oitenta e três questões diversas -...

25
1 Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017. Tradução em curso A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de Hipona, que começamos a publicar agora na página do CEPAME, vem sendo realizada pelo nosso Grupo de Estudos de Latim Medieval (GELM) desde 2015. O trabalho ainda está em andamento e nenhuma dessas traduções pretende ser definitiva. Ao contrário, as publicamos na esperança de receber comentários e sugestões. As traduções são fruto de reuniões coletivas e costumam passar por várias etapas de correção. O nome do tradutor de cada questão, quando houver, indica apenas o autor da versão inicial. Coordenação de Lorenzo Mammì. Oitenta e três questões diversas 1 Aurélio Agostinho Questão 1. Se a alma é por si mesma. [Traduzida por Rodrigo Sote] Todo verdadeiro é verdadeiro pela verdade; e toda alma é alma enquanto é verdadeira alma. Logo, toda alma recebe totalmente da verdade o ser alma. Ora, uma coisa é a alma e outra a verdade; pois a verdade nunca admite a falsidade, mas a alma frequentemente engana-se. Logo, como a alma é pela verdade, não é por si mesma. Ora, Deus é a verdade. Logo, a alma, para que seja, possui Deus como autor. Questão 2. O livre-arbítrio [Traduzida por Rodrigo Sote] Tudo o que é feito não pode ser equivalente àquilo que o fez, de outra forma, seria necessariamente retirada das coisas a justiça, a qual deve atribuir a cada um o que é seu. Portanto, quando Deus fez o homem, embora o tenha feito ótimo, não o fez, porém, tão bom como ele próprio era. Ora, é melhor o homem bom por vontade do que por necessidade. Logo, a vontade livre devia ser dada ao homem. 1 AUGUSTINIUS, De diuersis quaestionibus octoginta tribus. De octo Dulcitii quaestionibus. Ed. A. Mutzenbecher. CCSL, 44A. Turnholt, Brepols, 1975.

Upload: others

Post on 09-Apr-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

1

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Tradução em curso

A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de Hipona, que começamos a

publicar agora na página do CEPAME, vem sendo realizada pelo nosso Grupo de Estudos de

Latim Medieval (GELM) desde 2015. O trabalho ainda está em andamento e nenhuma dessas

traduções pretende ser definitiva. Ao contrário, as publicamos na esperança de receber

comentários e sugestões. As traduções são fruto de reuniões coletivas e costumam passar por

várias etapas de correção. O nome do tradutor de cada questão, quando houver, indica apenas

o autor da versão inicial.

Coordenação de Lorenzo Mammì.

Oitenta e três questões diversas1

Aurélio Agostinho

Questão 1. Se a alma é por si mesma.

[Traduzida por Rodrigo Sote]

Todo verdadeiro é verdadeiro pela verdade; e toda alma é alma enquanto é verdadeira

alma. Logo, toda alma recebe totalmente da verdade o ser alma. Ora, uma coisa é a alma e outra

a verdade; pois a verdade nunca admite a falsidade, mas a alma frequentemente engana-se.

Logo, como a alma é pela verdade, não é por si mesma. Ora, Deus é a verdade. Logo, a alma,

para que seja, possui Deus como autor.

Questão 2. O livre-arbítrio

[Traduzida por Rodrigo Sote]

Tudo o que é feito não pode ser equivalente àquilo que o fez, de outra forma, seria

necessariamente retirada das coisas a justiça, a qual deve atribuir a cada um o que é seu.

Portanto, quando Deus fez o homem, embora o tenha feito ótimo, não o fez, porém, tão bom

como ele próprio era. Ora, é melhor o homem bom por vontade do que por necessidade. Logo,

a vontade livre devia ser dada ao homem.

1 AUGUSTINIUS, De diuersis quaestionibus octoginta tribus. De octo Dulcitii quaestionibus. Ed. A. Mutzenbecher. CCSL, 44A. Turnholt, Brepols, 1975.

Page 2: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

2

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Questão 3. Se o homem se torna pior pela ação de Deus

[Traduzida por Daniel Fujisaka]

Nenhum homem se torna pior pela ação de um homem sábio. Com efeito, não seria

pequena esta culpa; ao contrário, é tão grande que não pode ser encontrada em nenhum sábio.

Ora, Deus é superior a todo homem sábio. Logo, muito menos o homem torna-se pior pela ação

de Deus, pois a vontade de Deus é muito superior à do homem sábio. E, quando se diz pela

ação de alguém, se diz pela vontade de alguém. Logo, o homem torna-se pior pelo defeito da

vontade. Se o defeito está longe da vontade divina – segundo a razão ensina –, é necessário

investigar em que consiste.

Questão 4. Qual é a causa de o homem se tornar pior?

[Traduzida por Daniel Fujisaka]

Para que o homem se torne pior, ou a causa está nele mesmo ou em outra coisa ou em

nada. Se em nada, não há causa alguma. Ou se “em nada” for entendido no sentido de o homem

ser feito do nada ou daquilo que foi feito do nada, de novo a causa estará nele mesmo, porque

o nada é como sua matéria. Se está em algum outro, é necessário investigar se está em Deus ou

em qualquer outro homem ou em algo que não é nem Deus nem homem. Mas não está em

Deus, pois Deus é causa dos bens. Se, então, no homem, ou pela força ou pela persuasão. Mas

pela força de modo algum, a não ser que fosse mais poderoso que Deus, visto que Deus fez o

homem tão otimamente, que, se quisesse permanecer ótimo, nenhum opositor poderia impedi-

lo. Se concedemos que o homem seja pervertido pela persuasão de outro homem, de novo será

necessário investigar por quem é pervertido este persuasor, pois é impossível que tal persuasor

não seja perverso. Resta não sei o que, que não é nem Deus nem homem. Mas seja o que for,

usou ou a força ou a persuasão. Se a força, responde-se como acima. Se a persuasão – que, seja

qual for, não constrange aquele que não quer –, a causa da depravação retorna à vontade do

homem, sendo depravado ou não por um persuasor.

Questão 5. Se o animal irracional pode ser feliz

[Traduzida por Richard Lazarini]

Page 3: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

3

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

O animal que carece de razão, carece de conhecimento. Ora, nenhum animal que carece

de conhecimento pode ser feliz. Logo, não cabe aos animais desprovidos de razão que sejam

felizes.

Questão 6. O mal

[Traduzida por Richard Lazarini]

Tudo o que é, ou é corpóreo ou incorpóreo. O corpóreo é contido pela forma sensível,

o incorpóreo pela inteligível. Logo, tudo o que é, não é sem alguma forma. Ora, onde há alguma

forma, necessariamente, há alguma medida; e a medida é algo bom. Portanto, o sumo mal não

tem nenhuma medida, uma vez que carece de todo bem. Logo, o mal não é, pois não está

contido por nenhuma forma; e toda denominação de “mal” refere-se à privação da forma.

Questão 7. O que propriamente é dito “alma” no ser animado

[Traduzida por Richard Lazarini]

Algumas vezes se diz “alma” de modo que se entende também a mente, por exemplo,

quando dizemos que o homem consta de alma e corpo; outras vezes, de modo a excluir a mente.

Mas quando é dito excluindo a mente, se entende em relação às operações que temos em

comum com os animais. Pois, os animais carecem de razão, a qual é própria da mente.

Questão 8. Se a alma se move por si

[Traduzida por Richard Lazarini e Pedro Fernandes]

Quem sente em si mesmo a vontade, sente que a alma se move por si; com efeito, se

queremos, não é um outro que quer por nós. E esse movimento da alma é espontâneo, pois ele

lhe é atribuído por Deus. Contudo, esse movimento não é de lugar em lugar como o do corpo;

pois, mover-se localmente é próprio do corpo. E quando a alma, pela vontade, isto é, por aquele

movimento que não é local, move, contudo, localmente seu corpo, não fica demonstrado por

isso que ela mesma também se move localmente; assim como vemos algo mover-se por um

eixo de um grande espaço local e, contudo, o próprio eixo não se move localmente.

