olhos e dentes
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Olhos e Dentes conta a história de Talião. Que é Guilherme. Que por usa vez, é um rapaz aparentemente normal, fora o fato de ter visto a mãe, a irmã e seu padrasto sendo torturados e mortos pelo próprio pai, aos dez anos.Adotado por seu psiquiatra, levava uma vida normal. Até descobrir que só teria paz, lutando contra pragas como seu pai. E que não faria isso sem derramar muito sangue.TRANSCRIPT
DIOGO MUNIZ E PAULO GOBATO
OLHOS E DENTES
1ª Edição
São Paulo
2014
ÍNDICE
CAPÍTULO 1 ........................................................................................... 7
CAPÍTULO 2 ......................................................................................... 15
CAPÍTULO 1
República, Madrugada de Sábado.
Mais uma manhã e eu continuo acordando em um quarto desses
motéis baratos no centro de São Paulo, ao som inebriante dos
poucos carros que trafegam na madrugada de uma cidade que não
dorme nunca. E como se não bastasse, mal sei como cheguei aqui.
Muito menos como essas duas prostitutas vieram parar nessa cama
comigo. Elisa... aliviar a perda dela dessa forma, não foi a melhor
ideia que você já teve.
O quarto é o de sempre, cheiro de cloro e sexo barato se
misturando ao odor de urina, suor e cigarros. Pouco pior que o
perfume de lavanda que encharca essas mulheres dos pés a cabeça.
Num cômodo pequeno como esse, sinto como se estivesse numa
câmara de gás, entregue à morte. Engraçado como eles ainda
tentam transformar esse pulgueiro em um lugar aconchegante, com
sua mobília velha e inútil.
Preciso de um banho. Essa sensação de estar coberto de limbo
fétido é insuportável. Pelo menos o banheiro daqui tem porta,
vagabunda, de plástico, sanfonada, mas já é um avanço. São
completamente inúteis em se tratando do isolamento do cheiro, é
como se estivesse derramando sua dignidade pelo ralo.
Um banho rápido e nada mais. Continuar fingindo que nada
aconteceu não vai ajudar, Talião. Mas por hora, é o melhor que
posso fazer. Mesmo que eu não o quisesse, preciso sair debaixo
desse chuveiro antes que e eu morra eletrocutado. Não que eu seja
exigente, pelo preço mísero que se paga aqui, nem poderia. A
questão é que manhãs como essa estão se tornando constantes
demais. Depois de todos aqueles sermões sobre covardia, olha aí!
Fugindo dos problemas como se estivesse com o rabo entre as
patas!
Como se não bastasse, todo o resto da bebida e as roupas
indevidamente perfumadas das duas estão bem ali no chão do
quarto, amontoadas com a minha, como que proliferando sua
imundice. Não estou fugindo. Estou me preparando. Vou levar isso
às ultimas consequências e preciso saber exatamente quando e
como vou fazer isso.
Por mais que eu alise minha cabeça raspada e áspera, não faço a
mínima ideia de como vim parar aqui. Flashes desconexos ainda
não me valem de nada. Poucas coisas fazem sentido. As doses de
absinto que tomei na Again, a conversa com Sr. Tony, as outras
doses de absinto, mais nada. Quem sabe o resto venha à tona
depois de uma bela dose de café? Será mesmo? Será que
conseguirá remexer essa sujeira toda, com tantas lembranças dela?
Hunf! Costela zoada? Perfeito... Mal consigo vestir a camisa.
Possivelmente é resultado de uma briga. Alguém me segurou pra
salvar a vida de um babaca qualquer, lembro da cara arregaçada e
apavorada dele e da sensação de ser puxado por uma centena de
mãos.
Onde raios eu deixei minha machete? Ungh! Abaixa mais devagar,
meu cérebro está três vezes maior que a minha cabeça... Sim! Não
é uma questão de poder ou querer. É meu dever. Devo isso a eles!
