nasciam os capoeiras.

(32)—"Os negros têm ainda um outro folguedo guerreiro, muito mais violento, a "capoeira": dois campeões se precipitam um contra o outro, procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e paradas igualmente hábeis; mas, lançando-se um contra o outro mais ou menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça, o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas entrem em jôgo ensanguentando-a". — JOÃO MAURÍCIO RUGENDAS — "Viagem Pitoresca através do Brasil", Biblioteca Histórica Brasileira, Liv. Martins Editora. São Paulo, 1954, pág. 197.

CAPÍTULO VI

BAHIA MINHA BAHIA » BAHIA DO SALVADOR I QUEM NÃO CONHECE CAPOEIRA NÃO LHE PODE DAR VALOR. TODOS PODEM APRENDER, GENERAL E ATÉ DOUTOR.

(DA MUSA POPULAR)

Os capocircis. Ligeiro histórico. Influência, da vin-da de dom João VI. A Abolição e a "Guarda Negra". A República e Sampaio Ferraz. A capoeira no Recife. Tipos de capoeiras. Preferên-cias por festas e música. Indumento. As maltas. Capoeiristas famosos. Evolução singu-lar da capoeira, na Bahia: suas caiisas. Os golpes da capoeira.

Page 38: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

• * I

OS CAPOEIRAS

. A . idéia que geralmente se tem, do capoeira, não depõe a seu favor : desordeiro, malandro, assassino, sempre às voltas com a Polícia, sempre temível e temido. Defende-os Gilberto Frey-re (33) , negando que tenham sido "anárquicos ou sanguiná-rios". Coelho Neto lhes ressaltava as qualidades positivas, apontando virtudes do que chamava o "capoeira digno", que não usava navalha e fazia questão de mostrar as mãos limpas quando saía de uma turumbamba (34) . A Crônica alude a di-versos grandes vultos brasileiros como cultores da capoeira, tal,

(33 )—"O que negros e pardos moços fizeram, explodindo algumas vê-zes em desordeiros, foi dar alívio a energias normais em homens ou adolescentes vigorosos que a gente dominante nem sempre soube deixar que se exprimissem por meios menos violentos que a fuga para os quilombos, o assassinato de feitores brancos, a insurreição: o batuque, o samba, a capoeiragem, o assobio, o culto de Ogum, a prática da religião de Maomé. A estupidez da re-pressão é que principalmente perverteu batuques em baixa feit i -çaria, o culto de Ogum em grosseiro arremedo de maçonarla, com sinais e assobios misteriosos, o islamismo, em inimigo de morte da religião dos senhores cristãos, a capoeiragem, em ativi-dade criminosa e sanguinária, o samba, em dança imundamente plebéia". — GILBERTO FREYRE — "Sobrados e Mocambos", Livraria José Olympio Editora, Rio, 1951, pág. 881.

(34)—"Generoso, se trambolhava o adversário, esperava (o capoeira), que êle se levantasse para continuar a luta porque: "Não batia em homem deitado"; outros diziam com mais desprêzo: "em de-funto" . ( . . . ) O capoeira que se prezava tinha ofício ou emprêgo, vestia com apuro e, se defendia uma causa, como aconteceu com o abolicionismo, não o fazia como mercenário". — COELHO NE-TO, em "Bazar", págs. 137-138, apud Waldeloir Rêgo. Êste úl-timo autor também testemunha, no seu livro "Capoeira Ango -la", pág. 279: "O capoeira não era um mau caráter. O seu com-portamento na comunidade social era ditado pelas circunstâncias que se lhe impunham e pelas pressões e desmandos dos que en-tão detinham o poder" .

Page 39: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

08 VALDEMAR DE OLIVEIRA

e m sua mocidade, um Barão do Rio Branco, o professor de fran-cês , "o bacharel Gonçalves, do Pedro II", um certo "dr . D. M., " j urisconsulto eminente", ambos citados por Melo Morais Fi-lho (35) . " 0 capoeira — diz o autor de "Festas e Tradições do Brasi l " -— não é nada mais nem nada menos do que o homem que entre dez e doze anos começou a educar-se nesse jôgo (da capoeiragem), que põe em contribuição a fôrça muscular, a fle-xibilidade das articulações e a rapidez dos movimentos — uma ginástica degenerada em poderosos recursos de agressão e pas-mosos auxílios de desafronta". Essas crianças constituíam, em sua idade, os "caxinguelês", que iam à frente das maltas pro-vocar os adversários.

O entusiasmo de Melo Morais Filho pela "luta própria do Brasil" leva-o a associá-la à savate, dos franceses, ao " jôgo do pau", dos portugueses, aos exercícios de remo e box dos ingle-ses . O capoeira, "incapaz de uma traição, de uma deslealdade", a cujo "ombro tisnado escorou-se até há pouco o senado e a câmara, para onde, à luz da navalha, muitos dos que nos go-vernam, subiram", tem, para êle, tamanho prestígio que, ao exaltar a figura famosa do Manduca da Praia, revela que "ape-

( 3 5 ) — É geralmente sabido pela tradição que no senado, na câmara de deputados, no exercito, na marinha, no funcionalismo público, na cena dramática e mesmo nos claustros havia capoeiras, cujos no-mes nos são conhecidos. ( . . . ) O capoeira isolado naqueles tem-pos trabalhava, constituía família, a vadiagem lhe era proibida, não era gatuno, afrontava a fôrça pública e só se entregava mor-to ou quase morto. Não sendo estranhos ao jôgo, portugueses ha-via que se aliavam às maltas avulsas, distinguindo-se entre êles homens de inaudita coragem e espantosa agilidade. Lusidas com-panhias de batalhões da guarda nacional, de que tinham orgu-lho os briosos comandantes, reuniam magnífica rapaziada, de on-de eram tiradas praças para diligências perigosas, servindo igual-mente para as campanhas eleitorais. A prova de que a capoei-ragem entrava nos nossos costumes está em que não havia meni-no que não botasse o boné à banda e soubesse gingar, nem es-colas que se não desafiassem para brigar. ( . . . ) De entre os che-fes de malta, dos campeões que mais lustre deram à arte da ca-poeiragem pública, uns eram conhecidos por alcunhas, outros pe-los nomes autênticos. Sendo-nos difícil citar a extensa lista no-minal desses valentes, registramos apenas os nomes daqueles que a tradição tem perpetuado na lembrança popular". E cita vários, concluindo que todos "estiveram nos galarins do prestígio, nas eminências da reputação justa e merecida". — MELO MORAIS FILHO — "Festas e Tradições do Brasil", págs. 440/41.

PRFIVO, CAPOEIRA E «PASSO» 69

nas respondeu a 27 processos por ferimentos leves e graves, saindo absolvido de todos êles pela sua influência pessoal e dos seus a m i g o s . . . " Era o tal que, "nas eleições de S. José dava cartas, pintava o diabo com as cédulas" e "nos esfaqueamentos e nos sarilhos próprios do momento, ninguém lhe disputava a competência". Não o situa entre aquêles que desvirtuaram, a seu ver, a capoeira, "essa luta nacional, levada a excessos pelo povo baixo, que a afogou nas desordens, em correrias reprova-das, em homicídios horrorosos" (36) .

Desfrutando, os mais hábeis ou os mais apreseritáveis, de uma posição melhor em face dos patrões e da gente branca en-dinheirada ou ambiciosa, os capoeiras viriam a dar os "cabras" dos engenhos, os "capangas" dos coronéis, os capadócios inal-teràvelmente presentes às secções eleitorais, intimidando os eleitores, emprenhando as urnas, quando não permaneciam sem serviço, dando-se, como escrevia, em 184-9, o "O Publicador Pa-raense", à crápula, à velhacaria, a vícios infames, gente que "só por fumo de valentia, se punha a beber, a jogar pescoções e a insultar os taberneiros de ladrões e marinheiros". Mari-nheiros entre aspas, sabido que se tornaram, por ojeriza secu-lar, inimigos dos portuguêses. Constituíram-se no mais agres-sivo instrumento do "mata-mata marinheiro" dos motins per-nambucanos (37) . É provável que algo se acrescentasse àque-

(36)—"Os desafios entre as freguesias transmitiam-se por meio de pan cadas de sino convencionais e em horas determinadas. Os assai tos, os combates se davam nas praças, nas ruas, em sítios mais ou menos distantes e desertos. Às vêzes, interrompendo a mar-cha de uma procissão, o desfilar de um cortejo, ouvia-se, aos gri-tos das senhoras correndo espavoridas, das negras levando os se-nhores moços ao colo, dos pais de família pondo a abrigo a mu lher e os filhos, o horroroso "Fecha! Fecha!" . Os caxinguelês voavam na frente, a capoeiragem disparava indômita, seguindo se ao distúrbio cabeças quebradas, lampiões apedrejados, facadas, m o r t e s . . . " — MELO MORAIS FILHO, op. cit., pág. 438.

(37)—"Ouvi muitas vêzes, quase como história de mil-e-uma noilos, dá bôca dos mais velhos, essas narrativas de "galegos" feridos pe los arruaceiros, quando não mortos. Arma predileta desses ar ruaceiros, eram canos de menos de meia polegada de espessura, com a extremidade afiada, que furavam, quase sem dor no prl meiro instante, o ventre proeminente dos lusitanos. Êsse cano

: era aproveitado da haste central dos chapéus-de-sol da época, com êle fabricados. . Quando não eram espetados, os lusitanos rc

. cebiam os "rabos-de-arraia" de capoeira, também sempre fatais" — RUY DUARTE — "História Social do Frevo", op. cit.

Page 40: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

76 VALDEMAR DE OLIVEIRA

la ojeriza natural: os marinheiros, os "pés-de-chumbo", os "pés-de-boi", eram os comerciantes endinheirados que roubavam suas negras. Os capoeiras lhes davam o trôco pesado (38) , co-mo descendentes legítimos daquêles outros, comandados pelo mulato Pedroso, no movimento de 1823. Viriam a formar na retaguarda da "Praieira", em 1848, ambas as revoltas reconhe-cidas hoje mais de cunho sócio-econômico do que político:

"Marinheiros e caiados todos devem se acabar porque só pretos e pardos o país hão de habitar".

É possível que, em certas áreas sociais, se cultivasse a ca-poeiragem como hoje se cultiva o karatê, há pouco tempo, o judô, mais para trás o jiu-jitsu, formas, tôdas, de defesa pes-soal, a que não se limitava, aliás, a capoeira, que viria a tor-nar-se mais de agressão. É possível, mesmo, que gozassem, a princípio, de certa simpatia, por parte da população, dado que se constituíam em "maçonarias" que incluíam juramentos so-lenes, prestados em lugar especial: as torres das igrejas, na-quêles tempos em que os enterros se faziam no chão das igre-jas e se amiudavam as festas religiosas, a qualquer pretexto. Conta-se que as torres "enchiam-se de capoeiras, famosos si-neiros que, montados na cabeça dos sinos, acompanhavam tôda a impulsão dos dobres, abençoando das alturas o povo que os admirava, apinhado nas praças e nas ruas". Assim dominando o interior das igrejas, os capoeiras, de lá, por meio de badala-das convencionais, vibradas em horas já de todos conhecidas, desafiavam maltas contrárias. E era, então, o " fecha! fecha!" a que já aludimos.

Pereira da Costa não hesitou em definir, à altura do mere-cimento, os capoeiras que se transferiam do plano social mais

(38)—"Para enfrentar a murraça forte e os violentos golpes de pau dos lusos, a tática consistia em negacear diante do adversário, bus-cando cansá-lo e distraí-lo, até que se oferecesse ensejo de derri-bá-lo por um passe imprevisto: rasteira ou cabeçada. Entre os mais destros, havia alguns que timbravam em lutar de mãos nos bolsos, saltando para aqui e para ali, sempre a fazer letras, e es-perando que o contendor pudesse ser calçado, ou virasse de ca-tâmbrias, por uma boa cocada na bôca do estômago". — GAS-TÃO CRULS — "Aparência do Rio de Janeiro", pág. 407.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO» 77

elevado para se perderem na desordem premeditada. Dêles dis-se que eram "indivíduos de baixa esfera, vadios, desordeiros, que esgrimiam cacetes e facas e servindo-se, ainda, em passos próprios, que obedecem a umas certas regras e preceitos, dos pés e da cabeça, valentes, ágeis, ligeiros, vencem o adversá-rio" (39) . Melo Morais Filho limita-se a exaltar-lhes a agili-dade e a coragem, ao escrever que "o capoeira, colocado em frente a seu contendor, investe, salta, esgueira-se, pinoteia, si-mula, deita-se, levanta-se e, em um só instante, serve-se dos pés, da cabeça, das mãos, da faca, da navalha, e não é raro que um apenas leve de vencida dez ou vinte homens".

Chegaram, assim, a ser considerados criminosos pro-fissionais, dominadores em certas áreas, como, antiga-mente, as quadrilhas de can-gaceiros, de perna traçada com os senhores feudais do sertão e, hoje, os Sindicatos da Morte, paus-mandados de -.hefetes políticos.

As maltas, constituídas cie vinte a cem capoeiras, se compunham, primitivamen-te, de africanos "que tinham como distintivos as côres e o modo de botar a carapuça, ou de mestiços (alfaiates e charuteiros) que se davam a conhecer entre si pelos chapéus de palha ou de fel-tro, cujas abas reviravam, segundo convenção".

"Capoeira alfaiate". (De "Festas e Tradições do Brasil", de Melo Mo-

rais Filho)

HISTÓRICO

O combate à capoeira, proclamada invencível por tôda a gente, vinha, entretanto, de longe. Foi uma instituição que se

( 3 9 ) — F . A . PEREIRA DA COSTA — Op. c i t , pág. 191.

Page 41: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

142 VALDEMAR DE OLIVEIRA

diria ter progredido à razão de conhecida lei de Física: a cada ação correspondia uma reação igual. No caso, maior. Data re-cuada é a de 1626, quando, pela primeira vez, se organiza, à base das Ordenações Filipinas, uma Polícia, no Rio de Janei-ro (40 ) . Surgiria mais tarde (1725), o famoso Luiz Vahia Monteiro, tão violento e feroz, na repressão ao crime, que logo uma alcunha o consagrou: o "Onça" . Anos depois, Mendonça Furtado escrevia, em 1757, a seu irmão, o Marquês de Pombal, verberando a chegada, ao Pará, de "ladrões de profissão, as-sassinos e outros malfeitores semelhantes, que principiaram a pôr a terra em uma perturbação g r a n d e . . . " -— e denunciando haver chegado ao seu conhecimento que em Lisboa "estava uma capoeira (sic) cheia cie gente para mandarem ao Pará, pedin-do-lhe que "tais capoeiras de malfeitores se distribuam por ou-tras partes e não por um Estado que se está criando. . . "

Abstraída essa nova achega ao estudo da origem do vocá-bulo, lembremos que, com a chegada de Dom João VI ao Brasil, cuidou o soberano de dar nova estrutura às instituições de se-gurança pública, por "medo dos capoeiras e o receio de ser li-quidado por espiões estrangeiros ou mesmo intrigas da Côrte". Fernandes Viana foi o primeiro intendente de Polícia do Bra-sil, tendo nomeado, para a Guarda Real de Polícia, logo em 1809, um certo Miguel Nunes Vidigal (41) , capoeira mestre que se tornou o terror dos seus "colegas", aos quais reservava tratamento especial, série de torturas conhecida por "ceia dos camarões". * j Documentos diversos colhidos aqui e ali relatam as, preo-cupações dos governos na repressão à capoeiragem que manti-

(40)—"Munida de um instrumento jurídico, pôde a Polícia dar vasão aos seus instintos, massacrando a torto e a direito os capoeiras que encontrava: estivessem ou não em distúrbios, a ordem era o massacre". — AVALDELOIR RÊGO, op . c i t , pág. 123.

