objet o semiotica

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O PACIENTE OBJETO DA SEMIÓTICA * Ivo Assad Ibri** * Este artigo Ø inteiramente dedicado ao Prof. Dr. Lauro Frederico Barbosa da Silveira, profundo estudioso da obra de Peirce, cuja paciŒncia como interlocutor mereceria, tambØm, fazer parte do presente título. **Professor Doutor do Departamento de Filosofia - PUC-SP. O Universo nªo Ø uma idØia minha. A minha idØia do Universo Ø que Ø uma idØia minha, A noite nªo anoitece pelos meus olhos, A minha idØia da noite Ø que anoitece por ,neus olhos. - Fernando Pessoa - Poemas Inconjuntos O real Ø aquilo que nªo Ø o que eventualmente dele pensamos, mas que permanece nªo afetado pelo que dele possamos pensar Charles S. Peirce - Collected Papcrs (8.12) O poeta, esta espØcie de divindade que, como o matemÆtico, constrói mundos possíveis, se rende, por vezes, à alteridade do mundo, e nela vŒ, novamente, poesia. A interioridade, locus da arquitetura de realidades alternativas, onde Ø possível eximir-se de nÆusea e praticar o imaginÆrio na lœdica tarefa da invençªo, reconhece, por momentos, o encanto poØtico do nªo. Talvez o poeta, entediado, evidencie seu cansaço daquele objeto que ele próprio constrói. Servil, o objeto da arte se presta sempre a nascer por um ato de vontade de seu criador, crescer com a forma e a diversidade que lhe confere o imaginÆrio, suprir suas veias com a mesma seiva de atemporalidade que nutre a aura da obra. Talvez o objeto, tambØm enfadado de ser mera referŒncia no interior daquilo que se auto-representa, manifeste seu cansaço e, num diÆlogo sem palavras, sugira a seu criador que perceba a poesia naquilo que permanece sendo o que Ø, tudependentemente de qualquer representaçªo. Para tanto, jÆ nªo bastarÆ mais um olhar que apenas contempla o mundo para, uma vez mais, divertir-se em subvertŒ-lo, promovendo um sempre conspirador deslocamento semântico da metÆfora que contradita todo non sequitur, levando desconforto àqueles espíritos estritamente dentro das regras aceitas da espacio-temporalidade. Qual divindade entediada de sua onipotŒncia, o poeta descobre encanto em sua impotŒncia em anoitecer a noite. A noite diz nªo e o desafia a encontrar uma poesia possível, escrita em uma espØcie de face oculta da alteridade. Dotado pelos deuses do poder mÆgico de sempre dizer de modo obliquo toda a verdade, o poeta depara agora com o efetivamente verdadeiro. Nªo mais poderÆ dizer que o universo Ø idØia sua, nªo mais poderÆ trair a noite: num fechar de olhos suprimir-lhe a existŒncia. Algo exterior desafiadoramente permanece. Algo objeta. Algo Ø Objeto. E, fundamentalmente, a este ser real que Peirce se refere em sua famosa tríade semiótica: Signo, Objeto, Interpretante. A esta exterioridade sempre desafiadora, que denominamos Mundo, Natureza, sedutoramente convidativa à decifraçªo pela ciŒncia, produçªo infinita de arte no dizer de Schelling. Aquilo que Ø

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Ensaio sobre semiótica

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O PACIENTE OBJETO DA SEMITICA *Ivo Assad Ibri***Este artigo inteiramente dedicado ao Prof. Dr. Lauro Frederico Barbosa da Silveira, profundo estudiosoda obra de Peirce, cuja pacincia como interlocutor mereceria, tambm, fazer parte do presente ttulo. **Professor Doutor do Departamento de Filosofia - PUC-SP.O Universo no uma idia minha.A minha idia do Universo que uma idia minha,A noite no anoitece pelos meus olhos,A minha idia da noite que anoitece por ,neus olhos. -Fernando Pessoa - Poemas InconjuntosO real aquilo que no o que eventualmente dele pensamos,mas que permanece no afetado pelo que dele possamos pensarCharles S. Peirce - Collected Papcrs (8.12)O poeta, esta espcie de divindade que, como o matemtico, constri mundos possveis, se rende, porvezes,alteridadedomundo,enelav,novamente,poesia.Ainterioridade,locusdaarquiteturaderealidades alternativas, onde possvel eximir-se de nusea e praticar o imaginrio na ldica tarefa dainveno, reconhece, por momentos, o encanto potico do no.Talvez o poeta, entediado, evidencie seu cansao