oficina de texto: inovando no domínio da narrativa

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 85-98, 2007 85 OFICINA DE TEXTO: INOVANDO NO DOMÍNIO DA NARRATIVA 1 Sebastião Votre, UFF RESUMO O objetivo deste artigo é descrever o processo de produção textual formulado e consolidado no perí- odo de 2005 a 2007, na UFF, com turmas de cine- ma, publicidade e arquivologia, do primeiro semes- tre universitário. Nessa descrição, avaliamos as es- tratégias de produção de leitura crítica e de redação monitorada dos participantes. Com base nos resul- tados e no depoimento dos alunos, formulamos uma proposta de oficina antenada nos desafios mais pre- mentes da formação do redator acadêmico. O corpus, para cada semestre, consistiu de obra de prestígio na literatura brasileira (O cortiço, Grande sertão: veredas, As meninas, e Feliz ano novo). Os contos produzidos em 2005 e 2006 também foram utilizados. O méto- do de trabalho combina leitura crítica de textos teó- ricos e literários, para formar o espírito do leitor acadêmico, com exercícios de produção de sinopses e de textos desenvolvidos, em que se combinam ex- periências pessoais e relatos ficcionais. A fundamen- tação teórica para a oficina ancora-se na proposta de recontextualização pedagógica de Basil Bernstein. Os resultados confirmam a validade da proposta e sugerem seu refinamento, com vistas a otimizar o desempenho dos alunos. PALAVRAS-CHAVE: Oficina; sinopse; escrita aca- dêmica; experiência pessoal; ficção. 1 As alunas Mariana Nascimento, Gabriela Porfírio e Marcela Saraiva atuaram como monitoras nas oficinas de 2005 e 2006. Em 2007, foi decisiva a participação de Alessandra Domingues e Lucas Teixeira.

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 85-98, 2007 85

OFICINA DE TEXTO: INOVANDO NO DOMÍNIO DANARRATIVA1

Sebastião Votre, UFF

RESUMO

O objetivo deste artigo é descrever o processo deprodução textual formulado e consolidado no perí-odo de 2005 a 2007, na UFF, com turmas de cine-ma, publicidade e arquivologia, do primeiro semes-tre universitário. Nessa descrição, avaliamos as es-tratégias de produção de leitura crítica e de redaçãomonitorada dos participantes. Com base nos resul-tados e no depoimento dos alunos, formulamos umaproposta de oficina antenada nos desafios mais pre-mentes da formação do redator acadêmico. O corpus,para cada semestre, consistiu de obra de prestígiona literatura brasileira (O cortiço, Grande sertão: veredas,As meninas, e Feliz ano novo). Os contos produzidosem 2005 e 2006 também foram utilizados. O méto-do de trabalho combina leitura crítica de textos teó-ricos e literários, para formar o espírito do leitoracadêmico, com exercícios de produção de sinopsese de textos desenvolvidos, em que se combinam ex-periências pessoais e relatos ficcionais. A fundamen-tação teórica para a oficina ancora-se na propostade recontextualização pedagógica de Basil Bernstein.Os resultados confirmam a validade da proposta esugerem seu refinamento, com vistas a otimizar odesempenho dos alunos.

PALAVRAS-CHAVE: Oficina; sinopse; escrita aca-dêmica; experiência pessoal; ficção.

1 As alunas Mariana Nascimento, Gabriela Porfírio e Marcela Saraiva atuaram comomonitoras nas oficinas de 2005 e 2006. Em 2007, foi decisiva a participação de AlessandraDomingues e Lucas Teixeira.

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Introdução2

Tomamos como pressuposto que nos construímos como signoslingüísticos reflexivos, construídos na interação, e o que nos fazhumanos são as múltiplas linguagens, vinculadas entre si e com a

linguagem verbal articulada. Como corpos sujeitos falantes, somos agen-tes de nossa própria trajetória no tempo-espaço, somos marcados por gê-nero, sinalizamos um tempo, uma idade, uma etnia, uma cultura, umalíngua, um trabalho e um território. Estamos sujeitos às pressões de mer-cado e dinheiro da sociedade de espetáculo, e nesse cenário somos mais,ou menos capazes de reelaboração e reflexão crítica.

