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Dinâmica Cognitiva da Memória, Externalismo sobre o Conteúdo Mental e Ceticismo na Epistemologia Contemporânea Nome: Ricardo Rangel Guimarães, Orientador: Prof. Dr. Cláudio Gonçalves de Almeida Programa de Pós - Graduação em Filosofia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS Resumo O trabalho a ser apresentado trata de tópicos fundamentais de epistemologia da memória, do externalismo e do autoconhecimento no contexto da filosofia da mente contemporânea. Num primeiro momento, são fornecidas as bases da epistemologia de Tyler Burge para balizar a investigação subseqüente, bem como aspectos essenciais da dinâmica cognitiva da memória. Num segundo momento, as teorias epistêmicas da memória de Burge e Sven Bernecker são expostas e analisadas, bem como o argumento da memória de Peter Ludlow, que é discutido com a intenção de fornecer explicações alternativas para uma possível compatibilidade entre uma perspectiva externalista ou anti-individualista sobre o conteúdo mental com o conhecimento dos próprios pensamentos do sujeito cognoscente, em um horizonte de investigação epistemológico. Ao final, será discutida perifericamente a questão do ceticismo neste contexto, em particular nas questões referentes ao exemplo de Hilary Putnam dos cérebros numa cuba, na clássica disputa externalismo versus internalismo, bem como a posição de Donald Davidson sobre o tema. Na verdade, a intenção do trabalho é de apresentar um quadro panorâmico e bastante geral sobre todos os aspectos citados, bem como tópicos afins e relacionáveis, a fim de se fornecerem fundamentos mínimos para uma análise e discussão mais aprofundada numa perspectiva de dissertação de mestrado: este material pretende ser o substrato teórico e básico para um corte mais específico como o tema da dissertação, que orbitará em torno da epistemologia da memória e da filosofia da mente, e todo o material de discussão presente aqui é relevante para este fim. 1

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Dinâmica Cognitiva da Memória, Externalismo sobre o Conteúdo Mental e Ceticismo na Epistemologia Contemporânea

Nome: Ricardo Rangel Guimarães, Orientador: Prof. Dr. Cláudio Gonçalves de

Almeida

Programa de Pós - Graduação em Filosofia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,

PUCRS

Resumo

O trabalho a ser apresentado trata de tópicos fundamentais de epistemologia da

memória, do externalismo e do autoconhecimento no contexto da filosofia da mente

contemporânea. Num primeiro momento, são fornecidas as bases da epistemologia de

Tyler Burge para balizar a investigação subseqüente, bem como aspectos essenciais da

dinâmica cognitiva da memória. Num segundo momento, as teorias epistêmicas da

memória de Burge e Sven Bernecker são expostas e analisadas, bem como o argumento

da memória de Peter Ludlow, que é discutido com a intenção de fornecer explicações

alternativas para uma possível compatibilidade entre uma perspectiva externalista ou

anti-individualista sobre o conteúdo mental com o conhecimento dos próprios

pensamentos do sujeito cognoscente, em um horizonte de investigação epistemológico.

Ao final, será discutida perifericamente a questão do ceticismo neste contexto, em

particular nas questões referentes ao exemplo de Hilary Putnam dos cérebros numa

cuba, na clássica disputa externalismo versus internalismo, bem como a posição de

Donald Davidson sobre o tema. Na verdade, a intenção do trabalho é de apresentar um

quadro panorâmico e bastante geral sobre todos os aspectos citados, bem como tópicos

afins e relacionáveis, a fim de se fornecerem fundamentos mínimos para uma análise e

discussão mais aprofundada numa perspectiva de dissertação de mestrado: este material

pretende ser o substrato teórico e básico para um corte mais específico como o tema da

dissertação, que orbitará em torno da epistemologia da memória e da filosofia da mente,

e todo o material de discussão presente aqui é relevante para este fim.

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Introdução: A Epistemologia de Tyler Burge como ponto de partida para análise

Na filosofia da mente do século XX e na epistemologia analítica contemporânea,

duas abordagens distintas podem ser feitas sobre o externalismo e o conhecimento de si

em Tyler Burge: o externalismo ( ou externismo ) sobre a autorização epistêmica, e o

anti-individualismo sobre o conteúdo mental. Embora ambas as teorias sejam distintas,

elas mantém uma relação entre si, e apesar de Burge não chamar de externalista

explicitamente a sua teoria do conteúdo mental, ele denomina a sua epistemologia de

externalista. Estas duas teses, de fundamental importância tanto para a teoria do

conhecimento quanto para a filosofia da mente, serão expostas minimamente neste

ensaio, e um estudo específico sobre a epistemologia e a dinâmica cognitiva da memória

faz-se necessário para a exposição e análise do tema e dos tópicos em questão. O

aspecto do externalismo sobre o conteúdo mental irá requerer maior atenção no presente

trabalho, haja vista sua conexão com a epistemologia e a questão da justificação

epistêmica em todo este contexto. O argumento da memória, que será abordado e

discutido posteriormente, tem uma razoável influência e destaque no debate acerca do

problema da conciliação entre o externalismo e o autoconhecimento ( ou conhecimento

de si ). Antes de adentrarmos nestas questões, contudo, é prudente expormos breve e

rasamente alguns tópicos básicos introdutórios da epistemologia de Burge, a fim de

balizar as discussões subseqüentes.

Na epistemologia externalista burgeana, o sujeito conhecedor, ou crente, está

legitimado (“entitled “) a crer caso não hajam boas razões positivas para se duvidar. Há

duas variedades de autorização epistêmica para Burge, a justificação e a legitimação

(“entitlement“ ). Na primeira, o sujeito está autorizado a crer que P de uma maneira

consciente e articulada dentro do seu sistema de crenças, e na segunda está legitimado

ao crer que P quando não há a existência de razões plausíveis e positivas para se duvidar

que P ( algo como um “ direito “ epistêmico do sujeito cognoscente ). Em “Content

Preservation“, Burge desenvolve esta noção de legitimação afirmando o seguinte: Uma pessoa está legitimada a aceitar como verdadeiro algo que é apresentado como verdadeiro e

que é inteligível para ela, a menos que haja razões mais fortes para não fazer assim.1

A person is entitled to accept as true something that is presented as true and that is intelligible to him, unless there are stronger reasons not to do so. ( BURGE, T. Content Preservation, The Philosophical Review 102, n. 4, 1993, p. 467 ).

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Essa passagem pode ser interpretada como uma espécie de princípio de aceitação

na sua epistemologia, que tem como função básica legitimar a confiança do sujeito em

fontes racionais ( o testemunho verídico dos outros ), e nos recursos para a razão, como

a percepção e a memória, por exemplo. Também poderia ser função deste princípio

atestar em que condições epistêmicas uma crença é aceitável ou não, pode ser tomada

como verdadeira ou não, dando-se ao mesmo um estatuto evidencialista ( uma evidência

quanto ao princípio ) , até que se prove o contrário e se substituam as crenças antigas e

falsas por crenças novas e verdadeiras: pode-se dizer, em certo sentido, que há uma

espécie de conservadorismo epistêmico neste contexto. Há, por sua vez, um certo

coerentismo “negativo“ no ar ao se adotar esta postura de aceitabilidade das crenças,

pois como diz Alvin Goldman em “ Knowledge in a Social World “, p. 128,

[...] Uma segunda teoria é o coerentismo negativo, que afirma que crenças estão justificadas

enquanto o crente não tem razões para duvidá-las ( Harman, 1986 ). Em outras palavras, crenças são

epistemicamente “ inocentes “ até que sejam provadas “ culpadas “. Seu valor é condição para ser

justificada, condição esta que é perdida apenas quando há contra - evidência ( evidência contrária ).

