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    A EPISTEMOLOGIA ENGAJADA DE HUGH LACEY

    Marcos Barbosa de Oliveira

    Universidade de So Paulo

    Publicado em Manuscrito XXI(2), outubro de 1998, pp.113-135, e como o cap. XIII de Da cincia

    cognitiva dialtica(So Paulo, Discurso Editorial, 1999), pp. 209-222.

    Hugh Lacey australiano de nascimento. Fez seus estudos de graduao e

    mestrado na Universidade de Melbourne, o doutorado nos Estados Unidos

    (Universidade de Indiana) e, de 1969 a 1971 foi professor do Departamento de Filosofiada USP. Retornou ento aos Estados Unidos, onde reside at hoje, sendo desde 1972

    professor do Swarthmore College (Pennsylvania). Mas ao longo de todo este ltimo

    perodo, Lacey permaneceu um participante assduo da cena filosfica brasileira, tendo

    nos visitado, com bastante regularidade, para ministrar cursos e palestras, tomar parte

    em congressos, etc.

    No plano terico, seu percurso pode ser dividido em trs fases. Na primeira,

    Lacey dedicou-se a temas relativamente especializados, porm bem estabelecidos dentro

    da tradio anglo-saxnica, ou analtica na filosofia da cincia, e relativos lgica, aos

    fundamentos da matemtica, e aos domnios do espao e do tempo. So representativos

    desta fase, alm das teses de mestrado (Proof and truth in mathematics, 1963), e

    doutorado (Causal order and the topological properties of time, 1966), um artigo sobre

    o teorema de Gdel, escrito em colaborao com G. Joseph e muito citado na literatura

    subseqente (What the Gdel formula says), e o livro A linguagem do espao e do

    tempo, publicado em portugus, pela Editora Perspectiva, em 1972. O elemento formal

    tem um peso considervel nestes escritos, quer enquanto tema, quer pelo tipo de

    abordagem. Tendo em vista o contraste, a ser discutido mais tarde, com a terceira fase,

    convm observar que nesta primeira as publicaes de Lacey o situam plenamente na

    mainstreamda filosofia analtica da cincia.

    Na segunda fase, o foco de interesse passa das cincias naturais e formais para as

    cincias humanas, mais precisamente, para o campo dos fundamentos da psicologia. O

    impulso central foi o de empreender uma crtica ao behavourismo, e o resultado

    consiste, a meu ver, por seu equilbrio e profundidade, no melhor tratamento crtico do

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    behaviourismo disponvel na literatura. Das publicaes de Lacey, pertencem a esta fase

    mais de 20 artigos, bem como um livro, escrito em colaborao com B. Schwartz, e

    publicado em 1982 com o ttulo Behaviorism, science, and human nature, que teve

    grande vendagem nos Estados Unidos.

    As questes centrais da terceira fase emergem do trabalho na segunda, mas

    referem-se no mais a domnios especficos, e sim aos prprios fundamentos da

    epistemologia. Veremos a seguir quais so estas questes; por ora, diremos que Lacey

    vem h tempos se dedicando a elas, e nos ltimos trs ou quatro anos tem dado a

    pblico os resultados de suas reflexes em uma srie de artigos. Uma coletnea deles

    acaba de ser lanada (em agosto de 1998) pela Discurso Editorial, com o ttulo Valores

    e atividade cientfica. Com exceo de um de 1986, e outro de 1990, os demais textos

    do livro foram publicados originalmente de 1996 para c. As idias defendidas nestes

    trabalhos so retomadas, de forma sistemtica e mais completa em Is science value-

    free?: values and scientific understanding, a ser publicado em meados de 1999 pela

    Routledge.1

    Este escrito um rpido comentrio sobre a terceira fase do percurso terico de

    nosso autor, tomando como base principalmente o livro Valores e atividade cientfica.

    Em uma passagem da Introduo (p.102), Lacey filia-se explicitamente

    tradio analtica na filosofia da cincia. Por um lado, tal afiliao se justifica, pois h

    sem dvida uma continuidade entre o livro e esta tradio, tanto no que se refere ao

    estilo de articulao e expresso das idias, quanto em relao aos temas e conceitos.

    Mas, por outro lado, h tambm componentes de ruptura. Um deles diz respeito ao

    engajamento a que alude o ttulo deste trabalho. A reflexo de Lacey sobre a cincia

    engajada no sentido de que articula as questes epistemolgicas aos problemasconcretos que a humanidade enfrenta no presente momento histrico. Outro elemento de

    1. Alm daqueles que podem ser vistos como representativos de cada uma destas trs fases, aspublicaes de Lacey incluem ainda outros itens que refletem seu envolvimento concreto em causassociais. Os seguintes ttulos servem para dar uma idia da natureza destes envolvimentos, bem como doaspecto religioso em seu pensamento, que no ser examinado nesta comunicao: Comprehendingreality from the perspective of the poor (em co-autoria com J. Hassett); Liberation theology and humanrights; The Chester-Swarthmore College Community Coalition: linking projects for communityempowerment in a public housing development with a colleges academic and outreach programs (emco-autoria com T. Bradley e M. Eldridge); Methodologies of the study of poverty; On relations

    between science and religion.