Fabio está completamente perdido. Alguém precisa pagar por isso.
Há mais pó debaixo dessa cama do que em um sarcófago. Na
próxima eu poderia me lembrar disso antes de jogar minhas coisas
aqui debaixo.
Checklist:
Estou vivo;
vestido;
minha machete;
mochila, OK;
carteira;
celular e fones, aqui;
Não preciso de você agora! Não quero vingança, não quero
violência, não quero você perto de mim. Não agora. Vou enfrentar
meu luto como deve ser feito, e sem a sua interferência!
Parece que está tudo certo. Vou deixar essa grana pras duas no
criado mudo e vazar logo daqui. Hum... Acho que a loira estava me
chamando de louco durante a bagunça de ontem e a outra tem um
machucado na boca. Será que eu também bati nelas? Isso tá
realmente saindo do controle, Talião. O melhor que eu posso fazer
agora é ir mesmo embora, fechar essa porta e torcer pra que elas
não me procurem mais.
3:20 da manhã, pelo menos meu celular ainda tem um pouco de
bateria. Ir até o Galore, sem música, ouvindo o grito desesperado
desse lugar, no estado que eu estou, não seria nada agradável.
Playlist pra exaustão/ressaca/luto... Type O Negative? Acho que
serve... Ops! Ai, caralho! Essa costela tá me matando! Prestar a
atenção ao descer escadas! É melhor também lembrar disso da
próxima vez. "♫ I went looking for trouble... And boy... I found
her!"
Ninguém na recepção. Pelo barulho dos gemidos que vêm do
banheiro, parece que o cara não vai passar noite sozinho, o idiota
ainda larga a porta da frente aberta. Não faço ideia de que tipo de
quarto é aquele que eu peguei, muito menos se eu paguei antes de
entrar. Por via das dúvidas, foda-se. Na pior das hipóteses as duas
terão de pagar quando saírem.
Lembro delas, ontem, no chão, uma limpando o sangue memória.
Ainda não amanheceu, mas é melhor eu ir direto pro Galore tomar
um café bem forte, comer alguma coisa e ver se lembro de algo
mais sobre ontem. "♫ The moon is full... Will she trick or treat?"
Em madrugadas frias como essa que não me arrependo de ter
gasto uma grana a mais nesse moletom. Bolsos perfeitos, capuz,
além do preto que me ajuda bem nas atividades noturnas. Hum...
Tô na Timbiras. Caminhada curta. Suficiente pra dar uma aquecida
no esqueleto. Acho que vou pela Ipiranga.
Engraçado, gosto desse amarelo das luzes dos postes. Sou atraído
por elas como se fosse um inseto. Quando percebo, estou há horas
andando sem rumo. Mendigos, viciados, putas e travestis, todos
amontoados em ruas estreitas e escuras. Um bolo de carne podre,
assado em uma forma suja, por uma sociedade "hipocritizada" pela
falsa soberba. O ambiente perfeito pra mim. "♫ Black! Black...
black... black... Number one!"
O Galore só abrirá às 5h. Sem pressa pra chegar lá. Até agora, o
que sabemos da noite passada? Porre de absinto na Again; briga;
duas mulheres, uma agredida; Alguém tentando me segurar... O
"Pequeno" talvez? Pela força, é muito provável...
"Hei, gracinha!”
“Nossa! Com você na minha cama eu não preciso de mais nada!”
“Vem aqui gostosa! Hahahaha!"
Que merda! O que uma mina mirrada dessa faz, sozinha, na Praça
da República às 3h da manhã? A coitada vai ser currada por
aqueles dois sem a menor cerimônia. "♫ Her perfume smells like
burning leaves" É isso! Uma das minas estava sendo agredida pelo
cara na Again! A outra foi tentar ajudar. Ele bateu nela. Ela caiu.
Parti pra cima e arregacei a cara dele. O Pequeno me puxou, e
disse pra eu sair que era melhor. As duas foram comigo. Elas se
limparam e quiseram me agradecer da melhor maneira possível. "♫
Loving you, was like loving the dead." É isso!