Nesse contexto relativamente complexo nós nos singularizamos poridentidades que imprimimos em nós mesmos, pelo trabalho que fazemos epelo local donde viemos e onde vivemos. Nossas identidades são múltiplas,resultantes de nossas próprias ações e decisões de pertencimento, no esfor-ço de nos adequarmos às múltiplas situações concretas nos espaços quevivenciamos (família, escola, vizinhança, trabalho, lazer, igreja, partido etc).

Para nos adaptarmos aos novos desafios, adquirimos novas lingua-gens, em nova recontextualização pedagógica, em que a narrativa identitáriaassume papel central. Propomos uma nova sociedade de informação e co-nhecimento, composta de cidadãos agentes e reflexivos, em que o redigir éinstrumental e fundador.

O início do experimento

O projeto de oficina aqui descrito e discutido resultou do desafio delecionar português para turmas que vinham dos cursos de comunicaçãosocial, com distribuição bipolar. De um lado, havia alunos de cinema,jornalismo e publicidade, que entravam na Universidade pensando que jásabiam escrever. Tinham acabado de triunfar num vestibular com altarelação de candidatos por vaga e a redação fora determinante nessa vitó-ria. De outro, alguns alunos de arquivologia se apresentavam com proble-mas de letramento. Era preciso trabalhar, com esses dois grupos, de modoa ajustar seus projetos, redimensionar seus imaginários e ensiná-los a pro-duzir textos coesos, coerentes, verossímeis e convincentes.

2 Na versão preliminar da reflexão aqui apresentada, contei com a contribuição da profes-sora Ida Alves e do professor Acácio Luiz Santos.

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Nas oficinas de texto para as turmas de Cinema, Publicidade eArquivologia do 1o período da Universidade Federal Fluminense, a par-tir de 2005, optamos por uma proposta de domínio da escrita técnica apartir de relatos de experiência pessoal, para proporcionar aos alunosuma melhoria de seu desempenho na escrita através da narrativa. Reto-mávamos a experiência de Labov, nos subúrbios de Nova Iorque, em quecomprovou que os membros das gangues de rua eram eficientes narrado-res de seu próprio cotidiano.

No biênio 2005 e 2006, o trabalho foi desenvolvido com atençãopara leitura de crônicas, contos e romance, seguida de discussão, escrita ereescrita de crônica, conto e projeto de texto maior. Os alunos familiari-zaram-se com textos de autores consagrados, que foram lidos e analisadosem sala. Foram então orientados para elaborar sua própria crônica, quedesenvolvia para conto, e que desenhava como projeto de futuro textomaior, sempre tomando como base sua experiência pessoal ou a experi-ência de seus circunstantes. Os professores envolvidos no projeto partici-param de cada fase, construindo seus próprios textos e compartilhando-os com os alunos.

A proposta de ensinar a escrita acadêmica através da leitura de tex-tos de autores reconhecidos, seguida de sugestões de alterações ‘estilísticas’nos textos produzidos pelos próprios alunos, enfatizava o enfoque comu-nicativo do ensino da língua e valorizava as experiências individuais. Opropósito era facilitar e coordenar o processo de utilização da língua paraexpressão de valores, representações, sentimentos e atitudes. A inovaçãoconsistia no enfoque sobre a expressão da pessoalidade. A hipótese era que aoportunidade de explorar e expor assuntos da esfera individual emicrossocial com circunstância e cuidado, com atenção ao modo de nar-rar contribuiria para o crescimento acadêmico e para a autonomia dosestudantes enquanto indivíduos.

Apoiamo-nos em Os lugares da exclusão social: um dispositivo de diferenciaçãopedagógica, de Stoer e seus colegas, em que a construção da identidade “éum processo no qual a narração e a narratividade assumem um papelcentral”3. A afirmação das diferenças a partir de determinadas escolhas de

3 STOER, Stephen R., MAGALHÃES, António M.; RODRIGUES, David. Os lugares daexclusão social: um dispositivo de diferenciação pedagógica. São Paulo: Cortez, 2004. p. 97.

