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Problemata Rev. Int. de Filosofia. Vol. 02. No. 01. (2011), pp. 144169 ISSN 15169219. Data de recepção do artigo: abril/2011 Data de aprovação e versão final: junho/2011. OCKHAM E A FILOSOFIA DA MENTE: aproximações ao externalismo na filosofia contemporânea AndersonD"Arc Ferreira * RESUMO: No presente estudo pretendemos demonstrar alguns aspectos de meus estudos mais recentes de meu doutoramento. Nosso intuito é o de esboçar brevemente o sistema ockhamiano e, se possível, estabelecer possíveis aproximações desse autor medieval com o sistema do externalismo na Filosofia da Mente contemporânea. Essa linha de investigação onde se pretende desenvolver aproximações entre as temáticas medievas, especificamente de Guilherme de Ockham, e temáticas específicas das filosofias contemporâneas tem suas inspirações em estudos de Claude Panaccio e Alessandro Ghisalberthi. Nesse ínterim pretendemos demonstrar que as teorizações do “Príncipe dos Nominalistas” prefiguram uma estrutura muito semelhante às desenvolvidas na atual estrutura da linguagem mental. O objetivo de nosso estudo é refletir acerca da possibilidade de existência, ou não, de uma Filosofia da Mente no medievo, especificamente em Guilherme de Ockham. Não focalizaremos o surgimento dessa problemática na Idade Média, mas deteremos nossas investigações no sistema lógico desenvolvido pelo Venerabilis Inceptor. PALAVRASCHAVES: Lógica Medieval, Ockham, Filosofia da Mente, Externalismo. OCKHAMAND THE MENTAL PHILOSOPHY: aproaches to the externalism in the contemporary philosphy * Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal da ParaíbaUFPB (2010) com tese sobre filosofia da mente em Guilherme de Ockam. Professor Adjunto 1 da Universidade Federal da Paraíba. Coordenador do Programa de Pósgraduação em FilosofiaUFPB.

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Problemata ­ Rev. Int. de Filosofia. Vol. 02. No. 01. (2011), pp. 144­169ISSN 1516­9219.

Data de recepção do artigo: abril/2011Data de aprovação e versão final: junho/2011.

OCKHAM E A FILOSOFIA DA MENTE: aproximações aoexternalismo na filosofia contemporânea

AndersonD"Arc Ferreira *

RESUMO: No presente estudo pretendemos demonstraralguns aspectos de meus estudos mais recentes de meudoutoramento. Nosso intuito é o de esboçar brevemente osistema ockhamiano e, se possível, estabelecer possíveisaproximações desse autor medieval com o sistema doexternalismo na Filosofia da Mente contemporânea. Essalinha de investigação onde se pretende desenvolveraproximações entre as temáticas medievas, especificamente deGuilherme de Ockham, e temáticas específicas das filosofiascontemporâneas tem suas inspirações em estudos de ClaudePanaccio e Alessandro Ghisalberthi. Nesse ínterimpretendemos demonstrar que as teorizações do “Príncipe dosNominalistas” prefiguram uma estrutura muito semelhante àsdesenvolvidas na atual estrutura da linguagem mental. Oobjetivo de nosso estudo é refletir acerca da possibilidade deexistência, ou não, de uma Filosofia da Mente no medievo,especificamente em Guilherme de Ockham. Não focalizaremoso surgimento dessa problemática na Idade Média, masdeteremos nossas investigações no sistema lógico desenvolvidopelo Venerabilis Inceptor.PALAVRAS­CHAVES: Lógica Medieval, Ockham, Filosofiada Mente, Externalismo.

OCKHAM AND THE MENTAL PHILOSOPHY: aproaches to the externalism in thecontemporary philosphy

* Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba­UFPB (2010) comtese sobre filosofia da mente em Guilherme de Ockam. Professor Adjunto 1 daUniversidade Federal da Paraíba. Coordenador do Programa de Pós­graduação emFilosofia­UFPB.

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1 – IntroduçãoHodiernamente tem­se ouvido muito acerca da virada

pragmático­lingüística em Filosofia. Essa “viradaparadigmática” dentro da filosofia teria sido fruto de ummovimento iniciado no início do século XX. Tal giro lingüísticopromoveu toda uma necessidade de esclarecimento dosconceitos que fazem parte das linguagens ordinárias, por umlado, ou o esclarecimento dos significado dos enunciados dasciências, por outro. Contudo, um movimento parece­nosevidente, a saber: a necessidade de se esclarecer o uso dalinguagem, seu alcance e suas implicações.

Esse movimento teve seu início com as obras de Fregesobre uma fundamentação lógica da matemática e amplia­secom o movimento iniciado por Wittgenstein, tanto o primeiroquanto o segundo. A abertura para as pesquisas da FilosofiaAnalítica, nesse sentido, estava criada. Tal movimento, contudo,não se conteve somente nas análises estritas acerca da lógica dalinguagem. Dentre os movimentos que tomaram corpo o estudodos processos mentais e seus pressupostos teóricos foram“despertos”.

Com o ressurgir das questões relativas à reflexãofilosófica que se ocupa dos atos mentais, e suas implicações,principalmente depois da influência das teorias do segundoWittgenstein, as questões relativas à Filosofia da Mentevoltaram à tona no ardoroso campo do debate filosófico.

