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Olhar a leitura-literatura para a infância:
perspectivas, contextos e práticas
Bárbara Duque, nº 29430
Projecto de investigação
2º ano do Programa Doutoral em Ciências da Educação
Especialização Educação e Desenvolvimento
Orientação:
Professora Doutora Mariana Gaio Alves
Professora Doutora Nair Rios Azevedo
Lisboa, 17 de Maio de 2010
Ano lectivo 2009/2010
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
1
Pablo Picasso, 1901 Child with the dove [Femme au pigeon],
The National Gallery, Londres, UK
«As histórias, como as parábolas, os enigmas e os símbolos, dirigem-se à área mais
reflexiva da pessoa, onde o afecto e o conhecimento se unem, para nos fazer desejar, admirar e
sonhar. Virão depois as razões, para confirmar e universalizar, mas, entretanto, já nos
deixámos fascinar.»
Pedro D’Orey da Cunha, Revista “Diálogo Entreculturas”, Dezembro de 1994
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
2
Índice
1. Introdução: motivações, relevância do estudo e questões de partida 3
2. Objectivos: para a definição de uma problemática 6
3. Revisão de literatura: contributos teóricos 9
3.1. A Infância: perspectivas da sociologia 9
3.2. A criança e a psicologia do desenvolvimento 10
3.3. De uma problemática da leitura… 12
3.4. Para uma definição de Literatura para a Infância 14
3.5. A leitura-literatura como um processo de desenvolvimento e aprendizagem 15
3.5.1. Porquê leitura-literatura? Por que é sempre alguém que nos lê… 17
4. Metodologia: à procura do melhor ângulo 19
5. Recursos e plano de trabalho 23
6. Bibliografia citada 25
7. Pesquisa bibliográfica 30
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1. Introdução: motivações, relevância do estudo e questões de partida
Desde a pesquisa teórica à pesquisa empírica, as opções tomadas e os caminhos
percorridos, devem-se às escolhas, às motivações e às heranças (pessoais e académicas)
do próprio investigador. Por isso, antes de se aludir à relevância científica deste
projecto deve explicitar-se aquelas que são as motivações pessoais nele subjacentes.
O primeiro livro que li – com mais letras do que desenhos – foi O meu pé de
Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos1. Nessa altura, não consegui perceber toda
a grandeza contida na frase inicial: história de um meninozinho que um dia descobriu a
dor… Tinha 6 anos e um imaginário repleto de princesas, castelos, palácios; mas
também de crianças como o Zézé, que trepam às árvores, fazem asneiras, descobrem
coisas novas e sabem o que é a tristeza. E recriava essas histórias: punha um chapéu de
palha, levava um cesto com o lanche e a aventura, nessa tarde, começava… Os livros
eram, assim, uma bengala para essa capacidade-vontade de sonhar. O livro escrito
tornava real aquilo em que eu acreditava, dava-me segurança e abria ainda mais portas
para sonhar. É incomensurável aquilo que aprendi /aprendo / aprendemos todos
através da literatura.
“Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como (...) aqueles que passámos com um livro preferido. Tudo quanto, ao que parecia, os enchia para os outros, e que afastávamos como um obstáculo vulgar a um prazer divino: a brincadeira para a qual um amigo nos vinha buscar na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol incomodativos que nos obrigavam a erguer os olhos da página ou a mudar de lugar (...), o jantar que motivara o regresso a casa e durante o qual só pensávamos em nos levantarmos da mesa para acabar, imediatamente a seguir, o capítulo interrompido (...).
A leitura (...) gravava em nós uma recordação de tal modo doce (de tal modo mais preciosa no nosso entendimento actual do que líamos então com amor) que, se ainda hoje nos acontece folhear esses livros de outrora, é apenas como sendo os únicos calendários que guardámos dos dias passados, e com a esperança de ver reflectidas nas suas páginas as casas e os lagos que já não existem.”2
1 VASCONCELOS, José Mauro de (1976), O Meu Pé de Laranja Lima, Lisboa / Porto / Luanda, Centro do Livro Brasileiro. 2 PROUST, Marcel (2003), O Prazer da Leitura, Lisboa, Editorial Teorema.
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A minha primeira aproximação ao mundo da literatura para a infância
enquanto campo de estudo deu-se ainda durante a licenciatura em Sociologia3. Estava
no 2º ano quando a minha amiga Rita morreu. E eu perguntava porquê. Por que é que
nunca ninguém me tinha falado daquela dor? Onde ir buscar ajuda para explicar
aquilo que eu estava a sentir? E por que é que não se ensina a “perda” às crianças? E
fui à procura das histórias que o faziam. A menina dos fósforos, de Hans Christian
Andersen, foi a obra eleita, a partir da qual explorei esta temática com um grupo de
crianças do 1º Ciclo4. Na verdade, elas têm mesmo uma grande capacidade de nos
surpreender, veja-se o exemplo:
Investigadora: “Acham que a menina foi para o céu?”
Crianças: “Sim, claro.” “Não, foi para o cemitério.”
“Primeiro vão para o cemitério, depois é que vão para o céu.” “O corpo é como uma marioneta, a alma é que está a conduzir.”
“Quando a gente morre vai para a paz.” Investigadora: Vocês acham que na história a morte é um final feliz ou triste, porquê?”
Crianças: “Triste!” – em uníssono, “Porque a pessoa morre e não se pode mexer, e ficamos lá no céu a fazer o quê? A olhar para o
chão?” “Teve um final feliz porque ela ficou com a avó.”
Nesta conversa, as crianças referem-se ao momento da morte como sendo
simultaneamente o mais triste e o mais feliz já que, embora tenha morrido, a menina
dos fósforos encontrou a avó, de quem tanto gostava.
É pelo facto de as histórias serem dotadas deste poder transfigurador, que não
mais deixaram de ser um apaixonante campo de descoberta também para mim, como
pessoa, como investigadora, e agora como mãe.
