oitenta e três questões diversas -...
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
Tradução em curso
A tradução de algumas das 83 Questões diversas de Agostinho de Hipona, que começamos a
publicar agora na página do CEPAME, vem sendo realizada pelo nosso Grupo de Estudos de
Latim Medieval (GELM) desde 2015. O trabalho ainda está em andamento e nenhuma dessas
traduções pretende ser definitiva. Ao contrário, as publicamos na esperança de receber
comentários e sugestões. As traduções são fruto de reuniões coletivas e costumam passar por
várias etapas de correção. O nome do tradutor de cada questão, quando houver, indica apenas
o autor da versão inicial.
Coordenação de Lorenzo Mammì.
Oitenta e três questões diversas1
Aurélio Agostinho
Questão 1. Se a alma é por si mesma.
[Traduzida por Rodrigo Sote]
Todo verdadeiro é verdadeiro pela verdade; e toda alma é alma enquanto é verdadeira
alma. Logo, toda alma recebe totalmente da verdade o ser alma. Ora, uma coisa é a alma e outra
a verdade; pois a verdade nunca admite a falsidade, mas a alma frequentemente engana-se.
Logo, como a alma é pela verdade, não é por si mesma. Ora, Deus é a verdade. Logo, a alma,
para que seja, possui Deus como autor.
Questão 2. O livre-arbítrio
[Traduzida por Rodrigo Sote]
Tudo o que é feito não pode ser equivalente àquilo que o fez, de outra forma, seria
necessariamente retirada das coisas a justiça, a qual deve atribuir a cada um o que é seu.
Portanto, quando Deus fez o homem, embora o tenha feito ótimo, não o fez, porém, tão bom
como ele próprio era. Ora, é melhor o homem bom por vontade do que por necessidade. Logo,
a vontade livre devia ser dada ao homem.
1 AUGUSTINIUS, De diuersis quaestionibus octoginta tribus. De octo Dulcitii quaestionibus. Ed. A. Mutzenbecher. CCSL, 44A. Turnholt, Brepols, 1975.
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Questão 3. Se o homem se torna pior pela ação de Deus
[Traduzida por Daniel Fujisaka]
Nenhum homem se torna pior pela ação de um homem sábio. Com efeito, não seria
pequena esta culpa; ao contrário, é tão grande que não pode ser encontrada em nenhum sábio.
Ora, Deus é superior a todo homem sábio. Logo, muito menos o homem torna-se pior pela ação
de Deus, pois a vontade de Deus é muito superior à do homem sábio. E, quando se diz pela
ação de alguém, se diz pela vontade de alguém. Logo, o homem torna-se pior pelo defeito da
vontade. Se o defeito está longe da vontade divina – segundo a razão ensina –, é necessário
investigar em que consiste.
Questão 4. Qual é a causa de o homem se tornar pior?
[Traduzida por Daniel Fujisaka]
Para que o homem se torne pior, ou a causa está nele mesmo ou em outra coisa ou em
nada. Se em nada, não há causa alguma. Ou se “em nada” for entendido no sentido de o homem
ser feito do nada ou daquilo que foi feito do nada, de novo a causa estará nele mesmo, porque
o nada é como sua matéria. Se está em algum outro, é necessário investigar se está em Deus ou
em qualquer outro homem ou em algo que não é nem Deus nem homem. Mas não está em
Deus, pois Deus é causa dos bens. Se, então, no homem, ou pela força ou pela persuasão. Mas
pela força de modo algum, a não ser que fosse mais poderoso que Deus, visto que Deus fez o
homem tão otimamente, que, se quisesse permanecer ótimo, nenhum opositor poderia impedi-
lo. Se concedemos que o homem seja pervertido pela persuasão de outro homem, de novo será
necessário investigar por quem é pervertido este persuasor, pois é impossível que tal persuasor
não seja perverso. Resta não sei o que, que não é nem Deus nem homem. Mas seja o que for,
usou ou a força ou a persuasão. Se a força, responde-se como acima. Se a persuasão – que, seja
qual for, não constrange aquele que não quer –, a causa da depravação retorna à vontade do
homem, sendo depravado ou não por um persuasor.
Questão 5. Se o animal irracional pode ser feliz
[Traduzida por Richard Lazarini]
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O animal que carece de razão, carece de conhecimento. Ora, nenhum animal que carece
de conhecimento pode ser feliz. Logo, não cabe aos animais desprovidos de razão que sejam
felizes.
Questão 6. O mal
[Traduzida por Richard Lazarini]
Tudo o que é, ou é corpóreo ou incorpóreo. O corpóreo é contido pela forma sensível,
o incorpóreo pela inteligível. Logo, tudo o que é, não é sem alguma forma. Ora, onde há alguma
forma, necessariamente, há alguma medida; e a medida é algo bom. Portanto, o sumo mal não
tem nenhuma medida, uma vez que carece de todo bem. Logo, o mal não é, pois não está
contido por nenhuma forma; e toda denominação de “mal” refere-se à privação da forma.
Questão 7. O que propriamente é dito “alma” no ser animado
[Traduzida por Richard Lazarini]
Algumas vezes se diz “alma” de modo que se entende também a mente, por exemplo,
quando dizemos que o homem consta de alma e corpo; outras vezes, de modo a excluir a mente.
Mas quando é dito excluindo a mente, se entende em relação às operações que temos em
comum com os animais. Pois, os animais carecem de razão, a qual é própria da mente.
Questão 8. Se a alma se move por si
[Traduzida por Richard Lazarini e Pedro Fernandes]
Quem sente em si mesmo a vontade, sente que a alma se move por si; com efeito, se
queremos, não é um outro que quer por nós. E esse movimento da alma é espontâneo, pois ele
lhe é atribuído por Deus. Contudo, esse movimento não é de lugar em lugar como o do corpo;
pois, mover-se localmente é próprio do corpo. E quando a alma, pela vontade, isto é, por aquele
movimento que não é local, move, contudo, localmente seu corpo, não fica demonstrado por
isso que ela mesma também se move localmente; assim como vemos algo mover-se por um
eixo de um grande espaço local e, contudo, o próprio eixo não se move localmente.
Questão 9. Se a verdade pode ser apreendida pelos sentidos do corpo
[Traduzida por Mizael P. Souza]
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Tudo que o sentido corporal atinge, que também é dito sensível, muda sem interrupção
no tempo, como quando os cabelos de nossa cabeça crescem, o corpo enverga na velhice ou
floresce na juventude: isso acontece perpetuamente e sem que haja nenhuma interrupção. Ora,
aquilo que não permanece não pode ser apreendido, pois só se apreende o que é compreendido
pela ciência; ora, não pode ser compreendido o que muda sem interrupção. Portanto, não se
deve esperar a pureza da verdade a partir dos sentidos corporais.
Mas para que ninguém diga que alguns sensíveis permanecem sempre do mesmo modo e nos
questionem sobre o sol e as estrelas − a respeito dos quais não poderia ser convencido
facilmente −, certamente não há ninguém que não seja obrigado a reconhecer que não há nada
sensível que não tenha um semelhante falso, de modo que não possam ser distinguidos. Com
efeito, deixando de lado o resto, tudo que sentimos pelo corpo, mesmo quando não está diante
dos sentidos, todavia somos acometidos por sua imagem, ou em sonho ou em alucinação, como
se estivesse presente diante de nós, pois enquanto somos acometidos, não somos capazes de
discernir de maneira alguma se estamos sentindo pelos próprios sentidos ou se são imagens
dos sensíveis.