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As reflexões acerca da mente, aspectos oriundos desdeas teorias de Platão e Aristóteles, encontraram um solo fecundono cristianismo, e em todas as religiões monoteístas,culminando na posição do dualismo cartesiano. Esse tema foiamplamente debatido por autores como Spinoza e Bérgson,dentre outros, chegando, no início do século XX, a teorias comoas de Brentano, Willian James, Wittgenstein, Karl Popper, etc.Dessas discussões suscitadas pela Filosofia Analítica, e tendotomado o debate como uma verdadeira questão filosófica,autores como Fodor, Putnam, Burge, Davidson, Kripke,Armostrong, Lewis, Searle, etc, tem desenvolvido estudosacerca dessa temática.

Nesse imbricado nicho de discussões encontra­se o soloacerca do qual situa­se nosso presente estudo, ou seja, temasrelativos à Filosofia da Mente. Indubitavelmente, a obra deFranz Brentano constitui­se de um grande marco na Filosofia daMente contemporânea. Em seus estudos Brentano1 desenvolve oconceito de “in­existência” intencional o qual aponta comosendo uma característica exclusiva dos fenômenos mentais.Nesse caminho para estabelecer as bases do conceito de “in­existência” intencional, ele começa por interpretar os estudos deAristóteles mas utilizando­se da ‘terminologia tomista’2 para suainterpretação. Assim, esse crivo marca conceitos como os deexistência ‘natural’ e ‘intencional’ de uma linguagem. Como emBrentano vemos uma grande utilização de concepções oriundasdo período medieval, e em autores como Fodor e Putnam vários

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elementos do sistema Ockhamista fazem­se presentes,acreditamos que desenvolver uma aproximação entre o sistemaockhamista e a Filosofia da Mente Contemporânea seria degrande valia. Assim, pretendemos apresentar alguns pontos dosistema ockhamista e desenhar, se possível, aproximações dessesistema com o externalismo em Filosofia da Mente.

Nosso presente estudo, nesse ínterim, desenvolve umalinha tênue, de inspiração oriunda de Claude Panaccio, ondepretendemos mostrar algumas possíveis aproximações entretemáticas contemporâneas de Teorias da Filosofia da Mente comteorizações realizadas por Guilherme de Ockham em plenoséculo XIV, teorizações que prefiguravam uma estruturaextremamente atual de linguagem mental.

O objetivo de nosso estudo é refletir acerca dapossibilidade de existência, ou não, de uma Filosofia da Menteno medievo, especificamente em Guilherme de Ockham. Nãofocalizaremos o surgimento dessa problemática na Idade Média,mas deteremos nossas investigações no sistema lógicodesenvolvido pelo Venerabilis Inceptor. Acredito que talexercício facilitará possíveis aproximações futuras entre osistema lógico de Ockham e a temática da Filosofia da Mentehodierna3.

Para que o nosso percurso possa ter uma dinâmica maioriniciaremos nossas reflexões com uma breve visão do sistemaockhamiano. Em seguida trilharemos algumas possíveisaproximações entre o sistema lógico­lingüístico de Ockham e

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alguns aspectos pesquisados em Filosofia Analítica daLinguagem. Por fim, nosso maior interesse aqui, linhasaproximativas que nos possibilitariam desenvolveraproximações entre o sistema lógico­lingüístico teorizado peloVenerabilis Inceptor e alguns aspectos relativos ao Externalismoem Filosofia da Mente.

2 – O sistema OckhamistaOs séculos XIII e XIV foram muito fecundos para o

período medieval. Vários movimentos foram desenvolvidos, taiscomo: a adoção dos métodos de Abelardo como intrínsecos àescolástica (lectio e disputatio); as condenações das 219 tesesaristotélicas pelo Bispo Tempier em 1277; a disputa acerca doproblema da pobreza evangélica (Papa versus Franciscanos); adisputa pelo poder temporal através da teoria dos dois gládios(Disputa de Ludovico da Baviera com João XXII); um enormedesenvolvimento das lógicas terministas (na época conhecidacomo Logica Modernorum).

O sistema de Ockham foi influenciado por dois dosmaiores pensadores da Idade Média, Tomás de Aquino e DunsScotus. Tomás tem como marca característica a realização dagrande síntese entre a verdade revelada e a razão (fato esse quelhe concede o mérito de operacionalizar a síntese adotada pelaescolástica), enquanto Scotus traz consigo a característica de

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prefigurar novas e decisivas idéias que irão focalizar os novosrumos do pensamento. Assim, se o século XIII foi o século dasgrandes sínteses, o século XIV será o século das grandescríticas.

A filosofia de Ockham inscreve­se, dessa forma, nacrítica que os franciscanos dirigiam à síntese entre ocristianismo e o aristotelismo, crítica influenciada por Scotus einiciada por Tomás de Aquino. O ponto de vista da novaproposta filosófica de Ockham trata­se de uma forma deempirismo epistemológico (notitia experimentalis) que o leva aproduzir uma crítica radical a tudo o que era consideradodesnecessário dentro do edifício filosófico4.