Evidência positiva não é necessária para justificar uma crença.1

Também é levada em conta a possibilidade de tratar-se de um fundacionismo

moderado, em que as bases e os fundamentos da teoria estão ancorados no princípio de

aceitação, onde há dois níveis coexistindo, a saber, o princípio fundador das minhas

crenças, e um conjunto de crenças e opiniões baseadas nesse princípio ( conforme

William Alston, em “Foundationalism“, p. 144 ). Citando Goldman novamente, na

mesma obra e página referida há pouco,

O fundacionismo atribui justificação prima facie para as crenças definitivamente e

independentemente de um “ primeiro princípio “, em igualdade com os princípios de percepção e

memória. Ao contrário do reducionismo, o fundacionismo não requer que se tenha evidência para a

confiabilidade do testemunho. Mesmo na ausência de tal evidência, a crença está justificada, ao menos

A second theory is negative coherentism, which says that beliefs are justified as long as the believer has no reasons for doubting then ( Harman, 1986 ). In other words, beliefs are epistemically “ innocent “ until proven guilty. Their default condition is to be justified, a status they lose only when there is countervailing evidence. Positive evidence is not needed to justify a belief. ( GOLDMAN, A., Knowledge in a Social World, 1999, p.128 ).

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prima facie justificada. Esse tipo de visão era favorecido por Thomas Reid, e recentemente foi endossado

por Tyler Burge ( 1993 ).2

Diferentemente de um princípio fundacionista, o que Burge pretende na sua

epistemologia é fornecer uma espécie de direito prima facie pro tanto do sujeito que

crê, hipótese esta mais fraca que a adoção de crenças de fundo ( “ backgrounds “ )

fundamentais: esse caráter pro tanto significa que é assim que deve ser, até que se

apresentem boas razões contrárias para não se continuar crendo. Esse suposto direito

fornece uma satisfação parcial em relação a algum fundamento incontestável, e

legitima, de certa forma, os intercâmbios epistêmicos usuais entre as diferentes crenças

no interior do sistema, mantendo as crenças básicas e a coerência interna. O caráter

desse direito epistêmico é revogável, e na ausência de razões positivas para se

colocarem essas crenças em dúvida, o sujeito teria um direito prima facie a priori de

crer e tomar por verdadeiro aquilo que para si é inteligível. Esse direito, apesar da sua

natureza a priori, é suprimível empiricamente, havendo uma distinção entre a

originalidade do direito epistêmico de crer verdadeiramente em algo inteligível e

razoável e das considerações que o suprimem: a natureza do direito original a tomar por

verdadeiro o que parece inteligível é diferente destas considerações que o suprimem ( as

considerações supressoras são a posteriori, e o direito é a priori ).

Um exemplo que pode ser trazido à baila para ilustrar esse ponto é o de

desconfiar e colocar em dúvida um raciocínio dedutivo sabendo-se que existem

problemas de memória na cognição do agente epistêmico em questão: supondo-se que a

percepção é condição necessária para a compreensão do que os outros dizem, bem como

a memória também o é para a realização de uma prova dedutiva, se parece ao sujeito

que o mesmo ouviu uma frase qualquer no passado, então ele tem o direito prima facie a

priori de crer no conteúdo proposicional dessa frase, na ausência de considerações

supressoras. Analogamente, se o sujeito lembra de uma dedução realizada no passado,

ou dos passos anteriores de uma prova dedutiva em execução, então ele está legitimado

epistemicamente no prosseguimento da prova, ou a crer no teorema, respectivamente,

uma vez que não haja a presença de considerações supressoras. Entretanto, se esse

Testimonial foundationalism assigns prima facie justification to testimonial beliefs by positing and independent “ first principle “, on a par with principles for perception and memory. Unlike reductionism, foundationalism does not require a hearer to have nontestimonial evidence for the reliability of testimony. Even in the ausence of such evidence, testimonial belief is justified, at least prima facie justified. This kind of view was favored by Reid, and has recently been endorsed by Tyler Burge ( 1993 ). (GOLDMAN, A., Knowledge in a Social World, 199, p. 128 ).

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mesmo sujeito, num tempo posterior, descobrir que num momento anterior não estava

cognitivamente funcionando bem ( por exemplo, que estava alucinando, ouvindo vozes,

ou que apresentava falhas de memória ), a informação que ele adquire posteriormente,

que tem uma origem empírica, suprime esse direito a priori original. No caso presente,

devido às condições supressoras, ele perde o direito de crer no conteúdo da frase que ele

adquiriu, uma vez pressupondo-se que a percepção é condição necessária para a

compreensão do que os outros dizem, do testemunho, assim como o bom

funcionamento cognitivo da memória também o é para a efetuação de uma prova

dedutiva: diante disso, a crença que o mesmo adquiriu de que a dedução feita no

passado era um teorema é perdida, pois o direito epistêmico a seguir provando tal

teorema foi perdido também3.

Em resumo, a partir destas considerações iniciais, pode-se afirmar que a

epistemologia burgeana, apesar de não fornecer crenças fundacionais stricto senso,

defende uma espécie de externalismo fundacionista a respeito do seu conceito de

autorização, dentro de uma teoria da justificação epistêmica, e utiliza o princípio de

aceitação como condição legitimadora das minhas crenças verdadeiras. O direito

epistêmico prima facie pro tanto de Burge fornece apenas uma satisfação parcial,

parcial esta em relação a algum suposto fundamento inabalável, mas plenamente

satisfatório no que diz respeito à legitimação das diversas trocas epistêmicas dentro do

meu sistema de crenças, sendo, portanto, revogável, podendo inclusive se mostrar

insuficiente caso se leve em consideração todas as crenças do meu sistema ( segundo

Peter Graham em “ Testimonial Justification “, p. 84 ).

Na seqüência, após esta brevíssima introdução, serão expostas as teorias

epistêmicas da memória de Tyler Burge e Sven Bernecker, e a tese do externalismo

sobre os conteúdos mentais, bem como o autoconhecimento e algumas questões

envolvendo o ceticismo na epistemologia contemporânea, no intuito de se fornecerem

elementos mínimos para uma compreensão razoável deste cenário todo; o objetivo, ao

final, será o de fornecer idéias bastante gerais deste cenário, a fim de suscitar a

discussão e pesquisa ulterior sobre tais tópicos. A gama de temas é bastante

diversificada, e o objetivo mais geral é apresentar uma espécie de quadro sinóptico e

esquemático sobre todas estas questões em debate e análise.

Metodologia Conforme Burge em Interluction, Perception and Memory, p. 27.