Portanto, se há imagens falsas dos sensíveis, que não podem ser distinguidas pelos
próprios sentidos, e nada pode ser apreendido a não ser o que é distinguido do falso, o juízo de
verdade não pode ser posto nos sentidos.
Por esta razão, o mais saudável dos conselhos é nos apartarmos deste mundo, que é
certamente corporal e sensível, e nos convertermos com todo zelo para Deus, isto é, para a
verdade, que é captada pelo intelecto e mente interior, sempre permanece e é do mesmo modo,
e não há imagem falsa de que não possa ser distinguida.
Questão 10. Se o corpo vem de Deus
[Traduzida por Ivone Lessa]
Tudo o que é bom vem de Deus. Todo o que é formoso é bom, e tudo o que é contido
por uma forma é formoso. Ora, todo corpo, para que seja corpo, é contido por alguma forma.
Logo, todo corpo vem de Deus.
Questão 11. Por que Cristo nasceu de uma mulher
[Traduzida por Ivone Lessa]
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Deus, quando liberta, não liberta uma parte, mas tudo o que está em perigo. Portando,
a sabedoria e a virtude de Deus, que dizemos ser o filho unigênito, ao fazer-se homem,
anunciou a libertação do homem. Ora, a libertação do homem teve que manifestar-se em ambos
os sexos. Portanto, como convinha fazer-se varão, que é o sexo mais digno de honra, seguiu-
se que a libertação do sexo feminino se manifestasse nisso: que este varão nascesse de uma
mulher.
Questão 12. Pensamento de um sábio2
[Traduzida por Richard Lazarini]
“Ó agí, diz, míseros mortais, agí assim, para que o espírito maligno nunca polua esta
morada; não contamine, imiscuído aos sentidos, a santidade da alma e não obscureça a luz da
mente. Este mal rasteja por todas as portas dos sensíveis: manifesta-se com figuras, harmoniza-
se pelas cores, prende-se aos sons, oculta-se na ira e na falácia do discurso, insinua-se nos
odores, infunde-se nos sabores e, pela imundície dos movimentos turvos, obscurece os sentidos
com afetos tenebrosos. Enevoa todos os meandros da inteligência pelos quais o raio da mente
costuma difundir a luz da razão. E por ser raio de luz etérea, por isso é espelho da divina
presença; com efeito, reluzem nele Deus, nele a vontade inocente e nele o mérito da ação reta.
Deus está presente em todas as partes. Mas só está presente, ao mesmo tempo, para
cada um de nós, quando a pureza ilibada de nossa mente se julgue em sua presença. Pois, como
a visão dos olhos, se for defeituosa, não considera que esteja presente o que não pode ver –
com efeito, em vão a imagem das coisas torna-se presente aos olhos, se falta integridade nos
olhos –, assim, o mesmo Deus, que não está ausente em nenhuma parte, em vão está presente
nas almas impuras, quando a cegueira da mente não está apta a vê-lo.”
Questão 13. Prova pela qual se constata que os homens são superiores aos animais
[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]
2 Isto é, segundo as Retratações de Agostinho, Fonteio de Cartago. Ver AUGUSTINUS, Retractationum libri II. Ed. A. Mutzenbecher. CCSL, 57. Turnholt, Brepols, 1984.
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Entre muitas provas pelas quais se pode mostrar que o homem é superior pela razão aos
animais esta é manifesta a todos, que as feras podem ser domadas e amansadas pelos homens,
de modo nenhum os homens pelas feras.
Questão 14. O corpo de nosso senhor Jesus Cristo não foi um fantasma3
[Traduzida por Pedro Fernandes]
Se o corpo de Cristo foi um fantasma, Cristo enganou; e se engana, não é a verdade;
ora, Cristo é a verdade. Logo, seu corpo não foi um fantasma.
Questão 15. Sobre o intelecto
[Traduzida por Pedro Fernandes]
Tudo o que intelige a si mesmo, compreende a si mesmo; ora, o que compreende a si
mesmo é finito para si; e o intelecto intelige a si mesmo, portanto, ele é finito para si. Nem quer
ser infinito, ainda que possa, porque quer ser conhecido para si; pois ama a si mesmo.
Questão 16. Sobre o Filho
[Traduzida por Pedro Fernandes]
Deus é a causa de tudo o que é; ora, o que é a causa de todas as coisas também é a causa
de sua sabedoria; e Deus nunca foi sem sabedoria. Logo, a causa de sua eterna sabedoria é
eterna; e não é temporalmente precedente à sua sabedoria. Donde, se ser Pai eterno é inerente
a Deus, e ele não foi alguma vez sem ser Pai, jamais foi sem o Filho.
Questão 17. Sobre a ciência de Deus
[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]
3 Optamos por traduzir fantasma, em latim, por fantasma, em português, segundo a polêmica teológica entre Tertuliano e Marcião, como no trecho, Desinat nunc haereticus a Iudaeo, aspis quod aiunt a uipera, mutuari uenenum, euomat iam hinc proprii ingenii uirus, phantasma uindicans Christum (8,1-2), traduzido para o francês, Que l’hérétique maintenant cesse d’emprunter son venin au juif - l’aspic à la vipère comme on dit! Qu’il vomisse désormais le poison de sa prope invention en prétendant que le Chist est un fantôme!(8,1-2). Conferir: René BRAUN (Éd,), Tertullien. Contre Marcion. Tome III (Livre III). Texte Critique, traduction, notes et index par R. B. Paris, Le Cerf, 1994 (SOURCES CHRÉTIENNES), p. 95.
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Tudo que é passado já não é, tudo que é futuro ainda não é. Logo tudo o que é passado
ou futuro é desprovido de ser. Junto a Deus, entretanto, nada é desprovido de ser. Logo, nada
é passado nem futuro, mas tudo é presente junto a Deus.
Questão 18. Sobre a Trindade
[Traduzida por Fabrício Cristofoletti]
Tudo que é, é um enquanto subsiste, outro enquanto se distingue, outro enquanto
coincide. Portanto, se a criação inteira é de algum modo, e distancia-se enormemente daquilo
que é absolutamente nada, e coincide com as suas partes, é preciso que sua causa seja
igualmente trina: pela qual é, pela qual é isto, pela qual é amiga de si mesma. Mas a causa da
criação, isto é, o autor, chamamos de Deus. É preciso, portanto, que seja uma trindade, da qual
a razão perfeita nada pode encontrar de mais eminente, inteligente e feliz. E por isso também,
quando a verdade é buscada, não podem existir mais do que três gêneros de questões: se é de
fato, se é isto ou aquilo, se deve ser aprovado ou reprovado.
Questão 19. Sobre Deus e a criatura
[Traduzida por Mizael P. Souza e Richard Lazarini]
O que é imutável é eterno, pois é sempre do mesmo modo. Mas o que é mutável está
sujeito ao tempo, pois não é sempre do mesmo modo, e, portanto, não é dito corretamente
eterno. Pois, o que muda não permanece e o que não permanece não é eterno. Entre o imortal
e o eterno há esta diferença, que tudo o que é eterno é imortal, e nem tudo o que é imortal é
dito, com precisão suficiente, eterno, porque, ainda que algo sempre viva, não obstante, caso
sofra mutabilidade, não é chamado propriamente eterno, porque não é sempre do mesmo modo,
embora possa ser dito corretamente imortal porque sempre vive. Contudo, o que é imortal, às
vezes, é também chamado eterno. Já aquilo que tanto sofre mutação, como é dito viver pela
presença da alma, ainda que não seja alma, não pode ser de modo algum considerado imortal
e muito menos eterno. Pois, o eterno, quando propriamente dito, não é algo passado como se
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tivesse transcorrido, nem algo futuro como se ainda não fosse, mas tudo o que é, simplesmente
é.