2.1 – Linhas gerais do sistema ockhamianoOckham admite que é possível conhecer intuitivamente o

individual, sem recurso algum à abstração e a entidades ocultas,formas ou conceitos – todas são entidades às quais aplica seuprincípio de economia do pensamento, princípio habitualmenteconhecido como “navalha de Ockham”. Essa postura leva­o aconstruir sua própria teoria do conhecimento (teoria expressaprincipalmente no seu importante prólogo ao Livro dasSentenças). Suas teorias levam­no a pensar uma teoria doconhecimento pautada no conhecimento intuitivo do singular,teoria denominada de notitia intellectualis. Assim, todo oconhecimento abstrativo que poder­se­ia acrescentar ao

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conhecimento intuitivo, notitia abstrativa, não supõe nenhumanova operação do entendimento para a formação do conceito.Nesse sentido o nome abstrativo deriva do fato de que talconhecimento abstrai, prescinde, da existência do indivíduo e,nele, o termo é considerado em si mesmo. Esse modelo leva àrepresentação do objeto como um signo, mas não a umaabstração do objeto.

A lógica de Ockham trata dos termos enquanto formamparte de um sistema de signos lingüísticos. Ockham divide ossignos em signo escrito (scriptus), podendo variar como vox,signo oral (prolatus) e signo mental (conceptus). O conceito é osigno mental (intentio) que remete às coisas existentes, somenteé universal na medida em que representar uma pluralidade deindivíduos. Por outro lado os termos escritos ou falados, que sãoconvenções, não podem ser naturalmente universais. Suareferência aos objetos individuais é seu significado. Osignificado, por sua vez, é explicado mediante a suposição(suppositio), ou seja, a capacidade do signo para ocupar o lugarde um objeto ou de uma coleção de objetos. A suposição, porsua vez, pode ser dividida em pessoal, simples e material. Asuposição é pessoal se um termo ocupa o lugar de um indivíduo;é simples se ocupa o lugar de muitos sendo considerada umaintenção da mente; além do mais, podemos dizer que asuposição pode ser material, ou seja, quando existe umareferência a si mesmo.

Quando Ockham entra na disputa dos universais ele o

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faz valendo­se do recurso da suposição simples. Nestaperspectiva os nomes abstratos (intenções ou signos) podem serabsolutos ou conotativos. O nome ou termo absoluto tem comoreferente o objeto individual ou uma qualidade dele mesmo (asubstância ou a qualidade), enquanto que o temo conotativo,cujos referentes seriam as categorias aristotélicas restantes nãotem outro referente além do indivíduo, sendo que todo o restoapresenta­se como operação do entendimento. Os nomes,portanto, segundo a visão ockhamista, somente se referem ou aindivíduos ou a qualidades do indivíduo. É exatamente nessaredução da referência ao nome que está o caráter do seunominalismo, título que foi levado a cabo por seus discípulos.

Com sua teoria do conhecimento intuitivo individualtorna­se necessário, para o sistema ockhamista, recusar osclássicos argumentos escolásticos acerca da existência de Deus.Assim, ou Deus é conhecido intuitivamente, e não o é, ousomente é possível a fé em Deus. O mundo é visto como umacriação totalmente contingente de Deus, portanto, ele não podeser pensado como um conjunto de relações necessárias. Omundo é um conjunto de coisas e dele somente conhecemos oque é possível através da via da notícia experimental. Nessesentido são recusadas as noções de espaço e tempo, omovimento, etc., como algo distinto das coisas. Cabe à lógica atarefa de averiguar o significado com que empregamos essestermos. Assim, o nominalismo se orienta cada vez mais atravésde uma ciência física que busca estar cada vez mais

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comprometida a indagar a forma de sucessão dos fenômenos,um ponto de vista que deixa de lado a tentativa de conhecer arealidade subjacente aos fenômenos. Esses elementos abremcaminho para a materialização de uma ciência física na qual seencaminharão, lentamente, todos os seguidores ockhamistas.

Sua valorização do concreto e do individual, além daperspectiva do conhecimento experimental, tem tambémaplicações no campo da teoria política: a separação entre fé erazão (por razões de um maior rigor em definir a ciência);distinção entre o poder civil e o poder religioso, segundo ateoria dos dois gládios; crítica à plenitude do poder teocrático;crítica à infalibilidade papal e concepção da Igreja como umacomunidade de fiéis e não como um domínio terreno.

2.2 – O sistema Lógico de Ockham (1280 / 1347­50)Partindo do problema de que exista a possibilidade de se

encontrar algo de comum que possa ser atribuído a Deus e àscriaturas, Ockham mostra que somente um exame detalhadoacerca dos universais poderá elucidar tal questão. Assim, suapreocupação será determinar o que são os universais e de queforma teríamos acesso a eles. A posição de Ockham a esserespeito não é citar ninguém, ou seja, tomar a posição dealguém, mas criar uma teoria própria que pudesse, através doapoio dos textos aristotélicos, solucionar esses problemas5.

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Contudo, seria impossível não dialogar com as teorias lógicasdesenvolvidas até então.

