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Marxismo, Direito e Sociedade
Debate entre Olavo de Carvalho e Alaôr Caffé Alves
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP
19 de novembro de 2003
Transcrição:
Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori
Diagramação e capa:
Victor Fidel A. Gonçalves
www.olavodecarvalho.org
©2014
Alaôr Caffé Alves
Dados biográficos
Possui graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (1963), mestrado
em Direito pela Universidade de São Paulo (1979) e doutorado em Direito pela
Universidade de São Paulo (1986). Atualmente é Professor Associado da
Universidade de São Paulo, Professor livre docente da Escola Superior do
Ministério Público de São Paulo, Professor - Faculdades Integradas Módulo.
Coordenador de curso - Faculdades de Campinas, atuando principalmente nos
seguintes temas: Meio Ambiente, Saneamento Básico, Direito Ambiental, Teoria
do Direito e Filosofia do Direito.
Olavo de Carvalho
Dados biográficos
Olavo de Carvalho, nascido em Campinas, Estado de São Paulo, em 29 de abril
de 1947, tem sido saudado pela crítica como um dos mais originais e audaciosos
pensadores brasileiros. Homens de orientações intelectuais tão diferentes
quanto Jorge Amado, Arnaldo Jabor, Ciro Gomes, Roberto Campos, J. O. de
Meira Penna, Bruno Tolentino, Herberto Sales, Josué Montello e o ex-
presidente da República José Sarney já expressaram sua admiração pela sua
pessoa e pelo seu trabalho.
A tônica de sua obra é a defesa da interioridade humana contra a tirania da
autoridade coletiva, sobretudo quando escorada numa ideologia "científica".
Para Olavo de Carvalho, existe um vínculo indissolúvel entre a objetividade do
conhecimento e a autonomia da consciência individual, vínculo este que se
perde de vista quando o critério de validade do saber é reduzido a um
formulário impessoal e uniforme para uso da classe acadêmica. Acreditando que
o mais sólido abrigo da consciência individual contra a alienação e a coisificação
se encontra nas antigas tradições espirituais — taoísmo, judaísmo, cristianismo,
islamismo —, Olavo de Carvalho procura dar uma nova interpretação aos
símbolos e ritos dessas tradições, fazendo deles as matrizes de uma estratégia
filosófica e científica para a resolução de problemas da cultura atual. Um
exemplo dessa estratégia é seu breve ensaio Os Gêneros Literários: Seus
Fundamentos Metafísicos, onde se utiliza do simbolismo dos tempos verbais nas
línguas sacras (árabe, hebraico, sânscrito e grego) para refundamentar as
distinções entre os gêneros literários. Outro exemplo é sua reinterpretação dos
escritos lógicos de Aristóteles, onde descobre, entre a Poética, a Retórica, a
Dialética e a Lógica, princípios comuns que subentendem uma ciência unificada
do discurso na qual se encontram respostas a muitas questões atualíssimas de
interdisciplinariedade (Uma Filosofia Aristotélica da Cultura — Introdução à
Teoria dos Quatro Discursos). Na mesma linha está o ensaio Símbolos e Mitos
no Filme "O Silêncio dos Inocentes" ("análise fascinante e — ouso dizer —
definitiva", segundo afirma no prefácio o prof. José Carlos Monteiro, da Escola
de Cinema da Universidade Federal do Rio de Janeiro) que aplica a uma
disciplina tão moderna como a crítica de cinema os critérios da antiga
hermenêutica simbólica. Sua obra publicada até o momento culmina em O
Jardim das Aflições(1995), onde alguns símbolos primordiais como o Leviatã e o
Beemoth bíblicos, a cruz, o khien e o khouen da tradição chinesa, etc., servem de
moldes estruturais para uma filosofia da História, que, partindo de um evento
aparentemente menor e tomando-o como ocasião para mostrar os elos entre o
pequeno e o grande, vai se alargando em giros concêntricos até abarcar o
horizonte inteiro da cultura Ocidental. A sutileza da construção faz de O Jardim
das Aflições também uma obra de arte. É grande a dificuldade de transpor para
outra língua os textos de Olavo de Carvalho, onde a profundidade dos temas, a
lógica implacável das demonstrações e a amplitude das referências culturais se
aliam a um estilo dos mais singulares, que introduz na ensaística erudita o uso
da linguagem popular — incluindo muitos jogos de palavras do dia-a-dia
brasileiro, de grande comicidade, praticamente intraduzíveis, bem como súbitas
mudanças de tom onde as expressões do termo vulgaris, entremeadas à
linguagem filosófica mais técnica e rigorosa, adquirem conotações imprevistas e
de uma profundidade surpreendente.
A obra de Olavo de Carvalho tem ainda uma vertente polêmica, onde, com
eloqüência contundente e temível senso de humor, ele põe a nu os falsos
prestígios acadêmicos e as falácias do discurso intelectual vigente. Seu livro O
Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras (1996) granjeou para ele
bom número de desafetos nos meios letrados, mas também uma multidão de
leitores devotos, que esgotaram em três semanas a primeira edição da obra, e
em quatro dias a segunda.
Contrastando com a imagem de rancoroso ferrabrás que seus adversários
quiseram sobrepor à sua figura autêntica, Olavo de Carvalho é reconhecido,
entre quem desfruta de seu convívio, como homem de temperamento
equilibrado e calmo mesmo nas situações mais difíceis, e como alma generosa
capaz de levar às últimas conseqüências, mesmo em prejuízo próprio, o dom de
amar, socorrer e perdoar.
Roxane Andrade de Souza
Nota:
Recebi várias transcrições deste debate, mas reproduzo aqui apenas uma
delas, a de Alessandro Cota e Bruno Yoshio Mori, que me pareceu a mais
completa. Agradeço a eles e também aos autores das demais, que me serviram
para corrigir a presente versão em alguns pontos, ainda que sem fazer uma
revisão em regra. Alguns pontos brevemente mencionados neste debate
receberam depois uma explicação mais detalhada nos artigos “A natureza do
marxismo”, ‘marxismo esotérico” e “Diferenças específicas”, publicados no
Jornal da Tarde de São Paulo. – O. de C.
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MEDIADOR: Estamos recebendo dois grandes nomes da intelectualidade
brasileira. À minha esquerda, o prof. Alaôr Caffé Alves, muito conhecido por nós
estudantes por nos levar à crítica do Direito e do Estado e a olhar para dentro as
relações sociais e enxergar a sua autêntica expressão. À direita, apresento o
polêmico filósofo Olavo de Carvalho; tido pela crítica como um dos luminares
do pensamento brasileiro, é autor de O Jardim das Aflições, entre outros livros,
e traz hoje, à Sala dos Estudantes, sua defesa da interioridade humana contra a
tirania da autoridade coletiva, fazendo deste espaço público, mais uma vez, um
centro privilegiado de discussão acadêmica. Um marxista contra um liberal. A
iniciar pelo prof. Alaôr, teremos trinta minutos para cada debatedor mais quinze
minutos para as réplicas; em seguida, abriremos às perguntas. Prof. Alaôr e
Olavo de Carvalho, neste debate da realidade econômica, política e social de
nosso tempo, tomando por base o marxismo, qual função cabe ao Direito na
sociedade? E no seu entendimento, quais as conseqüências de se pensar o
Direito desta forma? Com a palavra, o prof. Alaôr Caffé Alves.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Boa tarde a vocês todos, meus alunos, e ao prof.
Olavo de Carvalho. Em meia hora evidentemente não dá para dizer quase nada a
respeito do pensamento jurídico, e especialmente do pensamento jurídico
calcado na perspectiva de uma metodologia singular, que é a metodologia
marxista. Já digo inicialmente que não sou um marxista no sentido tradicional
do termo, mas tenho meu namoro com relação a certas questões, e a certas
questões metodológicas, que se exprimem ao longo da vida do pensamento
teórico marxista, desde Marx até hoje. É claro que, com as idas e vindas
históricas, problemas graves, inclusive de situações relacionadas com
frustrações políticas extraordinariamente importantes, tudo isso nos dá um grau
de perplexidade. Mas, por outro lado, nos permite ver algumas coisas
importantes. Eu simplesmente tive de escolher – porque meia hora é tão pouco
– alguma coisa estratégica relacionada com o Direito, a sociedade e a
perspectiva marxista, que é uma perspectiva que no século XX teve um domínio
muito grande, especialmente na ordem política, embora não daquela forma que
desejávamos que fosse. O marxismo teve distorções profundas no esquema
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político e social, enveredou nações inteiras por caminhos que não são
efetivamente (ou não eram efetivamente) marxistas, ou pelo menos na
conclusão do ideal desse pensador que conhecemos, que é Marx. De qualquer
forma, influiu muito a vida do século XX, e a nós cabe apenas uma perspectiva
um pouco mais elementar, porque vamos tratar apenas de uma parte da
sociedade e sob uma certa ótica, que é a jurídica. Marx nunca tratou do Direito.
Na verdade, Marx foi um economista dos clássicos. Atuou de uma forma muito
singular no plano do pensamento teórico da economia, estabelecendo seus
princípios, enfim, aquilo que ele julgava adequado para explicar a sociedade em
que ele vivia. Muitas das explicações de Marx já não valem mais, em função da
historicidade dessas mesmas explicações. Então, é claro, temos de dar o devido
valor e entender que isso não significa absolutamente compreender Marx sob o
ponto de vista dogmático, mas sim o que ele pode nos fornecer, nos dar, nos
oferecer para entender um pouco, especificamente, o problema social; e aqui, no
nosso caso, o problema jurídico. Para colocar a questão muito rapidamente,
muito estrategicamente, no ponto de possível discussão, nós temos de levar em
conta as características do Direito exatamente dentro da perspectiva e da
posição que postulava Marx naquela época, o século XIX, já numa dimensão
estrutural social; precisamos entender o que significa a chamada estrutura
social, se ela comporta ou não previsibilidade, se admite ou não as
possibilidades de um conhecimento razoável do ser humano, a ponto de prever
as condições objetivas de sua vida social. Nós encontramos várias ciências sob o
ângulo da previsão, como a sociologia, como a própria economia, mas a questão
é saber se a história pode ser prevista. Essa é uma questão importante, porque o
próprio homem é considerado como ser produto da história e de sua
socialidade. Se o ser humano é um produto social, a par da situação individual
em que ele se apresenta também como ser biológico – ele também tem a sua
individualidade singular, biológica, psicológica –, aqui também se indaga sobre
a forma social que toma essa expressão biológica e psicológica. Até que ponto a
socialidade determina as dimensões de vontade, os valores humanos, as
crenças? Em que sentido isso ocorre? O próprio Direito é uma expressão social,
pois é um fenômeno social e, sendo um fenômeno social, tem de ser estudado
desde de certos critérios que permitem caracterizar uma certa regularidade no
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Direito. É por isso que temos de considerar que o Direito pode ser um saber
científico. Muitos não o admitem como um saber científico, e sim como um
saber apenas prático; alguns levam em conta se é possível um saber prático ou
se há apenas um conjunto de propostas gerais que não têm uma fundamentação
científica adequada para verificação de sua validade, de sua verdade. Tudo isso é
um problema complicado, pois se trata da metodologia do saber jurídico, focada
na perspectiva da metodologia de Marx. Existem teóricos juristas sobre esse
assunto. Por exemplo, na própria União Soviética, nós temos um grande teórico
jurista, que sofreu os impactos da ditadura de Stalin: Pashukanis, um grande
pensador que, atendendo às premissas, enfim, às diretrizes postuladas pela
metodologia marxista, pela visão marxista do mundo, acabou dando-nos uma
visão interessante, que depois ele mesmo transforma; ele mesmo altera seu
ponto de vista, dá uma virada, e acaba morto em 1937 na União Soviética. É
claro que outros filósofos existem: mais atualmente, temos os filósofos juristas
como Ceromi [?], grande pensador italiano, ligado também à perspectiva
marxista, e também Atienza, um grande pensador ligado às questões da ordem
do método marxista do Direito. Também temos o namoro feito por Norberto
Bobbio relacionado com a questão do Direito; mas ele é um neoliberal, mas de
uma forma um tanto diferente daquelas relativas aos neoliberais do século XIX
e mesmo do século XX.
Dadas essas condições gerais, o que quero mostrar a vocês é o seguinte: como é
que vamos tratar o Direito dentro de uma perspectiva não positivista? Uma
delas é a marxista. O conceito de direito no sentido positivista, como vocês
sabem, decorre exatamente de uma posição e definição da lei como sendo
aquela que deve definir as condições e as específicas diretrizes jurídicas de uma
sociedade. A sociedade deve ser produzida do ponto de vista econômico, mas
também do ponto de vista jurídico mediante as posturas legais ou legislativas. O
grande problema é saber como esta referência positivada do Direito se deu. Há,
claro, explicações, inclusive contrapondo o positivismo ao jusnaturalismo, que
são muito interessantes – mas não vamos perder tempo agora em defini-los,
porque é muito complicado e precisaríamos de mais tempo –, explicações estas
que não têm normalmente, por definição, a produção do espírito humano senão
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mediante a confissão de reflexões filosóficas ou reflexões dentro do âmbito ideal
do Direito. Por exemplo, a perspectiva idealista ou a perspectiva não-
materialista corresponde ao fato de que há um espírito, espírito este que não
significa o de cada um de nós, mas o conjunto dos espíritos, que na verdade são
as ações culturais dos homens, particularmente, que formam o espírito que em
última instância exprime aquilo que a história deve nos dar, vale dizer, o espírito
na busca da liberdade. Esta postura é justamente hegeliana: a busca da
liberdade produz praticamente a vida social. O Estado mesmo é uma expressão
desse mesmo espírito. Essa visão é extremamente criticada pelos marxistas, que
acham que a espiritualidade tem por base uma estrutura social calcada na visão
da produção da vida social, na produção da vida material. Se não houver a idéia
da produção da vida material da sociedade, nós não temos a idéia mais clara do
próprio espírito; a espiritualidade está dinamicamente relacionada à
materialidade. Claro que não existe um espírito isolado, solitário, como não
caberia existir a matéria solitária. A matéria, para Karl Marx, não é jamais a
matéria bruta, nem aquela matéria opaca; não é materialidade dos físicos gregos
clássicos, a busca de um “em si”, de uma substância material no mundo. Para
Karl Marx, a matéria é postulada em função da produção da vida social humana.
Materialidade, portanto, é algo que é prenhe de espiritualidade, de certo modo;
há uma relação dialética entre o processo de pelo qual os homens agem no
mundo e transformam o mundo; e nesse processo de transformação do mundo,
os homens, progressivamente, vão transformando-se a si mesmos. É isso o que
acontece.
Portanto, esta visão inaugura a idéia de processualidade, exatamente o oposto
da visão positivista do Direito. Vocês podem ver, por exemplo, o caso de Kelsen,
que trabalha uma visão fundamentalmente estática, ou, vale dizer, muito
abstrata. Para ele, o Direito é substancialmente norma e é uma estrutura de
sentido. A norma como estrutura de sentido não será estudada do ponto de vista
de sua gênese e nem de seus fins, porque gênese e fins da norma são questões de
outras ciências e não do próprio Direito. O Direito, em sua essencialidade, se
exprime pela norma abstrata, por um dever-ser postulado segundo uma
estrutura de coação, que é definida pelo próprio Estado. Então, um dever-ser,
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para Kelsen, é fundamental, e ele separa fundamentalmente o dever-ser do ser.
Evidentemente, essa postura não é aceita pela perspectiva marxista, porque o
ser e o dever-ser se compõem numa relação dialética. Não é fácil compreender
isto. É difícil. Na visão kelseniana, portanto na linha neokantiana, se faz
diferença profunda e séria entre ser e dever-ser: o ser determina o dever-ser,
isto é, ele é condição para o dever-ser. Ou seja, Kelsen aceita que a sociedade
deve existir necessariamente para que exista o Direito, para que exista o dever-
ser, a norma; mas o dever-ser não tem por fundamento o ser, ou seja, a relação
social, a sociedade, e sim tem por fundamento um outro dever-ser, e este outro
tem por fundamento um outro mais, até um dever-ser fundamental, que ele
chama de norma fundamental. Portanto, para ele, a relação do dever-ser com o
ser é absolutamente separada, não existe uma comunhão entre uma e outra a
não ser pela condição necessária – não a condição per quam, pela qual, mas a
condição necessária pela qual se deve ter uma ordem. É claro que não há Direito
sem sociedade, com isto ele concorda. Kelsen era um homem extremamente
ladino, profundo, grande pensador do Direito; mas tem uma visão formalizada.
O Direito como estrutura de sentido organiza a vontade; o Direito, embora
tendo como causa a vontade humana, porque já não pode mais ter causa divina
(desde que Deus está morto, segundo Nietzsche), então não há mais essa
postura de direito teologal, como também não há a idéia do direito natural, um
direito que estabelecesse uma relação direta entre o ser e o dever-ser, em que o
próprio ser é dever-ser. Como já não se admite isso, a única forma de se admitir
o Direito é aquele imposto pelos homens. A forma de impô-lo implica uma
relativização do Direito, e esta relativização do Direito imposto pelo homem
(porque o homem é um ser circunstanciado, histórico, condicionado por
situações singulares) evidentemente tem de ter alguma segurança a respeito do
que ele faz, especialmente, no plano do Direito moderno. Para isso, Kelsen não
pode aceitar senão a linguagem do discurso jurídico. É por isso que a
positivação do Direito moderno é fundamental, porque é uma das formas pela
qual se dá a garantia de uma certa estabilidade da forma como se diz o Direito.
Diz através da lei, a lei é a positivação do Direito mediante formas escritas; por
isso a codificação do sistema, porque antes não havia esta codificação tão
expressiva, mas a partir do século XVII, a codificação se torna cada vez mais
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presente, e no século XIX é praticamente universalizada. O Direito é um direito
escrito, e enquanto direito escrito, tem estrutura de sentido, é um direito que
tem de ser interpretado. Vejam vocês, portanto, que a estrutura econômica se
torna muito complexa, determina a necessidade de os homens registrarem o
Direito necessariamente, sem o que o Direito não pode ser devidamente
interpretado e aplicado adequadamente.
Mas tudo isso define uma situação de positividade que de certo modo extrai as
possibilidades materiais do próprio Direito. Esquece-se Kelsen dos
fundamentos sociais, das estruturas sociais; daí o problema de que no
positivismo se faz uma separação entre Direito como norma positivada e justiça,
moralidade e ética jurídica. Estas questões são muitos distintas.
O próprio Kelsen aceita perfeitamente essa postura e diz que o Direito é isto. É
claro que esta visão é formalizada, portanto, uma visão estática do Direito,
melhor ainda, uma visão universal do Direito. De certo modo se diz o seguinte: a
norma jurídica, como jurídica que é, que dá a essencialidade à compreensão do
Direito, é igual no sistema capitalista, socialista, comunista, feudal, clássico: a
norma é sempre a norma, é sempre o deverser. É por isso que ele, então,
essencializa o Direito na norma e, de certo modo, ele segue um pouco o caminho
platônico: as próprias experiências, a singularidade, a história, a factualidade, as
circunstâncias, isso passa a ser como que, digamos, alguma coisa esmaecida do
mundo, como que sombras da caverna. O que importa fundamentalmente para
essencializar o Direito é a norma; a norma é uma estrutura de sentido, e sentido
da vontade, e não a vontade é a norma. Vejam a diferença entre a postura
marxista e a postura kelseniana, que é a expressão máxima, mais avançada,
mais ampliada do sistema do positivismo jurídico que é dominante em todo o
sistema capitalista; fora, evidentemente, os sistemas jurídicos calcados na
perspectiva teológica que como nós temos ainda em vários países do mundo que
a adotam, mas os países mais avançados têm esta linha muito consagrada da
positividade, portanto a linha da legalidade.