Questão 20. Sobre o lugar de Deus
[Traduzida por Fabrício Cristofoletti]
Deus não está em nenhum lugar. Pois o que está em algum lugar, está contido num
lugar. O que está contido num lugar é corpo. Mas Deus não é corpo. Portanto, não está em
nenhum lugar. E, no entanto, porque é e não está num lugar, antes tudo está nele do que ele em
algum lugar, mas não está nele de modo que ele próprio seja um lugar. Pois um lugar está no
espaço que é ocupado pelo comprimento, pela largura e pela altura de um corpo. Mas Deus não
é algo assim. Portanto, tudo está nele mas ele não é um lugar.
Todavia, não porque ele está contido ali, mas porque ele ali esteja presente, o lugar de Deus4
se diz por abusão5 do templo de Deus6. Nada melhor, porém, do que entendê-lo como alma
pura.
Questão 21. Deus é autor do mal?
[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]
Qualquer que seja autor de todos os seres, e a cuja bondade pertence somente isto, que
tudo que é, seja, a ele de modo algum pode pertencer o não ser. Mas tudo o que falha, falha se
afastando daquilo que é ser, e tende a não ser. Mas ser e em nada falhar é bom, e falhar é mau.
Ora, aquele a quem não pertence não ser não é causa da falha, ou seja, da tendência ao não ser,
porque, por assim dizer, é causa de ser. Portanto, é causa somente do bem e por isso é ele
próprio sumo bem. Por conseguinte, não é autor do mal quem é autor de todos os seres, pois
eles são bons na medida em que são.
Questão 22. Deus não está sujeito à necessidade
[Traduzida por Mizael P. Souza e Richard Lazarini]
Onde não há indigência, não há necessidade; onde não há defeito, não há indigência.
Ora, nenhum defeito há em Deus, logo não há nenhuma necessidade.
4 Fonte: Lugar de Deus [Locus-dei] cf. Ioh. 11, 48; 5 Abusiue: “por abusio, abusão”; em grego katáchresis, segundo a tradição retórica latina, conferir: Rhetorica ad Herennium, IV, 45; Cícero, Orator, 94; Quintiliano, Institutio oratoria, VIII, vi, 35. 6 Fonte: Templo de Deus [templum-intellegitu] cf. i Cor. 3,16
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Questão 23. Sobre o Pai e o Filho
[Traduzida por Mizael P. Souza e Richard Lazarini]
Todo casto é casto pela castidade; todo eterno, pela eternidade; todo belo, pela beleza;
todo bom, pela bondade. Logo, todo sábio é pela sabedoria e toda semelhança é pela
semelhança. Mas casto pela castidade é dito de dois modos: ou porque a engendra de modo
que seja casto, de modo que seja casto por aquela castidade que engendra e da qual é princípio
e causa para que ela seja; ou quando algo é casto por participação na castidade podendo,
eventualmente, não ser casto - e, assim devem ser entendidos os outros casos.
Com efeito, também se entende ou se crê que a alma obtém a eternidade, mas se torna
eterna por participação na eternidade. Deus, porém, não é eterno deste modo, mas na medida
em que é autor da própria eternidade. Isto também pode ser entendido da beleza e da bondade.
Por conseguinte, quando se diz que Deus é sábio e que é sábio por aquela sabedoria sem a qual
é ímpio crer que tenha sido ou possa ser, alguma vez, Deus não é dito sábio por participação
na sabedoria, tal como a alma que pode tanto ser como não ser sábia, mas porque ele próprio
gerou a sabedoria pela qual é dito sábio. Ademais, aquilo que é ou casto, ou eterno, ou belo,
ou bom, ou sábio por participação admite, como foi dito, que possa não ser casto, nem eterno,
nem belo, nem bom e nem sábio. Porém, as próprias castidade, eternidade, beleza, bondade e
sabedoria de nenhum modo admitem corrupção, ou, por assim dizer, temporalidade, ou feiura,
ou maldade.
Logo, também, aquilo que é semelhante por participação admite a dessemelhança.
Porém, a própria semelhança de nenhum modo pode ser, dessemelhante. Donde se diz que o
Filho é semelhança do Pai (pois, por participação nele é semelhante tudo que é, ou semelhante
entre si, ou em relação a Deus. Com efeito, a própria semelhança é a primeira espécie pela qual
todos são, por assim dizer, especificados, e a forma pela qual todos são formados), em nenhuma
parte pode ser dessemelhante ao Pai. Portanto, é o mesmo que o Pai, de modo que este é o filho,
aquele o pai, isto é, este é a semelhança, aquele do que é semelhança. Por isso, uma única
substância. Se não fosse única, a semelhança admitiria a dessemelhança, o que toda razão
verdadeiríssima nega que possa acontecer.
Questão 24. O pecado e a ação reta estão no livre arbítrio da vontade?
[Traduzida por André Scholz, Eliakim Oliveira e Luiz Fernando]
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
O que quer que aconteça ao acaso, acontece inconsideradamente; o que quer que
aconteça inconsideradamente, não acontece por providência. Logo, se algo acontecer ao acaso
no mundo, então a providência não administra o mundo inteiro; e se a providência não
administra o mundo inteiro, há alguma natureza e substância que não pertence à obra da
providência. Mas tudo que é, enquanto é, é bom. Pois é supremo aquele bem pela participação
no qual os outros são bens. E tudo que é mutável, enquanto é, é bom, não por si mesmo, mas
por participação no bem imutável. Pois aquele bem, pela participação no qual os outros são
bens, na medida em que são, é, não por outro, mas por si mesmo, o bem a que também
chamamos de divina providência. Nada, portanto, acontece ao acaso no mundo.
Pelo estabelecido, isto parece seguir-se: que tudo que é gerado no mundo é gerado em
parte divinamente, em parte por nossa vontade; pois Deus é de longe, incomparavelmente
melhor e mais justo que o melhor e mais justo dos homens. Ora, o justo regente e governante
de tudo não permite que seja infligida qualquer punição imerecida, nem que seja dado qualquer
prêmio imerecido. Mas, o que merece a punição é o pecado, e o que merece o prêmio é a ação
reta; e nem o pecado nem a ação reta podem ser imputados com justiça a qualquer um que não
tenha feito nada pela própria vontade. Portanto, tanto o pecado quanto a ação reta estão no livre
arbítrio da vontade.
Questão 25. Da Cruz de Cristo
[Traduzida por André Scholz, Eliakim Oliveira e Luiz Fernando]
A Sabedoria de Deus7 assumiu um homem para dar o exemplo de como vivermos
retamente. Mas convém à vida reta não temer o que não deve ser temido. Mas a morte não deve
ser temida. Logo, foi mister mostrar isso, pela morte, naquele homem que a Sabedoria de Deus
assumiu. Mas há homens que, embora não temam a própria morte, entretanto têm horror de
algum gênero de morte. Mas, do mesmo modo, como a própria morte não deve ser temida,
tampouco deve ser temido algum gênero de morte pelo homem que vive bem e retamente.
Portanto, do mesmo modo, isso também precisou ser mostrado, pela cruz, naquele homem.
Pois, dentre todos os gêneros de morte, nenhum era mais execrável e temível do que esse.
Questão 26. Sobre a diferença dos pecados
[Traduzida por Fabrício Cristofoletti]
7 I Cor I, 24: “é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus”.
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
Uns são os pecados da fraqueza, outros são os da imperícia e outros são os da malícia.