Questão 9. Se a verdade pode ser apreendida pelos sentidos do corpo

[Traduzida por Mizael P. Souza]

Page 4: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

4

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Tudo que o sentido corporal atinge, que também é dito sensível, muda sem interrupção

no tempo, como quando os cabelos de nossa cabeça crescem, o corpo enverga na velhice ou

floresce na juventude: isso acontece perpetuamente e sem que haja nenhuma interrupção. Ora,

aquilo que não permanece não pode ser apreendido, pois só se apreende o que é compreendido

pela ciência; ora, não pode ser compreendido o que muda sem interrupção. Portanto, não se

deve esperar a pureza da verdade a partir dos sentidos corporais.

Mas para que ninguém diga que alguns sensíveis permanecem sempre do mesmo modo e nos

questionem sobre o sol e as estrelas − a respeito dos quais não poderia ser convencido

facilmente −, certamente não há ninguém que não seja obrigado a reconhecer que não há nada

sensível que não tenha um semelhante falso, de modo que não possam ser distinguidos. Com

efeito, deixando de lado o resto, tudo que sentimos pelo corpo, mesmo quando não está diante

dos sentidos, todavia somos acometidos por sua imagem, ou em sonho ou em alucinação, como

se estivesse presente diante de nós, pois enquanto somos acometidos, não somos capazes de

discernir de maneira alguma se estamos sentindo pelos próprios sentidos ou se são imagens

dos sensíveis.

Portanto, se há imagens falsas dos sensíveis, que não podem ser distinguidas pelos

próprios sentidos, e nada pode ser apreendido a não ser o que é distinguido do falso, o juízo de

verdade não pode ser posto nos sentidos.

Por esta razão, o mais saudável dos conselhos é nos apartarmos deste mundo, que é

certamente corporal e sensível, e nos convertermos com todo zelo para Deus, isto é, para a

verdade, que é captada pelo intelecto e mente interior, sempre permanece e é do mesmo modo,

e não há imagem falsa de que não possa ser distinguida.

Questão 10. Se o corpo vem de Deus

[Traduzida por Ivone Lessa]

Tudo o que é bom vem de Deus. Todo o que é formoso é bom, e tudo o que é contido

por uma forma é formoso. Ora, todo corpo, para que seja corpo, é contido por alguma forma.

Logo, todo corpo vem de Deus.

Questão 11. Por que Cristo nasceu de uma mulher

[Traduzida por Ivone Lessa]

Page 5: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

5

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Deus, quando liberta, não liberta uma parte, mas tudo o que está em perigo. Portando,

a sabedoria e a virtude de Deus, que dizemos ser o filho unigênito, ao fazer-se homem,

anunciou a libertação do homem. Ora, a libertação do homem teve que manifestar-se em ambos

os sexos. Portanto, como convinha fazer-se varão, que é o sexo mais digno de honra, seguiu-

se que a libertação do sexo feminino se manifestasse nisso: que este varão nascesse de uma

mulher.

Questão 12. Pensamento de um sábio2

[Traduzida por Richard Lazarini]

“Ó agí, diz, míseros mortais, agí assim, para que o espírito maligno nunca polua esta

morada; não contamine, imiscuído aos sentidos, a santidade da alma e não obscureça a luz da

mente. Este mal rasteja por todas as portas dos sensíveis: manifesta-se com figuras, harmoniza-

se pelas cores, prende-se aos sons, oculta-se na ira e na falácia do discurso, insinua-se nos

odores, infunde-se nos sabores e, pela imundície dos movimentos turvos, obscurece os sentidos

com afetos tenebrosos. Enevoa todos os meandros da inteligência pelos quais o raio da mente

costuma difundir a luz da razão. E por ser raio de luz etérea, por isso é espelho da divina

presença; com efeito, reluzem nele Deus, nele a vontade inocente e nele o mérito da ação reta.

Deus está presente em todas as partes. Mas só está presente, ao mesmo tempo, para

cada um de nós, quando a pureza ilibada de nossa mente se julgue em sua presença. Pois, como

a visão dos olhos, se for defeituosa, não considera que esteja presente o que não pode ver –

com efeito, em vão a imagem das coisas torna-se presente aos olhos, se falta integridade nos

olhos –, assim, o mesmo Deus, que não está ausente em nenhuma parte, em vão está presente

nas almas impuras, quando a cegueira da mente não está apta a vê-lo.”

Questão 13. Prova pela qual se constata que os homens são superiores aos animais

[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]

2 Isto é, segundo as Retratações de Agostinho, Fonteio de Cartago. Ver AUGUSTINUS, Retractationum libri II. Ed. A. Mutzenbecher. CCSL, 57. Turnholt, Brepols, 1984.

Page 6: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

6

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Entre muitas provas pelas quais se pode mostrar que o homem é superior pela razão aos

animais esta é manifesta a todos, que as feras podem ser domadas e amansadas pelos homens,

de modo nenhum os homens pelas feras.

Questão 14. O corpo de nosso senhor Jesus Cristo não foi um fantasma3

[Traduzida por Pedro Fernandes]

Se o corpo de Cristo foi um fantasma, Cristo enganou; e se engana, não é a verdade;

ora, Cristo é a verdade. Logo, seu corpo não foi um fantasma.

Questão 15. Sobre o intelecto

[Traduzida por Pedro Fernandes]

Tudo o que intelige a si mesmo, compreende a si mesmo; ora, o que compreende a si

mesmo é finito para si; e o intelecto intelige a si mesmo, portanto, ele é finito para si. Nem quer

ser infinito, ainda que possa, porque quer ser conhecido para si; pois ama a si mesmo.

Questão 16. Sobre o Filho

[Traduzida por Pedro Fernandes]

Deus é a causa de tudo o que é; ora, o que é a causa de todas as coisas também é a causa

de sua sabedoria; e Deus nunca foi sem sabedoria. Logo, a causa de sua eterna sabedoria é

eterna; e não é temporalmente precedente à sua sabedoria. Donde, se ser Pai eterno é inerente

a Deus, e ele não foi alguma vez sem ser Pai, jamais foi sem o Filho.

Questão 17. Sobre a ciência de Deus

[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]

3 Optamos por traduzir fantasma, em latim, por fantasma, em português, segundo a polêmica teológica entre Tertuliano e Marcião, como no trecho, Desinat nunc haereticus a Iudaeo, aspis quod aiunt a uipera, mutuari uenenum, euomat iam hinc proprii ingenii uirus, phantasma uindicans Christum (8,1-2), traduzido para o francês, Que l’hérétique maintenant cesse d’emprunter son venin au juif - l’aspic à la vipère comme on dit! Qu’il vomisse désormais le poison de sa prope invention en prétendant que le Chist est un fantôme!(8,1-2). Conferir: René BRAUN (Éd,), Tertullien. Contre Marcion. Tome III (Livre III). Texte Critique, traduction, notes et index par R. B. Paris, Le Cerf, 1994 (SOURCES CHRÉTIENNES), p. 95.

Page 7: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

7

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Tudo que é passado já não é, tudo que é futuro ainda não é. Logo tudo o que é passado

ou futuro é desprovido de ser. Junto a Deus, entretanto, nada é desprovido de ser. Logo, nada

é passado nem futuro, mas tudo é presente junto a Deus.

Questão 18. Sobre a Trindade

[Traduzida por Fabrício Cristofoletti]

Tudo que é, é um enquanto subsiste, outro enquanto se distingue, outro enquanto

coincide. Portanto, se a criação inteira é de algum modo, e distancia-se enormemente daquilo

que é absolutamente nada, e coincide com as suas partes, é preciso que sua causa seja

igualmente trina: pela qual é, pela qual é isto, pela qual é amiga de si mesma. Mas a causa da

criação, isto é, o autor, chamamos de Deus. É preciso, portanto, que seja uma trindade, da qual

a razão perfeita nada pode encontrar de mais eminente, inteligente e feliz. E por isso também,

quando a verdade é buscada, não podem existir mais do que três gêneros de questões: se é de

fato, se é isto ou aquilo, se deve ser aprovado ou reprovado.