“Com a chegada da Maria Rita, a visão e as leituras – desse e de outros ‘objectos’ – tem-se vindo a alargar. E a biblioteca cresceu. As histórias são reinventadas. Os livros são escolhidos
como objectos simultaneamente pedagógicos, estéticos e poéticos. Encaro a sua vontade de comunicar como um extraordinário desafio de aprendizagem mútua.
«Já estou muito crescida, cada dia aprendo novas palavras e até já sei contar histórias.» Excerto da carta escrita (pela mãe da Maria Rita) para a bisavó em Agosto de 2009”5
3 ISCTE, 2000-2005 [Antigo Plano de Estudos (Despacho 36/97)]. 4 No âmbito da cadeira Métodos e Técnicas de Investigação Científica II. 5 Retirado do trabalho final do Seminário de Aprofundamento Teórico III, Programa Doutoral em Ciências da Educação, ano lectivo 2008/2009.
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A vontade de experimentar diversos domínios da realidade é um dos objectivos
que vem pautando o meu percurso quer académico quer profissional. Por conseguinte,
tendo em conta tal entusiasmo pelo mundo fantástico das histórias, o projecto a
apresentar no quadro deste Programa Doutoral consiste, precisamente, em partir desse
universo para cruzar perspectivas e aí encontrar novos significados. Como novo modo
de olhar para este objecto empírico, a questão de partida que pauta esta investigação
pode ser embrionariamente formulada nos seguintes termos:
Em que medida a leitura-literatura para a infância, entendida como agente mediado(r) de
socialização e, simultaneamente, agente de desenvolvimento pessoal, se revela enquanto processo
educativo?
A pedagogia do imaginário é, para alguns autores, uma dimensão importante
na educação, sendo às histórias reconhecido e valorizado esse papel (DUBORGEL 1992;
DINIZ 1993 [2001]; MESQUITA 2002; BETTELHEIM 2003 [1976]). A proposta deste
projecto preocupa-se pois, num primeiro nível, em desocultar a dimensão do
desenvolvimento humano, social e relacional dos processos pedagógicos contidos no
momento – mágico – de leitura de uma história. O binómio leitura-literatura encerra
esta ideia de cruzar o processo ou a acção (momento contextualizado, situado) com o
objecto ou instrumento (livro concreto). Tentando-se, por essa via, repensar contextos,
perspectivas e práticas de utilização das histórias pelos diferentes cenários e actores
educativos.
Para descobrir a magia que as suas páginas encerram e atribuindo-se aos livros
uma acepção mais lata do que o objecto em si, torna-se necessário considerá-los como
elementos para serem desfrutados com os olhos, com as mãos, com os ouvidos e com todos os
sentidos; livros para serem lidos e também contados…6 Redescobrindo, portanto, a leitura
nos contextos de modernidade, aos olhos de quem lê, de quem escuta, nos lugares
onde esses momentos acontecem.
6 http://www.kalandraka.pt/index22.htm, acedido a 7 de Maio de 2010.
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2. Objectivos: para a definição de uma problemática
“- Gatinho de Cheshire – começou, num tom de voz tímido, porque não sabia se ele gostava de ser assim chamado. Porém, este alargou o sorriso. «Bem até agora parece contente», pensou
Alice, e prosseguiu. - Podias fazer o favor de me dizer para onde devo ir a partir de agora?
- Isso depende muito de para onde queres ir. – disse o Gato. - Não me importa muito onde… – respondeu Alice.
- Então também não importa por onde vás. – disse o Gato. - … desde que chegue a algum lado – explicou Alice.
- Oh, com certeza que chegas – disse o Gato – se andares o suficiente.”7
Tendo em conta o que foi anteriormente dito – que se trata de um projecto que
contém em si o caminho percorrido e ainda a percorrer pela investigadora – os
contributos para a definição da problemática são, neste caso, um ponto de partida para,
em jeito de exercício experimental, começar a investigar. Com esta questão na bagagem
e partindo dos pressupostos teóricos da psicologia do desenvolvimento, por um lado, e
da sociologia da infância, por outro, proponho-me partir à descoberta de diferentes
experiências de leitura e relação com a literatura para a infância vivenciadas por
crianças em idade pré-escolar, ou seja, dos 3 aos 5 anos. Mais adiante as razões desta
escolha serão aclaradas.
Pese embora estas perspectivas – no âmbito dos estudos sobre a criança e/ou
sobre os processos educativos – tenham vindo a percorrer caminhos ora divergentes
ora complementares, o que é facto é que, como refere Bernard Lahire (LAHIRE 2005), a
realidade, ou os objectos empíricos em si, não são predominantemente sociológicos,
psicológicos, históricos, antropológicos… Citando Saussure, e para uma boa
compreensão da realidade social (apelando a este exercício, óbvio, de cruzamento
disciplinar), diz-nos ele que é o ponto de vista que cria o objecto e não o objecto que fica
tranquilamente à espera, no real, do ponto de vista científico que venha revelá-lo (LAHIRE
2005: 11).
Se é verdade que a construção de um dado objecto de estudo é um processo, um
caminho que se percorre ao longo das várias etapas de investigação e que se vai,
sistematicamente, reconstruindo (LESARD-HÉRBERT, GOYETTE et al. 2008 [1990]),
7 CARROLL, Lewis (2009 [1865]), As Aventuras de Alice no País das Maravilhas, Lisboa, Relógio D’Água, pp. 74-75.
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especialmente com crianças – que nunca deixam de nos surpreender (GRAUE and
WALSH 2003 [1998]) –, também é verdade que a definição da problemática, mesmo
nesta perspectiva de estando sempre inacabada, permite garantir a coerência interna de
um dado projecto de investigação. Para o efeito há então que delimitar pressupostos
(teóricos e epistemológicos) e definir objectivos.