(41 )—"Era um homem alto, gordo, do calibre de um granadeiro, molei -rão, de fala abemolada, mas um capoeira habilidoso, de um san-gue-frio e de uma agilidade a tôda prova, respeitado pelos mais temíveis capangas de sua época. Jogava maravilhosamente o pau, a faca, o murro e a navalha, sendo que, nos golpes de cabeça e de pés, era um todo inexcedível" . — MELO BARRETO FILHO e HERMETO LIMA, "História da Polícia do Rio de Janeiro", Edi-tora S / A , A Noite, Rio, 1939, vol . I, pág. 203.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO» 69

nha desassossegada a população do Rio de Janeiro (42) . Em 1821, um edital ordenava o fechamento, às 10 cia noite, de açou-gues e tavernas. Mais dois anos e pico, reforçava-se a ronda das patrulhas, a pé e a cavalo, em ruas e largos da cidade, pa-ra impedir a reunião cie cafajestes. Em 1824, Aviso do Minis-tro da Justiça ordenava ao Comandante Geral da Polícia da Côrte que castigasse severamente os capoeiras, para evitar dis-túrbios e crimes. Em 1825, estabelece-se que os escravos podem ser revistados a qualquer hora do dia e da noite, proibindo-se-lhes, sob pena de açoites, o uso de qualquer arma, até de um simples pau. Também não podiam parar nas esquinas "sem motivos manifestos" e "dar assobios ou outro qualquer sinal". Êsses assobios eram obtidos com o auxílio das pontas dos dedos mínimos colocados entre os lábios (assobios agudos) ou com o indicador de uma das mãos recurvo e metido na bôca (assobio grave, de flauta de madeira), ambas as modalidades pratica-das por meu Pai, Bianor de Oliveira (discípulo, quando rapaz, de Nicolau do Poço) , para chamar, de longe, os filhos. Utili-zando tais recursos, os capoeiras avisavam-se uns aos outros, da proximidade da Polícia, sobretudo se se tratava de Cavala-ria, que respeitavam. Ou valiam, simplesmente, como ordem de debandar, em caso de derrota iminente, em algum entreve-ro ( 4 3 ) .

Intendentes de Polícia do Rio de Janeiro, até ao Gabinete Ouro Preto, foram, todos, adversários ferrenhos dos capoeiras,

( 42 )—A Polícia procurava neutralizar, por todos os modos, a ação dos capoeiras. Vivaldo Coaracy ("Memórias da Cidade do Rio de Ja-neiro", volume 3, pág. 326/27) alude ao porta-voz que substituí-ra a trombeta dos farricocos da Procissão dos Passos, proibido pela Polícia " em vista do seu emprego como arma contundente". Lotfo a seguir, alude aos arruaceiros "que nunca deixavam de tomar parte nas "rusgas" da época (1831), sendo "a marcha do próstl-tito perturbada e interrompida por motins e conflitos, as rivalida des políticas invadindo o terreno das manifestações religiosas da

mesma forma pela qual tumultuavam os espetáculos teatrais". Também a Procissão das Cinzas, a que compareciam mascarados em atitudes cômicas, era constantemente perturbada pelos "ca poeiras que infestavam a cidade" (pág. 324, op. c i t . ) .

( 4 3 ) — " A t é hoje existe um toque de berimbau — o chamado "Cavala ria" — que "avisa a aproximação de alguém não afeto roda" — CARYBÉ — "O Jôgo da Capoeira", Col. Recôncavo n." 3, Salvador, 1951, Livraria Turista.

Page 42: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

100 VALDEMAR DE OLIVEIRA

o último clêles, "o turbulento capoeira, inimigo cios mesmos, Conselheiro José Basson de Miranda Osório", de quem R. Ma-galhães Júnior diz ter sido "perito na arte da capoeiragem, destro e valente cacetista".

Creio ser possível admitir, a esta altura, ter sido, a capoei-ra, um generalizado esporte de defesa pessoal, a que se afei-çoavam os jovens mesmo não filiados à "juventude transviada" da época. De outro modo não se explica a prática do jôgo por homens como os que acabam de ser citados, aos quais o Go-vêrno entregava, precisamente, a direção de órgãos de segu-rança pública, empenhados na repressão aos capoeiras — mas, daquêles capoeiras, estes, sim, da ralé, que se serviam dêsse re-curso para a arruaça e o crime.

A ABOLIÇÃO E A REPÚBLICA

Todo o Segundo Império vê multiplicarem-se as maltas de capoeiras, cada uma com seu chefe, obedecendo a uma chefia geral. À proporção que se sucedem as alforrias e se tornam homens os nascidos sob a Lei do Ventre Livre, engrossam-se as fileiras da capoeiragem nacional. A Abolição rasga perspec-tivas sombrias, com a organização da Guarda Negra, que se dispõe a defender o Trono, combatendo a conspiração republi-cana . José do Patrocínio a acolhe, na " A Cidade do Rio" . João Alfredo a estipendia, com verbas secretas. É uma maçonaria de fanáticos. Quando, em dezembro de 1888, reunidos no Lar-go cio Rossio, diante da Sociedade Francesa de Ginástica, os capoeiras acabam debaixo de pau um comício republicano, mal havia começado a falar, depois de Lopes Trovão, Silva Jardim, o alarma é geral (44) .

O decreto imperial assinado pela Princesa Isabel encheu de capoeiras eufóricos, as ruas. Destampara-se, subitamente, a panela de pressão do cativeiro, tudo ia pelos ares, era preci-so viver. O interregno até o 15 de novembro teria de ser — e foi — pandemônico, muito chefe de malta pertencendo a famí-lias da melhor sociedade. . . monárquica. Nãó admira: mais do

( 4 4 ) — À época, Joaquim Nabuco escreve a José Mariano, nos primeiros dias de 1889 (apud R . Magalhães Júnior) : "Organizou-se nesta cidade uma chamada Guarda Negra e no domingo houve um com-bate entre ela e os Republicanos, na Sociedade de Ginástica. Os Republicanos falam abertamente em matar negros como se ma-tam cães. Eu nunca pensei que tivéssemos, no Brasil, guerra civil depois, em vez de antes da Abol ição" .

FREVO, CAPOEIRA E «PASSO» 101

que nunca, a capoeira se mostrava, às vésperas da República, "instituição política, sob as ordens de grandes magnatas", co-mo afirmaria Sílvio Romero.

A boa figura que muitos clêles haviam feito, na repressão à revolta de irlandeses e alemães mercenários, contra o Impé-rio, em 1828; depois, na guerra do Paraguai; mais tarde, na luta pela Abolição, embora os animasse interêsse próprio, não provavam a seu favor. Condenava-se a criação recente da Guarda Negra. Antes da Abolição, o capoeira era um escravo — ou um fôrro que pouco lucra com a liberdade, por enfrentar duras restrições à vida livre. Depois dela, um homem-livre, sim, mas, esquecido. Ou desdenhado. Fiel à Monarquia, pro-cura esteá-la. A República vinga-se cruelmente: ataca a chaga nacional com termo-cautério, a cru. É assim que Deodoro se decide a extirpar o cancro: nomeia Sampaio Ferraz para a Che-fia cie Polícia e lhe dá carta branca para acabar com a capoei-ragem. Ferraz age ditatorialmente, prendendo por simples an-tecedentes e deportando para Fernando de Noronha. Um dos presos é Juca Reis, capoeira famoso que acaba de chegar da Europa. Irmão do Conde de Matosinhos, rico proprietário cie "O País", jornal dirigido por Quintino Bocaiúva, então Minis-tro das Relações Exteriores, logo se desenha crise grave no Gabinete. Mas, Deodoro confirma a carta branca dada a Sam-paio Ferraz e o play-boy vai cumprir pena na Ilha. O Conde se desfaz do jornal, embarca para a Europa, onde afinal vai encontrar o irmão, autorizado a deixar o Brasil, depois de des-pir o uniforme cie presidiário.

O exemplo repercutiu no país inteiro. A liquidação foi ge-ral (45) . As polícias estaduais se movimentaram, apoiadas no primeiro Código Penal da República (46) .

(45 )—Em 1904, no Rio, durante a campanha contra a vacina obrigató ria, os amotinados foram instalar o seu QG na Saúde, valhacou-to de estivadores e embarcadiços. Pedro Calmon esclarece: "Co-mo àquela época fosse heróica a defesa de Porto Artur, dos rus-sos contra os japoneses, deram o apelido de Porto Artur às " for-tificações" da Saúde. Ganhavam relêvo histórico alguns perfis de lutadores. Ressurgiu o capoeira, que Sampaio Ferraz supri-mira". — In "Bastos Tigre e La Belle Epoque", de Raimundo de Menezes, Col. Visão do Brasil, Edart, livraria-editora, São Pau-lo, 1966, pág. 122.

(46)—Êsse Código é de 11 de outubro de 1890 e se refere, claramen-te em vários dos seus artigos, aos capoeiras. O capítulo XIII se

Page 43: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

82 VALDEMAR DE OLIVEIRA

A CAPOEIRA NO RECIFE

No Recife, a capoeira era um brazão de valentia, porque, além de tudo, a fama vigorava, dos "leões do Norte", vinda dos Guararapes e retemperada em 1817, em 1824, em 1848, no Pa-raguai. Dado o prestígio que desfrutavam, temidos pela pró-pria Polícia, • os capoeiras se multiplicavam, contratados para qualquer tipo de empreitada, empreitadas cenográficas a que compareciam obedientes ao figurino clássico: cacete de cerca de 50 centímetros na mão, pedaço de arco de barrica no cós es-querdo da calça, os de pé no chão; bengalão de volta na dobra do cotovelo, lambedeira de Pasmado na ilharga, os mais acata-dos; quirí de castão de quina e punhal de cabo de marfim, na cava do colete — muito rapaz de família, que acaba pastoril só pelo gosto de acabar.

Cacete, bengalão ou quirí de castão de quina, afirma Câ-mara Cascudo tratar-se de um acréscimo ditado pela colabora-ção de portugueses do norte de Portugal, exímios "jogadores de pau". Os "marinheiros" deram, assim, ao capoeira, uma arma de que não sabiam, talvez, defender-se. Uma arma que muitas vêzes se voltou contra êles.

Sua preferência pela música era manifesta, não por pen-dor inato, mas, porque ela funcionava como açúcar atraindo mosca: eram as violonadas nos quiosques, as serenatas nas ruas mal alumiadas pelos lampiões de gás, o virtuosismo da gaita, do berimbau, do ganzá, em noites longas. Eram, principalmen-te, as bandas militares que vinham à rua, para desfiles da cor-poração, retretas, novenas de igreja, procissões, corridas de ca-valos no Derby, no Hipódromo, no Lucas, embarques e desem-

intitula: "Dos vadios e capoeiras". Seu artigo 402 assim começa: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício cie agilidade e des-treza corporal conhecida pela denominação de capoe i ragem. . . " Há um parágrafo único: "Ê considerada circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta". O artigo 404 é mais severo: "Se nesses exercícios de capoeiragem perpetrar homicídio, praticar alguma lesão corporal, perturbar a ordem, a tranqüilidade ou segurança pública ou fôr encontrado com ar-mas, incorrerá cumulativamente nas penas cominadas para tais crimes". O Código de 1893 alude à criação de uma colônia cor-rec iona l . . . -— para correção pelo trabalho, dos vadios, vagabun-dos e capoe i ras . . . "

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109 29

barques de figurões, na Lingueta, mudanças de guarda (47) . Não havia festa sem banda de música. E não havia banda de música sem capoeira. Acertou quem escreveu: "Tinham mania

Mário Sette, em desenho de Nestor Silva)

por festa, pelo reluzente e o ornamental". Onde havia um fol-guedo, aí estava o capoeira, dêle participando ou a êle assistin-

(47)—Num anúncio do "Diário do Rio de Janeiro", de 27 de novem-bro de 1849, "Um morador" pede à autoridade para pôr f im às arruaças, tão "a gôsto dos nossos vadios, no acompanhamento da guarda que leva música. . . "

O "Diário de Pernambuco" de 15 de dezembro de 1884 estampa-va um ofício enviado ao coronel comandante das armas, no qual se lia: "Pelo reprovado costume adotado pelos escravos nesta ci-dade, de acompanharem as músicas militares, dando a uma ou a outra vivas e morras, apareceram desagradáveis conflitos e isto há muito. Ontem, o partidista de uma dessas músicas — Melqula-des — preto, escravo, deu no meio dos gritos de um e outro lado, uma facada no pardo também escravo Elias, dizendo-se ser o ofensor partidista de uma das músicas e o ofensor de outra". Já em data anterior (5 de maio de 1860), o mesmo jornal itini-ria: "Solicitamos a atenção da polícia para essa banda de mole-

Page 44: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

32 VALDEMAR DE OLIVEIRA

do, fôsse o bumba-meu-boi, o pastoril, o cavalo-marinho (48) , o fandango, o côco, qualquer "brinquedo" (49) . A música era uma constante em sua vida. E a banda militar funcionava co-mo um núcleo de cristalização, aglutinando, à sua volta, a ca-fajestada. Também porque, em sua passagem pela cidade, com rumo certo, abria oportunidade às exibições da súcia, em ati-tudes francas de provocação, mostrando o seu poderio, a ele-gância no manejo do cacete, o apuro no vestuário — todos de ponto em branco (o conhecido tipo de "mosca no leite", que se repete, hoje, nos passistas das Escolas de Samba) — as calças folgadas, o palito sempre aberto, deixando ver a camisa de côr, a botina de bico fino e revirado e cie salto "carrapeta", grava-ta de manta e anel corrediço, chapéu mole, palito no canto da bôca, lenço ao pescoço, preferentemente de seda, garantia con-tra o f io da navalha alheia. Assim se mostravam à testa das bandas de música, afirmando, pela trunfa de pixaim, sua viri-lidade ao mulherio sempre simpático ao homem verdadeira-mente macho. Aliás, era do seu "Código cie Honra" não falar de perto com ninguém (a não ser com mulher bonita) .

Divididos em partidos, afeiçoavam-se a essa ou àquela "musga", elas também inconciliáveis, em rivalidades que se es-tenderiam até à campanha dantista, entre corporações do Esta-do e da União: tropa de Polícia, tropa de "linha". Essas maltas, que se colocavam, por instinto natural, em campos rivais, mui-tas delas brigadas com outras tantas, deviam sua coesão a cau-

ques que não deixa de acompanhar as músicas marciais por en-tre um alarido infernal e boas cacetadas, que mutuamente se dis-tribuem. É esta uma usança tradicional, e que remonta a sua origem há bons anos; mas, assim como cousas mais antigas têm sido desfeitas pela ação do progresso, essa usança pode sem dú-vida alguma ser também desfeita pelo atrito do junco da polícia que tem em tais casos uma fôrça magnética".

(48)—"Devotos de São Jorge-a-cavalo, não é de estranhar que os "ca-valos marinhos" se tornassem, com outras "funções públicas", "o teatro predileto dos terríveis ajustes de contas ou torneios de ca-poeiragem . . . " — ELYSIO DE ARAÚJO, apud Gilberto Freyre, "Sobrados e Mucambos".

(49)—"Os capoeiras estão nos presepes para acabar com as presepa-d a s . . . " — Fala de certo personagem em diálogo com JOÃO DO RIO — "A alma encantadora das ruas", pág. 112.

FEÊVO ; CAPOEIRA E «PASSO» 85

sas diversas, entre as quais concorria a localização residen-cial (50) , esta mesma determinada, provàvelmente, por identi-dade de pensamento religioso ou de infortúnio social, o que já Gilberto Freyre anotara em "Sobrados e Mocambos": "As in-fluências no sentido de coesão dos escravos f o r . m antes as que decorreram de semelhança de status ou cie situação social no meio brasileiro do que as etnocêntricas".

É possível que súcias dêsse ou daquêle bairro se unissem em súcias mais numerosas, como, no Rio de Janeiro, os guaia-mus, de um laclo e os nagôs, de outro. No Recife, por volta de 1856, duas delas se extremaram em tôrno de duas unidades mi-litares aí aquarteladas: o 4.° Batalhão de Artilharia, conhecido pela abreviatura -—- "o Quarto", e o Corpo da Guarda Nacional, popularmente denominado "o Espanha", por ser espanhol o seu mestre, Pedro Francisco Garrido, que acabaria assassinado pe-lo mestre de outra banda, o Pedro Batista, do 9.° de linha (51) . Cada uma tinha, entre os capoeiras, os seus simpatizantes, os que iam sempre à sua frente, nos "delírios do seu entusiasmo, com o chapéu na c'rôa da cabeça, gingando, pulando e brandin-do o seu cacete". A banda que saísse à rua arrastava consigo a malta correligionária, desferindo agudos assobios e disposta a abater o primeiro "contrário" que aparecesse. Ou o desavisado transeunte que viesse à calçada em atitude suspeita:

— Guarda isso aí — gritava-lhe um, por vêzes, cravan-do-lhe a faca na barriga (52) .

A ordem era "se vier, morre ! " . Ao som dos dobrados (ci-ta-se, até, o "Banha Cheirosa", como dos mais excitantes), soa-

(50)—GASTÃO CRULS, op. c i t , alude a diversas maltas: "a da fre-guesia de Santana — era "Cadeira da Senhora"; a de Santa Rita — "Três Cachos" ou "Flor da Uva"; a de São Francisco de Pau-la, "Franciscanos"; a da Glória, "Flor da Gente"; a da Lapa, "Es-pada"; a da praia de Santa Luzia. "Monturo" ou "Luzianos", etc. Havia outras: a do Castelo, "Santo Inácio"; a de São Jorge, "Lan-ça"; a do Senhor Bom Jesus do Calvário, "Ossos".