Questão 19. Sobre Deus e a criatura

[Traduzida por Mizael P. Souza e Richard Lazarini]

O que é imutável é eterno, pois é sempre do mesmo modo. Mas o que é mutável está

sujeito ao tempo, pois não é sempre do mesmo modo, e, portanto, não é dito corretamente

eterno. Pois, o que muda não permanece e o que não permanece não é eterno. Entre o imortal

e o eterno há esta diferença, que tudo o que é eterno é imortal, e nem tudo o que é imortal é

dito, com precisão suficiente, eterno, porque, ainda que algo sempre viva, não obstante, caso

sofra mutabilidade, não é chamado propriamente eterno, porque não é sempre do mesmo modo,

embora possa ser dito corretamente imortal porque sempre vive. Contudo, o que é imortal, às

vezes, é também chamado eterno. Já aquilo que tanto sofre mutação, como é dito viver pela

presença da alma, ainda que não seja alma, não pode ser de modo algum considerado imortal

e muito menos eterno. Pois, o eterno, quando propriamente dito, não é algo passado como se

Page 8: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

8

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

tivesse transcorrido, nem algo futuro como se ainda não fosse, mas tudo o que é, simplesmente

é.

Questão 20. Sobre o lugar de Deus

[Traduzida por Fabrício Cristofoletti]

Deus não está em nenhum lugar. Pois o que está em algum lugar, está contido num

lugar. O que está contido num lugar é corpo. Mas Deus não é corpo. Portanto, não está em

nenhum lugar. E, no entanto, porque é e não está num lugar, antes tudo está nele do que ele em

algum lugar, mas não está nele de modo que ele próprio seja um lugar. Pois um lugar está no

espaço que é ocupado pelo comprimento, pela largura e pela altura de um corpo. Mas Deus não

é algo assim. Portanto, tudo está nele mas ele não é um lugar.

Todavia, não porque ele está contido ali, mas porque ele ali esteja presente, o lugar de Deus4

se diz por abusão5 do templo de Deus6. Nada melhor, porém, do que entendê-lo como alma

pura.

Questão 21. Deus é autor do mal?

[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]

Qualquer que seja autor de todos os seres, e a cuja bondade pertence somente isto, que

tudo que é, seja, a ele de modo algum pode pertencer o não ser. Mas tudo o que falha, falha se

afastando daquilo que é ser, e tende a não ser. Mas ser e em nada falhar é bom, e falhar é mau.

Ora, aquele a quem não pertence não ser não é causa da falha, ou seja, da tendência ao não ser,

porque, por assim dizer, é causa de ser. Portanto, é causa somente do bem e por isso é ele

próprio sumo bem. Por conseguinte, não é autor do mal quem é autor de todos os seres, pois

eles são bons na medida em que são.

Questão 22. Deus não está sujeito à necessidade

[Traduzida por Mizael P. Souza e Richard Lazarini]

Onde não há indigência, não há necessidade; onde não há defeito, não há indigência.

Ora, nenhum defeito há em Deus, logo não há nenhuma necessidade.

4 Fonte: Lugar de Deus [Locus-dei] cf. Ioh. 11, 48; 5 Abusiue: “por abusio, abusão”; em grego katáchresis, segundo a tradição retórica latina, conferir: Rhetorica ad Herennium, IV, 45; Cícero, Orator, 94; Quintiliano, Institutio oratoria, VIII, vi, 35. 6 Fonte: Templo de Deus [templum-intellegitu] cf. i Cor. 3,16

Page 9: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

9

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Questão 23. Sobre o Pai e o Filho

[Traduzida por Mizael P. Souza e Richard Lazarini]

Todo casto é casto pela castidade; todo eterno, pela eternidade; todo belo, pela beleza;

todo bom, pela bondade. Logo, todo sábio é pela sabedoria e toda semelhança é pela

semelhança. Mas casto pela castidade é dito de dois modos: ou porque a engendra de modo

que seja casto, de modo que seja casto por aquela castidade que engendra e da qual é princípio

e causa para que ela seja; ou quando algo é casto por participação na castidade podendo,

eventualmente, não ser casto - e, assim devem ser entendidos os outros casos.

Com efeito, também se entende ou se crê que a alma obtém a eternidade, mas se torna

eterna por participação na eternidade. Deus, porém, não é eterno deste modo, mas na medida

em que é autor da própria eternidade. Isto também pode ser entendido da beleza e da bondade.

Por conseguinte, quando se diz que Deus é sábio e que é sábio por aquela sabedoria sem a qual

é ímpio crer que tenha sido ou possa ser, alguma vez, Deus não é dito sábio por participação

na sabedoria, tal como a alma que pode tanto ser como não ser sábia, mas porque ele próprio

gerou a sabedoria pela qual é dito sábio. Ademais, aquilo que é ou casto, ou eterno, ou belo,

ou bom, ou sábio por participação admite, como foi dito, que possa não ser casto, nem eterno,

nem belo, nem bom e nem sábio. Porém, as próprias castidade, eternidade, beleza, bondade e

sabedoria de nenhum modo admitem corrupção, ou, por assim dizer, temporalidade, ou feiura,

ou maldade.

Logo, também, aquilo que é semelhante por participação admite a dessemelhança.

Porém, a própria semelhança de nenhum modo pode ser, dessemelhante. Donde se diz que o

Filho é semelhança do Pai (pois, por participação nele é semelhante tudo que é, ou semelhante

entre si, ou em relação a Deus. Com efeito, a própria semelhança é a primeira espécie pela qual

todos são, por assim dizer, especificados, e a forma pela qual todos são formados), em nenhuma

parte pode ser dessemelhante ao Pai. Portanto, é o mesmo que o Pai, de modo que este é o filho,

aquele o pai, isto é, este é a semelhança, aquele do que é semelhança. Por isso, uma única

substância. Se não fosse única, a semelhança admitiria a dessemelhança, o que toda razão

verdadeiríssima nega que possa acontecer.

Questão 24. O pecado e a ação reta estão no livre arbítrio da vontade?

[Traduzida por André Scholz, Eliakim Oliveira e Luiz Fernando]

Page 10: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

10

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

O que quer que aconteça ao acaso, acontece inconsideradamente; o que quer que

aconteça inconsideradamente, não acontece por providência. Logo, se algo acontecer ao acaso

no mundo, então a providência não administra o mundo inteiro; e se a providência não

administra o mundo inteiro, há alguma natureza e substância que não pertence à obra da

providência. Mas tudo que é, enquanto é, é bom. Pois é supremo aquele bem pela participação

no qual os outros são bens. E tudo que é mutável, enquanto é, é bom, não por si mesmo, mas

por participação no bem imutável. Pois aquele bem, pela participação no qual os outros são

bens, na medida em que são, é, não por outro, mas por si mesmo, o bem a que também

chamamos de divina providência. Nada, portanto, acontece ao acaso no mundo.

Pelo estabelecido, isto parece seguir-se: que tudo que é gerado no mundo é gerado em

parte divinamente, em parte por nossa vontade; pois Deus é de longe, incomparavelmente

melhor e mais justo que o melhor e mais justo dos homens. Ora, o justo regente e governante

de tudo não permite que seja infligida qualquer punição imerecida, nem que seja dado qualquer

prêmio imerecido. Mas, o que merece a punição é o pecado, e o que merece o prêmio é a ação

reta; e nem o pecado nem a ação reta podem ser imputados com justiça a qualquer um que não

tenha feito nada pela própria vontade. Portanto, tanto o pecado quanto a ação reta estão no livre

arbítrio da vontade.