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    ruptura consiste na postura crtica que Lacey adota em relao prpria cincia e no

    apenas a outras concepes sobre a cincia. Muito teria de ser dito para descrever estas

    duas caractersticas com a devida preciso, e demonstrar que esto de maneira geral

    ausentes da filosofia analtica da cincia, em sua fase atual3. Mas para mostrar apenas

    que as posies de Lacey o situam fora da vertente principal desta tradio existem

    evidncias superficiais mais diretas: no comum, para dizer o mnimo, encontrar obras

    nela inseridas em que, como acontece em Valores e atividade cientfica, os temas

    epistemolgicos mais abstratos sejam discutidos em conexo com mtodos de produo

    de alimentos, com a dinmica dos movimentos sociais nos pases perifricos, com

    crticas ao neoliberalismo, etc.

    Ao criticar a cincia, Lacey est longe de ser uma voz isolada no panorama

    intelectual contemporneo. Se descrita apenas como crtica, parece que ela vem juntar-

    se ao coro que inclui desde filsofos ps-modernos a fundamentalistas religiosos e

    adeptos da new age, passando por socilogos da cincia, antroplogos, muitos

    ecologistas e feministas. Assim como estes, Lacey contesta as pretenses da cincia de

    se constituir em paradigma da racionalidade, de gerar uma forma de conhecimento

    perfeitamente objetiva e universalmente vlida, e de atravs da tecnologia, contribuir

    inequivocamente para o progresso material da humanidade. H uma diferena

    fundamental, contudo: em contraste com o coro ps-moderno, as posies de Lacey se

    mantm longe do relativismo, o qual ele rejeita explicitamente. Lacey se distancia assim

    tanto do racionalismo cientificista ainda predominante na filosofia analtica da cincia, e

    no pensamento oficial que determina de fato as decises referentes prtica cientfica

    , quanto do relativismo ps-moderno. E, o que mais importante, sua posio no

    constitui meramente um meio-termo entre os dois plos, mas sim uma verdadeira

    sntese superadora da contradio entre a tese cientificista e a anttese ps-moderna.

    2. Salvo indicao em contrrio, os nmeros de pginas indicados referem-se a Valores e atividadecientfica.3. A histria recente da filosofia analtica da cincia divide-se em dois perodos, o primeiro positivista-popperiano, o segundo ps-positivista, o qual se instaura a partir das crticas de Kuhn, Quine, Hanson eoutros em fins da dcada de 50. a este segundo perodo que se refere a expresso fase atual da filosofiaanaltica da cincia que ocorre no texto. A nosso ver o carter engajado que atribumos ao trabalho deLacey est tambm presente no perodo positivista-popperiano, tendo se perdido na passagem ao ps-positivismo. Quanto segunda caracterstica, a postura crtica diante da cincia, no h mudana natransio do primeiro para o segundo perodo: ela est ausente de ambos. Nos dois predomina um certoracionalismo cientificista, com a diferena apenas de que na fase atual este fica implcito pelo menosno mais proclamado de maneira to enftica, to engajada quanto no perodo positivista-popperiano. A

    razo para o abandono da postura engajada e esta mais uma hiptese a ser testada por estudoshistricos residiria no prprio triunfo das posies positivistas-popperianas ao serem exportadas paraos Estados Unidos e Inglaterra na dcada de 30 em decorrncia da ascenso do nazismo.

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    O passo crucial neste movimento consiste, como veremos, na introduo de um

    novo nvel na anlise do mtodo cientfico. Mas este precedido de um outro passo que,

    apesar de preliminar, no destitudo de importncia prpria, e tambm representa certo

    afastamento da vertente principal da filosofia analtica da cincia.

    Adotado o objetivo de caracterizar o mtodo cientfico, de apontar aquilo que, na

    prtica cientfica, constitui o cerne da racionalidade, a questo central que se coloca a

    da deciso entre teorias. Dado um conjunto de teorias rivais sobre um domnio da

    realidade, como decidimos qual deve ser aceita? Seguindo uma longa tradio, a

    filosofia analtica da cincia adota uma abordagem em que o problema passa a ser

    formulado em termos de regras: dado um conjunto de teorias rivais, quais so as regras

    que norteiam o processo de seleo, e estabelecem sua racionalidade? Embora regras de

    vrios tipos (indutivas, dedutivas, hipottico-dedutivas, probabilsticas, etc.) tenham

    sido exploradas, no se conseguiu chegar a uma formulao satisfatria o suficiente

    para gerar um consenso.