Ora, isso tudo só pode ser explicado a partir da idéia da processualidade, que é
uma idéia dialética. Por isso eu faço sempre uma diferenciação entre o processo
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e o produto. A idéia é normalmente separar o resultado do processo, então fica
complicado porque ficamos apenas com o resultado. Em termos operacionais e
práticos dá para usar o resultado muito bem de forma instrumental, e como
dizia Habermas, a instrumentalidade racional permite que se manipule o
resultado, mas esse resultado não será legitimamente compreendido e
entendido cientificamente se não se atender para o processo pelo qual o
resultado é resultado. Então, há uma processualidade no mundo e buscar o
processo pelo qual alguma coisa é feita é melhor do que buscar a coisa feita por
si mesma; buscar o processo pelo qual o homem se desenvolve é melhor para
entender o próprio homem, aqui e agora. Por isso, o homem tem de ter a
expressão do passado. Ele tem a expressão do passado, mas tem sua
negatividade; porque o homem não é o passado, ele supera esse passado. Uma
visão um tanto quanto hegeliana, mas a possibilidade de que o homem supere o
passado é a afirmação do passado e, ao mesmo tempo, sua negação. Ele se
afirma, tanto quanto um adulto afirma a criança que foi, mas não é a criança
que foi, portanto, a nega. Você vê que esta relação dialética é complexa, e isso
existe no plano do Direito.
Quando vamos examinar esta categoria da processualidade, nós temos então de
projetar a sociedade nesse processo. Daí se vê o seguinte: a sociedade, como se
dá? Em que termos a sociedade entra como processo? É um problema que eu
sempre levo em conta: ela é uma produção puramente espiritual, é uma
produção material, ou é material e espiritual ao mesmo tempo?
Parece que é conjugada. Ela não é puramente espiritual, não é apenas a história
do espírito humano que define o homem; também não é uma materialidade
pura e simplesmente, naquela concepção mecanicista e substancialista da
matéria; mas é uma relação, uma dinâmica entre espiritualidade e
materialidade.
Até que muitas vezes se pergunta: mas qual é o fundamental nisto? Os marxistas
consideram que, em última instância, a dimensão material (naquele sentido dito
por Marx, não no sentido da matéria bruta, mas no sentido da produção, ou
seja, da matéria enquanto produção do homem, portanto) é claro que tem
história. Se examinarmos antropologicamente, vê-se que os homens não
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produziram sempre aquilo que produzem hoje; produziram de forma muito
diferente, produziam outras coisas, em modos diferentes de produção. As
formas sociais para produção são diferentes, as relações que os homens
guardam entre si são diferentes nos diversos momentos históricos. Então, você
vê que, efetivamente, existe um problema que deve ser visualizado pelo teórico
do Direito para saber até que ponto o próprio Direito é uma resultante deste
processo.
O ponto de vista marxista tem algumas colocações interessantes. Eu vou dar um
exemplo bem específico para vocês entenderem o que eu quero dizer. No
sistema feudal, as relações produtivas eram muito singelas; era uma economia
mais natural, mais de subsistência; o valor de uso predominava; não havia valor
de troca expressivo; a moeda não corria muito; os feudos centralizavam o
sistema econômico. Havia, portanto, uma atuação política, ou seja, o exercício
da força, porque a politicidade também tem em seu centro a possibilidade do
exercício da força; isso havia, inclusive misturado com a relação econômica. A
relação econômica era a produção feita pelos homens e a relação social destes
homens para a produção. Mas a relação social se compunha, ao mesmo tempo,
de uma dimensão econômica, pela qual se exercia um poder para transformar o
mundo; e isto implica, evidentemente, utilizar a força produtiva, a mão-de-obra
e os mecanismos que existem para fazê-lo, mas existia também uma atuação
política, uma força política para esse exercício. Então, sabe-se que numa época
escravista, como a época feudal, as relações entre os homens para produzir não
eram as mesmas das épocas modernas, da época que chamamos burguesa ou
capitalista, da época mercantil. É uma época diferente porque o exercício da
força sobre o trabalho é praticamente muito presente. Portanto, o econômico e o
político se viam de tal maneira misturados, de tal maneira acoplados, de tal
maneira feridos em sua integridade, que o agente econômico era o mesmo
agente político. O senhor feudal era ao mesmo tempo agente econômico, agente
cultural e agente político: ele exercia a força, ele inclusive trazia a mão-de-obra à
força para o trabalho se fosse preciso. Existia também outro elemento que é a
ideologia, que evitava a expressão clara desta forma de explorar os homens
nesse processo. Quando isto ocorre, temos uma dimensão econômica muito
própria que traduz uma forma política específica da época medieval. Quando
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entretanto – e aqui vem a tese marxista – há uma evolução desse processo
produtivo, vale dizer, a dimensão tecnológica, a condição material da produção,
vale dizer, a tecnologia (isto também é uma visão tecnológica de certo modo,
que foi muito discutida e é muito discutida ainda hoje), quando a tecnologia
avança pelas invenções que o homem vai desenvolvendo através do seu
trabalho, da sua atuação direta com o mundo, buscando novas formas de
cultivar o mundo, inventando várias coisas como o moinho de vento, a roda
dentada, enfim, sistemas novos de articulação do poder, é claro que isto vai
implicar uma maior quantidade de produto. A produção começa a se expandir, a
se desenvolver, e há um conflito entre o desenvolvimento produtivo (a
produção) e os limites do sistema feudal. Vale dizer, tudo era feito para o senhor
basicamente, e depois, na expansão, era muito complicado fazer com que a
venda dessas mercadorias (elas passam a ser mercadorias) se estendesse para
todo conjunto de feudos, quando os próprios feudos estavam impondo certas
situações de restrição dessa produção. Dizem os marxistas que aí existe um
conflito singular entre uma força produtiva típica singular feudal e a força
nascente, que seria exatamente essa dimensão calcada na perspectiva de uma
nova classe, que é a classe dos burgueses. Abre-se, portanto, um período de crise
em que forma e matéria, forma e conteúdo, entram em crise e aí vem uma nova
fase: o homem começa a precisar de uma nova forma de produção. Era preciso
distribuir a mercadoria; para fazê-lo, é preciso que todos ganhem dinheiro, que
ganhem recursos para que possam consumir a mercadoria do mercado. Mas
como seria possível fazer isso se as relações eram tipicamente ou servis ou
escravistas? Impossível, porque não se podia distribuir recursos; para isso, era
preciso criar novas formas, como a forma da moeda (a monetarização da
economia), o salário (o assalariato se inicia neste processo). É evidente que
neste momento tudo passa a ser diferente: o sistema econômico não mais é
garantido em função de uma relação de imposição sobre o trabalho, mas era
preciso fazer com que o trabalho passasse a ter agora uma outra dimensão, a
dimensão de liberdade. Era preciso ser livre das peias do feudalismo, livre das
peias do exercício sobre instrumentos de produção elementares, fazer com que a
força do trabalho pudesse ela mesma ser autônoma, e portanto vendável. Então,
é o momento em que aparece a venda na força do trabalho, e venda forma o
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mercado, o mercado de trabalho, onde as mercadorias passam a circular, entre
as quais, a própria força do trabalho. É claro que, nesse caso, a relação entre o
capital e a força do trabalho não é uma relação de imposição, como acontecia no
sistema anterior. Não havia capital no sistema anterior, mas havia uma
imposição sobre o trabalho, pela força do senhor feudal ou do escravizador.
Agora não: ela se universaliza na sociedade de uma forma completamente
diferente, é preciso que os homens estabeleçam relações entre si de forma
mercantil, de troca, e a troca pressupõe, basicamente, proprietários. Todos têm
que ser proprietários: os proprietários do capital (do salário) e os proprietários
correspondentes. Então, esses proprietários do capital tinham o salário e, do
outro lado a força de trabalho dava a capacidade de trabalho e recebia o salário;
com esse salário formavam o mercado e com isso então expandia-se a produção.
Claro, daí começam o quê? Figuras interessantes, como a figura do contrato, que
se universaliza nesta época. Então, é somente com o aparecimento de uma nova
forma de produção que se universaliza a figura do contrato juridicamente. A
figura do contrato pressupõe pessoas contratantes, logo, pessoas jurídicas. Há
que haver portanto, a universalização das pessoas jurídicas. Há necessidade de
que as pessoas sejam proprietários, porque elas só podem trocar coisas de que
tenham posse em disponibilidade. Aqui vocês vêem, portanto, a liberdade: como
é possível contratar sem liberdade? O suposto é a liberdade; o suposto é a
igualdade. Vocês vêem, portanto, que as figuras jurídicas formuladas no direito
civil especialmente (isso depois transcende para o direito público) acabam
resultando de um processo de movimento das forças produtivas, da capacidade
material dos homens, que determina formas diferentes. Não vejam, portanto, o
contrato simplesmente como a figuração de algo abstrato situado no cosmos.
Não: primeiro existem as relações de troca, depois elas vão para o código para
ser reguladas de forma detalhada, singular, e garantidas.
Vejam vocês, nessas poucas palavras, simplesmente, o que aflora nesta estrutura
de pensamento. É uma estrutura de pensamento que propõe uma dimensão
muito singular, muito interessante, que deve ser objeto de exploração. Não quer
dizer que ela seja a única – cuidado com isso! Ela deve ser objeto da expansão
metodológica porque ela nos dá algumas bases interessantíssimas para explicar
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um pouco melhor os próprios institutos jurídicos. Aqui vocês vêem apenas um
momento estratégico e singelo: a possibilidade de utilizar uma metodologia
nova, interessante; não é nova sob o ponto de vista jurídico, não é tão universal,
mas pode nos dar um conhecimento um tanto quanto mais seguro,
principalmente dos processos pelos quais os institutos chegam a ser institutos
jurídicos. É isto basicamente.
MEDIADOR: Neste momento passo a palavra a Olavo de Carvalho.
OLAVO DE CARVALHO: Muito bem. Agradecendo muito a Thiago
Magalhães e a seus colegas pelo convite, constato, em primeiro lugar, que o meu
interlocutor é bem menos marxista do que me disseram, o que de certo modo
facilita o trabalho, porque a análise do marxismo é sempre um problema quase
impossível de resolver, pela multilateralidade dos seus aspectos. Vocês vejam
que o marxismo é uma filosofia, é uma teoria econômica, é uma ideologia, é uma
estratégia revolucionária, é um regime político, é um sistema ético-moral, é uma
crítica cultural, é uma organização política da militância: ele é tudo isso ao
mesmo tempo. Ora, vocês não encontrarão em todo o mundo, em toda a história
humana, nenhum fenômeno parecido: não existe nenhum outro fenômeno que
abarque de maneira unificada tantos aspectos ao mesmo tempo. Isso quer dizer
que o marxismo nos coloca desde logo o problema de que não sabemos a que
gênero de fenômenos ele pertence.
Se buscamos a definição do marxismo, segundo o velho critério aristotélico do
gênero próximo e da diferença específica, nós já nos esborrachamos no primeiro
degrau da escada por não haver um gênero próximo. Isso significa que toda a
tentativa de discussão do marxismo imita aquele célebre caso dos cegos com o
elefante, em que um pega a perna e diz que o elefante é um poste, outro pega a
tromba é diz que é uma cobra, outra pega a orelha e diz que é uma folha de
papel, e assim por diante. Aqueles que analisam o marxismo no terreno
econômico – o pessoal liberal tem a mania de fazer isso, o que é até covardia,
porque a crítica liberal da economia marxista é tão arrasadora que este é o
campo mais fácil para discussão –, quando pensam que estão ganhando a
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discussão, o marxista passa para outra clave (por exemplo, a da crítica moral do
capitalismo) e pronto: aquele belíssimo trabalho que o liberal fez está perdido.
Se nós atacamos o materialismo e o anticristianismo do marxismo, também
quando estamos quase vencendo a discussão, o marxista tira do bolso do colete
a teologia da libertação, dizendo que é mais cristão do que nós. Então,
realmente estamos lidando com um ente proteiforme e indefinido. É evidente
que a análise e a crítica racional esbarram em dificuldades tão imensas que,
sinceramente, não vale a pena prosseguir nesta direção. A sucessão de críticas
ao marxismo que se fizeram desde o século XIX até hoje, não digo que seja
inútil, mas pega somente detalhes e partes às vezes insignificantes do problema.
Nós não vamos sair disso se não conseguirmos subir um grau na escala de
abrangência e de abstração, e conseguirmos dizer, afinal de contas, o que é o
marxismo. Então, abreviando quinze ou mais anos de estudo que me levam a
esta conclusão, vamos começar por definir o marxismo pelo seu gênero
próximo. Eu tenho a pretensão de ter encontrado esse gênero próximo: o
marxismo não é uma filosofia política, não é uma economia, não é um partido
político, não é nenhuma dessas coisas isoladamente, mas é uma cultura, no
sentido antropológico do termo. Uma cultura significa um universo inteiro, um
complexo inteiro de crenças, símbolos, discursos, reações humanas,
sentimentos, lendas, mitos, sentimentos de solidariedade, esquemas de ação e,
sobretudo, dispositivos de autopreservação e de autodefesa. Para toda cultura
existente, o desafio número um é a sua autopreservação. Isto quer dizer que o
marxismo, ao longo de sua história, desenvolveu uma infinidade de meios de
autopreservação cujo funcionamento, inclusive material, dificilmente é objeto
de curiosidade das pessoas. Não deixa de ser estranho que o marxismo, que
professa tudo analisar pela sua base econômica, jamais seja estudado pela base
econômica da sua própria expansão. Portanto, nós temos a impressão de que as
idéias marxistas, exatamente como as idéias do antigo idealismo, se propagam
no ar sem nenhuma ajuda humana e sem nenhuma sustentação econômica.
Quando tive a curiosidade de perguntar isso pela primeira vez eu era um jovem
militante do Partido Comunista e, à medida que fui descobrindo os dados a
respeito, eu vi que o próprio marxismo era um fenômeno econômico dos mais
interessantes.
23
Quando digo que o marxismo é um fenômeno sui generis, que nunca houve um
complexo cultural assim tão vasto, há um outro ponto no qual o marxismo
também é recordista. Quando na União Soviética se fundou a entidade chamada
NKVD, que depois veio a se chamar KGB – mudou de nome inúmeras vezes –,
este era um serviço de uma abrangência que aqui nós dificilmente conseguimos
imaginar. A KGB, já entre as décadas de 50 e 60, tinha quinhentos mil
funcionários, sem contar toda a militância comunista espalhada pelo mundo (o
que era um serviço auxiliar também obrigatório), com o que se pode somar mais
dez ou vinte milhões; então, quinhentos mil funcionários mais vinte milhões de
auxiliares. As verbas da KGB superavam em muito as de todos os serviços
secretos ocidentais somados, sendo que, por exemplo, os Estados Unidos não
tiveram um serviço secreto para atuar no exterior senão durante a Segunda
Guerra – os Estados Unidos desconheciam isso. Isto quer dizer que a ação da
KGB na intelectualidade européia começa já na década de 20, havendo ali um
festival de compra de consciências como nunca houve na história humana. A
respeito disso, recomendo um livro de Stephen Koch, Double lives (“Vidas
Duplas”), que trata exatamente da apropriação da intelectualidade européia pela
KGB, através não só de mecanismos normais de persuasão mas realmente da
compra de consciências, de chantagens etc. Isso já na década de 30. A respeito
também deste período há um outro livro que eu lhes recomendo: chama-se
Hollywood Party, de Kenneth Billingsley, sobre o Partido Comunista no cinema
americano.
Vocês já ouviram falar da expressão “lista negra”? Ela se tornou famosa no
mundo quando alguns comunistas foram convocados a depor pela Câmara dos
Deputados (as pessoas pensam que foi Joe McCarthy, mas nenhum artista de
Hollywood jamais compareceu perante a comissão McCarthy e sim perante uma
outra comissão totalmente diferente na Câmara dos Deputados): havia uma lista
negra no cinema americano desde quinze anos antes, que se compunha das
pessoas que não colaboravam para o Partido. Tudo isso tem aparecido nos
últimos anos dez ou doze anos graças à abertura dos arquivos de Moscou.
24
Eu digo isso para vocês terem uma idéia do sustentáculo econômico e
organizacional da difusão das idéias marxistas. Nenhuma outra no mundo
jamais teve isto a seu serviço. Notem bem que a eficácia desse mecanismo ainda
nos atinge no Brasil.
Onde quer que haja cinco ou seis professores marxistas – não no sentido do
prof. Alaôr Caffé, pelo amor de Deus, porque já vi que ele é um homem sensato
–, mas no sentido de um militante efetivamente comprometido, há uma equipe
de cães de guarda fielmente empenhada em proibir o acesso ao que quer que
não interesse ao Partido (qualquer que seja o nome do partido, chame-se
Partido Comunista, Worker's Party, como quiser). Eu vou lhes dar um exemplo
de como se faz isso: este livro chamase Dicionário Crítico do Pensamento da
Direita. É uma obra feita por 140 professores universitários brasileiros;
portanto, é representativa de uma classe. Esses 140 professores trabalharam
durante seis anos, com verbas do CNPq e mais dois patrocínios privados, para
nos dizer o que é o pensamento de direita. Ora, depois de ter sido militante do
Partido Comunista, eu me dediquei durante vinte ou trinta anos a estudar
também o pensamento de direita e tenho a pretensão de conhecê-lo.
Muito bem, nenhum dos filósofos direitistas que eu estudei está aqui: nem
Russell Kirk, nem Leo Strauss, nem David Horowitz.
Em suma, todos os pensadores que fizeram a cabeça do movimento conservador
nos Estados Unidos e na Inglaterra estão totalmente ausentes. O que representa
o pensamento de direita aqui? Por exemplo, Goebbels, Julius Streicher (este era
um maluco pedófilo que nem o partido nazista suportou: ele foi expulso do
Partido Nazista por pedofilia e consta como pensador de direita!). Então, você
compra uma obra baseado na confiabilidade acadêmica de seus autores e tem ali
um bloqueio total do que quer que lhe possa dar uma idéia do adversário que
não combine com a idéia precisa que este grupo de militantes quer impor às
pessoas. Esse procedimento não é exceção. Após a abertura dos arquivos de
Moscou, nós temos uma documentação enorme sobre o uso desses métodos no
mundo inteiro. Ora, isto nos cria mais uma dificuldade para estudar o
marxismo, porque entre seus mecanismos de defesa existe também o
mecanismo de escamotear sua própria história e a história do adversário.
25
Ressalto: nunca houve uma organização de tamanho comparável, dedicada a
fazer isso no sentido extramarxista ou antimarxista. Todos os movimentos, até
anticomunistas, que existiram no mundo são esporádicos, locais, de curta
duração e, pior, absolutamente incompatíveis entre si.
Para vocês terem uma idéia, o sujeito pode ser anticomunista porque é judeu
ortodoxo e pode ser anticomunista porque é nazista: vocês não vão querer que o
anticomunismo sionista e o anticomunismo nazista se dêem as mãos. Por causa
disto, nós dizemos que a versão marxista das coisas se apresenta de maneira tão
disseminada e tão impossível de se localizar que todo o debate neste sentido
falha logo de início.
Não pretendo, evidentemente, resolver este problema, que está infinitamente
acima de minha capacidade, mas creio que um primeiro passo é fazer com que
essa figura nebulosa e proteiforme do marxismo seja substituída por uma figura
mais reconhecível. Daí a minha definição do marxismo como uma cultura.
Sendo uma cultura, a sua própria preservação tem prioridade absoluta e, em
nome dessa prioridade, literalmente, vale tudo. Por exemplo, vou ler aqui um
trechinho de um livro de Antonio Negri (vocês devem saber quem ele é), em que
ele relata um debate que teve com Norberto Bobbio, a respeito da teoria jurídica
do marxismo. Bobbio dizia que, no fim das contas, o marxismo não tinha teoria
jurídica alguma, e Negri dizia que tinha. Diz Antonio Negri: “O problema foi que
o objeto da discussão não era o mesmo, nem para os dois participantes, nem
para os espectadores, nem para os partidários dos dois lados. Para Norberto
Bobbio, uma teoria marxista do Estado só poderia ser aquela que derivasse de
uma cuidadosa leitura da obra do próprio Marx, e ele não tinha encontrado
nada disso. Para o autor marxista radical (isto é, ele mesmo, Antonio Negri), no
entanto, uma teoria marxista do Estado era a crítica prática das instituições
jurídicas e estatais desde a perspectiva do movimento revolucionário – uma
prática que tinha pouco a ver com filologia marxista, mas pertencia antes à
hermenêutica marxista da construção de um sujeito revolucionário e à
expressão do seu poder”.