No seu comentário ao Livro das Sentenças (Scriptum inLibrum Primum Setentiarum) Ockham tenta apresentar umasolução a esse problema (questões 04 a 08). Assim,primeiramente ele examina a possibilidade da existência douniversal fora da alma (questões 04 a 07) e chega à conclusão deque os universais somente podem existir ou se localizar dentroda alma humana (questão 8). Esse movimento acontece devidoao fato de que para Ockham tudo o que existe fora da alma éimediata e essencialmente singular. Assim, ele instaura, em seusistema, a necessidade do “princípio de singularidade”, ou seja,o indivíduo é a única realidade concreta. Nesse ínterim, nadaexiste fora da alma que não seja singular. Para Ockham “anatureza universal não pode ser tomada como coisa (res)”6.Dessa forma considerado, o universal somente pode existir naalma, ou seja, o universal é um ser de razão, um conceito(conceptus). A operação realizada por Ockham muda o enfoquede tratar o problema dos universais. O problema é deslocado doestatuto ontológico (extra animam) para a direção dapossibilidade de universalização dos conceitos na linguagem(estatuto lógico­semântico)7.

Nas investigações em que Ockham tenta determinar maisos aspectos relativos aos universais, ele examina três possíveisformas dos universais existirem: a teoria do fictum, a teoria daqualitas mentis e a teoria do ato mental (teoria a qual ele irá

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adotar). Assim para esta teoria o universal é identificado com opróprio ato de conhecer, aspecto que atrai a predileção deOckham8. De acordo com essa teoria do ato mental o ato daintelecção incide sobre uma realidade existente extra animam(aqui encontramos alguns traços de uma possível aproximaçãode Ockham frente ao externalismo). Nas palavras de Ockhamtemos:

(...) o conceito e todo o universal é uma qualidadeexistente subjetivamente na alma, que por sua naturezaé como um sinal de uma coisa fora da alma, assimcomo a palavra é um sinal das coisas pela instituiçãovoluntária9. E ainda, (...) há algumas qualidadesexistentes subjetivamente na mente, as quaispor sua natureza lhes competem, tal como ascaracterísticas competem às palavras porinstituição voluntária.10

Em textos posteriores, o Quodlibeta e a Summa Logicae,Ockham reafirma essa perspectiva da teoria do ato mentalbaseado no princípio de parcimônia, ou navalha de Ockham. Sepor um lado ele resolve a perspectiva do universal extra anima,por outro lado fica em aberto a perspectiva do universal inanima. Para Ockham essa perspectiva somente poderá se tornarrelevante quando situada dentro de uma teoria dos signos, ouseja, em uma perspectiva lingüística.

A função de um signo é significar. E isso ocorre em doisníveis: significação representativa (tudo o que é apreendidotorna conhecida outra coisa – pressupõe um conhecimentoprévio da coisa significada) e significação lingüística (aqui éacrescentada a capacidade suposicional do signo – agora o signo

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é caracterizado pela possibilidade de produzir uma intelecçãoprimária, por sua função proposicional, estando orientado aocupar o lugar da coisa significada em uma proposição – éjustamente por meio da suposição que um signo torna­se signolingüístico e coincide com a noção de termo). Nessa linha ondese unem signos lingüísticos aos termos, os sinais podem serdivididos em dois grupos: signos lingüísticos naturais (termosmentais ou conceitos) e signos lingüísticos convencionais(termos escritos e falados). Os conceitos, destarte, exprimemdiretamente a coisa significada. Já os signos mentais sãoproduzidos através da interação do objeto e do intelecto. Ossinais convencionais são adquiridos mediante a convenção deuma instituição voluntária dos homens, culminando por estaremsubordinados aos sinais naturais. Assim, as palavras escrita efalada foram inventadas pelo homem para designar coisas dasquais os conceitos são sinais naturais11.

A seqüência montada a seguir estabelece a hierarquiados signos em seu sistema. Uma coisa muito interessante aqui, éa inversão do triângulo semântico12 de Boécio. Ockhamreestrutura a noção lingüística desenvolvida por Boécio, noçãoque chega até o sistema de Tomás de Aquino, e desenvolveoutras relações entre palavras escritas, palavras orais econceitos. O sistema ockhamiano ficaria assim13:

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A esse respeito, os estudos de Bottin14 mostram queessas convenções de signos se referem­se a objetos externos.Mas vamos tratar disse no item 4 de nosso estudo. Agora,ficaremos com algumas aproximações do sistema ockhamistafrente à Filosofia da Linguagem.

3 – Ockham e a Filosofia da LinguagemDiante da ‘pintura’ que denominamos Filosofia

Contemporânea, nosso autor parece fazer parte dos contextosdessa imagem. Durante muitos século Ockham ficou esquecido,suas teorias foram abandonadas e suas idéias deixadas de lado.Contudo, o grande historiador da lógica, C. Prantl15 retira osescritos de Ockham do reino do esquecimento dedicandoalgumas páginas de seu livro ao sistema lógico desenvolvido pornosso autor.

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Vários estudos foram implementados e as teorizaçõesockhamistas foram investigadas. Dentre esse emaranhado deestudos percebeu­se a importância de Ockham em várioscampos da filosofia. Como aqui nos preocupamos com osistema lógico do Venerabilis Inceptor, vale a pena ter em menteque sua obra, segundo a visão de Moody16, baniu doaristotelismo medieval todos os resquícios de neoplatonismoque haviam sido introduzidos, na lógica, pelos estudos dosárabes. Nesse sentido o sistema de Ockham não pode ser vistocomo uma continuidade ou mesmo síntese dos sistemas lógicosdo medievo, como alguns estudiosos chegaram a afirmar, masdeve ser visto como uma enorme crítica e busca de novasrespostas.