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estilo de vida (e de seu relato) emerge como um importante re-significadorda cidadania. Apostávamos então que, na oficina, a oportunidade ofereci-da aos estudantes de se posicionarem através de suas próprias narrativas éuma forma de propiciar que eles reivindiquem um novo tipo de cidada-nia, que deve ser pensada através das diferenças e não das característicascomuns. Esta é uma maneira de fazer com que assumamos as diferenças“como sujeitos de um discurso sobre si próprios” 4.

Nesse modelo de oficina, a textualização se faz sobre a própria expe-riência e vivência, sobre os próprios sonhos e fantasias, sobre os medos,frustrações, revoltas e propostas. O projeto enquadra-se na perspectivada recontextualização pedagógica, proposta pelo pedagogo inglês BasilBernstein, nos anos 1990. Segundo o autor, a escola que transforma é aque oferece aos alunos oportunidade para que se reinventem, contexto econdições para que expressem suas subjetividades, manifestem sua re-beldia ou diferença, evidenciem, sem repressão ou restrição, seupertencimento a novas ontologias sociais5.

O trabalho do biênio foi voltado para produção individual e emgrupo, em oficinas, para produção de crônica, que se transformaria emconto, e que poderia vir a tornar-se sinopse ampliada de obra maior. (Vá-rios hoje nos procuram, para dizer que estão levando adiante seus proje-tos de escrita). Solicitou-se aos alunos que trouxessem exemplares de crô-nica, conto e romance que gostariam de ler, discutir e ter como exemplopara a própria produção. Selecionaram-se então, em conjunto, crônicas,contos e romance, de autores brasileiros, que foram lidos e discutidos emsala, de modo a se transformarem em ponto de referência e exemplo deescrita para todos.

Entre as crônicas selecionadas, constavam: “O despertar da monta-nha” de Paulo Mendes Campos, “Atitude suspeita” de Luís FernandoVeríssimo e “Por não estarem distraídos” de Clarice Lispector. No que

4 Idem, p. 83.5 Conforme pondera o professor Acácio (c. p.), a adoção dessa perspectiva supõe manter-

mos “um mínimo de operacionalidade ética, para evitar que identidades “pedófilas”,“estripadoras”, “sádicas” ou “homicidas seriais” sejam sentidas e assumidas como ‘natu-rais’, apenas ‘diferentes’ das da maioria. Deve sempre ser enfatizado que o direitoà identidade é correlato ao dever de respeitar a escolha e liberdade individual do outro,e de aceitar o princípio da reciprocidade”.

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diz respeito aos contos: “O Alienista” de Machado de Assis e “Baleia” deGraciliano Ramos. Selecionamos o romance As meninas, de Lygia FagundesTelles, que acabava de ganhar o prêmio Camões. A expectativa era que ostextos produzidos pelos alunos viessem a ter ressonância com o estilo e asidéias dos textos lidos. Para dar conta desse grau de ressonância, desen-volveu-se um trabalho intermediário, de leitura crítica e síntese do texto-fonte, com atenção para: variação de estilo entre os diferentes persona-gens; para as técnicas de diálogo; para os modos de expressar o fluxo deconsciência dos personagens e do autor; bem como para o vocabuláriotípico da época em que o texto foi escrito, para o imaginário da época,com atenção para gênero, etnia, nível sócio-econômico dos personagens eoutras variáveis sócio-culturais que se mostrassem relevantes.

No primeiro módulo desse biênio os alunos foram orientados paraa produção de uma sinopse estendida e detalhada de crônica. Essa sinopse,verdadeiro projeto da crônica, sintetizava o resultado de um planejamen-to exaustivo da crônica, no sentido de que deveria conter todas as idéiasque seriam desenvolvidas no texto, e apenas essas idéias. Cada palavra dasinopse era cuidadosamente controlada. A ordenação das frases na sinop-se correspondia à ordenação dos períodos e parágrafos da crônica. Aimplementação da sinopse, voltada para um aspecto do seu cotidiano ousobre experiência pessoal, resultava na redação da crônica, que passava aser lida, discutida e reformulada, tendo como referência e modelo os cro-nistas que tinham sido lidos e estudados. Essa orientação resultou em crô-nicas legíveis, ordenadas e transparentes, dos alunos de jornalismo, cine-ma, publicidade e arquivologia.