O que nos está dizendo Antonio Negri? Ele está querendo dizer que, embora não
haja realmente uma teoria marxista do Estado nos escritos de Marx – existem
26
apenas observações mais ou menos esporádicas e deduções que os discípulos
podem tirar delas –, existe uma crítica marxista que está de certo modo
embutida na própria prática revolucionária e na afirmação do seu poder. Ou
seja, se queremos saber qual é a teoria marxista do Estado não adianta ler Marx:
é necessário observar a história do movimento comunista, ver como ele se
desenvolveu e ler a crítica jurídica que está embutida ali. Está compreendido?
Muito bem, só que em seguida ele diz: “Se havia algo em comum entre Bobbio e
seu interlocutor era que ambos consideravam o socialismo real (Sabem o que é
socialismo real? É o socialismo cuja existência foi documentada na União
Soviética, na China, na Hungria etc., com oitenta anos de história.) como um
desenvolvimento amplamente externo ao pensamento marxista. A redução do
marxismo à história do socialismo real não faz nenhum sentido”. Ora, mas o
que é o socialismo real?
Ele não foi precisamente a cristalização histórica do resultado da tal “prática da
criação do sujeito revolucionário e a afirmação do seu poder”? Se a teoria
marxista do Estado não está nos escritos de Marx e também não está no
resultado da prática revolucionária, onde diabos ela está? Resposta: ela está na
prática que naquele mesmo momento Antonio Negri está promovendo. É esta
prática que é a legítima, as anteriores não.
Isto é uma constante na história do movimento socialista. Tão logo enunciados
os princípios do marxismo no Manifesto Comunista de 1848, a primeira coisa
que os comunistas fizeram foi colocá-los em revisão. O revisionismo é o segundo
capítulo da história do marxismo após a sua fundação, de modo que, aos
revisionistas (Bernstein, Kautsky e outros), a associação que o próprio Marx
estabelecia entre marxismo e violência era ilegítima. Não nos façamos ilusões:
Karl Marx sempre disse que a revolução somente se faria por meio da violência,
ele rejeitava qualquer possibilidade de implantar o marxismo por meio da
educação ou qualquer outro meio pacífico e inclusive dizia, lamentando-se, que
“para implantar o socialismo no mundo nós temos de destruir no caminho uns
quantos povos inferiores”, sic. Para os revisionistas, esse apelo de Marx à
violência não fazia parte da essência do marxismo, mas era uma espécie de
excrescência devida a alguma perturbação na cabeça do próprio Marx. No
terceiro ato, volta-se à ortodoxia marxista através de Lenin, acreditando-se que
27
é absolutamente necessário fazer a revolução através do uso da violência; e,
através do uso da violência, constitui-se a duras penas, com sacrifício de
milhões de militantes, sobretudo milhões de inimigos e dissidentes, o Estado
Soviético. Uma vez pronto isto, o que diz a geração seguinte? “Isto não é
representativo, isto não é o verdadeiro marxismo”.
Então, de geração em geração, nós vamos nos perguntando: afinal, quando
aparecerá o verdadeiro marxismo? A resposta pode ser dada já: nunca. Porque o
verdadeiro marxismo não existe como nenhuma formulação explícita, que possa
ser discutida racionalmente. O marxismo só existe como uma cultura, na qual a
formulação doutrinal é apenas um elemento provisório e tático, que pode ser
trocado quantas vezes se queira, de modo que o militante possa não somente
mudar a história anterior, fazendo com que tudo aquilo que foi feito em nome
do marxismo já não seja marxismo – e apareça um novo marxismo que ele tem
na cabeça –, mas consiga também fazer até o milagre oposto: ele consegue não
apenas limpar a memória de seus próprios crimes, mas consegue trazer para si
os méritos do adversário. Vou lhes dar um exemplo de como se faz isso, exemplo
que tirei do próprio Antonio Negri: ao falar da famosa prática da criação do
sujeito revolucionário e da afirmação do seu poder, ele diz que “isso faz parte da
história de um conjunto de lutas pela libertação que os proletários
desenvolveram contra o trabalho capitalista, suas leis e seu Estado, desde o
Levante de Paris de 1789 até a Queda do Muro de Berlim”. A Queda do Muro
de Berlim integra-se na sucessão das lutas para a criação do sujeito
revolucionário e para a afirmação do seu poder. Só falta então dizer que o único
marxista autêntico daquela época era Ronald Reagan. O representante de
qualquer religião, ideologia, partido político ou clube esportivo que se permita
uma tamanha elasticidade será evidentemente condenado como charlatão ou
internado como louco. Mas dentro do marxismo isto vale. Mais ainda, digo para
vocês: não é desonestidade, pelo menos não desonestidade consciente. Isto é
possível dentro do marxismo porque ele não é uma doutrina, não é uma teoria
que se tenha de defender mediante uma discussão racional.
Marxismo é uma cultura e, na defesa da unidade e preservação de uma cultura,
todos os meios são legítimos. Mesmo considerações de veracidade e moralidade
28
não devem entrar na linha de conta, porque veracidade, ciência, cientificidade,
moralidade e racionalidade são apenas expressões parciais da cultura, de
maneira que fazer cobranças à cultura em nome delas parece uma insuportável
revolta das partes contra o todo, uma quebra da hierarquia ontológica. Então, a
cultura está sempre acima dos padrões de racionalidade que ela mesma cria.
Sendo o marxismo uma cultura, todas as mentiras que ele venha a dizer não
podem ser impugnadas no campo doutrinal, evidentemente. Porque, ou nós as
impugnaremos no campo moral e, a cultura estando acima da moral, rejeitará
nossa argumentação como irrelevante, ou nós argumentaremos em nome da
ciência, da racionalidade etc., e a cultura como um todo jamais poderá se
colocar sob a fiscalização da moral e dos bons costumes. É tão absurdo você
discutir com um marxista sobre a sua cultura quanto seria você chegar numa
tribo de índios do Alto Xingu e dizer a eles que algum de seus costumes é
imoral. Ele não entenderá o que você diz, porque a moral para ele são
exatamente os costumes da tribo, não existe uma moral supracultural a que ele
possa apelar. Nós temos idéia de uma moral supracultural porque vivemos em
enormes blocos civilizacionais multiculturais, recebemos o impacto de muitas
culturas e podemos compará-las entre si. Isto, por um lado, nos induz ao
relativismo e, por outro lado, nos induz à busca de um padrão de abstração e
abrangência maiores, mais científicos.
Mas, dentro da cultura marxista só vigora o que ela própria criou, e qualquer
produto externo só será admitido lá dentro uma vez trabalhado e modificado no
seu sentido, de modo que se torne inofensivo. Por exemplo, o pensamento
conservador todo será substituído por pensadores de direita de baixíssimo nível
– de preferência psicopatas nazistas que se denunciem a si mesmos na primeira
palavra, porque daí fica fácil lidar com eles. Ou então, às vezes, procede-se de
maneira menos grosseira, escolhendo certos adversários que até são de alto
nível, mas trabalham dentro de uma faixa teórica tão limitada que fica fácil
vencê-los saindo de seu quadro categorial, puxando a discussão para um outro
quadro. Por exemplo, a famosa discussão com Kelsen: Kelsen está apenas
tentando definir o que é o Direito considerado em si mesmo. Se existe, dentro de
29
uma sociedade, um complexo de fatores (direito, economia, moral, religião etc.),
nada disso está separado, evidentemente. Porém, no que consiste cada um
desses elementos? Se dissermos que cada um dos elementos não é nada, que só
existe a mistura, será então a mistura de vários nadas que miraculosamente dá
em alguma coisa. Na época de Kelsen, houve vários esforços em várias ciências
totalmente distintas para conseguir definir seu campo de maneira, como eles
diziam, “pura”. Houve o esforço de uma biologia pura com (?) e outros, houve o
esforço de uma lógica pura com Edmund Husserl, e evidentemente ninguém
entenderá uma palavra do que disse Kelsen se não o entender dentro deste
movimento. Como o universo categorial conceitual de Kelsen é bastante
limitado (e eu, particularmente, também acho que Kelsen está errado ao definir
o Direito exclusivamente pela norma), é muito fácil, numa discussão com ele,
apelar para conceitos sociológicos e históricos que estão infinitamente fora do
quadro de referência dele e fazer de conta que o derrubou, quando
simplesmente não se entrou no assunto. E assim se procede com praticamente
todo mundo.
Muito bem, é claro que até o momento eu não disse nada internamente sobre o
marxismo, muito menos sobre as teorias jurídicas do marxismo, que eu acredito
piamente que não existem. Mas vamos examinar muito rapidamente alguns
conceitos marxistas.
Primeiro, Karl Marx havia dito na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel que a
realidade social dos homens condiciona a sua consciência; nas Teses sobre
Feuerbach, ele vai um pouco mais além e diz “determina”. Isto quer dizer que
você tem uma posição na sociedade que é definida pelo seu papel no sistema de
produção e você tem um conjunto de idéias que é determinado por esta posição.
Quanto é determinado? Isso ele nunca diz; o máximo que ele diz é que, em
última instância, é determinado. Então, qual é exatamente a relação entre
posição social e ideologia? Ou existe uma relação efetiva, como diz Marx, ou
posição social é uma coisa e ideologia é outra completamente diferente. Se
houvesse uma conexão efetiva, então o burguês tem de pensar como burguês, o
proletário como proletário, podendo haver, é claro, exceções. Mas qual seria a
30
possibilidade de que justamente o primeiro teórico da ideologia proletária não
fosse um proletário? E o segundo também não? E o terceiro também não? E o
quarto também não? E de que praticamente toda a liderança do movimento
comunista, ao longo dos tempos e incluindo Antonio Negri, nunca fosse de
proletários? Eles podem dizer que são burgueses esclarecidos e que aderiram.
Mas se você tem a liberdade de aderir, outros também têm.
Portanto, a conexão entre a sua condição social e a sua ideologia é de sua livre
escolha, e a famosa conexão não existe. Outro item (eu poderia dar uns
cinqüenta, mas vou usar um que foi lembrado aqui pelo prof. Alaôr) é o de que
cada etapa histórica é marcada por um sistema de propriedade, e que dentro
deste sistema existem forças de produção que crescem até um certo ponto e
derrubam este sistema de propriedade – o prof. Alaôr deu como exemplo o
feudalismo. Então, o feudalismo tem lá um sistema de propriedade; quando a
produção cresce, ela cria uma incompatibilidade e o feudalismo cai. Perguntem-
me quando isso aconteceu. Respondo: nunca. O feudalismo caiu muito antes de
que houvesse qualquer choque sério entre o sistema de propriedade e os meios
de produção. O choque do feudalismo foi com a instituição real ou monárquica.
O feudalismo foi derrubado quando o rei, que era um primus inter-pares,
decide derrubar os seus pares e tornar-se o primus “sem pares”. Para isso, no
caso da França, constitui-se, pela primeira vez, uma imensa burocracia estatal,
com a qual nem os senhores feudais nem muito menos os burgueses puderam
competir de maneira alguma. Vejam até que ponto isto é absurdo: diz-se que na
Revolução Francesa a burguesia tomou o poder. A burguesia são os capitalistas,
não? Façam a lista dos líderes da Revolução Francesa e vejam quantos
capitalistas havia ali. Resposta: um. Os outros eram todos padres, aristocratas
frustrados, jornalistas etc. Se eles não eram burgueses ou capitalistas
pessoalmente, eles podiam ter algum contato com entidades de capitalistas que
lhes diziam quais eram seus interesses, interesses que queriam defendidos. Mas
nunca houve este contato. Isso quer dizer que, se a ideologia da Revolução
Francesa era a ideologia dos capitalistas ou da burguesia, curiosamente os
burgueses se esquivaram de defendê-la: ela foi defendida por pessoas que não
tiveram nenhum contato com burgueses e não houve nenhum burguês vindo-
lhes pedir que fizessem algo.
31
Isso é para lhes dar uma idéia de até que ponto a teoria marxista da história é
pura mitologia e charlatanismo em cada um dos seus itens. É claro que, se em
meia hora o prof. Alaôr não pode expor a parte dele (a qual vocês já estão
acostumados a ouvir), muito menos posso eu provar toda essa novidade.
Dêem-me alguns anos e eu provo isto com todos os detalhes.
MEDIADOR: Agora a réplica de trinta minutos do prof. Alaôr Caffé Alves.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, isso se trata de um debate, e se é um debate
pressupõe um embate de algumas idéias que são postuladas. Obviamente eu não
penso como o prof. Olavo no sentido tão global de cultura marxista; não
considero que isto exista no sentido que foi colocado. Há uma ideologia,
obviamente, e toda ideologia pressupõe sempre a restrição, em princípio, de
seus membros ideologicamente preparados e geralmente tenta excluir as outras
ideologias, tanto quanto a ideologia neoliberal tenta excluir a ideologia marxista
– é óbvio, é a mesma falta. O importante é estudar a ideologia. É claro que,
como foi colocado aqui, a ideologia de Marx nunca foi assim colocada. Marx tem
até um trabalho muito conhecido, A ideologia alemã, onde ele desenvolve três
conceitos de ideologia; e além disso, depois, no curso dos seus trabalhos,
desenvolve outros conceitos. Aliás, a ideologia é plurívoca, tem várias idéias,
vários conceitos para definição e caracterização das ideologias, mas não é tão
singelo assim como se fez parecer. Obviamente, foi colocada aqui uma série de
questões relativas à história do socialismo real, mas nós aqui dissemos aos
senhores que isso não significa que reflita de forma nenhuma as bases
autênticas do pensamento marxista.
Muitos pensadores, inclusive da estirpe marxista, são de variadas concepções,
de variadas formas de ver o mundo. Não existe “um” marxismo mesmo. Existe o
próprio Marx: quem quiser estudar, estude Marx. Não se postula apenas
inicialmente como uma cultura, porque Marx iniciou seu trabalho
cientificamente. Pode ter muita coisa errada, disso não há dúvida nenhuma.
32
Mas que ele iniciou seu trabalho com uma análise científica da economia
burguesa de sua época, ele fez isso. Ele não teve intenção de estabelecer uma
sociedade socialista, comunista; ele nem tratou disso, na verdade. Ele sempre
propugnava alguns programas em bloco, propugnava uma sociedade mais justa.
Aliás, é exatamente esse o problema: como dizer que o marxismo é um conjunto
de besteiras, de bobagens, se ele parte exatamente de uma realidade que até
hoje é presente? Expliquem para mim a racionalidade de que o bolo social é um
só e, no entanto, um grupo pequeno de pessoas amealhe esse bolo,
patrimonialize esse bolo, capitalize parte desse bolo, e uma grande quantidade
de pessoas não tem absolutamente nada, nem sequer o que comer. Eu já não
estou partindo da literatura, nem do pensamento, nem das coisas abstratas.
Estou pensando na realidade atual: milhões de brasileiros não têm o que comer,
não têm recurso, e eles participaram na elaboração do bolo. Ou não? Pensar que
aqueles que têm um patrimônio imenso, recursos acumulados imensos. Esses
recursos vêm de fora da sociedade? De Deus? Deus seria malvado, não é? Ele dá
recursos só para um grupo e não dá para os outros. Eles vêm da sociedade
conjunta, de todos, e no entanto temos uma diferença tão profunda que não há
sequer neoliberalismo – que hoje é dominante – que resolva esta questão, e não
vai resolver. Assim como se diz que o marxismo não vai resolver, o
neoliberalismo também não vai.
OLAVO DE CARVALHO: Tem toda razão.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Há anos estão aí, com mais amplitude, globalizados,
e tudo o mais; e no entanto nós temos seis bilhões de seres humanos, dos quais
três bilhões estão numa situação de penúria ainda, se contarmos a África, a Ásia,
[palavras inaudíveis]. A pergunta é a seguinte: onde está a razão de que um
grupo social mantém uma estrutura, e que o Direito está aí presente, ele é um
instrumento para esse mesmo efeito? Não é que o Direito seja culpado, de forma
nenhuma. Os culpados são os homens, não o Direito. Ele não tem pernas
próprias. São os homens que fazem isso, somos nós. Como justificar as
discrepâncias, as diferenças terríveis que existem nesse país? Dizem que é a
33
nona economia do mundo, mas é a 54 a em distribuição de renda. [Palavras
inaudíveis.]
Perguntou-se a respeito da Revolução Francesa, e se disse que realmente não
havia nenhum capitalista na Revolução Francesa. E hoje nós temos o sistema
mais bem definido, mais bem claro, mais bem caracterizado que é o sistema
capitalista no Brasil e em outros países e eu pergunto: vocês encontram políticos
burgueses? São os capitalistas que estão lá fazendo leis? São os capitalistas que
estão organizando e que estão governando o país? Não é só no Brasil, não. E aí
pensar: “Aí está o PT agora. O PT é comunista, é socialista.” Claro. Não estão
conseguindo fazer o que queriam fazer? Erguer até operário? Porque o sistema é
tão forte, a dimensão objetiva estrutural do sistema é tão forte, que podem ter lá
idéias comunistas e socialistas que não vão conseguir nada. Porque a estrutura
determina isso. A questão científica está em saber quais são os elos que vão nos
explicar por que é que lá, no Congresso Nacional, não temos burgueses, mas as
leis são burguesas: interessante essa mecânica. Eu gostaria que se utilizassem
instrumentos sociológicos, e a sociologia política inclusive, ou a sociologia
eleitoral para mostrar como é que se dá isso. Quantos operários nós temos no
Congresso? Nenhum, ou poucos, contam-se com as mãos. No meio rural?
Pouquíssimos. E mesmo os restantes não são burgueses capitalistas. Não são os
pró-capitalistas. Eles nunca quiseram… Aliás, o empenho deles não é participar
no sentido do proscênio político. Já tem toda uma dimensão estruturadora do
sistema que se chama “forma de produção ideológica”. É para isso mesmo.
Vamos criticar, por exemplo, as novelas, a mídia, os jornais, os jornalistas.
[Palavras inaudíveis.] Criticar todos, porque todos participam desse processo de
fazimento, realização e estruturação das idéias dominantes. Idéias estas que
definem exatamente essa profunda injustiça que existe.
Então nós temos de nos revoltar contra isto. Sei lá que idéias vocês vão usar, se
idéias marxistas, idéias neoliberais, idéias liberais, idéias social-democratas.
Não importa. O fato importante, fundamental é este, gente: nós temos de vencer
as discrepâncias, as diferenças sociais profundas que existem nesse país. Isto é
muito grave, sério. Pouco importa, inclusive, o esquema de idéias que vamos
34
utilizar. É natural que diante de uma situação dessas, os homens tendem
sempre a tentar equacionar o problema mediante seus conceitos, mediante sua
compreensão, como fazer isso tudo, como resolver essa questão da distribuição
da renda. Não é fácil. Dentro do regime de mercado, que é tão defendido pelos
neoliberais, nós não encontramos nenhuma solução. Até agora nunca houve
isso. Pelo contrário, no sistema de mercado temos uma diferença tão profunda
entre os homens: entre muitos que não têm absolutamente nada, que não vão
ter mais nada do que têm, isto é, nada, e aqueles que têm muito, que vão ter a
chance de ter, fora isso, mais e mais. É a lei da acumulação. Ela existe ou não
existe? É a lei do mercado: quem tem recursos, tem como produzir a liberdade,
ou não tem? Quem tem recursos vai à Europa, vai à Ásia, vai conhecer o fruto de
culturas diferenciadas, vai expandir sua personalidade, vai ter educação, vai ter
a medicina, vai ter a saúde, vai ter a sua cultura acrescentada, porque tem
recursos. E quem não tem? E quantos não têm? Não têm nem recursos para ter
saneamento básico, nem água destinada à sua higiene. Minha gente, isso é uma
realidade, eu não estou falando aqui como se fosse uma construção silogística
ou teórica. Isso é real, e o mercado está ali, defendido, pois é ele exatamente por
enquanto assim jogado às suas próprias forças, autonomicamente desta forma
como ele é, que ele é sempre um indutor da miséria e das diferenças profundas
sociais. Isso não é só o Brasil, não. É em todo o mundo, inclusive nos Estados
Unidos. Lá até é um pouco melhor em relação, porque o país é riquíssimo.