daquele objeto que ele prprio constri. Servil, o objetoda arte se presta sempre a nascer por um ato de vontade de seu criador, crescer com a forma e a diversidadeque lhe confere o imaginrio, suprir suas veias com a mesma seiva de atemporalidade que nutre a aura daobra. Talvez o objeto, tambm enfadado de ser mera referncia no interior daquilo que se auto-representa,manifeste seu cansao e, num dilogo sem palavras, sugira a seu criador que perceba a poesia naquiloque permanece sendo o que , tudependentemente de qualquer representao. Para tanto, j no bastarmais um olhar que apenas contempla o mundo para, uma vez mais, divertir-se em subvert-lo, promovendoum sempre conspirador deslocamento semntico da metfora que contradita todo non sequitur, levandodesconforto queles espritos estritamente dentro das regras aceitas da espacio-temporalidade.Qual divindade entediada de sua onipotncia, o poeta descobre encanto em sua impotncia em anoiteceranoite. Anoitediznoeodesafiaaencontrarumapoesiapossvel,escritaemumaespciedefaceoculta da alteridade.Dotado pelos deuses do poder mgico de sempre dizer de modo obliquo toda a verdade, o poeta deparaagora com o efetivamente verdadeiro. No mais poder dizer que o universo idia sua, no mais podertrair a noite: num fechar de olhos suprimir-lhe a existncia. Algoexteriordesafiadoramentepermanece.Algo objeta. Algo Objeto.E,fundamentalmente, a este ser real que Peirce se refere em sua famosa trade semitica: Signo, Objeto,Interpretante. A esta exterioridade sempre desafiadora, que denominamos Mundo, Natureza, sedutoramenteconvidativadecifraopelacincia,produoinfinitadeartenodizerdeSchelling.Aquiloquegeneticamente admirvel, que se apresentou para o olhar de Plato no Teeteto, que despertou nostalgiaem Schiller em Os Deuses da Grcia, que sugeriu a Einstein cavalgar um raio de luz para ve-lo de mododiferente. Um universo apresentado pelos astrnomos em uma escala que nos convida a abandonar, deum vis, uma noo de espao dada pelo nosso urbano olhar por uma geomtrica janela de alumnio e,de outro, uma dimenso de tempo contida no intervalo humano entre a vida e a morte.Umaimediataadmirabilidadesuprimeconscinciaotempo,eainserenovamentedespertaparaatemporalidadedaobservaointencionalmentecognitiva.Contudo,conhecercomoumtranscenderdamera aparncia, como busca de um modo de ser, necessita da permanncia e daquela independncia doobjeto que far com que este negue representaes falsas, ou seja, aquelas que predizem um curso dosfatos distinto do obsei-vvel curso dos fatos.Antes de mais nada, a esta alteridade de um objeto indiferente representao que Peirce se refere, aoreconhecer que uma coisa ser, outra, ser representado1[1 CP-5.6 (1902); N.c86 (1902)]. Alm disto,um passo alm dado em sua prpria definio de signo:Eu defino um signo como qualquer coisa que determinada por alguma outra coisa, denominada seuObjeto e, deste modo, determina um efeito sobre uma pessoa, efeito este que denomino seu Interpretante,tal que este ltimo , assim, mediatamente determinado pelo Objeto2 [2 PW-pp. 80-81 (1908) - negritosmeus]ApssecaracterizaroObjetocomo,essencialmente,algodoqualnossainterioridadenopodearbitrariamenteseapropriar,umabsolutosegundo,cujosersecaracteriza,justamente,pelofatodepermanecerinafetadopelonossomododepens-lo,estranhamente,talvez,paraosnoiniciadosnafilosofia peirceana, este mesmo Objeto, conforme explicito na passagem citada, determina o Signo demodo imediato e, mediatamente, seu Interpretante que, grosso modo, pode ser entendido como significado,no obstante a complexidade e as consequncias que tal conceito assume no pensamento de Peirce.De imediato, poder-se-ia perguntar: como se d esta determinao e, por certo, antes, o que se entendepor objeto determinando o signo?Retornemos ao nosso poeta e lembremos que, por nais que ele feche os olhos, permanece a noite sendonoite e, a menos que nada de encantador se veja nisto, o poeta certamente pensar que a noite, cou-to tal,determinanasuamenteosignoverdadeirodequeelasimplesmentenoite,independentementedofalsosignoquepensarqueelapoderiasesubmetersuavontade.Ocientista,comcertezamaisfamiliarizado