Produzida a crônica, como primeiro produto da oficina, os alunoseram convidados a detalhar e complexificar aspectos específicos de seu re-lato, em nova sinopse, e a elaborar um conto, em que estendiam e desen-volviam suas idéias e expressões. Esse conto, por sua vez, era lido, comen-tado, criticado e reescrito. Estava pronto o segundo produto. Nos debatesem pequenos e no grande grupo, ofereciam-se sugestões para seu desenvol-vimento, na forma de obra maior. O trabalho final do curso, que tomavacomo referência o conto, foi uma sinopse ampliada do mesmo, contendo oprojeto de obra maior e um piloto de desenvolvimento da mesma, com umou mais capítulos, quadros ou partes. Essa obra podia ser de qualquer natu-reza: novela, romance, teatro, ópera, poema, musical, programa radiofônico,

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documentário, micro-série, autobiografia, coletânea de entrevistas de elite,enfim, tudo que se pudesse configurar como produção textual.

A inspiração para esse tipo de progressão em extensão e complexida-de dos textos, mantendo-se a mesma temática, provinha da leitura de MárioPalmério, que escolhemos como referência para um dos cursos e que as-sim atuou em sua primeira obra. Nos seus termos, “Vila dos confins nasceurelatório, cresceu crônica e acabou romance...”.

Conforme já frisamos, os produtos nunca eram considerados acaba-dos. Assim, a versão preliminar da crônica, do conto e da sinopse da obramaior foi submetida a trocas sistemáticas, com os pares, e com o profes-sor e monitora, com vistas a colher sugestões de melhoria. No final docurso, reunimos os contos em um Caderno, organizado e diagramadopelos próprios alunos, que contém o nome dos autores, as sinopses doscontos e os textos. Em seminário final, cada participante escolheu umapágina de sua produção, para leitura em voz alta, na forma de jogral.

A escolha dos autores merece um comentário crítico: o romanceGrande Sertão:Veredas, de Guimarães Rosa, embora excelente para oficina,pela novidade que representa quanto a estilo e aprofundamento datemática, revelou-se longo demais para se trabalhado de forma sistemáti-ca como modelo para escrita de narrativa pessoal. O cortiço, de AluízioAzevedo, por sua vez, não empolgou os alunos, que o tinham lido nograu médio. Dois romances estrangeiros, O nome da rosa e O caçador de pipas,ambos excelentes, também não tiveram dos alunos a receptividade queeu esperava, em vista do contexto sócio-cultural, estranho a eles. O ro-mance Vila dos Confins, de Mário Palmério, que motivava a progressão decrônica a conto e texto maior, representou um caminho pesado demaispara um semestre. Já o romance As meninas, de Lygia Fagundes Telles,com os capítulos na forma de contos longos, orientou os trabalhos paratextos bem delineados, na forma de contos, e acabou desembocando aexperiência para livros de contos. Daí a opção por Feliz ano novo, de Ru-bem Fonseca, no último semestre de 20076.

6 Segundo Acácio, “como alternativa para estômagos menos fortes, podem ser tentadosLima Barreto, Aníbal Machado, algumas histórias de João Guimarães Rosa, e, para rir,as narrativas paródicas e satíricas de João Ubaldo Ribeiro”.

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Metodologia

A metodologia da oficina vem incorporando novas tecnologias pe-dagógicas e no momento as atividades se distribuem em dois estágios, umda leitura e análise e outro da escrita. No primeiro, da leitura, propomo-nos produzir uma espécie de análise detalhada do texto motivador. Te-mos como referência inicial a leitura crítica do capítulo VI da obra Manualde análise do discurso em ciências sociais, organizada por Lupicinio Iñiguez, comapropriação e ajuste das idéias aí apresentadas.

A essa contribuição acrescemos alguns princípios de análise, quenos orientam na abordagem dos textos: a) parte do sentido está no tex-to, parte está no autor, parte é produzida pelo leitor, no ato de ler; b) oleitor, levando em conta as condições em que o texto é escrito (lugarsocial do autor, a quem o texto é dirigido, em que circunstâncias políti-cas e sociais é produzido), infere outros sentidos além do que a superfí-cie do texto contém; c) o modo como o autor produz o texto, bemcomo os recursos retóricos nele utilizados dão conta de seus objetivosface ao leitor; d) dentre esses objetivos, constam transmitir as própriasrepresentações sobre alguma pessoa, fato ou circunstância, e sobretudoprovocar adesão do leitor a seus próprios pontos de vista.