Questão 25. Da Cruz de Cristo

[Traduzida por André Scholz, Eliakim Oliveira e Luiz Fernando]

A Sabedoria de Deus7 assumiu um homem para dar o exemplo de como vivermos

retamente. Mas convém à vida reta não temer o que não deve ser temido. Mas a morte não deve

ser temida. Logo, foi mister mostrar isso, pela morte, naquele homem que a Sabedoria de Deus

assumiu. Mas há homens que, embora não temam a própria morte, entretanto têm horror de

algum gênero de morte. Mas, do mesmo modo, como a própria morte não deve ser temida,

tampouco deve ser temido algum gênero de morte pelo homem que vive bem e retamente.

Portanto, do mesmo modo, isso também precisou ser mostrado, pela cruz, naquele homem.

Pois, dentre todos os gêneros de morte, nenhum era mais execrável e temível do que esse.

Questão 26. Sobre a diferença dos pecados

[Traduzida por Fabrício Cristofoletti]

7 I Cor I, 24: “é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus”.

Page 11: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

11

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Uns são os pecados da fraqueza, outros são os da imperícia e outros são os da malícia.

A fraqueza é contrária à potência, a imperícia é contrária à sabedoria e a malícia é contrária à

bondade. Qualquer um que conhece, portanto, o que são a potência e a sabedoria de Deus pode

estimar quais são os pecados veniais. E qualquer um que conhece o que é a bondade de Deus,

pode estimar por quais pecados certa pena é devida, seja aqui ou no mundo futuro. Tendo

considerado bem essas coisas, pode-se julgar com plausibilidade quem não deve ser coagido à

penitência sofrida e lacrimosa, embora confesse pecados, e para quem nenhuma salvação deve

ser absolutamente esperada, a não ser que ofereça a Deus, como sacrifício, um espírito contrito

pela penitência.

Questão 27. Sobre a providência

[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]

Pode acontecer que, mediante um homem mau, a divina providência tanto puna como

auxilie. Pois a impiedade dos judeus tanto suplantou os judeus como serviu à salvação dos

gentios. Também pode acontecer que a divina providência, mediante um homem bom, tanto

condene como ajude, conforme diz o Apóstolo: “para uns, somos o cheiro da vida para a vida,

mas para outros, o cheiro da morte para a morte”. Mas dado que toda tribulação ou é pena

para os ímpios ou treinamento para os justos, porque a mesma tribula8, donde a tribulação

recebeu o nome, faz cair as palhas e das palhas faz emergir os grãos e, por outro lado, dado que

a paz e o descanso das moléstias corporais aproveita aos bons e corrompe os maus, a divina

providência modera tudo isso segundo os méritos das almas. Mas ainda assim nem os bons

escolhem receber a tribulação nem os maus amam a paz. Por isso, também, aqueles mediante

os quais acontece o que ignoram, recebem a recompensa não pela justiça que concerne a Deus,

mas pela sua própria malevolência. Do mesmo modo, não é imputado aos bons aquilo que, ao

quererem ajudar, prejudica um outro, mas é atribuído ao bom ânimo o prêmio pela

benevolência. Assim também, o restante da criação é percebido ou oculto, ou molesto ou

conveniente segundo o mérito das almas racionais. Com efeito, sendo que o sumo Deus

administra bem tudo o que fez, nada é desordenado no todo e nada é injusto, tenhamos ou não

tenhamos conhecimento disso. Mas, na parte, a alma pecadora é prejudicada; contudo, porque

8 Tribula é um instrumento usado para moer o trigo. Em português há o verbo tribular, lat. tribŭlo,as,āvi,ātum,āre 'debulhar com trilho ou outro instrumento'

Page 12: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

12

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

ela está segundo os méritos onde convém que esteja, e sofre o que é adequado que sofra, não

deforma por sua feiura a totalidade do reino de Deus.

Por isso, como não conhecemos todos os casos em que a ordem divina age bem a partir

de nós, agimos segundo a lei somente no que diz respeito à boa vontade. Em todo o resto, no

entanto, somos agidos segundo a lei, já que a própria lei permanece imutável, e modera todas

as coisas mutáveis por um belíssimo governo. Portanto, glória a Deus nas alturas e na terra

paz aos homens de boa vontade.

Questão 28. Por que Deus quis fazer o mundo?

[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]

Quem pergunta por que Deus quis fazer o mundo, pergunta pela causa da vontade de

Deus. Mas toda causa é eficiente. Ora, tudo o que é eficiente é maior do que o efeito. Ora, nada

é maior do que a vontade de Deus. Logo, não se deve perguntar por sua causa.

Questão 29. Se algo está acima ou abaixo para o universo

[Traduzida por Rafael Barberino]

"Pensai as coisas que estão acima" (Col. 3,2). Somos instados a pensar as coisas que

estão acima, isto é, as espirituais, as quais não se deve entender estarem acima segundo os

locais e partes deste mundo, mas segundo o mérito de sua excelência, para que não fixemos

nosso espírito nalguma parte deste universo, do qual devemos nos afastar. Ora, há acima e

abaixo em suas partes. Com efeito, o universo em si não tem acima e abaixo: pois é corpóreo,

porque todo o visível é corpóreo, mas não há acima e abaixo do corpo universal. Uma vez que

o movimento dito reto (aquele que não é circular) parece acontecer em seis direções - para

frente e para trás, para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo -, não há razão

nenhuma por que, nada sendo anterior ou posterior, à esquerda ou à direita do corpo universal,

algo esteja acima ou abaixo dele. Mas os que examinam são enganados pelo fato de que

dificilmente se resiste aos sentidos e ao hábito. Com efeito, não é tão fácil para nós a inversão

do corpo quando se quer virar a cabeça para baixo, quanto é fácil virar da direita para a

esquerda, ou da frente para trás. Por isso, deixando de canto as palavras, é preciso se esforçar

consigo mesmo, no próprio espírito, para ser capaz de entender isso.

Questão 30. Se todas as coisas foram criadas para a utilidade do homem

[Traduzida por Fabrício Cristofoletti]

Page 13: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

13

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Como há diferença entre o decoroso e o útil, assim também há entre fruir e usar. Pois

embora se possa defender com fineza que tudo o que é decoroso seja útil e tudo o que é útil

seja decoroso, todavia, porque é mais próprio e mais usual chamar de decoroso o que deve ser

procurado por si próprio e útil o que deve ser referido a outro, falamos agora segundo essa

diferença, guardando certamente isto, que de nenhum modo o decoroso e o útil devam se opor.

Pois essas coisas são às vezes consideradas imperita e vulgarmente como opostas. Portanto,

dizemos fruir da coisa de que obtemos prazer e usamos aquela que referimos àquilo de onde

há de se obter o prazer. Assim, toda perversão humana, que também se chama vício, é querer

usar o que se deve fruir e fruir o que se deve usar, e, por sua vez, toda retidão, que se nomeia

também virtude, é fruir o que deve ser fruído e usar o que deve ser usado. Mas o que deve ser

fruído é o decoroso e o que deve ser usado é o útil.

Chamo de decoro a beleza inteligível, que nós apropriadamente dizemos espiritual, mas

chamo de utilidade a divina providência. Por isso, embora haja muitas coisas belas visíveis, as

quais são qualificadas menos apropriamente de decorosas, a própria beleza, todavia, pela qual

é bela toda coisa bela, de nenhum modo é visível. Igualmente, muitas coisas úteis são visíveis,

mas a própria utilidade, pela qual nos é proveitosa toda coisa proveitosa, a qual chamamos de

divina providência, não é visível. É notório que certamente todas as coisas corpóreas estão

abrangidas pela denominação de visíveis. É preciso, portanto, fruir das coisas belas invisíveis,

isto é, decorosas; se de todas, isso é outra questão, embora talvez convenha dizer decorosas

apenas aquelas de que se deve fruir. As úteis, porém, devem ser todas usadas sempre que se

precise delas. Mas não é absurdo considerar que também as bestas fruam de certo alimento e

de algum prazer corporal, mas não pode usar alguma coisa senão o animal que é partícipe da

razão. Pois saber a que algo deva ser referido não é dado aos que são desprovidos de razão nem

aos próprios racionais estultos. Nem alguém pode usar uma coisa se não sabe para que deva

ser referida, nem pode sabê-lo a não ser o sábio. Por isso, daqueles que não usam bem, costuma-

se dizer, de modo mais correto, que abusam. Pois não é proveitoso a ninguém o que é mal

usado, e o que não é proveitoso não é, de modo algum, útil - útil é tudo o que é útil ao ser

usado. Da mesma forma, ninguém usa senão o útil. Logo, aquele que usa mal não usa.