Falou-se da KGB. Falou-se da KGB. Claro, quem é que vai aceitar uma coisa
como esta? A KGB. Quem é que vai aceitar um negócio desses? Ninguém vai
aceitar. Ninguém, na boa consciência dos homens. Está correto o professor, o
doutor Olavo. Mas é preciso também dizer o seguinte: hoje, os Estados Unidos
põem 450 bilhões de dólares anualmente no seu orçamento militar. Não estou
falando em KGB, não. Não estou falando de espionagem. Estou dizendo de
máquinas mortíferas: sabe aquelas que caem bombas, sabe aquelas que apertam
botões e vai matando gente? 450 bilhões de dólares. Já imaginaram o que é 450
bilhões de dólares em um ano? 450 bilhões de dólares! Se isto fosse distribuído
para toda a África em três tempos nós teríamos o desenvolvimento de toda a
África. É claro que não vão fazer isso, pois eles vão cuidar eles próprios dos seus
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próprios problemas. Fazer isso significa criar opressividade para eles. Imagine o
que seria 450 bilhões de dólares aqui no Brasil, de vez; basicamente o país
inteiro há muito está precisando. Isso em um ano! Mas eles jogam isso em um
ano na máquina, na máquina de guerra! Então, isto está muito claro. Se nós
estivéssemos importando recursos deste tipo, não há dúvida que teríamos
chances enorme de ter um desenvolvimento enorme imediatamente. Eu diria
que, em dez, quinze ou vinte anos, ou trinta anos no máximo, teríamos
desenvolvido o globo inteiro; mas esse desenvolvimento não é comportado pelas
relações produtivas do sistema capitalista. Este sistema, como vocês vão vendo,
não só os 450 bilhões, são bilhões e bilhões derramados não só no exército, mas
na estrutura social americana, na NASA. A pergunta é a seguinte: vocês já viram
aquelas coisas maravilhosas que tem lá? Aquilo custa dinheiro, aquilo custa
recursos. Vocês acham que aquilo tudo vem dos Estados Unidos? Vem do
povinho que vai lá, que trabalha e que portanto faz seus programas espaciais, o
seu programa de atuação militar, a sua dimensão de políticas sociais? Nada! É
do mundo inteiro que eles tiram!
ALGUÉM DA PLATÉIA: A China também, né, professor?
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Mesma coisa. Que seja. A mesma coisa. Aí vocês
vêem portanto o que eu quero dizer. Eu não estou falando do povo dos Estados
Unidos singularmente; eu estou dizendo, gente, que o sistema não funciona de
outra forma. Vocês, jovens, estão vivendo na carne hoje o problema do
desemprego. O desemprego não é uma questão simplesmente conjuntural, é
uma questão estrutural hoje. Não é no Brasil, é no mundo inteiro.
O fenômeno da globalização: esse desemprego é decorrente do quê? Da
introjeção de tecnologia e ciência no processo produtivo. É muito óbvio. É muito
fácil isso. É necessário. Mas na medida em que se vão introjetando sistemas
cada vez mais sofisticados de produção, vai se expulsando cada vez mais mão-
de-obra do processo produtivo. E não é só expulsão no primeiro ou no segundo
setor da economia, na indústria ou no setor rural; também no terciário: cada vez
mais vocês têm dificuldades em ter engajamento. E o sistema não tem como
fazer, porque ele está entrando em contradições profundas. Ele é contraditório
36
na sua própria realidade estrutural, na sua dinâmica. Ele é contraditório
mesmo. Ele não vai criando só mercado; ele produz cada vez mais e mais, com
máquinas, com automatização, com informática, com a robótica, com tudo. Mas
os homens vão e se apresentam às fábricas. Mas como pagá-los, a esses homens,
para que eles possam formar o mercado, a fim de consumir essas coisas todas
produzidas pelas máquinas sofisticadas? Como? A resposta é: não tem como. E
então não podemos avançar mais com a economia, não podemos avançar mais
com a tecnologia, com a ciência. Nós precisamos distribuir renda.
Isto decorre exatamente da perspectiva, da visão deformativa do que nós
chamamos de materialismo histórico: o desenvolvimento das forças produtivas
está definindo uma nova relação entre os homens. Como sair dessa? É claro que
pode levar dez dias, levar dez anos, ou mesmo uma centena de anos; isso aí
nunca se sabe, isso é um produto histórico. Mas que as contradições internas o
estão corroendo, estão. Não porque os homens assim queiram; é porque a
estrutura social e econômica está definindo esta forma: as relações entre os
homens mediante os processos produtivos e os instrumentos de produção.
Talvez não comporte mais esse tipo de relação; uma outra relação onde haja
uma [palavra inaudível] cada vez maior, uma produtividade cada vez mais
sofisticada, mas uma distribuição que ainda não se enfrentou. Não se distribui
mais pelo salário, então vai se distribuir de que jeito? Como? Por quê? Conte
para mim. Conte. De que jeito vai distribuir? Isso é decorrente, inclusive, da
econômica; não é teoria, nem teorético, de jeito nenhum. Com isto todos estão
preocupados, inclusive os teóricos burgueses neoliberais; eles sabem disto, estão
percebendo isso, certamente, claro.
Ainda se fala no caso do Estado, como se só o Estado aparecesse; como se não
houvesse nenhuma alteração do sistema feudal que passou para o sistema
capitalista, burguês, sem uma modificação específica. O Estado, inclusive, foi
tomado primeiramente pelos nobres que atuavam de forma absoluta, mas não
se percebeu aqui que o Estado apareceu justamente neste momento como
Estado absoluto. Por que é que o Estado apareceu? Apareceu justamente na
continuidade do que eu havia dito antes, e é preciso analisar, é preciso trabalhar
37
bem a análise analiticamente. O que eu disse? Eu disse que o processo de
desenvolvimento das forças produtivas determinou que os homens ampliassem
o mercado, portanto aparecem neste momento as forças mercantis progressistas
que avançaram. Não vão pensar que o capitalismo apareceu como uma mazela.
Foi muito bom, sem o capitalismo teríamos avançado para fora do planeta;
tivemos enormes progressos; o individualismo se criou no sistema, quando
nobre, adequado, compreendido e evidentemente praticado dentro das
condições éticas, tudo bem. Infelizmente o próprio sistema exacerbou esse
processo pela busca do mundo, pela busca exacerbada da acumulação
desenfreada. Porque o Estado não podia aparecer neste momento para coibir o
processo produtivo.
Vejam uma coisa importante, para que tenhamos uma idéia clara. Quando o
trabalho não é mais posto forçadamente… Porque no sistema feudal, o que
aconteceu, isso precisa ser explicado concretamente: o sistema feudal, o sistema
de trabalho, da produção da vida material dos homens era feito em função de
uma imposição por parte de uma força política, que também era econômica.
Como eu disse, os nobres eram detentores não só do esquema econômico, eram
patrimonialistas em função do sistema feudal, como também esses nobres eram
os políticos do sistema, ou seja, aqueles que podiam manipular a força para
impor o trabalho ao produtor direto. Quando, então, há o desenvolvimento
progressivo da economia, e era preciso fazer a distribuição de renda a fim de
criar mercado, em função do desenvolvimento das próprias forças produtivas,
era preciso tirar, extrair, afastar a questão política da questão econômica. Não
era possível manter o econômico e o político conjugados à força daquele que
produzia, não só por razões de interesse econômico, mas também por questões
de ordem política, atuava para que o trabalho fosse força. Na hora em que o
trabalho começa a ser assalariado (o que precisava sê-lo, para que o sistema
funcionasse), aí ninguém admite a liberdade e a igualdade necessárias, porque
senão não há contrato. É por isso que neste período começa a pensar-se
ideologicamente no chamado contratualismo: ele se expande entre os teóricos
do contratualismo porque o contrato passa a ser uma figura, um instrumental
fundamental para aproximar capital e trabalho. Não havia isso antes. Por isso é
38
que é preciso estabelecer que todos sejam sujeitos de direito, direitos e
obrigações. O capitalista vem e diz: “Você me traz sua força de trabalho e eu lhe
pago o seu direito de salário.” O trabalhador diz: “Está certo. Eu entro com meu
trabalho, eu sou obrigado a empregar a força de trabalho, tenho obrigações, mas
eu tenho de receber o meu salário. Eu tenho o quê? É evidente. Direitos e
obrigações.”. E isso se universaliza por toda a sociedade, justamente nos séculos
XV, XVI e XVII. E nesse período, o que acontece com o político? Ele vai se
destacando e se concentrando não mais na sociedade descentralizada, como
havia antes; ele se concentra no poder absoluto dos reis, e aí é que aparece o
Estado pela primeira vez. Um Estado ainda não adequado à burguesia
totalmente, mas como efeito de um processo que correspondia exatamente a
esse movimento do capital. Era a necessidade de que o trabalho, o contratado,
deveria ser contratado e não forçado, conseqüentemente não podia haver a
política no processo, mas a política deveria estar presente a todo instante em
que o contrato fosse rompido. Aí era preciso evocar e convocar o político, ou
seja, a força, para que o sistema continuasse a funcionar. Como isso é apenas
formalizado em nível de mercado e não em nível da produção, porque a
produção ainda continuava a envolver uma inequação profunda (porque é lá no
processo produtivo que havia o processo expropriatório de acumulação), era
preciso manter uma estrutura de força para qualquer tipo de emergência que
houvesse; caso grande parte dessa população que tinha de entregar a sua parte
de trabalho para acumular a outra parte, era preciso que houvesse a emergência
possível de uma força, caso falhasse o esquema ideológico. O esquema
ideológico começou a desenvolver-se amplamente para que todos aceitassem a
situação como natural. Mas a miséria, às vezes, alcança níveis tão altos que o
sistema burguês hegemônico tem de ter meios para poder resolver e neutralizar
qualquer tipo de crise. E como vai fazer isso senão através do Estado, através da
força centralizada do Estado que só aparece no sistema burguês. O Estado é um
fenômeno tipicamente moderno. Não havia Estado na época feudal; havia
organização política, isso havia, mas não Estado. Não havia Estado na época
clássica, não existe Estado romano. Tinha Império romano, com uma dimensão
descentralizada enorme, por causa dos senhores de escravos, que atuavam
diretamente de suas fazendas; eram as famílias que tinham atuação de poder
39
político. Isso não acontece mais no sistema burguês, não acontece mais no
sistema moderno, onde o sistema então acrescenta o ponto de vista mercantil, e
vai se desenvolvendo até chegar à Revolução Industrial; e isto se concentra
enormemente num processo imenso em que o Estado faz presente o gendarme,
o Estado-polícia, para evitar qualquer tipo de proposta que viesse a conflitar
com os interesses da política dominante, o que aconteceu mesmo já o século
XIX.
O próprio Marx, que postulava idéias estranhas a esse sistema, foi perseguido, e
teve de, inclusive, tomar posições complicadas nesse processo, e outros
movimentos, é claro, movimentos operários nessa época do século XIX. Aí vocês
vêem que não há nada de culturalidade abstrata. É preciso agora (eu disse isso, é
claro, de forma muito genérica) mas eu preciso basear agora os erros concretos
de cada coisa. Eu explicaria para vocês o contrato, explicaria a hipoteca,
explicaria o aluguel, explicaria tudo a partir dessas estruturas! Não posso fazê-lo
porque tenho apenas meia hora. Portanto, não é uma questão abstrata, ampla,
múltipla simplesmente, é uma questão que envolve métodos especiais
singulares.
Outra questão que se colocou a respeito de Kelsen, que se colocou muito bem
aqui, porque Kelsen – eu mesmo disse a vocês que ele era muito inteligente –,
ele era um leitor fruto das condições do chamado positivismo, do primeiro
quartel do século XX. Ele postulava a idéia de ciência pura, a partir de uma idéia
do positivismo como ciência do objetivo. A ciência tem de ser objetiva, de tal
maneira a dizer o que a coisa é, não o que ela deve ser. Ele dizia que se há
ciência do direito, essa ciência deve dizer o que é o direito. O direito dele lá,
como objeto, é dever-ser, é norma, não há dúvida – pelo menos isso, pelo menos
isso. Mas o direito como ciência tem que dizer o que ele é, e como é, significa
dizer o que é o dever-ser, como é a norma. E ele, muito bem aparelhado com a
perspectiva e a visão dos positivistas, não só dos positivistas jurídicos, mas dos
positivistas filosóficos, os filósofos positivistas, que tentavam buscar a extração
do sujeito em relação ao objeto, evitar a mistura de sujeito e objeto, pelo
contrário, neutralizar o mais possível o sujeito para que o objeto se sobressaísse
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claramente como algo objetivo. Então, tem de se buscar o direito objetivo. Claro
está que esta dimensão foi fracassada, mas não por ele, Kelsen, não por ele, mas
pela crítica da própria sociedade.
Já mesmo nas épocas do começo do século XX, nós encontramos por exemplo
um [?], um François [?], esses pensadores, esses sociólogos, que tentaram
quebrar a condição formal de Kelsen. E Kelsen ainda diz assim: “Não, mas a
questão sociológica não é uma questão jurídica na sua essência.” Nós sabemos
muito bem disso. Muito bem! Essa história é muito bem contada! Efetivamente,
é claro que Kelsen queria só uma pequena questão, que é a questão do que é, na
sua essência, o jurídico. O problema é que ele não foi aceito, não por ele mesmo,
mas por vários pensadores que chegaram à conclusão de que o Direito não pode
ser puro quanto à sua tese, quanto à sua teoria. O Direito em si mesmo, o
Direito como objeto, é claro que ele nunca foi puro, e o próprio Kelsen sabia
muito bem disso. O Direito é impuro por natureza; pura é a teoria sobre ele, isto
é que é puro. Mas é válida do ponto de vista – agora veja o que eu digo –
epistemológico. Como uma crítica epistemológica, é válido consignar essa forma
de compreender o mundo? Talvez fosse válida naquele momento.
Compreensível! Mas depois da Segunda Guerra Mundial, com a conturbação
imensa do humano, do homem, já não se pensava mais em buscar ciências
puras, isoladas, solitárias, cada uma de per si. Percebeu-se que os homens
tiveram mazelas profundas exatamente por não se comunicarem não só eles,
como com as próprias ciências. Daí vem toda a questão da interdisciplinaridade
que vocês conhecem hoje, que é um problema muito complexo, muito difícil,
que não se soluciona facilmente. Buscar o Direito na sua expressão a partir da
forma interdisciplinar, em que envolvemos não só a juridicidade como norma,
mas também o que é a dimensão social, econômica, e assim por diante. Como
compreender uma realidade plenamente senão descendo às suas próprias
raízes? Isso é como imaginar que somente o estudo do caule lhe dê a realidade
da planta. Não é isso. E o caule sozinho existe? Não. Ele só existe em ligação
com a planta, e este só existe em ligação com as suas raízes. Vejam, então, os
senhores que, efetivamente, é claro que há muitas outras questões a serem
colocadas, como afinal eu queria colocar que é a da violência, da revolução.
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Marx nunca pensou só na revolução no sentido da violência. Pelo amor de Deus!
Foi colocada aqui a questão das teses sobre Feuerbach. Nas Teses sobre
Feuerbach, Marx coloca muito claramente o que ele entende por revolução. Ele
não fala especificamente de revolução: ele fala em transformação pelas raízes. A
revolução não tem de ser necessariamente violenta, de jeito nenhum. Pode ser
outra. Por exemplo, essa questão que eu coloquei agora há pouco, que é a da
limitação do próprio sistema econômico capitalista que não pode superar-se a si
próprio, vai implicar uma revolução, uma transformação profunda. Isso não
precisa ser pelo caminho das armas. É até bom evitar isso, evitar a morte das
pessoas. Quanto mais as pessoas forem conscientes, mais educadas, mais claras
em ver o mundo, tanto mais facilmente poderemos fazer a transmutação. Por
isso é que nós preferimos então a democracia, não uma democracia
simplesmente representativa, mas uma democracia participativa que permite a
todos nós trabalharmos o mercado. Nós vamos contrapor a democracia
participativa não à ditadura, não aos meios autocráticos apenas, mas também,
gente, opô-la ao mercado, esse mercado terrível que não tem força nenhuma
que o coíba. É preciso coibi-lo através do quê? Da conjunção, do consenso da
comunidade, para buscar melhor a expressão do valor do uso social! Evitar que
esse valor de troca toque todo mundo. [Palavras inaudíveis.] Esse mercado tem
de sofrer impactos restritivos em prol da comunidade, em prol da dignidade
humana, em prol da distribuição para os homens, em prol da paz entre os
homens. Isto é fundamental. É disso que se trata.
MEDIADOR: Passo a palavra para Olavo de Carvalho.
OLAVO DE CARVALHO: Então está muito bom. Já que passamos a
discussão para o terreno dos fatos, e partimos de uma situação que Marx teria
encontrado e que ainda se encontra mais ou menos igual no mundo, então
vamos ver um pouco a relação entre os fatores considerados: mercado e miséria.
Segundo o prof. Alaôr, o grande culpado da miséria e da desigualdade é o
mercado descontrolado. Ele usou a palavra “controlar” e a palavra “coibir”.
Portanto, é necessário controlar e coibir o mercado.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não foi isso.
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OLAVO DE CARVALHO: Aí eu não sei…
ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Interrupção inaudível.]
OLAVO DE CARVALHO: Quando chegar a sua vez o senhor fala. Eu não lhe
dei aparte. O senhor usou as expressões “controlar” e “coibir”.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Interrupção inaudível.]
OLAVO DE CARVALHO: Eu não lhe dei aparte! O senhor espere. Eu esperei
aqui. Muito bem. “Controlar” e “coibir”. Quanto eu não sei. A coibição total seria
a estatização total dos meios de produção. Não me parece que o prof. Alaôr seja
um defensor disto, e não creio que exista mais, nem mesmo entre os teóricos
marxistas, alguém que defenda exatamente isto. Mas, se o grande culpado da
miséria e da desigualdade é o mercado descontrolado, então para melhorar a
condição dos pobres temos de controlá-lo. O controle se faz basicamente de
duas maneiras: a mais direta, que é a participação do Estado na economia como
proprietário e investidor, e a segunda através de legislações controladoras e
restritivas, seja sob o aspecto fiscal seja sob outros aspectos.
Muito bem. Nós temos aqui um índice de liberdade econômica. Liberdade
econômica seria a ausência de controle. Ausência total não existe, assim como
controle total não existe. Mas dentro dessa escala que vai de 1 a mais ou menos
150, nós temos entre os países de economia mais livre do mundo Hong Kong,
Nova Zelândia, Irlanda, Luxemburgo, Holanda, Estados Unidos, Austrália,
Chile, Reino Unido etc. E assim, à medida que aumenta o número de controles,
supostamente para proteger os pobres, nós vamos descendo na escala de
liberdade econômica. Passou a primeira página, passou a segunda, aí mais ou
menos no meio da terceira, encontramos o Brasil em 79 o lugar. Quem tem mais
controle do que o Brasil e, portanto, está abaixo nesta lista? Eu vou dar alguns:
Paraguai, Nicarágua, Quênia, Zâmbia, Guiné, Ruanda, Tanzânia, e assim por
diante. Se vocês pegarem este mesmo quadro transformado para uma projeção
visual, nós temos aqui em verde e azul as regiões de mais liberdade econômica e,
portanto, de menos controle, e em amarelo e vermelho aquelas que têm mais
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controle. É só você olhar estes dados, que são coletados anualmente com muito
critério por um grupo de economistas, e você verá que a idéia mesma de
melhorar a condição dos pobres através de controle é um absurdo sem mais
tamanho. Se disserem que o neoliberalismo não vai resolver, é claro que não.
Em primeiro lugar, porque neoliberalismo não é liberalismo. Neoliberalismo é
um liberalismo meia-bomba que também se mistura com um socialismo meia-
bomba, e o neoliberalismo é simplesmente um pretexto para fazer o que o nosso
governo tem feito, que é controlar mais e mais e mais. Hoje em dia, só de
dispositivos que regulam o orçamento federal, vocês sabem quantos há? Cinco
mil e quinhentos. Isto quer dizer que para um sujeito votar o orçamento com
consciência de causa, ele precisa conhecer cinco mil e quinhentas leis. Isto é
humanamente impossível. Isto é o controle estatal.