Eis os procedimentos de análise propostos: a) leia o texto uma pri-meira vez, tendo seu objetivo de análise como ponto de referência; b) setiver uma hipótese sobre o que o texto procura dizer, tenha-a presente,como ponto de referência para a análise; c) verifique se, em seu conjunto,o texto confirma sua hipótese; d) verifique se o texto oferece indicaçõespara o teste de outras hipóteses.

Como suporte teórico para leitura, optamos por alguns princípiosda Análise crítica do discurso. Com base no capítulo VI, de Rojo, doManual de análise do discurso em ciências sociais7 (2004, p. 218 et seq.) seleciona-mos duas questões centrais: a) “como os discursos ordenam, organizam einstituem nossa interpretação dos acontecimentos e da sociedade e incor-poram, além disso, opiniões, valores e ideologias” e b) “como esse podergerador dos discursos é administrado socialmente, como os discursos são

7 Cf. IÑIGUEZ, Lucipinio (Org.). Manual de análise do discurso em Ciências Sociais. Petrópolis:Vozes, 2004.

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distribuídos socialmente, como lhes atribuímos um valor diferente nasociedade dependendo de quem os produza e onde sejam difundidos”.

Em termos polares, os discursos se distribuem em autorizados edesautorizados, legitimados e deslegitimados, dominantes e minoritários.Os conflitos de interesse entre os vários grupos se projetam sobre os dis-cursos. Compete-se para produzir, receber, circular, moldar. A regulaçãocontrola produção (no mercado lingüístico) e a recepção. Controla a cir-culação e a moldagem. Os grupos no controle – nos quais estamos inclu-ídos - impõem o uso de determinadas teorias, abordagens, idiomas, regis-tros e usos retóricos, lingüísticos e disciplinares, aos quais nem todos têmacesso.

Focalizamos, de forma específica, algumas particularidades da for-ma, que nos permitem compreender como os textos são produzidos equais são os fins que seus autores almejam alcançar. Postulamos que asestratégias de produção visam a causar impacto, salientar ou atenuar, va-lorizar ou desvalorizar algum aspecto da mensagem. Dividimo-las em trêsgrupos. No primeiro, agrupamos as estratégias sintáticas para causar im-pacto ou estranhamento em determinados segmentos do texto: repetiçãode termos ou de expressões, em seqüência direta ou com intervalo; nume-ração, ou lista de elementos da mesma natureza; ordenação singular dosconstituintes da frase, do período ou do parágrafo (ordem verbo-sujeito,topicalização, deslocamento para a esquerda, deslocamento para a direi-ta); inserção de aposto, marcado por travessão, por vírgula ou por doispontos, para comentar, explicar, especificar; inserção de orações adjetivasexplicativas, que delimitam, definem, reorientam; ordenação dos adjeti-vos, antes dos substantivos; ordenação dos advérbios, antes dos verbos oudas frases; construções comparativas, de diversas espécies.

No segundo grupo, reunimos as estratégias discursivas para destacar ouatenuar determinados aspectos do texto ou causar determinado tipo de im-pacto: formulação da informação em figura e fundo (contraste entre temposverbais, entre frases principais e subordinadas adverbiais, entre verbosflexionados e frases reduzidas de gerúndio e particípio, entre seqüências deações e descrições); uso de recursos para chamar a atenção do leitor paradeterminado personagem (uso de você genérico, de verbos de primeira pes-soa, uso de eu, para mim); uso de advérbios e expressões adverbiaisavaliativas (será que, talvez, sinceramente, infelizmente, francamente).

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Por fim, dispomos das estratégias léxico-semânticas para criar oudestacar representação negativa ou positiva em algum segmento do texto:uso de substantivos, verbos, adjetivos e advérbios pejorativos ouvalorativos; nomeação de personagens, locais e objetos, com fins retóricos;utilização de recursos gráficos (itálico, maiúsculo, termo estrangeiro, paracausar estranhamento); utilização de linguagem figurada (metáfora,metonímia, personificação, comparação, alegoria).