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O que se pretendeu fazer no presente trabalho foi apresentar de forma

esquemática tópicos da dinâmica cognitiva da memória num contexto epistemológico,

rivalizando especialmente as teorias epistêmicas da memória de Tyler Burge e Sven

Bernecker nos seus diferentes aspectos e enfoques. À estes temas segue-se toda uma

discussão sobre o externalismo sobre o conteúdo mental, partindo duma discussão sobre

uma conciliação entre a compatibilização de uma hipótese sobre a existência de um

mundo exterior e independente do sujeito cognoscente com os seus estados mentais, e a

dependência ou não destes, em alguma medida, com os objetos do mundo exterior. O

problema do autoconhecimento e da autoridade da primeira pessoa emerge

necessariamente nesta discussão, e variedades de externalismo, como o externalismo

social de Burge, bem como outras variedades de externismo ( como os de Putnam e

Boghossian, por exemplo, ) são evocados a fim de balizar a discussão. O argumento da

memória de Peter Ludlow, na interpretação de Boghossian, é apresentado para ilustrar o

contraponto entre a compatibilidade ou não do externalismo com o conhecimento dos

próprios pensamentos e estados mentais do sujeito que julga pretender conhecer,

especialmente no que se refere ao conhecimento do passado. É nesse contexto que

procura-se confrontar as teses de Burge e de Bernecker da visão da memória como

retenção de conhecimentos e de representações, respectivamente, bem como das

questões céticas decorrentes deste cenário, e os exemplos putnamianos dos

experimentos mentais da Terra - Gêmea e dos cérebros numa cuba servem e são

utilizados para se procurar relacionar e “ amarrar “, de alguma forma encadeada, todos

os tópicos em questão. O procedimento metodológico a ser utilizado, na maior parte do

tempo, é o da análise expositiva e descritiva, procurando mostrar e tornar claro,

minimamente, os pontos e as problemáticas relevantes para a discussão sob uma

perspectiva de pesquisa investigativa.

Resultados e Discussão: Dinâmica Cognitiva da Memória, Externalismo sobre

o Conteúdo Mental e Ceticismo

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Quando se fala em memória, o que vem primeiramente à nossa mente é a idéia

de lembrança. As lembranças são reconstruídas, pelo sujeito cognoscente, a partir de

percepções atuais e de conceitos que são utilizáveis nesse contexto. Entretanto, a

adequada explicação cognitiva da memória é condicionada a uma explicação necessária

de como a mente retém informações ao longo do tempo. Segundo o filósofo norte

americano Norman Malcolm e o neurocientista Ivan Izquierdo, por exemplo, para haver

memória é preciso que as informações recuperadas ( ou disponíveis ) tenham sido

adquiridas num tempo passado, e estas devem ser armazenadas em algum sistema

biológico ou artificial. Todo e qualquer fenômeno que possa ser considerado como

“memória “ ou “ lembrança “ deve envolver algum tipo de retenção de conteúdo mental,

sendo esta retenção a condição cognitiva suficiente para tal fenômeno. Uma

característica básica da memória é a capacidade de reter informações na mente, e de ter

o seu conteúdo correspondente ao conteúdo de um estado informacional anterior do

sujeito adquirido no passado, ao contrário de outras fontes de conhecimento e recursos

da razão, como a percepção, o testemunho e o raciocínio, por exemplo, que

diferentemente da memória, são capacidades de adquirirem informações, e não de

reterem as mesmas ( segundo Gareth Evans, em “ The Varieties of Reference “, p.239 ).

Segundo Malcolm, quando o conteúdo da memória está estruturado

proposicionalmente, nós podemos nos lembrar de acontecimentos ocorridos no passado,

fatos que estejam ocorrendo no presente, os que acontecerão no futuro, e de objetos

atemporais. É importante salientar que a memória não é necessariamente sobre o

passado: o fundamental para haver memória é que o conteúdo mental tenha sido

adquirido no passado, e não que seja sobre o passado, diferentemente, por exemplo, do

que pensava Aristóteles no seu tratado sobre a memória segundo a qual a mesma, a

memória, é do passado, e a percepção é do presente, conforme pode ser constatado na

seguinte passagem do pensador estagirita:

Em primeiro lugar, pois, temos que entender a que classe de coisas são objetos da memória, pois

com freqüência engana-se a este respeito. É, com efeito, impossível recordar o futuro, que é objeto de

conjectura ou de espera - poderia inclusive haver uma ciência da “expectativa “, segundo alguns a mesma

seria a adivinhação – e tampouco há memória do presente, apenas percepção deste; é posto que, pela

percepção, não conhecemos aquilo que é passado ou futuro, mas apenas aquilo que está presente.

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Contudo, a memória tem por objeto o passado; ninguém poderia pretender recordar o presente enquanto

presente.4

O estudo da memória sob o aspecto da dinâmica cognitiva trata, basicamente, das

opiniões e atitudes proposicionais que envolvam elementos contextuais, bem como das

relações que são estabelecidas entre as informações sensoriais adquiridas pela via

perceptual e os correlatos retidos pela via da memória. Neste contexto, o que se busca é

mostrar que transformações o conteúdo mental retido através do expediente da memória

precisa sofrer para permanecer o mesmo: nesse sentido, o sujeito cognoscente precisa

realizar ajustes neste conteúdo para compensar a passagem do tempo, haja vista que a

memória cognitivamente depende do tempo, bem como deve haver uma

correspondência entre as transformações do mundo exterior e as mudanças cognitivas.

Tyler Burge distingue a memória em três variedades5, e a define dos seguintes

modos, a saber: memória experiencial, memória substantiva e memória preservativa. A

memória experiencial e a memória substantiva são bastante semelhantes, pois são

voltadas a objetos e à lembrança destes: a memória experiencial tem a ver com a

memória episódica, pois requer um lembrar de algo, que pode ser um objeto ou um

evento, e há a aquisição, em primeira mão, da informação adquirida no passado. Já a

memória substantiva envolve um lembrar que P, lembrar este que diz respeito a uma

crença adquirida no passado, assim como também na primeira variedade, e refere-se a

fatos gerais: tanto a memória experiencial quanto a episódica fornecem elementos para a

justificação epistêmica ( conforme Burge em “ Interlocution “, p. 37 ). O terceiro tipo de

memória é a chamada memória preservativa, que retém o conteúdo mental para outros

usos sem introduzir novos conteúdos no pensamento atual, e não requer uma nova

autorização epistêmica, podendo se fazer no presente caso uma certa analogia com o

recurso linguístico da anáfora e da referência anafórica, segundo o próprio Burge: por

exemplo, num tempo t1 eu penso que P, e num tempo t2 posterior eu penso que pensei

que P no passado. Para Burge, a memória remeteria anaforicamente a pensamentos

passados, onde ao pensar que pensei que P no presente remeteria ao pensamento Em primer lugar, pues, hemos de entender que clase de casos son objetos de la memória, ya que con frecuencia se yerra en este punto. Es, en efecto, impossible recordar el futuro, que es objeto de la conjetura o de la espera - podria incluso haber una ciencia de la expectación; según alguns dicen que ella es la adivinación - tampoco hay memoria del presente, sino tan sólo percepción de él; puesto que, por la percepción, no conocemos ni lo que es futuro ni lo que es pasado, sino solamente lo que es presente. Ahora bien, la memoria tiene por objeto el pasado; nadie podría pretender recordar el presente, mientras él es presente. ( ARISTÓTELES, Del Sentido y lo Sensible y De la Memoria y el Recuerdo - Trad. Francisco Saramanch, Aguilar Argentina S.A., Ed. Buenos Aires, 1973 ). Em Memory and Persons, p. 289.

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anterior penso que P. Esse suposto anaforismo da memória preservativa tem a ver com

as relações lógicas entre as cadeias de premissas e conclusões em um raciocínio

silogístico: leva um determinado tempo raciocinar, e os passos do raciocínio são

preservados à medida que o mesmo é feito, sucedido no pensamento. Ao pensar a

conclusão, não alteram-se as premissas, preservando-se com isso a força justificacional

do raciocínio ( em pensamentos e asserções em geral ). Uma das características

essenciais da memória preservativa é manter uma determinada ligação entre

pensamentos atuais e pensamentos passados, como se pode notar.

