obras pÚblicas: rede de relaÇÕes e construÇÃo de sÃo paulo em fins do sÉculo xviii

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OBRAS PÚBLICAS: REDE DE RELAÇÕES E CONSTRUÇÃO DE SÃO PAULO EM FINS DO SÉCULO XVIII SANTOS, AMÁLIA CRISTOVÃO DOS Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Rua Mourato Coelho, 195, apto. 2, Pinheiros. São Paulo, SP. CEP 05714-010. [email protected] RESUMO A comunicação a seguir tem por fim apresentar a documentação usada como fonte na pesquisa de mestrado em andamento “A rede de relações na construção da cidade: São Paulo, 1776 -1805”, conduzida junto ao Departamento de História da Arquitetura e do Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), sob orientação da Professora Doutora Ana Lúcia Duarte Lanna. Dessa listagem, destacaremos o conjunto documental de obras públicas da cidade de São Paulo, do último quartel do século XVIII. A primeira parte da dissertação define e apresenta o período e o espaço estudados, a saber, os anos entre 1776 e 1805, na cidade de São Paulo. Esse momento é marcado pelo fim do governo do Morgado de Mateus (1765-1775) até o começo das atividades construtivas do engenheiro e Sargento-mor Daniel Pedro Müller. O tema comum, que liga essas duas figuras, é a realização de obras que visavam o desenvolvimento econômico e a proteção militar da Capitania de São Paulo. Esse mesmo tema, além de definir o recorte temporal, é o mote para a análise subsequente da segunda parte, centrada no grupo denominado “peões” (termo extraído das Ordenações Manuelinas). Esse grupo populacional de homens livre e pobres, do período por nós pesquisado, é pouco presente nos grandes conjuntos documentais originais que poderiam fornecer informações sobre o modo de vida da população, as relações pessoais e a relação da população com o poder público. Inventários e testamentos são mais comuns para a elite, que podia pagar os encargos de sua execução; e os autos criminais do período colonial não se encontram disponíveis para consulta, nos arquivos da cidade de São Paulo. Os Maços de População, no entanto, por seu caráter abrangente, são um corpo documental privilegiado para a apreensão de informações censitárias gerais, que incluem os grupos populacionais intermediários. Fazemos uso das listas nominativas de 1776 e 1798, tanto para extração de dados, quanto como fontes a serem analisadas de forma espacializada. Combinadas à Planta da Cidade de São Paulo de 1810, discutimos as características gerais da população e a constituição de grupos localizados em certos trechos do espaço urbano. Além disso, é possível criar um mapa da ligação da cidade com outras vilas e capitanias, por meio das atividades comerciais. A terceira e última parte da dissertação desenvolve-se em três etapas: (i) descrever os procedimentos de solicitação, projeto, organização e execução de obras em São Paulo, no período estudado; (ii) registrar a ocorrência de obras públicas urbanas como dinâmica regular; (iii) circunscrever o grupo populacional principal na realização desses empreendimentos, centrando-se nos homens livres e pobres que o compõem. Para tal, utilizamos um total de cerca de cem documentos manuscritos, todos inéditos, encontrados no Fundo da

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Artigo apresentado no 2º Seminário Íbero-Americano Arquitetura e Documentação, em 2011, em Belo Horizonte (MG). Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

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OBRAS PÚBLICAS: REDE DE RELAÇÕES E CONSTRUÇÃO DE SÃO PAULO EM FINS DO SÉCULO XVIII

SANTOS, AMÁLIA CRISTOVÃO DOS

Universidade de São Paulo. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.

Rua Mourato Coelho, 195, apto. 2, Pinheiros. São Paulo, SP. CEP 05714-010. [email protected]

RESUMO

A comunicação a seguir tem por fim apresentar a documentação usada como fonte na pesquisa de mestrado em andamento “A rede de relações na construção da cidade: São Paulo, 1776-1805”, conduzida junto ao Departamento de História da Arquitetura e do Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), sob orientação da Professora Doutora Ana Lúcia Duarte Lanna. Dessa listagem, destacaremos o conjunto documental de obras públicas da cidade de São Paulo, do último quartel do século XVIII. A primeira parte da dissertação define e apresenta o período e o espaço estudados, a saber, os anos entre 1776 e 1805, na cidade de São Paulo. Esse momento é marcado pelo fim do governo do Morgado de Mateus (1765-1775) até o começo das atividades construtivas do engenheiro e Sargento-mor Daniel Pedro Müller. O tema comum, que liga essas duas figuras, é a realização de obras que visavam o desenvolvimento econômico e a proteção militar da Capitania de São Paulo. Esse mesmo tema, além de definir o recorte temporal, é o mote para a análise subsequente da segunda parte, centrada no grupo denominado “peões” (termo extraído das Ordenações Manuelinas). Esse grupo populacional de homens livre e pobres, do período por nós pesquisado, é pouco presente nos grandes conjuntos documentais originais que poderiam fornecer informações sobre o modo de vida da população, as relações pessoais e a relação da população com o poder público. Inventários e testamentos são mais comuns para a elite, que podia pagar os encargos de sua execução; e os autos criminais do período colonial não se encontram disponíveis para consulta, nos arquivos da cidade de São Paulo. Os Maços de População, no entanto, por seu caráter abrangente, são um corpo documental privilegiado para a apreensão de informações censitárias gerais, que incluem os grupos populacionais intermediários. Fazemos uso das listas nominativas de 1776 e 1798, tanto para extração de dados, quanto como fontes a serem analisadas de forma espacializada. Combinadas à Planta da Cidade de São Paulo de 1810, discutimos as características gerais da população e a constituição de grupos localizados em certos trechos do espaço urbano. Além disso, é possível criar um mapa da ligação da cidade com outras vilas e capitanias, por meio das atividades comerciais. A terceira e última parte da dissertação desenvolve-se em três etapas: (i) descrever os procedimentos de solicitação, projeto, organização e execução de obras em São Paulo, no período estudado; (ii) registrar a ocorrência de obras públicas urbanas como dinâmica regular; (iii) circunscrever o grupo populacional principal na realização desses empreendimentos, centrando-se nos homens livres e pobres que o compõem. Para tal, utilizamos um total de cerca de cem documentos manuscritos, todos inéditos, encontrados no Fundo da

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Câmara Municipal de São Paulo, no Arquivo Histórico Washington Luís. Trata-se de cartas, bilhetes, ofícios, listas nominais de trabalhadores, recibos e relatórios de despesas, datados em anos variados, entre 1781 e 1805, e referentes a 18 obras. São elas a Cadeia, a Câmara, as Casinhas, uma capelinha, o açougue e curral, um chafariz, a Praça dos Curros, as pontes de Santana, Lorena, Pinheiros e do Acu, o Aterrado de Juqueri e mais 5 ruas. A análise dessa documentação visa a verificação de duas hipóteses: . A existência de um grupo, heterogêneo porém identificável, cujos integrantes relacionam-se,

primordialmente, por seu trabalho nas obras públicas urbanas da cidade de São Paulo, em fins do século XVIII e início do século XIX.