No estágio da escrita, testamos uma inovação no monitoramento,que negociamos com os alunos. As unidades informativas, ou parágrafos,com que respondem às questões discursivas, não podem exceder a 50 pala-vras. No início do experimento, há um inevitável desconforto, com osalunos reclamando que não conseguem dizer o que querem com tão pou-cas palavras. Entretanto, após a correção do primeiro exercício de reda-ção, eles descobrem que tendem a utilizar palavras desnecessárias, de en-feite, como adjetivos vazios, advérbios de reforço redundantes e verbossinônimos.

O argumento que utilizamos, nessa fase inicial de reeducação da es-crita, associa-se à sinopse. Trabalhamos com um sentido estendido de si-nopse, que corresponde ao do resumo de texto acadêmico, com cincounidades informativas. Cada unidade pode conter mais de um período. Aprimeira unidade dá conta do objetivo, a segunda do método de produçãodo texto, com referência a quem se toma como modelo, a terceira dospersonagens envolvidos, a quarta da intriga e por fim a quinta dos resulta-dos esperados. Como cada unidade pode conter até 50 palavras, a sinopse,inteira, não ultrapassa 250 palavras. A maioria dos alunos interagiu bemcom a proposta de enxugamento e redirecionamento do fluxo verbal. Osdepoimentos ao final do curso mostram que, efetivamente, estão apren-dendo a escrever com propósito, de forma densa e responsável.

Oficina de 2007

O objetivo do curso de 2007, após a avaliação crítica do que se pro-duzira até então, foi levar os alunos a produzirem um conto, com baseem suas experiências pessoais e em sua imaginação ficcional, a partir daleitura e análise crítica de parte dos contos do livro Feliz Ano Novo, deRubem Fonseca. O trabalho de oficina teve como base atividades de pro-dução individual e o acompanhamento das análises orais, nas discussões

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em sala-de-aula. A perspectiva foi da criação de autoconfiança no proces-so de produção textual, ao longo do curso, assim como do amadureci-mento da forma de escrever.

Do ponto de vista teórico, começamos com leituras de textos sobreanálise crítica, a exemplo da resenha de Votre e Lovisolo8 sobre o Manualde Análise do discurso em ciências sociais, organizado por Iñíguez, da EditoraVozes. O foco da leitura foi o capítulo VI, sobre análise do discurso racis-ta do governo espanhol, contra os imigrantes. Também examinamos Ino-vação e responsabilidade no discurso da universidade empreendedora, de Letras de Hoje deVotre9.

A parte de leitura dos contos de Feliz ano novo começou com o contoIntestino grosso10 a que se seguiram Corações solitários, Abril, no Rio, em 1970, Agru-ras de um jovem escritor, Entrevista, Botando pra quebrar e Passeio noturno I e II. Emcada leitura, fazíamos exercício de análise crítica dos recursos de expres-são e do conteúdo dos contos. De cada conto procurávamos extrair umasinopse, como provável fonte de idéias do enredo e do estilo. Lemos,nesse modelo, a maioria dos contos do livro de Rubem Fonseca.

O ponto seguinte foi a produção individual da sinopse do conto quecada um escreveria. Cada sinopse deveria conter informações sobre obje-tivo do conto, público alvo, personagens, método de organização da nar-rativa, autor tomado como fonte de referência e impacto esperado. Cadasinopse foi avaliada, criticada pelos membros dos grupos de três ou qua-tro alunos que foram orientados para leitura crítica e sugestão de melhoria daspropostas.

Por fim, cada aluno apresentou em público sua sinopse e partiu para aescrita do conto, atento aos itens que seriam tomados como critérios paraavaliação. Os alunos aceitaram o desafio de se narrarem e reinventarem (alian-

8 VOTRE, Sebastião; LOVISOLO, Hugo. Em busca de princípios e procedimentos.Resenha de manual de análise do discurso em ciências sociais. Coordenação de Lupicinio Iñiguez.Petrópolis: Vozes, 2005. Publicado em Revista Brasileira de Ciências do Esporte, n. 28, série 3,p. 209-216, 2007.