Elemento surpresa! Atrás da central de informações.
"Tem um presente pra você, aqui!”
“Pode crer, tem dois presente! Hahahaha!"
E eu achando que esse fim de noite ia terminar no mínimo
tranquilo. "Dá uma olhadinha aqui! Isso... dá uma olhada aqui no
que te espera! Hahaha!" Por que raios eu nunca tenho uma noite
normal? "♫ Loving you,was like loving the dead!" Não tô nem
pedindo que seja boa. Só normal, mesmo. Sem esses dementes
fazendo merda. Capuz! Machete! "♫ Loving you, was like loving
the dead!" Essa música não rola... Aqui eles já não me veem, nem
a luz do celular... KREATOR? Bem melhor!
Só mais alguns metros... "Aí! Já tô ficando cansado, garota! Vem
logo fazer a nossa alegria! Vem... você vai adorar!" Vocês não
imaginam o quanto... "Vem que já tá no ponto!" Sim, tá prontinho!
Mais um pouco... mais um pouco... Uma sombra! É ela... Mais
duas... Estão bem perto... "Vem aqui que eu já cansei disso, sua
vadia!" Ela passa! Um braço! "Ahh!" Agora!
Machete sobe pela direita. "♫ Society failed to tolerate me!" Braço
decepado. "♫ And I have failed to tolerate society" Girar machete.
"Filho da puta! Meu braço!?" Estocar machete no estômago!
"Ugh!" Puxar machete. "♫ ...inside I hear the echoes of an inner
war" Firmar machete na mão. "Hã? Desgraçado!" Subir machete.
"♫ Nothing can take the horror from me..." Preparar para descida
com força. "Puta que pariu...Não!" Alvo, cabeça. "♫ My hate has
grown as strong as my confusion" Machete desce. "♫ My only
hope, my only solution..." Cravada no crânio. Morte instantânea.
Puxar machete. Corpo caído.
Cadê a moça? Ainda no chão... "♫ I do not need a cause for my
rage! I just despise the nature of the human race" Moça? Deve
estar em choque... melhor virar ela pra não... Emanuelle? Mas... O
que raios você faz aqui? Está fria! Facada no abdômen! Perdeu
sangue demais! Emanuelle!? Inconsciente... Emanuelle... Não!
Você, não! Eu te avisei pra não se envolver nisso! Será que foi
uma emboscada? Emanuelle!? Malditos! Filhos da puta! A polícia?
Não! Não! Não! Agora não! Não posso ficar aqui... Foge! Preciso
fugir! Se me pegarem não vou descobrir quem é o desgraçado! Me
perdoa, Manu! Pega a machete! Me perdoa! Corre, caralho!
CAPÍTULO 2
Rápido... Rápido! Corre, caralho! Atravessa logo a rua. Vai de boa.
Perto da parede. Sem ser visto. Anda! Mais... mais... uma quadra
parece infinita nessas horas. Entra! Atrás do biombo! Encosta aí!
Respira... Se controla... Onde que eu entrei? Ah tá... não
encontraria nada melhor que isso por aqui... Esses cinemas pornôs
já me salvaram de umas boas. Conhecer essa galera foi de grande
ajuda. Cadê o Beréba? Deve tá lá no fundo... Vou pro banheiro
logo e procuro ele depois...
Que bosta... tô todo cagado de sangue daquele merda! Cacete, a
Manu... o Fabio vai ficar louco... Sorte o Beréba ter colocado papel
aqui hoje. Tomara que não fique putinho com a bagunça... Argh,
minha blusa nova... filho da puta... Vai demorar um século pra tirar
esse sangue daqui. Sangue da Manu... Chega disso, caralho! Ela
procurou, você sabe muito bem!
"Toc! Toc!Toc! Quem que tá aí?"