Atendendo a que,
1. O momento da leitura, para além do objecto-livro que contém, é também um
contexto rico de aprendizagem pelas dinâmicas constituintes e processos que
implica (DINIZ 1993 [2001]; CUNHA 1997; MORAIS 1997; BETTELHEIM 2003
[1976]).
2. Esse momento, vivido em diferentes contextos, tem contornos distintos,
modelados pelos processos aí experienciados, pelos objectivos inerentes e pelos
actores nele implicados (AHMED 1983; TRILLA-BERNET 1993; AAVV 2001).
3. As histórias e o imaginário são instrumentos capazes de promover
desenvolvimento pessoal, social, relacional (DUBORGEL 1992; DINIZ 1993
[2001]; COSTA 1997; MESQUITA 2002; BETTELHEIM 2003 [1976];
CAVALCANTI 2004).
4. O desenvolvimento é uma dimensão estruturante dos processos educativos
(FAURE, HERRERA et al. 1972; FREIRE 1979 [1970]; DUBORGEL 1992;
DELORS 1996; LEE 2001; AZEVEDO 2004; SANTOS 2007; VYGOTSKY 2007
[1934]; FELDMAN 2009).
5. Dos principais factores de desenvolvimento faz parte a construção do indivíduo
enquanto elemento de uma dada sociedade (PARSONS and BALES 1968;
BOURDIEU 1979; GIDDENS 1997 [1993]; DURKHEIM 2003 [1922]), capaz de
gerir diferentes disposições consoante os contextos em que é socializado – a
ideia de homem plural (LAHIRE 2003 [2001]).
6. Partir da óptica da criança, enquanto agente que escuta, que cresce e participa,
de modo activo, nesse processo (FREIRE 1979 [1970]; HAECHT 1992;
SARAMAGO 1994; VELHO 1994; TOURAINE 1996 [1984]; MONTEIRO and
CASTRO 1997; SEBASTIÃO 2000; SIROTA 2001 [1998]; GRAUE and WALSH
2003 [1998]; SARMENTO 2004; SANTOS 2007; ALMEIDA 2009).
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7. Relação horizontal (pedagógica mas também de afecto) da criança com os
outros (educadores): que lhe lêem, o que lêem, como lêem (FAURE, HERRERA
et al. 1972; DELORS 1996; NETO and MARUJO 2004).
8. A literatura para a infância (e sua leitura) contém, em si, uma dimensão
individual (de confronto do sujeito consigo mesmo) e social (de compreensão
do mundo, das relações e da vida em sociedade) (COELHO 1980; CHARTIER
1995; MORAIS 1997; CONDE and ANTUNES 1998/99).
9. A literatura é instrumento insubstituível de desenvolvimento do pensamento
tanto em termos cognitivos, de raciocínio, como ainda de questionamento, de
reflexão crítica (MORAIS 1997; MEIRELES 2001; MESQUITA 2002;
BETTELHEIM 2003 [1976]).
10. A sociedade de aprendizagem (mais até do que a do conhecimento) potencia os
contextos e as práticas educativas (TRILLA-BERNET 1993; ALHEIT 1999;
AHMED 2002; CASTELLS 2002; JARVIS 2007).
Os objectivos deste projecto são:
1. Contribuir para a compreensão da leitura-literatura como um momento
educativo gerador de processos de desenvolvimento e dinâmicas de
aprendizagem para a construção pessoal e social do indivíduo.
2. Contribuir para uma análise compreensiva da literatura para a infância
enquanto instrumento pedagógico e educativo em vários contextos e com
diferentes actores.
3. Compreender os processos de desenvolvimento e aprendizagem na acção-objecto
“ler um livro” na sua relação com o contexto (estratégias, usos, perspectivas) e
os seus actores, ou seja, mediados pelas relações comigo, com os outros, com a
sociedade.
4. Compreender – iluminar – os factores socio-psicológicos contidos nas situações
de leitura com crianças aptos a contribuir para os processos de socialização,
desenvolvimento e crescimento da pessoa (ser pessoal) / indivíduo (ser social).
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3. Revisão de literatura: contributos teóricos
3.1. A Infância: perspectivas da sociologia
Há algumas décadas, a infância era vista como um momento não padronizado
do trajecto social dos agentes, e a criança como um mero «aprendiz de actor social»,
desprovida de qualquer valor próprio e simples objecto, passivo, de socialização. O
processo de socialização, tal como Parsons e Bales o definiram (PARSONS and BALES
1968), consiste na transmissão das normas, costumes e valores de uma determinada
cultura de forma a tornar possível a sua continuidade. Na definição de Giddens, este é
o processo pelo qual, através do contacto com outros seres humanos, a criança independente se
torna, gradualmente, um ser auto-consciente e conhecedor, treinado nos modos próprios de uma
determinada cultura (GIDDENS 1997 [1993]: 111). A socialização processa-se ao longo da
vida do indivíduo, todavia, é na infância, através da família, da escola, do grupo de
pares (agências socializadoras por excelência), que se dá uma maior aprendizagem do
meio social à sua volta. Muitas vezes as próprias matrizes ou disposições contidas
nesses sucessivos, paralelos, mas nem sempre concomitantes processos, resultam em
relações tensas e contraditórias. Aliás, este processo deve ser entendido como
contendo, simultaneamente, transferência e suspensão de disposições. A gestão disso
mesmo resulta em dinâmicas de fragmentação e unicidade do indivíduo. Adianta-nos
Lahire que
é portanto difícil prever com exactidão o que, num contexto específico, vai “jogar” (“pesar”) sobre cada indivíduo e o que, dos múltiplos hábitos incorporados por ele, vai ser desencadeado num/por um determinado contexto. Em função das pessoas com quem o indivíduo considerado coexiste duradouramente (cônjuge, filhos) ou temporariamente (amigos, colegas...), em função do lugar que ele ocupa na relação com essas pessoas ou em relação à actividade que desenvolvem juntos (dominante ou dominado, líder ou seguidor, responsável ou simples participante, implicado ou não implicado, competente ou não competente...), o seu património de disposições e de competências é submetido a forças de influência diferentes. (LAHIRE 2005: 37)
A visibilidade das crianças enquanto protagonistas do espaço público surgiu,
em primeiro lugar, passou por encará-las como membros da sociedade ou de outros
agregados mais pequenos, as famílias. Para além disso, as principais investigações
sociológicas que as tomaram por objecto de estudo revelam-nas, sobretudo, na sua
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relação com a escola, ou seja, a criança enquanto aluno (HAECHT 1992; SARAMAGO
1994; SIROTA 2001 [1998]; GRAUE and WALSH 2003 [1998]; CHRISTENSEN and
JAMES 2005; ALMEIDA 2009).