(51)—Outra afirmação de Câmar.a Cascudo: as duas bandas de música viveram até 1865. O "Quarto" foi para a guerra do Paraguai e não voltou.

(52)—"Sempre armados, matam a qualquer pessoa inofensiva, só pelo prazer de matar". PEREIRA DA COSTA, op. c i t , pág. 191.

Page 45: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

86 VALDEMAR DE OLIVEIRA

vam, mal-agourentamente, os "vivas" e os "morras", entremea-dos de versos agressivos:

Viva o Quarto, fora o Espanha! Cabeça sêca (53) é que apanha!

Ou, sempre desafiadoramente:

Não venha, chapéu de lenha! Partiu, caiu, morreu, fedeu!

Essa rivalidade entre bandas de música sempre foi coisa comum. Não só no Recife, onde era freqüente, embora não os-tensivamente, entre bandas do Exército e da Polícia, do mesmo modo que entre conjuntos musicais pertencentes a sociedades privadas, que se digladiavam, inclusive nas retretas. Em cida-des do interior, destacaram-se a "Revoltosa" e a "Capa-Bode", de Nazaré da Mata, assim como a "Saboeira" e a "Curica", de Goiana. A competição se acirrava às vésperas do carnaval, is-to é, na preparação do repertório do carnaval, ensaiado a lé-guas de distância, ocultamente. As novas marchas eram escri-tas, geralmente, pelos próprios mestres das bandas, entre êles um certo Chaprô, de que me fala Severino Revorêdo, às voltas com o Barbeirinho, trombonista de Nazaré. Aliás, o trombone era o instrumento preferido, sendo muitos os trombonistas que ainda hoje se contam nas cidades do interior — sobretudo Li-moeiro, Nazaré, Belo Jardim, Goiana, Vitória de Santo Antão, onde os vão buscar, quase clandestinamente, para atuar no Re-cife. Nestor de Holanda, vitoriense, relata, em orquestras de clubes de sua terra, a presença de quarenta trombones. Ruy Duarte, aludindo à dos "Lenhadores", fala em cinqüenta. Re-voredo, mais modesto, me afirma que, em Limoeiro, tocou em orquestras de frevo com 22 trombones, tal volume de som im-posto pela necessidade de se fazer, o clube, ouvido de longe, pe-lo povo. E, em caso de encontro com clube rival, "abafá-lo" à fôrça de bocal. De bocal, digo bem, porque é à fôrça do bocal

(53)—Cabeça sêca era sinônimo de escravo.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109 29

bem adaptado aos lábios, que o instrumentista consegue arran-car os agudos que dêle exigem as partituras.

A capoeiragem era o complemento da banda, seu corolário, sua marca de autenticidade. Uma e outra constituíam, por as-sim dizer, a consagração do macho, nas ruas do Recife, mulher nenhuma acompanhando a "musga", salvo alguma mulher-da-ma que, respeitada, se pusesse cie parte para apreciar as proe-zas do seu "cherêta". O rôlo que muitas vêzes estourava era a apoteose do desfile. Quando a Polícia chegava, já o pano ha-via baixado: os precursores dos guerrilheiros urbanos de hoje dormiam satisfeitos, de peito lavado, apaziguadas as suas ten-sões interiores sob as compressas de arnica e os dengues de suas mulatas.

Assim se espalhavam os cafajestes nos focos mais infesta-dos do Brasil. No Rio, entre tantos outros lembrados por Melo Moraes (Mamede, Carne Sêca, Natividade, Maneta, Bonapar-te, Leandro, Aleixo açougueiro, capitão Nabuco, Quebra Côco, Bentivi, Pedro Cobra), nenhum levava as lampas a Manduca da Praia, que era de fechar o comércio (no que não vai exagê-ro, mas, alusão a fato real) . Outros, ainda no Rio, pontifica-vam — Ciríaco, Plácido de Abreu, Augusto Melo (Cabeça de Ferro) , Trinca Espinho, Bôca Queimada, Ali Babá, louvados por Coelho Neto. Ou, ainda, José de Sá, Chico Bolívar, Manuel Piquira, Mariano da Piedade, Cândido Baianinho, Marinho da Silva, citados por João do Rio.

Na Bahia, foram muitos, de Tabiri da Fôlha Grossa ao açougueiro Cazumbá, de Paulo Barroquinha a Dois de Ouro, de Zé Dou a Najé, de Chico Três Pedaços a Zé Bom Pé, de Be-souro Cordão de Ouro a Chico Porreta, que "tinha parte com o diabo, desaparecia, virava fumaça quando cercado pelos sol-dados", de Quebra Ferro a Pantalona (que levava um cadeado de ouro na orelha direita), de Bilusca a Sessenta, de Sete Mor-tes a Doze Homens, de Inimigo Sem Tripa a Samuel Querido de Deus, tantos que Jorge Amado ainda hoje canta como as-sombros de valentia. A tradição continua, amenizada e turísti-ca, com os mestres Bimba, que o autor de "Bahia Boa Terra Bahia" considera o "capoeirista perfeito, primeiro sem segun-do", Pastinha, hoje com 80 anos e cego, Valdemar cia Paixão, em cuja escola se exibem jogadores famosos: Curió, Traíra, Onça Preta, Cabelo Bom, fabulosos e inofensivos, Cangiquinha, excelente improvisador, Cobrinha Verde, Gato e outros poucos, muito visitadoe.

No Recife, multiplicaram-se, mercê de suas tradições de bravura, capoeiras famosos — Canhoto, Pé-de-pilão, Bode-Ioiô, Bentinho do Lucas, outros muitos que não escaparam à reme-

Page 46: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

89 VALDEMAR. DE OLIVEIRA

moração de Oscar Melo, como Manuel da Jacinta, Jovino dos Coelhos, Nicolau cio Poço, Amaro Preto, Apolônio da Capunga, Artur Jararaca, Corre Hoje, Sabe Tudo, Nascimento Gran-de, Antônio 14, Pontinho, José Siri, Chico Cândido (54) .

Por anos e anos seguidos, até os começos do século, êsses e outros capoeiras pularam na frente das bandas de música, in-clusive as particulares —- a "Matias Lima", a "Charanga do Recife", a "Afogadense", cadenciando sua ginga pelo binário do dobrado e dando, sem querer, o primeiro sinal do passo. "A Pimenta", em 1901, estampava: "Um indivíduo, julgando-se muito engraçado, vinha na frente, à moda c a p o e i r a . . . " E, em fevereiro de 1907, o "Jornal Pequeno" ainda publicava: "Fa-zendo exercício de capoeiragem vinha ontem, a 1 hora da tarde, em frente ao clube carnavalesco "Tome Farofa", o indivíduo Anselmo Arselino Marinho. Êste indivíduo com um compaço escalado investiu contra o diretor daquêle c l u b e . . . "

A ralé continuou, por muito tempo, a saracotear em fren-te das músicas em desfile, como tropa cie choque. Evoluía para tipos menos brigões, que, nem por isso, deixavam de ser os "brabos", os "faquistas", os "valentões", novos rótulos de uma mesma mercadoria (55) .

Havia de chegar a vez de todos êles. O Chefe de Polícia do govêrno Sigismundo Gonçalves, o desembargador Santos Moreira, segue o exemplo de Sampaio Ferraz: manda algunc para o cemitério ("por terem reagido à prisão") , outros para a Detenção, os mais temíveis para Fernando. Das ruas cada

( 54 )—"A capoeiragem era então uma fôrça a serviço da política parti-dária, tão intensa no Recife do século X I X . O burgo liricamen-te comparado pelo poeta à Veneza ( . . . ) era naqueles dias e tem sido quase sempre antes uma Florença que uma Veneza. Flo-rença americana ardendo no fogo das revoluções, das lutas en-tre partidos, das revoltas de cavalgados contra Cavalcantis, dos combates entre bianchi e neri". — GILBERTO FREYRE, "Me-mórias de um Cavalcanti", prefácio, Col. Brasiliana, 1940, pág. 29.

(55)—"Havia brabos de várias categorias. Uns de alta roda, outros de esferas inferiores. Cavavam a vida em ser brabos. Obtinham fa-vores, empregos, regalias. ( . . . ) Os de classe superior trajavam bem, andavam de carro, usavam brilhantes. ( . . . ) Os de plano baixo eram típicos: "chapéu de "apara-facada", calças bomba-chas, palito curto, sapatos brancos, andar balançado e o clássico porrete na mão" . — MÁRIO SETTE, "Maxambombas e Maraca-tus". Rodolfo & Pereira, Recife, 1938, pág. 100.

FREVO, CAPOEIRA E ,(PASSO., 29

vez mais bem iluminadas do Recife (até isso teria concorrido para o progressivo extermínio dos desordeiros), foram desapa-recendo, pouco a pouco, os brabos. Os que escaparam, fugiram para outros Estados. Alguns voltaram, quando a tempestade amainou: um Nascimento Grande, por exemplo, que, depois de alguns anos, acabou seus dias pacificamente perambulando pe-las ruas do Recife, sem ser incomodado. Respeitavam-lhe, ao mesmo tempo, a fama e a velhice. Sem dúvida, muito valentão ainda pulou no frevo, depois que Ulisses Costa acabou com os remanescentes. E provocou ódios e lutas entre as agremiações carnavalescas.

Um congresso que se realizou no Recife, por volta de 1911 — "Congresso do Carnaval", organizado por êsse Chefe de Po-lícia com o prestígio da Prefeitura, então entregue a Arquime-des de Oliveira — conseguiu a paz entre os clubes, justo quan-do os remanescentes da capoeira iam desaparecendo da crônica policial. A fundação da Federação Carnavalesca Pernambuca-na, mais tarde, reafirmou a decisão geral em combater cinza-nias, esquecer ressentimentos, evitar conflitos. Ainda assim, como ecos de uma batalha distante, de vez em quando se eng.t finhavam as "ondas" de dois clubes, quando, por qualquer cir-cunstância, se encontravam, por falha de itinerário (56) .

EVOLUÇÃO SINGULAR DA CAPOEIRA, NA BAHIA

Uma pergunta fica no ar, depois de atentarmos em que os capoeiras grassaram principalmente no Rio, na Bahia e no Re-cife. Tendo deixado sua marca indelével nas Escolas de Samba dos morros cariocas e nos frevos da capital pernambucana, per-gunta-se: por que o mesmo não sucedeu na Bahia? Quer dizer: por que, na Bahia, a capoeira se aquietou, convertendo-se, com o tempo, em divertimento que acabou por tornar-se atração tu-rística?

(56)—O escritor Otto Prado narrou, em recente trabalho, a contenda entre dois clubes, ocorrida em 1938, ao se encontrarem numa rua da Ilha do Leite. Os maiorais das duas agremiações convieram em que não houvesse briga pois, recuar, nenhum deles admitiria. Aproximaram-se, os estandartes se cumprimentaram, as fanfar-ras emudeceram, as multidões se cruzaram em silêncio. De re-pente, "cedendo aos nervos tensos", grita alguém: "Fala na mãe dêsse côrno, Zé ! " Foi a ordem de avançar, ressuscitando-se os ominosos tempos dos "carnavais de sangue".

Page 47: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

90 VALDEMAR DE OLIVEIRA

Parece-me que várias causas concorreram para isso. Pou-co antes da República, época em que começou o ostensivo ex-termínio da Capoeira como instituição nacional, foi grande o êxodo de baianos para a Côrte (o que terá contribuído, sem dú-vida, para a extraordinária vitalidade da capoeira de Ango-la na capital do país) . O fato se deveu a dois fatores, focali-zados por José Ramos Tinhorão, em excelente obra "Música Popular — Um tema em debate": enquanto declinava a cul-tura do fumo e do algodão na Bahia, prosperava a do ouro e a do café, na região do Paraíba. Quando, por sua vez, esta últi-ma decaiu, coincidindo com a extinção do cativeiro, "essa mão-de-obra liberada convergiu para a Côrte, onde o trabalho ur-bano mais compatível com a sua falta de qualificação e a fôrça dos seus músculos era o trabalho do pôrto.

Aglomerando-se na zona da Saúde, próxima aos trapiches, os trabalhadores baianos vieram animar os "ranchos", que se identificavam com os festejos de Reis, em Salvador, cujas qua-dras e solfas mais populares entre os negros da Bahia eram cantadas e onde também se incluía o ritmo e uma sapateado que nada mais era do que uma estilização da vigorosa coreografia do batuque". E Tinhorão alude, especialmente, ao "ritmo mar-cado que os negros imprimiam às músicas bárbaras que canta-vam enquanto avançavam pelas ruas entre volteios, requebros e negaças". A capoeira, sem dúvida, lhes èstava no sangue. Baiana, aliás, era a famosa Tia Ciata, cuja casa, apontada co-mo ponto de convergência, nos últimos anos do Império, de baianos e descendentes de baianos, é considerada, hoje, por nu-merosos cronistas, "a casa onde o samba nasceu".

Além dessa migração populacional de negros, rumo ao Rio de Janeiro, anote-se que os cultos fetichistas, na Bahia, agluti-navam, em tôrno dos seus "terreiros", grande parte da popula-ção negra, já desfalcada pela emigração. Vale aqui lembrar o que escreve Mário Barcelos, no seu "Aruanda" : " A capoeira tem vínculo com o Candomblé, pois quando ela era jogada, a brincadeira começava cedo e quando os ponteiros se juntavam marcando zero hora, os participantes paravam e iniciavam a cerimônia de zuelar (cantar) para os exus".

Não creio distanciar-me dos objetivos dêste ensaio ao apontar uma particularidade que me parece extremamente in-teressante: é a coexistência, na capoeira da Bahia, do berim-bau e de cantorias hoje recolhidas em numerosas obras. En-tretanto, o berimbau — o hunçju (ou urucungo?) dos angole-ses, não se achava, primitivamente, associado à capoeira. Era tocado no curso de danças originárias da África, nos divertimen-

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

tos dos escravos. É o parecer de Albano Marinho de Olivei-ra (57) , que cita, a propósito, as impressões de viagem de Koster, Rugendas, Debret. Só muito mais tarde, se teria dado o consórcio, já hoje indissolúvel, do berimbau e da capoeira. Precisamente sôbre tal assunto, insiste o autor: "Graças à re-pressão policial, desapareceu a capoeira na capital federal, ten-do, contudo, se perpetuado na Bahia". E vem-lhe a curiosa in-dagação: "Que fato teria influído para anular a ação policial no Estado nortista? Teria sido o berimbau?" E êle mesmo res-ponde: "É bem provável. Observe-se que no Rio desconhece-se a existência dêsse instrumento, que existe desde tempos colo-niais no nordeste brasileiro, predominando na Bahia. Em sua capital e no Recôncavo, puderam os negros escravos, face à campanha de repressão policial, esconder a capoeira, associan-do-se ao berimbau, o pandeiro. Com o tempo, o capoeira perdeu sua agressividade e não pôde dispensar o acompanhamento mu-sical. Introduzida a música na capoeira, teve, a princípio, f i -nalidade de simulação. Depois, adquiriu a faculdade de animar os participantes da função, regulando-lhes a conduta e afas-tando-lhes a fadiga, como ocorre nas músicas de trabalho".

Vale registrar que o berimbau, tocado no ambiente das Academias da Bahia, é que conduz o ba i l e . . . Que dita o ritmo e o andamento, que podem ir-se amiudando até desfechos san-grentos. Como conta Renato Almeida: "Com o desenvolvimen-to da luta, o ritmo das cantigas (acompanhadas ao berimbau) se vai acelerando e o andamento de moderado chega ao vivo e vivíssimo, a tal ponto que, às vêzes, é preciso parar o canto, pois, do contrário, a luta degenera em contenda às direitas, ca-so em que só se separam os capoeiras com extrema dificuldade ou com a vitória de um dêles".

Por uma razão ou por outra, o certo é que o carnaval, na Bahia, se orientaria noutro sentido, distanciando-se, em seu ca-ráter, daquêle que tomou no Rio e no Recife, os outros pontos do país onde se adensava a capoeiragem. A doçura do baiano faria o resto ( 5 8 ) .

(57 )—Em "Berimbau, o arco musical da capoeira", Col. Antônio Via na, vol . I, Comissão Bahiana de Folclore, 1958, pág. 48.

(58)—"Para sobreviver, (a capoeira) teve de ser, ao mesmo tempo, lu ta e bale. E que balé! ( . . . ) Ao som dos berimbaus de capoeira, os negros puderam preservar sua luta e, ao transformá-la, f l / c ram-na brasileira e única". — JORGE AMADO, "Bahia Boa 'fer-ra Bahia", pág. 70.

