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  • O ENIGMA DE KASPAR HAUSER1 E O PROCESSO DE CONSTITUIO

    SUBJETIVA NA PERSPECTIVA HISTRICO-CULTURAL

    KASPAR HAUSERS ENIGMA AND THE PROCESS OF SUBJECTIVE

    CONSTITUTION IN A HISTORICAL AND CULTURAL PERSPECTIVE.

    Autoras:

    Candice Marques de Lima2

    dria Assuno Santos de Paula3

    RESUMO

    O presente trabalho pretende discutir o filme O enigma de Kaspar Hauser, do diretor alemo Werner Herzog, articulado perspectiva histrico-cultural. Essa perspectiva compreende o indivduo como ser histrico, sendo constitudo por uma subjetividade social que tambm se constitui a partir das interaes intersubjetivas e pelas produes de significado e sentido desse sujeito. Dessa forma, percebemos no filme uma proposta que nos auxilia compreender como as relaes humanas estabelecidas pelo personagem principal, na cidade onde encontrado, geram nele a capacidade de desenvolvimento da linguagem e promovem a construo de sua identidade. Para VYGOTSKY a articulao entre o pensamento e a linguagem que produzem o desenvolvimento humano e, conseqentemente, as funes psicolgicas superiores, que diferenciam o ser humano dos outros animais. A partir dessas funes e, por meio das interaes sociais estabelecidas, o personagem Kaspar Hauser torna-se capaz de aprender e se desenvolver, possibilitando a produo de significado e de sentido subjetivos que levam sua constituio como sujeito. Palavras-chaves: identidade; subjetividade; aprendizagem; desenvolvimento. 1 O ENIGMA DE KASPAR HAUSER. Direo: Werner Herzog. Alemanha, 1974. 1 DVD (109 min.), son., color. 2 Psicloga com mestrado em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Catlica de Gois. Professora da Faculdade Araguaia/GO e Universidade Federal de Gois. [email protected]. 3 Psicloga, mestra em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Catlica de Gois, especialista em psicologia Clnica-Teoria psicanaltica pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, professora da Faculdade Araguaia e Orientadora Educacional do Ensino Fundamental. [email protected].

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    ABSTRACT

    Kaspar Hausers Enigma, made by the german director Werner Herzog, is presented in this Project. The main objective is to encourage a discussion about the movie under a Historical and Cultural perspective. This specific perspective comprises the individual as a historic being, therefore constituted by a certain social subjectivity which also can be constituted from the intersubjective interactions and productions of meanings and senses of this previously mentioned individual. So, in this film, we notice a proposal which help us to understand how the human relations the character is able to establish. In the city where he is found, he can improve his language development and promote the construction of this identity. Vygotskys point of view is that there is an articulation between language and thinking which produces the human development. Consequently the high psychological functions that differentiate human beings from animals. From these functions and social interactions methods that he establishes, this character, Kaspar Hauser becomes able to learn and develop himself. Key words: identity; subjectivity; learning; development.

    O processo de constituio do que ser humano tem sido objeto de

    estudo de algumas abordagens da Psicologia, principalmente aquelas que

    buscam compreender o homem como constitudo e constituinte das relaes

    sociais.

    Nessa perspectiva, a psicologia histrico-cultural tem desenvolvido

    pesquisas e trabalhos que permitem visualizar como a relao homem-

    sociedade se constitui mutuamente e como o sujeito concreto, constitudo por

    sua histria e posio socioeconmica, vai emergir a partir dessa relao.

    Nosso texto tem como objetivo principal buscar informaes a partir da

    histria de Kaspar Hauser, no filme do diretor alemo Werner Herzog, para a

    compreenso da constituio subjetiva na abordagem histrico-cultural, que se

    desenvolveu a partir da obra do psiclogo russo Lev Semenovich VYGOTSKY

    (1896 1934) e de seus colaboradores.