Em sua concepção de lógica, Ockham entende aintelecção como algo vinculado ao signo, ou seja, na distânciaentre os signos mentais e as voces está a vertente que nospossibilita pensar sua filosofia da ciência como uma realidadelingüística interior17. Justamente nesse ponto, a concepção daintelecção como signo18, está a ponte que liga as teorias deOckham às análises desenvolvidas na filosofia da linguagemcontemporânea. Sua estrutura, portanto, pode ser vista eentendida como sendo uma nova análise da estrutura dofenômeno cognoscitivo humano.

Se olharmos para o nominalismo de Ockham e oentendermos como uma análise do signo lingüístico, estaremosdesenvolvendo uma linha que liga esse ‘nominalismo’ a uma

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‘filosofia da linguagem’. Justamente no fato de analisar o signolingüístico natural, ou conceito, está implícita uma visão doconhecimento como resultado de um sistema de signoslingüísticos naturais. Assim, a análise entre linguagem interior elinguagem natural que se faz presente no Venerabilis Inceptor éo tema de sua originalidade e contribuição ao campo dasanálises hodiernas acerca da linguagem.

No sistema okchamiano podemos falar em significaçãorepresentativa e lingüística. Todas duas são geradoras deintelecção, ou seja, tem em si mesmas a capacidade de conduzir­nos ao conhecimento de uma realidade que é distinta de nós. Asignificação representativa pressupõe um conhecimento prévioda coisa significada, ou seja, sua função é representar, é tornarpresente ao intelecto algo que ele já havia conhecido. Asignificação lingüística, por sua vez, tem duas propriedades: elanão implica um conhecimento prévio e por isso engendra umacognitio prima através do signo lingüístico; como o signolingüístico tem a capacidade suposicional (ocupar o lugar dacoisa significada em uma proposição) ele ocupa um lugar dedestaque na estrutura lingüística. Assim, o signo lingüísticocoincide com o termo podendo ser convencional (oral e escrito)ou natural. Dessa forma, o signo, entendido como signolingüístico natural, apresenta­se como uma reação espontâneado nosso entendimento frente à realidade exterior. Uma formade entendermos as relações entre o mundo interior e algumasformas de intelecção humana estão expressas nas figuras e

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relações que os signos podem representar, figuras e relaçõesessas esquematizadas no quadro já exposto.

O que nos possibilita, segundo De Andrés19, a afirmar ocaráter original de comparação da teoria ockhamista como umafilosofia da linguagem é sua teoria da proposição. Tal teoriaconfere aos signos (convencionais ou naturais) o caráter depropriedade proposicional, articulação que vincula radicalmentea propriedade dos signos lingüísticos a uma unidade lingüísticaprimária, a proposição ou frase. Esse sistema apresenta­se comouma busca da justificação da validade do conhecimento “aonível ‘molecular’ da proposição”20.

Nesse breve excurso foi­nos permitido esboçar umabreve figura de como alguns aspectos desenvolvidos nasteorizações de Ockham aproximam­se a algumas das temáticascontemporâneas da filosofia da linguagem. Contudo, comonosso interesse é uma possível aproximação das teoriasockhamistas e o externalismo, cabe­nos, agora, deter­nos nospossíveis elementos que fariam a ligação entre o sistema lógicoockhamista e algumas temáticas relativas à Filosofia da Mente.

4 – Ockham e a Filosofia da MenteAntes de esclarecermos algumas possíveis comparações

entre o sistema ockhamiano e o externalismo temos de entendero que é o externalismo. Comecemos, então, por esse viés.

Durante a primeira metade do século XX as teorizações

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do fundacionismo constituíram­se da vertente mais aceita acercade algumas questões fundamentais de epistemologia,principalmente no que tange à forma de justificação de nossascrenças. Contudo, parece que essas idéias foram perdendo forçae, hodiernamente, o fundacionismo é rejeitado por grande partedos pesquisadores desse tema. Contudo, ainda permanecelatente no âmbito filosófico a questão de se o aparato cognitivohumano e as formas pelas quais nós o utilizamos constituem­sede uma forma apta a produzir crenças precisas sobre o meio­ambiente que nos rodeia. O que mais fica evidenciado aqui éque devemos investigar acerca da possibilidade de que nossascrenças sejam errôneas e das condições para que possamosproduzir conhecimento. Tal investigação assume, dessa forma,capital importância.

Se por um lado essas investigações oriundas dofundacionismo nos colocaram em um círculo vicioso docartesianismo, por outro o externalismo parece­nos uma formainteressante de sair desse círculo sem cair em uma espécie deceticismo. Uma das formas que os epistemólogos encontrarampara dar conta do problema de quais condições são necessáriaspara que se produza o conhecimento foi o externalismo. Masfalar de externalismo requer entender que tipo de externalismoestamos tratando aqui e tentando ligar com as teorias deOckham. Segundo Panaccio, o externalismo pode ver visto empelo menos três formas distintas: o externalismo lingüístico, oexternalismo do conteúdo mental e o externalismo epistêmico.