A fraqueza é contrária à potência, a imperícia é contrária à sabedoria e a malícia é contrária à
bondade. Qualquer um que conhece, portanto, o que são a potência e a sabedoria de Deus pode
estimar quais são os pecados veniais. E qualquer um que conhece o que é a bondade de Deus,
pode estimar por quais pecados certa pena é devida, seja aqui ou no mundo futuro. Tendo
considerado bem essas coisas, pode-se julgar com plausibilidade quem não deve ser coagido à
penitência sofrida e lacrimosa, embora confesse pecados, e para quem nenhuma salvação deve
ser absolutamente esperada, a não ser que ofereça a Deus, como sacrifício, um espírito contrito
pela penitência.
Questão 27. Sobre a providência
[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]
Pode acontecer que, mediante um homem mau, a divina providência tanto puna como
auxilie. Pois a impiedade dos judeus tanto suplantou os judeus como serviu à salvação dos
gentios. Também pode acontecer que a divina providência, mediante um homem bom, tanto
condene como ajude, conforme diz o Apóstolo: “para uns, somos o cheiro da vida para a vida,
mas para outros, o cheiro da morte para a morte”. Mas dado que toda tribulação ou é pena
para os ímpios ou treinamento para os justos, porque a mesma tribula8, donde a tribulação
recebeu o nome, faz cair as palhas e das palhas faz emergir os grãos e, por outro lado, dado que
a paz e o descanso das moléstias corporais aproveita aos bons e corrompe os maus, a divina
providência modera tudo isso segundo os méritos das almas. Mas ainda assim nem os bons
escolhem receber a tribulação nem os maus amam a paz. Por isso, também, aqueles mediante
os quais acontece o que ignoram, recebem a recompensa não pela justiça que concerne a Deus,
mas pela sua própria malevolência. Do mesmo modo, não é imputado aos bons aquilo que, ao
quererem ajudar, prejudica um outro, mas é atribuído ao bom ânimo o prêmio pela
benevolência. Assim também, o restante da criação é percebido ou oculto, ou molesto ou
conveniente segundo o mérito das almas racionais. Com efeito, sendo que o sumo Deus
administra bem tudo o que fez, nada é desordenado no todo e nada é injusto, tenhamos ou não
tenhamos conhecimento disso. Mas, na parte, a alma pecadora é prejudicada; contudo, porque
8 Tribula é um instrumento usado para moer o trigo. Em português há o verbo tribular, lat. tribŭlo,as,āvi,ātum,āre 'debulhar com trilho ou outro instrumento'
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
ela está segundo os méritos onde convém que esteja, e sofre o que é adequado que sofra, não
deforma por sua feiura a totalidade do reino de Deus.
Por isso, como não conhecemos todos os casos em que a ordem divina age bem a partir
de nós, agimos segundo a lei somente no que diz respeito à boa vontade. Em todo o resto, no
entanto, somos agidos segundo a lei, já que a própria lei permanece imutável, e modera todas
as coisas mutáveis por um belíssimo governo. Portanto, glória a Deus nas alturas e na terra
paz aos homens de boa vontade.
Questão 28. Por que Deus quis fazer o mundo?
[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]
Quem pergunta por que Deus quis fazer o mundo, pergunta pela causa da vontade de
Deus. Mas toda causa é eficiente. Ora, tudo o que é eficiente é maior do que o efeito. Ora, nada
é maior do que a vontade de Deus. Logo, não se deve perguntar por sua causa.
Questão 29. Se algo está acima ou abaixo para o universo
[Traduzida por Rafael Barberino]
"Pensai as coisas que estão acima" (Col. 3,2). Somos instados a pensar as coisas que
estão acima, isto é, as espirituais, as quais não se deve entender estarem acima segundo os
locais e partes deste mundo, mas segundo o mérito de sua excelência, para que não fixemos
nosso espírito nalguma parte deste universo, do qual devemos nos afastar. Ora, há acima e
abaixo em suas partes. Com efeito, o universo em si não tem acima e abaixo: pois é corpóreo,
porque todo o visível é corpóreo, mas não há acima e abaixo do corpo universal. Uma vez que
o movimento dito reto (aquele que não é circular) parece acontecer em seis direções - para
frente e para trás, para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo -, não há razão
nenhuma por que, nada sendo anterior ou posterior, à esquerda ou à direita do corpo universal,
algo esteja acima ou abaixo dele. Mas os que examinam são enganados pelo fato de que
dificilmente se resiste aos sentidos e ao hábito. Com efeito, não é tão fácil para nós a inversão
do corpo quando se quer virar a cabeça para baixo, quanto é fácil virar da direita para a
esquerda, ou da frente para trás. Por isso, deixando de canto as palavras, é preciso se esforçar
consigo mesmo, no próprio espírito, para ser capaz de entender isso.
Questão 30. Se todas as coisas foram criadas para a utilidade do homem
[Traduzida por Fabrício Cristofoletti]
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
Como há diferença entre o decoroso e o útil, assim também há entre fruir e usar. Pois
embora se possa defender com fineza que tudo o que é decoroso seja útil e tudo o que é útil
seja decoroso, todavia, porque é mais próprio e mais usual chamar de decoroso o que deve ser
procurado por si próprio e útil o que deve ser referido a outro, falamos agora segundo essa
diferença, guardando certamente isto, que de nenhum modo o decoroso e o útil devam se opor.
Pois essas coisas são às vezes consideradas imperita e vulgarmente como opostas. Portanto,
dizemos fruir da coisa de que obtemos prazer e usamos aquela que referimos àquilo de onde
há de se obter o prazer. Assim, toda perversão humana, que também se chama vício, é querer
usar o que se deve fruir e fruir o que se deve usar, e, por sua vez, toda retidão, que se nomeia
também virtude, é fruir o que deve ser fruído e usar o que deve ser usado. Mas o que deve ser
fruído é o decoroso e o que deve ser usado é o útil.
Chamo de decoro a beleza inteligível, que nós apropriadamente dizemos espiritual, mas
chamo de utilidade a divina providência. Por isso, embora haja muitas coisas belas visíveis, as
quais são qualificadas menos apropriamente de decorosas, a própria beleza, todavia, pela qual
é bela toda coisa bela, de nenhum modo é visível. Igualmente, muitas coisas úteis são visíveis,
mas a própria utilidade, pela qual nos é proveitosa toda coisa proveitosa, a qual chamamos de
divina providência, não é visível. É notório que certamente todas as coisas corpóreas estão
abrangidas pela denominação de visíveis. É preciso, portanto, fruir das coisas belas invisíveis,
isto é, decorosas; se de todas, isso é outra questão, embora talvez convenha dizer decorosas
apenas aquelas de que se deve fruir. As úteis, porém, devem ser todas usadas sempre que se
precise delas. Mas não é absurdo considerar que também as bestas fruam de certo alimento e
de algum prazer corporal, mas não pode usar alguma coisa senão o animal que é partícipe da
razão. Pois saber a que algo deva ser referido não é dado aos que são desprovidos de razão nem
aos próprios racionais estultos. Nem alguém pode usar uma coisa se não sabe para que deva
ser referida, nem pode sabê-lo a não ser o sábio. Por isso, daqueles que não usam bem, costuma-
se dizer, de modo mais correto, que abusam. Pois não é proveitoso a ninguém o que é mal
usado, e o que não é proveitoso não é, de modo algum, útil - útil é tudo o que é útil ao ser
usado. Da mesma forma, ninguém usa senão o útil. Logo, aquele que usa mal não usa.