Beréba? É o Guilherme, Beréba!
"Guilherme? Que Guilherme, caralho?"
Guenta aí que eu já vou sair!
"Não vai me zoar o banheiro, hein! Lavei essa porra ontem!"
Relaxa aí! Já tô saindo! - Bom... Limpar isso aqui vai ser foda
agora... Enfia na mochila. Lava a mão logo e sai fora daqui...
Limpa a machete! Coloca devolta na bota! Beleza... Quebra o
galho! - Beréba!? Tá aí?
"Tô aqui na frente! Tá cheio de coxinha ali na praça!"
Merda... Mas pelo menos ele não me viu entrar... Acho que não dá
nada ir até lá. - E aí!?
"Oh, cara! É você? Hahaha... De boa?"
De boa... o que péga?
"Sei lá, parece sério..."
É... estranho... quando entrei tava de boa. Deve ter sido agora.
"Vou lá dar uma narigada, guenta aí que eu já volto."
Beleza... vai lá... Vou ficar aqui. Se for tragédia eu passo mal,
heh!
"Zé roela... Beleza, guenta aí!"
Álibi, OK. Mais três viaturas. Tá ficando foda, isso... Preciso
mesmo dar um tempo aqui. - Viu lá?
"Cara, não consegui ver muito, mas tem uma poça foda de sangue
e três montes de carne no chão. Vi um cochinha chamando a
perícia... Sei lá... Se pá, é o mesmo cara que largou a cabeça do
outro lá na Sé!"
Pode crer! Caralho, três corpos? - Se eles realmente desviarem a
investigação pra esse idiota da Sé, eu fico tranquilo pra correr atrás
do viado que mandou matar a Manu. Ela precisa ser vingada. Por
ela, pela Elisa e pelo Fabio, coitado... Tudo ao seu tempo! Controla
essa emoção se não a gente tá fodido! - Beréba.
"Quê?"
Preciso dar uma dormida cara, descola uma cabine aí pra
mim?
"Porra, véio! Já falei pra você que essa porra não é hotel,
caralho!"
Eu sei, mano. Desculpa aí. Mas tá cheio de polícia aí, cara. Não
tô nem um pouco afim de tomar um enquadro só por que to
passando por aqui, manja?
"Você foda, hein! Ainda vou me foder com o patrão por sua
causa... Tó! Vai logo lá pra 42 e vê se não ronca nessa porra!"
Valeu!
Não vou dormir... Quem dormiria? Preciso de tempo até o metrô
abrir e depois vazo daqui o quanto antes. Cabine 42? 27... 31...
36... 40... Essa! Ainda bem que tá aqui pra trás.
4:23... a bateria tá no osso... vou embassar aqui mais uns 20min.
Preciso ouvir alguma coisa além de punheta e gemidos se não vou
enlouquecer... se o celular morrer, morreu... Preciso pensar em
como vou lidar com o Fabio... "♫The mirror's image, It tells me
it's home time" Perder a esposa e a filha em poucos dias não é fácil
pra ninguém. Não está sendo pra mim, pra ele vai ser o fim do
mundo. Pensando na dor alheia... quem diria! "♫And to my
message you reply" E de que adianta ficar lamentando essas coisas
agora? Talvez pra saber que ainda existe um ser humano aqui
dentro? Pff... quanta balela... quem precisa de humanidade, num
mundo como esse? Quem precisa de sanidade? "♫I need a
partner, Well, are you out tonight?" Somos os mais egoístas entre
todos os seres vivos.
4:31... Cada um pensa no seu umbigo e se orgulha muito disso.
"♫Se todo mundo fosse embora, E só eu ficasse aqui" Se orgulha
em saber que ganha dez vezes mais que o fulano que recolhe o seu
lixo. Se orgulha em ser capaz de esconder das pessoas à sua volta,
que a sua vida é uma farsa, "♫ Sem choro nem despedida, Mesmo
porque ninguém se conhecia" que sua família é uma ruína... Quem
precisa de humanidade em um lugar como esse? É isso que você
pensa do Fabio, então? Que tudo o que ele fez por você é uma
farsa? Que ter amado você como filho foi só um artifício social?