    A proposta de Lacey para o impasse consiste na substituio da abordagem por

    meio de regras por outra em que os valores desempenham o papel central (da o ttulo

    do livro, Valores e atividade cientfica). Em suas palavras, a nova abordagem analisa a

    racionalidade em termos de um conjunto de valores (valores cognitivos), e no em

    termos de um conjunto de regras, e prope que os juzos cientficos corretos so feitos

    por meio de um dilogo entre os membros da comunidade cientfica acerca do nvel de

    manifestao de tais valores por uma teoria, ou por teorias rivais, em vez de por meio da

    aplicao de um algoritmo ideal por cientistas individuais. (p.61) A idia no

    totalmente nova; foi sugerida por Kuhn, num artigo de 1977, Objectivity, Value

    Judgement and Theory Choice, e desenvolvida por McMullin (um autor pouco

    conhecido no Brasil) em vrios trabalhos4. Mas a nosso ver Lacey quem melhor

    explora as possibilidades abertas pela nova abordagem.

    As reflexes que nosso autor desenvolve a partir desta virada valorativa

    consistem em uma anlise, seguida de uma refutao, da tese de que a cincia livre de

    valores.Na base de tudo est uma dicotomia fundamental: a que distingue os valores

    cognitivos(tais como a adequao emprica, a consistncia interna, o poder explicativo,

    a simplicidade, e outros) dos valores no-cognitivos, ou seja, sociais ou morais. Como

    4. Cf. bibliografia.

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    ponto de partida, interpreta-se a tese em pauta como afirmando ser a cincia livre de

    valores no-cognitivos. Segundo a anlise proposta, ela se divide em trs subteses: da

    imparcialidade, da neutralidade, e da autonomia. A imparcialidade diz respeito ao

    processo de seleo de teorias, e afirma que nele apenas os valores cognitivos so

    relevantes. Se ela se sustenta, ento natural pensar que as teorias aceitas segundo o

    mtodo cientfico so neutras, no sentido de que no tm implicaes lgicas relativas

    aos valores no-cognitivos, de que as inovaes tecnolgicas decorrentes delas so

    aplicveis em qualquer sociedade, e, como se costuma dizer, de que a cincia pode ser

    usada para o bem ou para o mal. Esta a tese da neutralidade. Por sua vez, se as prticas

    cientficas so orientadas para o objetivo de obter teorias que satisfaam os requisitos de

    imparcialidade e neutralidade, ento parece evidente que elas procedem melhor se no

    esto sujeitas a influncias externas (cf. p.9). Nisto consiste a tese da autonomia.

    Grosso modo, pode-se dizer que o racionalismo cientificista sustenta, enquanto a

    crtica ps-moderna rejeita, as trs sub-teses. A posio de Lacey se distingue das outras

    duas por manter a tese da imparcialidade, recusando as outras duas. Como isto pode ser

    possvel, tendo em vista as implicaes apontadas? neste ponto que vem tona o novo

    nvel na anlise do mtodo cientfico que mencionamos acima, como constituindo o

    elemento-chave que faz da posio de Lacey no apenas um meio-termo, mas uma

    verdadeira superao do antagonismo entre o racionalismo cientificista e o relativismo

    ps-moderno.

    Na abordagem em termos de regras para o problema da seleo de teorias, toma-

    se como ponto de partida um determinado conjunto de teorias rivais e evidncias

    empricas pertinentes. A mudana para a abordagem dos valores por si s no afeta esta

    pressuposio. Num caso, a aplicao das regras, no outro, a avaliao do nvel de

    manifestao dos valores cognitivos, determinariam a teoria a ser aceita. O que Lacey

    faz, em essncia, , primeiro, mostrar que este conjunto, da maneira como normalmente pensado na filosofia analtica da cincia, no dado, sim fruto de um

    processo de seleo prvio por assim dizer uma fase eliminatria, como nos

    vestibulares. Em segundo lugar, Lacey argumenta que esta fase eliminatria no est

    regida por valores cognitivos, mas sim, em ltima anlise, por valores sociais. (A

    analogia com os vestibulares entretanto importante observar vai apenas at certo

    ponto, uma vez que a anterioridade da primeira fase no processo de seleo de teorias

    apenas lgica, no necessariamente cronolgica.)