Page 48: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

VALDEMAR DE OLIVEIRA

Ainda alcancei, na Bahia, nos idos da década de 20, a ação do delegado Pedro Gordilho (Pedrito), que se tornou o terror dos últimos capoeiras, gaios que já haviam perdido os seus es-ponjes, evoluindo para a capoeira-espetáculo consentido, refu-giada, como atração folclórica, nas suas Academias. Em desa-bafo, o delegado Gordilho descarregava sua fúria sôbre os na-morados de praça pública e pé-de-escada. . .

OS GOLPES DA CAPOEIRA

Apesar de j ungidos a certas regras que o tempo ia consa-grando como fundamentais, a Capoeira jamais perdeu a sua versatilidade, sujeita aos azares da contenda e ao jôgo arbi trario dos contendores. Admitida como "ginástica nacional"

O "escarão" da capoeira, pelo lápis de Kalisto. É passo de capoeira, que o "passo" recifense não herdou

a depender menos da fôrça do que da agilidade muscular, o fa-tor pessoal pesava mais, talvez, que qualquer outro, na criação <k> novos golpes, surgidos, subitamente, por imposição cia defesa ou oportunidade para ataque.

FREVO, CAPOEIRA E «PASSO» 100

Muitos são os golpes tradicionais cia capoeira, citados por vários pesquisadores como comuns no desenrolar da peleja, em-bora passíveis de diferentes interpretações, consoante a capaci-dade física e a inventiva de cada um (59) .

A alguns.dêstes referiu-se Melo Moraes Filho, capitulando-os como criações momentâneas, produto da imaginação, todos, porém, fiéis a preceitos sagrados da capoeira. Um mesmo gol-pe, por exemplo, conhecidíssimo, a "rasteira", comporta diver-sas variedades — a "rasteira de arranque" ou "tesoura", a "baixa" ou "baiana", a de "caçador", havendo outras curiosas designações (60). Todos, porém, tinham um ponto em comum: a "ginga", que era prelúdio obrigatório de qualquer dêles, es-pécie de preparação para o golpe, o movimento pendular que condiciona >o ímpeto da arremetida em qualquer jôgo que seja, o box, inclusive. Maneira de assuntar o adversário, descobrin-clo-lhe o ponto fraco ou o flanco mais vulnerável (61) .

(59)—ODORICO TAVARES relaciona diversos dêles, dos mais comuns nos embates da capoeiragem, na Bahia: a cocada, o grampeamen-to, a joelhada, as rasteiras, os ponta-pés, as bolachas, o beiço-arri-ba, a cabeçada, o aú, o balão, o tapa-ôlho dormideira, o calço, o salto mortal, o pega-à-unha. LUIZ R . DE ALMEIDA lembra ou-tros: o rabo-de-arraia, o escorão, o pé de panzina, o passo a dois, o tombo da ladeira, a rasteira a caçador, tronco, raiz e fedegoso... Câmara Cascudo acrescenta o corta-capim, a chibata armada, a ba-naneira. . .

(60)—João do Rio, no seu " A alma encantadora das ruas" repete o que lhe conta um certo Dudu: "Rasteira quando é deitada, chama-se banda; quando com fôrça, é tarrafa; quando no ar para bater na cara do cabra, meia-lua. JORGE AMADO acrescenta outros golpes: chapa de frente, cha-pa de costas, cutilada de mão. Cito todos êsses golpes para chegar a uma curiosa revelação da

Enciclopédia Barza, no seu 4.° volume, pág. 60. Diz: "O "escorão" , o "passo-a-dois" e o " tombo da ladeira" foram incorporados, "de -pois, à coreografia do f r e v o " . Justamente êsses três golpes são os descritos por Melo Morais Filho: o escorão é o pé de encon-tro ao ventre do adversário;, o passo-a-dois é um sapateado rá-pido que antecede à cabeçada e à rasteira; o tombo da ladeira é tocar no ar, com o pé, o indivíduo que pula. Vê-se, claramente visto, que, em nosso passo, não há vestígio, sequer, de tais gol-pes .

(61)—Diz-se que, na ginga, o corpo bamboleava, sem que tal movimen-to atingisse pescoço e cabeça.

Page 49: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

102 49 VALDEMAR DE OLIVEIRA

A capoeira de hoje inclui outros golpes •— chamados "li-gados" ou "cinturados" e muitíssimos outros concordes com os novos rumos que resultaram de sua transformação em simples entretenimento turístico, nas "Academias" da Bahia ou nas Es-colas de Samba, no Rio e no Recife. Diz-se, mesmo, que mes-tre Bimba, vindo do Rio, incorporou à capoeira passes de j iu-jitsu e judô, surgindo, da mistura, a chamada "capoeira regio-nal" . A profunda diversificação sofrida pelo jogo ao amansar suas façanhas habituais no rumo do inofensivo e diversional, manifesta-se, mais claramente, no fato de os capoeiras de hoje, ao contrário dos seus ascendentes, não se tocarem, não se feri-rem, não sofrerem qualquer lesão (62) . Tudo se resume num "faz-de-conta" jogado ingenuamente, dança de negaças, que faz-que-vai-mas-não-vai e não cansa nunca o espectador, senão, talvez, porque nada é a valer. Nos desfiles das Escolas de Sam-ba resulta num grande espetáculo retrospectivo mas. sem am-biência e exposta a ritmos que não são, positivamente, os que mais lhe convém. Provavelmente, os capoeiras assim desfigu-rados apontou Dinah Silveira de Queiroz como "ilegítimos", acrescentando: " . . . fazem um belíssimo balé, mas só alguns sabem verdadeiramente a capoeira na defesa pessoal".

No Recife, evoluiria para o passo, negros e mulatos con-servando, dos seus avós cativos, apenas o que a capoeira tinha de graça desenvolta, de estatuária rítmica, de negaça felina e maliciosa.

Eis por que direi ainda o não dito, agora que da capoeira e dos capoeiras já sabemos metade da pitoresca história, na-quilo que possa interessar a este ensaio.

(62)—"Chegam vestidos de branco, calça e palito brilhando no esperma-cete, alguns usam chapéu. Traíra usa um extraordinário chapéu de vigário do Interior. ( . . . ) Lutam a tarde tôda, executam os golpes mais difíceis, saltam, estendem-se ao comprido, apenas um palmo acima do chão e da poeira, e ao f im da brincadeira a rou-pa está tão alva quanto antes, impecável" . — JORGE AMADO — "Bahia Boa Terra Bahia", pág. 70.

O " P A S S O "

"... evoluiu, complicou-se, converteu-se, finalmente, nu ma das principais produções da arte, brasileira mui:< anleiihea, rica de seiva e estuante de originalidade - tão original. meu mo, que logra ser uma expressão do belo, 'mediante o enllino proposital, sistemático, intenso, do feio".

BENJAMIM LIMA

"Os capoeiras, marginais da sociedade, nos transmitiram ( . . .) alguma coisa de estritamente nacional — o "passo" per nambitco.no". , ,,,,,,,

EDISON CARNE! HO

Page 50: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

CAPÍTULO VII

«OS PASSISTAS ATUAM COM TANTA REALIDADE QUE ATÉ PARECEM CRIATURAS ARTIFICIAIS, DE PEÇAS DES-MONTA VEIS. HOMENSJ MULHERES E CRIANÇAS QUE SE DESENGONÇAM COMO BONECOS DE ARMAR E SE CON-SERTAM NO MESMO INSTANTE. . . »

MAURO MOTA

O "passo" pernambucano. 0 "passo" de salão. Os passos cio "passo". A ginga. A inventiva popular. Os passos mais típicos. O jôgo dos braços. O jôgo dos pés. Elementos espúrios. Versatilidade e diversificação. O chapéu-de-sol cio passista e suas diversas interpre-tações. Os símbolos dos clubes. Legado da capoeira.

Page 51: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

O PASSO PERNAMBUCANO

N os dias que correm, o capoeira autêntico é uma figura morta no passado brasileiro, mas, a Capoeira ficou, como es-creveu Câmara Cascudo. O seu descendente direto é o pé~no-chão que acompanha os clubes de frevo, pelas ruas do Recife, fazendo o passo.

O passo é a dança que se dança com o frevo. Bem que se diz — "dançar o frevo", como com a valsa se dança a valsa e, com o samba, o samba. Contudo, a gente entra no frevo para fazer o passo. E cada um faz por si, como o capoeira fazia. É o tipo acabado da dança individualista. Não há combinações coreográficas, não há parceria alguma, a não ser um ou outro "chã de barriguinha" eventual, resto da umbigada africana, mesmo assim sem intenções suspeitas.

Antes do mais: ninguém está falando em "frevo de salão". O passo, como tantas danças populares, subiu da rua para os salões, perdendo, na subida, muito de sua personalidade. Nos salões mundanos, fazem roda, vai um dançarino para o meio dela mostrar habilidades, depois engatam uns com os outros como em cobra de quadrilha, mexem-se e remexem-se o tempo todo e tudo isso, afinal, é sofisticação do passo (03) . Basta ver: o grã-fino que se aventura a cair no passo no meio da rua, abandonando, por momentos, o carro do corso ou o meio-fio de onde apreciava o movimento, com pouco tempo recua, desiste, como galo de briga apanhado. Vem para o lado limpar a rou-pa, endireitar o sapato que fugiu do pé, chorar o calo de esti-mação, recompor-se, rindo amarelo. Não agüenta o rojão. Ar-repunha-o. Porisso, aqui, não me refiro a êsse passo de salão, que nem consciência tem do que é. Melhor será chamá-lo " fre-vo de salão", porque os muitos passos que lá se vêem estão longe de serem autênticos, não passando de imitações de inicia-

(63 )—"Nos salões de alto bordo, o carnaval de Pernambuco não é mais do que um decalque, às vêzes bom, às vêzes m a u . . . do carna vai de rua" . — OTÁVIO MORAIS, in "Jornal cto Commercio". Recife, 26 .2 .39 .

Page 52: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

100 VALDEMAR DE OLIVEIRA

dos que de qualquer modo saracoteam, GX<IU rGTH-SG ? iriCcijpciz<3S} porém, de executar uma só das figuras mais representativas do verdadeiro passo. Principalmente as mocinhas, que apenas sal-tam sem medida.

OS PASSOS DO "PASSO"

A ginga é uma constante do passista. Representa, por vê-zes, uma atitude cie repouso, algo como o "passeio" que se in-tercala entre os "Quadros de uma Exposição", de Mus-sorgsky. Houve quem, nesse "finge-que-vai", visse uma "dependência musical da quadrilha com o seu "en avant" ou avanços e recuos carnavalescos quando dese-jam enfrentar ou evitar os clubes rivais". Nem uma, nem outra coisa, no meu en-tender. A ginga do passista é um trampolim para as suas arremetidas. Como se esti-vesse de tocaia a uma clarei-ra na multidão para se espa-lhar, tal qual o seu ancestral esperava a distração do ad-versário para lhe dar o bote. O vocábulo ganhou, com os derivados, os dicionários, com a sinonímia de bambo-leio, que era peculiaridade do antigo capoeira, seja lu-tando, seja andando.

Da capoeira, foi tudo o que o passista do Recife guardou, do ponto de vista F o t ° q i i c s u g e r e . a " g i n g a " d o i. ~ . . , , , capoenra dinâmico. Ha de haver quem

por aí estranhe a afirmativa, depois de se ter dito que o passo vem da capoeira. A verdade, porém, é que não encontro em fotos, desenhos, descrições pormenorizadas da capoeira ne-nhum golpe, nenhuma atitude que me permita estabelecer re-lação de semelhança com os passos do passista do frevo. En-contro, todavia, mais do que tudo isso poderia representar co-mo herança natural, encontro o espírito da Capoeira, não o da

FREVO, CAPOEIRA E «PASSO» 101

Page 53: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

102 VALDEMAR DE OLIVEIRA

agressividade, o da ofensiva, o do desagravo, mas, aquilo a que Gilberto Freyre chamou "a expressão física e até artística da energia moça e viri l" . Sem neles pretender descobrir, apenas, injustiçados e esquecidos, reagindo, vitoriosamente, à margi-nalização imposta pelo meio social, não consigo, ao considerar os passistas, desvencilhar-me da figura máscula do capoeira, que, ao empenhar-se em luta, ganhava um relevo inusitado, en-carnando, em fugidios momentos, as melhores virtudes de des-treza e destemor da raça. Da capoeira de hoje, do Pastinha ou do Bimba, diz Odorico Tavares que "é combate, é baile que dura duas horas". O espírito que o anima se mostra semelhan-te ao que se pressente no passo do carnaval recifense. A ca-poeira descrevera, sob os céus do Brasil, uma curiosa trajetó-ria circular: ao cabo de um ou dois séculos de tropelias, seus cultores voltavam à simulação dos primeiros tempos, quando disfarçavam, sob a aparente brincadeira, seu adestramento para as lutas que não tardavam — e não tardaram. O passo do carnaval do Recife detém, nitidamente, a ginga — mas, se desdobra, depois, numa dança que não obedece a nenhum gol-pe fundamental dos antigos capoeiras, mesmo aquêles que tra-gam denominações semelhantes, como é o caso da "tesoura", que é uma coisa na capoeira e é outra coisa no passo.

A I N V E N T I V A POPULAR

O nosso passista fixou algumas figurações, a que logo che-garemos, mas, lhes acrescentou uma imensa série de "inven-ções", tal qual ocorria com os seus ancestrais. Waldeloir Rego anota que, "dentro das limitações das regras do jôgo" , o ca-poeira tinha a liberdade de criar, na hora, golpes de ataque e de defesa, conforme o caso, que nunca foram previstos e sem nome específico. Depois do jôgo, esquecia o expediente impro-visado. As "invenções" do passista teriam de ser necessària-mente outras, porque provocadas por outros estímulos e servin-do a outros objetivos, mas, conservam, também, o caráter de "à la minute". Da capoeira, uma coisa pesou no passo: a proi-bição do corpo-a-corpo. Outra, porém, não f icou: as mãos no chão, comum na "vadiação", jamais vista no passo.

Assim criou, o passista pernambucano, a dança mais arbi-trária que se conhece. A mais imprevista. A mais surpreen-dente, por se achar sujeita a circunstâncias ocasionais, como sejam a maior ou menor compacidade da massa humana, a ir-regularidade do calçamento, o fanatismo clubístico, o poder do

PRÊVO ) CAPOEIRA E «PASSO» 103

estímulo musical, função do maior número ou melhor qualida-de das figuras da orquestra, de sua afinação, de sua homoge-neidade, do seu " fogo" , até do dia e da hora, pois não é o mes-mo dançar na "onda" de uma troça, na Pracinha, com o sol a pino e dançar alta noite, numa rua estreita, na cauda de um clube de sua predileção.

De ano a ano, a coreografia do passo se veio enriquecendo de novos motivos, se desdobrando em variantes, se aperfeiço-ando dentro da cadência áspera do frevo e dos "achados" me-lódicos, mais do que os rítmicos e harmônicos, dos composito-res . À proporção que surgem novos passistas, com êles surgem, sem regra nem lei, numa ambiência de absoluta espontaneida-de, criações momentâneas, umas provocadas pelos atritos im-previsíveis dos corpos em promiscuidade, outras nascidas da cachola dos dançarinos, um dêles, Egídio Bezerra tendo, há poucos anos passados, introduzido, no passo recifense, uma sé-rie de figurações que decerto enriqueceram a sua coreografia, embora aqui e ali a desvirtuassem. Não foi útil que algumas de suas novidades se tivessem difundido entre alunos de um curso por êle mesmo fundado (65) . Outros passistas deixaram nome, na crônica carnavalesca pernambucana, entre êles Moa-cyr Ferreira, sobrinho de Nelson Ferreira, que possuía, como ninguém, a malemolência indispensável ao caráter da dança.

Variantes do passo não se descrevem que nem um pas-de-deux ou um grand-jetê. Têm muito de impulsividade, de ver-satilidade, de improvisação, de instinto, para poderem esparti-lhar-se numa descrição rígida, como a de certas danças monó-tonas, de desenhos fixos e limitados, como um vira ou uma ta-rantela. Já o dizia Mário de Andrade: " A coreografia do fre-vo, justo o que êle tem de mais extraordinário e rico, é extre-mamente frágil, sujeita à influência, à inventiva individualis-ta, infensa a se tradicionalizar".

(65)—"Danço frevo desde menino. Criei vários passos: "peru na chapa quente" (envergadura no corpo) ; "tesoura aérea" (saltos cruzan-do as pernas); "todo duro" (sistema de envergaduras sucessivas); "cortando jaca" (pulando com pernas abertas em circunferên-cia) ; "escamado" (saracoteando em diagonal na passarela); "mu-lher carregando menino" (sombrinha e declive nas pernas) e "pa-rafuso" (pernas trançadas com mudanças contínuas de posição) . — Entrevista de Egídio Bezerra, ao jornalista Ney Lopes de Sou-za, in "Jornal do Commercio", do Recife, no carnaval de 1367.