Actualmente, e através do aparecimento da Sociologia da Infância, passou-se a
considerar a infância um grupo social com todas as dinâmicas a ele subjacentes. De
acordo com semelhante entendimento, este tende a desenvolver relações, sentidos
sociais que produzem linhas de continuidade entre os seus membros quanto a práticas
e representações comuns, tal como qualquer outro grupo social, ou seja, construindo
modos de vida e «civilidades» específicas, marcadas pelo espaço e pelo tempo de
vivência infantil (SIROTA 2001 [1998]). Pode caracterizar-se a infância como um núcleo
próprio de relações intergrupais protagonizadas pelas crianças, capazes de intervir socialmente
através da autonomia atribuída pela própria experiência social (SARAMAGO 2001: 10).
É durante os processos de interacção entre a criança – agente social – e a família
ou a escola, que se desenrola o processo de socialização, dado que o desenvolvimento
social humano depende, de forma fundamental, da formação de relações duradouras com outras
pessoas (GIDDENS 1997 [1993]: 90). Como argumenta Rizzini (RIZZINI 2004), as
crianças são também elas actores da história, transformando o mundo enquanto o
vivenciam, através significações que dele fazem e dos sentidos que lhe dão. Aliás, nesta
acepção, elas são também produtoras dos contextos educativos em que participam.
Pensar na criança com capacidade para produzir o seu cenário educativo (ALMEIDA 2009:
15) vem, no fundo, influenciar os estudos sobre educação, nomeadamente, no âmbito
da sociologia que se ocupa desse ramo especializado do conhecimento.
3.2. A criança e a psicologia do desenvolvimento Para a sociologia, só a partir de finais do século XX, surgem os primeiros
estudos sobre a infância como produto e produtora de sentido, isto é, como uma
categoria específica (ALMEIDA 2009). Por seu turno, é sobretudo a partir do início do
século XX que a psicologia do desenvolvimento toma a criança como o centro.
Ora, querendo partir da ideia de criança como um ser social produtor de
sentido (ALMEIDA 2009), no que concerne à psicologia do desenvolvimento vários são
os paradigmas que servirão de base para o compreender: construtivista
(designadamente, a partir dos contributos de Piaget e de Kohlberg), sistémico
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(BRONFERNBRENNER 1979), exógeno (SKINNER 1953; BANDURA 1977;
VYGOTSKY 2007 [1934]). Ademais, pelo seu papel de valorização do eu como pessoa
que aprende na relação com o mundo, serão também abordados os contributos de
autores como Dewey, Paulo Freire ou João dos Santos (FREIRE 1979 [1970]; DEWEY
2002 [1900, 1902]; SANTOS 2007). Fazendo um paralelismo com o que há pouco foi
referido acerca do olhar da sociologia sobre a criança, e porque neste projecto se fala
sempre da criança na sua relação como um leitor-autor que lhe proporciona momentos
de leitura partilhada, far-se-á um exercício similar.
A importância dos pais no desenvolvimento das crianças, remetida no ponto
anterior para o seu papel no processo de socialização, é-nos revelada, no campo da
psicologia do desenvolvimento, por autores como Ainsworth e Bowlby (AINSWORTH
and BOWLBY 1991) nas suas diversas investigações sobre os processos de vinculação.
Bandura (BANDURA 1977) acrescenta-lhe também o processo de modelação a partir do
qual a criança imita os pais, seguindo o seu modelo comportamental. Através da
observação, mas também da comunicação, dá-se então o processo de aprendizagem social
mediante o qual os comportamentos são aprendidos através de reforço vicariante.
É também nas, com e sobre as suas relações privilegiadas que a criança começa
a falar – etapa capital no desenvolvimento. Diz-nos Vygotsky que uma questão
fundamental de análise se prende com a conexão intelecto e afecto. Assim, a linguagem
é um meio de interacção social, um meio de expressão, um meio de compreensão (VYGOTSKY
2007 [1934]: 44). As relações são, efectivamente, elementos estruturantes do
desenvolvimento, por relação [Bronfenbrenner] entende a circunstância em que uma pessoa
num dado ambiente presta atenção ou participa nas actividades de uma outra pessoa
(AZEVEDO s/d: 43). Sendo assim, para se perceber o pensamento infantil, também
isso defende Vygotsky, é indispensável compreender o contexto em que esse pensamento se
forma (AZEVEDO s/d: 21). De facto, a zona de desenvolvimento proximal – como um
espaço de desenvolvimento em potência8 – é permeável a estímulos que têm a sua
origem no conjunto das interacções sociais da criança. Dessa forma se processa
crescimento, aprendizagem, transformação, desenvolvimento. A família é, em qualquer
8 Correspondendo ao conjunto das actividades que a criança ainda não tem capacidade para realizar sozinha.
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campo, um importante elo de ligação entre a transmissão de conhecimentos e a
afectividade, ou seja, entre o afectivo e o cognitivo (DELORS 1996).