  • 3

    Dessa forma, desenvolveremos nossa discusso apresentando

    passagens do filme que consideramos importantes como aspectos tericos

    dessa abordagem. No pretendemos com isso justificar a teoria a partir do

    filme; muito menos desconsiderar todo o aspecto esttico proposto por ele e

    que no se resume na discusso terica, mas criar zonas de sentido a partir

    dessa articulao.

    VYGOTSKY (1992) estudou o comportamento de animais como os

    chimpanzs e analisou a histria do homem primitivo com a inteno de

    compreender o que nos torna humanos, diferentes de animais de outras

    espcies e por isso buscou tanto na filognese quanto na ontognese da nossa

    espcie a explicao para o processo de desenvolvimento humano.

    Baseado no materialismo dialtico, o psiclogo russo discutiu como o

    uso de instrumentos para o trabalho se constituiu no desenvolvimento de

    instrumentos psicolgicos os smbolos, os signos, a linguagem articulada ao

    pensamento como uma das principais caractersticas que diferenciam o

    homem dos outros animais. Assim, em toda criana mediada por outros seres

    humanos, as linhas da fala e do pensamento se articulam e o pensamento

    torna-se verbal e a fala racional, desenvolvendo uma conscincia humana

    (VYGOTSKY, 2000a; 2000b).

    No filme O enigma de Kaspar Hauser contada a histria real de um

    jovem, Kaspar Hauser, possivelmente com idade de 16 anos, que foi

    encontrado na cidade de Nuremberg (Alemanha), em 1828. O rapaz foi visto

    pela primeira vez na praa da cidade e tinha um bilhete na mo, que o

    encaminhava aos cuidados do capito da cavalaria daquele local. Andava com

  • 4

    muita dificuldade e no sabia falar, sua nica frase era Quero ser um cavaleiro

    como meu pai, frase que no tinha nenhum significado nem gerava sentido

    subjetivo no jovem. Seu rosto demonstrava uma expresso rija e tinha um olhar

    assustadio, parecendo-se com um animal acuado.

    A partir das reminiscncias de Kaspar Hauser, quando desenvolve a fala

    e pode contar sua prpria histria, descobre-se que ele ficava preso em um

    poro escuro sem saber que existiam outras pessoas. Alimentava-se de po e

    bebia gua, colocados por um homem enquanto dormia. Manuseava um

    cavalinho de madeira, coava-se como um animal e emitia sons guturais. No

    se lembrava de nada e no tinha noo de tempo. Como se pode observar,

    Kaspar no agia como um ser humano, sua conduta se aproximava mais

    daquela que caracteriza os animais do que propriamente as pessoas.

    Nesse sentido, podemos compreender que o que nos constitui humanos

    no apenas o fato de nascermos de pai e me humanos, de pertencermos

    espcie humana, pois o comportamento humano falar, brincar, amar, vestir,

    emocionar-se antes de tudo histrico e cultural. No desconsideramos

    caractersticas inatas da nossa espcie, como a capacidade que nosso crebro

    tem para articular fala e pensamento, nem nosso aparelho fonador capaz de

    emitir sons articulados, mas essas funes que se constituem juntamente com

    o sistema de signos, nos seres humanos, desenvolvem-se somente a partir da

    nossa constituio como seres sociais.

    o outro4 que em um primeiro momento vai produzir significado das

    emoes do beb. Por exemplo, o choro a forma de comunicar suas

    4 Utilizamos a palavra outro para representar outras pessoas em relaes intersubjetivas.

  • 5

    necessidades. Quando a me ou a pessoa que cuida desse beb se comunica

    com ele ao aliment-lo, acarici-lo e ao nomear as partes do seu corpo, passa

    a mediar suas relaes com a cultura. O beb, dessa maneira, rompe com os

    aspectos puramente biolgicos do seu desenvolvimento e se constitui como ser

    social (BOZHOVICH, 1976).