Page 54: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

104 VALDEMAR DE OLIVEIRA

OS PASSOS MAIS TÍPICOS

Eis aqui vão alguns passos já considerados fundamentais, no passo recifense.

1) 0 passista se curva para a frente, mantendo erguidos

os braços e flexio-nando as pernas,

que se cruzam. Apo-iado apenas sôbre iim dos pés, arras-I. a - o, subitamente, para trás, substitu-indo-o logo, pelo ou-l.ro, que por sua vez «o movimenta do mesmo modo — e as-sim por diante. Es-se jôgo imprime ao corpo uma trepida-ção curiosa, sem des-locá-lo sensivelmen-te.

2 ) 0 passista se abaixa, rápido, com as pernas em tesou-ra e logo se levanta, dando uma volta completa na ponta dos pés. Se cruzou a perna direita sôbre a esquerda, vira-se para a esquerda, des-creve uma volta completa e, finda eS)ta, têmo-lo com a esquerda sôbre a di-reita, sempre em te- 0 b o m p a s s 5 s t a é d i g i t í g r a d o soura — tesoura que y e r 0 jte m j êle desfaz com ligei-reza para iniciar ou-tro passo. É o "saca-rolha" ou "parafuso" . Às vêzes, antes de desfazê-lo, cai com todo o pêso do corpo sôbre o bordo exter-no do pé da frente e salva bruscamente o descaimento, liber-

PKÊVO ; CAPOEIRA E «PASSO» 105

tando o outro pé. Outra, depois do cruzamento inicial das per-nas, dá meia volta e, na ponta dos pés, empina o busto com os braços para o alto, corno se oferecesse os peitos ao cho- - " que brutal de um coropanhei- •• -.x-v. ro. Sã»' os "saltos torcidos" » ; . de que fala Ri-os atribuindo-os a provável ori- flL L ^ ^ ^ g U Ê r n é P gem indígena, isto é, aos ca- 3 » . • J fo h/S iboclinhos. Talvez tenha ra- "ET ' ' w r v *

3) O passista cruza as " '*" " Á ^ p k i ^ S * pernas (nada é mais comum ,-~yJ : no passo) e. mantendo-as - * • ;X";- •. • cruzadas, desloca-se em pas- y i -^''sis:;'!®*'..- l sinho miúdo para a direita íp ® ; ou para a esquerda, descain- - ^ « w ^ B r í ã do o ombro do lado para on- & ^ Mmf . > de se encaminha. Alinhai :••. . -o movimento molengo de gf ' ^ " quem vai por uma ladeira abaixo, com uma estacada súbita. Volteia, retornando, então, ao grosso da multidão. É o "de bandinha".

4) O passista, com os braços para o alto e as nádegas empinaclas, aproxima e afasta os pés, ou caminha com as per-nas arqueadas e bamboleantes. É a "dobradiça".

5) O passista se curva profundamente ao mesmo tempo que se abaixa, rodopiando num pé só, em cuja perna se aplica, flexionada, a outra perna, ajeitando o peito do pé à pantorri-lha ou à dobra cio joelho. Toma uma atitude de quem risca a faca no chão. É o "eorrupio" (66) .

6) O passista adianta uma das pernas, jogando para frente o ombro do lado da perna que avança, o que faz ora à direita, ora à esquerda, alternadamente, na posição de quem força, com o pêso do ombro, urna porta. Êste passo, se se en-contra parceiro, é feito vis-à-vis. Constitui uma variante, es-tilizada, da ginga.

Aplicação do bordo externo do pé, num "parafuso". (Do "Traveis in

Brazil")

(66)—"São dos tais momentos em que o mesmo tiro apanha o mocotó e a cabeça, como na história do caboclo" . •— SAMUEL CAMPE-LO, "Quem foi que inventou o frevo?" , in "Anuário da Federa-ção Carnavalesca Pernambucana", 1938.

Page 55: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

55 VALDEMAR DE OLIVEIRA

7) 0 passista descreve, espigado, com leve inclinação para o lado respectivo, a passo miúdo, um círculo, como galiná-ceo que corteja a fêmea.

^ ^ ' t d • * -

n u ^ ' " ^ » >• ^ ^ ^ ^ É o "chã de barrriguinha". Se são as nádegas que se tc- -JH» • • cam, o que não é comum, " tem-se o "chã de bundinha". >?,

11) O passista se verti ca- ' liza afoitamente, espiga o J S busto, levanta os braços e .'. . ' Hü caminha em passo miúdo, „ x „ . , ,. -

Foto referente a figuração do mudando os pes em movi- jtein g (Hess) mentos saccadés.

. 0 Passista dá uma volta no ar, de braços arqueados, caindo com as pernas cruzadas. Melhor dito: com os tornoze-los cruzados, apoiando-se, pois, sôbre os bordos externos dos pes. Desfaz a cruza e parte para outra figuração.

13) O passista dá grandes saltos, para um lado e para outro, mantendo estirada a perna do lado para onde se dirige e tocando o chão com o calcanhar.

14) O passista ergue os braços, em grande V, afasta as pernas e dança assim, ora apoiando-se sôbre os calcanhares,, ora sobre a ponta dos pés, isto é, sôbre o face dorsal dos arte-lhos,_que se curvam para baixo. "Ponta", no sentido do balé clássico, não há no passo. O que há, entre os virtuosi, é o re-

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

curvamento dos- artelhos, a que acabo de referir-me, utilizado, também, com as pernas cruzadas, ora funcionando um dos pés, ora os dois.

Os passos des-critos são, por as-sim dizer, os fun-damentais ou clás-sicos, por mais es-palhados, aquêles em que o gênio do povo mais se apu-rou. Mário de An-drade os chamou "os mais tradicio-nalizados", s e m embargo de afir-mar que, "muito recente de forma-ção, a coreografia do frevo ainda não se fixou nu-ma normalidade que nos dê confi-ança na sua per-manência nacio-nal" .

O JÔGO DOS BRAÇOS

Com uma blusa "à la cubana", o passista parece pular poças. Ver o item 9

Traço que não deve escapar, na apreciação analí-tica do passo, é o jôgo dos braços, nunca o mesmo para tôdas as suas variantes. Têm sua eloqüência na plástica das atitudes. Erguem-se, às vêzes, esticados. Disse alguém que isso representava defesa dos lança-perfumes. Inexato. O lança-perfume, dentro da "onda", era excepção à regra geral. O povo não se dava a tais luxos. Em mil, havia um. Ademais, o lança-perfume de vidro, que convinha defender dos encon-trões, durou pouco, logo substituído pelos de metal. Outras vê-zes, os braços pendem ao longo do corpo banzeiro, exprimindo

Page 56: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

Illll VALDEMAR DE OLIVEIRA

Reparar no movimento de braços desses autênticos passistas. (Benta)

lassidão estudada, parecença com bêbedo derreado. Ainda ou üas , muito comuns, quando o passista se entretém num i ô í o macio de pes, o braço, caído naturalmente, forma ânguk, reto com o antebraço e, este, outro ângulo reto com a 2 pendi

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

da e ruolenga. Era certas atitudes, de corpo que se abaixa su-bitamente, são os braços que, jogando-se arqueados para o alto, ecmilibram o homem.

O JÔGO DOS PÊS

Em tôda essa co-reografia, de espan-t o s a versatilidade, também não deve es-capar o importante papel reservado, pelo passista, aos pés. A constante a t e n ç ã o que neles põe (o pas-sista gosta de dan-çar de cabeça baixa, como violinista que gosta cie olhar para os dedos da mão es-querda), m o s t r a , desde logo, que a mestria da dança de-pende muito de sua utilização, imponde-Ihes, para repetir Mário de Andrade, "uma vivacidade e uma variedade de movimento perfeite-m e n t e equiparável às das coreografias de mãos cie certos povos orientais". Os pés d o s passistas (observe-se a descri-ção, já feita, dos di-versos passos) são utilizados pelos seus bordos externos, pe-los seus bordos in-ternos, pelo comum de "ponta de pés" (apoio sôbre os metatar-sos), pelos seus calcanhares e, ainda, por "pontas" com que não sonharam os melhores bailarinos, porque o apoio se dá no dor-so dos artelhos de ambos os pés, por vêzes ao mesmo tempo. A

O passista, egocêntrico, olha sempre para os pés

Page 57: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

110 VALDEMAR DE OLIVEIRA

flexão digital se dá alternando, ritmicamente, com sua disten-são. Ainda nesse ponto, o passo trai sua origem: o capoeira se servia mais dos pés do que das mãos, chegando a colocar, en-tre os artelhos, a navalha com que atingiria a face ou o pesco-ço do adversário, com os seus tremendos "rabos-de-arraia". Fora isso, neles confiava para a agilidade e segurança de todos

os seus golpes. O passista é,

A foto mostra a "ponta" de artelhos c l ° c a r a n g u e j o " , de g r a n d e s recurvos, no "passo" pernas abertas, andando de

„ um lado para outro, a cabe-ça balançando, como desnorteado. Imita-se a ema, o bêbedo, o macaco, o idiota, o epiléptico, o pederasta ( 6 8 ) . Mas, isso já não é passo. É compasso de espera de algum se-mostradeiro, para mergulhar de nôvo na "onda" .

(67)—"Posições ridículas, gestos simiescos, a dança alucinada, ou a ca-ricatura da dança, eis a primeira impressão visual do f r e v o " . — EROS VOLUSIA, in "Vamos ler" , de 25 de janeiro de 1951.

( 68 )—"O frevo é verdadeiramente acrobático e as acrobacias a que obri-ga distinguem-se, tôdas, por muito de coreogràficamente impre-visto e, mesmo, anatômicamente monstruoso. Compele ao fingi-mento de anomalias horríveis e de aleijões inéditos. Não pode existir, em todo o universo, dança que mais desarticule e defor -me . E,. nada obstante, representa um dos espetáculos mais em-p o l g a n t e s . . . " -^ .BENJAMIM LIMA..

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

O passista plantígrado (por força da idade) é visto por Carlos Amorim

Outros passos são referi-dos (69) entre os mais pito-rescos: o do "frango assa-do", com os punhos fechados à altura da cintura e os ân-gulos dos cotovelos para fo-ra, imita a clássica posição da ave morta e preparada para a mesa; a do "calça-mento nôvo", o passista pi-sando cuidadosamente, como se atravessasse chão de ci-mento fresco; a do "mete os peitos", atitude de "espalha-brasa", que dança na marra, provocando briga; a de "Quem vem lá, negão?", à qual se atribui intenção fra-terna à vista de algum re-cém-chegado, se não é, por hipótese, reminiscência de capoeira galo-de-terreiro.

Que em tudo isso esteja presente o espírito do ca-poeira avoengo, ninguém po-de negar: no investir, no fin-gir que apara golpes, que puxa faca, que a risca no chão, que ataca um passante e foge no seio da maçaroca

humana, sempre àgilmente, como bom ginasta. Mas, insisto: cada. um faz por si, jogando com sua imaginativa, tal se esti-vesse esgrimindo fantasmas, sem querer brigar, que hoje nin-guém briga mais no frevo. São coisas que, de vez em quando, ressuscitam da subconsciência da raça e vêm à tona do san-gue quando êle ferve.

Dependendo tanto da inventiva popular, sendo, como é, de natureza folclórica, o passo tem assimilado certas figuras co-reográficas de danças importadas. Comuns são os traços de danças norte-americanas aqui chegadas e exibidas em teatros populares, o Helvética, o Parque, outros, mais modernamente nos filmes musicados. Do cake-walk alguma coisa ficou, como

(69)—Informação . que me presta Benício Whatley Dias, um dos mais inteligentes 'observadores de nossa paisagem social e humana.

Page 58: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

100 VALDEMAR DE OLIVEIRA

ficou do charleston (ainda hoje se vê o jôgo de braços a alter-nai1 com as pernas ílectidas), do shimmy (busto tremelicando), d<- outras. O passo de cócoras, com o jôgo das pernas alterna-damente jogadas para dian-Ic, é copiado, servilmente (monos no cruzamento dos braços) de danças de cossa-COM que andaram pelo Reci-fe, há muitos anos passados. I )u mesma maneira, de con-JIIII Los slavos folclóricos f i -caram os grandes saltos com abertura das pernas nos ares, típicos de danças da Ucrânia ou da Geórgia.

Só em algumas dessas po-sições se pode falar em acro-bucla, segundo a accepção vulgar. No mais, se há de ver o passista alternar pas-sou difíceis, fatigantes, com solicitação mais viva da fle-xibilidade e cia elasticidade muscular com outros, suaves, influência, no "passo", dos grandes brejeiros, onde' se exprime saltos da coreografia eslava a malemolência, que não che-

ga nunca ao sensualismo. O melhor passista será, talvez, o que melhor saiba alternar êsses dois extremos do passo, tal e qual sucedia, antigamente, com o maxixe que nem sempre era agi-tação, frenesi de "balão", remeleixo de parafusos, mas, tam-bém, lascívia contida, bamboleio discreto, macieza ondulosa.

O GUARDA-CHUVA

Já é tempo de fazer entrar em cena o guarda-chuva do pas-sista, sem o qual não lhe é possível caracterizar-se como tal. Trata-se de um guarda-chuva velho, de umbela esbandalhada, por vêzes com um pão de tostão espetado na ponteira. Era coi-sa comum, principalmente durante o dia (que guarda-chuva também é chapéu-de-sol. . . ) Hoje, está em desuso, pois até uma umbela estragada é rara e, portanto, cara. Não se estranhe a sua escassez, nas mãos do passista, numa época em que até a bengala se fo i . Sôbre êsse elemento, que entretanto não falta

FREVO, CAPOEIRA E «PASSO» 101

em mãos do passista legítimo, muito se tem escrito, na busca de sua origem.

Para Mário de Andrade, o guarda-chuva do passista é "uma desinência decadente (e generalizada pelo auxílio de equilíbrio que isso pode ciar) dos pálios dos reis afri-canos até agora permaneci-do noutras danças folclóricas nossas. Nos Congos, por exemplo. O chapéu-de-sol do nassista seria assim uma so-brevivência utilitária dum costume afronegro permane-cido entre nós".

Tive ocasião de discordar do autor de "Macunaima", ao escrever: "Não penso as-sim. Creio mais numa trans-nlantação, para a folia do frevo, de um objeto muito usado no bumba-meu-boi, pe-

lo Engenheiro, pelo Médico, pelo Capelão. Nem acredito que essa filiação tenha origem afronegra, sendo ao contrário, pu-ramente regional, de raízes mestiças. De fato, é clássica, nos flagrantes cios desenhistas do século XIX , a figura dos que vêm de visita às casas-grandes, escanchados em cavalos e de chapéu-de-sol aberto. As danças do bumba-meu-boi, que inspiraram tantas das atitudes coreográficas do passo, oferecem, sempre, êsse elemento decorativo, que atende a necessidades de equilí-brio. Se não é reminiscência do bumba-meu-boi •—• no que es-tou mais propenso a acreditar — será um dos muitos troços de que o folião se apodera nos socavões de casa, para cair no f re -vo de manhã cedo, e cujo uso se generalizou. Que haja, porém, nesse adereço, uma sobrevivência do pálio real dos maracatus, eis no que ponho minhas dúvidas" ( 7 0 ) .

A acrescentar que não se deve colocar de lado a imitação de equilibristas de arame e corda bamba, vistos nos circos. Não constitui raridade ver-se um passista, a certa altura, f ingir es-tar a equilibrar-se, seguindo uma linha reta traçada no asfalto por sua imaginação.

(70)—"Conversa com Mário de Andrade" , in "Contraponto", ano II, n.° 7, Recife, março de 1948.

Page 59: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

114 VALDEMAR DE OLIVEIRA

Outro argumento procura explicar a presença do guarda-chuva do passista: proteção contra a canícula. Não acredito nisso, mesmo porque o mais autêntico nessas peças é a sua im-prestabilidade, pela destruição completa da cobertura, quase tudo reduzido ao esqueleto das hastes. Em decorrência, seme-lhante objeto não atenderia à sua destinação específica. Se al-guns passistas, dêsses que dançam para turistas, utilizam um chapéu-de-sol novo, colorido, pequenino, às vezes, como se vê em mãos de mocinhas, uma sombrinha, isso representa, pura e simplesmente, uma contrafação. O verdadeiro chapéu-de-sol do passista não lhe passa por debaixo das pernas, num salto igual-mente falso, como essas jovens fazem com suas sombrinhas le-ves . Mulher, aliás, pode esbaldar-se em exibições de -passo. Não

O pevo em pleno frevo. Hn, pelo menos, sefc guarda-chuvas. (Berzin) Notável figura de passista. (Berzin)

Page 60: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

1 VALDEMAR DE OLIVEIRA

convence nunca. Fal-ta-lhe virilidade, a virilidade indispen-sável ao combate da dança. Passo não se fêz para ela.