Portanto, a perfeita razão do homem, que é chamada de virtude, usa primeiro a si mesma
para inteligir Deus, de modo que possa fruir aquele a partir do qual foi feita, e também usa os
outros animais racionais em vista da sociedade, os irracionais em vista de sua supremacia. Ela
volta para isso também sua própria vida, de modo que frua Deus, pois assim é feliz. Portanto,
ela usa também a si própria. Ela certamente inaugura a miséria por meio da soberba se se volta
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
para si mesma e não para Deus. Ela também usa alguns corpos, vivificando-os para fazer o
bem; com efeito, usa assim seu próprio corpo, outros para assumi-los ou repeli-los em vista da
saúde, outros para tolerar em vista da paciência, outros para ordenar em vista da justiça, outros
para considerar em vista de algum ensinamento da verdade, bem como usa aqueles dos quais
se abstém em vista da temperança. Assim, ela usa todos, tanto os sensíveis como os não
sensíveis, e não há um terceiro. Julga tudo o que usa, só não julga Deus, porque é segundo
Deus que julga os demais, e não o usa, mas o frui. Pois a nenhum outro senão a Deus deve ser
referido, porque tudo aquilo que se refere a outro é inferior àquilo ao qual se refere, e não há
algo superior a Deus, não pelo lugar, mas pela excelência de sua natureza. Portanto, todas as
coisas que foram feitas, foram feitas para o uso do homem, porque todas elas são usadas pelo
julgamento da razão, que foi dada ao homem. Antes da queda, ele certamente não as usava
tolerando-as, nem, depois da queda, usa-as senão convertido e, já amigo de Deus o quanto
pode, mesmo antes da morte do corpo, porque livremente servo.
Questão 31. O pensamento de alguém9
[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]
A virtude é um hábito da alma conforme a medida e a razão da natureza. Por isso, uma
vez conhecidas todas as partes dela, deverá ser considerado o valor geral da simples retidão. A
virtude tem, portanto, quatro partes: prudência, justiça, força e temperança. A prudência é a
ciência das coisas boas, das coisas más, e das indiferentes. As partes dela são: memória,
inteligência e previdência. A memória, pela qual a alma traz de volta o que foi; a inteligência,
pela qual a alma enxerga o que é; a previdência, pela qual algo futuro é visto antes que aconteça.
A justiça é o hábito da alma, mantido para a utilidade comum, que atribui a cada um o
que merece. Sua origem adveio da natureza, em seguida, algumas coisas se tornaram costume
em razão de sua utilidade, finalmente, o temor das leis e a religião sancionaram as coisas
advindas da natureza e aprovadas pelo costume. O direito natural não é aquilo que a opinião
gerou, mas aquilo que certa capacidade inata introduziu, como a religião, a devoção, a gratidão,
a vindicação, a obediência, a veracidade. A religião é aquilo que oferece cuidado e culto a uma
certa natureza superior, a qual chamam divina; a devoção é aquela pela qual um ofício
benevolente e um culto diligente são concedidos aos consanguíneos e à pátria; a gratidão é
aquela em que estão contidas a memória das amizades e dos ofícios de outrem e a vontade de
9 Cícero. inu. 2, 159-167.
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
retribuir; a vindicação é aquela pela qual uma violência ou uma injúria e em geral tudo aquilo
que vier a ser nocivo, são rechaçados defendendo ou vingando-se; a obediência é aquela pela
qual são dignificados com certo culto e honra os homens superiores por alguma dignidade ; a
veracidade é aquela pela qual são ditas sem alteração, as coisas que são, foram ou serão. O
direito consuetudinário é ou aquilo que, tirado parcialmente da natureza, o uso alimentou e
tornou maior - como a religião, e qualquer um daqueles dissemos antes, se vimos que foi
gerado pela natureza e tornado maior pela tradição -, ou aquilo que a antiguidade trouxe para
o costume com aprovação do povo. A esse gênero pertencem: o pactuado, o equitativo, o
ajuizado. O pactuado é aquilo que foi acordado entre algumas pessoas; o equitativo é aquilo
que é equivalente para todos; o ajuizado é aquilo que já foi estabelecido pelas sentenças de
alguém. O direito segundo é aquilo que está contido naquele escrito que foi exposto ao povo
para que ele observasse.
A força é considerada assumir os perigos e suportar as provações. As suas partes: a
magnificência, a confiança, a paciência, a perseverança. A magnificência é o pensamento e a
administração de coisas grandes e excelsas com certo propósito esplêndido e amplo da alma.
A confiança é aquilo pelo que, em coisas grandes e retas, a alma colocou muita fé em si mesma,
com firme esperança. A paciência é suportar, voluntária e diuturnamente, coisas árduas e
difíceis, em prol da honestidade e da utilidade. A perseverança é a permanência estável e
perpétua numa atitude bem ponderada.
A temperança é o domínio firme e moderado da razão sobre a libido e outros ímpetos
não retos da alma. Suas partes: a continência, a clemência e a modéstia. A continência, pela
qual o desejo é regido pelo governo da deliberação. A clemência, pela qual os ânimos,
instigados e compelidos irrefletidamente ao ódio contra alguém, são contidos pela amabilidade.
A modéstia, pela qual um justo pudor se compara a uma autoridade valiosa e sólida.
Todas elas devem ser procuradas somente por si, sem estarem associadas a nada de
vantajoso. Não cabe ao que nos propomos demonstrar esse ponto, e está distante da brevidade
de um texto introdutório. Por outro lado, por si devem ser evitadas não apenas aquelas que são
contrárias a elas - como a covardia, que se opõe à força; a injustiça, à justiça -, mas também
aquelas que parecem ser próximas e vizinhas embora estejam muito distantes. É deste gênero
de contrário, por exemplo, a desconfiança em relação à confiança, e por isso é um vício; a
audácia não é o contrário da confiança, antes é vizinha e próxima, e no entanto é um vício.
Assim, encontra-se um vício próximo a cada virtude, por vezes já designado por um nome
preciso - como a audácia, que é vizinha da confiança; a teimosia, que é vizinha da perseverança;
a superstição, que é próxima da religião -, e por vezes sem nenhuma designação própria. Do
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
mesmo modo, tanto estas como as contrárias às coisas boas, devem ser postas entre aquelas
que devem ser evitadas. E foi dito o bastante sobre este gênero de honestidade que é procurado
inteiramente por si. Agora, convém falar sobre aquele gênero no qual também se associa a
utilidade que, contudo, chamamos de retidão.
Há, pois, muitas coisas que nos guiam tanto pela dignidade, quanto pelo fruto. Nesse
gênero estão a glória, a dignidade, a distinção e a amizade. A glória é a fama elogiosa e
constante de alguém. A dignidade de alguém é a autoridade pela retidão digna de culto, honra
e reverência. A distinção é a grande abundância de poder, majestade ou de certos bens. A
amizade é a vontade de coisas boas para alguém por causa dele mesmo, que ama com vontade
igual à dele. E porque falamos aqui das causas civis, acrescentamos à amizade os seus frutos
para que, também por causa deles, ela pareça desejável, e para que não nos repreendam aqueles
que talvez julguem que falamos de qualquer amizade. Embora existam aqueles que julgam que
a amizade deva ser desejada apenas pela utilidade, para alguns ela deve ser desejada por si só
e para outros deve ser desejada tanto por si, como pela utilidade. Quais estão mais com a
verdade, deve ser considerado em outro lugar.
Questão 32. Se alguém compreende alguma coisa mais do que outro e, dessa forma, a
compreensão de uma mesma coisa avança infinitamente
[Traduzida por Rafael Barberino]
Quem quer que compreenda alguma coisa de um modo diferente do que a coisa é, se
engana. E todos os que se enganam, naquilo em que se enganam, não compreendem. Portanto,
quem quer que compreenda alguma coisa de um modo diferente do que ela é, não a
compreende. Logo, algo não pode ser compreendido senão como é. Nós compreendemos algo
como ele é, assim como compreender algo não como ele é, é o mesmo que nada compreender.