Os modos de reter informações das três variedades burgeanas de memória

envolvem, experiencialmente, a aquisição, em primeira mão, da informação obtida

cognitivamente ( seja pela via da percepção, da introspecção e do raciocínio), dos fatos

vividos pelo sujeito no passado e que sejam lembráveis por parte deste, e um

fornecimento de elementos para a justificação6. Substantivamente, podem-se reter

informações através de fatos gerais não circunscritos espaço - temporalmente ( por

exemplo, “Aviões tinham turbinas“ ), e preservativamente Burge faz referência ao uso

anafórico posterior por parte do sujeito, onde o raciocínio é apoiado nos passos lógicos

anteriores através da memória: a informação obtida é utilizada para um uso anafórico

futuro no tempo. Também pela memória preservativa são retidas informações onde os

pensamentos e seus modos assertivos não fornecem nem adicionam força

justificacional, sendo a mesma uma condição causal habilitante: por exemplo, numa

relação de implicação lógica “ Se P e Q, então R “, as premissas são “ P “ e “ Q “ e não

“Lembro que P ” e “ Lembro que Q “. Outro ponto importante e relevante na memória

preservativa como retentora de informação é que ela não fornece força epistêmica ao

argumento, apenas o preserva: o uso da memória não é parte da justificação para crer na

conclusão, sendo a justificação, nesse caso, o próprio argumento em questão ( por

exemplo, 4 não se segue da premissa “Lembro que 2 + 2 = 4“, segue-se de “2 + 2 = 4” ).

Resumindo esta breve incursão acerca dos diferentes tipos de memória, pode-se

constatar que a retenção de informações é uma característica geral de todas as

variedades de memória, e que a preservação do conteúdo mental própria da memória

preservativa é uma maneira de reter informações oposta e distinta a dos outros tipos de

memória, como a experencial e a substantiva. É possível reter informação adicionando

conteúdo e força justificacional ao curso de pensamento atual, como na memória

substantiva, ou não, no caso da memória preservativa, segundo Burge: a questão de Burge, Interlocution, p. 37.

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como a memória substantiva, de fato, forneceria esta justificação é matéria de mais

investigação, e não será tratada aqui.

Na teoria geral epistêmica da memória, existem duas teses concorrentes, a saber:

uma que considera a memória como retenção de conhecimentos ( estados mentais com

conteúdos proposicionais ), posição esta defendida por Burge, e outra que considera a

memória como retenção de representações na mente, e que seria uma teoria

representacional da memória: Sven Bernecker é o defensor desta interpretação. Uma

questão relevante e importante a se colocar neste contexto é se estas representações,

enquanto conteúdos mentais possuiriam um caráter proposicional, e não meramente

informacional, sendo passível dar a este conteúdo um estatuto e caráter epistêmico ( por

outro lado, podemos fazer aqui a seguinte digressão: como alguém poderia ter acesso

direto do passado, senão pela memória e pela representação? ). Independentemente do

que significam e da distinção que possam ter estas duas teses, e esta é matéria bastante

complexa para se discutir no detalhe presentemente, a teoria epistêmica da memória

sugere algumas questões para reflexão, como por exemplo, a possibilidade de

lembrarmos do que não temos justificação para crer: o exemplo da replicante Rachel no

filme “ Blade Runner “ pode servir para ilustrar este ponto, pois ela lembrava

ostensivamente de ter tido aulas de piano na infância, quando na verdade ela não tinha

justificação para ter a opinião, a crença de que estudou piano, pois descobriu

posteriormente que era uma replicante com memórias implantadas ( o sentido ostensivo

de lembrar, sob alegação de memória, tomando o relato da memória pelo seu valor de

face, é distinto da memória factiva, do tipo “ Se lembro que P, então P “ ). Bernecker,

em “Remembering without knowing“, também coloca o problema da lembrança sem

crença ao afirmar que “Lembro que P, mas não creio que P” seria pragmaticamente

incoerente, pois não se pode alegar lembrança que P sem alegar crença que P, mas faz

uma objeção importante para destacar o seu ponto em questão, a saber:

Prima facie, um proponente da teoria epistêmica da memória pode descartar a possibilidade de

memória sem crença do fato que “ Eu lembro que P, mas não creio que P “ seja igualmente incoerente

com o paradoxo de Moore “ Está chovendo, mas eu não creio que está chovendo “. A idéia da incoerência

de “ Eu lembro que P, mas não creio que P “ não pode ser explicada apenas supondo ou assumindo que

lembrar implica crer. É possível explicar a incoerência pragmática da afirmação “ Eu lembro que P, mas

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eu não creio que P “ sustentando ao mesmo tempo que memória não implica crença: quando alego

lembrar que P, eu estou convencido que P é o caso e, portanto, creio que P.7

Partindo desta citação, pode-se sustentar que as condições para a alegação de

uma lembrança não são as condições do lembrar: disto se pode dizer que da mera

incoerência da alegação de uma lembrança sem crença não se segue a impossibilidade

de lembrar sem crer. Bernecker lista uma série de situações em que seria possível

lembrar sem crer ( em “ Remembering without knowing “, p.13 ), para sustentar a

argumentação do seu ponto, e dá quatro exemplos de tipos de memórias distintas e

lembranças para defender tal concepção: memória impura ( ou elíptica ), lembrança

desatenta, memória negativa e lembrança ignorante. A memória impura é ter uma

lembrança prévia de algo ( que pode ser um evento ) sem poder opinar sobre esse algo

(por exemplo, alguém lembra de ter visto um eclipse na infância sem ter o conceito de

eclipse para depois opinar sobre ele: a lembrança foi anterior à aquisição do conceito,

sendo posteriormente “ encapsulada “ por este ): o sujeito pode lembrar de determinadas

informações do passado para as quais ele não tivesse à sua disposição os conceitos, e

por essa razão não podia emitir opinião. Na memória desatenta, o sujeito não prestou

atenção ao fato de P durante a aquisição da memória, e por isso não opinou sobre tal

fato ( por exemplo, “Agora lembro que ela vestia um vestido azul “ ); já na memória

negativa, pode lembrar do que não aconteceu ( “ Não trancou a porta “, no exemplo

dado pelo próprio Bernecker ), e na lembrança ignorante lembra, mas toma a sua

memória como resultado da sua imaginação, alucinação, sonho ou loucura: por

exemplo, alguém julga erroneamente estar sob efeito de alguma droga poderosa, vê

algo, toma a visão deste algo como falsa, e com isso não crê naquilo que viu.

Sobre a posição de Bernecker da possibilidade da lembrança sem crença, vem ao

caso perguntar pela justificação epistêmica desta: normalmente, a memória é

cognitivamente a retenção de um estado mental anteriormente adquirido por outra

faculdade ou fonte de informação, como a percepção, por exemplo. Ao se argumentar

de que podemos lembrar daquilo que não temos justificação para crer, pode-se Prima facie, a proponent of the epistemic theory of memory may dismiss the possibility of memory without belief on the grounds that “ I remember that P, but I don’t believe that P “ is equally incoherent as G.E. Moores famous paradoxical statement “ It is raining, but I don’t believe that is raining. The idea is that the incoherence of “ I remember that P, but I don’t belief that P “ cannot be explained unless one assumes that remembering implies believing. It is possible to explain the pragmatic incoherence of the statement “ I remember that P, but I don’t believe that P “ while maintaining that memory does not imply belief: When I claim to remember that P, I am convinced that P is the case and hence believe that P. (BERNECKER, S. Remembering without knowing, In Australasian Journal of Philosophy, Vol. 85, March 2007, p.11- 12 ).