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    A articulao da fase eliminatria com os valores sociais no direta, mas

    mediada pelo que nosso autor denomina estratgias de restrio e seleo: num

    primeiro momento da anlise, so tais estratgias que restringem o tipo de teoria

    considerado e selecionam o tipo de dado emprico a ser procurado a fim de testar as

    vrias teorias provisoriamente mantidas. Com algumas ressalvas, a cincia moderna se

    caracteriza por adotar a estratgia materialistade restrio e seleo. Em contraste com

    a perspectiva aristotlica, a estratgia materialista v o mundo em termos de causas

    eficientes, ficando excludas as causas finais. Ela restringe as teorias de tal modo que

    representem os fenmenos em termos de sua concordncia com as leis da natureza, bem

    como em termos de sua gerao por intermdio das estruturas, dos processos e das leis

    que lhes so subjacentes. [...] As teorias constituem uma imagem das coisas em termos

    de leis e quantidades. Nelas os fenmenos so abstrados de qualquer insero na

    experincia humana e nas atividades prticas, alm de qualquer relao com questes

    relativas a valores sociais. O lugar que um fenmeno ocupa no domnio de valores

    irrelevante para a sua representao terica. (p.17) No que se refere s evidncias

    empricas, a estratgia materialista estipula que elas sejam selecionadas luz da

    intersubjetividade, replicabilidade (dos fenmenos experimentais) e possibilidade de

    serem expressas numa linguagem descritiva que contenha apenas termos materialistas,

    geralmente termos quantitativos e matemticos, cujos valores sejam inferidos de

    medies, intervenes instrumentais e operaes experimentais. (p.116)

    Chegamos agora ao ponto mais controvertido do livro, de acordo com o prprio

    autor. A tese a de que a adoo de uma estratgia materialista por to grande parte da

    cincia moderna decorre no de valores cognitivos, mas de um valor social: o valor

    atribudo prtica de controle da natureza. A estratgia materialista adotada porque o

    conhecimento produzido desta forma contribui para aumentar a capacidade humana de

    controlar a natureza, tendo em vista a produo material de sua existncia. Trata-seportanto de uma concepo de cincia na qual a utilidade baconiana, a capacidade de

    gerar tecnologia, desempenha um papel preponderante, mesmo no plano

    epistemolgico. Na viso ortodoxa, embora a utilidade baconiana possa ser valorizada,

    ela aparece como um subproduto: o fato de uma teoria ter aplicaes tecnolgicas bem

    sucedidas no figura entre as justificativas essenciais para sua aceitao racional.

    Da maneira como acabamos de caracterizar a concepo defendida por nosso

    autor, ela parece colocar a cincia inteiramente a servio da tecnologia, do valor socialdo controle. Tal concepo entretanto no poderia acomodar as constataes de que

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    nem toda teoria bem confirmada conduz, ou pode conduzir a aplicaes prticas, e,

    conversamente, de que nem toda inovao tecnolgica o resultado de aplicaes de

    teorias cientficas. A anlise de Lacey na verdade bem mais complexa, e apresenta a

    relao entre a perspectiva moderna de controle e a estratgia materialista no como

    uma relao unidirecional entre um fim e um meio, mas, recorrendo ao conceito

    weberiano, como uma relao de afinidade eletiva. Esta afinidade tem vrias dimenses,

    sendo apenas uma delas o fato de que as teorias desenvolvidas de acordo com a

    estratgia materialista tendem a permitir aplicaes tecnolgicas bem sucedidas. Nesta

    dimenso, a tecnologia aparece como beneficiria da cincia; a relao se inverte

    quando se considera uma outra das dimenses, a correspondente ao papel da tecnologia

    no desenvolvimento dos aparatos utilizados na experimentao cientfica. (Outras trs

    dimenses so relacionadas na p. 75 do livro.)

    O reconhecimento desta afinidade eletiva, acoplada ao fato, tambm

    demonstrado por Lacey, de que a justificativa para a adoo da estratgia materialista

    no pode ser obtida a partir de uma metafsica materialista, faz com que sua concepo

    de cincia seja significativamente diversa da concepo ortodoxa vigente na tradio

    analtica. A diferena central reside em que, de acordo com Lacey, a aceitao das

    teorias bem confirmadas de acordo com os cnones em vigor na cincia moderna no

    pode ser racionalmente justificada apenas por consideraes epistemolgicas e

    metafsicas, mas depende de um valor social o valor do controle da natureza ligado

    aos problemas da produo da vida material. Nos termos do materialismo histrico,

    pode-se dizer que se trata de uma oposio entre uma concepo idealista e uma

    concepo materialista da cincia moderna.

    As estratgias materialistas de restrio e seleo (ao lado de outras possveis

    estratgias) correspondem o novo nvel de anlise da metodologia cientfica. O nvel

    reconhecido anteriormente, da escolha concreta de teorias, continua existindo, e sendoregido exclusivamente por valores cognitivos. Isto corresponde manuteno da tese da

    imparcialidade a qual, importante observar, sustentada no puramente como uma

    verdade factual, mas tambm como um ideal; um ideal nem sempre atingido na prtica

    real da cincia, mas que no obstante merece ser preservado enquanto um valor. Mas,

    na medida em que a aceitao das teorias cientficas depende, em ltima anlise, do

    valor (no-cognitivo) atribudo prtica de controle da natureza, e este valor no , nem

    descritiva nem normativamente, comum a todas as sociedades, a tese da neutralidade caipor terra. E junto com ela, fcil perceber, a da autonomia.