Por isso, não se deve duvidar que haja a compreensão perfeita, da qual não é possível outra
melhor, e, portanto, a compreensão de uma coisa qualquer não avança infinitamente, nem pode
alguém compreendê-la mais que outro.
Questão 33. Sobre o medo
[Traduzida por Roberto Pignatari]
Não há dúvida de que não existe outra causa para o medo, senão aquilo que amamos-
ou de perdê-lo se já o obtivemos, ou de não o alcançar se o esperamos. Assim, qualquer um
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
que tenha amado o próprio destemor, e o tenha alcançado, que medo terá de perdê-lo? De fato,
temos medo de perder muitas coisas que amamos e possuímos, daí que as preservamos com
medo. O destemor, porém, nada o poderá preservar tendo medo. Segue-se então que qualquer
um que ame o destemor, ainda não o tendo, mas esperando tê-lo, não convém que tenha medo
de não o alcançar. Pois tal medo nada mais é que temer o próprio medo. Além disso, todo medo
foge de algo, mas nada foge de si mesmo. Portanto, não se teme o medo. Mas se alguém julga
não ser correto dizer que o medo teme algo quando, antes, a alma teme por meio do próprio
medo, atente para isto que é simples de se entender: não existe medo algum, senão de um mal
futuro e iminente. Mas é necessário que quem tem medo, fuja de algo. Segue-se então que é
um completo absurdo que alguém tenha medo de ter medo, posto que, fugindo, teria aquilo
mesmo de que foge. Pois, de fato, não se tem medo senão de que ocorra algum mal, e ter medo
de que ocorra o medo, outra coisa não é senão aceitar precisamente o que se rejeita. Se isso é
contraditório, e de fato é, aquele que não ama outra coisa que o destemor, por isso não tem
medo de modo algum. Portanto, ninguém poderá amar apenas isso e não o obter. Mas se apenas
isso deve ser amado, é outra questão. Além disso, a quem o medo não desanima, tampouco a
cobiça devasta, nem a enfermidade dilacera, menos ainda agita uma vã e tresloucada alegria.
De fato, se cobiçar, sendo a cobiça nada mais do que o amor pelas coisas passageiras, é
necessário que tenha medo ou de perdê-las quando as tenha conseguido, ou de não as alcançar.
Mas não tem medo: logo não cobiça. Igualmente, quando a alma se encontra angustiada pelas
dores, também necessariamente está tomada pelo medo, visto que a angústia diz respeito aos
males presentes, o medo, aos iminentes. Mas não há medo: logo, também não há angústia.
Igualmente, quando alguém está alegre em vão, está alegre por essas coisas que pode vir a
perder, pelo que necessariamente terá medo de perdê-las. Mas de modo algum tem medo:
portanto de modo algum se alegra em vão.
Questão 34. Se não se deve amar outra coisa senão a ausência do medo.
[Traduzida por Roberto Pignatari]
Se o destemor é um vício, não deve ser amado. Mas ninguém que seja completamente
feliz tem medo, e ninguém completamente feliz está no vício. Logo, o destemor não é um vício.
Por outro lado, a audácia é um vício. Logo, nem todo destemido é audacioso, embora todo
audacioso seja destemido. Igualmente, todo cadáver não tem medo. Por isso, como a ausência
de medo é comum ao completamente feliz, ao audacioso e ao cadáver (o completamente feliz,
porém, em razão da tranquilidade da alma; o audacioso, em função da temeridade; e o cadáver,
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
por carecer de todo sentido), não devemos nem deixar de amar o destemor, visto que queremos
ser felizes, nem amar apenas a ele, posto que não queremos ser audaciosos ou cadáveres.
Questão 35. O que deve ser amado
[Traduzida por André Scholz e Eliakim Oliveira]
Visto que tudo que não vive não teme, nem ninguém nos persuadirá de que se deve
carecer de vida para que também possamos carecer de medo, deve-se amar viver sem medo.
Mas, novamente, como uma vida que carece de medo, quando também carece de
inteligência, não é desejável, deve-se amar viver sem medo e com inteligência. Somente isso
deveria ser amado ou também deve ser amado o próprio amor? Sim, pois sem este, aqueles
não são amados. Mas se é por outras coisas que devem ser amadas que o amor é amado, não
se diz propriamente que ele é amado. Pois amar não é senão desejar uma coisa por ela
mesma. Então o amor deve ser amado por si mesmo, quando seria uma indubitável miséria a
falta daquilo que se ama? Além disso, uma vez que o amor é movimento, e não há movimento
senão em direção a algo, quando buscamos aquilo que deve ser amado, buscamos o que é
aquilo para o qual é preciso nos movermos. Assim, se o amor deve ser amado, é certo que
nem todo amor deve ser amado. Com efeito, há também um amor torpe, pelo qual a alma
persegue as coisas inferiores a ela mesma, e que se chama mais propriamente cobiça, a saber,
a raiz de todos os males10. E assim não deve ser amado aquilo que pode ser tomado daquele
que ama e desfruta.
E o amor de que deve ser amado senão o daquilo que não pode faltar enquanto se
ama? Isso, porém, é aquilo cuja posse em nada difere do conhecimento. Com efeito, possuir
o ouro e tudo o que é corpóreo não é o mesmo que conhecê-los, e assim não devem ser
amados. E como algo pode ser amado sem ser possuído, não apenas entre as coisas que não
devem ser amadas, como qualquer corpo belo, mas também entre aquelas que devem ser
amadas, como a vida feliz; e, inversamente, pode-se possuir algo sem amá-lo, como os
grilhões; com razão se pergunta se alguém, ao possuir (isto é: conhecer) aquilo cuja posse em
nada difere do conhecimento, possa não o amar. Mas como vemos alguns que, por exemplo,
estudam os números, não por outra coisa senão para ficarem ricos ou serem estimados pelos
10 Ver 1 Tm, 6-10; Comentário ao Salmo 118, 11-6
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
homens por essa disciplina, que, uma vez aprendida, encaminham ao mesmo fim que se
propuseram ao aprendê-la, e também possuir uma disciplina não é outra coisa que conhecê-
la, pode acontecer que alguém possua sem amar algo cuja posse não difere do conhecimento.
Embora ninguém possa possuir ou conhecer perfeitamente um bem que não é amado. Com
efeito, quem pode conhecer quão grande é um bem de que não frui? Mas não frui se não
ama; portanto, não possui o que deve ser amado quem não ama, embora possa ama-lo quem
não o possui. Portanto, ninguém conhece a vida feliz e é miserável porque, se deve ser amada
como ela é, conhecê-la é o mesmo que a possuir.
Sendo assim, o que é viver com felicidade senão, conhecendo algo eterno, possuí-lo?
Pois o eterno é o único no qual se confia com razão que não pode ser afastado daquele que
o ama; e é aquilo mesmo cuja posse em nada difere do conhecimento. De fato, o eterno é o
mais valioso entre todas as coisas, e por isso não o podemos possuir senão naquilo em que
somos mais valiosos, isto é, na mente. Mas, o que é possuído pela mente, é possuído
conhecendo; e nenhum bem é conhecido perfeitamente se não é amado perfeitamente. E
como a mente não pode conhecer sozinha, também não pode amar sozinha. Pois o amor é
um apetite, e vemos ser também inerente a outras partes da alma o apetite que, se consentir
com a mente e a razão, em tal paz e tranquilidade dará espaço para a mente contemplar o
que é eterno. Logo, a alma deve amar também com as suas outras partes esta coisa tão
grande que a mente deve conhecer. E porque o amado necessariamente afeta de si o amante,
o amado que é eterno afeta de eternidade a alma. E por essa razão a única vida feliz é aquela
que é eterna. Mas qual eterno pode afetar de eternidade a alma senão Deus?