. Não apenas a realização das obras contribui para a constituição desse grupo, mas também as relações estabelecidas em seu interior contribuem para a efetivação das obras, como dinâmica regular e constante.

Assim, esperamos demonstrar como o uso de documentação original pode contribuir para – se não, direcionar – as pesquisas na área de história do urbanismo, conjugando-se com outros campos de conhecimento, tais como a demografia histórica, a sociologia e a história. Palavras-chave: Obras públicas. São Paulo colonial. Trabalhadores.

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INTRODUÇÃO

As pesquisas em história da arquitetura e do urbanismo beneficiam-se, há muito, de fontes originais, tais como plantas, mapas urbanos e documentações variadas sobre obras públicas e particulares. Desde o estudo sobre a atuação de um determinado arquiteto ou escritório até a análise da evolução urbana de uma dita cidade podem ser objetos desse tipo de pesquisa. Da mesma forma, a área de preservação e patrimônio encontra, no material dos arquivos e acervos, fontes valiosas para a atuação prática e a discussão teórica.

O uso de outras fontes – a saber, dados censitários e documentos camarários diversos –, entretanto, segue limitado a pesquisas no campo da história social e, principalmente, econômica. A partir da apresentação da pesquisa em curso “A rede de relações na construção da cidade: São Paulo, 1776-1805”, conduzida junto ao Departamento de História da Arquitetura e do Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), sob orientação da Professora Doutora Ana Lúcia Duarte Lanna, propomos a apresentação das formas de utilização de fontes documentais originais, como forma de investigação das obras públicas municipais e do grupo populacional envolvido com essa produção, no período em questão.

O artigo desenvolve-se a partir da estrutura atual da pesquisa, que compreende três partes majoritárias. Na primeira, trataremos da justificação do recorte proposto e do tema – os "peões" –, que será melhor discutido na segunda parte. Por fim, descreveremos o conjunto documental inédito que cerca o objeto central da pesquisa.

1. O RECORTE TEMPORAL E SUAS CARACTERÍSTICAS

Os trabalhos referentes especificamente ao período em questão – de 1776 a 1805, ou do fim do governo do Morgado de Mateus até o início da atuação regular e constante do engenheiro Daniel Pedro Müller – são escassos. O crescimento populacional acelerado, o aumento da riqueza e as transformações urbanas constantes são características associadas à cidade que se desenvolve a partir da década de 1870i – já colhendo os frutos do sucesso da exploração da cafeicultura –, em oposição à estagnação que teria reinado no século anterior. Poucos são os autores que exploram os efeitos do ciclo do açúcar paulista sobre a constituição e as transformações da cidade de São Paulo e de sua sociedade. ii Nas palavras de Maria Thereza Schorer Petrone (2010), foi a “exportação do açúcar [que] deu impulso à vida de São Paulo, modernizando-a e adequando-a para seu novo papel: participar do mercado externo” (Idem, ibidem, p. 136).

A reduzida bibliografia que abarca – ainda que não exclusivamente – o período aqui estudado demonstra a ineficiência da oposição entre estagnação e dinamismo como categorias de análise da capitania de São Paulo, nos séculos XVIII e XIX. A tabulação sequencial das listas nominativas permite a Maria Luiza Marcílio comprovar que as últimas décadas do setecentos não apresentaram feições de decadência (MARCÍLIO, 1973, p. 99).

Da mesma forma, a construção da imagem de uma cidade paupérrima e isolada, antes do desenvolvimento da lavoura cafeeira, é colocada em xeque por trabalhos como o de Maria Aparecida de Menezes Borrego (2010), Ilana Blaj (2002) e John Manuel Monteiro (2000), que tratam do acúmulo de riqueza, da constituição de uma camada da população relacionada às atividades mercantis e da crescente hierarquização dos habitantes.

Essas pesquisas, entre outras, baseiam-se num corpo documental cujos dados exigem a ponderação da comparação entre a então cidadezinha pacata e a posterior metrópole em construção. Benedito Lima de Toledo, em obra sobre as transformações e o crescimento urbano em São Paulo no século XIX, dá indícios da importância das construções no século XVIII, ao se referir ao Mosteiro de São Bento: “A torre ficou concluída em 1797 e o novo mosteiro em 1800, encerrando, juntamente com as obras do Mosteiro da Luz, o século em que mais se construiu durante o período colonial” (TOLEDO, 2004, p. 12; grifos nossos). A quantificação ou mesmo a

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comparação entre o momento citado e o século seguinte não nos parece relevante mas, sim, o estabelecimento da importância que tiveram as obras a partir do final do setecentos.

Em 1765, após a restauração da Capitania de São Paulo, que havia passado dezessete anos sob jugo do Capitão General do Rio de Janeiro, tem início seu processo de retomada das atividades econômicas e militares. D. Luís Antonio de Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, é convocado para assumir o posto de Capitão General do território restabelecido, seguindo as ordenações do Marquês de Pombal (então Conde de Oeiras), que visavam à proteção militar dos limites ao sul e a oeste e ao aproveitamento econômico das regiões ainda inexploradas (BELLOTTO, 1979, cap. "As Instruções de Governo", pp. 69-83).

A defesa dos territórios fronteiriços requeria a organização dos quadros militares; os recenseamentos da população faziam-se impreteríveis para o recrutamento de toda alma apta ao serviço militar. Por outro lado, era preciso assegurar que haveria recursos para a remuneração das tropas. A situação fazendária da capitania era preocupante porque, entre outras coisas, não permitia o pagamento regular dos soldos.

Esse era, portanto, outro objetivo da busca por novas formas de exploração econômica da capitania, para o qual era indispensável garantir a viabilidade das comunicações existentes, quando não construir novas. Os caminhos de entrada e saída da cidade – em direção ao sul, aos sertões, ao Rio de Janeiro e a Santos – exigiam obras constantes de manutenção, em parte, por conta da precariedade com que essas obras eram feitas iii, via de regra. O fortalecimento das redes de caminhos que ligavam a Capitania de São Paulo às demais áreas da Colônia – associado à política de fundação e reforço de vilas – era um dos meios de atingir os objetivos militares estabelecidos pela Coroa.iv

Na cidade de São Paulo, os caminhos condicionavam a ocupação, na medida em que a população espraiava-se por eles, buscando localizações adequadas às suas atividades produtivas, mercantis ou de moradia. O francês Auguste de Saint-Hilaire – que chega à cidade em 1819 – descreve o espaço urbano como pouco frequentado, exceto em eventos ou festas religiosas, referindo-se provavelmente à área dentro dos limites do Triângulov. Isso porque o viajante afirma que havia “lindas casas” espalhadas por todo o “campo” – várzea do Rio Tamanduateí, vistas a partir do então Palácio, que ocupava o atual Pátio do Colégio – em “ruas [que] não são desertas como as de Vila Rica” (SAINT-HILAIRE, 1972, p. 155). Além dessas moradas, ele descreve chácaras e fazendas nos arredores da cidade – notadamente as chácaras do Brigadeiro Bauman e de um Joaquim Roberto de Carvalho, localizadas respectivamente na Santa Efigênia e na Água Branca (Idem, ibidem, pp. 184-185) –, além de vendas situadas no caminho à Penha, um de seus distritos, acessado pela saída a leste da cidade, que seguia para o Rio de Janeiro (Idem, ibidem, p. 183).