Não percamos de vista, neste assunto, uma explicação que me pareceu convin-cente : o capoeir nunca deixou de ter alguma coisa à mão brandinclo-a no alto da cabeça, utilizan-do-a como elemento de equilíbrio — o ca-cete (criou-se, até, o neologismo "cacetei-ro", para designar o exímio no seu ma-neio), a bengala ou o bengalão (sôbre os quais se poderia es-crever um volume), um pedaço de arco de barrica, a haste principal de um guarda-chuva torna-do instrumento per-furante e contunden-te, uma lagôa-sêca autêntica, um pu-nhal arrancado da axila esquerda, o seu próprio chapéu de feltro, dobrado.

O passista, descen-dente direto do ca-

Passistas vêem morrer mais um dia de carnaval P , o e l r ^ ' d i s p e n s a -(Berzin) ria algo a mão, que

não fôssem, está cla-ro, objetos usados pelos seus mestres (71) . Atuando indivi-

(71)—"Se acontece ser acometido, quando desarmado, machuca o cha-péu ao comprido e nas evoluções costumadas desvia com êle gol-pes certeiros". — MELO MORAIS FILHO, op. cit., pág. 434.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

dualmente, valeu-se do chapéu-de-sol encostado a um canto da casa, com a circunstância de poder transformá-lo, em caso de emergência, em arma poderosa de ataque. Atuando coletiva-mente, na formação dos cordões da cauda dos clubes, adotou símbolos que, valorizando a própria denominação do clube, im-punham uniformidade e emprestavam um caráter definido à agremiação. Assim surgiram, permitidos pela Polícia e minia-

O passista e sua sombra. (Rabelo)

turais, a pá, a vassoura, o machado, o abano, etc. — nas "Pás" , nas "Vassourinhas", nos "Lenhadores", nos "Abanadores", etc. para citar, apenas, algumas agremiações. Todas possuem, po-rém, ainda hoje, o seu símbolo próprio, pespegado à extremi-dade de um pau, conduzido pelos componentes do "cordão" . No f im de contas, eram (e são) inocentes sucedâneos dos ca-cetes e das bengalas dos capadócios destronados. Com isso, en-ganavam a Autoridade e se sentiam, a seu modo, capoeiras. Parece-me, esta, a explicação melhor para o fenômeno, sendo

Page 61: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

118 VALDEMAR DE OLIVEIRA

a pior, certamente, a de o guarda-chuva servir para nele transportar, o passista, o seu lanche, isto é, o pão. Para mim, êsse pão, presen-te, às vezes, na extremidade da haste central do arcabou-ço, deve ter surgido com o advento do "Pão Duro", clu-be pedestre cujo símbolo, feito de madeira, é precisa-mente êsse.

Resumindo: no debate em torno da tradicional peça, inclino-me a acreditar numa atitude calculada dos primei-ros passistas: não podendo conduzir cacetes ou benga-lões, valiam-se do chapéu-de-sol, mesmo escangalhado, pretextando livrar-se do mau tempo. Com o quê, ludibria-vam a Polícia. E o chapéu-de-sol f icou. tini guarda-chuva já pelo avêsso

(Rabelo)

CAPÍTULO VIII

A VIBRAÇÃO PAROX1STICA DO FREVO S REALMENTE UMA COISA ASSOMBROSA. JÊ, ENFIM, ÜM VERDADEIRO «ALLEGROs. NUM «PRESTO» NACIONAL. É, SEM DOVI . DA, O ENTUSIASMO, A ARDBNCIA ORGÍACA, MAIS DIO-NISÍACA DE NOSSA MÚSICA NACIONAL. E AQUELE R A P A Z QUE DANÇOU! MAS, SERA POSSÍVEL QfJE UMA COREOGRAFIA ASSIM AINDA SE CONSERVE IGNORADA DOS NOSSOS T E A T R O S E BAILARINOS? QUE BELEZA! QUE LEVEZA ADMIRÁVEL! É UMA FONTE R I -QUÍSSIMA. É UM VERDADEIRO TÍTULO DE GLÓRIA, QUE O PAÍS IGNORA, SIMPLESMENTE PORQUE ENTRE NÓS AINDA SÃO MUITO R A R O S OS QUE TÊM VERDA. DEIRA CONVICÇÃO DE CULTURA.

MARIO DE ANDRADE

Sexualidade. Religiosidade. Dinamogenia do "pas-so". O excitante sonoro. O estímulo visual. Ecolo-gia do frevo. O "passo" — diversão gratuita. Os idos de 1925. Estilização do "passo". O declínio do "passo". Causas sócio-econômicas. A competição com as Escolas de Samba. Sugestões pa-ra a salvaguarda da música e da dança.

Page 62: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

SEXUALIDADE

ão a descubro, no passo. Claro, a inhaca do negro sempre atiça o sentido. Ocorrem oportunidades bem aproveitadas, amor é coisa sempre presente, mas, o passista não está pen-sando nisso. Começa que a percentagem de mulher, no frevo, é diminuta. Num mexido de passistas, o que há mesmo, em maio-ria esmagadora, é homem. Mulher que aparece é meretriz, de porta aberta ou clandestina. De raspão, grupos de moças que abandonam o corso ou as cadeiras na calçada para dar uns mer-gulhos na "onda". Acabam enjoando a parada. Aparecem cria-dinhas de braço dado a outras, mas, preferindo a periferia da massa humana, namoradas por um e outro, que tem de deixar o frevo, se quiser entendimento. A voluptuosidade comum nas celebrações fetichistas absolutamente não existe no jmsso.

A paixão por sua dança é tão grande, no passista, que não dá lugar a nenhuma outra. Êle se entrega de corpo e alma aos seus espasmos musculares, se interioriza, de olhar pregado no chão, nos pés. E sozinho, inalteràvelmente sozinho, como um franco-atirador. É uma dança egocêntrica, no meio de uma multidão de egocêntricos. O sexo não tem vez nela. Os recal-ques libertados são de outra natureza, se existem. Talvez por-que, como opina Pessoa de Morais, "o verdadeiro êxtase em que êle (o passo) se realiza já se encontra sublimado no movimen-to de rapazes, moças, velhos ou jovens, já exprimindo tôdas as tendências interiores contidas, inclusive as sexuais" (72) .

E já que estamos com a mão na massa: não é raro que, em eima de palcos, em terraços de clubes, em exibições para foras-teiros, surjam mocinhas dançando o passo, algumas já profis-sionalizadas. Dançam bem, quase sempre, mas, são "falsas"

(72)—"Daí , ser o frevo mais auto-suficiente (do que o samba); mais individualista; mais subjetivista, precisando muito menos de com-pletar-se em alguém. Ou melhor, já se apresentando na sincronia

" louca dos seus movimentos e do seu arrebatamento, como uma espécie de auto-realização completa: não necessitando parecer se-

xo, porque, o sexo já está nele realizado". — PESSOA DE MO-RAIS, op. cit., pág. 50/51.

Page 63: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

122 VALDEMAR DE OLIVEIRA

com suas sombrinhas de seda, a que j á aludi, dividida em tri-ângulos coloridos, seus calçõezinhos justos, suas blusinhas à cubana. Sente-se uma sofisticação generalizada. E tudo por-que o passo, insisto nisso, não é dança feminina, mas, especifi-camente, dança de homem, abusiva, largada, tempestuosa, não se adornando com a graça e a leveza da mulher, também com sua sensualidade capitosa, tão espalhada no samba. Repito, pois: tècnicamente, algumas dessas passistas são aceitáveis, mas, algo lhes falta na natureza física, o relêvo muscular, a garra do macho, o cachet de um autêntico dançarino popular. Em conjuntos folclóricos eslavos, as "acrobacias" são adstritas aos homens, reservada às mulheres a graça das figurações pró-prias ao seu sexo, coisa em que, por sua vez, são insubstituí-veis. Ligada, por herança, à capoeira, sabe-se que, a essa for-ma de diversão (no melhor sentido do vocábulo) não compare-ce mulher. Há, nisso tudo, uma implicação da tradicional va-lentia pernambucana, "valentia, acentua Pessoa de Morais, mui-to valorizada socialmente, porque tida em alta conta como ex-pressão característica de valores patriarcais. Valores que exal-tavam a figura viril do macho na sua função, nas classes mais altas, de dominador quase absoluto de terras e de mulheres".

RELIGIOSIDADE

Dança democrática por excelência, da qual participam, sem pedir licença, sem pudores ou escrúpulos tolos, na plena e hu-milde consciência do nivelamento social, ricos e pobres, negros e brancos, meninos e velhos (um dos mais conhecidos passistas do Recife já dobrou â/ C&SCL dos 80. . . ) o frevo (aqui conside-rado como dança coletiva), mereceu de escritor para mim anô-nimo, palavras que me parecem interessantes: "é um baile an-dando pelas ruas com tôdas as pessoas que pretendem seguí-lo realizando, cada qual, isoladamente, os passos que saiba e que possa fazer. Na representação dêsse bailado, cujo palco é a rua, não há divisões ou perspectivas de planos, nem diferenciações de categorias de intérpretes. Todos, como solistas, são astros, a seu modo" (73) . Mas, sem religiosidade alguma. Nada que lembre os transes místicos dos negros aos seus deuses-lares, nem a vassalagem às potestades do rnaracatu, nem invocações de "caboclinhos" aos seus tupãs. Nada que revele crença, fé,

(73)—Não se assimile a expressão "baile andando" às chamadas "dan-zas andadas", cujo f im era, apenas, "regular o passo de uma mul-tidão". — apud padre JAIME DINIZ, op. cit.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

obediência, temor. Nenhum vestígio de lendas,, mitos, supers-tições. Mesmo em certas atitudes de êxtase, de renúncia, de abandono, não descubro ascensão espiritual, integração no ideal ou no absoluto. Simplesmente cansaço, fadiga, mn es-tado de repleição física. De orgasmo trabalhoso.

Só uma coisa o passista respeita, dentro da multidão: a fanfarra, que vai no meio como um tabu. O músico que so-fre um empurrão acidental, olha de lado, assunta, ninguém lhe diz nada. A fanfarra é como andor no meio do formigueiro de uma procissão. L. • • '"

O E X C I T A N T E SONORO

A corrente dinamogê.nica do passo é mais alternada que contínua. Oferece, dentro da partitura musical, pausas para o repouso — para o repouso dos músicos e para o repouso dos passistas. Isso é muito curioso. Tudo se processa conforme o esquema seguinte. A introdução do frevo, como já vimos, é vio-lenta. A criatura cai fundo no passo. Sob o excitante metal, o passista dá o que tem — e o que não tem. Mas, os primeiros compassos da segunda parte reduzem, de muito, o impulso ini-cial, pela menor intensidade do estímulo. A multidão se entre-ga a um repouso relativo. Mobiliza novas energias. Toma fô-lego. Do 8.° ao 13.° compassos, porém, os metais pegam de no-vo, com vontade — e o passista retoma o passo, se esbandalha, para logo descansar no restante da parte. A volta à introdu-ção o arrebata, sem mercê. É um f im de mundo: sem um pro-testo, sem uma queixa, sem um insulto, sucede o bailado. Quem dissesse que são muitos, por fôrça da loucura geral, os encon-trões, os acotovelamentos, as pisadelas, os choques brutais, não estaria falando a verdade, pois, a dança dispõe de recursos ex-cepcionais para reduzir ao mínimo os atritos entre os corpos, podendo dizer-se que é, em última análise, uma dança de nega-ças, como de resto o era a capoeira. Finalmente, decorridos uns dez minutos, o acorde final é recebido com uma exclamação do tristeza, misturada ao desafogo cansado do pugilista que há muito espera a pancada do gongo, para um intervalo restau-rador.

O melhor passo que se dançava era no bairro do seu berço, no Recife: São José, demogràficamente denso, sede de grandes clubes, gente da classe média, com suas ruas estreitas, mal ilu-minadas e, sobretudo, mal calçadas. O piso uniforme do calça-mento moderno rouba ao passista uma das forças de sua inven-ção — a irregularidade das pedras. Além disso, a multidão se

Page 64: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

64 VALDEMAR DE OLIVEIRA

lorna, nas avenidas modernas, menos densa, mais fluida, re-duzindo os contactos e, portanto, amortecendo o entusiasmo do IVevo.

O ESTÍMULO VISUAL

Ainda outra observação: há um misterioso estímulo visual tio.", archotes ou lampiões que alumiam a multidão (ou alumia-vnni), indo com ela, conduzidos por dois ou três moleques, ar-rliol.es que se encontram, também, nos maracatus, destinados, Iodos, ao alumiamento mínimo das antigas ruas escuras do Re-cife urbano ou rurbano. Vão desaparecendo, pouco a pouco, lornados, talvez, mais adorno, pelo colorido de que se cobrem, do que outra coisa. Mas, a verdade é que desempenhavam uma fiiNçilo. À luz dêles, reluzem os metais das fanfarras como chis-|I,-IH de fogo no fundo negro da rua. A obscuridade constitui um convite ao frevo. Não há passista bom que prefira o centro da cidade, bem iluminado e bem calçado, às ruas dos bairros próximos, que têm, para êle, encantos de terra natal. Aí é que lhe vem aquela sensação de totalidade com que se entrega ao Imimo, como um místico à adoração do seu deus.

Agora: o que se não deve esperar é que tôda a gente meti-dii nus multidões dos clubes-de-rua do Recife saiba fazer, ou CM loja fazendo, o verdadeiro passo. Muitos acompanham o po-v.nvu, tentando, ensaiando, aprendendo. Porisso, muito frevo c poderá ver sem se ter visto o passo. Os bons passistas, de corpo de mola, elásticos, desconjuntados, se destacam logo, co-mo lécnicos, e é nesses que se deve pôr atenção, porque êles me-recom. São os únicos que aprenderam os ritmos essenciais do frevo. Os únicos que verdadeiramente se atomizam, para uti-lizar expressão alheia, orgulhosos de sua afirmação individual.

(!omo não há doenças, mas, doentes, bem se poderia dizer há passo, há passistas, porque cada um dêles reage di-

ferentemente ao excitante sonoro. Se a fanfarra está por per-lii, produz-se, por assim dizer, uma saturação acústica, seme-lhante à dos zabumbas cujo martelar leva ao transe, nos cultos alVo-brasileiros. Se está mais longe, pouco se ouvem os saxo-fones. Em compensação, cada "rasgado" dos metais, cada pe-Iclocada sua, cada crescendo em altura e em intensidade sono-ra, vencem a distância e o passista se sente motivado somente pelos fragmentos musicais que lhe chegam. Basta-lhe ouvi-los de longe, de muito longe. Já o limiar da sensação auditiva é uUngido, desencadeando a resposta pronta. A multidão que es-pera é tocada como um músculo de perna de rã alcançado por uma agulha eletrizada. Confusa e irrequieta, essa multidão ofe-

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

rece uma soma de aspectos que o olhar do observador não con-segue abarcar em sua totalidade. A impressão global é a de uma loucura coletiva, em que ninguém é estranho ou intruso, pode fundir-se na massa sem cerimônia. Para citar palavras alheias: "delírio coreográfico em cuja composição parecem ter colaborado a acrobacia, a luta do tacape, a técnica vertiginosa da capoeira e a dança de São Guiclo" (74) .

Uma coisa é certa: o passo não pode ser dançado sem mú-sica. A afirmativa parece ociosa. Vale, porém, contra outra, feita por um mestre do passo — Egídio Bezerra — para quem a música é dispensável ao passista. Conversa. Da capoeira, es-creveu Jorge Amado que é preciso "o berimbau, o pandeiro, o reco-reco, a agogô, a coragem e a lealdade. Ou só o berimbau e o agogô. Ou nada: apenas a agilidade, a coragem e a lealda-de" . Com o passo é diferente. O passista só se sente motivado quando ouve os metais da orquestra. Antes disso, pode ensaiar um ou outro passo, como jogador de futebol experimenta os músculos antes do apito inicial do juiz. Vista do alto, nesse momento, a multidão é um formigueiro sossegado. Logo que o frevo explode, é um formigueiro assanhado.

FORMA DE PROTESTO?

Tecla batida por sociólogos: atribuir ao passo e ao frevo, aqui considerados forma individual e forma coletiva de dança, um extravasamento de anseios longamente reprimidos, espécie de insopitada explosão de recalques, "escape eficaz de tensões íntimas, libertação de cangas postas por êle mesmo" (75) .