    O filme nos mostra como a mediao do outro constitui a ao de

    Kaspar, uma mediao precria do ponto de vista da interao entre ele e seu

    cuidador (homem que alimenta Kaspar e o ensina a dizer algumas palavras)

    enquanto permaneceu no poro, uma vez que no havia um contato mais

    prximo, mas simples instrues dadas pelo homem, as quais Kaspar Hauser

    apenas repetia sem produzir nenhum sentido sobre elas. Em uma das cenas

    com esse tipo de interao, percebemos que o cuidador tenta mostrar ao

    jovem como ele deve manusear o cavalo de madeira. Kaspar repete os

    movimentos feitos pelo homem de maneira mecnica, imitativa. Vygotsky

    (2000a) ressalta a importncia da imitao como uma ao que pode gerar

    aprendizado e desenvolvimento, porm preciso que essa imitao acontea

    no processo dialgico entre sujeitos, quando a mediao constituda por

    conceitos e valores culturais. Desse modo, a imitao deixa de ser um ato

    mecnico, pois o sujeito produz significados e sentidos subjetivos enquanto

    age, constituindo-se subjetivamente a partir dos aspectos culturais, aprendendo

    e se desenvolvendo.

    O fato de o personagem movimentar o cavalo de brinquedo no lhe

    garantiu compreender o que era um cavalo, justamente porque no bastava

    agir mecanicamente, era preciso que um membro mais experiente da cultura,

  • 6

    no caso, o cuidador, transmitisse o significado do animal naquela cultura por

    meio da fala e da interao com Kaspar. Dessa maneira, a imitao poderia

    gerar aprendizado e desenvolvimento.

    Essa cena tambm nos remete a outro tema importante: o brincar. Em

    um primeiro momento, o fato de o personagem movimentar o cavalo de

    madeira pode parecer que se trata de uma brincadeira, embora, de acordo com

    o conceito desenvolvido por Vygotsky (2000a), a brincadeira uma ao

    eminentemente social, ou seja, uma atividade gerada a partir da interao

    entre os sujeitos, quando aquele que brinca reconstri significados constitutivos

    da cultura. Tal fato no acontece no filme, uma vez que a interao de Kaspar

    com seu cuidador extremamente limitada e ele no tem acesso aos

    elementos que constituem a cultura do lugar onde vive. Essa interao no

    mantm o contato face a face, que essencial para o ser humano imitar o

    outro e posteriormente desenvolver-se.

    A brincadeira uma atividade que possibilita ao sujeito que brinca

    desenvolver a criatividade, a socializao, a linguagem, as funes

    psicolgicas superiores e o raciocnio lgico. Auxilia tambm a compreender as

    relaes interpessoais, os papis sociais desempenhados pelos membros do

    grupo cultural, que tenham acesso a um mundo de smbolos. Enfim, o brincar

    permite que a pessoa v alm da sua condio atual e exercite modos de

    pensar e agir caractersticos do mundo adulto.

    O fato de ir alm de seu nvel de desenvolvimento atual gera

    aprendizado e desenvolvimento quando o sujeito, a partir da mediao do

    outro, consegue realizar ou compreender algo que no conseguiria sozinho.

  • 7

    Vygotsky compreende que este movimento acontece em um lugar denominado

    Zona de Desenvolvimento Proximal (VYGOTSKY, 2000a).

    O filme nos mostra que a Kaspar foi negada a possibilidade de interagir,

    desde o seu nascimento, com outros seres humanos, de brincar e desenvolver

    as funes psicolgicas superiores, que se constituem a partir da articulao

    entre a fala e o pensamento, de se desenvolver subjetivamente.

    Todo esse processo de desenvolvimento ontogentico que o ser

    humano passa, quando beb, Kaspar Hauser desenvolve a partir de 16-17

    anos. O jovem vai morar em uma torre que era vigiada por uma famlia e l

    iniciado o seu processo de desenvolvimento psicolgico. o menino dessa

    famlia quem nomeia as partes do corpo de Kaspar, o ensina a falar e, assim, a

    produzir significado e sentido subjetivo do seu corpo, que agora passa a ser

    humano. O corpo que antes era percebido apenas em seus aspectos

    fisiolgicos e sinestsicos passa a ser compreendido e interpretado por meio

    da mediao simblica.