A pobreza da capitania e a inaptidão de seus habitantes para a execução das obras urbanas são temas recorrentes na descrição desse período. Nas palavras do próprio Capitão General,

Nestas terras não há povo, e por isso não há quem sirva ao Estado: excepto muito poucos mulatos que uzão seus officios, todos os mais são Senhores, ou escravos que servem aquelles Senhores: Estes são obrigados a terem escravos de todos os officios, nenhum hé perfeito, algum official que vem do Reyno, passado pouco tempo logo se mete a Senhor; compra escravos, ensina-os, e passa-lhes o officio, fica recolhendo os jornaes; estes sobem a preços altos e ninguem pode fazer obras; elles não tem que fazer, e está a cidade por edificar. (Ofício do Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, de 31 de janeiro de 1768. Apud BELLOTTO, op. cit., p. 242, grifos nossos.)

Saint-Hilaire descreve as dificuldades que enfrentou para conseguir novas malas, enquanto estava hospedado em São Paulo. Segundo ele, duas intervenções foram necessárias: o Coronel Francisco Alves buscou, pessoalmente, um marceneiro que dispusesse de matéria-prima para o serviço, enquanto o então Capitão General João Carlos d’Oeynhausen teve de oferecer o “mais elevado preço” (SAINT-HILAIRE, op. cit., p. 182) e colocar um soldado à porta da casa do artífice, a fim de que ele terminasse a encomenda. A prestação de serviços era, portanto, uma forma pouco provável para o desenvolvimento das camadas médias da população na cidade.

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Essas impressões e julgamentos são marcas da relação entre a elite paulistavi e os demais grupos populacionais (negros e camadas intermediárias). Por um lado, esses grupos eram continuamente desqualificados e, por outro, os próprios ofícios relacionados às obras – tais como carpintaria, marcenaria, pintura e outros – eram de baixo prestígio. Como vemos na fala do Morgado de Mateus, os habitantes procuravam destacar-se com a aquisição de escravos, de forma que não precisassem executar atividades laborais. Durante seu governo, os índios eram frequentemente solicitados para as obras (BELLOTTO, op. cit., p. 243), tanto para tirá-los da dispersão em que se encontravam, quanto para suprir essa demanda por braços.

A falta de recursos era constantemente mencionada nos documentos oficiais, e era praxe que a Câmara solicitasse contribuições dos moradores para realizar construções e consertos. Da mesma maneira que o afastamento em relação aos trabalhos braçais, o oferecimento de dinheiro e serviços para as obras era uma forma de estabelecer-se como elite. De fato, tratava-se de uma elite que já vinha paulatinamente constituindo uma fortuna considerável, atuando em atividades diversas e articuladas, tais como tráfico de escravos, plantio de cana de açúcar e transações financeiras. Mesmo não sendo como as fortunas dos senhores de engenho do norte da Colônia, eram somas significativas – como mostram estudos recentesvii –, que seriam financiadoras, entre outras coisas, do desenvolvimento das condições de urbanização.

As obras eram assunto recorrente na Câmara da Cidade de São Paulo, durante o governo do Morgado de Mateus, que originalmente deveria durar três anos ou até a nomeação de seu sucessor. Sem maiores explicações, ele perseverou no cargo por mais sete anos, o que possibilitou que as empreitadas iniciadas nos primeiros anos de governo não fossem interrompidasviii e, podemos dizer, tivessem permanência posterior. Da leitura contínua das atas, podemos apreender que as obras na capital da província continuam sendo recorrentes, durante os governos subsequentes.

Das obras de maior vulto, destacamos a construção da Calçada do Lorenaix, concluída em 1792; os caminhos prosseguem como questão fundamental para a Capitania de São Paulo, dada sua importância na combinação entre o desenvolvimento econômico e a proteção militar. Além da ascendente carreira militar, é essa função – projetar e construir estradas – que destacará o engenheiro Daniel Pedro Müllerx e que será sua atividade fundamental a partir do início do século XIX, quando é promovido a Sargento-morxi.

A série “Acervo Permanente: Colônia” do Arquivo Público do Estado de São Paulo contém dezenas de ofícios referentes a obras na capitania de São Pauloxii, incluindo o material relativo àquelas conduzidas pelo engenheiro Daniel Pedro Müller. Essa documentação é composta, em sua maioria, por seus ofícios e cartas acerca das obras de estradas entre cidades do interior da capitania e o porto de Santos, além de pontes e aterrados. Entre 1810 e 1820, as obras da Estrada para Cubatão incluíam construções complementares na cidade de São Paulo, a saber, o aqueduto para o Cambuci, o obelisco do Piques com conserto do rego e o aterrado de Santana. Além disso, previa-se o povoamento do caminho, com sua ocupação por seis ou sete famílias, distribuídas ao longo do trajeto. As indicações referentes às obras misturam-se costumeiramente àquelas sobre armamento, contingente militar e deslocamento dos milicianos, evidenciando a estreita ligação entre esses temas.

Os caminhos – cuja relevância foi apontada anteriormente – dependiam das obras e, portanto, da população a ela relacionada. Os governantes e os militares (cujas funções sobrepunham-se no quadro administrativo da cidade) são pivôs dessas atividades, à medida que possuem – pode-se dizer – o monopólio das decisões sobre elas. Contudo, a apreensão da construção da cidade não seria possível sem a análise da ação dos demais envolvidos, ou seja, dos habitantes que executavam tais decisões, em seus diversos desdobramentos, criando uma rede de relações que tem nas obras urbanas sua forma mediação.

Entre o fim do governo de D. Luís Antonio e a ascensão de Daniel Pedro Müller, a cidade de São Paulo permanece às voltas com as construções dentro de seu território. É nesse intervalo, sem a participação dessas figuras icônicas que condicionaram diretamente a atuação da Câmara em

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relação às obras, que desenvolvemos a pesquisa presente, apresentando os mecanismos de realização dessas e as articulações entre os habitantes que delas participaram.

2. OS PEÕESxiii E A CIDADE

Nas Ordenações Manuelinas, os habitantes da Colônia eram categorizados como fidalgos, peões e vadios, sendo os primeiros o segmento de maior prestígio e os últimos, o de menor. Os peões são, portanto, um grupo intermediário, despossuído dos privilégios concedidos aos fidalgos, mas não mal visto como os vadios. Essa diferenciação, herdada da Metrópole, trazia direitos e cobranças distintas para a população da Colônia. Tendo em vista a posição mediana desses habitantes na hierarquia social, o termo “peões” será usado para designar o grupo populacional a ser mais profundamente estudado na pesquisa aqui apresentada.