Amor... a maior arma à favor dessa decadência... chega dessa
conversa furada! "♫Ergam seus copos por quem vai partir"
4:48... até que passou rápido. Se não me engano esse prédio tem
uma saída pelos fundos e a viela vai dar na 24 de Maio. "♫Não dá
tempo de se arrepender, Nada que já não deva saber" Nem vou
avisar o Beréba, melhor eu me mandar logo. Tomara que aquela
portinha esteja aberta... Punheteiros às 4h da manhã... tem que ser
muito perderdor. Ninguém nos corredores, a porta tá logo alí! Essa
luz negra tá me ajudando bem. "♫ Eu me despeço de todos vocês,
Muitos aqui não verei outra vez" A maçaneta da porta tá bem
visível. Destrancada! O Beréba tá vacilando aqui...
A rua não tá tão cheia ainda, mas é o suficiente pra eu passar
despercebido pela polícia. Deixa o fone no ouvido, "♫ Quero que
a estrada venha semp..." mas pára a música. Melhor ouvir bem o
que tá rolando em volta. Puta merda, me sinto completamente
vulnerável sem meu moletom. Voltar pra estação não é má ideia.
Além de levantar menos suspeitas, dou uma olhada no
movimento... Dom José de Barros, direita. Tudo fechado ainda. Só
os camelôs que já estão montando as barracas. Barão de
Itapetininga, direita. Nossa! Tá cheio de gente no final da rua...
Mal consigo sair daqui... todo mundo amontoado. Todos sádicos
doentes. Vai mesmo largar a Manu, alí? Como se fosse carniça
servida aos urubús? Não tem outro jeito... Você tem se tornado um
verdadeiro animal! Sem escrúpulo algum! OK... volta lá então! Faz
uma cena! Chora alí, na frente de todo mundo! Grita de dor e
desespero por ter "encontrado" a irmã esfaqueada no chão!
Obviamente você não levantará suspeitas... Até parece... Anda logo
pro metrô e cala essa boca! Tem polícia pra caralho aqui! Se faz de
curioso, tenta dar uma sapeada... Mas sem parar pra olhar... Não
quero olhar! E não fala com ninguém...
"Parece coisa feia, hein?"
Free-talkers... - Pois é! Parece... - Ignora e continua andando... A
estação tá na sua cara! Anda! Sorte que esse lado tá aberto hoje...
desce logo a escada! Adeus, Manu... Ainda bem que to pegando
um contra-fluxo... O outro lado já tá entupindo de gente. Mas pra
Barra Funda tá de boa, ainda. Cadê meu bilhete? Bolso esquerdo. É
gente que não acaba mais... a maioria anda quase correndo. Preciso
recarregar ele amanhã...
"Nas escadas e corredores, mantenha-se à direita, deixando a
esquerda livre..."
Essa voz nos auto-falantes, me dizendo como devo me comportar,
que sou uma pessoa mais legal se isso ou aquilo e blá, blá, blá...
Orwell ficaria orgulhoso! Solta a música outra vez antes que eu me
irrite mais ainda... Tá chegando uma composição... dá uma
acelerada pra entrar nessa mesmo e não ficar de bobeira na
plataforma.
"... não ultrapasse a faixa amarela..."
Entra logo nessa bagaça!
"Bip! Bip! Bip! Bip! Bip!"
Nem vou me sentar...
"PróximaestaçãoSantaCecília... Desembarque... peloladodireito."
É... tá com uma vontade monstra de trabalhar hoje, hein? O que
esse menino tá querendo? Criança me encarando é uma coisa que
dá nos nervos...
"Que coisa feia, Dudu! Pára de encarar o moço!"
"Ele tá com sangue, mamãe..."