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O primeiro buscaria mostrar que o falante, no momento de suaenunciação depende de alguns elementos externos a ele,elementos que iriam além de suas estruturas internas. O segundotipo defende a idéia de que o verdadeiro conteúdo que compõeas crenças de um agente não dependem unicamente de estadosinternos dessa agente, mas, também, de alguns fatores externos.A terceira forma de expressão de externalismo, dessa forma,postula que um agente acredita que o saber não dependeexclusivamente de determinados estados internos do agente,mas, também, de alguns fatores externos.

Se por um lado pudermos entender que a pesquisa sobreo externalismo eclode a partir da segunda metade do século XX,parece­nos plausível averiguar a intuição de Panaccio queafirma uma interligação entre as teorias do Venerabilis Inceptore as duas primeiras formas de externalismo acima determinadas.Vejamos, então, quais seriam os argumentos que nospossibilitariam afirmar esses elementos dentro da filosofia deOckham.

Comecemos por averiguar uma passagem muitointeressante do texto ockhamiano onde estão explicitados algunsaspectos relativos à teoria do ato mental:

Outra poderia ser a opinião, segundo a qual a paixão daalma é o próprio ato do intelecto. E porque essa opiniãome parece ser a mais provável de todas as queestabelecem estarem subjetiva e realmente na almaessas paixões da alma, como verdadeiras qualidadesdela, exporei primeiro o modo que me parece maisprovável acerca dessa opinião (...). Digo, pois, que

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quem quer manter essa opinião pode supor que ointelecto, apreendendo uma coisa singular, produz em simesmo um conhecimento dessa coisa singular, apenas,conhecimento que se chama paixão da alma, capaz porsua natureza de representar a coisa singular. Portanto,assim como, por convenção, a palavra ‘Sócrates’representa a coisa que significa de modo que, ao seouvir a frase ‘Sócrates corre’ não se concebe que apalavra ‘Sócrates’, que se ouviu, corre, mas sim acorrida da própria coisa significada por ela, também,quem visse ou inteligisse ser afirmada alguma coisadessa intelecção de alguma coisa singular nãoconceberia que a própria coisa a que o conhecimento serefere é assim. Logo, como a palavra convencionalrepresenta a própria coisa, também a intelecção, porsua natureza, sem convenção alguma, significa a coisaa que se refere. [grifo nosso] Mas, além dessaintelecção da coisa singular, o intelecto forma em sioutras intelecções, que não pertencem mais a esta coisaque àquela. Assim como a palavra ‘homem’ nãosignifica mais Sócrates que Platão e, portanto, suasuposição não é mais de um deles do que o outro, omesmo se diria de tal intelecção que por ela não seinteligiria mais Sócrates do que Platão ou qualqueroutro homem. Coisa igual se deveria dizer de qualqueroutra intelecção, pela qual não se inteligisse mais esteanimal que outros, e assim por diante. Em suma, pois,as próprias intelecções da alma são chamadas paixõesda alma e representam por sua natureza as própriascoisas exteriores ou outras coisas na alma, como aspalavras representam as coisas por convenção.21 [grifosnossos]

Primeiramente comecemos por notar que Ockhamconsidera as expressões conceito, afecções da alma, paixões daalma, intenções da alma e intelecto como sendo expressõessinônimas. Partindo desse esclarecimento inicial podemos verno texto acima, dois pontos onde aponta­se um alinhamentoentre as teorizações ockhamianas e as teses externalistas.Primeiramente ele remete a noção de intelecção da coisa

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referida. Em segundo lugar ele coloca as intelecções comosendo oriundas das coisas que estão fora da alma humana. Nessesentido podemos notar que a teoria semântica do VenerabilisInceptor nos mostra claramente que as palavras não significamconceitos, elas referem­se a coisas. Justamente aqui podemos teruma forma de alinhamento entre o sistema de Ockham e o queafirma o externalismo lingüístico.

Em outra passagem notamos essa mesma referenciaçãodas palavras como tendo seu referente em algo fora da almahumana, vejamos: “(...) o conceito e todo o universal é umaqualidade existente subjetivamente na alma, que por suanatureza é como um sinal de uma coisa fora da alma, assimcomo a palavra é um sinal das coisas pela instituiçãovoluntária22”. Assim, teremos a seguinte afirmação dentro denosso sistema: “o ato da intelecção incide sobre uma realidadeexistente extra animan”23. Justamente aqui temos umacongruência entre o sistema que afirma uma primeira forma doexternalismo, o lingüístico, com a segunda forma deexternalismo, o do ato mental.

Para entendermos precisamente como um modeloimplica em outro, dentro do sistema desenvolvido peloVenerabilis Inceptor, temos de entender a forma de dependênciasemântica que nosso autor postula. Realmente podemos falar emuma forma de dependência semântica dentro desse sistema.Contudo devemos visualizar que tal dependência semânticaacontece das palavras em relação aos conceitos. Essa relação de

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subordinação é expressa na teoria da subordinação.Entrementes, podemos notar que a formulação de uma espéciede linguagem mental em Ockham iniciam elementos quetambém nos garantem e atestam a união das duas formas deexternalismo.