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    Havendo uma conexo fundamental entre a cincia e a tecnologia, muitas

    proposies podem ser afirmadas a respeito de ambos os domnios pensados

    conjuntamente. Em vista disto, e tambm por motivos estilsticos, usaremos a partir de

    agora o termo cincia como incluindo a tecnologia cientfica na verdade, como

    sinnimo de racionalidade cientfico-tecnolgica (a no ser em algumas passagens

    onde o contexto deixar claro que se estar revertendo ao sentido tradicional). Com esta

    conveno, pode-se dizer que a crtica de Lacey, at o ponto onde chegamos em sua

    exposio, tem por alvo outras concepes a respeito da cincia, a concepo ps-

    moderna, e, de forma muito mais desenvolvida, a concepo que prevalece na tradio

    analtica. Esta tambm a concepo dominante no pensamento oficial aquele que

    influencia diretamente as decises referentes prtica concreta da cincia , e, em

    virtude disto, no pode ser tomada apenas como uma representao, mais, ou menos fiel

    coisa representada, e no tendo influncia sobre esta. A concepo ortodoxa

    racionalista-cientificista tem um peso normativo, contribui efetivamente para moldar a

    prtica cientfica, e desta forma a crtica a ela no pode deixar de se estender prpria

    cincia.

    O fulcro da argumentao reside na prtica de controle da natureza, que

    criticada no de modo absoluto j que, em certo sentido, faz parte da natureza humana

    mas sim, pela extenso, preeminncia e centralidade que ela adquire nas sociedades

    modernas. E, na medida em que tal preponderncia vista como decorrente de

    caractersticas estruturais do sistema capitalista, o prprio capitalismo que passa a ser

    o objeto da crtica. O resultado de toda esta linha de raciocnio uma perspectiva

    totalizante em que a crtica epistemolgica no se restringe ao domnio das idias;

    parte de uma crtica social mais ampla, e est indissoluvelmente ligada aos problemas

    concretos da humanidade na presente conjuntura histrica.A limitao de espao nos impede de examinar mais detidamente estas

    conexes. Diremos apenas que, em todo o percurso, os valores permanecem

    desempenhando um papel central no pensamento do autor, como deixa claro a passagem

    seguinte, bem ilustrativa do teor de sua crtica que ao neoliberalismo:

    No momento atual, as prticas de controle da natureza esto nasmos do neoliberalismo e, assim, servem a determinados valorese no a outros. Servem ao individualismo em vez de solidariedade; propriedade particular e ao lucro em vez de aos

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    bens sociais; ao mercado em vez de ao bem estar de todas aspessoas; utilidade em vez de ao fortalecimento da pluralidadede valores; liberdade individual e eficcia econmica em vezde libertao humana; aos interesses dos ricos em vez de aosdireitos dos pobres; democracia formal em vez de democracia participativa; aos direitos civis e polticos semqualquer relao dialtica com os direitos sociais, econmicos eculturais. (p.32)

    * * *

    Em passagens anteriores, discutimos a posio de Lacey face tradio analtica

    na filosofia da cincia, e ao pensamento ps-moderno. Dando mais um passo no sentido

    de determinar sua localizao no panorama intelectual contemporneo, observemos que

    h vrios aspectos de seu pensamento que o aproximam da tradio dialtica marxista.

    O mais fundamental, naturalmente, a postura crtica diante do capitalismo. No que se

    refere cincia e tecnologia, a proximidade se d, claro, com relao no ao

    marxismo ortodoxo, mas sim a algumas vertentes do marxismo ocidental, em particular

    a teoria crtica da Escola de Frankfurt. Assim, por exemplo, a idia de utilidade

    baconiana, da relao com a tecnologia enquanto um aspecto essencial da cincia

    moderna, corresponde concepo frankfurtiana da cincia como razo instrumental.Outro conceito-chave, o de controle da natureza, tambm tem seu correspondente, ainda

    que neste caso haja certa diferena, que se reflete no fato de os frankfurtianos usarem

    um termo mais carregado para design-lo, a saber, dominao da natureza. Indo mais

    adiante, tambm nos dois casos se encontra a idia de que o controle/dominao da

    natureza leva, ou, no mnimo, est ligado ao controle/dominao do homem pelo

    homem (cf. p. 171).