    Outro aspecto que merece nossa ateno como podemos visualizar

    manifestaes diferenciadas das emoes em Kaspar Hauser. As emoes

    sempre foram consideradas pelas cincias e a filosofia como inferiores e pela

    psicologia, em especial, como separadas da razo. Fisiologicamente a emoo

    se constitui como uma descarga hormonal em nosso crebro que influencia

    nosso comportamento o choro, os tremores, os gritos, a fuga so

    caractersticas de uma emocionalidade que nos caracteriza como animais.

    Foram as emoes que possibilitaram nossos antepassados sobreviverem ao

    fugir de um predador ou ao procurar abrigo em outras situaes, alm de

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    promoverem relaes afetivas com outros seres humanos e animais que

    auxiliaram no desenvolvimento e na continuao da nossa espcie.

    Com o desenvolvimento do nosso crebro, que acontece por meio da

    articulao entre pensamento e linguagem, gerando as funes psicolgicas

    superiores (VYGOSTSKY, 2000a; 2000b) e uma conscincia humana, as

    emoes passam a se constituir e constiturem os processos de pensamento e

    fala, gerando significado e sentido subjetivo a respeito de nossa histria,

    possibilitando a comunicao de nossas percepes e sensaes subjetivas.

    A psicologia histrico-cultural, nesse sentido, compreende as emoes

    no como cindidas dos processos conscientes. GONZLEZ REY (2003)

    discute esses aspectos como constituintes da subjetividade:

    As emoes so registros complexos que com o desenvolvimento da condio cultural do homem passam a ser uma forma de expresso humana ante situaes de natureza cultural que surgem em sistemas de relaes e prticas sociais; no entanto, essa nova condio do registro emocional no elimina sua capacidade de registros somticos e fisiolgicos que, em sua complexa relao com os anteriores, definem o sentido subjetivo da emoo, que representa um momento essencial de sua definio subjetiva (GONZLEZ REY, 2003, p. 243).

    No filme, podemos observar dois momentos diferentes das emoes em

    Kaspar Hauser: num primeiro momento, o personagem se interessa pela

    chama de uma vela que colocam sua frente; quando tenta pegar na chama,

    queima os dedos e chora de dor. Em uma cena posterior, Kaspar se aproxima

    do bero onde est chorando o beb da famlia com quem ele mora e balana

    o bero at o beb parar de chorar. Nesse momento, a me do beb chega,

    pega-o no colo e o entrega para Kaspar Hauser; emocionado, a partir da

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    interao com o beb e da confiana da me em deix-lo no seu colo, chora e

    diz: Me, sou desprezado por todos..

    Assim, compreendemos que o jovem Kaspar Hauser comea a se

    constituir subjetivamente a partir da segunda vez que chora, pois esse choro

    expressa no apenas um registro somtico da dor pela queimadura do dedo

    como da primeira vez, mas o posiciona como sujeito. Assim, Kaspar mostra-se

    capaz de perceber sua situao perante as pessoas da cidade, que o viam

    apenas como uma atrao circense, e produz sentido subjetivo dessa

    percepo ao expressar por meio do choro e da fala seu sentimento de

    inadequao.

    Desse momento em diante, podemos observar como se constitui a

    subjetividade de Kaspar Hauser e seu sentido de identidade, que se

    desenvolve a partir de suas relaes com o outro. Ao se tornar humano,

    Kaspar se inclui na cultura e nas relaes sociais do lugar onde mora, embora

    no seja reconhecido pelas pessoas como sujeito.

    Outro momento no filme que demonstra seu sentido de identidade

    quando Kaspar Hauser escreve, com sementes de agrio, seu nome em um

    canteiro. A identidade para GONZLEZ REY (2003) o sentido de

    reconhecimento que o sujeito experiencia no curso regular e contraditrio de

    suas prprias aes. (p. 230). A contradio desse sentido se apresenta

    quando algum destri o nome de Kaspar no canteiro, o que tambm

    demonstra como a subjetividade social5, embora nos constitua como humanos,

    tambm pune nossas tentativas de articularmos nossa identidade.