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contrapor a seguinte questão: normalmente, estamos prima facie legitimados a confiar

na memória como mecanismo cognitivo, ainda que falte justificação explícita, pois a

memória é um recurso para a razão, e estamos prima facie legitimados a tomar por

verdadeiro o que ela, memória, nos apresenta8 ( supondo um bom funcionamento

cognitivo e razoável da mesma ). O ponto é, no caso, se podemos atribuir um caráter de

conhecimento a uma lembrança que não está justificada em termos de uma crença,

mesmo com essa legitimação: a natureza desta não teria um estatuto epistêmico? Esta é,

dentre tantas outras, questão relevante para pesquisa e investigação.

A memória puramente preservativa de Burge distingue-se dos outros dois tipos de

memória ( a experencial e a substantiva ) no seguinte aspecto, basicamente: ao não

introduzir novos conteúdos no pensamento atual, corrente, ela não dá nem requer nova

justificação epistêmica. A memória preservativa meramente retém o conteúdo

representacional para um uso subseqüente e posterior. Uma explicação alternativa do

funcionamento da memória preservativa pode ser fornecida segundo o externalismo

social, que é, em certa medida, o externalismo que Burge sugere e defende, embora

hajam restrições quanto ao uso da referência anafórica já citado: para isto, uma breve

análise sobre a teoria do anti-individualismo sobre os conteúdos mentais deve ser feita

para algum entendimento sobre a questão. É uma visão corrente que os externalistas

estão de acordo de que as crenças de que os conteúdos dos nossos estados mentais

intencionais são determinados, em parte, pela nossa relação com o mundo e o ambiente

externo; porém, há um desacordo se isso é compatível com a crença de que temos um

conhecimento direto, autorizado e a priori sobre os nossos próprios estados mentais.

Para tanto, é preciso garantir esse autoconhecimento básico ( conhecimento de si ), uma

vez que um cartesianismo mínimo é necessário para podermos dizer, em alguma

medida, que sabemos o que pensamos, e preservar a autoridade da primeira pessoa

(capacidade auto - reflexiva da mente ) em relação aos nossos pensamentos: Burge

parece admitir esse cartesianismo. Já Paul Boghossian toma a falta de autoridade da

primeira pessoa do sujeito que descobre ter sofrido mudança lenta no passado como o

ponto de partida para uma posição sua contrária à conciliação entre o externalismo e o

conhecimento de si ao invocar o argumento da memória. Esse argumento, a ser

apresentado a seguir segundo a formulação proposta por Peter Ludlow, se estiver

correto, parece refutar a tese do externalismo acerca dos conteúdos mentais, ou anti-

Conforme posição de Burge em Content Preservation.

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Page 13: Dinâmica Cognitiva da Memória, Externalismo sobre o ... - RICARDO RANGEL... · 2. Essa passagem pode ... epistemologia é fornecer uma espécie de direito prima facie pro tanto

individualismo, e está estruturado do seguinte modo, segundo uma interpretação

alternativa de Boghossian:

(i) Premissa 1: Se S não esquece nada, então tudo que ele sabe em t1 ele sabe em t2.

(Lugar Comum)

(ii) Premissa 2: S não esquece nada. ( Estipulação )

( iii )Premissa 3 : Após S ter sido informado que em algum momento não determinado

do passado ele sofreu uma troca não informada de ambiente, tendo adquirido o conceito

de água - gêmea, por exemplo, conceito este que ele não distingue do conceito de água,

em t2 S não sabe que pensou “ penso que a água é um líquido “ em t1. ( S não sabe que

P em t2, após a informação sobre a mudança lenta )

(iv ) Conclusão: Logo, S não sabe em t1 que pensou “ penso que a água é um líquido “

em t1. ( S não sabe que P em t1 ) 9

O que poderia haver de errado com este argumento? Bem, uma objeção a se

levantar aqui é em relação à segunda premissa: se S adquire o conceito de água - gêmea

e pode usá-lo julgando estar utilizando um conceito distinto de água, então se pode dizer

que, em alguma medida, parece que S esquece de algo. Mas supondo que S não esqueça

nada, em conformidade com ( ii ), a Premissa 2, ele mantém a crença que adquiriu sobre

o conceito de água, mesmo após ter adquirido o conceito de água - gêmea próprio da

Terra - Gêmea, um mundo possível exatamente idêntico à Terra, mas apenas com a

diferença específica de que a água lá não é a mesma água da Terra: não haveria

problema algum de ambos os conceitos existirem mutuamente na mente de S, sem haver

a troca de um por outro. Suponha-se que S seja informado da troca de ambiente em

algum instante do passado não determinado, e encontra-se epistemicamente autorizado a

tanto crer que em t1 pensou que água é um líquido quanto que no mesmo tempo t1

pensou que água - gêmea é um líquido também: isso significa que em t2, num tempo

posterior, S não é capaz de discriminar o que pensou em t1, pois há nesse caso a

presença de alternativas relevantes. Bem, se esse for o caso, então a Premissa 1 é falsa,

pois considerando que conhecimento é crença verdadeira justificada, então em t2 S não

No original: ( 1 ) If S forgets nothing, then what S knows at t1, S knows at t2, ( 2 ) S forgot nothing, ( 3 ) S does not Know that P at t2, ( 4 ) therefore, S does did not know that P at t1 (and Social Externalism, Self - Knowledge, and Memory, Peter Ludlow, 1998 )

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discrimina epistemicamente o que pensou em t1. Isso implicaria que alguém pode

deixar de saber algo mesmo não tendo esquecido nada, pois o que autorizaria isso seria

a perda da justificação a crer no que outrora acreditava. Tal absurdo aparente parece ser

possível no externalismo, que diz que o conteúdo mental é individuado relativamente ao

ambiente, e com isso mudanças externas levam á mudanças no pensamento, ainda que o

indivíduo não tome conhecimento das mesmas.

Podemos, então, perguntar: como lembrar e discriminar o que pensamos

anteriormente, haja vista que não distinguimos os conceitos originais dos conceitos

gêmeos? Se os conceitos gêmeos são alternativas relevantes aos conceitos originais,

então a memória não é condição suficiente para discriminar os conteúdos mentais,

embora seja necessária: entretanto, a memória preservativa de Burge garantiria essa

suficiência, uma vez que ela mantém uma perspectiva anterior sem discriminar o

conteúdo que foi anteriormente pensado. Anthony Brueckner10, por sua vez, refuta o

argumento da memória ao dizer que ou S não lembra, ou S não sabe, e com isso defende

o autoconhecimento: mas este, sozinho, não é suficiente para tratar do conhecimento das

próprias lembranças, e é aí que entra Burge com a sua teoria da preservação do

conteúdo mental.