    Considerando agora, mais especificamente, a contribuio de Marcuse, outrassemelhanas vm tona. Se compararmos o cap. 6 de O homem unidimensional (Do

    pensamento negativo para o positivo: racionalidade tecnolgica e a lgica da

    dominao) com Valores e atividade cientfica, e no obstante as enormes diferenas

    nos pontos de partida tericos, e mais ainda no estilo de articulao e apresentao das

    idias, fica evidente a presena de uma linha de pensamento comum, a qual articula, de

    forma estruturalmente idntica, o conceito de controle/dominao da natureza s

    estratgias materialistas de restrio e seleo, no caso de Lacey, e ao a priori

    tecnolgicoda cincia, no caso de Marcuse.

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    Uma crtica s estruturas sociais, ou a qualquer prtica humana, s se completa

    na medida em que aponta alternativas plausveis. Sem isso, ela no tem capacidade de

    se transformar em fora material, de alterar a realidade que tem por alvo, tendendo

    assim a ficar encerrada no domnio das idias. Uma crtica da cincia que possa ter

    conseqncias prticas deve portanto incluir a caracterizao de uma nova forma de

    cincia a ser proposta como alternativa. Na medida em que as formas de conhecimento

    de uma formao social esto dialeticamente ligadas s suas estruturas relacionadas

    produo da vida material, o problema de conceber a nova cincia remete ao de

    caracterizar a nova sociedade. Se, apenas para efeito de raciocnio, dermos o nome de

    socialista estrutura social almejada (algo que Lacey no faz no livro em pauta), ento

    o problema pode ser formulado como Qual o papel da cincia numa sociedade

    socialista? Dada a vagueza do conceito de socialismo hoje em dia, esta formulao tem

    a vantagem de por si s remeter questo mais ampla: O que vem a ser uma sociedade

    socialista?

    Os socialistas utpicos criticados por Marx e Engels se caracterizam por dar

    respostas muito precisas e detalhadas a esta questo. No outro extremo encontram-se

    aqueles que julgam desnecessrio fornecer uma resposta de antemo: apenas no

    decorrer das lutas sociais visando a transformao podem ir se definindo as

    caractersticas da nova sociedade. O bom senso neste caso indica que o correto o

    meio-termo uma posio que rejeita a idia do modelo prvio detalhado, mas no

    dispensa algumas diretrizes sobre o tipo de sociedade que se almeja, e dos caminhos

    viveis para lev-lo existncia. Sem tais diretrizes, na verdade, difcil at imaginar

    como o projeto de transformao poderia ter incio.

    No que diz respeito s diretrizes gerais, nem Lacey nem Marcuse se omitem e

    tomando como referncia os escritos de Marcuse da dcada de 70 suas propostas tmmuito em comum. Trata-se portanto de mais um elemento de semelhana entre as idias

    dos dois autores. Ambos atribuem aos movimentos sociais o papel central de agentes de

    transformao, rejeitando a concepo marxista mais ortodoxa que considera a

    conquista do poder poltico de estado como o ponto de partida no caminho para a

    instaurao de novas estruturas sociais.

    J quanto a diretrizes relativas nova cincia, h uma diferena: enquanto em

    Valores e atividade cientfica se encontram muitas indicaes, nos escritos de Marcuseelas esto quase totalmente ausentes. Pode-se dizer ento que neste ponto Lacey vai

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    alm de Marcuse. Boa parte das consideraes sobre o tema expostas no livro est

    relacionada ao caso da chamada revoluo verde um projeto de aumento da

    produtividade no cultivo de trigo e arroz atravs do emprego de sementes hbridas,

    aplicado em regies empobrecidas, acostumadas s prticas tradicionais de cultivo.5

    A revoluo verde serve como exemplo de falta de neutralidade na cincia, na

    medida em que a introduo das novas tcnicas de cultivo implica profundas mudanas

    nas estruturas sociais dos grupos envolvidos, com a conseqente alterao no sistema de

    valores vigente. At este ponto nada haveria a objetar, ainda mais na medida em que de

    fato se conseguiu um aumento de produtividade. As conseqncias globais do projeto,

    contudo, foram nada menos que desastrosas, envolvendo o xodo rural, a degradao do

    ambiente, o empobrecimento na variedade gentica das sementes, a dependncia

    crescente de fertilizantes, herbicidas e pesticidas, etc. (Cf. p.152.) Do ponto de vista de

    seu objetivo primordial, o de resolver o problema de alimentao das populaes

    envolvidas, a revoluo verde foi um completo fracasso.

    A partir de idias estruturadas pelas oposies entre desenvolvimento

    modernizador e desenvolvimento autntico, entre tecnologia avanada e tecnologia

    apropriada, e com base na contribuio de autores diretamente envolvidos em projetos

    com objetivos semelhantes aos da revoluo verde, mas com abordagens distintas,

    Lacey aponta caminhos possveis para a criao de novas formas de tecnologia e de

    cincia, significativamente diferentes das predominantes nos dias de hoje.