Esses homens livres e pobres, ainda que identificados pela historiografia, têm pouca representação nos grandes conjuntos documentais originais. Inventários e testamentos xiv eram dispendiosos, assim como a oficialização de matrimônios, de modo que não são muitos os registros, desses tipos, que abarquem essa população. Para o Estado de São Paulo, os registros de Autos Crimesxv, no período posterior ao início do Império, estão disponíveis para consulta. Deles é possível extrair informações qualitativas sobre o modo de vida, as relações pessoais, a relação dessa população com o poder público, entre outras. Para o Brasil Colônia, entretanto, esses documentos encontram-se nos arquivos do poder judiciário, que não são de acesso geral para a pesquisa.

Os Maços de Populaçãoxvi, cuja periodicidade resulta inicialmente do reforço militar encetado por Morgado de Mateus, são uma fonte mais abrangente. Ainda que os escravos não figurem nos primeiros censos e que haja ressalvas com relação às informações nelas contidas, trata-se de um corpo documental privilegiado para a apreensão de dados censitários gerais, incluindo os grupos populacionais intermediáriosxvii.

Considerando-se que esses habitantes não produziram material de próprio punho, não é estranho que sejam limitadas as referências a eles, nem que a historiografia tenha baseado-se principalmente nas informações sobre os “homens bons”xviii. Desde a década de 1980, no entanto, vêm desenvolvendo-se pesquisas que abarcam outros grupos sociais, sob aspectos diversos. Os pobres, os escravos e as mulheres são objetos que permitem uma leitura diversa dos acontecimentos e circunstâncias, que antes foram tomados do ponto de vista da documentação oficial e daqueles que a produziram.xix

A partir desses trabalhos é possível tanto rever fontes já utilizadas – dando-lhes outro tratamento e enfoque – quanto explorar documentos ainda obscuros. Dentro do escopo da primeira alternativa, retomamos as listas nominativas, que são fontes de dados usuais para estudos sobre as modificações e permanências nas características quantitativas da população ao longo de um intervalo de tempo determinado ou sobre a caracterização de uma localidade num momento estanque.xx Das listas utilizadas por Maria Luiza Marcílio no trabalho supracitado, destacamos duas cujas tabulações podem ser refeitas, combinando-as a mapas da cidade de São Paulo e de suas cercanias.

Os dados da Lista Geral de População de 1776xxi – data do primeiro censo realizado após o governo do Morgado de Mateus –, quando espacializadosxxii na Planta da Cidade de São Paulo de 1810xxiii, elucidam a existência de agrupamentos populacionais com características distintivas, tais como o tipo de composição do domicílio (presença e número de familiares, agregados e outros), o ofício ou atividade econômica desempenhada pelo chefe do fogoxxiv, o gênero desse e a localização da habitação.

Uma das conclusões da espacialização dos dados censitários dessa lista é a existência de conjuntos de domicílios – e, portanto, de moradores – que possuíam características homogêneas e distintivas. Em outras palavras, a localização era um fator articulado aos atributos da população na formação de grupos, e esses podem ser assim mapeados e “lidos”. A título de exemplo, citamos as ruas, ou trecho de ruas, que concentravam casas em que as mulheres eram chefes de fogo:

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Aos trechos com predomínio de mulheres solteiras na posição de chefes de fogo, correspondem exatamente os mesmo trechos com preponderância de costureiras, bordadeiras e rendeiras. É notável ainda que, nos locais listados (…) a maioria dos homens não tinha ofício discriminado ou apresentava ofícios variados, sem predominância expressiva de um ou outro. Eram as mulheres que davam o tom nas áreas em que eram numericamente expressivas. (SANTOS, 2011, p. 23)

Além disso, é possível associar os ofícios desempenhados a outras qualidades da composição dos fogos, o que aumenta a compreensão sobre as atividades econômicas realizadas na cidade. Em análise espacial do recenseamento de 1776, observamos, por exemplo, casos em que os filhos eram ajudantes dos pais ou

certa sobreposição entre os trechos com concentração de filhos nos fogos e a predominância de cultivo de terras, pesca e atividades comerciais, sendo essas as principais atividades cuja realização cooptaria todos os membros da família, num tipo de organização que favorecia sua estabilidade. (Idem, ibidem, p. 19)

O cruzamento das fontes com a localização da moradia dos habitantes na cidade é, portanto, uma das formas de investigar a formação de um grupo, cujo modo de vida dos componentes pode ser descrito e diferenciado de outros modos.

A lista nominativa de 1798, por sua vez, traz informações detalhadas sobre a ocupação do chefe de fogoxxv e explicita a extensão territorial da rede de atividades econômicas da qual a cidade de São Paulo faz parte. Enquanto o censo de 1776 arrola ocupações tais como caixeiro, mascate, vendeiro, taberneiro e mercador, além de menções a negócios e agências, o de 1798 aprofunda as descrições das atividades, como se vê nos trechos abaixo.

Vive do q. grangeou em tropas de bestas q. mandou vir em outro tempo do Rio Grande do Sul = tem huá chacra no termo da cid. q. Rende anualmente Sincoenta alqueires de farinha p. adejutores do gasto de Sua Caza = tem gado de q. teve de Crias 4 Eguas de q. teve 3 Crias.

Vive de negocio de fazenda q. tras do Rio de Jan. Importação 17000$000. Consumo 16000$000. Existe 1000$000.

xxvi

A intensa ocorrência dessas atividades comerciais que extrapolam o termo urbano justificam a importância das constantes obras de manutenção e construção de pontes, aterrados e caminhos, ao mesmo tempo que refutam a ideia de uma cidade restrita e isolada. Não apenas as comunicações, mas também as edificações urbanas eram erigidas precariamente, do que resultam constantes reformas ou recontruções: casasxxvii, calçadas, ruas, muros, chafarizes, fossem eles públicos ou particulares, eram objetos frequentes de reclamações, relatos e medidas nas Atas da Câmara, motivados por seu mau estado de conservação. Além desses casos, novas edificaçõesxxviii eram realizadas, motivadas pelas mudanças no modo de vida da população. A precariedade das condições construtivas não deve ser atribuída diretamente à suposta pobreza, já que, como visto anteriormente, esse atributo não define a capitania ou a cidade de São Paulo nesse momento. As técnicas construtivas, os materiais disponíveis e as necessidades dos habitantes contribuem para essa condição.

Como apontado na Parte 1, o retrato dos artífices e trabalhadores paulistas, feito por sua elite ou por estrangeiros a ela associados, tem por pano de fundo os embates entre essas camadas. Assim sendo, esses registros são usados tendo em mente seu confronto com as demais fontes consultadas, nas quais encontramos os peões.

As ordens iniciais do Morgado de Mateus, emitidas antes mesmo de sua chegada à capital, demonstram sua atenção para a necessidade de “profissionalização” dos habitantes de São Paulo. Aos jovens, deveria ser oferecida uma educação que os permitisse obter rendimentos próprios. Em ofício referente ao tema, ele explicita sua intenção de

que os meninos Orphãos aprendão Officios de ganhar de que há muita falta que enquanto para cultivar Sciencias e Artes me parece desnecessario, adonde a maior necessidade que há he a de desterrar a pobreza e a ociozidade em que geralmente padece toda esta America. (Ofício do Morgado de Mateus para o Conde de Oeiras, de 29 de setembro de 1765. Apud BELLOTTO, op. cit.,

p. 323.)