Parece-me, ao contrário, o passo, uma diversão gratuita, "mais próxima da filosofia do que da sociologia", nada tendo a ver "com protestos, recalques ou dores do mundo". É alegre, inocente, desinibido, livre, "sem patriotismo nenhum" (76) . A praga do protesto ainda o não atingiu. Frevo e va-sso se com-portam desinteressadamente, oferecendo ao homem a oportuni-

( 74 )—AYDANO DO COUTO FERRAZ — "O que é o frevo" , in plaque te da Exposição de Augusto Rodrigues, Rio, 1942.

( 7 5 ) — " . . . um sentido de fuga quase dramático, como no frevo ou me-lhor, em sua dança típica —- o passo". — PESSOA DE MORAIS, op . cit., pág. 49.

(76)—"Antes de ser uma fuga, um desaguar de recalques ou complexo de tensões de um sistema, o frevo nos parece ser um estado de espírito s o m e n t e . . . " — J. GONÇALVES DE OLIVEIRA, em artigo de jornal.

Page 65: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

126 VALDEMAR DE OLIVEIRA

dade de se divertir, como, aliás, lhe dão outras músicas e ou-tras danças, no curso do carnaval, época durante a qual " frus-trações precisam ser compensadas e os recalques destampados" (Renato Carneiro Campos) . Tudo se faz sem participação da consciência, ao contrário de bebedeira premeditada. Destruin-do a pessoa convencional, o carnaval é, em sua própria essência, alegria. Os que tentam aproveitá-lo circunstancialmente como instrumento de propaganda política, não o respeitam como pau-sa de repouso, no curso normal da vida. Como a do trem que, numa parada, descarrega o vapor fumegante de suas caldei-ras. Isso de evasão, de desabafo, de revoltas íntimas compri-midas pelo preconceito, pelo desnível social, pela impotência do revide, não pertence, especificamente, ao passo, mas, ao car-naval .

Nada foi mais significativo, na história do nosso carnaval, do que o advento do Jóquei Clube, como rival do Clube Inter-nacional. na área carnavalesca. Sob a presidência de José Mar-ques de Oliveira, um dos endinheirados da época, o Jóquei inau-gurou bailes carnavalescos que constituíram chocantes muta-ções no sisudo carnaval até então inteiramente confinado, pelo menos no âmbito da alta sociedade, ao Internacional. Destam-pavam-se recalques de anos e anos, determinados pela política do clube da rua da Aurora, dominado pelo coronel Rosa Bor-ges. A tradição de intocável compostura coreográfica em que se desenrolavam os bailes de então foi bruscamente quebrada ne!o Jóquei, onde, depois de meia noite, as casacas e os decotes caíam em pleno esbagaçamento do passo. E é possível afir-mar : sob um nirvânico estado de pureza, porque o saracoteio partia cie pessoas um tanto encabuladas entre si, mas, com o consolo da vergonha geral. Nada passou a ser mais difícil, nos bailes do Internacional, do que conter, dada a meia noite, o êxo-do em demanda do Palacete Azul. A alta sociedade recifense beijava a pedra de sua antiga devoção — e logo se mandava, de olhos fechados e coração aos pulos, para o frevo dos três salõe-zinhos do Jóquei. Conhece-se a história: o Internacional ba-queou. Diretorias seguintes afrouxaram as rédeas, mas, ao mudar-se para o Benfica, o clima mudou: frevo e passo, daque-le jeito sofisticado nosso conhecido, tiveram franquia — e im-peraram, enquanto o Jóquei desmaiava na vida social do Re-cife .

ESTILIZAÇÃO DO PASSO

Música de 2 /4 não falta a qualquer carnaval. Gente dan-çando com ela, arrastada naturalmente, fazendo gatimônias e "cobras", também não falta. Creio, porém, que não há, no mun-

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

do inteiro, um binário tão sacudido, tão pessoal, tão típico co-mo o do frevo, nem dança tão estranha e tão expressiva, pelos seus modos e "conchamblâncias" (77) , como o passo. Jorge de Lima escreveu, certa vez, que "tôdas as outras danças, por

Um desenho de Naval

exemplo, o maracatu, podem ser estilizadas em suas figurações pelos eruditos, menos o frevo, justamente pelo cunho irreduti-velmente selvagem que há nos menores movimentos e atitudes dos dançarinos". Discordo. O passo, apesar de arbitrário e ver-sátil, possui fundamentos técnicos e não exclui, antes convida, ao virtuosismo coreográfico. Se um Lifar o visse, vivido por um passista de primeira água, estou que imaginaria qualquer coisa de extraordinariamente bela e forte, lá na sua coreogra-f ia . E sua estilização ficaria para sempre na memória do mundo.

Já os^artistas do pincel e do lápis puseram tenção nêle. Ar-tistas, aliás, todos êles pernambucanos, o que se explica porque

(77)—Vocábulo empregado por expansão, entusiasmo, satisfação: "Os suhieiros, alegres, pintaram o demônio nas conchamblâncias de um frevo macho" . ("Jornal do Recife" , n.° 53, de 1914).

Page 66: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

VALDEMAR DE OLIVEIRA

mais fundamente tocados pelas graças cia paisagem humana de nua terra. Luiz Soares, Augusto Rodrigues, Nestor Silva, Lula Cardoso Aires, Manuel Bandeira, Zuleno Pessoa, Wilton de Sou-/,a, Carlos Amorim, J . Tavares, outros muitos, nos deram, em algumas de suas telas, uma visão do frevo, não raro clesaguan-

J. Tavares surpreende um passista em pleno "esbagaçamenío"

do em painéis de impressivo efeito pietórico, como os de Lula e cie Zuleno. Outros têm preferido fixar o passista isoladamen-te, como fêz Augusto Rodrigues, que mais parece tê-lo arranca-do, com uma pinça, da "onda" de uma manhã de domingo-gor-do, na Pracinha, para jogá-lo ao papel. Já estudei, em traba-lho anterior, êsses magníficos flagrantes oncle a espontaneida-de do traço caricatural, o equilíbrio plástico cias figuras, a as-similação profunda do grotesco identifica o passista em suas

Fainel de Lula. Observar a "constante" do guarda-chuva

Outro painel de Lula. O "bo i " do "bumba-meu-boi" carnaval do l iecife

comparece ao

Page 67: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

130 VALDEMAR DE OLIVEIRA

atitudes pagãs. Há, acima de tudo, movimento, o movimento que a melhor câmera não fixaria, numa chegada de páreo ou num lance esportivo. Movimento exaltado, em alguns dêles, pe-

lo jôgo arbitrário das som-bras, brochadas ao sabor dos golpes de mão, elas mesmas adoidadas, perdi-das, na dinâmica frenéti-ca. Acompanham, perse-guem o gesto, mas, não se definem no instantâneo pitoresco. Ninguém me-lhor do que Aníbal Ma-chado disse da série de frevo de Augustinho: "O que Augusto Rodrigues quis exprimir não foi o homem dançando, e sim a dança mesma" (78) .

Efeitos semelhantes ob-teve Manuel Bandeira em alguns flagrantes de sa-boroso corte caricatural. Outro traço, outra com-preensão, igualmente jus-ta, por ter apanhado, em momento feliz de evoca-ção, os mais típicos acen-tos dinamogênicos do fre-vo . Sob outro prisma o tem visto Zuleno Pessoa, de visão menos fotográfi-ca, mas, penetrando fun-do no espírito rio passo e

do frevo, ao preferir estudar a massa em conjunto, inteligente-mente distinguindo planos e volumes em telas cie colorido sábio.

Nenhum pintor ou desenhista impregnado dos eflúvios car-navalescos do Recife deixou de lhes gravar, no papel ou na tela, a sua repercussão sobre os seus sentidos. O mesmo se dirá de

Desenho de Manuel Bandeira, para a la. eáição dêste trabalho

(78)—In "Roteiro" , plaquete da Exposição de Augusto Rodrigues, no Rio, 1942.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

Poucos desenhistas fixaram, tão bem quanto Augusto Rodrigues, a dinâmica do "passo"

Page 68: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

VALDJEMAE DE OLIVEIRA

Luía "fotografa", fielmente, um "enfarofado" de passistas

alguns dos melhores fotógrafos do Recife — um Rebêlo, um Berzin, um Clodomir Bezerra, um Arlindo ou um Armando, que não tiram dos ombros a correia de suas máquinas fotográ-ficas, enquanto há sol nas ruas do Recife carnavalesco. Ou quando já não há.

FREVO, CAPOEIRA E «PASSO»

Interessando assim cs artistas, não admira que, um dia, o passo. se lance cio papel para o palco, sen tido e vivido, artística mente, por um mestre do bailado moderno, que pe-netrará nos seus domí-nios como num mundo ir-revelado. Como já tem penetrado, embora em apresentações eventuais, um Walter de Oliveira.

Na ribalta, o "passo" se valorizaria menos pelos lances individuais do que pelas perspectivas de con

? O desenho, de Augustinho, sugere o "chã-de.bundinha"

junto. Não mais, propria-mente, o "passo", isto é, o virtuosismo p e s s o a l , mas, o frevo, como de-monstração coletiva. Uma coisa será lançar no ta-blado um passista, sem re-gra nem lei, entregue à sua inventiva. Outra reu nir dez ou vinte dêles e discipliná-los na busca de um objetivo alto no cam-po da criação artística. Êsse o papel de um coreó-grafo que tivesse sangue pernambucano nas guel ras. E pensasse, como Vi-

Augustinho focaliza, aqui, a presença t o r i n o R i o , q u e " f r e v o é a de elemento coreográfico espúrio m u l t i d ã o p u l a n d o " .

W0E-GIC ««• FE jwjíí n? u - i n j

Page 69: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

O DECLÍNIO DO FREVO

Tema atual, que não pode escapar a um estudo desta natu-reza, é o do declínio do frevo. Embora sempre se tenha falado um pouco sobre isso, constitui, hoje, um fato incontestável, em-bora não ainda um problema trágico, isto é, insolúvel. O nú-mero de clubes pedestres vem diminuindo, sem dúvida. Deve-se notar, por'exemplo, que em 1966, contaram-se nove dêles, no carnaval do Recife; em 1968, seis; em 1970, quatro, para falar, apenas, nos de primeira categoria. Não somente isso: a parti-cipação das multidões, no acompanhamento dos clubes, decres-ce, minguando-lhes aquela espontaneidade antiga e quase desa-parecendo o proselitismo clubístico, parecendo que o passista de hoje faz o passo com qualquer clube que apareça, sem mais a fidelidade que devotava ao de sua íntima simpatia (79) .

Causas sócio-econômicas estão concorrendo para êsse es-tado de coisas, que se agrava ano a ano. Algumas razões po-dem — e elevem — ser enfileiradas, nenhuma delas, porém, irremovível, se os podêres públicos, agindo mais liberalmente — ou pressionando menos, como fazia (e ainda faz) a Fede-ração Carnavalesca Pernambucana, muito roída pelo cupim da politicagem, quiserem intervir, não apenas durante o carnaval, mas, antes e muito antes dêle. Intervir, compreenda-se, para forrar de recursos bastantes as agremiações carnavalescas, pa-ra que possam elas exibir-se condxgnamente, de volta aos seus antigos esplendores •— isso sem tentar modificar hábitos ou traçar roteiros. Ideal seria provocar a fusão de algumas des-sas agremiações, dentro de suas respectivas categorias, evitan-

(79)—•"O frevo de rua vai perdendo aos poucos sua significação. Pelo menos, sua espontaneidade popular de outros tempos, quando a onda humana deixava-se cair no passo em verdadeiro transbor-damento, onde a evasão profunda das emoções atingia a todos quase indistintamente. Agora, em vez da adesão genérica, o que

Page 70: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

142 VALDEMAR DE OLIVEIRA

do, por outro lado, a criação de novas, que parecem nascer de olho vivo nas subvenções oficiais.

l.'or outro lado, impõe-se estimular concursos de passo e, iil.é, fundar cursos intensivos cie aprendizagem dessa dança sin-gular, que representa um tesouro a preservar. Ou nos conven-cemos dessas coisas — ou as perderemos, por incúria adminis-trativa indesculpável.

Muitos clubes têm sido obrigados a deslocar-se de suas an-tigas sedes, situadas mais no centro da cidade, o que lhes per-mitiu vir a pé ao centro da cidade e a pé voltar a elas. Tiveram tio emigrar para os subúrbios, cie onde só se locomovem, por Incrível que pareça, em ônibus, o que representa, desde logo, niiin contrafação de sua própria índole. Alguns vêm cumprin-do louvável programa de benemerência social, começando por organizar escolas públicas, para o quê alargam suas sedes, on-de contudo fica reservado espaço para as danças — manhãs de sol, bailes de aniversário, funções de sábados, etc. Tal pro-grama ou porque os obrigue a despesas altas ou porque deixa lucro fácil, leva-os a ausentar-se do carnaval, sob a alegação de esl.urom empregando suas reservas na construção ou manuten-ção de suas sedes.

Isso é como furtar-se, ostensivamente, à sua precípua f i -nalidade. Foi, entretanto, o que fizeram os "Lenhadores" e as "IVis", cada um por sua vez, nestes últimos anos, levando Ruy Duarte a escrever: "Só mesmo num momento de completo des-prestígio do frevo é que um clube como "Lenhadores" fica au-sente do carnaval, sem que haja revolução. O pernambucano parece conformado com o fato, aceitando-o como natural".

Outro fator : o alto preço cobrado pelos músicos. Explica-se, pondo-se de parte exigências de tabelas por parte da Or-dem dos Músicos: a oferta de executantes é menor do que a procura. O número de bailes carnavalescos se elevou, no inte-rior como na capital. Dali não descem mais para o Recife trom-bo nistas e pistonistas, como antigamente. Talvez êles mesmos tenham escasseado, um pouco por tôda a parte, arrebanhados

há quase são como que sobrevivências dessas antigas expansões coletivas: grupos de passistas nas ruas revivem esparsamente a

explosão popular de antigamente". — PESSOA DE MORAIS, op. c it . , pág. 46.

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO» 137

para bandas militares os que vão aparecendo. A mão-de-obra se reduziu. A que resta se faz pagar caro (80) .

Além de tudo, regista-se o aumento de preços de tôdas as utilidades necessárias ao levantamento de um cortejo que pre-tenda exibir-se, no carnaval, com a dignidade imposta pela Tra-dição. Velhos esteios do clube vão desaparecendo, sem deixar substitutos. As verbas vão minguando, assinalanclo-se grandes injustiças em sua distribuição, o que decepciona e clescoroçôa o esforço sincero por uma melhor api-esentação.

E há, por sôbre isso tudo, a concorrência impetuosa das Escolas de Samba, que dizem ter surgido, no Recife, por oca-sião da última guerra, quando o carnaval pegou muita tripula-ção de navio de guerra nacional folgando pelas ruas da cidade. Descle então, a Escola de Samba enraizou-se, cresceu, deu flor, está dando fruto, sendo o seu número, hoje, o mesmo de clubes-de-frevo de primeira categoria. O sucesso de tais agremiações se funda em várias razões:

a) a estrutura dos préstitos permite apresentação mais variada e regular;

b) a batucada se faz ouvir seguidamente, operando, no espírito popular, aquele lento efeito produzido, nos terreiros dos maracatus ou nas tendas dos xangós, pe-la insistência do ruído frenético, sob um inalterável ritmo, capaz de acordar áfricas no sangue de partici-pantes e de assistentes, levando à saturação, ao tran-se, à entrega absoluta do ser;

c) o cortejo se divide em alas ensaiadas, com determina-do número de figurantes, obedientes aos mestres-salas, desdobrando-se com regularidade, de modo a permitir visão franca e bons golpes de perspectiva;

d) môças e rapazes sambam risonhos, acrobáticos, ima-ginosos, em pura febre de exibicionismo — elas, jo -

(30 )—"O alto custo dos músicos para as suas orquestras (dos clubes) é o fator mais brutal. Êsses músicos, sindicalizados hoje em dia, exigem não somente ordenado na base individual de 16 mil cru-zeiros em cada saída (em 1966), como também farda, refeições e até hospedagem (se vêm do interior) durante o carnaval. Des-pesas de músicos de um Clube de frevo variam de 300 a 500 mil cruzeiros para cada salda — somente em ordenados". — K A T A -RINA REAL — "O folclore no carnaval do Recife" , op. cit., pág. 34.

Page 71: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

138 VALDEMAR DE OLIVEIRA

vens, provocantes, muito senhoras de si, êles ágeis, saudáveis, simpáticos, tudo resultando num espetácu-lo, isto é, não apenas o gôzo individual dos passistas, mas, a ostentação de um agrupamento especialmente preparado para despertar a admiração coletiva.