Mas o amor das coisas a serem amadas é melhor chamado caridade ou dileção. Por
isso, deve ser considerado com toda força do pensamento o saudabilíssimo preceito: “ama o
senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua mente”11, e o que
disse o Senhor Jesus: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, a ti, único Deus verdadeiro e a
quem enviaste, Jesus Cristo” 12.
Questão 36.
Como alimentar a caridade
11 Mt, 22,37. 12 Jo, 17,3
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
[Luiz Marcos, Luiz Fernando, Rodrigo Sote]
Chamo caridade aquela pela qual é amado aquilo que em relação ao próprio amante
não deve ser menosprezado, isto é, o que é eterno e o que pode amar o próprio eterno. Amando-
se, portanto, Deus e a alma diz-se propriamente caridade puríssima e perfeita, quando não se
ama nada mais; costuma-se também chamá-la dileção. Mas, sendo Deus mais amado do que
a alma, de tal modo que o homem prefira ser dele do que de si, então nos ocupamos verdadeira
e sumamente da alma e, por consequência, do corpo, sem nos preocuparmos com qualquer
apetite inquieto, mas somente aceitando o que estiver disponível e for oferecido.
Porém, o que envenena a caridade é a esperança de conseguir ou conservar o que é
temporal; o que a alimenta é a diminuição da concupiscência; a sua perfeição, nenhuma
concupiscência. O sinal de seu progresso é a diminuição do medo; o sinal de sua perfeição é a
ausência do medo, porque a raiz de todos os males é a concupiscência; e a dileção perfeita
expulsa o medo. Portanto quem quer alimentá-la, procure diminuir as concupiscências. Ora, a
concupiscência é o amor de conseguir ou manter o que é temporal. O início de sua diminuição
é temer a Deus, o único a quem não se pode temer sem amor. Com efeito, tende-se para a
sabedoria e nada é mais verdadeiro do que aquilo que foi dito: O início da sabedoria é o temor
do Senhor. De fato, não há ninguém que não fuja da dor mais do que deseje o prazer, tanto que
vemos até animais enormes se absterem dos maiores prazeres por medo das dores; e quando
isso se torna costumeiro neles, dizemos que são domados e mansos. Por isso, uma vez que o
homem é dotado de razão - que, quando serve ao prazer por uma perversão miserável, sugere,
para que os homens não tenham medo, que é possível esconder o que foi cometido, e elabora
as falácias mais astutas para encobrir os pecados ocultos -, disso resulta que são mais
dificilmente domados do que as feras os homens aos quais a beleza da virtude ainda não deleita,
a não ser que sejam afastados do pecado pelos castigos, que com a máxima verdade são preditos
por homens santos e divinos, e consintam em que não é possível esconder de Deus o que
escondem dos homens. Mas para que Deus seja temido, deve-se persuadir de que todas as
coisas são regidas pela providência divina, não tanto por razões – as quais quem pode penetrar,
pode já perceber também a beleza da virtude –, quanto por exemplos, sejam recentes, se houver,
sejam da história, e principalmente daquela que, ora no Antigo, ora no Novo Testamento,
recebe por obra da mesma providência divina a excelentíssima autoridade da religião. E deve-
se tratar, ao mesmo tempo, tanto dos castigos dos pecados, como dos prêmios das ações retas.
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
Mas quando algum hábito de não pecar nos convence que é fácil o que se considerava
oneroso, a doçura da piedade começa a ser saboreada, e a beleza da virtude a ser valorizada, de
maneira que a liberdade da caridade prevaleça sobre a servidão do medo. Então, deve-se agora
persuadir os fiéis, antes dos sacramentos de regeneração, de que é necessário que se preocupem
mais com o que distingue os dois homens, o velho e o novo, o exterior e o interior, o terreno e
o celeste, isto é, entre aquele que escolhe os bens carnais e temporais e o que escolhe os
espirituais e eternos, e se deve admoestá-los para que não esperem de Deus benefícios
perecíveis e transitórios, de que podem abundar até os homens ímprobos, mas sim os estáveis
e sempiternos, para obter os quais deve-se desprezar profundamente todas as coisas
consideradas boas e más neste mundo. Aqui se deve propor o exemplo único e eminentíssimo
do homem senhor, que depois de mostrar com tantos milagres tamanho poder sobre as coisas,
desprezou também aquelas que os ignorantes consideram grandes bens e suportou aquelas que
consideram grandes males13. Para que alguém não ouse, quanto mais o honra, tanto menos
aderir a esses costumes e disciplina, deve-se mostrar que não se deve perder a esperança neles,
tanto pelas promessas e exortações dele, quanto pela multidão de imitadores, apóstolos,
mártires e santos inumeráveis.
Mas, onde foram superados os atrativos dos prazeres carnais, é preciso ter cuidado para
que não se introduza em seu lugar a cupidez de agradar aos homens, seja por fatos admiráveis,
seja pela difícil continência ou paciência, seja por liberalidade, seja em nome da ciência ou da
eloquência. Neste gênero está também a cupidez dos cargos. Contra todas essas coisas se
proclame o que foi escrito sobre o louvor da caridade e sobre a futilidade do orgulho e se ensine
o quanto é preciso envergonhar-se de querer agradar aqueles a quem não se quer imitar. Pois,
ou não são bons e não é grande coisa ser louvado pelos maus, ou são bons e é preciso imitá-
los. Mas os que são bons o são pela virtude; e a virtude não deseja o que está em poder dos
outros homens. Logo, quem imita os bons não deseja o louvor de ninguém; quem imita os maus
não é digno de louvor. Se, contudo, queres agradar aos homens para ajuda-los a amar Deus, já
não desejas isso, mas outra coisa. Mas quem deseja agradar tem ainda necessariamente medo,
primeiro, de ser contado pelo Senhor entre os hipócritas ao pecar ocultamente, e depois, se
deseja agradar pelas boas obras, ao procurar essa recompensa, de perder aquilo que Deus
haverá de dar.
Mas, superada essa cupidez, deve ser evitada a soberba. Com efeito, é difícil que se
digne associar-se aos homens quem já não deseja agrada-los e se considera cheio de virtude.
13 Ver conf. X, xxxi, 45; 1Cor 8,8; Fl 4,11
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
Desse modo, ainda há necessariamente medo de que lhe seja tirado aquilo que acredita possuir,
e que seja jogado nas trevas exteriores, com mãos e pés atados. Por isso, o medo de Deus não
somente começa, mas também completa a sabedoria,14 a saber, naquele que ama sumamente
a Deus e ao próximo como a si mesmo. Mas os perigos e dificuldades que devem ser temidos
nesse caminho, e os remédios que seria necessário utilizar, é outra questão.
Questão 37. Sobre o sempre nascido
[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]
Sempre é melhor o que nasceu do que aquele que nasce sempre, porque quem nasce
sempre ainda não nasceu, e nunca nasceu nem terá nascido, se nasce sempre. Pois uma coisa é
nascer e outra é ter nascido. E por isso nunca é filho se nunca nasceu. Mas como é filho porque
nasceu, também é sempre filho. Logo, sempre nasceu.