9 VOTRE, Sebastião. Inovação e responsabilidade social no discurso da universidadeempreendora. Letras de Hoje, v. 42, n. 2, 2007,

10 Os alunos tiveram uma aula especial, com comentários sobre o processo de escrita deRuben Fonseca, oferecida por Vinícius Carvalho Pereira, bolsista IC do CNPq.

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do os recursos da ficção aos fatos que tinham selecionado). A tarefa eraproduzir contos centrados na experiência pessoal, em que se contempla,em primeiro plano, a própria experiência, a que se alia, em plano de fun-do, a ficção, no trato com as questões do cotidiano. Os contos cobremum espectro relativamente amplo dos contextos de manifestação da vidapós-adolescente.

A avaliação, com mais atenção para o processo do que para o produ-to, constava de três provas, uma das quais o texto do próprio conto. Foiacrescida de trabalhos individuais de análise e interpretação de contos deFeliz ano novo e dos Cadernos de Contos de 2005, bem como das notas deauto-avaliação.

Critérios de avaliação dos contos

Para avaliação, propomos os cinco indicadores seguintes, cada umdos quais tripartido em Excelente, Bom e Regular: 1) coesão sintática eideativa; 2) verossimilhança dos personagens em termos de característi-cas, ações, emoções e estados; 3) precisão vocabular, em termos de escolhaléxica e de adequação dos termos ao contexto; 4) qualidade do registroescrito, face à norma padrão e 5) capacidade de prender a atenção do lei-tor, densidade narrativa, concisão, leveza, fluência e outras característicasdiscursivas.

Cada aluno se atribuiu uma nota, em auto-avaliação, levando emconta os critérios acima. Após a entrega dos contos, os alunos remeteram,por e-mail, uma avaliação do curso, como um todo, em que se destaca oaumento da auto-estima, a autoconfiança para escrever e julgar, bem comoa consciência da importância da concisão. No geral, criticaram o poucotempo dedicado à produção e avaliação do conto por seus pares e peloprofessor.

Discussão

A obra escolhida, Feliz ano novo, revelou-se produtiva, um bom mode-lo, ao focalizar o cotidiano urbano, com suas mazelas, misérias e violênci-as. Mas o conjunto dos contos foi considerado agressivo, por alguns alu-nos. Entretanto, as vantagens superaram de longe as restrições, pois aidéia de trabalhar com as próprias experiências, tendo como base o realis-

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mo cruel de Fonseca, facilitou acessibilidade e acesso aos recônditos davida pessoal dos alunos e das pessoas de seu convívio, garantiu verossimi-lhança à maioria dos relatos e fidedignidade na descrição de personagens elocais. É verdade que causou constrangimentos, em alguns casos, poisnem sempre os jovens autores encontraram suporte, em casa, para narra-rem problemas de diversa natureza, que na família se experimentava. Some-se também a imaturidade de alguns, que não se consideravam adultos paraabordarem determinados tópicos, de fundo ético-moral, embora todostivessem mais de 18 anos.

Nos relatos não podemos verificar o índice de fidedignidade, poiscada pessoa era convidada a textualizar a vida humana, com garantia deque seria respeitada sua privacidade e que não se perguntaria se o relatoera real ou ficcional. Num certo sentido, todo texto da oficina é ficcional.Representa uma simbiose rica entre experiência e imaginação, com ausên-cia de riscos de perda da privacidade.

Merece comentário o esforço em tornar-se pessoa pelanarratividade, pois os alunos demonstraram aumento da autoconfiançae da auto-estima, sentiram-se mais capazes de escrever com rigor, conci-são e precisão.

Há ainda um longo caminho a percorrer para o domínio da formade expressão. Os alunos que chegam à oficina com o imaginário de queescrevem bem, e que fazem textos empolados, com vocabulário rebusca-do, repetitivo, com advérbios e adjetivos vazios, só com tratamento dechoque se dão conta de que precisam mudar. A maioria muda o estilodurante o curso, tendo como modelo um autor como Rubem Fonseca.Mas alguns resistem e persistem no estilo rebuscado. Já os alunos queentram no curso temerosos de não darem conta do recado, tendem a cres-cer em autoconfiança e segurança na redação. Em sua trajetória são maisvisíveis os pontos em que se aprimoram.