    5 O conceito de subjetividade social tambm discutido a partir de GONZLEZ REY (2003).

  • 10

    Quando o personagem se reconhece como sujeito e se percebe

    inadequado diante dos padres sociais daquele grupo cultural, suscita uma

    discusso que tem causado polmica atualmente: o processo de incluso-

    excluso da diversidade nos vrios segmentos da sociedade. Historicamente, o

    indivduo considerado diferente da maioria foi, em diferentes pocas e culturas,

    morto, segregado, confinado em instituies destinadas a trat-lo e mant-lo

    longe do convvio social de forma a no contaminar e atrapalhar a ordem

    estabelecida (LIMA, 2004, 2006; PAULA, 2004).

    O filme nos leva a pensar nas vrias formas de excluso vividas por

    Kaspar, as quais o constituram enquanto sujeito. A primeira delas foi a mais

    radical: ele foi sumariamente excludo do convvio social desde o incio da vida

    at chegar adolescncia. Essa excluso constituiu o seu desenvolvimento

    fsico, afetivo/cognitivo e social, gerando as demais situaes de excluso que

    ele enfrentaria a partir do momento em que foi inserido no grupo social.

    importante diferenciar insero do processo de incluso. Dizemos que

    Kaspar foi inserido porque cabia a ele a responsabilidade maior de se adaptar

    ao modo de vida da poca, enquanto os demais membros da cultura no

    demonstraram nenhum esforo para se aproximar do mundo dele, de tentar

    compreend-lo e, a partir da, buscar criar situaes de aprendizagem e

    desenvolvimento, partindo da realidade de Kaspar e no da realidade deles

    prprios.

    O processo de incluso, tanto social quanto educacional, implica em

    responsabilidades compartilhadas entre sujeitos em processo de incluso e

    contexto social e/ou educacional, em mudanas tanto sociais quanto

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    educacionais e no depende simplesmente do desejo e/ou do esforo do

    sujeito a ser includo.

    Neste contexto, percebemos em Kaspar Hauser o interesse pelo

    conhecimento e em se incluir naquele grupo social, embora em vrios

    momentos nota-se que ele se sente frgil diante dos desafios que lhe

    apresentam, demonstrando fugir das situaes incmodas, se excluindo. O

    processo incluso-excluso dialtico e acontece na interao com os outros,

    por isso constitudo tambm pela vontade de se excluir (idem). Ns, seres

    humanos, estamos sempre sendo includos em algumas situaes, grupos e

    categorias, assim como tambm, em diversos momentos, nos exclumos de

    situaes, grupos e categorias por sermos ativos, por produzirmos sentidos

    subjetivos acerca de nossas vivncias.

    O personagem nos mostra sua ao de sujeito autnomo quando busca

    se incluir na famlia que cuida dele, aprendendo seu modo de vida e de

    interao. Por outro lado, Kaspar no aceita ser considerado uma atrao

    circense, foge e, subjetivamente, rejeita aquele rtulo, se nega a pertencer

    quela categoria. Esse fato demonstra um significativo desenvolvimento de

    Kaspar Hauser em relao sua identidade, sua constituio enquanto

    sujeito.

    No desenrolar da histria, Kaspar vai morar com o senhor Daumer,

    homem bem relacionado socialmente, que o recebe na condio de pupilo.

    Comea ento seu aprendizado formal e a tentativa de insero de Kaspar na

    cultura religiosa. Por meio da mediao do senhor Daumer, o jovem comea a

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    demonstrar muito interesse pelo conhecimento, torna-se questionador e

    formula hipteses a respeito das coisas.