Portanto, a perfeita razão do homem, que é chamada de virtude, usa primeiro a si mesma

para inteligir Deus, de modo que possa fruir aquele a partir do qual foi feita, e também usa os

outros animais racionais em vista da sociedade, os irracionais em vista de sua supremacia. Ela

volta para isso também sua própria vida, de modo que frua Deus, pois assim é feliz. Portanto,

ela usa também a si própria. Ela certamente inaugura a miséria por meio da soberba se se volta

Page 14: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

14

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

para si mesma e não para Deus. Ela também usa alguns corpos, vivificando-os para fazer o

bem; com efeito, usa assim seu próprio corpo, outros para assumi-los ou repeli-los em vista da

saúde, outros para tolerar em vista da paciência, outros para ordenar em vista da justiça, outros

para considerar em vista de algum ensinamento da verdade, bem como usa aqueles dos quais

se abstém em vista da temperança. Assim, ela usa todos, tanto os sensíveis como os não

sensíveis, e não há um terceiro. Julga tudo o que usa, só não julga Deus, porque é segundo

Deus que julga os demais, e não o usa, mas o frui. Pois a nenhum outro senão a Deus deve ser

referido, porque tudo aquilo que se refere a outro é inferior àquilo ao qual se refere, e não há

algo superior a Deus, não pelo lugar, mas pela excelência de sua natureza. Portanto, todas as

coisas que foram feitas, foram feitas para o uso do homem, porque todas elas são usadas pelo

julgamento da razão, que foi dada ao homem. Antes da queda, ele certamente não as usava

tolerando-as, nem, depois da queda, usa-as senão convertido e, já amigo de Deus o quanto

pode, mesmo antes da morte do corpo, porque livremente servo.

Questão 31. O pensamento de alguém9

[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]

A virtude é um hábito da alma conforme a medida e a razão da natureza. Por isso, uma

vez conhecidas todas as partes dela, deverá ser considerado o valor geral da simples retidão. A

virtude tem, portanto, quatro partes: prudência, justiça, força e temperança. A prudência é a

ciência das coisas boas, das coisas más, e das indiferentes. As partes dela são: memória,

inteligência e previdência. A memória, pela qual a alma traz de volta o que foi; a inteligência,

pela qual a alma enxerga o que é; a previdência, pela qual algo futuro é visto antes que aconteça.

A justiça é o hábito da alma, mantido para a utilidade comum, que atribui a cada um o

que merece. Sua origem adveio da natureza, em seguida, algumas coisas se tornaram costume

em razão de sua utilidade, finalmente, o temor das leis e a religião sancionaram as coisas

advindas da natureza e aprovadas pelo costume. O direito natural não é aquilo que a opinião

gerou, mas aquilo que certa capacidade inata introduziu, como a religião, a devoção, a gratidão,

a vindicação, a obediência, a veracidade. A religião é aquilo que oferece cuidado e culto a uma

certa natureza superior, a qual chamam divina; a devoção é aquela pela qual um ofício

benevolente e um culto diligente são concedidos aos consanguíneos e à pátria; a gratidão é

aquela em que estão contidas a memória das amizades e dos ofícios de outrem e a vontade de

9 Cícero. inu. 2, 159-167.

Page 15: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

15

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

retribuir; a vindicação é aquela pela qual uma violência ou uma injúria e em geral tudo aquilo

que vier a ser nocivo, são rechaçados defendendo ou vingando-se; a obediência é aquela pela

qual são dignificados com certo culto e honra os homens superiores por alguma dignidade ; a

veracidade é aquela pela qual são ditas sem alteração, as coisas que são, foram ou serão. O

direito consuetudinário é ou aquilo que, tirado parcialmente da natureza, o uso alimentou e

tornou maior - como a religião, e qualquer um daqueles dissemos antes, se vimos que foi

gerado pela natureza e tornado maior pela tradição -, ou aquilo que a antiguidade trouxe para

o costume com aprovação do povo. A esse gênero pertencem: o pactuado, o equitativo, o

ajuizado. O pactuado é aquilo que foi acordado entre algumas pessoas; o equitativo é aquilo

que é equivalente para todos; o ajuizado é aquilo que já foi estabelecido pelas sentenças de

alguém. O direito segundo é aquilo que está contido naquele escrito que foi exposto ao povo

para que ele observasse.

A força é considerada assumir os perigos e suportar as provações. As suas partes: a

magnificência, a confiança, a paciência, a perseverança. A magnificência é o pensamento e a

administração de coisas grandes e excelsas com certo propósito esplêndido e amplo da alma.

A confiança é aquilo pelo que, em coisas grandes e retas, a alma colocou muita fé em si mesma,

com firme esperança. A paciência é suportar, voluntária e diuturnamente, coisas árduas e

difíceis, em prol da honestidade e da utilidade. A perseverança é a permanência estável e

perpétua numa atitude bem ponderada.

A temperança é o domínio firme e moderado da razão sobre a libido e outros ímpetos

não retos da alma. Suas partes: a continência, a clemência e a modéstia. A continência, pela

qual o desejo é regido pelo governo da deliberação. A clemência, pela qual os ânimos,

instigados e compelidos irrefletidamente ao ódio contra alguém, são contidos pela amabilidade.

A modéstia, pela qual um justo pudor se compara a uma autoridade valiosa e sólida.

Todas elas devem ser procuradas somente por si, sem estarem associadas a nada de

vantajoso. Não cabe ao que nos propomos demonstrar esse ponto, e está distante da brevidade

de um texto introdutório. Por outro lado, por si devem ser evitadas não apenas aquelas que são

contrárias a elas - como a covardia, que se opõe à força; a injustiça, à justiça -, mas também

aquelas que parecem ser próximas e vizinhas embora estejam muito distantes. É deste gênero

de contrário, por exemplo, a desconfiança em relação à confiança, e por isso é um vício; a

audácia não é o contrário da confiança, antes é vizinha e próxima, e no entanto é um vício.

Assim, encontra-se um vício próximo a cada virtude, por vezes já designado por um nome

preciso - como a audácia, que é vizinha da confiança; a teimosia, que é vizinha da perseverança;

a superstição, que é próxima da religião -, e por vezes sem nenhuma designação própria. Do

Page 16: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

16

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

mesmo modo, tanto estas como as contrárias às coisas boas, devem ser postas entre aquelas

que devem ser evitadas. E foi dito o bastante sobre este gênero de honestidade que é procurado

inteiramente por si. Agora, convém falar sobre aquele gênero no qual também se associa a

utilidade que, contudo, chamamos de retidão.

Há, pois, muitas coisas que nos guiam tanto pela dignidade, quanto pelo fruto. Nesse

gênero estão a glória, a dignidade, a distinção e a amizade. A glória é a fama elogiosa e

constante de alguém. A dignidade de alguém é a autoridade pela retidão digna de culto, honra

e reverência. A distinção é a grande abundância de poder, majestade ou de certos bens. A

amizade é a vontade de coisas boas para alguém por causa dele mesmo, que ama com vontade

igual à dele. E porque falamos aqui das causas civis, acrescentamos à amizade os seus frutos

para que, também por causa deles, ela pareça desejável, e para que não nos repreendam aqueles

que talvez julguem que falamos de qualquer amizade. Embora existam aqueles que julgam que

a amizade deva ser desejada apenas pela utilidade, para alguns ela deve ser desejada por si só

e para outros deve ser desejada tanto por si, como pela utilidade. Quais estão mais com a

verdade, deve ser considerado em outro lugar.