A Escola de Samba constitui, na desordem carnavalesca, a imagem cia ordem e da disciplina, enquanto o frevo "só tem uma disciplina: a da indisciplina criadora" (81) . O povo pode participar da "onda", mas, não participa da Escola de Samba, onde se aquieta como simples espectador — o espectador feliz, que, antes de ser recifense, é brasileiro, sensível, portanto, ao samba dos seus ancestrais. A competição das duas formas de dança e música se mostra desvantajosa para o clube-de-rua, so-bretudo porque as jovens encontram, na Escola de Samba, opor-tunidades ideais de evidência — a sua beleza, a sua desenvoltu-ra, a sua plástica, o seu dengue, o seu sangue negro podendo aparecer, no palco do asfalto, em condições de dominar, sob a luz dos projetores e ao ritmo africano da batucada. Essa opor-tunidade não se encontra nos clubes-de-rua, nem por elas, nem por êles, que também têm o que mostrar em agilidade muscular e em imaginação criadora, não sendo de desprezar circunstân-cia singular: a coexistência dos sexos no curso dos ensaios (que não existem nos clubes-de-rua), tudo constituindo motivos de clara e justa preferência.

Boa parte do povo que acorre a ver a Escola de Samba, não esqueçamos, também cai no frevo. Dêsse modo, o que há a fazer, em defesa das nossas tradições carnavalescas, não é combater a Escola de Samba, mas, ajudar o clube-de-rua, con-cedendo-lhe subvenções suficientes para que possa movimentar e vestir bem o seu "cordão", apresentar um estandarte vistoso e rico, uma orquestra numerosa e homogênea, com repertório excitante, tudo quanto venha a atrair os passistas avulsos. Ou-tras medidas devem ser aplicadas, para bem aproveitar a co-nhecida fibra de resistência dos diretores dos clubes (82) .

Se alguma coisa há a repetir é a sugestão de serem insti-tuídos cursos e concursos de passo, gratuitos, os primeiros, bem

(81)—MAURO MOTA, op . cit. (82)—"Há nos clubes, um heroísmo, um espírito de luta e esperança

de vitória, que não se manifesta somente durante o carnaval. Ês-ses gravíssimos problemas resolvem-se nos "bastidores" do car-naval, sem o grande público saber dos detalhes". — KATARINA REAL, op. cit., pág. 35 /6 .

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO;> 109

lastreados, os segundos. E, mais: de serem organizados con-cursos de composições carnavalescas, principalmente o frevo, com a devida antecedência, para que cópias das obras selecio-nadas tenham vez no repertório das orquestras dos clubes mun-danos e cios clubes-cle-rua, assim como no das bandas, que de-vem espalhar-se, em coretos, pelas ruas do Recife, nos dias de carnaval. Acrescenta-se a necessidade de estimular a presen-ça de fanfarras de frevo nos bailes sociais e a execução de fre-vos em emissoras de rádio e televisão. Se assim não protege-mos o frevo e o passo, teremos de assistir, mais cedo do que se pensa, à sua agonia. Ela pode ser lenta, mas, será fatal.

A perspectiva é que o passo, a continuar as coisas como vão, desaparecerá primeiro que o frevo. Esclareça-se: a músi-ca permanecerá além da dança- autêntica. Ficará servindo ao falso passo dos salões, a um ou outro folião de rua, ao acompa-nhamento de clubes e troças cada vez mais franzinos.

Tal situação poderá modificar-se na medida em que ó Po-der Público se fizer presente ao problema, procurando dar-lhe a solução imposta pela força da tradição, preservando o verda-deiro caráter cio carnaval do Recife, isto é, a marca de sua au-tenticidade, porque nada, no Recife, é mais recifense do que o frevo e o passo.

Tão recifenses, uma coisa e outra, quanto foi Mário Sette, cronista admirável da Cidade, de quem uma página do roman-ce "Seu Candinho da Farmácia" descreve, com propriedade o. vivo colorido, o borborinho da passagem de um clube-de-rua pelas ruas do bairro de São José. Não poderia êste ensaio pre-tender depoimento mais fiel, tanto mais quanto a segurança da pena do escritor nos aviva o desejo de trabalhar para que o frevo e o passo volvam à animação focalizada nessa página lite-rária, que tem a nitidez de uma fotografia premiada em con-curso . Ei-Ia, quase na íntegra:

"De súbito um toque vibrante de clarim. As moças para-lisam as costuras; apuram os ouvidos; entreolham-se num ges-to incontido e nervoso.

— Deve ser o Vassoura! — presume Luizinha, já de pó, endireitando os cabelos.

— É êle mesmo. Vai sair hoje. — Escute. Olhe a música. . . Oh! frevança! — Vamos ver? Entulham as fazendas sobre a mesa; sacodem os fiapos

das saias; dão jeito aos penteados, olham-se ao espelho, arran-cam de porta afora rumo da rua Direita onde passará o clube em ensaios.

Page 72: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

100 VALDEMAR DE OLIVEIRA

Correrias pelas calçadas, gritos de crianças, atritos de ré-CIIM réeos, estalos de castanholas, arrastar de chinelos, ralhos ile matronas, risos de moças, e vozes:

Lá vem o Vassoura, meu povo! Açode, minha gente! Vem pesado! Não serão as Douradinhas, não? Que nada! E Pás sai hoje? Avia Maricota com êsse sapato; achinela êle e vamos embora. Se não nós perde de v e r . . . Corre, Tonico. Você fica na bagagem. . . .ft o Vassoura mesmo. Repare a marcha. Oh! pêso! Dá em tudo! O camelo da Boa Vista êste ano apanha. E o Vascu-lha, também, d. Maroquinhas. Que me importa! Banga! Gosto dêle, acabou-se! Toureiros também está bom. Vai ser um Carnaval baita. Como nunca! Você perde, Naninha. Apresse o passo. O pessoal es-tá atalhando por êste beco. E eu posso correr com minha unha encravada, me-nina? Anda prá frente, diabinho. Quem tem filho pequeno é êsse atraso. Não se casasse! Boa romaria f a z . . . Você tem nada com isso? Casei e tive menino porque quis, ouviu? Você não é o pai!

— Sai azar! «— Então me deixe. . .

Minha gente, é o Vassoura. É o Vassoura mesmo! Va-mos cair nas dobradiças.

Casas se esvaziam. Saem todos à vontade. Homens lim-itando as bocas na manga do palito, interrompendo o jantar; uma creoulinha dando beliscões de frade numa meninota para espertá-la no andar; uma mulher gorda com o filho pequeno no braço, guardando ainda o peito que o amamentava; rapari-gas de vida alegre, de caras muito pintadas, f lor nos cabelos, gingados de ancas; cozinheiras esfregando as mãos engordura-das nas saias de chita; rapazes em mangas de camisa; senhori-nhas em alvoroço endireitando as ligas num displicente devas-sar de coxas; meninos em algazarra, rodando recos-recos; mu-

FREVO, CAPOEIRA E «PASSO» 101

lheres tirando chinelas para mais desembaraço de movimentos; balofas negras sacudindo os flácidos seios; amas escanchando nos quartos os filhos alheios, metendo-lhes nas bocas chupetas duvidosas; matronas já avós; sexagenários resmungando con-tra a pressa dos moços; boleiras carregando os tabuleiros, ge-ladeiros abandonando as barracas, quitandas trancando as por-tas, lavadeiras de trouxas nas cabeças, cães domésticos e vadios ajuntando ao tumulto humano seu ladrido espantado ou fes-tivo . . .

Quem não soubesse cio ensaio do Vassourinhas, imaginaria um pânico, um êxodo, uma nova revolução.

E era apenas o frevo. O frevo! Um imperativo de loucura, um contágio de desa-

tinos, uma coceira de alegria. Ninguém mais se continha, nin~* guém mais se governava. Todas as imediações do bairro atra-vessado pelo buliçoso cordão carnavalesco vibravam ao zumbi-do fortíssimo de contentamento. Nas ruas mais afastadas o povo parava, ouvia os acordes ásperos da orquestra, orientava-se, e disparava de nôvo, entrevisando-se:

— Vem pelo pátio do Terço, minha gente! — Vamos esperar êle na esquina cia igreja. — Eu vou atalhar no Livramento. — Já está perto. Aviem-se meninas! — Vassoura é uma coisinha doida, meu pai do céu! — Não tem quem dê nêle.

Num momento, a rua Direita, vesga e acanhada, enchera-se de ponta a ponta. Uma revista de caras humanas pelas es-treitas calçadas, sobrando ainda pelas janelas, varandas e te-lhados. E toca ainda a esguichar gente das travessas e dos be-cos; o do Serigado golfava curiosos e foliões como uma má-quina de fabricar pipocas. A coisa j ã fervia para os lados do Terço de onde vinha o Vassourinhas com o pêso do entusiasmo de admiradores e adesistas. Avistava-se por cima daquêle mo-vediço dorso cinzento-escuro, que era a soma da multidão sa-racoteante, o estandarte bordado a ouro com uma vassoura de penas no teso da haste. Zumzum promíscuo de frases soltas, de malícias, de contactos, de pruridos, de ditérios, de risozi-nhos, cie perguntas, de desejos, de machucadelas, de afagos clandestinos. . .

Page 73: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

142 VALDEMAR DE OLIVEIRA

A orquestra do clube explodia metàlicamente a introdução de outra marcha pernambucana, frevesca da gema — nervo-sa, impulsiva, cálida, sincopada, arrastadora. . . A um só tem-po cutucadora e arisca, lúbrica e esquiva, abandonante e fugi-dia, brincalhona e astuciosa, imagem musical da mulher mas-carada e semi-nua que se promete e se furta, acaricia e mal-trata, sussurra e grita, avisinha-se e foge, oferece-se e se es-conde, estende a bôca e dá muxos, faz gaiatices e silencia, abra-ça e repele, beija e morde, findando vencida e vencedora numa posse integral da f o l ia . . . Música de arrancos e estacadas, de tremores e tetanizações, de nervosismos e indolências, de sacu-didelas e agrados, de rodopios e curvaturas, de calmas e tempo-rais, de amaciamentos e beliscões, de frenesis e languidez, de veludos de dominós e atritos de papel p i c a d o . . .

O f revo !

Aquela massa de corpos e de almas vinha numa obediência absoluta e gostosa à cadência voluptuosa, ardente e volúvel da marcha. A cada vez que a orquestra repetia num enfarofado de acordes a introdução, todo o povo redemoinhava, refervia nas atitudes mais caprichosas, mais cômicas, mais delirantes. Dir-se-ia que tentavam misturar, confundir, trocar os mem-bros, os troncos, as cabeças, para depois ir procurá-los de novo. E no seguimento da música lá se iam todos na impetuosidade da "onda", de pernas abertas em tesouras, de cócoras em saca-rolhas, de bustos empinados para frente em rigidez, de náde-gas oferecidas ao alto ( . . . ) De súbito, uma rápida e brusca estacada da música. A multidão empaca, endurece, espera. Ca-da um guardando a posição em que foi colhido. Numa esplêndi-da mostra de modelos. Dentes de fora, risos escancarados, tes-tas suadas, lábios abertos, olhos esbugalhados.. .

Segundos apenas. Vence-se a síncope dos instrumentos. A orquestra recomeça num renovado empurrão da marcha. E de novo todos se movimentam, se esfregam, se torcem, se vertica-lizam ( . . . ) se agacham, como se a música lhes penetrasse veias a dentro para ir fazer-lhes cócegas no sangue. ( . . . )

Abria o préstito um estandarte nas mãos de uma mulher-zinha bem morena, vestida de príncipe, num sorriso constante para todos, virando o rosto pintado para um lado e outro, mos-trando os dentes alinhados e alvos, bonitona, com os quadris e o busto em ressalto pelo colante do cetim, num dengoso rebo-

FRÊVO, CAPOEIRA E «PASSO» 143

lar; logo após quatro molecotes de camisas de meia riscadas, trazendo archotes a destacarem as caras suadas, lustrosas, dos sopradores de trombones, de pistões, de saxofones, num esbu-galhamento de olhos e numa inflação de bochechas. Seguiam-se clarinetes, flautas, recos-recos, rufos. . . E a maçaroca do povo, num remexido incessante, numa "onda" perene, num bu-lício crescente, pernas que se arqueam e se verticalizam, pés que se juntam e se distanciam, braços que se angulam e se amoldam, bôcas que se escancaram e se trancam, torsos que se espigam e se flexionam, seios pontudos que se projetam em promessas e se retraem em negaças, dentes que se mostram, mãos que espanejam, cabeças que bamboleam, como se todos estivessem atingidos de cócegas. Um povão! Um povão! Gen-te de não acabar mais. Gente de tôdas as classes. ( . . . ) To-dos no nivelamento do passo, no ritmo grotesco do "chã de bar-riguinha", no entortamento sensual das "dobradiças". Todos, sim. Uns às claras, outros em disfarces.

O frevo !

— O diabo inventou mas é do céu! — Oh! onda do outro mundo! — Uvinha preta, deixa eu te morder! — Menina, estou me acabando. . . — Suco de maracujá! — Frevo danado de bom!

E lá se vai tôda aquela multidão num comichar de gôzo, numa endemoniada folia, numa só voz, numa só alegria, numa só alma, numa só doidice, comprimindo-se ainda mais no en-gasgo da rua.

O Vassourinhas, saindo da angustura da rua Direita, es-praiou-se na do Livramento, num alargamento rápido, num do-mínio fulminante, como uma mancha de óleo, a distender-se, a invadir, a rebrilhar. Uma conquista de segundos. A orquestra que parara por alguns momentos, para descanso, substituída pelos rufos, rompeu outra marcha cheia de quentura e de fle-xuosidade. Parecia que a música roçava ora uma pluma ora

Page 74: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

144 VALDEMAR DE OLIVEIRA

uma escova no espinhaço daquela gente tôcla. Andava pelos ares um cheiro de suor, de lança-perfumes, de loções, de ba-nhas, cie carne, de pecado. . . O frevo tomava foliões por onde passava, como um rio coleta água dos afluentes. De becos e ruas, calças e saias se intrometiam no préstito, contagiando-se pelo remexido. E a marcha a arrastar, a a r r a s t a r . . . "

Em 1971, os clubes-de-rua, reduzidos a um número melan-cólico (9 contra 18 Escolas-cle-Samba), mostraram-se empe-nhados, para sobreviver, em assemelhar-se a elas, no aparato-so do vestuário, na adoção de "alas", na estruturação geral do cortejo — mas, sem "onda", a "onda" que era povo participan-te e já não é. Não são mais clubes de frevo, porque de frevo só têm a música que tocam.

Em matéria cie frevo e passo, há, no Recife dos nossos dias, um irresistível "cada vez pior", por culpa dos órgãos criados precisamente para protegê-los e animá-los. E que me-lhor fôra, talvez, não existirem, por se haverem tornado indi-ferentes, senão hostis, aos mais autênticos valores do carnaval pernambucano.

A visão viril do "passo", flagrada por Angustinho

POSFACIO

Ao fim de tudo, revelarei algo de minha melancólica expe-riência. Êste ensaio, conforme ficou explicado no prefácio, am-plia um outro, publicado há mais de 25 anos, no "Boletim La-tino-Americano de Música", trabalho que, visto à distância, re-veste as dimensões de uma simples nota prévia.

Acrescentei-lhe, como se viu, alguma coisa, inclusive estas últimas páginas, sôbre a decadência do frevo e do passo, pági-nas que, por falta absoluta de motivação, não teria escrito an-tes. Na presente edição, entretanto, não pude fugir ao assun-to, que se impõe. Devo dizer, todavia, que, àquele trabalho de 1945, não retirei linha alguma, porque, se o que neste volume fica dito se distancia, aqui e ali, cia atual posição do frevo e do passo no carnaval do Recife, representa, ao que me parece, útil reminiscência de uma tradição digna de respeito, reconstitui-ção necessária de um passado recente na história carnavalesca da Cidade.

0 fato de tratar-se de um fenômeno social em declínio não inatualiza o ensaio, em face do esforço em que todos nos eleve-mos empenhar para o reconduzir ao primado de outrora. Cons-tituirá, em qualquer caso, contribuição ao estudo de duas for-mas de expressão popular, em Pernambuco, dignas, em qual-quer tempo, da atenção dos estudiosos de nossa historiografia musical, seja para conservá-las, seja para, simplesmente, lem-brá-las .

Page 75: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

G O S T O S Ã O

NELSON FERREIRA

Page 76: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo

=

QUAL É O TOM?

E.N.T. 555

Page 77: OLIVEIRA, Valdemar de. Frevo Capoeira e Passo