Vejamos, primeiramente, a confirmação das relaçõessemânticas dentro da teoria da subordinação ockhamiana. Otexto a seguir é retirado da mais acabada obra lógica de nossoautor, a saber, a Suma Lógica. Nas palavras de nosso autortemos: “O ponto é mais propriamente que as palavras faladasestão impostas para significar as coisas autênticas que sãosignificadas por conceitos da mente, de modo que um conceitoprimaria e naturalmente signifique algo e uma palavra faladasignifique a coisa mesma secundariamente”24. Essa relação desubordinação, contudo, parece ficar mais clara a partir daseguinte passagem:

Primeiramente, cumpre saber que se chama intenção daalma algo na alma destinado a significar algo diverso.Assim, como foi dito antes, do modo em que o [termo]escrito é signo secundário com respeito às palavrasfaladas, porque entre todos os signosconvencionalmente instituídos, as palavras faladas têmo primado, assim as palavras faladas são signossecundários daquilo de que as intenções da alma sãosignos primários. E, por isso,diz Aristóteles que aspalavras faladas são ‘marcas daquelas coisas que sãopaixões da alma ‘. Aquilo, porém, existente na alma,que é o signo da coisa, a partir do qual a proposiçãomental se compõem – ao modo em que a proposiçãovocal se compõe de palavras faladas ­, e às vezeschama­se intenção da alma, às vezes similitude dacoisa, e Boécio, no Comentário ao Perihermenéias,chama intelecção. Assim, ele pretende que a proposição

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mental seja composta de intelecções, não certamente deintelecções que são realmente da alma intelectiva, masde intelecções que são certos signos da alma,significando outras [coisas] e dos quais a proposiçãomental é composta. Assim, quando quer que alguémprofira uma proposição falada, antes formainteriormente uma proposição mental, que não é deidioma algum, tanto que muitos freqüentemente formaminteriormente proposições que, em razão de defeito doidioma, não sabem expressar. As partes dessasproposições mentais chamam­se conceitos, intenções,similitudes e intelecções25. [grifos nossos]

No sistema ockhamiano notamos que existe umarealidade, a linguagem mental. Essa linguagem mental é umaforma de realidade psíquica onde falar e compreender seriamoperações que corresponderiam, na mente humana, à associaçãode sinais sonoros a formas de representações mentais realmenteexistentes em cada um. A linguagem mental em Ockham é umateoria acerca da mente humana. Debaixo dessa teoria podemosnotar a idéia da subordinação, ou seja, uma estrutura ondepoder­se­ia exprimir, através de signos vocais, termos mentais.Nesse sentido a linguagem mental teria a função ou capacidadepuramente referencial. Essa estrutura coloca nossos atos mentaisem estreita conexão com a linguagem, não com uma forma depsicologismo. Para nosso lógico medieval temos que o atointelectivo, entendido como um signo de uma coisa singular, éalgo de real, mesmo que isso se remeta à uma pura intenção damente. Essa característica liga alguns traços da linguagemmental de Ockham frente ao segundo tipo de externalismo. Pormais que ele afirme a necessidade de um ato mental ele sempre

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postula a necessidade de algo externo ao agente para dar o inícioaos procedimentos que envolvem os atos mentais e, porconseguinte, à linguagem mental. Nesse sentido Ockham chegaa postular que existem representações mentais que se referemnecessariamente a coisas externas. Contudo, essasrepresentações acontecem no mesmo nível do conceito, não aonível das imagens. Essas idéias, expressas no conjunto einterface de suas teorias da suposição e da conotação, mostramuma enorme similaridade com as idéias de Putnam.

5 – Considerações FinaisComo foi salientado até aqui, é possível vislumbrar

algumas das idéias do Venerabilis Inceptor em complexodiálogo com formulações contemporâneas tanto na filosofiaanalítica quanto da filosofia da mente. Teorias como a dareferenciação direta e externalismo, dentre outras, aproximam­se muito de algumas idéias defendidas por nosso lógicomedieval.

Contudo, esse trabalho apresenta­se somente como oinício de um estudo. Sabemos que muito mais pode serevidenciado e desenvolvido no que tange a aproximações entreOckham e alguns sistemas filosóficos contemporâneos.Infelizmente tais aproximações não puderam ser maisdetalhadas nesse presente trabalho.

Nosso objetivo aqui foi apontar para possíveis

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alinhamentos de Ockham frente ao externalismo. Nãopretendemos, contudo, estabelecer a pedra fundamental de umnovo edifício, mas tão somente pensar em novos horizontesdialogais para questões antigas. Nesse ínterim vimos como asquestões da Filosofia da Mente voltam à tona hodiernamente.Voltamos nosso olhar para a ‘espiada’ que alguns componentesda filosofia analítica fizeram para as teorizações medievais.Nesse caminho ficou claro que existem vários aspectos nológico medieval que se caracterizam como grandesaproximações das teorias produzidas hodiernamente. Contudo,quando entramos no alinhamento básico do externalismo frenteàs idéias de Ockham é que as coincidências se tornaram muitointeressantes. Com certeza as aproximações que foramdesenvolvidas aqui ainda são incipientes e ainda dar­se­ão, aolongo de outros trabalhos. Através de posteriores estudos,pretendemos demonstrar, de forma mais detalhada e complexa,de que forma e em que pontos específicos as teorias do nossomestre franciscano tornam­se efetivas interfaces dialogais com oexternalismo em filosofia da mente.