Por fim, na auto-avaliação, verificou-se uma divisão nítida de com-portamento entre os alunos, ficando de um lado os que foram mais rígi-dos nas notas que se atribuíram, enquanto outros foram mais genero-sos. Ao avaliarem o curso, os que fizeram por e-mail, responderam aocomando seguinte: “por favor, produzam um breve parágrafo, dizendoem que aspectos o curso atendeu a suas expectativas e em quais aspectos

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deve mudar, para o melhor proveito dos próximos alunos”. No geral,os alunos consideraram a experiência positiva e registraram expressõesencorajadoras, como: “o exercício de sinopse foi eficiente para poder-mos escrever a nossa, que originaria o conto”; ou “o fato de o senhorestar sempre chamando alunos diferentes a cada aula, para debater oassunto em questão, é excelente, e muito bom para todos aprenderem edividirem o conhecimento através de suas respectivas experiências”. Aaprendizagem é destacada: “aprendi a refletir mais criticamente, o quevou levar não só para a minha carreira profissional mas também paraminha vida pessoal”. A idéia do texto enxuto fez corrente, mas precisade monitoria constante: “eu me esforcei ao máximo para fazer textosreduzidos e objetivos, um problema sério para mim. Com certeza, pensomais antes de escrever atualmente”. As críticas se fizeram muito claras: naparte teórica, “textos mais objetivos deveriam ser usados”; o domínio doléxico é tarefa para novos cursos, como se vê em: “o curso levou-me a terum olhar mais atencioso e crítico, não só sobre textos produzidos por mim epor outros...”. A crítica mais comum foi quanto ao pouco tempo dedicadoao burilamento final do conto: “talvez por falta de tempo não o trabalhamosem sala”.

Considerações finais

A arte da escrita, em suas manifestações no conto, convive com as ques-tões dos fazeres e saberes das comunidades disciplinares, reforçando, refletin-do e visibilizando tensões, vivências e experiências, constituindo-se numa grandesociologia de cada área de conhecimento.

O ambiente criado na oficina, em que os participantes têm acesso aprodutos bem acabados, que cativam o leitor, produzidos por artesãos eengenheiros de renome, representa uma alternativa de recontextualizaçãopedagógica que favorece a produção e reprodução dos mecanismos quefuncionam de forma satisfatória. Esse ambiente de trabalho coletivo esolidário favorece o deslanchar da criatividade.

As oficinas, nesse ambiente de busca do novo e do singular comsuporte do monitor e do professor, favorecem a manifestação dapessoalidade, aumentam nos estudantes a autoconfiança e os estimulam acontinuar produzindo idéias e a textualizá-las.

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O domínio da arte de dizer escrevendo, de forma redonda, no for-mato de conto, requer mais tempo de exercício e de revisão, com orienta-ção personalizada, o que supõe turmas menores e equipes de acompanha-mento da escrita, tanto no projeto via sinopse quanto em suaimplementação.

ABSTRACT

The purpose of this article is to describe the process oftextual production formulated and consolidated in theperiod of 2005 to 2007, at UFF, with classes of cinema,advertising and Archivology courses. In this description,we evaluate the strategies of critical reading andsupervised essay production of the participants. On thebasis of the results and in the witnessing of the students,we formulate a workshop proposal which is rooted inthe most prement challenges of academic writing. Thecorpus for each semester consisted of prestigious worksof Brazilian literature (Namely, O cortiço, Grande sertão:veredas, As meninas, e Feliz ano novo). The tales producedin 2005 and 2006 were also used. The method of workcombines critical reading of theoretical and literary textswith exercises of production of summaries anddeveloped texts, in which personal experiences aremixed with fictional reports. The theoretical basisfor the workshop is anchored in Basil Bernstein’sproposal of pedagogical recontextualization proposal.The results confirm the validity of the proposal andsuggest its refining, aiming at optimizing students’performance.

Keywords: Workshop, synopsis, academic writing,personal experience, fiction.