    Apesar disso, em algumas cenas do filme, podemos perceber a

    contradio durante o processo de aprendizagem de Kaspar. Em dois dilogos,

    observamos que o personagem no se sente sujeito nesse processo de

    aprendizagem e no compreende que tal processo se constitua a partir das

    relaes humanas e culturais. Kaspar olha a torre alta na qual morava

    anteriormente e formula a hiptese da construo dessa torre somente um

    homem muito grande seria capaz de constru-la. Em outra cena, Kaspar

    Hauser diz empregada do senhor Daumer que este um homem muito

    inteligente e que ele, Kaspar, nunca saber tanto quanto seu tutor,

    demonstrando que em sua concepo o conhecimento de Daumer j viesse

    pronto e acabado por caractersticas inatas.

    No primeiro dilogo, o senhor Daumer explica para Kaspar que as

    pessoas construram a torre utilizando andaimes6, palavra que vem carregada

    de um significado de processualidade na articulao entre desenvolvimento e

    aprendizagem. Ou seja, toda obra, tanto material quanto intelectual, pressupe

    uma construo que se apia em aprendizagens e conhecimentos cada vez

    mais complexos. O andaime um instrumento que possibilita ao operrio

    ampliar a sua ao e conseguir algo que sozinho no conseguiria. Do mesmo

    modo como o senhor Daumer, por ser um membro mais experiente daquele

    grupo cultural, faz a mediao entre Kaspar e o mundo novo que se descortina

    desde que este chegou aldeia, possibilitando-lhe aprender e se desenvolver 6A palavra andaime no dicionrio Houaiss (2001, p.208) significa estrado provisrio de tbuas, fixo ou mvel, sustentado por armao de madeira ou metlica sobre o qual os operrios trabalham na construo. No caso do significado acima descrito mostra o processo de construo do conhecimento.

  • 13

    na interao com ele e com os outros mediadores, como o menino e os outros

    componentes da famlia que acolheram Kaspar.

    Em outra cena, o personagem educado por um professor que lhe

    ensina lgica e apresenta-lhe uma hiptese na qual somente uma pergunta

    poderia ser dada para esclarecer essa hiptese. Kaspar se mostra pensativo e

    o professor lhe diz a pergunta, ao que Kaspar desenvolve outra pergunta e

    explica ao professor de forma lgica como essa pergunta poderia resolver o

    problema enunciado. O professor recusa sua pergunta, ento Kaspar se vira

    dando-lhe as costas. Essas cenas mostram a contradio no processo de

    aprendizagem de Kaspar, pois em alguns momentos se julga incapaz e em

    outros tenta contestar o conhecimento estabelecido e questionar a ordem

    cientfica que est posta. O rapaz tambm questiona os religiosos que tentam

    lhe incutir a idia dogmtica de f.

    Alm de mostrar como Kaspar se posiciona enquanto sujeito, esse

    episdio demonstra a dificuldade que a educao tradicional, de forma geral,

    tem em aceitar novas formas de pensamento e de construo do

    conhecimento, buscando a padronizao com uma nica e correta forma

    de ensinar e aprender. Nessa perspectiva educacional, o professor detm o

    conhecimento, a tcnica e, por conseguinte, o poder. Quando Kaspar Hauser

    se mostra ativo, pensante e questionador, ele retira o professor desse lugar e

    procura uma maneira autnoma de construir sua lgica, seu prprio

    conhecimento, algo que repudiado pelo mestre. Segundo PAULA (2008) a

    escola recria e mantm as relaes de poder e submisso que caracterizam a

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    sociedade, por isso, tambm exclui atravs da padronizao privilegiando o

    resultado e no o processo (p. 25).

    Nos tempos atuais, assim como na poca em que se passa a histria,

    incio do sculo XIX, percebemos que a educao precisa construir novos

    significados acerca de seu papel social e novas prticas educacionais a fim de

    promover a incluso de todas as pessoas, respeitando a diversidade de

    caractersticas, de ritmos e modalidades de aprendizagem que nos constituem

    enquanto sujeitos complexos.