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Em novo ofício, (p. 4), o então governador voltaria a expressar sua frustração com a raridade e a baixa qualidade dos oficiais e mestres das diversas atividades necessárias ao cotidiano das cidades da capitania. Entretanto, ainda que prestassem serviços insatisfatórios para os padrões europeus, não se pode dizer que eram inexistentes. Nem só de atividades de subsistência – tais como o cultivo da terra e a pesca – e comércio de diversos tipos viviam os habitantes da capital. Alfaiates, sapateiros, costureiras, bordadeiras, padeiras, quitandeiras, ferreiros e celeiros conviviam com marceneiros, carpinteiros, taipeiros e pintores. xxix As ocupações eram regulamentadas pela Câmara, que elegia mestres e concedia licenças para a prática dos ofícios. Os valores cobrados pelos serviçosxxx ou produtosxxxi também eram definidos pelos camaristas.

3. A CIDADE DOS PEÕES

Os mecanismos e procedimentos que envolviam essas obras urbanas não foram ainda explicitados pelas pesquisas referentes ao período aqui estudado. Por sua vez, o corpo documental levantado pelo trabalho presente é de densidade suficiente para, não apenas especular sobre a ocorrência de obras como dinâmica regular já em fins do século XVIII, como também apropriar-se dessas fontes para circunscrever o grupo populacional central na realização desses empreendimentos. Seu estudo permite apreender tanto a dinâmica das obras na construção e ocupação da cidade quanto as relações das camadas médias (homens livres e pobres) com as camadas desprivilegiadas (escravos e presos) e os grupos dominantes (população inserida em cargos de comando da administração pública, da organização militar e dos quadros eclesiásticos), nos processos das obras públicas.

Dessa forma, apresentaremos primeiramente o conjunto de documentos a serem utilizados e, em seguida, faremos o exame das obras e dos habitantes a elas relacionados.

3.1. As fontes

As obras públicas, ainda que pudessem ser solicitadas por habitantes comunsxxxii – ou seja, que não fossem vereadores, escrivães, procuradores, tesoureiros ou oficiais –, eram ordenadas pela Câmara, que designava um responsável pela organização e supervisão da empreitadaxxxiii. As atas da Câmara são, portanto, um ponto de partida conveniente para a apreensão das obras, visto que contêm seus registros de cronologia e desenvolvimento. Por meio delas é possível listar as obras realizadas destacando as ocorrências de cada obra ao longo do tempo, os responsáveis por sua realização e o tipo de episódio relatado (construção, reparo, manutenção, denúncia, solicitação). Como exemplos das formas de aparição do tema nesses registros oficiais, citamos uma ordem de prisão contra os cabos de Cutia que não teriam feito o “caminho da mesma freguezia até Pirajoçara”xxxiv, uma avaliação da obra realizada na nova casa da Câmaraxxxv e uma série de menções à falta de recursos para a execução das obras em andamentoxxxvi.

A listagem do histórico contido nas atas, ainda que mandatória para os fins dessa pesquisa, não dá conta de elucidar os mecanismos dessa prática ou a totalidade dos habitantes e trabalhos nela envolvidos. É com esse objetivo que analisaremos a documentação referente a obras do “Fundo da Câmara Municipal de São Paulo”xxxvii, do Arquivo Histórico Municipal Washington Luís. Trata-se de um conjunto à primeira vista árido e burocrático, mas com potencial de aprofundar o entendimento sobre as obras em São Paulo, nesse período – indo além da mera enumeração de suas ocorrências –, e de descortinar as relações sociais que permeiam a atividade. Os manuscritos dividem-se em cartas, bilhetes, ofícios, listas nominais, recibos e relatórios de despesas. Vale ressaltar que os dois primeiros não foram produzidos pela administração pública, sendo a ela encaminhados.

Os recibos são de fins variados, tais como compra de materiais de construção ou alimentos para os presos, execução de serviços (carradas de pedras ou trabalhos de pedreiros, taipeiros e marceneiros) e contribuições. Também variadas são as listas de homens empregados nas obras: podem conter nomes, féria, quantidade de dias trabalhados e descriminação do tipo de serviço de homens livres, presos e escravos. Em geral, os dois últimos grupos não são referidos nominalmente ou o são de forma imprecisa. As cartas são poucas, mas ilustram as percepções de uma parte da

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população acerca da construção do espaço e dos interesses comuns, por meio de sua relação com a Câmara. Em resumo, são pedidos de obras e agradecimentos pelas realizações efetuadas.

A seguir, indicamos as obras cujos conjuntos de fontes permitem a exploração sistemática e consistente para os fins dessa pesquisa.

1. Cadeia: cartas, 1783 e sem data; recibos e registros de trabalho de taipeiros (pretos e forros), carpinteiros, pedreiros e outros, 1790 e 1791; féria de pedreiros, 1790; prestação de contas, 1791; relatório de despesas, 1798; recibo de construção de grades, 1790; e recibo de extração de pedras, 1790.

2. Câmara: pintura e painéis, 1798.

3. Praça dos Curros: recibo de pagamento pela compra de argolas, 1792; recibos diversos, sem data; e féria, compra de materiais, despesas com alimentação dos presos e recibos, 1794.

4. Ponte de Santana, incluindo seu aterrado e o caminho que chega a ela: cartas, 1784, 1788 e

1798; orçamento de madeiras, sem data; relação de pessoas que não foram nem mandaram terceiros para as obras, sem data; recibos de material, serviços e féria, 1789 e sem data; e féria com menção aos respectivos escravos em serviço, 1789.

5. Aterrado de Juqueri: cartas informando o não comparecimento dos escaldos para as obras,

incluindo outras localidades, sem data; carta de solicitação de homens para o trabalho, 1781; e carta relatando a falta de homens, 1785.

6. Ponte do Anhangabaú ou do Marechal (Ponte do Acu): contribuições, féria, despesas com alimentação de presos, materiais e recibos diversos, 1794 e 1796; idem e lista de escravos em serviço, 1795; recibo de pedreiro, 1796; trabalho de pedreiros, 1799; e relatório de despesas, 1799.

7. Ponte do Lorena: contribuições, féria, despesas com alimentação de presos, materiais, recibos e lista de escravos, 1796; e recibo de um Ramalho, sem data.

8. Ponte dos Pinheiros: relação dos trabalhadores, 1805.

9. Chafariz: contribuições, carreiros de pedras, pedreiros, serventes, despesas miúdas e gastos com alimentação dos presos, 1792, 1793 e 1796; e serviço de pedreiros, 1799.

10. Ruas (travessa de São Bento que vai para o Morro do Chá, Rua da Esperança até o Matadouro, Rua e calçada de São Bento, Rua detrás do Quartel da Legião, Rua do Piques): carta, 1789; féria, sem data; serviço de pedreiros, carreiros de pedras, recibos e negros em serviço, 1798 e 1799; e relatório de despesas, 1799.