Questão 32. Se alguém compreende alguma coisa mais do que outro e, dessa forma, a

compreensão de uma mesma coisa avança infinitamente

[Traduzida por Rafael Barberino]

Quem quer que compreenda alguma coisa de um modo diferente do que a coisa é, se

engana. E todos os que se enganam, naquilo em que se enganam, não compreendem. Portanto,

quem quer que compreenda alguma coisa de um modo diferente do que ela é, não a

compreende. Logo, algo não pode ser compreendido senão como é. Nós compreendemos algo

como ele é, assim como compreender algo não como ele é, é o mesmo que nada compreender.

Por isso, não se deve duvidar que haja a compreensão perfeita, da qual não é possível outra

melhor, e, portanto, a compreensão de uma coisa qualquer não avança infinitamente, nem pode

alguém compreendê-la mais que outro.

Questão 33. Sobre o medo

[Traduzida por Roberto Pignatari]

Não há dúvida de que não existe outra causa para o medo, senão aquilo que amamos-

ou de perdê-lo se já o obtivemos, ou de não o alcançar se o esperamos. Assim, qualquer um

Page 17: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

17

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

que tenha amado o próprio destemor, e o tenha alcançado, que medo terá de perdê-lo? De fato,

temos medo de perder muitas coisas que amamos e possuímos, daí que as preservamos com

medo. O destemor, porém, nada o poderá preservar tendo medo. Segue-se então que qualquer

um que ame o destemor, ainda não o tendo, mas esperando tê-lo, não convém que tenha medo

de não o alcançar. Pois tal medo nada mais é que temer o próprio medo. Além disso, todo medo

foge de algo, mas nada foge de si mesmo. Portanto, não se teme o medo. Mas se alguém julga

não ser correto dizer que o medo teme algo quando, antes, a alma teme por meio do próprio

medo, atente para isto que é simples de se entender: não existe medo algum, senão de um mal

futuro e iminente. Mas é necessário que quem tem medo, fuja de algo. Segue-se então que é

um completo absurdo que alguém tenha medo de ter medo, posto que, fugindo, teria aquilo

mesmo de que foge. Pois, de fato, não se tem medo senão de que ocorra algum mal, e ter medo

de que ocorra o medo, outra coisa não é senão aceitar precisamente o que se rejeita. Se isso é

contraditório, e de fato é, aquele que não ama outra coisa que o destemor, por isso não tem

medo de modo algum. Portanto, ninguém poderá amar apenas isso e não o obter. Mas se apenas

isso deve ser amado, é outra questão. Além disso, a quem o medo não desanima, tampouco a

cobiça devasta, nem a enfermidade dilacera, menos ainda agita uma vã e tresloucada alegria.

De fato, se cobiçar, sendo a cobiça nada mais do que o amor pelas coisas passageiras, é

necessário que tenha medo ou de perdê-las quando as tenha conseguido, ou de não as alcançar.

Mas não tem medo: logo não cobiça. Igualmente, quando a alma se encontra angustiada pelas

dores, também necessariamente está tomada pelo medo, visto que a angústia diz respeito aos

males presentes, o medo, aos iminentes. Mas não há medo: logo, também não há angústia.

Igualmente, quando alguém está alegre em vão, está alegre por essas coisas que pode vir a

perder, pelo que necessariamente terá medo de perdê-las. Mas de modo algum tem medo:

portanto de modo algum se alegra em vão.

Questão 34. Se não se deve amar outra coisa senão a ausência do medo.

[Traduzida por Roberto Pignatari]

Se o destemor é um vício, não deve ser amado. Mas ninguém que seja completamente

feliz tem medo, e ninguém completamente feliz está no vício. Logo, o destemor não é um vício.

Por outro lado, a audácia é um vício. Logo, nem todo destemido é audacioso, embora todo

audacioso seja destemido. Igualmente, todo cadáver não tem medo. Por isso, como a ausência

de medo é comum ao completamente feliz, ao audacioso e ao cadáver (o completamente feliz,

porém, em razão da tranquilidade da alma; o audacioso, em função da temeridade; e o cadáver,

Page 18: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

18

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

por carecer de todo sentido), não devemos nem deixar de amar o destemor, visto que queremos

ser felizes, nem amar apenas a ele, posto que não queremos ser audaciosos ou cadáveres.

Questão 35. O que deve ser amado

[Traduzida por André Scholz e Eliakim Oliveira]

Visto que tudo que não vive não teme, nem ninguém nos persuadirá de que se deve

carecer de vida para que também possamos carecer de medo, deve-se amar viver sem medo.

Mas, novamente, como uma vida que carece de medo, quando também carece de

inteligência, não é desejável, deve-se amar viver sem medo e com inteligência. Somente isso

deveria ser amado ou também deve ser amado o próprio amor? Sim, pois sem este, aqueles

não são amados. Mas se é por outras coisas que devem ser amadas que o amor é amado, não

se diz propriamente que ele é amado. Pois amar não é senão desejar uma coisa por ela

mesma. Então o amor deve ser amado por si mesmo, quando seria uma indubitável miséria a

falta daquilo que se ama? Além disso, uma vez que o amor é movimento, e não há movimento

senão em direção a algo, quando buscamos aquilo que deve ser amado, buscamos o que é

aquilo para o qual é preciso nos movermos. Assim, se o amor deve ser amado, é certo que

nem todo amor deve ser amado. Com efeito, há também um amor torpe, pelo qual a alma

persegue as coisas inferiores a ela mesma, e que se chama mais propriamente cobiça, a saber,

a raiz de todos os males10. E assim não deve ser amado aquilo que pode ser tomado daquele

que ama e desfruta.

E o amor de que deve ser amado senão o daquilo que não pode faltar enquanto se

ama? Isso, porém, é aquilo cuja posse em nada difere do conhecimento. Com efeito, possuir

o ouro e tudo o que é corpóreo não é o mesmo que conhecê-los, e assim não devem ser

amados. E como algo pode ser amado sem ser possuído, não apenas entre as coisas que não

devem ser amadas, como qualquer corpo belo, mas também entre aquelas que devem ser

amadas, como a vida feliz; e, inversamente, pode-se possuir algo sem amá-lo, como os

grilhões; com razão se pergunta se alguém, ao possuir (isto é: conhecer) aquilo cuja posse em

nada difere do conhecimento, possa não o amar. Mas como vemos alguns que, por exemplo,

estudam os números, não por outra coisa senão para ficarem ricos ou serem estimados pelos

10 Ver 1 Tm, 6-10; Comentário ao Salmo 118, 11-6

Page 19: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

19

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

homens por essa disciplina, que, uma vez aprendida, encaminham ao mesmo fim que se

propuseram ao aprendê-la, e também possuir uma disciplina não é outra coisa que conhecê-

la, pode acontecer que alguém possua sem amar algo cuja posse não difere do conhecimento.

Embora ninguém possa possuir ou conhecer perfeitamente um bem que não é amado. Com

efeito, quem pode conhecer quão grande é um bem de que não frui? Mas não frui se não

ama; portanto, não possui o que deve ser amado quem não ama, embora possa ama-lo quem

não o possui. Portanto, ninguém conhece a vida feliz e é miserável porque, se deve ser amada

como ela é, conhecê-la é o mesmo que a possuir.

Sendo assim, o que é viver com felicidade senão, conhecendo algo eterno, possuí-lo?