Questão 38. A conformação da alma
[Traduzida por Julia Maia e Julia Molinari]
Como uma coisa é a natureza, outra a arte, outra o uso, e se entende que elas estão em uma
única alma sem diversidade de substância, e, do mesmo modo, uma coisa é a índole, outra a
virtude, outra a serenidade, similarmente de uma e mesma substância; e como a alma é de
outra substância que não Deus, embora feita por ele - ora, o próprio Deus é aquela Santíssima
Trindade que muitos conhecem pelo nome, mas poucos realmente -, deve-se investigar com a
máxima atenção o que disse o senhor Jesus: ninguém vem a mim, senão aquele a quem o Pai
tiver atraído15; e: ninguém vem ao pai senão por mim16; e: ele vos conduzirá a toda
verdade17.
Questão 39. Dos alimentos
[Traduzida por André Scholz, Julia Maia e Julia Molinari]
14 Ver doctr. chr. II, vii, 9-11. 15 Jo 6, 44. Ninguém pode vir a mim se o Pai, que me envio, não o atrair. [Bíblia de Jerusalém] 16 Jo14, 6. Diz-lhe Jesus: “eu sou o Caminho, a Verdade, e a Vida. Ninguém vem ao pai a não ser por mim. [Bíblia de Jerusalém] 17 Jo 16, 13. Quando vier o Espírito da verdade, ele vos guiará na verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras. [Bíblia de Jerusalém]
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
O que é que recebe uma coisa e a transforma tal como o animal a comida? O que é
recebido e transformado tal como a mesma comida? O que é recebido e não é transformado tal
como a luz pelos olhos e o som pelas orelhas? Mas estes a alma recebe mediante o corpo. Ora,
o que é que a recebe mediante si mesma e transforma em si tal como outra alma que, acolhendo
em amizade, faz semelhante a si? E o que é que recebe mediante si mesma e não transforma tal
como a verdade? É por isso que se deve conhecer o que foi dito a Pedro: “mata e come”; e
como no Evangelho: “E a vida era a luz dos homens”.
Questão 40. Dado que a natureza das almas é uma, de onde vêm as vontades diversas dos
homens?
[Traduzida por André Scholz, Julia Maia e Julia Molinari]
Pelas diversas representações é diverso o apetite das almas; pelo diverso apetite é
diverso o êxito a ser alcançado; pelo diverso êxito é diverso o hábito; pelo diverso hábito
diversa é a vontade. Porém, a ordem das coisas -- oculta, de fato, mas certa sob a divina
providência - torna diversas as representações. Assim, não se deve por isso julgar que as
naturezas das almas sejam diversas porque as vontades são diversas; uma vez que até mesmo
a vontade de uma única alma varia pela diversidade dos momentos, pois em um momento
deseja ser rica, em outro momento despreza a riqueza e deseja ser sábia. E no próprio apetite
das coisas temporais, em um momento agrada ao homem o comércio; em outro, a vida militar.
Questão 41. Se Deus fez tudo, por que não fez tudo igual?
[Traduzida por André Scholz, Julia Maia e Julia Molinari]
Porque não seria tudo, se fosse igual. Pois não haveria multiplicidade de gêneros de
coisas, pelos quais é constituída a universalidade, contendo criaturas ordenadas – primeiras,
segundas e assim por diante até as últimas. E isso é o que se chama ‘tudo’.
Questão 42. De que modo a sabedoria de Deus, o senhor Jesus, esteve tanto no útero
materno quanto nos céus
[Traduzida por Aline Dainez, Eliakim Oliveira e Paulo Benjoim]
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Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
Do mesmo modo que a palavra humana, ainda que muitos a ouçam, cada um a ouve por
inteiro.
Questão 43. Por que o Filho de Deus aparece como homem e o Espírito Santo como
pomba?
[Traduzida por Aline Dainez, Eliakim Oliveira, Paulo Benjoim]
Porque aquele veio para demonstrar aos homens o exemplo a ser vivido, este apareceu
para significar o próprio dom a que se chega vivendo bem. Ora, ambos se fizeram visíveis em
prol dos carnais, que devem ser elevados, pelos degraus dos sacramentos, das coisas percebidas
pelos olhos corporais àquelas que são entendidas pela mente. Pois também as palavras soam e
passam, enquanto não passa aquilo que elas significam, quando ao falar, expõem algo divino e
eterno.
Retratações I18
Aurélio Agostinho
16. Oitenta e três questões diversas, livro único.
Há, ainda, entre as obras que escrevemos, uma que, apesar de extensa, é considerada um único
livro, cujo título é Oitenta e três questões diversas. Como estivessem espalhadas por muitas
folhinhas – visto que foram ditadas sem nenhuma ordem estabelecida desde o tempo inicial da
minha conversão, depois que viemos a África, à medida que era interrogado pelos irmãos
quando me viam desatarefado – ordenei, já bispo, que fossem reunidas e delas fosse feito um
único livro, atribuindo-lhe números, para que, quem quiser lê-las, facilmente as encontre.
Retractationes IX
Nona. Se a verdade pode ser apreendida pelos sentidos do corpo. Na qual o que eu disse: Tudo
o que o sentido corporal atinge, que também é dito sensível, muda sem interrupção no tempo,
de certo, não é verdade indubitável no que se refere aos corpos incorruptíveis da ressurreição;
18 AUGUSTINUS, Retractationum libri II. Ed. A. Mutzenbecher. CCSL, 57. Turnholt, Brepols, 1984.
25
Tradução | GELM, 2º Semestre de 2017.
mas agora, nenhum sentido do nosso corpo a atinge, a não ser talvez que algo assim seja
revelado por inspiração divina.
Retractationes XII
A décima segunda, cujo título é Sentença de um Sábio, não é minha. Mas porque, por meu
intermédio, se tornou conhecida a alguns irmãos, que então recolhiam de mim estas questões
de modo muitíssimo diligente, e, gostaram delas, quiseram incluí-la entre as nossas questões.
Mas é de um certo Fonteio Cartaginense em Sobre a purificação da mente para ver Deus, que
escreveu como pagão, mas morreu batizado cristão.
Retratactiones XXVI
A vigésima quarta é O pecado e a ação reta estão no livre arbítrio da vontade? Que é assim é
absolutamente verdadeiro; mas a graça divina o libera para que seja livre para agir retamente.
Retratactiones XXXVI
A trigésima sexta é: Como alimentar a caridade. Onde eu disse: Amando-se, portanto, Deus e
a alma diz-se propriamente caridade puríssima e perfeita, quando não se ama nada mais. Se
isso fosse verdade, por que o Apóstolo diria: ninguém jamais odeie sua carne, e por isso exorta
a amar as esposas? Mas por isso foi dito: chama-se propriamente dileção, porque é amada uma
carne, mas não propriamente, e sim pela alma a qual se submete para uso. De fato, mesmo que
pareça ser amada por si mesma, quando não queremos que seja disforme, a sua beleza deve ser
referida a outra coisa, ou seja, àquilo de que deriva tudo o que é belo.
Retratactiones XXXV
A trigésima quinta: O que deve ser amado. O que foi dito: "Deve ser amado aquilo cuja posse
em nada difere do conhecimento", não o aprovo inteiramente. Porque possuem Deus aqueles a
quem se diz: Não sabeis que vós sois o templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em
vós? e não o conheciam, ou não o conheciam como deve ser conhecido. Igualmente, quando
disse: "Ninguém conhece a vida feliz e é miserável", foi dito "conhece" no sentido de como
deve ser conhecida. Com efeito, quem a ignora por completo, ao menos entre os que usam a
razão, se sabem que querem ser felizes?