11. Variados (capelinha, Casinhas, açougue e curral): relatórios de despesas, 1798 e 1799.

Além desses documentos, há cartas, ofícios, listas e recibos sem relação com atividades específicas – ou sem possibilidade de identificação – que trazem informações complementares sobre os procedimentos e os habitantes envolvidos com as obras.

3.2. Os peões como hipótese

De partida, esse conjunto de fontes expõe com precisão a rede de organizadores, fornecedores, prestadores de serviços e trabalhadores que compunham o quadro populacional envolvido na execução das obras. Esse quadro inclui desde os membros da Câmara até os escravos, passando por financiadores, comerciantes, empreiteiros, mestres de ofício, oficiais, serventes e presos escalados compulsoriamente. A documentação levantada apresenta não apenas os elementos dessa rede, como os procedimentos pelos quais são articulados – explicitados em maior ou menor grau.

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A obra poderia ser solicitada por ordens superiores (do governador da capitania ou da Coroa, por intermédio dele), por interesses da própria Câmara (motivados por procedimentos administrativos ou denúncias) ou por terceiros. Para qualquer das alternativas, os camaristas elegiam um supervisor (aparentemente um morador da área em que se localizava a obra) que era responsável por seu andamento e execução. Os orçamentos eram encaminhados à Câmara, que os avaliava, autorizando-os ou não; os recursos poderiam ser públicos ou frutos de doações específicas para a obra em questão. Oficiais e mestres – entre carpinteiros, marceneiros, pintores, pedreiros e outros – assinavam recibos de pagamento por seus serviços, da mesma forma que os fornecedores de material ou alimentos. O supervisor da obra era responsável ainda por manter registros dos trabalhadores empregados nas obras. São essas as principais funções e ligações presentes nessa documentação.

Desse modo, pode ser construído um panorama formado pelas obras em curso, pelos habitantes nelas envolvidos (seja qual for sua forma de participação) e pelos mecanismos de relação entre eles.

O mapeamento previamente realizado levanta a hipótese da existência de um grupo – heterogêneo, porém distinguível –, para o qual a característica constitutiva seria a participação constante em determinadas funções dentro da rede delineada. Os habitantes pertencentes a esse grupo não são exclusivamente membros da administração pública, nem participam das obras por obrigação. Ou seja, são os componentes da rede de relações das atividades de obras, excluindo-se os camaristas e os presos.

Com relação aos escravos, tendo em vista o espectro de situações possíveis da relação com seus donos, é imprescindível ter em mente que sua participação poderia originar-se tanto do mando de seu senhor, quanto de sua mobilização individual. No primeiro caso, a identificação do senhor é mais importante que a própria identificação dos escravos participantes, por sugerir que ele teria um envolvimento conscientemente direcionado a essa atividade, sendo assim parte dessa rede de relações. Sob o mesmo ponto de vista, a segunda possibilidade requer a avaliação do envolvimento do escravo, mais do que de seu senhor.

A identificação dessa rede sugere que a dinâmica da construção e reconstrução da cidade de São Paulo, entre 1776 e 1805, vai além de determinações da Câmara atribuídas casualmente aos realizadores. Tratar-se-ia de uma série de atividades que mobilizavam, constantemente, recursos e uma parcela especializada da população. Não obstante, essa rede social era, a um só tempo, criada pelas obras públicas e criadora dessas, já que as condições geradas por sua existência propiciavam o acontecimento das atividades construtivas.

Além dos atributos supracitados, que balizam a distinção desse grupo, elencamos sua origem como possível elemento distintivo, tendo em vista as observações de Maria Aparecida de Menezes Borrego sobre os comerciantes que atuavam em São Paulo, no mesmo período (BORREGO, 2010). Segundo a pesquisadora, esse grupo – que chegou a possuir fortunas consideráveis – era formado e mantido seguindo uma lógica de reprodução que se baseava na ascendência de seus membros. Os reinóis que aqui prosperavam optavam por casar suas filhas com outros reinóis ao invés de passar sua herança para os filhos nascidos na Colônia. Mantinha-se assim a relação estreita com a Metrópole, e os portugueses concentravam as atividades mercantis na cidade.

À primeira vista, entre os trabalhadores e fornecedores relacionados às obras (excetuando-se os escravos), observamos uma concentração de sobrenomes espanhóis, tais como Rodrigues e Alvares – também encontrados como Roiz e Alves, nos documentos oficiais. Ainda que não seja uma exclusividade, ou que esses sobrenomes também figurem em grupos com funções diversas, trata-se sem dúvida de uma questão pertinente à formação desse conjunto de habitantes. A imigração espanhola, no período colonial, também é um tema pouco explorado na historiografia sobre São Paulo, ainda que conste nos registros de viajantes.xxxviii

A metodologia a ser usada para construção e mapeamento dessa rede contará com os seguintes passos.

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1. Identificação dos indivíduos e categorização, de acordo com as funções listadas no início desse item, à página 10. Para tal, serão transcritos e tabulados os documentos de obras referenciados acima, de modo a arrolar os participantes de cada obra e sua atividade desempenhada. Para cada empreendimento, será possível estabelecer os envolvidos e suas relações. Essa etapa enfrentará algumas dificuldades: os nomes nem sempre aparecem com a mesma grafia; os sobrenomes mencionados, quando há mais de um, podem variar de um documento a outro; os escravos são regularmente identificados somente pelo nome próprio, do que decorre, em geral, a impossibilidade de individualizá-los e de investigar suas participações em obras diversas; e apenas raramente os presos são nomeados, gerando as mesmas consequências descritas para os escravos.

2. Verificação das participações em obras distintas, de modo a explicitar a constância de certos habitantes nas atividades de obras. Com as listagens do passo anterior, será possível cruzar os nomes dos participantes que se repetem em empreendimentos distintos. Para cada repetição, verificar-se-ão as mudanças e manutenções de atividade. Os empecilhos indicados na etapa anterior trarão ressalvas para os resultados obtidos nessa etapa, mas não significam sua anulação, já que o interesse preponderante não está nos presos ou nos escravos.

3. Averiguação das alternâncias ou permanências de funções dos indivíduos em obras diferentes. Partindo da hierarquização de tais funções – seja pela quantidade de recursos envolvida em cada uma delas; seja pela separação entre serviço, comércio ou financiamento; seja pela proximidade ou distância com relação à administração pública –, essa etapa busca investigar as possibilidades de “mobilidade vertical” dentro dessa rede.

4. Com as informações obtidas nas etapas anteriores, avaliar-se-ão as características dessa rede e a sua efetividade, enquanto articuladora do grupo populacional que a compõe.

Dessa forma, pretendemos comprovar a existência desse grupo e, com isso, investigar as relações entre as obras urbanas e a constituição das camadas intermediárias da população, buscando superar o uso dos atributos de estagnação e decadência como formas de categorização desse período, e ampliando sua compreensão, dentro de suas características próprias.