3.3. De uma problemática da leitura…
A problemática da leitura pode ser abordada por meio de inúmeros
pressupostos teóricos e de diversas perspectivas científicas, daí que o conceito de
leitura se revista de um certo grau de complexidade, podendo conter múltiplos
significados. Se no campo dos Estudos Literários se podem encontrar perspectivas que
encaram a literatura tanto como um sistema semiótico como intelectual, no caso
particular da Sociologia ela é privilegiada enquanto sistema intelectual, como se irá
explicitar de seguida. Mas, neste sentido, vendo na literatura uma «actividade
criadora», considera-se que o leitor – em dinâmica com o seu contexto – é um elemento
fundamental do livro, já que sem ele a obra literária não se efectiva. É o leitor que
assimila e interpreta à sua maneira o que lê, produzindo também sentidos e
significações próprias (COELHO 1980; MORAIS 1997).
De um modo geral, podemos ler pela simples beleza da linguagem, para saber,
compreender, reflectir, para nos comovermos, inquietarmo-nos, sonhar e aprender a
sonhar, leituras para fazer ouvir as frases e as palavras, leituras para imaginar, recriar,
pensar, fantasiar, leituras narcisistas onde nos procuramos, leituras mágicas, etc.
Segundo alguns autores, as funções da leitura são basicamente duas: considera-
se que a leitura faz parte das formações escolar ou profissional e, também, de um
processo de revelação do «eu». Perspectivada como leitura-prazer, elle doit permettre à
chacun de se trouver soi-même par le détour magique de l’imaginaire (CHAUDRON and DE
SINGLY 1993). Para outros, esta prática social pode ser encarada segundo três níveis de
funções: compreender a leitura numa função «cognitiva» é perspectivar a leitura como
uma janela sobre conhecimentos que a conversação em torno das outras actividades não
consegue comunicar. A nível «afectivo», por exemplo em relação à criança, esta descobre o
universo da leitura pela voz (...) daqueles em quem ela tem mais confiança e com quem mais se
identifica, sejam os pais ou os educadores, como se irá discutir mais adiante. Em último
lugar, pode pensar-se na leitura e na sua função «linguística», que obviamente se
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prende com a assunção de códigos gramaticais de uma dada língua (MORAIS 1997:
165).
«Acção intelectual» e de participação activa numa dada cultura, a leitura
assume uma dimensão social, em virtude de enquanto prática abrir o sujeito para uma
relação com o mundo. Mas igualmente individual, de vontade e escolha, como uma
possibilidade para a realização do indivíduo, “horizonte para uma subjectividade
reivindicada / realizada (CONDE and ANTUNES 1998/99: 13). Para além do auto-
conhecimento que produz, o livro constitui um lugar (...) de confronto do sujeito consigo
mesmo, com os outros e com o mundo (COELHO 1980: 42). O acto de ler é ainda um
repositório do mundo, não só para o conhecer e reconhecer, mas também para o
inventariar, constituindo o livro um espelho do mundo tangível, equilibrando-se nas
suas dimensões (individual e social). É deste equilíbrio que se equaciona o livro como
um instrumento insubstituível para o desenvolvimento do pensamento, não só em
termos cognitivos e de raciocínio, mas também em termos de promoção do
questionamento e da reflexividade crítica individual, mas sempre social e inter-
relacional. Então, sob este ponto de vista, e enfatizando a sua dimensão social, a leitura
é, portanto, um convite para o diálogo e para o confronto com o outro que é capaz de nos desafiar
nas bases da nossa visão de mundo e construção de sentido (CAVALCANTI 2004: 89).
Esta ideia vai ao encontro da perspectiva de Saussure (SILVA 1990) que define
o sistema literário como uma entidade abstracta, um sistema de signos ou de
convenções partilhadas por uma comunidade. Para os teóricos formalistas russos,
nomeadamente Todorov (TODOROV 1967) ou Jakobson (JAKOBSON 1963), a função
poética da linguagem é o elemento-chave na teoria literária. Rompendo com a
perspectiva da teoria literária do início do século XX, orientada para os paradigmas e
matrizes disciplinares, e salientado as ideias de Saussure, estes autores introduzem a
poética como uma vertente fundamental na análise literária, mais centrada ao nível dos
significados e dos conteúdos simbólicos.
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3.4. Para uma definição de Literatura para a Infância
Falar de Literatura para a Infância pode acarretar significados muito diversos.
Nesse vasto campo de possibilidades podem contar-se os livros mais teóricos
(enciclopédicos, descritivos) ou os livros de ficção. Entre estes, encontra-se a literatura
tradicional, que usualmente se apelida de maravilhosa (considera-se literatura
maravilhosa sempre que as leis da Natureza não são verificadas no desenrolar da
história), e a literatura contemporânea/actual, que pode ser maravilhosa, com os tais
elementos mágicos, ou verosímil.
A expressão «era uma vez...» prevê um mergulho no mundo dos contos para
crianças (literatura de ficção). «...Viveram felizes para sempre...» faz-nos regressar
desse mergulho, como se fosse a chave de entrada e saída de um mundo diferente, ao
qual, embora reconhecível para nós, não temos acesso no dia a dia. Estas imprecisões
temporais são propositadas e mostram, de maneira simbólica, que se deixa o mundo
concreto da realidade quotidiana, permitindo às crianças, d’entrer dans l’histoire, de
s’identifier sans avoir être reconnu, d’être le héros … Weinrich in (DINIZ 1993 [2001]: 57).
Umberto Eco, a este propósito, defende que para além de outras razões estéticas,
importantíssimas, penso que lemos romances porque eles nos dão a confortável sensação de viver
em mundos onde a noção de verdade não pode ser objecto de discussão, enquanto o mundo real
parece ser um lugar bem mais traiçoeiro (ECO 1994: 97).