Pois o eterno é o único no qual se confia com razão que não pode ser afastado daquele que

o ama; e é aquilo mesmo cuja posse em nada difere do conhecimento. De fato, o eterno é o

mais valioso entre todas as coisas, e por isso não o podemos possuir senão naquilo em que

somos mais valiosos, isto é, na mente. Mas, o que é possuído pela mente, é possuído

conhecendo; e nenhum bem é conhecido perfeitamente se não é amado perfeitamente. E

como a mente não pode conhecer sozinha, também não pode amar sozinha. Pois o amor é

um apetite, e vemos ser também inerente a outras partes da alma o apetite que, se consentir

com a mente e a razão, em tal paz e tranquilidade dará espaço para a mente contemplar o

que é eterno. Logo, a alma deve amar também com as suas outras partes esta coisa tão

grande que a mente deve conhecer. E porque o amado necessariamente afeta de si o amante,

o amado que é eterno afeta de eternidade a alma. E por essa razão a única vida feliz é aquela

que é eterna. Mas qual eterno pode afetar de eternidade a alma senão Deus?

Mas o amor das coisas a serem amadas é melhor chamado caridade ou dileção. Por

isso, deve ser considerado com toda força do pensamento o saudabilíssimo preceito: “ama o

senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua mente”11, e o que

disse o Senhor Jesus: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, a ti, único Deus verdadeiro e a

quem enviaste, Jesus Cristo” 12.

Questão 36.

Como alimentar a caridade

11 Mt, 22,37. 12 Jo, 17,3

Page 20: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

20

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

[Luiz Marcos, Luiz Fernando, Rodrigo Sote]

Chamo caridade aquela pela qual é amado aquilo que em relação ao próprio amante

não deve ser menosprezado, isto é, o que é eterno e o que pode amar o próprio eterno. Amando-

se, portanto, Deus e a alma diz-se propriamente caridade puríssima e perfeita, quando não se

ama nada mais; costuma-se também chamá-la dileção. Mas, sendo Deus mais amado do que

a alma, de tal modo que o homem prefira ser dele do que de si, então nos ocupamos verdadeira

e sumamente da alma e, por consequência, do corpo, sem nos preocuparmos com qualquer

apetite inquieto, mas somente aceitando o que estiver disponível e for oferecido.

Porém, o que envenena a caridade é a esperança de conseguir ou conservar o que é

temporal; o que a alimenta é a diminuição da concupiscência; a sua perfeição, nenhuma

concupiscência. O sinal de seu progresso é a diminuição do medo; o sinal de sua perfeição é a

ausência do medo, porque a raiz de todos os males é a concupiscência; e a dileção perfeita

expulsa o medo. Portanto quem quer alimentá-la, procure diminuir as concupiscências. Ora, a

concupiscência é o amor de conseguir ou manter o que é temporal. O início de sua diminuição

é temer a Deus, o único a quem não se pode temer sem amor. Com efeito, tende-se para a

sabedoria e nada é mais verdadeiro do que aquilo que foi dito: O início da sabedoria é o temor

do Senhor. De fato, não há ninguém que não fuja da dor mais do que deseje o prazer, tanto que

vemos até animais enormes se absterem dos maiores prazeres por medo das dores; e quando

isso se torna costumeiro neles, dizemos que são domados e mansos. Por isso, uma vez que o

homem é dotado de razão - que, quando serve ao prazer por uma perversão miserável, sugere,

para que os homens não tenham medo, que é possível esconder o que foi cometido, e elabora

as falácias mais astutas para encobrir os pecados ocultos -, disso resulta que são mais

dificilmente domados do que as feras os homens aos quais a beleza da virtude ainda não deleita,

a não ser que sejam afastados do pecado pelos castigos, que com a máxima verdade são preditos

por homens santos e divinos, e consintam em que não é possível esconder de Deus o que

escondem dos homens. Mas para que Deus seja temido, deve-se persuadir de que todas as

coisas são regidas pela providência divina, não tanto por razões – as quais quem pode penetrar,

pode já perceber também a beleza da virtude –, quanto por exemplos, sejam recentes, se houver,

sejam da história, e principalmente daquela que, ora no Antigo, ora no Novo Testamento,

recebe por obra da mesma providência divina a excelentíssima autoridade da religião. E deve-

se tratar, ao mesmo tempo, tanto dos castigos dos pecados, como dos prêmios das ações retas.

Page 21: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

21

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Mas quando algum hábito de não pecar nos convence que é fácil o que se considerava

oneroso, a doçura da piedade começa a ser saboreada, e a beleza da virtude a ser valorizada, de

maneira que a liberdade da caridade prevaleça sobre a servidão do medo. Então, deve-se agora

persuadir os fiéis, antes dos sacramentos de regeneração, de que é necessário que se preocupem

mais com o que distingue os dois homens, o velho e o novo, o exterior e o interior, o terreno e

o celeste, isto é, entre aquele que escolhe os bens carnais e temporais e o que escolhe os

espirituais e eternos, e se deve admoestá-los para que não esperem de Deus benefícios

perecíveis e transitórios, de que podem abundar até os homens ímprobos, mas sim os estáveis

e sempiternos, para obter os quais deve-se desprezar profundamente todas as coisas

consideradas boas e más neste mundo. Aqui se deve propor o exemplo único e eminentíssimo

do homem senhor, que depois de mostrar com tantos milagres tamanho poder sobre as coisas,

desprezou também aquelas que os ignorantes consideram grandes bens e suportou aquelas que

consideram grandes males13. Para que alguém não ouse, quanto mais o honra, tanto menos

aderir a esses costumes e disciplina, deve-se mostrar que não se deve perder a esperança neles,

tanto pelas promessas e exortações dele, quanto pela multidão de imitadores, apóstolos,

mártires e santos inumeráveis.

Mas, onde foram superados os atrativos dos prazeres carnais, é preciso ter cuidado para

que não se introduza em seu lugar a cupidez de agradar aos homens, seja por fatos admiráveis,

seja pela difícil continência ou paciência, seja por liberalidade, seja em nome da ciência ou da

eloquência. Neste gênero está também a cupidez dos cargos. Contra todas essas coisas se

proclame o que foi escrito sobre o louvor da caridade e sobre a futilidade do orgulho e se ensine

o quanto é preciso envergonhar-se de querer agradar aqueles a quem não se quer imitar. Pois,

ou não são bons e não é grande coisa ser louvado pelos maus, ou são bons e é preciso imitá-

los. Mas os que são bons o são pela virtude; e a virtude não deseja o que está em poder dos

outros homens. Logo, quem imita os bons não deseja o louvor de ninguém; quem imita os maus

não é digno de louvor. Se, contudo, queres agradar aos homens para ajuda-los a amar Deus, já

não desejas isso, mas outra coisa. Mas quem deseja agradar tem ainda necessariamente medo,

primeiro, de ser contado pelo Senhor entre os hipócritas ao pecar ocultamente, e depois, se

deseja agradar pelas boas obras, ao procurar essa recompensa, de perder aquilo que Deus

haverá de dar.

Mas, superada essa cupidez, deve ser evitada a soberba. Com efeito, é difícil que se

digne associar-se aos homens quem já não deseja agrada-los e se considera cheio de virtude.

13 Ver conf. X, xxxi, 45; 1Cor 8,8; Fl 4,11

Page 22: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

22

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Desse modo, ainda há necessariamente medo de que lhe seja tirado aquilo que acredita possuir,

e que seja jogado nas trevas exteriores, com mãos e pés atados. Por isso, o medo de Deus não

somente começa, mas também completa a sabedoria,14 a saber, naquele que ama sumamente

a Deus e ao próximo como a si mesmo. Mas os perigos e dificuldades que devem ser temidos

nesse caminho, e os remédios que seria necessário utilizar, é outra questão.

Questão 37. Sobre o sempre nascido

[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]

Sempre é melhor o que nasceu do que aquele que nasce sempre, porque quem nasce

sempre ainda não nasceu, e nunca nasceu nem terá nascido, se nasce sempre. Pois uma coisa é

nascer e outra é ter nascido. E por isso nunca é filho se nunca nasceu. Mas como é filho porque

nasceu, também é sempre filho. Logo, sempre nasceu.