CONCLUSÃO

Por tratar-se de pesquisa em andamento, não nos ocuparemos da avaliação dos resultados até aqui encontrados. Ao invés, destacaremos a importância da exploração de fontes documentais consagradas em outros campos de estudo como forma de enriquecer as pesquisas na área de história da arquitetura e do urbanismo. Para tanto, entendemos ser indispensável o contato e a atuação junto às disciplinas que também trabalham essas fontes, tensionando seus limites e permitindo o trabalho com o instrumental apropriado.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), financiadora da pesquisa ora apresentada, bem como à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), instituição dentro da qual a pesquisa é conduzida.

Agradecemos especialmente à organização do 2º Seminário Íbero-Americano "Arquitetura e Documentação" pela oportunidade de apresentação dessa comunicação.

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i A partir de meados do século XIX, a ferrovia, os demais melhoramentos tecnológicos, a expansão da ocupação territorial e os novos programas inseridos na cidade – especialmente, os espaços de lazer e cultura – formam o panorama de uma cidade em construção. As edificações em taipa, cuja morfologia e método de construção teriam perdurado desde a instalação dos jesuítas no planalto, passavam a dar lugar à alvenaria, completada com elementos de ferro e vidro. A “mudança de mentalidade” que acompanha essas inovações não se restringe às escalas das edificações e de seus elementos, mas é patente também na reorganização da cidade: a rede viária, o arruamento das chácaras e o sistema de espaços livres são redesenhados ou criados, nesse momento, que é retratado como único (HOMEM, 1996).

A nova tipologia do habitar paulista, com os palacetes, as casas de esquina e as casas de aluguel, também é parte das transformações desse período (LEMOS, 1999, p. 253).

ii “A memória paulista reteve e glorificou a paisagem produzida pelas fazendas de café com suas senzalas e

colônias de imigrantes. Mas esqueceu-se de que os cafezais dificilmente poderiam ter se expandido tão depressa sem seu predecessor: a lavoura de cana que permitiu à cafeicultura contar com capitais e com uma infraestrutura organizada em decorrência da produção e exportação do açúcar pelo porto de Santos.” PETRONE, 2010, p. 135.

iii Referindo-se a um relatório do presidente da província, Saint-Hilaire justifica o calçamento inadequado das

ruas da cidade de São Paulo por conta “da falta de operários especializados e das ferramentas indispensáveis e da má qualidade das pedras” (SAINT-HILAIRE, 1972, p. 156).

iv Segundo Heloísa Liberalli Bellotto, mais do que o povoamento, o Morgado buscava a urbanização dessas

áreas, que facilitaria a mobilização da população para o recrutamento e as atividades produtivas. Os eixos de atuação dessa política eram cinco, a saber: o sul, ao longo do Caminho de Viamão; o norte, na delimitação das fronteiras com as Minas Gerais; o caminho em direção ao Rio de Janeiro; dois centros junto ao Rio Tietê; e o caminho para o Iguatemi, seguindo o mesmo rio, rumo ao atual Paraná (BELLOTTO, 1979, pp. 171-202).

v “Dentro dessa colina três ruas configuravam o chamado Triângulo: a Rua Direita de Santo Antônio (atual

Direita), a Rua do Rosário (depois da Imperatriz e, desde o início da República, 15 de Novembro) e a Rua Direita de São Bento (atual São Bento).” Os vértices desse Triângulo são os conventos dos franciscanos, dos beneditinos e dos carmelitas (TOLEDO, 2004, p. 9).

vi Usamos “paulista” referindo-nos aos habitantes da Capitania de São Paulo.

vii Além dos trabalhos supracitados de Maria Aparecida de Menezes Borrego e Ilana Blaj, Francisco Vidal Luna

e Herbert Klein apresentam um quadro das condições econômicas e sociais na capitania de São Paulo, antes do período de maior crescimento, associado aos recursos da exploração do café (LUNA, KLEIN, 2006).

viii A duração estendida do governo do Morgado de Mateus não foi de todo benéfica; ao longo dos anos, o

Capitão General sofreu acusações de descumprimento das instruções centrais da Coroa – referentes à proteção militar do sul do Brasil –, o que gerou desgaste e polêmica (BELLOTTO, op. cit., p. 323).

ix Durante o governo de Bernardo José Maria de Lorena, entre 1788 e 1797, foi construída “a melhor estrada

de tropeiros do Brasil, a calçada ligando São Bernardo a Cubatão, pavimentada com lajes de pedra e que passou à história com seu nome” (TOLEDO, op. cit., p. 14).

x Segundo seus biógrafos, Daniel Pedro Müller haveria nascido “no mar, em viagem da Alemanha para

Lisboa, entre 1775 e 1779 (…) Em 1802, veio para o Brasil, acompanhando, como ajudante de ordens, o novo governador da capitania de São Paulo, Antônio José de Franca e Horta” (NEVES, 2005). Ainda que seja informação contraditória, o engenheiro de origem luso-germânica é apontado por Saint-Hilaire como projetista da Praça dos Curros (atual Praça da Republica). Entretanto, os documentos concernentes a tal obra são de

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1792 e 1794, de modo que há uma disparidade com relação às informações referentes à data de sua chegada ao Brasil (SAINT-HILAIRE, 1972, p. 156).

xi Arquivo Público do Estado de São Paulo, “Documentos Manuscritos Avulsos da Capitania de São Paulo”,

doc. 1.200, 1805.

xii Arquivo Público do Estado de São Paulo, “Acervo Permanente: Colônia”, lata C00241, 1747-1822.

xiii Nas Ordenações Manuelinas, os habitantes da Colônia eram categorizados como fidalgos, peões e vadios,

sendo os primeiros o segmento de maior prestígio e os últimos, o de menor. Os peões são, portanto, um grupo intermediário, despossuídos dos privilégios concedidos aos fidalgos, mas não mal vistos como os vadios. Essa diferenciação, herdada da Metrópole, trazia direitos e cobranças distintas para a população da Colônia. Para os fins dessa pesquisa, o termo “peões” será usado para designar o grupo populacional que será mais profundamente estudado, tendo em vista sua posição mediana na hierarquia social.

xiv Arquivo Público do Estado de São Paulo, “Juízo de Resíduos” (1653-1857).

xv Arquivo Público do Estado de São Paulo, “Autos Crimes de São Paulo” (1821-1901).

xvi Arquivo Público do Estado de São Paulo, “Maços de População de São Paulo” (1765-1850). Essa

documentação encontra-se disponível pelo site do Arquivo, em http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/recenseando.php, consultado em 24 de junho de 2011.

xvii Usaremos as expressões “grupo populacionais intermediários”, “camadas medianas” e “camadas médias”

como sinônimos de “homens livres e pobres”.

xviii Os “homens bons” eram os moradores de status social elevado dentro da hierarquia da população paulista.