Ora, o prof. Alaôr reconhece que aqueles que estão no Congresso e que fazem as
leis não são capitalistas e, ao mesmo tempo, ele diz que eles legislam em favor
dos capitalistas. Aí eu me permito concluir que se fossem proletários não
legislariam necessariamente em favor dos proletários. Porque acabamos de ver
que a ideologia e os ideais do indivíduo não são de maneira alguma
condicionados nem determinados pela sua condição social. Porque se fosse esse
o caso, eu, que sou filho de operário de indústria e neto de lavadeira, deveria ser
o mais marxista de todos, ao passo que pessoas como o sr. Eduardo Suplicy e
toda essa gente seriam pró-capitalistas. Mas, se os legisladores, tanto no Brasil
como em outros lugares, não são nem capitalistas nem proletários, o que é que
eles são?
Ora, eu estava lhes contando a história do fim do feudalismo. Desde o reinado
de Luís XIV se começa a formar, para fins militares, um princípio de
organização burocrática estatal. Aos poucos essa organização burocrática vai
tirando da aristocracia feudal as funções locais que elas exerciam (por exemplo,
tribunais, juiz de paz, coleta de impostos etc.) e passando para a burocracia. É
evidente que os aristocratas perdiam a sua função sem perder a sua quota dos
impostos, criando então uma classe ociosa imensa, contra a qual se volta, com
toda justiça, a Revolução Francesa dois séculos depois. Mas ao mesmo tempo
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que se forma a burocracia estatal, para preenchê-la é necessário ter funcionários
preparados. Para ter funcionários preparados, é preciso haver uma expansão do
ensino. Então cria-se, para uma multidão de pessoas de todas as origens sociais
mais pobres, desde a pequena burguesia até os camponeses, uma promessa de
subir na vida através do funcionalismo público. Este é um fenômeno inédito na
História. E acontece que o funcionalismo público cresce, a burocracia cresce, e
junto com ela cresce o ensino. Mas, naturalmente, o número de candidatos
cresce formidavelmente mais. E com isso se cria uma legião de pessoas que têm
alguma instrução e que aspiram ao cargo público e não o têm. É a esta classe
que eu chamo a burocracia virtual.
Se você estudar a história de todas as revoluções (Revolução Francesa,
Revolução Russa, Revolução Chinesa etc.) não através de impressões gerais e
nomes de classes – gêneros universais como burguesia e proletariado – mas se
você for vendo uma a uma a origem social dos líderes, era a esta classe que
pertenciam. Esta é a classe revolucionária. Mais ainda: todas as revoluções que
ela fez foram sempre em proveito próprio. Quem sai ganhando com as
revoluções não é o proletariado e também não é a classe capitalista. É a
burocracia virtual, que sempre legisla em causa própria, segundo a norma que
foi assim enunciada pelo próprio Trotsky: “O encarregado da distribuição
jamais se esquecerá de distribuir a si próprio em primeiro lugar.” Isto é norma,
e é por isso que esses países onde o Estado não deixa a economia à sua própria
mercê, onde a economia é controlada, são os mais pobres e os que têm os mais
altos índices de corrupção. Isto é necessariamente assim, e não há solução
enquanto o poder da burocracia, sobretudo da burocracia virtual, não for
quebrado.
Mas é preciso muita cara-de-pau para lhes dizer isto justamente aqui. Porque
esta escola existe para isto. Numa pesquisa feita entre universitários brasileiros
dois anos atrás, verificou-se que menos de 2% deles queriam ser empresários
depois de formar-se. Todos queriam um emprego. De cara eu fico espantado,
porque eu sempre ouvi dizer que a Universidade faz parte do aparelho
ideológico da burguesia para formar a classe dominante, e de repente nós
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descobrimos que todos eles querem ser empregados. Que tipo de empregado?
Não é necessário dizer. Então, isto quer dizer que vocês são burocratas virtuais,
esperando para transformar-se em burocratas reais. Portanto, são por
excelência a população da qual o movimento político revolucionário colhe os
agentes de transformação social. Porque, evidentemente, não há lugar para os
burocratas virtuais em nenhuma sociedade; só haverá lugar quando eles
estiverem no poder. Ora, tomam o poder acreditando que vão pôr fim às
injustiças. Uns acreditam, outros são mais cínicos e sabem que não.
Vamos fazer aqui uma comparação: aqui nós temos um sujeito maior e mais
poderoso que está oprimindo este aqui, que é menor e menos poderoso. Então
eu entro e digo: vou parar com essa injustiça, eu vou intervir. Ora, para intervir
numa briga entre o mais forte que oprime o menos forte, eu tenho de ser
necessariamente mais forte que os dois. Isto quer dizer que qualquer
intervenção política que vise a diminuir a desigualdade econômica tem de fazê-
lo necessariamente aumentando a desigualdade política, portanto concentrando
o poder político. Isto é uma regra jamais desmentida em qualquer processo
revolucionário violento ou pacífico do mundo. Então, eu vou ter de concentrar o
poder; concentra o poder, concentra o quê? O controle.
Por outro lado, se eu concentro o poder político, do que é que vive o poder
político? O poder político não custa dinheiro? O próprio prof. Alaôr estava
falando do orçamento militar americano. Isso quer dizer que se há uma
concentração do poder político, há necessariamente uma concentração ainda
maior do poder econômico. E é isto que permitiu ao socialismo realizar um feito
jamais igualado na história humana: matar de fome, em cinco anos, trinta
milhões de pessoas, no Grande Salto para a Frente, que foi o quê? A
centralização da agricultura chinesa. Isto é uma verdadeira maravilha! Ninguém
conseguiu isto. Ora, se vocês quiserem tentar novamente… Bom, agora querem.
O MST, no fundo, quer isto: “Nós vamos fazer uma agricultura centralizada,
estatizada, diretamente sob controle do ministério”. Vocês sabem perfeitamente
que o MST não produz nada e que vive de cestas básicas. Saiu recentemente um
livro de um jornalista chamando Nelson Barreto, que visitou mais de trinta
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acampamentos rurais e disse: “São favelas rurais”. É claro, não poderiam ser
outra coisa. A socialização da agricultura sempre dá nisto. Se você pegar todos
os países africanos que estão numa condição de miséria atroz, todos eles foram
vítimas de políticas estatistas, centralizadoras e socialistas. Hoje em dia, na
Etiópia, por exemplo, se você toma uma cerveja, você paga 82% de imposto; se
você tem um firma que ganha mais quinhentos dólares por ano, você paga 52%
de imposto, e para cada tostão que ultrapassa os quinhentos, você paga mais
trinta, e assim por diante. Saiu um livro recentemente descrevendo a economia
da Etiópia – é uma maravilha, é o controle. Se o mercado é o monstro que está
deixando as pessoas miseráveis, lá eles não correm esse perigo, porque o
mercado está amarradinho. Ele está amarradinho na Etiópia, na Zâmbia, no
Gabão. Por que é que não imitamos esses lugares? Parece que a presente
geração está seriamente inclinada a fazer isso. Por que é que está inclinada?
Porque o raciocínio que preside essa decisão, essa escolha, não é um raciocínio
baseado na economia, na realidade econômica, na racionalidade econômica. É
um raciocínio de ordem cultural.
Existe uma cultura marxista que está associada a símbolos de valor ético, de
bondade e de solidariedade intergrupal. Ora, você se desvencilhar de uma
ideologia ou de uma idéia é relativamente fácil, porque você simplesmente
muda de idéia. Mas, como é que você faz para se desgarrar do meio marxista, da
atmosfera marxista? Primeiro, tem de abandonar seus amigos: eles não gostam
mais de você. Isto, todos meus alunos depõem, nesse sentido, e eu recebo
centenas de cartas: “Eu sou discriminado porque não sou marxista…” São
centenas, e chegam todo mês. Não estou acusando os marxistas de serem maus,
não é isso o que eu estou dizendo. Se eu fosse fazer um diagnóstico desse tipo,
eu nem precisava vir aqui: eu estou tentando ser o mais científico que eu posso.
Científico não quer dizer neutro, quer dizer apenas honesto.
Por exemplo, o professor se refere às novelas, ao poder ideológico que elas têm
sobre o público. Vocês já ouviram falar de uma novela chamada Kubanacan?
Vocês sabem o que quer dizer “Kubanacan”? Sabem o que quer dizer essa
palavra? É o nome da agência oficial de turismo de Cuba. Se você pegar todas as
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novelas da Globo, de vinte anos para cá, a seleção ideológica é estrita. No tempo
do falecido Dias Gomes havia uma central de seleção de novela. A novela
passava por três peneiras de seleção: primeiro, ideológica; segundo, artística;
terceiro, comercial. Qual era a primeira instância? Ideológica. Ou seja, se não
atende ao requisito ideológico, nem passa à segunda instância. Nós estamos
impregnados de cultura marxista 24 horas por dia; é difícil sair de dentro dela.
Mesmo no tempo em que as coisas não eram assim, quem quer que participasse
desse meio tinha certa dificuldade de sair. Vou lhes contar por que.
Quando eu comecei a trabalhar na imprensa, a primeira coisa que eu fiz foi
entrar no Partidão. O sujeito que me cooptou para o Partidão era um jornalista
pernambucano chamado Pedro. Eu vou lá, participo de várias reuniões da
“base” (na época chamava-se base à unidade mínima). A base era na Folha de
São Paulo, que se chamava Empresa Folha da Manhã na época. Passa um mês,
chega um sujeito muito sinistro do Comitê Estadual e nos reúne na ausência do
tal do Pedro, que era o chefe da base, e diz: “Companheiros, estamos com um
problema. Nós estamos desconfiados de que o companheiro Pedro arrumou
uma amante, e temos razões para crer que ela é agente do Dops. Não temos
certeza, e por isto nós precisamos isolar esse camarada enquanto tiramos o
assunto a limpo. Para isso precisamos que vocês arrumem um local para
depositá-lo (um cárcere privado, evidentemente) enquanto averiguamos”.
Delegou quatro voluntários, entre os quais este que vos fala, para fazer esta
porcaria. Eu arrumei um barraco numa favela onde eu nunca mais conseguiria
chegar – é impossível, é depois de Deus-me-livre. E deixamos o camarada lá.
Passou uma semana, duas, três, e nós íamos levar comida e cigarros para o
sujeito. Daí a equipe de apoio logístico foi trocada e eu passei meses sem ouvir
falar do camarada. Um dia eu escuto na redação a seguinte conversa (isto, uns
nove ou dez meses depois): “Sabe quem estava aí na portaria? Aquele f.d.p. do
Pedro. Nós não deixamos nem entrar.” “Ótimo, estamos livres do problema.”
Passam mais alguns meses, eu estou no bar na frente da Folha tomando um
cafezinho e chega o tal do Pedro, magro, chupado, barbudo, verdadeiro
mendigo. E veio falar comigo, e eu, como bom militante, virei-lhe as costas. Este
era um processo normal dentro do Partido: excluir as pessoas que lhe eram
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desagradáveis. Isso não aconteceu com um, aconteceu com centenas. Isso é
muito comum, porque é considerado uma justa medida de segurança.
Por aí vocês vêem como é difícil sair desse meio. Eu levei vinte anos para sair.
Você tem de cortar os contatos um por um, você tem de fazer novas amizades,
você tem de mudar de lugar, porque se você está ali você não vai agüentar a
pressão. Isto não é a força de uma ideologia, uma ideologia não pode ser tão
forte assim. Uma ideologia não penetra até às mais íntimas reações emocionais
da pessoa. Isto é uma cultura no sentido antropológico do termo, da qual
evidentemente fazem parte as formulações doutrinais do marxismo; mas não
essenciais, tanto não são, que podem ser trocadas. Eu acabei de lhes citar o caso
de que Marx acreditava que era imprescindível o uso da violência (e nisto ele é
textual, não há menor possibilidade de dúvida), que a geração seguinte já
acredita que se pode implantar o socialismo pelo voto e que, em seguida, se
volta à teoria da violência, e assim por diante, numa sucessão absolutamente
alucinante de transformações. Então, o marxismo hoje diz isso e amanhã pode
dizer uma outra coisa completamente diferente, sem perder o senso de unidade
– isto é que é miraculoso. Há pessoas que dizem que o marxismo é uma religião;
eu digo: de maneira alguma. Ele pode ser uma religião no sentido primitivo, em
que cultura, religião e sociedade formam um amálgama indiscernível. Mas no
sentido das religiões universais – Judaísmo, Cristianismo e Islam – elas têm de
ter um dogma perfeitamente identificável, com o qual você possa discutir, e
aceitar ou impugnar. Mas o marxismo não tem. O marxismo pode se livrar de
qualquer das suas doutrinas, se livrar de qualquer dos seus feitos, e absorver os
feitos do adversário. Eu já lhes provei como é assim.
Um exemplo característico é o das relações entre marxismo e fascismo. O
fascismo existiu no mundo e chegou a ter força graças à União Soviética. Por
quê? Stalin, analisando marxisticamente o fenômeno, acreditava que aquilo era
uma rebelião meio anárquica de classe média que conseguiria destruir as
instituições das velhas democracias capitalistas, mas que não conseguiria
manter-se no poder. Então, ele dizia que os fascistas eram “o navio quebra-gelo
da revolução”. Dito de outro modo, eles ganham e nós levamos. Então, decidiu
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ajudá-los o mais que pudesse, sobretudo do ponto de vista militar. Vou lhes
mostrar aqui mais um livro: The Red Army and the Wehrmacht. É a história de
como a União Soviética construiu militarmente a Alemanha nazista. Isto foi
escondido durante muito tempo e apareceu agora com a abertura dos arquivos
de Moscou. Muito bem. Acontece que esta teoria que Stalin tinha a respeito do
nazifascismo não era a que Hitler tinha. Hitler tinha outra teoria. Em função
disso, ele de repente dá para trás e invade a União Soviética. Aquilo era tão
absurdo do ponto de vista da interpretação marxista de Stalin que ele levou dois
dias para acreditar que aquilo estivesse acontecendo. Ele achou que era uma
operação de contra-informação feita pelos malignos ingleses. Bom, durante toda
a década de 30 houve estreita colaboração com o nazismo, antes da eleição de
Hitler. Hoje todo o mundo sabe do pacto Ribentropp-Molotov de 1939. O pacto
foi apenas a exteriorização de uma colaboração muito profunda que pelo menos
desde 1933 construiu o poder militar da Alemanha. Ao mesmo tempo, como
operação diversionista, Stalin lançava em alguns países ocidentais,
especialmente na França, uma imensa campanha de antifascismo literário, na
qual toda a intelectualidade francesa colaborou, sendo muitíssimo bem paga.
Até hoje, a noção de fascismo que nós temos é esta. Em 1933 houve o famoso
atentado ao Parlamento alemão; daí lançaram a culpa num comunista e
prenderam um agente do Komintern, George Dimitrov – vocês já devem ter
ouvido falar disto. George Dimitrov chega ao tribunal e diz: “Eu estou aqui preso
por causa da tirania fascista dos capitalistas, a ditadura dos Krupp e dos
Thyssen.” Até hoje as pessoas acreditam que nazifascismo é isto. Não sabem,
por exemplo, que o velho Thyssen, quando veio o nazismo, fugiu para a França,
de onde foi seqüestrado e obrigado a voltar para colaborar com os seus
inimigos. Mas como é que George Dimitrov foi parar na cadeia? É muito
simples. Ele era a figura mais importante do Komintern, e estava ali na
Alemanha; foi almoçar no restaurante que era o ponto de encontro de toda a
oficialidade nazista; vocês imaginem um militante clandestino fazer isso,
almoçando com dois de seus assessores ao lado. Foi preso ali, evidentemente,
sem nenhuma violência, foi levado até o tribunal, onde pôde fazer o seu show e
em seguida foi inocentado e devolvido em paz à União Soviética. Seus dois
assessores que sabiam da história foram mortos. Isto quer dizer que toda a
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nossa concepção corrente de fascismo é um mito publicitário, criado para
encobrir a colaboração profunda da União Soviética com o fascismo.
Olhem, eu lhes asseguro com a experiência de quem estuda esse negócio há
trinta anos: eu não sou um teórico neoliberal, não pertenço a movimento
nenhum, tenho horror dessa direita brasileira, cuspo na cara de todos eles, estou
pouco me lixando para o que pensam, não estou falando em nome de ninguém,
e não tenho nenhuma solução para os problemas do mundo. Eu falo somente
daquilo que eu estudei. Esse negócio de marxismo e de história do comunismo
eu estudei. Eu lhes garanto: eu nunca encontrei uma afirmação central, fosse do
próprio marxismo fosse da cultura comunista em geral que, examinada, não se
mostrasse exatamente o contrário da verdade. É uma por uma, a lista não acaba
mais. Eu mesmo, chegou uma hora em que comecei a ficar alucinado: não é
possível, tudo o que eles dizem que é invenção da tal da direita é verdade.
É experiência de vida que eu tenho para lhes dizer. Para mim foi chocante,
porque eu saí do Partido não por discordância ideológica; saí simplesmente
porque fiquei moralmente confuso com episódios como esse que eu lhes contei,
e durante 25 anos não dei palpite em nenhum assunto político, fiquei quietinho
no meu canto, estudando e tentando chegar a conclusões. O material que eu
tenho sobre isso é imenso, e me leva a poder dizer: Marx era um charlatão, Marx
era um vigarista. Por exemplo, para provar que a evolução do mercado tornaria
os ricos mais ricos e os pobres mais pobres, ele se socorreu do quê? Do exemplo
que ele tinha à mão, a Inglaterra, que era o único país da Europa com boas
estatísticas na época, e o melhor material eram os Blue Books, relatórios anuais
do Parlamento. Quando Marx foi ver os relatórios, descobriu que, ao contrário
do que ele estava dizendo, a condição da classe operária tinha melhorado. O que
é que ele fez? Ele tinha todos os relatórios e consultou um por um. Os registros
estão na biblioteca do Museu Britânico até hoje. Ele conhecia todos os registros,
mas como os registros não comprovavam o que ele queria, ele preferiu usar os
registros de trinta anos antes. Se isso não é vigarice, eu não sei o que seja. Mais
ainda: na hora em que o sujeito editou o seu próprio sistema de “materialismo
dialético”, vocês já pararam para pensar nessa expressão? Uma dialética é um
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fluxo, um processo inteligível de idéias. Em que sentido isto pode acontecer na
matéria? Engels diz que a matéria tinha estrutura dialética. Por exemplo, hoje
nós diríamos assim: o elétron é a tese, o próton é a antítese e o átomo é a
síntese. Não é preciso dizer que todas essas idéias foram absolutamente
desmoralizadas. Depois de desmoralizadas, apareceu esta versão que o prof.
Alaôr defende agora: “Não, Marx não quis dizer isto, mas usou o materialismo
apenas no sentido da convivência do homem com a matéria, no sentido da ação
histórica sobre a matéria.” Se o materialismo de Marx diz respeito apenas à
nossa ação sobre a matéria, então a matéria é o fator passivo e alheio ao
materialismo dialético. Só existe materialismo dialético, portanto, na ação
humana. Mas que raio de materialismo sem matéria é esse aí? Isto não é um
materialismo. O que é a matéria para Marx? Marx não diz absolutamente nada
sobre isso, e ele acredita que o processo central é a “ação transformadora do
homem no cosmos”. Ora, quanto do cosmos o homem pode transformar? Um
pedacinho insignificante da crosta de um planetinha, e todo o restante do
cosmos permanece perfeitamente indiferente a isto aí. Como é que este processo
pode ser o centro da realidade material? Se você disser que espiritualmente ele é
o centro, isto é possível, aí faz sentido; embora pequeno fisicamente, ele é
significativo. Colocá-lo materialmente no centro é nonsense e é de um
primarismo filosófico digno de analfabeto. Mas Marx não era um analfabeto,
Marx era simplesmente mentiroso. As provas disso são abundantes: a sua
falsificação de fontes, as interpretações absolutamente forçadas. Por exemplo,
quando ele diz que inverte Hegel e o põe de ponta-cabeça: ele não faz
absolutamente nada disso. O que ele faz com a dialética não tem nada a ver com
Hegel, ele passa longe. E no entanto todo mundo acredita que é a estrutura da
dialética de Hegel que está lá dentro, e assim por diante.