    Gostaramos de concluir com algumas consideraes sobre o significado do livro

    de Lacey para o pblico brasileiro. Nossa sugesto de que ele traz ensinamentos

    importantes para dois segmentos deste pblico, um consistindo na comunidade filiada

    tradio da filosofia analtica da cincia, outro, bem mais amplo numericamente, no

    pensamento de esquerda.Para os primeiros, a mensagem de Lacey a de que possvel adotar uma

    postura crtica diante da cincia capitalista, e de alguns pressupostos bsicos da filosofia

    analtica da cincia, sem abandonar os valores articulados pela prpria tradio analtica

    como parte de sua auto-caracterizao, os valores da clareza, do rigor, e do uso

    extensivo da argumentao. Com o rtulo de positivismo, as concepes ortodoxas da

    cincia, em outro momento de nossa histria, sofreram pesadas crticas da esquerda

    5. Cf. Shiva, The violence of the green revolution: ecological degradation and political conflict in

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    crticas estas apresentadas s vezes de forma bastante grosseira. Valores e atividade

    cientfica demonstra que pelo menos uma parte do contedo destas crticas pode ser

    formulada de acordo com os mais exigentes critrios analticos, no podendo assim ser

    ignorada.

    Neste contexto, convm lembrar que Lacey teve a oportunidade recentemente de

    dirigir comunidade da filosofia analtica no Brasil uma mensagem bem mais direta.

    Estamos nos referindo sua resenha, publicada em 1996 na revista Manuscrito, da

    coletnea organizada por Maria Ceclia M. de Carvalho com o ttulo A filosofia

    analtica no Brasil. A resenha traz crticas a aspectos da maneira como a filosofia

    analtica vem sendo praticada em nosso pas que no podem, a nosso ver, ser

    desconsideradas, uma vez que, apesar de relativamente severas, so com certeza bem

    intencionadas e construtivas, vindo de quem vm, ou seja, de algum que tambm tem

    razes intelectuais na tradio analtica, e contribuiu significativamente para a formao

    desta prpria comunidade a quem seu recado se dirige.6

    Uma das crticas de Lacey aponta para certo descolamento da filosofia analtica

    no Brasil em relao realidade brasileira, aos problemas concretos que o pas enfrenta.

    Esta talvez seja a falha mais importante, na medida em que as outras podem ser vistas

    como decorrncia dela. Em sua resenha, Lacey d vrias sugestes sobre caminhos

    possveis de superao deste alheamento. A estas pode-se acrescentar a que vem

    implcita em Valores e atividade cientfica, sendo dirigida especialmente ao setor da

    filosofia analtica que se ocupa da cincia.

    No que se refere ao pensamento de esquerda relativo cincia, uma nova

    dicotomia se faz necessria. Devemos distinguir, de um lado, uma tradio mais antiga,

    dominada pelas idias desenvolvimentistas e, em maior ou menor grau, pelas tendncias

    positivistas do marxismo ortodoxo. Esta vertente tem diante da cincia uma postura

    essencialmente acrtica: ela vista como um fator indispensvel para a forma dedesenvolvimento que se prope, contribuindo assim inequivocamente para o progresso

    da nao. Uma caracterstica essencial do desenvolvimentismo consiste em tomar os

    pases avanados como modelo; o projeto nacional para a cincia desta forma fica

    automaticamente estabelecido: trata-se de fazer com que ela seja praticada de maneira

    to semelhante quanto possvel dos pases avanados. Esta tem sido a postura

    Punjab, e Lewontin,Biology as ideology. (Estas referncias so indicadas por Lacey.)

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    dominante entre os prprios cientistas, muitos deles com participao ativa nos

    processos de deciso que definem os rumos da pesquisa cientfica no pas. O carter de

    esquerda deste pensamento diz respeito no aos fundamentos da cincia em sua relao

    com a sociedade, mas a detalhes da maneira como sua prtica deve ser implementada no

    pas; o que se defende, em termos muito gerais, so alternativas nacionalistas, em

    contraste com outras que, implcita ou explicitamente colocariam o Brasil na posio de

    importador de cincia.

    Pois bem, para este grupo, a mensagem de Lacey a de que um exame mais

    atento das questes envolvidas leva a um questionamento da adoo, como ideal a ser

    atingido, da forma que a cincia assume nos pases avanados.