Supondo que algum indivíduo S utilize a memória preservativamente, e que há na

variedade do externalismo social tanto uma identidade de pensamentos presentes quanto

de pensamentos passados, caberia perguntar o seguinte: os conceitos de água adquiridos

pelo mesmo devem ser deferidos ao tempo t1, passado, quando estes foram adquiridos,

ou no tempo t2, presente, quando os mesmos são evocados através deste expediente da

memória? Em geral, os conceitos empregados podem sofrer alterações por mudanças

sócio - ambientais, o que significa que após algum tempo do indivíduo S na Terra -

Gêmea, o mesmo deixa de deferir no ambiente original, nesse mundo possível, e passa a

deferir no novo ambiente a explicação de determinado termo, que é tomado, numa

mudança não informada de ambiente, no sentido homófono, que foi adquirido e

empregado onde encontrava-se anteriormente; Peter Ludlow, por exemplo, pensa assim:

basta a mudança de ambiente para a mudança conceitual, num sentido radical: para ele,

a metáfora da Terra - Gêmea sempre vale, até mesmo em situações corriqueiras

cotidianas. Na variedade de externismo social de Ludlow, uma mudança não informada

de ambiente já seria suficiente para deferir segundo o ambiente novo, sempre podemos

10 Em Externalism and Memory. In Extrnalism and Self - Knowledge. Standard, CSLI Publications, 1998.

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mudar com o tempo aquilo que lembramos evocando a lembrança atual, e não a

aquisição originária do conteúdo mental da memória: a conseqüência disso é que não se

poderia pensar e lembrar duas vezes a mesma coisa, resultando tal concepção em uma

espécie de heraclitianismo sobre a memória, pois todas as nossas lembranças estariam

em permanente fluxo mental ( nesse sentido, não seria possível, metaforicamente

falando, resgatar e ir em busca do tempo perdido proustiano, por exemplo, onde a

memória é entendida como origem, numa lembrança passiva do passado e não

interagindo com o presente: para o escritor francês, parece ser possível ter novamente as

experiências vividas na infância, como tomar chá com bolinho com sua avó ou passear

pelos campos elísios parisienses ).

O termo“ Água “ falado no português, e “ Água “ na língua falada na Terra -

Gêmea são expressões homófonas, e não homólogas: embora conceitualmente ambas

tenham o mesmo significado, não designam e referem o mesmo objeto ( o termo

“água”, nesse sentido, não seria um designador rígido), uma vez que a constituição

química da água - gêmea é distinta de H2O ( XYZ, por exemplo ). Em vista desta

distinção, pode-se expressar o ponto de vista de Burge sobre a questão, que defende que

um sujeito S na Terra que pensa “ A água está fria “, e um sujeito S terráqueo gêmeo da

Terra - Gêmea (que é idêntico a S ) que também pensa homofonamente “ A água está

fria “ tem pensamentos diferentes, devido isto ao fato de que seus pensamentos são

individuados em relação ao ambiente / mundo em que se encontram. Já em Hilary

Putnam, o idealizador do experimento da Terra - Gêmea, há uma diferença conceitual

em relação à posição de Burge : existe mudança de referência com o contexto, onde

“Água” na Terra e “ Água “ na Terra - Gêmea tem significados diferentes, o

pensamento “Água é um líquido“ é equivalente tanto na Terra quanto na Terra - Gêmea:

em mundos possíveis distintos, pode haver o mesmo pensamento com atribuições

distintas de significação ao conteúdo do estado mental em questão ( o externalismo de

Putnam, nesse sentido, é denominado de externalismo semântico ). O externalismo

burgeano sobre o conteúdo mental, neste caso, rivaliza com o de Putnam, que alega que

dois sujeitos, um na Terra e outro na Terra - Gêmea, podem ter o mesmo pensamento;

mas conforme Burge, os pensamentos possuem significados distintos em relação ao

ambiente em que estão relacionados, sendo, por esta perspectiva, incompreensível que

pessoas em ambientes diferentes possam ter o mesmo modo de significação para coisas

distintas.

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Ao utilizar a memória para discriminar os conteúdos mentais em casos de

mudança não informada de ambiente, poderia haver dúvida a respeito de qual ambiente

e quais indivíduos a deferência seria feita: se a memória for utilizada preservativamente,

essa dúvida não existiria, mantendo-se o ponto de vista do que foi apreendido no

passado, segundo uma tese onde o conteúdo mental é individuado de acordo com o

ambiente que foi adquirido: esta seria a perspectiva da variedade do externalismo social.

Entretanto, para Burge, a memória preservativa requereria uma espécie de pensamento

anafórico, talvez semelhante ao que propõe Krista Lawlor11, para resguardar a hipótese

da deferência ser equivalente semanticamente tanto no ambiente passado quanto no

presente. Esta alternativa requereria uma complexa análise sobre a estrutura da

linguagem do pensamento, inviável de ser especulada aqui; uma alternativa a princípio

provisória seria a de compatibilizar os pensamentos presentes com os pensamentos

passados através do externismo social, e nesse sentido o externalismo sobre a memória

de Peter Ludlow pode ser trazido à baila, onde o conteúdo mental é identificado sempre

no ambiente atual do sujeito, mesmo quando ele está lembrando de algo. Nesse caso, o

conteúdo da memória é fixado no momento em que a mesma é evocada, e não no

momento da sua aquisição: isto novamente trás dificuldades de uma compreensão plena

do conceito de memória preservativa. Paul Boghossian atenta para a produção de

irracionalidade que as diversas formas de externismo podem levar, a não ser que se

considerem elementos anafóricos na análise: neste ponto, ele endossa e está em

conformidade com a visão de Burge. Entretanto, ao fazer a sua interpretação do

argumento da memória de Ludlow, Boghossian rejeita a tese do autoconhecimento

básico de Burge12, rejeição esta que será comentada logo a seguir.

O grande problema em todo o contexto desta discussão gira em torno do acesso

que temos da própria mente ( autoconhecimento ), e se posso discriminar os meus

próprios pensamentos, conhecer o que penso, na autoridade da primeira pessoa: se há

racionalidade, consistência e clareza no meu pensamento, estou autorizado

epistemicamente a achar que tenho uma crença que não tenho, ou achar que não tenho

uma crença que, de fato, possuo? Como uma perspectiva externalista pode ser

compatível com a autoridade da primeira pessoa? Além do problema da autoridade da

primeira pessoa, há no externalismo ou anti-individualismo, considerado como uma

rejeição do internismo ou individualismo, que caracteriza-se basicamente pela

11 Em Memory, Anaphora, and Content Preservation. 12 Em Boghossian, P.: Content and Self Knowledge, parágrafo 19.

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independência dos estados mentais entre os indivíduos, o problema da memória e da

justificação epistêmica. Um externismo mínimo defende a dependência desses estados

com outros indivíduos: num certo sentido, parece que é preciso encontrar aquilo de que

meu estado intencional depende para saber em que estado estou, e necessito investigar o

ambiente em que me encontro imerso para saber o que penso; nessa perspectiva, as

minhas crenças são adquiridas a posteriori, através da experiência, e de minha relação

com o mundo exterior, enquanto que o conhecimento de meus pensamentos, o saber o

que eu penso, é algo a priori e não empírico.