O externalismo alinha­se muito com várias noções dosistema lógico de Guilherme de Ockham. Demos início a umareflexão que aponta para isso. O caminho foi aberto, o horizonteainda se apresenta como uma senda a se explorar.

Referências Bibliográficas

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Notas1 A esse respeito Cf. o estudo de Brentano denominado ‘A psicologia do

ponto de vista empírico’.2 Cf. BOTTIN, Francesco. Filosofia Medievale della mente. Padova: Il

Poligrafo, 2005. Nesse estudo, p. 13, Bottin fornece vários apontamentosque estabelecem as interfaces entre o sistema desenvolvido por Brentanoe sua ligação com as teorias medievais acerca da Filosofia da Mente.

3 Algumas aproximações feitas recentemente e que demonstram a viabilidadedessas aproximações podem ser encontradas na Revista Veritas. A esserespeito conferir: REVISTA VERITAS. Porto Alegre, v.45, n.3, Set. 2000.p.313­504. Trimestral. ISSN 0042­3955.

4 Esse empirismo epistemológico deve­se ao fato de que para Ockham ointelecto somente pode ter acesso ao indivíduo. Esse acesso ocorre doencontro do intelecto humano com um objeto do mundo sensível. Paraque fosse concretizado esse movimento era necessária uma ferramentaque eliminasse os exageros produzidos pelos sistemas lógicos que lheantecederam. Esse princípio conhecido como ‘princípio da economia’.

5 Cf. BOTTIN, Francesco. Filosofia medievale della mente. 2005, p.134 eseguintes.

6 LEITE JUNIOR, Pedro. O problema dos Universais: a perspectiva deBoécio, Abelardo e Ockham. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001, p.112.

7 Ibdi, p.139.

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8 “a intelecção, por sua natureza, sem convenção alguma, significa a coisa aque se refere”. Trad. de Pedro Leite, op. cit, p. 144. Essa passagempertence ao texto de Ockham na Expositito in Librum PerihermeniasAristotelis, 351, 4­352, 32 que foi editada pelo Instituto São Boa Ventura.

9 “(...) conceptus et quodlibet universale est aliqua qualitas exsistenssubiective in mente, quae ex natura sua ita est signum rei extra sicut oxest signum rei ad placitum instituentis.” L. Sent., VIII, 289, 13­15.

10 “(...) ita sunt quaedam qualitates exsistentes in mente subiective, quibusex natura competunt tália qualia competunt vocibus per voluntariaminstitutionem.” L. Sent., VIII, 290, 1­3.

11 A esse respeito cf. Pedro, op. cit., p. 150­154.12 BOTTIN, op. cit., p. 148, sustenta que existem diferentes concepções a

esse respeito, dentre elas a de Panaccio.13 Essa figura é um desenho esquemático retirado de BOTTIN, op. cit.,

p.149. A mesma figura vem expressa em um estudo de Panaccio, p55.Nesse ínterim Cf. PANACCIO, Claude. Semantics and Mental Language.In.: SAPADE, Paul Vincent (org.) The Cambridge Companion toOCKHAM. New York: Cambridge University Press, 1999, p.53­75.

14 BOTTIN, p.149. Aqui Bottin mostra o quadro do triângulo semânticodescrito acima. Contudo, na página 143, o autor descreve como devemosentender essa exterioridade dos signos em Ockham, conforme a citaçãoque foi feita.

15 Cf.: C. PRANTL: Geschichte der Logik in Abendlande, t. III, p. 327­420In: DE ANDRÉS, Teodoro. El nominalismo de Guillermo de Ockhamcomo Filosofia Del Linguaje. Madrid: Gredos, p.10.

16 MOODY, Ernest A. The Logic of W. of Ockham. New York: Russel &Russel, 1965, p.52­53.

17 Cf. DE ANDRÉS, op. cit., p.18­23.18 Essa foi a tese apresentada por DE ANDRÉS em seu livro supracitado.

Em todo o seu estudo DE ANDRÉS apresenta várias formas nas quaispoderíamos desenvolver uma aproximação entre as teorias de Ockham e aFilosofia da Linguagem Contemporânea.

19 DE ANDRÉS, op. cit., p.284.

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20 DE ANDRÉS, op. cit., p.284.21 Cf. OCKHAM, Guilherme. Expositio in librum Perihermenias Aristotelis,

351, 4­352, 32. In: Opera Philosophica II. Ed. Gambatese et S. Brown.Cura Instituti Franciscani, Universitatis S. Bonaventurae, ST.Bonaventure: N.Y. 1978.

22 Cf. OCKHAM, Guilherme. Scriptum in Librum Primum Sententiarum.Ordinatio (Distintiones II­III). VIII, 289, 13­15. In.: Opera Theologica II.Ed. S. Brown, adlaborante G. Gál. Cura Instituti Franciscani,Universitatis S. Bonaventure, St. Bonaventure: N.Y. 1970.

23 Cf. Pedro, op. cit., p. 145.24 OCKHAM, Summa logicae I, 1. In: Opera Philosophica I. Ed. Ph.

Boehner, G. Gál. E S. Brown. Cura Instituti Franciscani, Universitatis S.Bonaventurae. St. Bonaventurae: N. Y. 1974.

25 OCKHAM, Summa logicae I, 12, 41, 8­42, 28.