A quantidade de charlatanismo é muito grande para eu poder lhes expor em
meia hora, ou até em um mês. Eu tenho dado aulas e mais aulas sobre isto, e o
negócio não acaba. Então, eu vou terminar esta exposição com um apelo. Não se
sai de uma cultura mudando de idéia. A cultura abarca a personalidade das
pessoas. Para você abandonar essa cultura, você vai ter insegurança, problemas
psicológicos e dificuldades existenciais terríveis. Isto quer dizer que dentro da
52
redoma dessa cultura não é a mente ou a opinião das pessoas que está presa: é a
alma e a existência delas. E se é para falar em liberdade, então, antes de querer a
liberdade para os outros, experimente o que é a liberdade. Experimente
examinar a cultura marxista não desde dentro, como ela sempre faz, mas
experimente olhar de fora, e vocês terão uma visão bem diferente da que talvez
tenham. Muito obrigado.
MEDIADOR: O prof. Olavo de Carvalho não concorda com passar dez minutos
ao prof. Alaôr Caffé Alves para tecer comentários.
OLAVO DE CARVALHO: Só se eu também tiver dez minutos também. Ou é
igual ou nada. Ou é tudo ou nada. Ou é honesto ou é sacanagem.
[Há uma discussão sobre a continuação do debate e fica decidido que cada um
dos debatedores terá a palavra por dez minutos.]
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, eu acho que as coisas estavam indo muito bem.
Mas esta última, inclusive o aplauso que se deferiu para um tipo de política que
me é extremamente estranha e séria, mostrou inclusive que não se sabe o que é
o nazismo. Porque os outros, isso que vocês conhecem, vocês sabem o que é…
Porque existe uma outra idéia do nazismo que talvez fosse aceitável, como o
Olavo falou. Profundamente triste isso. De qualquer forma, a questão de dizer
que Marx é um charlatão é muito complicado, é muito difícil formular dessa
forma porque é atacar uma pessoa que não está presente, que não tem nem a
condição de se defender. Mas isso é muito complicado porque não existe só a
literatura marxista, existem marxistas, os que são simpatizantes de Marx, os que
aproveitam parte da concepção marxista, e que admitem perfeitamente a
possibilidade de desenvolver teses interessantes e importantes, de cunho
científico. Marx viveu praticamente a vida inteira naquela biblioteca de Londres
dando toda a sua vida para isso, e estudou profundamente a sociedade da sua
época. Como eu disse, ele pode ter errado em muitas coisas. Até a gente aceita
isso, que Marx errou nisto ou naquilo. Mas atacar uma dimensão moral, contra
um intelectual que é um dos primeiros no mundo, é um dos maiores
intelectuais, indiscutível isso… Alguém vai discutir uma coisa dessa?
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OLAVO DE CARVALHO: Eu vou discutir.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: É, sempre tem alguém. Eu acho tudo muito gratuito
isto, colocar essas questões que foram colocadas aqui, muito gratuito. Não, não
é assim que vamos discutir. Eu, por exemplo, fiz toda uma série de colocações
singulares a respeito de como se estrutura o sistema, pelo menos aí
rapidamente, pelo menos no sentido de verticalização, mas eu fiz umas coisas
concretas, de mencionar portanto discussões conceituais. Quando se penetrou
no terreno conceitual, se diz que Marx não sabe nem do quê está falando sobre a
matéria, mas Marx nunca se preocupou especificamente com a matéria no
sentido físico. E quando ele [Marx] fala em matéria, a matéria corresponde a um
esforço da transformação do homem como um fato importantíssimo, que não
foi nem colocado aqui. E ele [Olavo] diz que estudou, temos que fazer uma
análise disso. Que é “o” debate. Debate da forma pela qual os homens agem
sobre o mundo, transformando o mundo. Dizer que Marx queria transformar o
universo não tem sentido. Não é disso que ele estava falando. Ele nem pensava
nisso…
OLAVO DE CARVALHO: Nem eu disse isso.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: …ele nem disse isso. Nem foi dito isso, nunca. “A
transformação do universo, do cosmos.” A transformação que o Marx propunha
era a transformação do homem, do homem na sua pequena Terra mesmo, no
seu planetinha, direitinho. Mas é o homem, ele estava estudando o homem! Ele
não estava estudando um marciano nem nada disso. É o homem e, portanto, os
homens, claro, têm uma dimensão concreta que é a ação humana, que ele
imagina não poder explicar as questões especulativamente. Era isto o que ele
queria dizer só. Que a especulação filosófica, puramente teórica, não é suficiente
para caracterizar o que o homem é. Marx postulava algo um pouco na
contraposição, na contramão dos racionalistas, especialmente um Descartes,
que dizia que o homem é um ser pensante. A postulação do homem, inclusive,
como ser pensante, o distinguia dos outros animais, é assim que se pensava em
forma clássica. E Marx não acreditou simplesmente nessa posição, ele avançou.
Ele não está excluindo a vida teórica, ele foi um teórico. Ele se trancou. Ele quis
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incluir a vida emocional dele, a vida da praxis, da ação, da decisão, dos valores.
Isso aí ele quis incluir. E é claro que o movimento dapraxis envolve exatamente
o movimento do homem como um todo, não apenas como inteligência, como
um ser especulativo, como lógica. Ele via o homem como um movimento do seu
corpo, dos seus pés, das suas mãos. E uma relação social, nunca se viu o homem
tornar-se solitário. Ele não pensava na matéria no sentido, por exemplo, dos
gregos, buscar a arkhe, o fundamento de todas as coisas, como se fazia desde
Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Anaxágoras, e esses pensadores
todos que passaram, os pré-socráticos. Na verdade, ele trabalhou muito com
esses filósofos interessantes, que aliás foram trabalhados também por Engels,
que é Parmênides e Heráclito, com as suas posições. Pena que não dá tempo de
desenvolver toda a temática desses pensadores muito maravilhosos, que foram
trazidos para nós, que foram recuperados.
Quando Marx faz essa postura, de não ser um homem teórico, é porque está
vivendo justamente num período que se chama “Revolução Industrial”. O
homem pobre não pode ser simplesmente teórico, ele tem que entrar em
contato com o mundo, transformar o mundo, ele tem de mudar a matéria-
prima, ele tem de buscar matérias-primas, ele tem de transformar o mundo com
as suas mãos, com a sua indústria. Daí porque ele teve de começar a pensar
especificamente, não de forma puramente teórica, ou de forma especulativa.
Esta dialética é diferente. Quando ele busca a materialidade, não é essa
materialidade portanto abstrata. É muito concreto, porque ela é calcada no
trabalho humano. Para ele, o trabalho é fundamentalmente aquele núcleo que
perpassa o próprio homem. O homem é produto do seu trabalho na história e
socialmente. Não há homem sem trabalho, sem ação com o mundo. Trabalho é a
administração do homem sobre o mundo, transformando esse mundo, porque
nisso ele transforma-se a si mesmo. É isso que ele quis dizer: matéria
transformada permanentemente pela sua própria ação. Não é matéria bruta,
como eu contava para ele [Olavo]. Ele nem tinha essa idéia da física nem da
química. Não contava para Marx isso. O importante para ele era a dimensão
fundamentalmente social, isso é que era importante para ele.
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Essa questão da burocracia, é claro, todo sistema social hoje, tem de ter uma
burocracia. Por isso mesmo que se propugna por uma dimensão outra, que é
aquela que o Olavo disse a respeito do poder maior do que aqueles poderes. Um
poder que oprime o outro, que pressupõe o outro, que é bem maior. Sabe qual é
o poder maior? É a comunidade! É a sociedade democraticamente organizada,
articulada de forma tal que se permita coibir (agora sim, a palavra mais correta)
a ação sozinha e solitária do mercado. Não pensem os senhores que vamos aqui
imaginar que o mercado que age diariamente, com bilhões e bilhões de dólares
se movimentando pelo alto, pelo labor da globalização, nós vamos conseguir
neutralizar isso. Simplesmente com o quê? Com a vontade singular de cada um?
Ou com recursos que nós não temos? A única forma de coibir é exatamente
através de uma democracia participativa! Não é através da democracia
representativa, que de quatro em quatro anos vocês vão correndinho num
domingo determinado de manhã cedo e depositam um voto ali, para eleger os
políticos que, em última instância, vão ser cooptados pelo sistema. Não é isso. É
a democracia participativa formada por divisão de comissões, de conselhos, de
articulação de comunidades. Não é fácil de fazer isso! É lógico que é uma coisa
difícil. É ela que vai, de certo modo, se opor às dimensões do mercado, que está
sob a decisão de quantos? Eu pergunto aos senhores: quantos? Poucos! Os
donos do mundo! Eles decidem o que querem! Onde pôr o capital, investir, tirar,
pôr… Eles fazem. Esses movimentos de capitais procuram as comunidades onde
a mão-de-obra é mais barata. Dizer… Essas postulações de que se o Estado
interfere o sistema fica pior, ele está propugnando fundamentalmente que
largue tudo ao mercado, que façam tudo de acordo com as forças do mercado,
que tudo vai bem. Como, se cada pessoa tem o seu poder no mercado em função
do quê? Em função da sua entrada, da sua renda. E quantos têm renda? Eu não
estou colocando a questão daqueles que não têm trabalho, porque esses não têm
mesmo nada. São aqueles que ainda têm trabalho e que ganham metade de um
salário mínimo, milhões de pessoas aqui. Como é que essas pessoas vão definir
situações, vão decidir sobre questões do mercado? E essas pessoas vão fazer o
quê? Vão ganhar mais? Então vocês estão percebendo que eu acho que essas
questões de colocar Marx como espertalhão, como… não é bom. Não fica bem.
Não fica bem. Vamos trabalhar mais com os outros filósofos, com outros
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pensadores que seguiram, inclusive que houve outras mudanças, outras formas
inclusive de considerar Marx, a questão até dessa violência, nunca Marx falou de
materialismo histórico, nunca! Me conta onde Marx diz materialismo histórico!
O primeiro a aplicar isso foi Paul Lafargue. Foi outra pessoa! Marx nunca falou
em materialismo histórico.
OLAVO DE CARVALHO: Falou em “materialismo dialético”.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: E mesmo sendo “dialético”, Marx nunca estabeleceu
essas formas, esses jargões (que eu concordo, são jargões), que no fim acabam
distorcendo até o pensamento, embora dê a entender Marx nos seus conceitos.
Ler O Capital, ler… Tem várias obras dele maravilhosas e interessantes, já que
ele [Olavo] está fazendo tanto denegrir, tanto. Eu diria para vocês que há obras
notáveis. Obras notáveis que exprimem conceitos riquíssimos. Podem não ser
todos suficientes para explicar tudo no mundo, é claro que não é isto. Mas que
nos ajuda a compreender o homem, como outros mais, não só Marx. Pensem
num Weber, por exemplo, um Durkheim. Tem de estudar esses pensadores para
mostrar plenamente que tudo se compõe, esse sim, o espírito humano, mas
como a base fundamental da estrutura de ação humana constante e
permanente, que é o trabalho, que nós devemos cultivar permanentemente.
Estou contra essa idéia de “Marx charlatão”. Acho muito baixo para isso. E o
prof. Olavo não precisa se socorrer desse tipo de coisa. Não precisa. Ele é
suficientemente filósofo, eu sei, eu conheço o trabalho dele. Dá para dizer uma
coisa mais profunda, mais tranqüila, mais científica. É isso.
OLAVO DE CARVALHO: Em primeiríssimo lugar, é preciso lembrar aos
senhores que o conceito de fraude intelectual não é um insulto, é um conceito,
inclusive jurídico, perfeitamente delimitado, e que eu tenho todas as provas de
que Marx se enquadra nisto, pela falsificação de fontes, pela má interpretação
proposital de autores que ele conhecia perfeitamente bem, e assim por diante.
Em segundo lugar, eu não vejo por que eu deveria me abster de usar a palavra
correta para designar o procedimento dele, quando na verdade eu li Marx
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durante muito tempo e conheço bem o estilo de Marx. Marx se referia a pessoas
contra as quais ele não tinha tantas acusações assim chamando-as de cães
sarnentos, vendedores de drogas, proxenetas, canalhas. Assim, este é o estilo de
Karl Marx. Eu não estou usando nada disso, eu estou usando um conceito
perfeitamente delimitado de ordem jurídica, dizendo que isto é fraude
intelectual. Outra coisa: eu não posso confundir a tranqüilidade com a
cientificidade. Estar nervoso ou estar calmo não tem nada a ver com esta
história. Não vamos confundir calma e tranqüilidade com honestidade. Só
interessa uma coisa aqui: tem de ser honesto. Ou seja, não fingir que sabe o que
não sabe nem que não sabe o que sabe: isto é a definição de honestidade
intelectual.
Os indícios, as provas da fraude intelectual de Marx são vastíssimas, e é uma
literatura enorme. Infelizmente essa literatura, no Brasil, é desconhecida,
porque o ensino universitário aqui é nesta base: existe a redoma. Prova de que
existe a redoma é que o prof. Alaôr ficou escandalizado quando eu sugeri que
havia um outro conceito de nazismo que não fosse aquele expresso por
Dimitrov, o que significa que ele não conhece, ele nem imagina que existe: ele
também está dentro da redoma. As principais obras sobre o nazismo rebatem
essa concepção marxista no todo: as obras de Norman Cohn, Eric Voegelin, Leo
Strauss, há uma bibliografia imensa sobre o nazismo. Se existe uma coisa que é
bem conhecida hoje, é o nazismo. Sabemos que ele não foi de maneira alguma a
ditadura do grande capital, sob aspecto nenhum, e muito menos ainda foi um
regime capitalista: foi um dos regimes mais socialistas e mais intervencionistas
que houve na história do mundo. E quando eles se chamaram de partido
nacional-socialista, não foi à toa, não foi só para parecer. A semelhança
estrutural entre nazismo e comunismo permite dizer que, de fato, a única
diferença é entre socialismo internacional e socialismo nacional. É somente isso,
e é por isso mesmo que não pode haver uma “Internacional Nazista”, porque só
quem se identifica com a cultura nacional é que pode participar daquela
porcaria. Então, existe outro conceito sobre o nazismo sim. Não é para ficar
escandalizado, mas o próprio escândalo do prof. Alaôr mostra como essas idéias
e essas informações estão distantes do meio universitário hoje. Porque o prof.
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Alaôr não é um homem inculto; ao contrário, é um homem bem informado. Só
que é o seguinte: alimenta-se dessa cultura, e tudo o que recebe de fora já come
no formato apropriado a esta cultura. Pode-se passar uma vida assim, e eu digo:
eu levei vinte anos para sair disto.
Uma outra coisa que foi dita na outra intervenção é a respeito dos 400 bilhões
de dólares do orçamento militar americano: “Se dessem 400 bilhões de dólares
para o Brasil ou para a África, nós sairíamos do buraco.” Eu lembraria a vocês
um outro dado: só no ano de 2000 (é a informação mais recente que eu tenho,
não tenho outra mais atualizada), os cidadãos americanos – cidadãos e
empresas, sem contar o governo – fizeram um total de 200 bilhões de dólares de
contribuições para entidades de caridade, principalmente do Terceiro Mundo.
Some com o governo, e veja quanto saiu. Ora, o que acontece com esse dinheiro?
É dado diretamente aos necessitados? Não, é dado a uma estrutura burocrática
da democracia participativa: é a comissão, é o conselho, é não-sei-o-quê etc. E
tudo isso tem despesa: tem de pagar telefone, tem de pagar aluguel, tem de
pagar empregados etc. Vocês sabem como os americanos definem FMI? FMI é
uma entidade que se dedica a tirar dinheiro das pessoas pobres nos países ricos
para dar às pessoas ricas nos países pobres. Essa definição é muito precisa. De
vez em quando nós vemos a nossa esquerda irritada com o FMI (“Ah, porque o
FMI…” etc.) como se o FMI fosse um propugnador da economia liberal e não
um dos maiores controladores da economia que existe no mundo: é o órgão
controlador por excelência fundado por Lord Keynes, que além de ser um
estatista feroz era um colaborador da espionagem soviética. Ora, isto quer dizer
que ficam brabos de vez em quando com o FMI, usando-o como símbolo do
capitalismo. Mas, quando o FMI estrangulou economicamente o governo
Somoza para dar o poder aos sandinistas, ninguém ficou brabo. Ou seja, o FMI
não tem essa identidade ideológica que lhe estão dando, ele tem uma outra.
Quer saber qual é a outra? Eu lhe digo: se o senhor fala das grandes fortunas,
veja as duas grandes fortunas, Rockefeller e Ford.
Vocês sabem que se não fossem Rockefeller e Ford não existiria a esquerda
nacional. Elas subsidiam partidos, ONGs, o Fórum Social Mundial etc, e
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ninguém pára para pensar que talvez a equação socioeconômica do mundo seja
um pouco mais complicada, um pouco mais sutil do que o esqueminha marxista
admite que você veja. Na verdade, se você pensar: mas por que é que esses
grandes capitalistas contribuem para o movimento revolucionário? É por um
motivo muito simples. O sujeito enriquece dentro da economia liberal e
acumula tanto dinheiro, mas tanto dinheiro, que dali a pouco ele entra na
seguinte consideração: “Não podemos permitir que essa fortuna, que custou
tanto esforço, esteja à mercê das forças irracionais do mercado. É preciso
preservá-la.” Então, ele deixa de raciocinar capitalisticamente e passa a entrar
em considerações dinásticas. Ele tem de assegurar a continuidade daquela
fortuna: o mercado não pode fazer isso, somente o Estado pode. Por isso é que
se você pegar as duzentas maiores fortunas de Wall Street, elas jamais apoiaram
uma política liberal. Entre dois candidatos nos EUA, eles apóiam sempre o mais
intervencionista e estatista. Isto é regular. Por que é que eles podem fazer isso?
Porque eles sabem, pelo menos desde a década de 20, que o estatismo total
jamais acontecerá. Então, eles estão seguros: por mais estatismo que venha,
haverá uma margem de liberdade econômica para quem tenha o poder de
assegurá-la. Eles sabem que o estatismo total não funciona, porque isto lhes foi
demonstrado. Eles aprenderam – e nós, parece que até hoje não – com o
economista Ludwig von Mises na década de 20. Ludwig von Mises disse o
seguinte: se você implanta o socialismo, você elimina o mercado; se elimina o
mercado, as coisas não têm preço; se não têm preço, não dá para fazer cálculo
de preço; se não dá para fazer cálculo de preço, não dá para fazer economia
planejada; portanto, não existe socialismo. Por isto mesmo, tanto os
metacapitalistas quanto os dirigentes socialistas se prepararam para isto. Na
União Soviética, por exemplo, sempre se reservou uma quota de 30 a 40% para
a economia capitalista clandestina. E é por isso que se explica o surgimento dos
grandes milionários russos. Que, se era tudo do Estado, de onde apareceu tanto
milionário do dia para a noite? Já eram milionários. Sempre existiu capitalismo
na Rússia, como sempre existiu na China. Ou seja, a estatização total nunca
acontecerá. Os líderes comunistas sabem disso, e os grandes banqueiros sabem
disso. Por isto, os grandes banqueiros, as grandes fortunas, só têm um inimigo:
chama-se economia liberal. Porque ela dissolve as grandes fortunas na
60
concorrência do mercado e eles precisam do Estado para garantir o seu poder
monopolístico; por isto fomentam movimentos socialistas e estatistas em todo o
Terceiro Mundo. E nós, idiotas, caímos nessa acreditando que estamos lutando
contra o poder do capitalismo quando o estamos servindo. Muito obrigado.
MEDIADOR: Passamos agora às perguntas.
P: Eu vou fazer duas perguntas ao prof. Olavo. A primeira, talvez eu tenha
compreendido mal – na verdade são três perguntas –, o senhor chegou a dizer
que os censores das novelas da Globo tinham uma ideologia marxista…
OLAVO DE CARVALHO: Certamente.