Putz... não tô falando?
"Pára com isso menino!"
Chega logo... chega logo!
"Não pode ficar reparando nas pessoas, é falta de educação..."
Nossa... Isso vai dar merda... Sai logo daqui!
5:10... Vou chegar no Galore antes dele levantar. A amaral Gurgel
já tá parada, o Elevado não cabe nem uma agulha de tanto carro.
Nessas horas eu me orgulho de não perder tempo dirigindo por aí.
Daqui já dá pra ver a esquina da Marquês de Itú, o Galore tá
fechado mesmo... O barulho da porta vai acordar ele... Certeza!
Aproveita o vermelho e atravessa... Cadê a chave? Ainda bem que
eu deixei no lugar de sempre... Não me lembrei dela quando saí
daquele motel, poderia muito bem ter esquecido lá. Essa porta de
ferro tá muito zoada... vou ver com o Galore pra gente por uma
graxa aqui... Tá tão ruim pra subir que parece feita de chumbo!
Tudo apagado, ele ainda tá lá em cima mesmo. Abaixa a porta...
vou prepara um café enquanto ele não desce...
"Quem tá aí!? Responde logo pra não levar bala na cara!"
Levantou num pulo! - Sou eu, o Guilherme! Perdeu a hora?
"Porra moleque, quase que eu te parto a fuça, hein!"
Percebi... guarda o trabuco e vem tomar um café.
"Guenta aí! Vou botar uma roupa..."
Galore... nem sei onde eu estaria se ele também não tivesse me
dado uma força com esse trampo. Esquenta a água. Não posso
continuar ignorando o que aconteceu... Mas também não dá pra
sair choramingando por aí! Ninguém pode sacar que você já sabe
da morte da Manu... Se souberem, você inevitávelmente será o
primeiro suspeito... O irmão bastardo... Ela não me via assim!
Muito menos o Fabio e a Elisa... Preciso falar com ele. Eu deveria
estar com ele agora... não aqui! É... Vai lá! Aproveita e treina uma
cara de surpresa, mas treina uma boa... Por que ele vai precisar
acreditar muito, dessa vez. Dois litros de água... Doze colheres de
pó... café forte na medida.
"Então! Se eu perdi a hora, você foi expulso da cama! O que te fez
madrugar, hoje?"
A Elisa, velho... Tá morta.
"Quê!? Que caralha é essa!?"
Não tem um jeito bom de se dizer... é isso... Ela tá morta. Na
verdade... Mataram ela.
"Péra! Péra! Péra! Tua mãe tá morta? Você comeu merda? Tá
querendo tirar com a minha cara, moleque?"
Pareço do tipo que faz piada assim?
"Não! Por isso que tá estranho... Então é sério mesmo? E o
Fabio? O que raios você tá fazendo aqui?"
Senta aí... vou pegar um café pra você também.
"Puta queo pariu... mataram? Mas o quê foi? Assalto?"
Tá sem açúcar... Não... Nada foi roubado. Até o fim do funeral
o Fabio estava em choque. Não consegui ficar pro enterro.
"Que cacete, hein moleque... como pode? Que porra de mundo é
esse? Quando foi isso? Porquê não me avisou antes?"
Nem lembrei disso, velho... Tá difícil lembrar da noite passada,
o que dirá do resto...
"Não sei o que dizer, moleque... Sei lá... sinto muito!"
É... toma o café aí...
"Hum! E a tua irmã?"
Também não vi mais depois do funeral...
"Sei... Você precisa ir até eles, moleque... São tua famíla!"
Tá meio difícil... a casa do Fábio tá fechada pela polícia. Ele foi
pra um hotel. A Manu tava na casa do namorado. Então... eu
vim pra cá!
"É meu rapaz... a única certeza... não é o que dizem? A morte?"
É o que dizem...
"Mas a polícia falou alguma coisa? Vocês sabem o que pode ter
acontecido?"