De facto, é através destas e de outras características comuns à representação
infantil e da linguagem maravilhosa da Literatura para a Infância que se fundamenta a
adesão imediata e “natural” da criança à história narrada. Longe de constituir um
obstáculo ao desenvolvimento do pensamento da criança, o conto corresponde, pelo contrário, a
uma linguagem particularmente bem ajustada à psicologia infantil (DUBORGEL 1992: 60).
Sendo um tipo peculiar de comunicação e com condições pragmáticas
previamente definidas, a linguagem literária para a infância requer a cumplicidade do
leitor infantil. Por isso, convém adoptar, como critério de partida inevitável, a
consideração de que esta constitui um acto de comunicação com as crianças (MESQUITA
2002). Embora esta afirmação pareça tautológica, é importante salientá-la visto que,
tratando-se de um destinatário em crescimento e com particularidades tão variáveis,
quer do ponto de vista literário, quer do ponto de vista pedagógico, este tipo de
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
15
literatura exige resolver problemas comunicativos bem mais específicos do que no caso
do destinatário adulto.
Exemplo disso é o facto de que a mesma história lida em estádios de
desenvolvimento diferentes, com os medos ou as inquietações associadas a esse
estádio, provocam sentidos também eles diferentes. Tal como a verdadeira arte, o sentido
mais profundo do conto de fadas difere de pessoa para pessoa, e difere para a mesma pessoa em
momentos diferentes da sua vida. A criança extrairá um sentido diferente de um mesmo conto,
segundo os seus interesses e as necessidades de momento (BETTELHEIM 2003 [1976]: 21).
Assim sendo, é fundamental considerar o «sentido pessoal» atribuído a determinada
história, entendendo-o como a ‘afinidade’ que a criança sente para com ela, se é ou não
significativa para si e para os problemas que enfrenta.
3.5. A leitura-literatura como um processo de desenvolvimento e aprendizagem
“Onde e como apreender o social? Eis uma questão que, no fundo, nunca deixou de se colocar aos investigadores das ciências sociais e que deu lugar a uma grande
diversidade de respostas segundo as diversas tradições sociológicas.” (LAHIRE 2005: 11)
A análise da dimensão social e individual da leitura abre-nos a porta à questão
da leitura como uma forma de sociabilidade, aprendizagem e compreensão das formas
de vida social. Parte-se aqui do pressuposto que o papel da Literatura para a Infância é
fundamental, não só para a realização das primeiras experiências literárias, mas
também para a experiência de participar num acto socializado, de participação activa
numa cultura que permita às crianças partilhar referentes e sentir que integram uma
«comunidade de leitores» com os outros membros, a tal dimensão social da leitura.
Para alguns autores, como Jacinto Prado Coelho, pelo auto-conhecimento que assim se
produz, a leitura tem um papel fundamental na construção de personalidade; pelo conhecimento
que possibilita, através do imaginário, de outros modos de ser e de estar, de sistemas diversos de
relação, de espaços e de tempos diferentes, a leitura aparece-nos como uma importante via de
socialização (COELHO 1980: 42). O papel socializador mediado(r) da Literatura para a
Infância deriva ainda do facto de que ela aborda as preocupações mais comuns da criança,
as que dizem respeito «ao seu sucesso e à sua posição na comunidade... (DUBORGEL 1992:
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
16
62), intervindo activamente nesse processo de construção social, identitária, cultural,
individual, etc.
Os principais temas dos livros, quer sejam infantis ou não, passam pelas
principais interrogações e preocupações dos indivíduos: donde vimos? Para onde
vamos? Como iremos ganhar a nossa vida? O que somos? Onde pertencemos? O livro
elabora assim uma encenação artística e literária de uma «questão», isto é, de um
questionamento, de uma atitude de despertar ou de uma meditação (DUBORGEL 1992: 86).
Face ao que se afirmou, a adopção de uma perspectiva pedagógica
relativamente à problemática da leitura significa, fundamentalmente, o constatar da
importância do acto de ler na formação integral do homem, ou ainda, considerar que as
histórias para a infância possuem uma «força modeladora», na medida em que as
crianças são, não só, mas também, o produto social das histórias que lhes contamos.
Como qualquer obra de arte, a Literatura para a Infância exerce, pois, a sua influência
pedagógica ou educativa sobre o indivíduo, quer pela contribuição na formação e
desenvolvimento do seu pensamento, quer pelos modelos que apresenta. Mas se, como
se veio dizendo, o livro traz o conhecimento do mundo, do homem, da natureza, etc.,
ele assume-se igualmente como uma forma de produção de sentido e reconstrução da
realidade. Assim, para Bettelheim (BETTELHEIM 2003 [1976]), a Literatura para a
Infância é a melhor forma de conhecer e reconhecer o mundo (físico, social ou
histórico), dado que é um instrumento que tem significado para as crianças, e por isso
mais facilmente a ele atendem. É neste contexto que se concretiza a sua importância
nos contextos de aprendizagem.