Questão 38. A conformação da alma

[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]

Como uma coisa é a natureza, outra a arte, outra o uso, e se entende que elas estão em uma

única alma sem diversidade de substância, e, do mesmo modo, uma coisa é a índole, outra a

virtude, outra a serenidade, similarmente de uma e mesma substância; e como a alma é de

outra substância que não Deus, embora feita por ele - ora, o próprio Deus é aquela Santíssima

Trindade que muitos conhecem pelo nome, mas poucos realmente -, deve-se investigar com a

máxima atenção o que disse o senhor Jesus: ninguém vem a mim, senão aquele a quem o Pai

tiver atraído15; e: ninguém vem ao pai senão por mim16; e: ele vos conduzirá a toda

verdade17.

Questão 39. Dos alimentos

[Traduzida por André Scholz, Julia Maia e Julia Molinari]

14 Ver doctr. chr. II, vii, 9-11. 15 Jo 6, 44. Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me envio, não o atrair. [Bíblia de Jerusalém] 16 Jo14, 6. Diz-lhe Jesus: “eu sou o Caminho, a Verdade, e a Vida. Ninguém vem ao pai a não ser por mim. [Bíblia de Jerusalém] 17 Jo 16, 13. Quando vier o Espírito da verdade, ele vos guiará na verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras. [Bíblia de Jerusalém]

Page 23: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

23

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

O que é que recebe uma coisa e a transforma tal como o animal a comida? O que é

recebido e transformado tal como a mesma comida? O que é recebido e não é transformado tal

como a luz pelos olhos e o som pelas orelhas? Mas estes a alma recebe mediante o corpo. Ora,

o que é que a recebe mediante si mesma e transforma em si tal como outra alma que, acolhendo

em amizade, faz semelhante a si? E o que é que recebe mediante si mesma e não transforma tal

como a verdade? É por isso que se deve conhecer o que foi dito a Pedro: “mata e come”; e

como no Evangelho: “E a vida era a luz dos homens”.

Questão 40. Dado que a natureza das almas é uma, de onde vêm as vontades diversas dos

homens?

[Traduzida por André Scholz, Julia Maia e Julia Molinari]

Pelas diversas representações é diverso o apetite das almas; pelo diverso apetite é

diverso o êxito a ser alcançado; pelo diverso êxito é diverso o hábito; pelo diverso hábito

diversa é a vontade. Porém, a ordem das coisas -- oculta, de fato, mas certa sob a divina

providência - torna diversas as representações. Assim, não se deve por isso julgar que as

naturezas das almas sejam diversas porque as vontades são diversas; uma vez que até mesmo

a vontade de uma única alma varia pela diversidade dos momentos, pois em um momento

deseja ser rica, em outro momento despreza a riqueza e deseja ser sábia. E no próprio apetite

das coisas temporais, em um momento agrada ao homem o comércio; em outro, a vida militar.

Questão 41. Se Deus fez tudo, por que não fez tudo igual?

[Traduzida por André Scholz, Julia Maia e Julia Molinari]

Porque não seria tudo, se fosse igual. Pois não haveria multiplicidade de gêneros de

coisas, pelos quais é constituída a universalidade, contendo criaturas ordenadas – primeiras,

segundas e assim por diante até as últimas. E isso é o que se chama ‘tudo’.

Questão 42. De que modo a sabedoria de Deus, o senhor Jesus, esteve tanto no útero

materno quanto nos céus

[Traduzida por Aline Dainez, Eliakim Oliveira e Paulo Benjoim]

Page 24: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

24

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

Do mesmo modo que a palavra humana, ainda que muitos a ouçam, cada um a ouve por

inteiro.

Questão 43. Por que o Filho de Deus aparece como homem e o Espírito Santo como

pomba?

[Traduzida por Aline Dainez, Eliakim Oliveira, Paulo Benjoim]

Porque aquele veio para demonstrar aos homens o exemplo a ser vivido, este apareceu

para significar o próprio dom a que se chega vivendo bem. Ora, ambos se fizeram visíveis em

prol dos carnais, que devem ser elevados, pelos degraus dos sacramentos, das coisas percebidas

pelos olhos corporais àquelas que são entendidas pela mente. Pois também as palavras soam e

passam, enquanto não passa aquilo que elas significam, quando ao falar, expõem algo divino e

eterno.

Retratações I18

Aurélio Agostinho

16. Oitenta e três questões diversas, livro único.

Há, ainda, entre as obras que escrevemos, uma que, apesar de extensa, é considerada um único

livro, cujo título é Oitenta e três questões diversas. Como estivessem espalhadas por muitas

folhinhas – visto que foram ditadas sem nenhuma ordem estabelecida desde o tempo inicial da

minha conversão, depois que viemos a África, à medida que era interrogado pelos irmãos

quando me viam desatarefado – ordenei, já bispo, que fossem reunidas e delas fosse feito um

único livro, atribuindo-lhe números, para que, quem quiser lê-las, facilmente as encontre.

Retractationes IX

Nona. Se a verdade pode ser apreendida pelos sentidos do corpo. Na qual o que eu disse: Tudo

o que o sentido corporal atinge, que também é dito sensível, muda sem interrupção no tempo,

de certo, não é verdade indubitável no que se refere aos corpos incorruptíveis da ressurreição;

18 AUGUSTINUS, Retractationum libri II. Ed. A. Mutzenbecher. CCSL, 57. Turnholt, Brepols, 1984.

Page 25: Oitenta e três questões diversas - USPcepame.fflch.usp.br/sites/cepame.fflch.usp.br/files/u31/...2018/05/02  · A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de

25

Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.

mas agora, nenhum sentido do nosso corpo a atinge, a não ser talvez que algo assim seja

revelado por inspiração divina.

Retractationes XII

A décima segunda, cujo título é Sentença de um Sábio, não é minha. Mas porque, por meu

intermédio, se tornou conhecida a alguns irmãos, que então recolhiam de mim estas questões

de modo muitíssimo diligente, e, gostaram delas, quiseram incluí-la entre as nossas questões.

Mas é de um certo Fonteio Cartaginense em Sobre a purificação da mente para ver Deus, que

escreveu como pagão, mas morreu batizado cristão.

Retratactiones XXVI

A vigésima quarta é O pecado e a ação reta estão no livre arbítrio da vontade? Que é assim é

absolutamente verdadeiro; mas a graça divina o libera para que seja livre para agir retamente.

Retratactiones XXXVI

A trigésima sexta é: Como alimentar a caridade. Onde eu disse: Amando-se, portanto, Deus e

a alma diz-se propriamente caridade puríssima e perfeita, quando não se ama nada mais. Se

isso fosse verdade, por que o Apóstolo diria: ninguém jamais odeie sua carne, e por isso exorta

a amar as esposas? Mas por isso foi dito: chama-se propriamente dileção, porque é amada uma

carne, mas não propriamente, e sim pela alma a qual se submete para uso. De fato, mesmo que

pareça ser amada por si mesma, quando não queremos que seja disforme, a sua beleza deve ser

referida a outra coisa, ou seja, àquilo de que deriva tudo o que é belo.

Retratactiones XXXV

A trigésima quinta: O que deve ser amado. O que foi dito: "Deve ser amado aquilo cuja posse

em nada difere do conhecimento", não o aprovo inteiramente. Porque possuem Deus aqueles a

quem se diz: Não sabeis que vós sois o templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em

vós? e não o conheciam, ou não o conheciam como deve ser conhecido. Igualmente, quando

disse: "Ninguém conhece a vida feliz e é miserável", foi dito "conhece" no sentido de como

deve ser conhecida. Com efeito, quem a ignora por completo, ao menos entre os que usam a

razão, se sabem que querem ser felizes?