    A segunda vertente do pensamento de esquerda a ser considerada de formao

    mais recente e, em comparao com a desenvolvimentista, est muito mais prxima do

    marxismo ocidental que do marxismo ortodoxo, sendo que, do marxismo ocidental, o

    setor mais influente o da Escola de Frankfurt. Ao comentar as idias de Marcuse,

    dissemos que de certo ponto de vista pode-se enxergar nelas uma deficincia, a saber, a

    falha em indicar diretrizes, rumos plausveis de transformao da prtica cientfica que,

    juntamente com outras transformaes estruturais, dariam origem a uma sociedade e

    uma cincia mais satisfatrias. Nos outros autores da Escola de Frankfurt, a ausncia de

    tais indicaes ainda maior. O resultado que a vertente por ela influenciada, na

    medida em que critica a cincia, o faz de uma forma que no contribui em nada para sua

    transformao real; na verdade, sem que haja ao menos tentativas de fazer com que a

    crtica seja levada em conta na tomada de decises concretas referentes prtica

    cientfica. (O mesmo pode ser dito a respeito da crtica ps-moderna com a qual, alis,

    a crtica frankfurtiana muitas vezes confundida.)

    Existe hoje em dia um consenso geral, vigente tanto na esquerda quanto na

    direita, de que o conhecimento cientfico desempenha um papel na presente faseneoliberal mais importante ainda que em outras fases da histria do capitalismo. Segue-

    se disso, evidentemente, que nenhuma crtica conseqente ao neoliberalismo pode

    deixar de se pronunciar sobre este tema e, se o que se deseja uma crtica que possa ter

    uma influncia concreta nos negcios do mundo, ela no pode prescindir de diretrizes

    que possam realisticamente ser colocadas como alternativas s do neoliberalismo.

    6. O contedo de algumas das consideraes de Lacey nesta resenha esto presentes tambm nacrtica/autocrtica do Prof. Porchat outro dos mentores da atual gerao de filsofos analticos ementrevista concedida revistaLivro Aberto.

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    Na medida em que d passos significativos nesta direo, a importncia da

    contribuio de Lacey evidente. Mesmo que no se conclua pela aceitao de suas

    propostas, o livro teria no mnimo o mrito de levantar as questes.

    Se estes ensinamentos tiverem boa acolhida, isto estar contribuindo para a

    construo de uma ponte entre as tradies analtica e dialtica em nosso pas, uma

    aproximao que tem tudo para ser benfica para ambas as partes.

    Para finalizar, trs rpidas observaes. A primeira a de que, dada a riqueza de

    idias, a densidade e o carter argumentativo de Valores e atividade cientfica, tudo o

    que foi dito aqui no pode de forma alguma ser tomado como um resumo, ou uma viso

    panormica do livro, uma vez que mesmo idias da maior importncia tiveram de ser

    deixadas de lado, devido aos limites inerentes a este trabalho. O tpico das cincias

    humanas, e sua relao com as cincias naturais, por exemplo, sobre o qual versam os

    dois ltimos captulos do livro, no foi sequer abordado. O que procuramos expor, da

    maneira mais esquemtica possvel, foi por assim dizer a espinha dorsal de um dos

    raciocnios desenvolvidos no livro. A favor desta escolha, por outro lado, pode-se dizer

    que o prprio Lacey a privilegiou, ao apresentar o livro na Introduo.

    A segunda observao a de que as consideraes deste trabalho podem dar a

    impresso de uma concordncia completa com as idias de Lacey. Na verdade, no

    isto que ocorre. Talvez uma anlise mais profunda mostre que a divergncia apenas

    uma questo de nfase, mas pelo menos na superfcie h discordncias em relao a

    alguns tpicos importantes, entre eles o do valor do conhecimento puro, e o da relao

    entre as cincias naturais e as cincias humanas se entre elas h (ou poder haver) uma

    homogeneidade fundamental, que permitiria uma unificao como quer Lacey , ou se

    entre os dois domnios existem diferenas essenciais, devendo portanto se manter umaseparao. Deixamos o debate sobre estas questes para uma outra oportunidade.

    E, para terminar, julgamos tambm que, se as idias de Lacey constituem uma

    contribuio para o pensamento de esquerda, a conversa tambm pode ser verdadeira.

    Mais precisamente, a sugesto a de que na tradio marxista existem elementos que

    podem ser associados s propostas de Lacey, ajudando a enriquec-las. Por exemplo, a

    conexo entre a predominncia da prtica de controle nas sociedades modernas e o

    capitalismo afirmada no livro, porm relativamente pouco explorada. Ser que osconceitos marxistas da cincia como fora produtiva, e da transformao do

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    conhecimento cientfico em mercadoria, to conspcua na presente fase neoliberal, no

    poderiam embasar uma reflexo mais desenvolvida sobre este tema? Talvez um avano

    nesta direo possa estreitar os vnculos das propostas de Lacey com os problemas

    concretos do atual momento histrico, aumentando suas possibilidades de contribuir

    para o processo de construo de uma ordem social mais justa.

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