    Podemos perceber, ao longo do filme, os pontos de ruptura, contradio

    e complexidade que articulam as subjetividades individual e a social analisados

    por Gonzlez Rey.

    A ao do indivduo dentro de um contexto social no deixa uma marca imediata nesse contexto, mas correspondida por inmeras reaes dos outros integrantes desse espao social, pelas quais se preservam os processos de subjetivao caractersticos de cada espao social, criando-se no interior desses espaos zonas de tenso, que podem atuar tanto como momentos de crescimento social e individual ou como momentos de represso e constrangimento do desenvolvimento de ambos os espaos. (GONZLEZ REY, 2003, p. 203).

    O filme possibilita a discusso a respeito de como a subjetividade social

    da cidade onde Kaspar Hauser se encontra tenta impedir a constituio

    subjetiva desse personagem. Kaspar s podia ser visto como uma atrao

    bestial em uma cidade que no se movimentava, no se desenvolvia. No incio

    do filme, quando Kaspar est esttico com o bilhete na mo, no meio da praa,

    os cidados encontram-se nas janelas observando a paisagem, como se o

    prprio Kaspar fizesse parte dessa paisagem. Somente uma vaca que est

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    presa numa rvore da praa se movimenta e parece se incomodar com sua

    presena.

    Essa zona de tenso de que fala GONZLEZ REY ento apresentada

    durante todo o processo de aprendizagem e desenvolvimento de Kaspar

    Hauser, que se impe como sujeito e reprimido e excludo em suas

    tentativas.

    O movimento ativo/passivo da subjetividade do personagem pode ser

    observado quando Kaspar Hauser apresentado alta sociedade por um

    fidalgo que deseja adot-lo. Kaspar entra no salo da festa e se posiciona com

    a mesma rigidez e expresso fisionmica do incio do filme. Depois diz que

    est passando mal e levado para um quarto. Quando abrem a porta do

    quarto, Kaspar Hauser est fazendo croch, atitude por ele considerada

    passiva nas mulheres, j que questionara a empregada do senhor Daumer

    sobre a serventia das mulheres alm de fazerem croch.

    Kaspar nega-se a se tornar novamente uma atrao e se posiciona num

    espao contraditrio que ao mesmo tempo constitui-se como uma atividade

    passiva croch e como sujeito ativo ao mostrar que no quer fazer parte

    dessa sociedade.

    Essa contradio demonstrada pela ao de Kaspar indica que nossa

    constituio subjetiva e que a construo de nossa identidade ocorrem a partir

    das semelhanas e tambm das diferenas entre os sujeitos integrantes de um

    mesmo grupo social. O personagem, durante a festa, tenta tocar piano e se

    integrar, apresentando uma habilidade que seria valorizada pelo grupo, porm

    sente-se inadequado, diferente daquelas pessoas e, ao fazer croch, aproxima-

  • 16

    se da mulher, realando a sua diferena em relao elite e se apresentando

    como um sujeito rude, mais prximo dos camponeses.

    Os movimentos do personagem ao se constituir subjetivamente e gerar

    zonas de tenso na subjetividade social parecem tornar-se motivo para uma

    agressividade fsica contra Kaspar Hauser. Na primeira vez, Kaspar leva um

    golpe na cabea e sobrevive; na segunda, o esfaqueiam e ele morre

    Tanto a vida de Kaspar Hauser quanto a sua morte so misteriosas e

    nunca foram explicadas. No se sabe at hoje quem eram seus familiares nem

    quem o prendeu no poro. O filme mostra o mesmo homem que cuidava dele,

    no poro, como o responsvel por sua morte, mas isso apenas especulao.

    Ao final do filme, seu corpo dissecado e seu crebro apresenta uma

    anomalia cerebelo muito desenvolvido e hemisfrio esquerdo menor. Para a

    cincia surge ento toda a explicao de uma vida que, embora contraditria e

    complexa como so todas as vidas humanas, ganha uma dimenso puramente

    descritiva, linear e, em nossa concepo, empobrecida.