Burge, com a sua teoria do autoconhecimento básico, pretende compatibilizar o

externalismo com o conhecimento de si ao tratar os pensamentos ordinários como

pensamentos de primeira ordem, e os juízos de autoconhecimento como pensamentos de

segunda ordem, que herdariam ou subsumiriam os primeiros: o que fosse pensado

ordinariamente seria subsumido como um juízo de autoconhecimento. Por exemplo, se

um sujeito S pensa “A água está fria“, seu juízo de autoconhecimento é “ Penso que a

água está fria “; tal juízo sempre pode ser proferido pelo sujeito, mesmo que o seu

conteúdo mental, o conteúdo do seu pensamento seja determinado por propriedades

externas a si: nesse caso, o sujeito poderia saber o que pensa ( ter a autoridade da

primeira pessoa ) mesmo com a possibilidade da existência de um mundo exterior

independente da sua mente, poderia saber que P apesar da hipótese externalista. Já

Boghossian, na sua rejeição do autoconhecimento burgeano, quer salvar o externismo

sobre o conteúdo mental e também a autoridade da primeira pessoa argumentando que,

na verdade, autoconhecimento não é conhecimento: com isso, rejeita categoricamente o

argumento da memória apresentado anteriormente, e afirma que esse juízo de

autoconhecimento de Burge não é auto- verificante, onde, por exemplo, um sujeito na

Terra que pensa “Penso que a água é um líquido “, e um sujeito na Terra - Gêmea que

afere “ Penso que a água - gêmea é um líquido “ tem pensamentos distintos, e há

mudança conceitual e referencial de “ água” para “ água - gêmea “ numa troca não

informada de ambiente ( slow - switch) para o sujeito judicante S.

Enfim, são várias questões relevante a importantes que foram expostas e

analisadas minimamente, e em termos de resultados, o que mais importa são as

discussões que todos estes tópicos apresentados suscitam como reflexão. Na sequência

final do trabalho, que deveria ter um caráter conclusivo, na verdade é mais uma

tentativa de relacionar os temas tratados com a intencionalidade dos estados mentais e

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representacionais, mais próprios da filosofia da mente, com questões epistemológicas a

respeito do ceticismo filosófico e algumas de suas conseqüências.

Conclusão Geral e algumas questões sobre o Ceticismo na Epistemologia

Contemporânea

Para concluir, algumas considerações muito breves e ilustrativas sobre a tese do

anti-individualismo na filosofia da mente contemporânea, especialmente na visão de

Burge. No individualismo, todos os estados representacionais de um indivíduo são

constitutivamente independentes de quaisquer relações com uma realidade mais ampla

para serem as espécies que são; o anti-individualismo, em contraposição, defende que as

relações do indivíduo com esta realidade são constitutivas de muitos estados mentais

representacionais. Esta é uma visão sobre a natureza dos estados e eventos mentais

representativos que especificam a identidade dos mesmos pelas suas condições

constitutivas, a saber, pelas condições que tornam um estado mental ser o que ele é.

Vários estados mentais representacionais possuem relações constitutivas entre o

indivíduo e o ambiente, como a relação de causalidade, por exemplo. Uma relação

causal entre o indivíduo e o ambiente exterior desempenha uma função na constituição

dos tipos de espécies mentais representacionais dos seus estados mentais

representacionais: a mente, enquanto algo que representa, é o que é por ter relações

constitutivas com o mundo exterior e seus objetos.

As representações mentais são individuadas na mente do sujeito num sentido bem

mais amplo do que meros estados neuroquímicos e psicobiológicos: por exemplo, a

crença de que se fazem folhas de alumínio seria uma instância de uma espécie de estado

mental representativo “fazem-se folhas de alumínio“. Essa espécie mental

representacional possui esta natureza por que o sujeito que representa e individua o

objeto na sua mente mantém uma relação constitutiva com o ambiente natural e social

no seu entorno. Esta relação representacional é de causalidade, no caso: por uma relação

de causa e efeito, um objeto do mundo exterior causa em minha mente a representação

deste objeto ( o efeito ). Uma questão a se levantar, novamente, é se esta representação

possuiria conteúdo proposicional ou não, sendo passível de ser tal conteúdo justificável

epistemicamente pelo sujeito cognoscente, e até que ponto a mera representação na

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mente deste sujeito alcançaria, num nível mínimo do que significaria neste contexto

conhecer, algo próximo do objeto exterior ele mesmo. Estados mentais que possuam

conteúdo representacional são sobre coisas do mundo, e o debate atual é, ao menos em

parte, uma continuação da investigação sobre a natureza das idéias a partir do século

XVII, especialmente com os empiristas clássicos, e da intencionalidade na filosofia

analítica contemporânea de uma maneira geral.

Em torno de todo este debate, surge a questão do ceticismo na epistemologia

contemporânea, que vem desde a teoria do conhecimento e da metafísica de David

Hume na filosofia moderna ( não sem esquecer das origens do ceticismo na história da

filosofia, que remontam ao pirronismo e ao estoicismo de uma maneira geral ), e

permanece até hoje como fonte de muitos debates e controvérsias. A maioria dos

epistemólogos analíticos contemporâneos sustenta que a tese do ceticismo na

epistemologia tem a sua gênese no dualismo existente entre a posição internalista e a

externalista, ou seja, dentre aqueles que defendem apenas a existência de estados

mentais na mente do sujeito cognoscente e epistêmico, e que negam com isso a

existência de um mundo exterior independente do pensamento, e os externalistas, que

tomam como premissa básica que existe um mundo lá fora, com os seus objetos e coisas

que são cognoscíveis, e é este que percebemos, tomamos como verdadeiro e formamos

juízos acerca do mesmo. Uma das análises mais importantes sobre as relações entre o

internalismo, externalismo e o ceticismo pode ser ilustrada pela célebre hipótese de

Hilary Putnam sobre a possibilidade de sermos cérebros numa cuba: no exemplo de

Putnam, o cérebro é removido do corpo e é colocado numa cuba de nutrientes que o

mantém vivo. Os terminais nervosos do cérebro são ligados a um super computador que

faz com que a pessoa de quem é o cérebro em questão tenha a ilusão de que existe um

mundo exterior, e ela percebe as coisas como sendo reais, quando na verdade o que a

pessoa, o sujeito em questão está experenciando é o resultado de impulsos elétricos que

deslocam-se do computador para os terminais nervosos. O computador pode apagar,

inclusive, a memória segundo a qual o cérebro opera, fazendo com que o sujeito julgue

que sempre esteve neste estado. A pergunta cética relevante no contexto epistemológico

a ser feita a respeito da existência do mundo exterior, segundo o exemplo dos cérebros

numa cuba, seria a seguinte: como o sujeito sabe que está nesta situação? A situação

hipotética putnamiana pode ser estendida para todos os sujeitos sencientes e

cognoscentes existentes, ou simplesmente um aparato cognitivo mínimo, que

possuíssem seus cérebros imersos numa cuba: como eles julgariam a respeito da

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existência das coisas e do mundo? Este exercício mental e intelectual levaria, se levado

ás suas últimas conseqüências, ao ceticismo sobre o mundo exterior, e Putnam supõe

que, se fosse verdadeiro que fôssemos, de fato, cérebros numa cuba, poderíamos, de

fato, dizer ou pensar ( ao fim e ao cabo, julgar ) que o éramos?

A resposta de Putnam é negativa, por que para ele este argumento é auto-

refutante, e o prova invocando o experimento mental da Terra - Gêmea, já discutido

anteriormente, em que os sujeitos habitantes deste mundo possível rigorosamente

idêntico ao nosso possuem as mesmas experiências que nós, e também os mesmos

pensamentos, ou seja, passariam pelas mentes dos habitantes de Terra - Gêmea as

mesmas palavras, imagens e formas de pensamento que somos cognitivamente capazes.