Originalmente o termo referia-se à nobreza, de modo que, de acordo com as Ordenações Filipinas, os cargos administrativos das cidades coloniais deveriam ser preenchidos por seus membros. As “elites locais” dessas cidades eram portanto compostas por esses indivíduos (CÂMARA, 2008, pp. 65-66).

xix A título de compêndio, citamos alguns trabalhos nos campos da sociologia, da antropologia e da economia:

SOUZA, 2004; DIAS, 1984; KARASCH, 2000; FLORENTINO, 2002.

xx No primeiro campo, estão os estudos que se baseiam na leitura sequencial de uma série de listas. O

segundo campo é dos trabalhos de cross-section, ou seja, dos que usam dados de uma única documentação para extrair um panorama imediato dos atributos de uma localidade.

xxi Os censos de 1776 e 1798 encontram-se no Arquivo Histórico Municipal Washington Luís, Fundo da

Câmara Municipal de São Paulo, “Maços de População de São Paulo”. Também podem ser consultados respectivamente em http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/res_frameset.php?ident=030_012&img=030_012_001.jpg e http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/res_frameset.php?ident=032_020&img=032_020_001.jpg, acessado em 25 de junho de 2011.

xxii Usamos “espacializar” para nos referir à inserção de dados na planta da cidade; já o termo “mapear” diz

respeito ao levantamento de dados sobre os habitantes.

xxiii Em informativo do Arquivo Histórico Municipal, consta menção à publicação de dois desenhos anteriores,

“uma planta, sumária, datada do século XVII e outra, muito precisa, do século XVIII”, sem maiores referências. Optamos por trabalhar com a planta de 1810, por ser amplamente conhecida e divulgada, sendo de fácil acesso ao pesquisador. A versão aqui utilizada é reproduzida do material da publicação da Comissão do IV Centenário (Prefeitura do Município de São Paulo, 1954).

xxiv O termo “fogo” é tomado da documentação produzida no período estudado e é sinônimo de “domicílio”. É

importante dizer que – ainda que fosse a maioria das ocorrências – não apenas os chefes de fogo tinham suas ocupações declaradas; quando cabível, outros membros da família, agregados ou escravos tinham suas atividades listadas.

xxv Vale aqui a mesma observação sobre a descriminação das ocupações dos habitantes feita em relação ao

censo de 1776.

xxvi “Mapa geral dos habitantes que existem no destrito daprimeira Comp. de Ordenanças desta Cid. de S.

Paulo oanno de 1798 = Suas oCupacoens, empregos, egeneros q. cultivam ou em que negoceam”, p. 1, fogos de Joze Francisco de Sales e Manuel Lopes Guimaraens, respectivamente. Arquivo Histórico Municipal Washington Luís, Fundo da Câmara Municipal de São Paulo, “Maços de População de São Paulo”.

xxvii Segundo John Mawe, ainda que as casas de habitantes abastados fossem de melhores condições, as

“dos lavradores são miseráveis choupanas de um andar, o chão não é pavimentado nem assoalhado, e os

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compartimentos são formados de vigas trançadas, emplastados de barro e nunca regularmente construídas” (MAWE, 1978, p. 68).

xxviii Em fins do século XVIII, são erigidas as Casinhas, onde os produtores de alimentos poderiam negociar

seus produtos com os habitantes da cidade. Com a concentração dessa função num local específico, a Câmara podia regular de maneira mais eficaz essa atividade e ver suas ordens cumpridas com mais rigor.

xxix Para completar o panorama das ocupações dos habitantes na cidade de São Paulo, incluiríamos ainda

profissões ligadas à medicina, à educação, à administração pública e ao quadro eclesiástico. As atividades militares constituíam-se como ocupações de tempo integral para as tropas pagas, mas eram impingidas àqueles que possuíam outro meio de sustento. Os termos aqui utilizados foram extraídos do censo populacional de 1776.

xxx Com frequência, as atas registravam os valores dos jornais dos oficiantes. Como exemplo, citamos a ata de

19 de fevereiro de 1780, que estabelece a remuneração dos carpinteiros, categorizados como “mestres examinados de boa nota”, “mestres examinados de menos nota”, “oficiais de boa nota”, “oficiais de menos nota” e “oficiais medianos” (Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 1916-1923, v. 17).

xxxi Preços de calçados e de produtos de ferreiros (tais como foices, enxadas, machados, entre outros) são

definidos pela Câmara, como se vê nas atas de 8 de janeiro e 11 de março de 1780 (Idem, ibidem).

Outras formas de regulação também podem ser apreendidas nas atas. Em 17 de março de 1789, os vereadores concedem às padeiras permissão para fazerem o pão com menor peso, em função do alto preço da farinha de trigo (Idem, 1916-1923, v. 19).

xxxii Em 28 de agosto de 1783, um Joze Antonio da Silva escreve à Câmara, solicitando obras na cadeia, visto

que “os mizeraveis prezos (…) hus perdem aSaude Eoutros asvidas”. Arquivo Histórico Municipal Washington Luís, “Fundo da Câmara Municipal de São Paulo”, CX. 28.

xxxiii A título de exemplo, citamos a ata de 25 de abril de 1778, que elenca os diversos supervisores das obras

em andamento. “Lembrança dos mandados que se façam o presente anno para os caminhos para a Cutia até Pirajoçara cabos Carlos de Figueiró e Sebastião José – de Pirajoçara até os Pinheiros cabos João Manuel, Bento Alberto, e José Pereira. Caminho e ponte de Pacaimbú cabos Manuel Ribeiro, Francisco Xavier França. Caminho das Taipas até Santa Anna cabo João Francisco e Ignacio Rodrigues. Caminho da Penha até o Nicolau cabos Manuel Duarte e Aleixo Ferreira. De São Miguel até á Penha e aterrado da varzea cabos João Rodrigues Freire e José de Miranda. Juquiry e aterrado de Santa Anna cabos o alferes Angelo Furquim. Nossa Senhora do Ó até Ignacio Barros cabos Joaquim Borges e Thomé da Silva. Aterrado de Santa Anna cabo o capitão José Antonio da Silva. Santo Amaro e pontes e aterrado cabos Francisco de Oliveira Pires e Manuel Martins. Caminho de Juquiry e aterrado de Santa Anna cabos novamente eleitos Calixto de Souza – Felix de Souza – Antonio Corrêa. Caminho do Bananal até ........... o districto de São Miguel cabos Alexandre ........... e Domingos ........... .” (Idem, op. cit., v. 17).

xxxiv Ata de 21 de agosto de 1779 (Idem, ibidem).

xxxv Ata de 9 de dezembro de 1788 (Idem, op. cit. , v. 19).

xxxvi Atas de 29 de dezembro de 1790, 30 de julho e 12 de novembro de 1791 e 10 de outubro de 1792 (Idem

ibidem).

xxxvii Arquivo Histórico Municipal Washington Luís, “Fundo da Câmara Municipal de São Paulo”, CX. 28, 37, 41,

42 e 43.

xxxviii Os viajantes Spix e Martius, em estadia na cidade de São Paulo, em fins da década de 1810, relataram a

profusão de nomes de família espanhóis que, segundo eles, remontariam à sua imigração constante para o Brasil, desde o século XVI. Rugendas também apontaria essa herança e suas influências, ao descrever os paulistas (SPIX, MARTIUS, 1938, p. 207; RUGENDAS, 1949, p. 100).