Neste sentido, a Literatura para a Infância não se constitui apenas como um
modo de entretenimento, fundamentalmente o livro e a leitura surgem como uma das
etapas e uma das formas que o pensamento humano encontrou no seu esforço de entender as
coisas, desde as mais profundas e fundamentais até aos pequenos problemas do dia a dia. São
ainda formas (…) para contactar com o mundo da criança, fornecendo-lhe elementos úteis para
estimular e alimentar a elaboração imaginativa das experiências com que se vai defrontando no
dia-a-dia (DINIZ 1993 [2001]: 55). A Literatura para a Infância transmite às crianças que
a luta contra as dificuldades que vão surgindo faz parte da vida, que esta forma de
estar faz parte intrínseca da existência humana, daí a sua relevância no contexto do
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
17
processo de desenvolvimento pessoal. Mediante essa função, e numa perspectiva
psicanalítica, o poder da Literatura para a Infância revela-se pelo facto de auxiliar as
crianças a resolver os problemas psicológicos associados ao seu crescimento e de
integrar a sua personalidade. Mais do que transmissão de valores e representações, a
leitura é um lugar de reflexão e de confronto do sujeito consigo mesmo, com os outros e com o
mundo. [Porque] é na linguagem que o sujeito se representa perante si mesmo e os outros e essa
representação é balizada por um conjunto de concepções, referências, aspirações de ordem social,
ética, estética, etc. (COELHO 1980: 42). A linguagem, através do livro, tem, deste modo,
um papel organizativo no que diz respeito à construção simbólica do indivíduo mas
também no que diz respeito à construção da subjectividade da pessoa. Sendo que o acto
de ler é uma constante interrogação dessas balizas; o leitor é confrontado com universos de ficção
onde se representam valores, padrões sociais, modos diversos de pensar e agir, que podem
aproximar-se ou distanciar-se dos seus (COELHO 1980: 42). Ou seja, através do confronto
com representações, valores, padrões sociais, modos de agir ou pensar – «universos de
ficção» (COELHO 1980) criados no livro – o leitor tende a aproximar-se (num processo
de identificação) ou a distanciar-se (num processo de alteridade) desses universos.
Estes movimentos de aproximação / distanciamento permitem ao sujeito construir,
assim, uma personalidade e subjectividade pessoal.
3.5.1. Porquê leitura-literatura? Por que é sempre alguém que nos lê…
Escutar histórias é uma das primeiras experiências literárias para uma criança,
sendo que o contacto com os livros deve ser iniciado o mais cedo possível, não só pelo manuseio
como também pela história contada, pela conversa ou pelos jogos rítmicos, no sentido de fazer
gostar da leitura, para que o leitor se sinta o protagonista do seu aprendizado (MESQUITA
2002: 43).
Desta forma, o contacto com a literatura está pois dependente da acção dos
pais, educadores ou outros cuidadores. Para além do que se tem vindo a dizer os contos
de fadas ensinam que através das ligações afectivas com outra pessoa atingimos a suprema
segurança emocional e conseguimos as relações mais permanentes que estão ao nosso alcance
(BETTELHEIM 2003 [1976]: 19). Esta dependência traduz-se no facto de, por um lado,
os pais, educadores ou outros cuidadores serem responsáveis por estabelecer um
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
18
primeiro contacto com o prazer da leitura e, por outro, serem vinculativos em relação
às mensagens por eles transmitidas: e mesmo que não tenhamos contado nada, mesmo que
nos tenhamos contentado a ler em voz alta, éramos o seu romancista, o contador único, por
quem, todas as noites, ele escorregava nos pijamas do sonho antes de se fundir nos lençóis da
noite. Melhor, nós éramos o Livro – Daniel Pennac, «Comme un roman» in (MORAIS
1997: 164). Globalmente, a leitura é um acto solitário, individual e silencioso, todavia, e
nesta acepção, na infância, a leitura partilhada, seja com os pais ou com os educadores,
tem bastante importância a nível afectivo, pois a criança descobre o universo da leitura
pela voz (...) daqueles em quem ela tem mais confiança e com quem mais se identifica (MORAIS
1997: 165). Deste modo, o texto é continuidade de quem conta, e quem conta é
conivente com as histórias que lê em voz alta.
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
19
4. Metodologia: à procura do melhor ângulo
Actualmente, o debate entre as chamadas metodologias qualitativas ou
quantitativas está já ultrapassado e no seio daquilo a que se vem chamando
metodologias qualitativas podemos encontrar uma diversidade de paradigmas,
pressupostos e modos de fazer.
A definição dos princípios e procedimentos metodológicos que norteiam uma
pesquisa empírica é um passo essencial na investigação. Nesta fase é importante
esclarecer de que modo os objectivos enunciados se podem, na prática, operacionalizar.
Adoptar, numa investigação científica, as metodologias qualitativas ou
‘metodologias compreensivas ou indutivas’ significa centrar a análise (sociológica ou
outra) no sentido que lhe é dado pelo(s) actor(es) que orienta(m) os seus comportamentos num
contexto de racionalidades variadas em interacção com os outros (GUERRA 2006: 7). Esta
perspectiva, que parte da concepção weberiana de sujeito, propõe o centramento das
análises nas racionalidades dos sujeitos (GUERRA 2006: 15). Tendo em conta os objectivos
acima definidos e face ao objecto de estudo, a opção metodológica e que vai conduzir a
investigação é daí decorrente. O binómio leitura-literatura, como proposta de objecto
empírico, reveste-se de uma intencionalidade, na qual se pretende dar valor à acção –
ao acto de ler ou à experiência de leitura. Aliás, a acção (ou o sentido da acção) tem
particular relevância na análise compreensiva (WEBER 2003 [1904-1920]).
A proposta de seguir a trajectória de um grupo de crianças acompanhando as
suas diferentes (variadas ou não) experiências de leitura-literatura pode vir a incluir a
utilização de técnicas como entrevistas semi-directivas (GHIGLIONE and MATALON
1992), observação de situações de leitura, análise documental (das obras, dos planos de
sessão, das propostas pedagógicas, dos relatos escritos dos pais, trabalhos produzidos
pelas crianças, gravações vídeo e áudio do momento da leitura).
Tendo em conta que a observação directa capta os comportamentos no momento em
que eles se produzem (...), sem a mediação de um documento ou de um testemunho (QUIVY
and CAMPENHOUDT 1998[1995]: 196) essa será a técnica privilegiada na investigação
empírica. Contudo, tendo em conta a amplitude do campo de observação que são as
práticas com crianças, outras poderão vir a ser as técnicas a adoptar se tal se justificar.
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
20
As entrevistas centrar-se-ão na interpretação dos processos de leitura-literatura por
parte dos agentes implicados e na sua atribuição de sentido (pedagógico ou outro).