P: Eu só queria confirmar isso. Isso não me parece evidente, então eu gostaria
de um pouco mais de explicação. Com relação à sua concepção do marxismo
como cultura, no sentido antropológico de termo, eu também não consigo
enxergar claramente todas as dimensões disso, porque a cultura no sentido
antropológico implica instituições, e aí eu gostaria de enxergar mais claramente
quais são as instituições marxistas que nós temos no Brasil, no Paraguai, em
qualquer outro desses países. E a última pergunta é que o senhor faz uma
aproximação, inclusive mostrando gráficos, entre o Estado intervencionista e
centralizado e o marxismo… [troca de fita]
OLAVO DE CARVALHO: Bom, são três perguntas. Em primeiro lugar,
estude simplesmente as biografias de Dias Gomes e de Janete Clair, que sempre
foram militantes do Partido Comunista; em seguida, você vai precisar de
informações de um pouco mais de dentro e conhecer os scripts de novela que
são propostos, que você vai averiguar gradativamente a introdução de
elementos de propaganda claramente esquerdista, se bem que light,
evidentemente. Porque você vai usar o meio de propaganda conforme a
natureza e o público que você vai atingir. Em segundo lugar, quanto à questão
da cultura marxista, a resposta é simples: leia Gramsci. E não é verdade que
cultura implique instituições. Cultura, no sentido antropológico, é um termo
que abrange desde culturas indígenas primitivas até às [culturas] modernas. Eu
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usei “cultura” e não “sociedade” exatamente por este motivo. As instituições dos
países socialistas se incluem nisto; fora dos países socialistas você pode ter um
domínio sobre uma parte das instituições, mas isto não é absolutamente
essencial para o processo que eu estou descrevendo. E, quanto à terceira
pergunta, é verdade que naquele momento Marx advogava o livre câmbio
porque as políticas protecionistas eram políticas herdadas de um concepção
mercantilista antiga, e naquele momento Marx achava que era mais importante
liberar a força do capital, para que crescesse e para que, no entender dele,
chegasse a criar a contradição que resultaria no socialismo. Porém, a verdade é
que, no século XX, sempre os partidos comunistas e de esquerda favoreceram as
políticas protecionistas, como no Brasil. Aliás, uma das vantagens da esquerda é
ser internacional. Por quê? Porque ela explora as contradições entre países.
Então, por exemplo, nos EUA, a esquerda sempre apóia políticas protecionistas;
e no Terceiro Mundo reclama contra as políticas protecionistas americanas que
ela mesma criou.
P: É o seguinte: eu estava ouvindo aí esses temas – a revolução, os políticos, o
jurídico, qualidade de vida dos brasileiros, milhões de miseráveis, como resolver
isso, distribuir renda – e isso me fez lembrar que três anos atrás
aproximadamente eu lia o Joelmir Beting, que escreveu um artigo em que ele
defendia, em vez da apropriação dos meios de produção, a tributação da
produção e da renda. Deu como exemplo países como Suécia, Noruega,
Dinamarca e Finlândia. Talvez eu não esteja sendo preciso por uma questão de
memória fraca, mas eram basicamente esses países da Escandinávia. Eu
pesquisei e descobri que exatamente esses países citados pelo Joelmir Beting
são países com cargas tributárias extremamente elevadas (30%, 40%, 45%, 50%
e mais). E, por coincidência, esses países também são os países com melhor
índice de desenvolvimento humano, ou seja, melhor qualidade de vida. Então,
será que nos regimes capitalistas vigoraria o que Joelmir Beting chamou de
“socialismo fiscal”?
OLAVO DE CARVALHO: De maneira alguma. Na escala de liberdade
econômica a Dinamarca está em 12 o lugar. Imposto elevado não basta para
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caracterizar um controle estatista. É necessário haver legislações restritivas etc.
No conjunto, a economia dinamarquesa é extremamente livre, está bem mais
próxima do liberalismo do que qualquer outra coisa, e assim também os outros
países. Se me escreverem para o meu e-mail, eu passo essa escala para quem
quiser.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, a tributação vem do corte financeiro em cima
da sociedade civil. A sociedade civil tem a produção. O Estado precisa viver de
um recurso, quer dizer, o recurso é extraído da produção. E conseqüentemente a
produção, como não é neutra, ela envolve capital, o capital muitas vezes resiste à
tributação. Vocês vêem que ele resiste à tributação tendo em vista o fato de que
isso atrapalha a acumulação dele. Então, ele não quer evitar, ele não quer ter
limitações de sua acumulação. A tendência, portanto, é haver uma crise interna,
pelo processo capitalista, quando há essa quantidade muito grande, muito
acentuada dos tributos. Portanto, mais uma vez existe o problema dos conflitos
e das contradições internas da sociedade em torno disso. Quando não acontece
isso, o sistema cria o “caixa 2”. Vocês já ouviram falar no “caixa 2”: não paga
exatamente para ficar com uma parte e conseguir fazer, com isto, a acumulação.
Há portanto uma dinâmica econômica no processo, muito importante: não é
simplesmente tirar da sociedade.
P: Eu gostaria de saber dos dois professores como é que eles definem o atual
momento político e ideológico do país, e se os dois têm esperança no Brasil, e no
quê eles teriam esperança?
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, o atual sistema, o atual momento político é um
momento à esquerda. Sabemos que é isso. Pelo menos como ideário, o sistema
que prevalece hoje é o Partido, é o PT. Só que é evidente que o PT não pode
tomar posições senão pragmáticas, em função da situação. Porque aquilo até
que se esperava – que o PT tomasse uma posição mais radical em termos
econômicos –, não o fez, aceitando de certo modo as diretrizes de definição
econômica e social, tendo em vista os problemas que eles estão enfrentando.
Vocês vêem até que eles estão conservadores no processo, inclusive de abertura
econômica. Isso significa, é claro, que não é a perda do ideal mais socializante,
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ou então mais equalizador, do sistema social. Isso é importante. Não é esta
perda. São as impossibilidades que o próprio sistema impõe. E essa
impossibilidade não é fácil. Por ter uma atuação pragmática que tem de fazer,
porque tem de governar o país, e não perdê-lo mas governá-lo, então ele tem de
tomar certas posições pragmáticas nesse sentido. É claro que isso implica uma
série de questões e problemas que nós temos de enfrentar como um todo, o país
como um todo. E o próprio governo neste caso tem problemas muito graves e
gargalos seríssimos. Não porque ele não tenha essa dimensão social, mas
porque ele enfrenta dificuldades e medidas que eles não têm suficiente controle
e condições de fazer.
OLAVO DE CARVALHO: Muito bem. O presente governo tem duas
prioridades e nenhuma delas tem nada a ver com o chamado “social”. A
primeira é manter o equilíbrio orçamentário, controlar a inflação e, em suma,
atender às exigências do FMI de, como eles chamam, sanidade financeira.
Notem bem que essas exigências não têm o teor ideológico que as pessoas lhes
atribuem. Esse mesmo conjunto de exigências pode ser usado para esmagar
governos de direita ou de esquerda – acabei de lhes dar o exemplo de Somoza.
Então, dependendo de quem controla o instrumento, ele aperta aqui ou aperta
acolá. Esta é a primeira prioridade. Para quê? Para o governo ter tempo de
desenvolver a segunda parte, que é a integração dos movimentos políticos
latino-americanos – movimentos revolucionários – e a identificação de Partido
com o Estado. São essas duas coisas. Essas duas coisas dão um trabalho
miserável.
Eu acho que o governo está fazendo isso da melhor maneira possível. Eu acho
tudo isso de uma extrema habilidade. Mais ainda: esta é a política que Lenin
seguiria. Três meses antes de o Lula ser eleito, eu escrevi um artigo chamado “O
que Lenin faria”, se ele tivesse o poder na mão. Faria exatamente isto: acalmar o
investidor estrangeiro (através do equilíbrio fiscal etc.) e montar um sistema de
controle político (através da expansão indefinida do Partido, da identificação
entre Partido e Estado etc.).
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Ter esperança ou não ter esperança é uma coisa que, com relação à política, eu
sou incapaz de ter. Eu nunca coloquei nenhuma esperança em política alguma;
nem chego a entender o que as pessoas querem dizer com isso. Eu estou me
limitando a estudar a situação e tentar entendê-la da melhor maneira que eu
possa. Não tenho nenhuma fórmula para salvar o Brasil, mas se fosse para fazer
uma coisa boa, eu faria algo que o governo Lula anunciou no começo que ia
fazer. O governo viu que o grande número de propriedades imobiliárias
irregulares no país (quase 80%) impede a formação de capital para os pobres.
Ou seja, os pobres têm o capital na mão, mas é capital morto, não tem liquidez.
E ele fez o plano de distribuir títulos de propriedade imediatamente. Mas falou
isso durante uma semana e depois broxou completamente. Isto era a coisa boa
para se fazer: não tem nada a ver nem com agradar o FMI nem com fazer a
revolução latino-americana. Isto eu teria feito se estivesse no lugar deles.
P: Eu gostaria de fazer uma pergunta para o prof. Alaôr, e se o sr. Olavo quiser
comentar também… Bom, o professor falou que acredita numa democracia
participativa, e entende isso como a participação de cada indivíduo de uma
sociedade brasileira diretamente nas decisões governamentais. Eu pergunto:
como isso é possível hoje no Brasil, sem que haja uma dominação dos meios
públicos? Por exemplo, aqui na faculdade tem o orçamento participativo: os
alunos vão, orçamento participativo, pá-pá-pá, chega aqui, assembleísmo, pá, a
maioria dos alunos acaba não decidindo porque “não tem tempo, não pôde ver,
não pôde ir para a aula”. Enfim, como é que isso vai acontecer com o resto do
povo brasileiro, com o pescador, um sujeito que não entende muito bem de
política (com todo o direito), como é que… Enfim, não sei se o senhor entendeu
a minha pergunta. Eu não acredito no orçamento participativo. Como é que o
senhor acredita?
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não. Acontece o seguinte: a democracia participativa
impõe todo um processo muito amplo de mobilização social e de organização
social. Se não houver a mobilização e a organização social não haverá nunca a
democracia participativa. Ela é agora uma coisa nova. Na verdade, ela é uma
proposta de quê? De dez anos, no máximo. Não tem ainda a organicidade que
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deve ter, e, muitas vezes, a participativa é cooptada. Esse é que é o problema
complicado. O próprio sistema não quer saber da democracia participativa
efetivamente, mas existem indicações. Por exemplo, eu vou dar uma idéia para
vocês entenderem isso. O sistema de conselhos no Brasil é difícil, não é? Ele fica
praticamente neutralizado e acaba não surtindo os efeitos que deve surtir. O
sistema de conselhos seria interessante, não o conselho de rua (geralmente há o
conselho de rua). A chamada democracia representativa é a democracia da rua:
todas as pessoas vão à rua, os políticos vão à rua, propõem as suas colocações,
fazem as suas exposições, e tentam amealhar, tentam cooptar as pessoas, ou
seja, persuadir as pessoas. Eu acho que essa democracia não é suficiente. Por
exemplo, a democracia que envolve a possibilidade de participação de todas as
comunidades, inclusive as comunidades escolares, fabris, os clubes, as igrejas,
as vizinhanças, mas isso ainda tem muito a caminhar. Nós precisamos trabalhar
muito e estudar muito esse aspecto e tentar estabelecer relações internas dessas
unidades todas e externas, ou seja, inter-relacionais. Não é fácil. Não é fácil. Nós
temos a democracia representativa, que domina completamente. E muitas vezes
eu tenho perguntado aos vereadores, aos deputados etc., se querem a
participação. Eles não querem, eles acham que isso diminui, elimina os seus
poderes respectivos. Portanto, eles fazem uma proposta sempre constante de
democracia representativa, evitando o mais possível o domínio da democracia
participativa. É complicado, demanda consciência, demanda, digamos, uma
dimensão muito mais criativa e consciente, politicamente, por parte das
organizações. Aqui por exemplo, na faculdade tem muito pouco disso. Precisaria
ter muito mais disso, de um movimento político nesse sentido.
OLAVO DE CARVALHO: É preciso ver se nós estamos discutindo as palavras
pelo seu valor de dicionário e pela sua associação emocional ou pela
substancialidade das situações de fato que elas representam. Com relação ao
conceito genérico de participação, ninguém pode ser contra. Santo Tomás de
Aquino já dizia que qualquer sociedade política só pode estar segura da sua
sobrevivência se todos os seus membros participarem da política. Quer dizer,
isto é uma espécie de consenso universal. Ninguém discute isso há sete séculos.
O problema é o como. Ora, a estrutura partidária da representação que nós
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temos já é suficientemente complexa para que nenhum cidadão possa dizer que
a conhece. Agora, multiplique isso por uma infinidade de conselhos, comissões,
assembléias etc., e ademais pergunte: todas as pessoas que vão dirigir todas
essas coisas são militantes trabalhando gratuitamente? Ou seja, a concepção
atual da participação é tão complexa e tão custosa que eu a afastaria de cara
como simples psicose. A proposta de democracia participativa pode servir como
um instrumento propagandístico para desmoralizar o sistema representativo,
que já não está muito bem das pernas. Mas que vá substituí-lo é absolutamente
impossível.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bom, é óbvio que o “como” é complicado mesmo.
Mas ele demanda mesmo uma complicação em função de uma sociedade
altamente complexa. Não há dúvida. Não há dúvida. O que ocorre é que a
democracia representativa não assumiu, e não assume de forma nenhuma, as
dimensões necessárias para compor políticas públicas de forma a efetivamente
trazer à comunidade a satisficação necessária, tendo em vista exatamente esses
problemas que nós elencamos, como, por exemplo, o caso das diferenças
profundas entre as pessoas. Essa democracia que nós temos, a representativa,
ela tem um problema de representação das camadas sociais e das classes sociais
muito distorcido. Não há possibilidade de um aproveitamento claro nesse
sistema. Por outro lado, a questão de comissões etc. depende dos “bolsões”. Não
é comissão para toda coisa geral. Tem a comissão do meio ambiente, a comissão
da educação, disto ou daquilo, as comissões singulares, que vão atuando em
sistemas capilares. É claro que isso é complexo mesmo. É um assunto altamente
complexo, numa sociedade complexa como a nossa. O que nós não podemos é
ter uma posição, digamos, pessimista quanto a isso, porque depois não há
sistema nenhum, nenhuma engenharia social ou institucional que nos permita
realmente tomar conta da sociedade. Para largar a sociedade justamente para
quem? Para aqueles que são os donos do sistema, os hegemônicos do sistema,
os donos do capital.
OLAVO DE CARVALHO: Quando você fala dos “donos de capital”, eu queria
lembrar uma coisa a você. A chamada corrente liberal só tem uma instituição
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que a defende: chama-se Instituto Liberal. O Instituto Liberal de São Paulo
fechou por falta de verbas. Jamais faltam verbas para o Fórum Social Mundial,
para o PT, para o MST etc. Portanto, a distribuição do poder e do dinheiro não é
exatamente esta que geralmente se pensa: “Aqui estão os burgueses defendendo
os seus interesses e ali estão os partidos de esquerda heroicamente lutando em
favor dos pobrezinhos.” Simplesmente não é assim. Eu não vim aqui para
defender proposta nenhuma, o meu ponto de vista é a realidade, e a realidade
no momento é esta. Por exemplo, essa capilaridade se faz em grande parte
através de ONGs. Vocês sabem que nenhuma das ONGs que nascem no Brasil é
produto local? Vocês sabem que a ONU tem um curso de formação de
movimentos sociais no Terceiro Mundo que anualmente espalha vinte mil
profissionais disso para tudo quanto é lugar, subsidiados por outras ONGs
enormes financiadas por Rockefeller, George Soros, Morgan etc.? Vocês têm
idéia de que essa tal da democracia participativa é ela mesma uma obra de
engenharia social que está sendo implantada em toda a parte, e não está
surgindo de baixo? Estudem esse assunto. Estudem a estrutura atual da ONU.
Existe um livro do Pe. Michel Schooyans, que foi professor de filosofia no Brasil,
chamado La face cachée de l'ONU (“A Face Oculta da ONU”), que trata dessas
coisas. Então, notem bem que a estrutura do poder global é bem diferente do
que uma análise marxista permitiria imaginar. A estrutura do poder não
corresponde a isto. Muita coisa que parece movimento social vem diretamente
do grande capital.
P: Eu acho as posições dos dois muito radicais, né. Então, eu queria saber a
opinião de “um”, que coloca que aparentemente não há solução, e a do
professor, que o sistema capitalista não seria a solução. Eu queria saber se
dentro do próprio sistema capitalista vocês não acham completamente inviável
uma coisa que o pessoal abomina: o hobbesianismo, o princípio do interesse
próprio. Na verdade o interesse próprio de cada indivíduo capitalista, digamos,
não pode encaminhar em direção ao interesse social, sem pensar num idealismo
romântico, sem apelar para o bom senso ou para a caridade, mas que o próprio
capital para se manter ele vai criar, e cria – como tem criado – a função social
das empresas, a ação voluntária das pessoas, para desenvolver os próprios
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mercados que ele quer explorar e não, ao contrário, destruir mercados dos quais
ele precisa.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não, não se trata disso, do fato de que o capital não
faça o possível para ficar com uma fachada boa e muito interessante. E não se
trata do fato de que o capital não faça também alguma coisa de cunho social. Eu
não coloquei essa questão, eu coloquei uma questão de estrutura interna. De
qualquer forma, todas as empresas vão buscar o quê? Elas querem mercado,
querem tentar colocar os seus produtos. O que eu disse aos senhores é que com
a inclusão da sofistificação grande da técnica e da ciência, o sistema se coloca a
si mesmo em xeque. Há uma contradição interna no sistema (que não foi
comentada aqui), e eu falei com toda a clareza: o sistema, por receber toda a
dimensão muito sofisticada da produção… Não porque o capitalista queira, ele
não quer isso mesmo. Qual é o dono do capital que vai querer isto? Vai querer
nada. Mas ele é obrigado a fazer em termos da sua competição mundial, ele
precisa fazer isso. Mas ao fazer isso, ele libera necessariamente a mão-de-obra
porque faz parte dos custos. Ele tem de tirar isso da frente. Os custos mais
facilmente tiráveis, ou seja, que são possíveis de ser eliminados, são os custos
relacionados com a mão-de-obra. A matéria-prima ele tem de aplicar, as
máquinas ele tem de fabricar e tem que utilizá-las, não tem jeito. E as máquinas
e a matéria-prima vão todas para o produto. A única coisa que ele pode eliminar
é a mão-de-obra. Mas na hora em que ele elimina a mão-de-obra (não é porque
ele queira, ele vai ter de fazer isso), mesmo fazendo ajustes sociais, fazendo tudo
o que você imaginou, a beleza da coisa, se ele está metido em algum processo de
acumulação, ele vai precisar necessariamente continuar o processo de expansão
da economia, porque a lei do capital é esta mesma: é de permanente ampliação e
acumulação. Ele entra num processo de crise e de conflito, que tem um limite, é
claro. O capital tem limite, gente. Ele é um processo social, histórico. E como ele
tem um começo, um dia vai ter um fim. Um dia vai ter, mas eu não sei nem
quando. Qual é a idéia que se vai ter disso? Ele é um processo social. Ou o
capitalismo é eterno? De repente apareceu o final da História: é o “Fim da
História”? Quebrou aqui e aqui, e não tem mais? Não é isso. Nós estamos
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mostrando as contradições que levam o sistema a outra situação, mesmo um
sistema que seja em geral “bonzinho”.
OLAVO DE CARVALHO: Bem, evidentemente o capitalismo pode acabar. Se
o socialismo acabou, por que é que o capitalismo não pode acabar? Ademais, o
capitalismo não tem de ser defendido como ideal para resolver o que quer que
seja, porque, em primeiro lugar, o capitalismo já existe. E quando eu o defendo
– e mesmo assim com limitações, que eu não sou nenhum entusiasta do
capitalismo – é apenas como algo que está funcionando, que funciona bem onde
lhe permitem funcionar. Destruí-lo em função de hipóteses como “democracia
participativa” é suicídio. Até o momento se falou em contradições: é claro que
tem contradições, toda sociedade tem contradições. Mas nunca o capitalismo
chegou às tais contradições que Marx denominava “contradições antagônicas”,
que o destruiriam desde dentro. A isso não chegou até hoje; e o socialismo
chegou. O socialismo mostrou que é incapaz de passar de um certo ponto. Em
matéria de contradições antagônicas, o socialismo está ganhando.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Parece que não se percebeu claramente a lei do
materialismo histórico. É que a indução do socialismo no século passado foi
artificial. Não é que socialismo acabou, como você está dizendo. Ele nem
começou.