Ainda não... Tem alguma coisa pra dor de cabeça aí?
"Cê tá de ressaca, né? Por isso tá aqui essa hora... que papo é
esse de não lembro de nada?"
Não lembro... Até agora eu sei que fui pra AGAIN, tomei
absinto, defendi duas minas de um cara, saí de lá e fui pro
motel com elas...
"Que beleza, hein... Nem todo mundo costuma velar a mãe desse
jeito..."
Não enche... Foi a melhor saída que eu encontrei... e pra minha
sorte esqueci quase tudo.
"Pois é... Bom... fazer o quê? Se quiser vazar hoje, me diz. Eu peço
pro Vareta te cobrir e você pode ir!"
Pode deixar, mais tarde vou pro hotel ver o Fabio e saber como
ele tá...
"Isso.. faz isso... se quiser pode ligar pra ele daqui, também! Cê
que sabe!"
Beleza... valeu, velho... Vai abrir agora?
"Vamo sim! Quase 6h já... tá na hora! Liga a TV aí pra eu ver a
previsão do tempo."
Droga! - OK! - Evitar isso já seria proeza demais!
"...na Praça da República. Segundo a pol..."
Ô Galore... Desculpa aí, daqui a pouco eu ligo de novo... deixa
só o café fazer efeito, minha cabeça vai explodir!
"Cagão... vou perder a meteorologia... Hunf... Tá.. tá! Vamo
ajeitar aqui pra eu levantar a porta!"
Quanto mais tempo eu ganhar, melhor... Limpo essas mesas,
coloco as coisas no lugar e logo abrimos a porta... Assim eu me
mantenho ocupado... O Galore limpa tudo depois de fechar, mas
preciso fazer alguma coisa pra desviar minha cabeça. A geladeira
tá meio vazia também.
Vou encher essa geladeira aí, ok?
"Tá precisando mesmo... Pega lá no fundo, enquanto eu subo a
porta!"
Só laranja e guaraná?
"Pode trazer um pouco daquele suco de uva também!"
Tá! Vou lá...
"...o técnico disse que o time está preparado, e que..."
Ele ligou a TV... maldito vício! Essa merda é pior que crack... Pelo
menos não estão mais falando da Emanuelle. Guaraná... Suco de
uva? Aqui! KS de laranja.. Beleza! Levo essa na próxima... Nossa!
Mal abriu e já entrou gente?
"... na Zona Sul. Mesmo assim, o nível das Represas de
Guarapiranga e Billings continua muito abaixo do considerado
normal..."
"Chuva... 5 minutos de pingo d'água e eles chamam isso de
chuva!"
"e tem gente que não acredita no fim dos tempos, hein Galore?"
"Fim dos tempos? Isso é papo de quem não tem coragem de
levantar o rabo da cadeira e fazer alguma coisa pra mudar essa
merda!"
Humm... Isso vai longe...
"... sol e calor o dia todo. Mas espera-se pancadas fortes de chuva
no final da tarde e durante a noite. Hermano..."
Buscar as KSs!
"E hoje pela manhã..."
Por enquanto, tudo bem... Vou colocar a chapa pra esquentar...
pelo jeito o Vareta vai dar o cano de novo.
"... dos três corpos, um é de uma mulher de aproximadamente 20
anos, esfaqueada na barriga. Os outros dois, ambos do sexo
masculino, foram encontrados brutalmente assassinados. A polícia
ainda não tem certeza sobre o autor do crime, mas levanta a
hipótese de uma ligação com o corpo esquartejado encontrado na
semana passada, também no centro de São Paulo."
Merda! Eu e a minha vã perseverança...
"De acordo com os documentos encontrados com a mulher, ela é
Emanuelle Karstens, filha do psiquiatra Fabio Karstens cuja
esposa também foi assassinada na última sexta-feira. A polícia não
quer dar mais detalhes sobre o caso, mas dis..."
"Ow Galore! Liga isso aí!"
"Guilherme..."