A proposta de ‘ângulo’ deste projecto é também herdeira daquele olhar que
toma o quotidiano como alavanca metodológica do conhecimento (PAIS 2002: 13). Partindo
do paradigma de «situacionismo metodológico» (PAIS 2002), a entrada para o campo
empírico e a busca dos rituais de leitura das crianças centrar-se-á sempre numa lógica
de «descoberta» (diferente de validação) e fascinação, acrescentaria.
Os sujeitos desta investigação são um grupo de crianças com idade entre os 3 e
os 5 anos e seus agentes educativos (pais, educadores, cuidadores, auxiliares,
bibliotecários, animadores, mediadores). Várias são as questões que se colocam – e que
se vão continuar a colocar ao longo desta investigação – na definição dos sujeitos
restringindo-os a um grupo de crianças, mais ou menos homogéneo.
Segundo Duborgel, o período da infância é um período de modificações e
transformações psíquicas, em que cada uma das etapas, se caracteriza, nomeadamente, por um
novo «estádio» da imaginação. A imaginação é, segundo ele, a faculdade predominante na
infância e o seu desenvolvimento tem maior relevo na criança de 3-4 anos, sendo que, a
partir dos 5, em proveito da formação gradual da reflexão esta vai enfraquecendo
(DUBORGEL 1992: 243). De um ponto de vista construtivista, as crianças com esta
idade encontram-se no estádio pré-operatório (Piaget) e na discussão pessoal entre
“Iniciativa vs. Culpa” (ERIKSON 1970 [1950]).
A perspectiva na qual se centrará o olhar sob a criança – enquanto pessoa que
cresce e agente de uma sociedade em mudança – é mais ampla, não se restringindo
apenas ao contexto escolar (GRAUE and WALSH 2003 [1998]; CHRISTENSEN and
JAMES 2005; ALMEIDA 2009). Contudo, a entrada para o campo empírico vai realizar-
se a partir da escola – é aí que as crianças se encontram, é a partir dela que se
relacionam, fortemente, com o mundo exterior (extra-escola).
As suas experiências de leitura-literatura (ou ausência delas) serão analisadas,
fora da escola, individualmente – o que conduzirá a investigação para outros contextos
educativos. Um contexto local é apenas isso, local, o aqui e o agora. É um lugar físico e social,
um quintal, um parque… um momento de leitura (GRAUE and WALSH 2003 [1998]: 26),
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
21
ou seja, um ponto de partida para investigar. Neste caso, parte-se das experiências
conjuntas daquele grupo de crianças, para depois analisar, separadamente, as suas
trajectórias individuais, tal como o esquema a seguir apresentado pretende ilustrar.
Tendo em conta, conforme já vem sendo referido, que a criança é ser social nas
suas relações consigo e com os outros, os contextos onde elas se movem vão ser
analisados. Isto porque, face a uma dada experiência (de leitura) a sua forma de agir
muda tão marcadamente de casa para a sala de aula e daí para o recreio (GRAUE and WALSH
2003 [1998]: 17). Estudar as crianças em contexto implica adoptar uma metodologia
interpretativa, já explicada, e que tem também influências naquilo que vem sendo
chamado ‘grounded theory’ (GLASER and STRAUSS 1967).
Aliar este conjunto de paradigmas e pressupostos metodológicos é interrogar o
processo de individualização na contemporaneidade – le retour de l’acteur (TOURAINE
1996 [1984]), é estudar o social individualizado, ou seja, o social refractado num corpo
individual que tem a particularidade de atravessar instituições, grupos, campos de forças e de
lutas ou cenas diferentes, é estudar a realidade social na sua forma incorporada, interiorizada
(LAHIRE 2005: 14).
Grupo 1
Criança
A
Criança
A
Criança
B
Criança
B
Criança
C
Criança
C
NA ESCOLA EM CASA NA BIBLIOTECA NO MUSEU (…)
(…)
(…)
(…)
(…)
(…)
(…)
OBSERVANDO EXPERIÊNCIAS DE LEITURA-LITERATURA
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
22
A investigação empírica será ainda marcada por uma perspectiva etnográfica ou
hermenêutica, na qual prestamos atenção às ‘particularidades concretas’ das suas vidas nestes
contextos e registamos essas particularidades aos mais ínfimo pormenor (GRAUE and
WALSH 2003 [1998]: 21).
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
23
5. Recursos e plano de trabalho
«Cada manhã traz-nos sempre um dia por estrear, um dia por abrir, um dia por desembrulhar… um livro pelo qual desfilam muitos dias e momentos, capazes de nos transportar através da
memória dos nossos próprios dias.»9
Tendo em conta aquilo que é descrito como as etapas de um processo
investigativo proposto por Quivy e Campenhoudt (1998[1995]) o plano de trabalhos
para o desenvolvimento desta investigação pode ser ilustrado, cronologicamente, da
seguinte forma:
Remetendo para os prazos administrativos do Programa Doutoral em que este
se insere, o projecto foi desenhado para, com alguma flexibilidade, ser aí ajustado.
Algumas das etapas, como se pode depreender pela leitura do esquema acima
9 Sinopse de Martins, Isabel Minhós e Carvalho, Bernardo (2004), Um livro para todos os dias, disponível em http://www.planetatangerina.com, acedido em 10 de Julho de 2009.
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
24
apresentado, mantêm-se ao longo de todo o processo, pese embora outras, como é o
caso da observação, só tenham início após terminada a construção do modelo de análise.
Em cada uma das etapas os recursos a mobilizar variam consoante a natureza
das tarefas respectivas, não se prevendo que se afastem muito daquilo que são os
recursos habituais para o desenvolvimento de um projecto de investigação desta
natureza. A possibilidade de recursos de gravação áudio e vídeo serão à partida
necessários.
Olhar a leitura-literatura para a infância: perspectivas, contextos e práticas
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6. Bibliografia citada
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