Apesar disso, para Putnam, nós não podemos ser cérebros numa cuba, e nem os

habitantes do mundo possível da Terra - Gêmea, cópia e simulacro do nosso, e a razão

para isso é que embora as pessoas da Terra - Gêmea possam pensar e dizer quaisquer

das palavras que nós podemos pensar e dizer, não podem, segundo Putnam, referirem-se

à aquilo a que nós podemos nos referir, pois a referência do pensamento de um mundo

possível está na própria Terra - Gêmea, enquanto a outra está na Terra. Particularmente,

segundo a conclusão de Putnam, os sujeitos da Terra - Gêmea não poderiam pensar ou

dizer que são cérebros numa cuba, mesmo que eles pensem “ somos cérebros numa

cuba “. O externalista aceita que vivemos num mundo e com ele interagimos

causalmente, e para compreendermos o mesmo, lançamos hipóteses explicativas

complexas de como, a partir de entradas sensórias ( como os estímulos nervosos, por

exemplo, responsáveis pela nossa sensibilidade e cognição ), formamos um complexo

conjunto de explicações sobre este mundo. Para o cético, nada pareceria excluir a

possibilidade de que possamos ser, de fato, cérebros numa cuba, onde se não podemos

excluir essa crença de sermos cérebros numa cuba, então disso deveríamos concluir que

não conhecemos nada a respeito do mundo ( o chamado “ ceticismo global “ ). Todas as

nossas crenças poderiam ser falsas ao mesmo tempo, e a questão cética relevante aqui

seria: por que não poderiam todas as minhas crenças serem coerentes e, contudo, serem

todas elas falsas sobre o mundo real? ( essa hipótese do argumento cético lembra

deveras a hipótese do Deus enganador e do Gênio maligno das “ Meditações

Metafísicas “ de Descartes ).

A hipótese de Putnam sobre cérebros numa cuba, que é uma hipótese cética,

pois não estaríamos em contato com o mundo exterior, e é refutada pelo próprio, é

relevante para os que aceitam uma visão naturalista do homem, como é o caso de

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Davidson, por exemplo: para este filósofo de fundamental importância para a filosofia

da mente e a epistemologia contemporânea, se alguém quiser defender uma tese de que

sabemos, temos conhecimento de como o mundo é, e ao mesmo tempo ter uma visão

naturalista, então este alguém deve abandonar o argumento cético de Putnam. Para

Davidson, o internalismo conduz necessariamente ao ceticismo: dentro desta

perspectiva epistemológica, há que se adotar o externalismo para fugir deste ceticismo

para este filósofo, que consiste basicamente em uma abordagem dos três tipos de

conhecimento possíveis ( do mundo, das outras mentes e da própria mente ) a partir da

comunicação entre duas ou mais pessoas, sujeitos judicantes e cognitivos, que

interagem e entre si e com o mundo à sua volta, supondo este exterior à mente destes

sujeitos e tendo uma existência real ). Haveria muito mais coisas a se dizer aqui ao tratar

destes temas, e que resultariam um artigo específico especializado; como a idéia é expor

mínima e perifericamente algumas teses epistemológicas centrais também sobre estes

pontos, encaminho a conclusão desse trabalho comentando um pouco a posição de

Davidson sobre o externalismo e o ceticismo na epistemologia contemporânea,

especialmente uma vertente do externalismo no âmbito da filosofia da linguagem

denominada externalismo semântico: neste, a idéia central é a de que o significado de

uma palavra ou frase ( com conteúdo proposicional ) depende de fatores externos à

mente. Hilary Putnam e Saul Kripke foram os epistemólogos que mais contribuíram

para o desenvolvimento e a difusão do externalismo semântico, que também admite

teorias causais da referência, como já foi dito anteriormente: os objetos e coisas do

mundo, por terem uma existência independente da mente do sujeito cognoscente,

causam na mente as sensações, e há um referente para a coisa pensada no mundo ( há

uma teoria causal da percepção nessa interface entre as filosofias da mente, da

linguagem e a epistemologia, de Strawson, e uma crítica à mesma procedida por

algumas correntes da filosofia da mente, especialmente; contudo, esse tópico não será

discutido aqui, pois igualmente renderia um texto específico versando sobre o mesmo ).

Embora Davidson seja externalista e refute o ceticismo na sua epistemologia,

ele tem algumas objeções ao externalismo semântico, que pretende aperfeiçoar no seu

sistema, especialmente no sentido de fornecer argumentos contra o internalismo.

Davidson propõe uma forma modesta de externalismo que vai contra o ceticismo:

pretende ele mostrar não apenas que as teses céticas são falsas, mas também que os

problemas céticos não devem nos preocupar, uma vez que, sob a égide do externalismo,

eles sequer podem ser formulados. Para Davidson, se o externalismo é a tese correta

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acerca do conhecimento do mundo pelo sujeito, então as dúvidas céticas sobre o mundo

exterior, principalmente em relação à sua existência de fato, sequer podem ser

formuladas. Na sua obra “ The Myth of the Subjective “, p. 45, Davidson coloca que o

ceticismo não pode ser formulado “ se os conteúdos da mente dependem da relação

causal, quaisquer que sejam, entre as atitudes e o mundo “. A simples hipótese da

veracidade epistêmica do externalismo, em especial o externalismo semântico, refuta a

pergunta fundamental acerca de como é possível o conhecimento do mundo exterior,

precisamente esta a questão central do ceticismo. Também o problema das outras

mentes, do conhecimento dos conteúdos mentais das outras mentes, é rechaçado por

Davidson: a tese cética da qual não sabemos nada a respeito da mente dos outros é falsa.

Nós sabemos o que os outros pensam e crêem, mas isso não deve ser visto como uma

resposta à questão cética, mas como uma perspectiva sobre as outras mentes que impede

o aparecimento da própria questão cética. Wittgenstein trata desta questão nas suas “

Investigações Filosóficas “, colocando o problema das outras mentes como um

problema da linguagem ser necessariamente um assunto social na comunicação entre os

sujeitos cognoscentes. Também, nesta perspectiva, deve-se eliminar o ceticismo a

respeito da minha própria mente e dos seus conteúdos mentais: o cético coloca em

dúvida esse conhecimento supondo uma certa tensão entre a autoridade da primeira

pessoa e a tese externalista que apregoa que os nossos conteúdos mentais dependem do

mundo exterior, de fatores externos à mente causados por uma realidade externa e

independente da mente do sujeito. Para Davidson, no lugar das questões céticas

tradicionais, novas questões surgem, como por exemplo, em vez do epistemólogo tentar

explicar o conhecimento do mundo exterior, buscar a natureza do erro, de por que este é

epistemicamente possível, uma vez que a maioria das nossas crenças é forçosamente

verdadeira. Citando o autor em “ The Myth of the Subjective“, p. 47, “ surgem novos

problemas, que giram em torno da natureza do erro, pois o erro é difícil de identificar e

explicar se o holismo que acompanha uma abordagem não fundacionista não é de

alguma maneira limitado “. Por outro lado, em “Knowing One´s Own Mind “, p. 47,

Davidson coloca que “ não é problemático se o conhecimento do mundo e de outras

mentes é possível, mas permanece uma questão como alcançamos tal conhecimento e as

condições que a crença deve satisfazer para contar como conhecimento “.

Em resumo, foram expostas aqui, brevemente, algumas das principais teses da

epistemologia contemporânea e da filosofia da mente do século XX. Cada tópico requer

atenção e tratamento especial, e não foi o objetivo analisar detalhadamente cada um; a

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idéia foi de fornecer um panorama geral e sinóptico de algumas áreas efervescentes de

pesquisa na epistemologia analítica contemporânea e na filosofia da mente, áreas estas

que estão em ampla atividade, com muito trabalho de investigação para os filósofos da

mente e epistemólogos atuais.

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