    Essa viso cerebrocentrista caracterstica da poca em que a cincia

    comea a despontar como caminho e fim ltimo para explicar todos os

    fenmenos: os naturais, os humanos e os sociais. Novamente, ao voltarmos

    nosso olhar para os tempos hodiernos, apesar da contribuio de teorias como

    a abordagem Histrico-cultural, as quais buscam compreender o homem a

    partir das relaes que estabelece e de uma constituio que vai alm do

    puramente biolgico, percebemos o mesmo movimento por parte da cincia: a

    tentativa de buscar explicaes estritamente fsicas e biolgicas para

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    fenmenos como a aprendizagem, o desenvolvimento humano, a depresso, a

    orientao sexual, a religiosidade, entre outros.

    certo que o aspecto biolgico nos constitui e , de alguma maneira, o

    ponto de partida para nos relacionarmos com os outros e nos constituirmos

    enquanto sujeitos, mas o corpo e seu funcionamento esto longe de serem os

    nicos determinantes em nossa constituio subjetiva. Sabemos que a maneira

    como os corpos so percebidos socialmente varia de acordo com a histria e

    com a cultura, assim como as manifestaes desse mesmo corpo e essas

    idias constituem a subjetividade social e individual. Por exemplo, na Idade

    Mdia, ser gordo era sinal de riqueza e prosperidade, portanto era

    caracterstica valorizada socialmente e essa valorizao ou falta dela

    preconceito em relao s pessoas magras constitua a identidade das

    pessoas.

    Atualmente, o significado que o corpo tem em nossa cultura no mudou,

    ele nos constitui subjetivamente, o que mudou foi o tipo de corpo valorizado: o

    magro e atltico. Sem dvida, a importncia do corpo, do significado social de

    que dispe e do sentido que geramos acerca de nosso prprio corpo inegvel

    para nossa constituio subjetiva. Entretanto, reduzirmos ao plano biolgico

    fenmenos subjetivos desconsiderar a complexidade humana, as relaes

    interpessoais e a importncia das construes culturais para a nossa

    constituio enquanto sujeitos nicos, singulares e autnomos. Um bom

    exemplo de que quanto mais tentamos negar a subjetividade, mais ela se

    mostra soberana o fato de que, apesar de todo avano da medicina e da

    psicofarmacologia, do conhecimento acerca da bioqumica cerebral, as drogas

  • 18

    mais potentes contra a depresso, sozinhas, no conseguem debelar o

    sofrimento psquico que se apresenta como o mal do sculo.

    S o fato de vivermos em uma cultura complexa, construda

    historicamente, nos torna humanos e no apenas o fato de termos determinada

    carga gentica que nos diferencia de outras espcies. Sabemos que o crebro

    um rgo que apresenta uma plasticidade, ou seja, se desenvolve de acordo

    com as interaes sociais e as demandas apresentadas pelo meio. Desse

    modo, considerar Kaspar Hauser como uma aberrao porque no se

    adequava aos padres da poca ou como um doente porque seu crebro no

    apresentava as caractersticas consideradas dentro do padro de normalidade

    desconsiderar o fato de que seu desenvolvimento cerebral pode ter sido

    constitudo pela falta de interao em um grupo humano.

    Determinar que sua socializao posterior foi prejudicada pelas

    caractersticas de seu crebro reduzir o sujeito aos seus aspectos biolgicos,

    negando ou menosprezando a prpria evoluo da espcie humana a partir da

    complexidade dos grupos socioculturais.

    Assim, aquela sociedade, constituda por um ideal de cincia positivista,

    considerou que o problema estava em Kaspar, com um crebro diferente e

    que, por isso, no conseguiu se adequar no contexto social. A cidade de

    Nuremberg poderia voltar tranqilamente ao seu marasmo e estagnao, j

    que a situao estava resolvida. Isso vai dar um belo relatrio, conforme diz o

    burocrata no final do filme.

  • 19

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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