OLAVO DE CARVALHO: Ah!
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Nem começou.
OLAVO DE CARVALHO: Então me enganaram o tempo todo!
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Enganaram todo o tempo. Quer dizer, isso de ver
fantasmas socialistas de anos atrás por toda a parte [palavras inaudíveis], isso
realmente obscurece a pessoa.
OLAVO DE CARVALHO: [Risos.]
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ALAÔR CAFFÉ ALVES: É preciso ter clareza disso aí. O socialismo como tal,
como o próprio Marx disse, teria de fazer com que as forças produtivas
avançarem de tal maneira a chegar no limite das relações sociais de produção. O
fato é que até agora não se chegou aos limites do sistema. Está se percebendo
agora que está começando a entrar nesse processo.
OLAVO DE CARVALHO: Puxa, que maravilha…
ALAÔR CAFFÉ ALVES: A crise está começando a entrar agora. Agora é que
estão começando a se desenvolver os problemas de desemprego, do social etc.,
né? A crise mundial, onde as coisas são irracionais. Um sistema como esse
americano, que faz a coisa mais absurda e irracional, como atacar um país
inteiro sem motivo praticamente, a não ser um motivo pessoal, um motivo
articulado do próprio país, que é a busca de energia que ele precisa tanto para
desenvolver o seu sistema. Porque se ele não tem energia, minha gente, ele cai,
ele cai completamente. Ele precisa segurar a energia. É por isso que eles fizeram
isso. Não é o Bush que é mau, não. O Bush não é malvado (pode até ser, mas a
gente nunca sabe). Ele tem de fazer isso em razão da própria impulsão do
sistema. Pode estar certo, Olavo: o socialismo não começou, não. Ainda temos
muita coisa para ver. Muita água ainda vai correr embaixo da ponte.
Infelizmente, eu gostaria que as coisas fossem mais rápidas, mas não são. O que
aconteceu foi o desenvolvimento de um tipo de revolução artificial, que não
chegou justamente aos limites que o sistema vai ter. Porque os limites o sistema
vai ter. E está tendo já, está começando agora. Não sei quanto tempo, pode
durar duzentos anos, sei lá. No entanto, é isso mesmo. Estamos agora já com a
indicação histórica que alguma coisa agora está condenada pelo sistema
capitalista. É isso aí que eu estou dizendo. Agora, se vai ser socialismo… que tipo
de socialismo, que forma de socialismo. Isso nós não sabemos. É claro, isso não
sabemos.
OLAVO DE CARVALHO: Bom, vocês sabem quantos livros foram publicados
com o título de “A Crise Geral do Capitalismo”?
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Ih, muitos…
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OLAVO DE CARVALHO: Milhões e milhões. Todos faziam esse diagnóstico:
“Agora sacamos a crise, agora cai, e agora virá o socialismo.” E quando se diz
que muita água vai correr, não: muito sangue ainda vai correr. Matar cem
milhões não foi o bastante. Notem bem, uma ideologia que, com esses
mesmíssimos argumentos da estrutura de classe, da ideologia, do mercado etc.,
tomou o poder em um terço do globo terrestre, matando cem milhões de
pessoas e só conseguindo gerar miséria em proporções jamais vistas, como se
gerou na China – depois de tudo isso, é preciso ter muita cara-de-pau para
dizer: “Não, mas aquilo não era o verdadeiro socialismo. Nós vamos tentar outra
vez. Vocês me dêem mais um creditozinho de confiança, e desta vez nós vamos
acertar.” Ora, por que vamos dar esse crédito de confiança? Baseado em quê?
Na autoridade dos cem milhões que vocês mataram? Chega disto! O capitalismo
não é grande coisa, o capitalismo chega a ter aspectos até demoníacos. Porém,
esse tipo de malefício ele jamais fez: nunca chegou tão profundamente.
Portanto, não vamos destruir uma coisa razoável que temos, que pode ser
mudada e aperfeiçoada muito, para tentar apostar novamente no socialismo.
Mais ainda: porque não é possível uma teoria dizer ao mesmo tempo que as
idéias não existem separadamente da história, que as idéias só existem pela sua
encarnação material na história, e em seguida dizer que toda a história deles
durante um século não o compromete de maneira alguma, e que ele como ideal
permanece puro e intocável no céu das idéias platônicas. Isso é charlatanismo.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Palavras inaudíveis.] É evidente que isto não é uma
resposta. Em primeiro lugar, ninguém está aqui defendendo a União Soviética,
nem está pretendendo que era isto que eu estaria fazendo. Ele [Olavo] está com
fantasma na cabeça. Também isso nem precisa mais pensar, que isso já foi
mesmo, é coisa da História. Então é um fantasma pensar que o que se propugna
é aquilo que estava lá. Não é nada disso. Soube-se que houve erros profundos,
sérios, seríssimos. Exatamente porque se propôs impor um sistema fora da
hora, fora da História, da dimensão histórica. Porque não se viu realmente a
dimensão histórica. Então, é isso que se está colocando aqui. Não é a defesa de
coisa nenhuma, de três milhões, de cinco milhões, de trinta milhões que foram
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perdidos em relação a isto; mesmo porque outros sistemas [palavras
inaudíveis], ele [Olavo] não provou que o capitalismo não fez tantas mortes.
OLAVO DE CARVALHO: Não fez!
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Não?
OLAVO DE CARVALHO: Não fez! Não fez! De jeito nenhum!
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Tantas mortes e muitos problemas gravíssimos de
muitas guerras, desde que existem claramente, basicamente as guerras deste
mundo inteiro? Quem fez isto, senão todo o sistema burguês capitalista que fez
isto? É evidente que houve também essa ampliação burocrata em termos
objetivos por parte do socialismo. Então, neste caso, o certo é o seguinte, só para
terminar: não adianta entrar nesta questão. Eu quero que ele me explique como
é que ele vai resolver o problema das contradições dele (mas claro, tem de ser
relido com conceitos) decorrentes deste processo que está ocorrendo com o
desenvolvimento tecnológico das forças produtivas, expulsando a mão-de-obra,
expulsando a capacidade de poder consumir aquilo que o próprio capital
produziu. Eu quero que ele me explique, me explique!
OLAVO DE CARVALHO: Essas contradições são exatamente as mesmas que
Lenin diagnosticava em 1915, e em nome das quais se fez a revolução. Agora,
quanto ao morticínio, está aqui: O Livro Negro do Capitalismo. Quando saiu O
Livro Negro do Comunismo, feito por pessoas de esquerda, que provava
documentadamente que os comunistas haviam matado cem milhões de pessoas,
encomendou-se a um monte de intelectuais que produzissem, de qualquer
maneira, cem milhões de vítimas do capitalismo. Então, eles produziram este
livro: são trinta autores de alto prestígio no meio esquerdista. Então, para
chegar aos cem milhões, foi preciso atribuir ao capitalismo todas as vítimas da
Segunda Guerra Mundial (cinqüenta milhões, todas as vítimas de todos os
lados), todas as vítimas da Revolução Espanhola (de todos os lados), todas as
vítimas da Primeira Guerra Mundial… Isso é charlatanismo. Todo marxista é
um charlatão.
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P: Eu gostaria que os dois debatores comentassem algumas considerações
minhas e vou fazer uma pergunta específica para o prof. Olavo. Pelo tema do
debate, eu esperava que houvesse uma discussão a respeito das principais teses
desenvolvidas pelo Marx, mas infelizmente as discussões tomaram outro rumo,
e eu percebo que as teses propriamente de Marx foram tangenciadas. Como por
exemplo a crítica feita ao materialismo, se ele não é o poder de a matéria gerar
frutos, o que me parece uma concepção inclusive meio bíblica – o homem feito
do barro etc. Quando na realidade o fundamento do marxismo reside
justamente na interação do homem com a natureza, que é, segundo o próprio
Marx, o corpo inorgânico do homem, e a produção da ideologia se dá a partir
dos pressupostos da atividade espiritual humana. Então, nós estamos aqui
fazendo o quê? Nós estamos aqui debatendo, mas nós estamos aqui vestindo
roupas, nós estamos calçados, os debatedores estão tomando água, fumando
cigarro. E de onde vêm essas coisas? Tudo isso foi produzido, tudo isso foi
criado de alguma forma através de alguma espécie de intervenção humana. Isso
é a produção da ideologia, e não dizer que o trabalhador tem de pensar como
proletário e o capitalista tem de pensar como um crápula. E isso é ridículo. E a
maior prova ao contrário dessa fórmula é o Presidente Lula, que é um
trabalhador e que diz: “Eu nunca fui de esquerda.” Então, a questão é mais por
aí. Eu gostaria que os debatedores comentassem essa minha consideração.
Outra delas é que me pareceu ali muito claro o tempo todo que o socialismo foi
discutido em termos de planificação estatal, quando na realidade a teoria de
Marx é muito diferente disso. Não se trata de perfectibilizar o Estado ou de
aprimorar as camadas políticas, tampouco de controlar o mercado. A
perspectiva de Marx é radical. A perspectiva de Marx é a destruição do mercado,
a destruição do Estado, mas a destruição do mercado não para substitui-lo pela
planificação, mas para substitui-lo pela apropriação social. Esse é segundo
ponto que eu gostaria que fosse comentado. E aí, por fim, a pergunta para o
prof. Olavo. Eu fiquei muito feliz com a vinda do senhor aqui, pela oportunidade
de pedir um comentário sobre um artigo que eu li há cerca de um ano ou um
ano e meio no jornal O Globo, se não falha a memória, em que você afirma que o
então presidente Fernando Henrique Cardoso estaria mancomunado com o
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MST e preparando a transição do Brasil ao socialismo. Eu gostaria que o senhor
comentasse esse seu ponto de vista.
OLAVO DE CARVALHO: Vocês façam a conta de quanto saiu do governo
FHC para o MST. Sem isso, o MST simplesmente não existiria. É só isto: ele fez
o MST, ele é o criador do MST. Quais foram as intenções ideológicas, eu não sei,
evidentemente. Porém, houve uma série de artigos publicados por Alain
Touraine na Folha de São Paulo (Alain Touraine é uma pessoa que tem
influência grande sobre a cabeça de FHC), nos quais ele traçava o plano de uma
virada do Brasil à esquerda. Eu não sei se foi isto que FHC quis ou não – nem
me cabe conjeturar –, mas eu estou apenas cotejando dois fatos e vendo que é
possível haver uma ligação. Quanto saberemos se houve isso ou não? Daqui a
muito tempo, certamente. Mas que o governo FHC construiu o MST com verbas
do Estado, isso é um fato inegável.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Eu não tenho muito que comentar à formulação
dessas questões. Elas estão muito corretas para mim, né? Ou seja, o fato de que
a materialidade depende das relações de produção dos homens. Por exemplo, o
caso que foi colocado aqui: nós estamos aqui nessa mesa, tudo está sendo visto,
todos estamos vestidos, temos nossa alimentação já preparada, temos nossas
roupas; amanhã ainda teremos porque outras pessoas estão trabalhando para
nós também. Nós estamos trabalhando para eles, e eles para nós. Há uma
relação social envolvida necessariamente. Isto é uma dimensão social grave e
séria. Eu não posso estabilizar que os homens, apenas pelas suas idéias, é que
transformam as coisas ou fazem as coisas; fazem através do movimento prático
da praxis deles, dentro da estrutura social e econômica onde há a troca entre os
homens, fundamentalmente. Portanto, eu não muito o que dizer sobre esse
aspecto da matéria. Não é a matéria no sentido, como eu disse a vocês, abstrata,
mas é a matéria do ponto de vista das relações humanas concretas, o homem
agindo sobre o meio e transformando o meio. E quanto à apropriação social, que
foi uma das propostas, mostra claramente que a apropriação social é feita de
uma forma totalmente desequilibrada. Por isso, se houver essa questão que foi
colocada aqui pelo Olavo, pelo jornalista Olavo, foi colocada a respeito da
75
necessidade de estabelecer uma esquerda, de uma posição à esquerda. Se for
para a distribuição melhor da sociedade, uma distribuição das riquezas, que
vamos para a esquerda. Ué, se há uma miséria imensa, e nós vemos que as
estruturas tradicionais não resolvem a questão, não tem importância: vamos à
esquerda. Pois se ela tentar resolver e se resolve, melhor. E Agora, nós não
temos a certeza de tudo isso, é verdade. Mas dizer que o sistema é bom, é quase
que dizer… Primeiro ele diz: “Olha, eu não sou um arauto do sistema, de forma
nenhuma, mas vamos então admiti-lo como bom, que ele é a única coisa boa
que tem.” Mas nós temos também expectativas, utopias, nós temos também
meios de ver o mundo, nós temos também aspirações, nós temos nossa
imaginação, e nós precisamos realmente imaginar um mundo melhor e utópico.
Isso é otimismo. Não é um pessimismo que diz que tudo o que está à frente, se
for à esquerda, não presta. Quer dizer, aqui se defende exatamente posições de
direita dizendo não está se fazendo isso: “Não estou fazendo isso.” Está aqui
atacando a esquerda e dizendo: “Não é uma diferença de idéias.” É um ataque
com toda força à esquerda, às visões marxistas etc., que são razoáveis em muitas
questões. Como eu já disse, não é perfeito. Não é que seja a panacéia, e não será
mesmo. Nós temos de criar a nossa própria panacéia. Nós temos de criar o
nosso mundo, a nossa utopia. Não é Marx no século XIX. O importante é que
temos de utilizar isso. É pena que tudo isso que nós conversamos e
desenvolvemos nós pensamos em falar em “Marxismo, Direito e Sociedade”,
especialmente a questão do Direito. E eu vi que isto fugiu completamente.
Talvez eu tenha sido vítima da direita. A esquerda também é vítima, embora ele
diga que não, porque tudo aqui é da esquerda, todos são, até as novelas são de
esquerda, a Globo é de esquerda. É ver as coisas que não tem, que não existem
mais. Até esse fantasma do chamado comunismo, isso acabou. Nós temos de
agora buscar uma outra vida, uma outra forma, uma outra sociedade. É isso que
tem de fazer, e não ficar remoendo problemas do passado. Existe aqui até um
movimento muito sério, muito grave em São Paulo, chamado TFP (Tradição,
Família e Propriedade), que faz esse tipo de coisa, ficam agindo nas ruas como
se houvesse ainda esse fantasma, como se essa esquerda fosse o quê? Ela
simplesmente vai tentar desenvolver um sistema onde haja mais distribuição
social. Mas é só isso que se pretende fazer. O que se pretende fazer? Uma
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igualação, uma igualdade melhor entre os homens. É isso que se pretende fazer.
O que é que se pretende fazer? O que é que se pretende fazer senão melhor
igualdade, maior igualdade, para condicionar uma vida de paz social, e que as
pessoas tenham oportunidade de aprimorar sua personalidade, a sua vida…
Enfim, é isso que nós queremos. Não queremos mais nada do que isso. E não
ficamos aqui apresentando esses exemplos; esses exemplos históricos que são
mais do que conhecidos, sabemos que tem isso. Até ele [Olavo] chega a dizer
que esses exemplos são todos eles terríveis; do outro lado, o nazismo não teve
nenhum problema…
OLAVO DE CARVALHO: [Olavo protesta.]
ALAÔR CAFFÉ ALVES: “Nós não sabemos, não conhecemos nada.” E o
capitalismo é um sistema absolutamente muito bom. O que é que é isto? Todos
estão de acordo com esse tema que ele está, com essa distribuição terrível que
ele está, com essa miséria do Brasil? Daqui a pouco vai se falar que a miséria é
determinada pelos esquerdistas, pela esquerda…
OLAVO DE CARVALHO: E é, e é.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: …como está se fazendo colocando a questão de que o
FMI é de esquerda, os EUA é de esquerda, Rockefeller é de esquerda etc. Isso é
uma coisa maluca. É uma questão emocional muito grave…
OLAVO DE CARVALHO: Ora, o prof. Alaôr tem a pretensão de diagnosticar
os meus problemas emocionais. Dele, eu só diagnostico uma coisa: ignorância.
Primeiro, ignorância dos escritos de Marx. Ele diz que a matéria é função da
produção; Marx diz exatamente o contrário: Marx subscreve inteiramente as
concepções atomísticas de Demócrito e aceita a ciência newtoniana como a
tradução perfeita da realidade. Ademais, a idéia de uma dialética interna da
matéria está exposta nos escritos do próprio Engels e faz parte da tradição do
movimento comunista. Abolir tudo isso, dizendo que Marx só falou da produção
é absolutamente ridículo, é coisa de ignorante, para não dizer mentiroso. Não o
acuso de mentiroso mas o acuso de ignorante. Em segundo lugar, com um
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homem que chega para mim e diz por um lado que “ah, esse momento é da
esquerda, a esquerda está com tudo” e, por outro lado, diz que não existe
esquerda nenhuma, em algum ponto a coisa está falhando. Em terceiro lugar, o
conselho de “esqueçamos a História, nada disto aconteceu, vamos tentar de
novo, vamos confiar”, isso é uma palhaçada, isso é pueril. Não se pode aceitar
uma discussão nessa base.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Bem, eu evidentemente não estava esperando essa
agressividade. Essa foi demais.
OLAVO DE CARVALHO: Agressividade é a sua, que começa a falar em
problemas emocionais.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Veja bem, tem de respeitar. Chamar a gente de
ignorante, e pressupor que eu não conheça Marx…
OLAVO DE CARVALHO: Pressupor não: afirmo!
ALAÔR CAFFÉ ALVES: ...e ele diz também que quatro décadas foi do Partido
Comunista. Maluco isso! Nunca foi coisa nenhuma! Foi nada!
OLAVO DE CARVALHO: O quê? Está me acusando de mentiroso?
ALAÔR CAFFÉ ALVES: O senhor me acusou de mentiroso aqui.
OLAVO DE CARVALHO: Não, eu te acusei de ignorante.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: [Palavras inaudíveis.]
[Tumulto.]
OLAVO DE CARVALHO: Você é que está mentindo.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Você é que me xingou!
OLAVO DE CARVALHO: Você é mentiroso! Safado!
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ALAÔR CAFFÉ ALVES: Ele vem aí com coisa [palavras inaudíveis] anti-
socialista ou anti-marxista e vem dizer que já foi, sabe, e conhece tão
profundamente. Imagine que ele agora não é, porque ele analisou tão
profundamente isso e está dizendo…
OLAVO DE CARVALHO: Pois foi exatamente isso que você nunca fez.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Ora, pelo amor de Deus!
OLAVO DE CARVALHO: Você é um idiota.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Olha aí! Quer dizer, eu estou falando ao mesmo
tempo; agora, se você disser que eu sou idiota. Olhem, vocês me perdoem. Eu
sou da Faculdade. Eu não vou permitir uma coisa dessa! Isso é uma agressão
pessoal. Eu esperava…
OLAVO DE CARVALHO: Você me agrediu primeiro, falando de problemas
emocionais.
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Eu comecei muito bem, dei para vocês o mais
possível a minha idéia a respeito de um conceito sobre Direito, sobre a questão
que o Marx colocou; e a coisa foi num crescendo que eu não vou me admitir,
vocês me perdoem.
ALGUÉM DA PLATÉIA: Está fugindo?
ALAÔR CAFFÉ ALVES: Estou fugindo. Vou fugir. Estou fugindo para
respirar. Eu sei que vocês, grande parte de vocês, foram mobilizados. Houve
uma mobilização aqui, séria, grave, séria, e eu não vou me permitir, como
professor da casa, ser agredido dentro da minha casa, por uma pessoa como
esta. Vocês me perdoem.
* * *
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Nota de O. de C.: Ao final dos debates, há um tumulto geral, aplausos e vaias
misturam-se de maneira indiscernível. A maior parte das vaias condena a atitude de
desistência do prof. Alves, mas num canto da sala ouve-se distintamente o refrão
gritado por um grupo organizado de jovens de idade manifestamente inferior à da
média da platéia: “Alerta! Alerta! Alerta aos fascistas! A América Latina será toda
socialista.”. – O. de C.
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