com a alteridade do mundo, busca seus interpretantes como mediaes genunas diante dodesafio do Objeto. O artista, de sua vez, dever encontrar uma espcie de potica mediadora diante daalteridade, descobrindo naquilo que simplesmente suas possibilidades futuras de ser.Evidentemente, assim como Schelling alertava seus leitores da necessidade de uma sensibilidade estticapara compreender der seus escritos, convidando, aqueles que dela no dispunham, a abandonar a leitura,muitos podero nada ver naalteridade, seno o inferno da contrariedade, a limitao da liberdade pelapresenadono-eu.Restaria,to-somente,asolidodoeuabsolutoenauseado?Restaria,alternativamente, o pessimismo filosfico, ou a angstia do silncio?No obstante, o gnio criador, dotado de uma espcie de mgica sonda potica extrai o belo do profundoda dor. Recorde-se a torturante beleza do concerto n0 1 para piano, de Brahms ou do Rquiem, de Mozart.Recordem-se,deRilke,asElegiasdeDuno.Neste,explcito,naqueles,oculto,umdesesperadogritodiante da egoidade auto-suficiente da beleza que se basta a si mesma, desdenhando daquele que a ama,trespassa a alma qual sentimento de morte. Este belo absolutamente primeiro, gentico, apaixona, masse nega ao dilogo. Nada determina por ser apenas aparncia. Cruel, desperta e frustra o insano desejode posse. Apenas surdo anjo terrvel : somente o Tempo esgarar sua impossvel pretenso de eternidade.Entretanto, o Objeto que se determina como representao se oferece amorosamente cognio, dialogaporterconduta,permitesignificaocomopossibilidadeinfuturo,desafiaacriaodopossvelaserdescoberta real.Avesso estrita causalidade, este Universo-Objeto anuncia-se diverso e desviante da lei. Avesso ao caos,permite a possibilidade do pensamento e, neste, traa sua csmica gramtica.Algo mais, ainda, se anuncia na definio de signo de Peirce. A determinao do Objeto transcende seumero objetar. Como poderia o mundo material determinar sua forma no esprito? De que dilogo falamos?Certamente no seria soluo recolher-se interioridade das idias, negando a matria como algo semsentidopossvel,comofazBerkeley,legandodivindadeacausadenossopensamento.Certamente,diante da experincia frustrada de extirpar a noite com nosso sono, parece mais sensata a hiptese deuma conaturalidade entre objeto e signo, fazendo-os substancialmente idealidade. Idealidade descobertapelocientista,admiradocomaintelignciadasleisdanatureza.Idealidadepassveldedescobertaemsilncio pelo poeta, que em algum momento se perguntaria: como a matria morta desperta sentimentosvivos?O Objeto, mais que virtualmente capaz de negar o arbtrio do signo falso, potencialmentedetermina suacondutageralnarepresentaoeestageneralidadecorrelatageneralidadedopensamentoe,porconsequncia,dalinguagem.Esta uma enviesada e despretensiosa apresentao do Realismo de Peirce. No um roto Realismo queadmite,to-somente,aexistnciadascoisasexternasnossainterioridade,mas,sim,aquelequereconhece a realidade de um tecido de generalidade, similar quele que d forma ao nosso pensamento.Uma continua estrutura de ordem constituindose, evolutivamente, desde um primevo caos. esta ordem,e apenas ela, que permite que faamos previses sobre a conduta futura do mundo. Errneas, faliveis,masevolucionariamentepassveisdecrescimento.Interpretantessempretensodecertezaabsoluta,esta sonolenta busca de tantas filosofias.ConstituindoumterceiromododeserdoUniverso,talordemquetornacsmicooque,deimediato,comosegundo,apenasseope,conferindointerioridadeinteligvelqueleprimeirobeloevirtualmentecruel aparecer.De sua interioridade, este Objeto se faz exterior, tornando sua cognoscibilidade a sua prpria essncia deser; ocultar-se como coisa em si mesma seria vedar-se existncia e eximir-se de evoluir. As CategoriaspeirceanasafetivamenteseentrelaamcomseuPragmatismo.Asconsequnciasprticas,emsuamxima, so exigncia para uma significao possvel: exibir da interioridade do conceito o que se mostra observao, exteriorizar-se, como mundo, para penetrar, novamente, a interioridade como signo, nicocaminho de crescimento evolutivo.Cruel , ento, aquilo que aparece e apaixona sem interioridade cognoscvel. No toa, Peirce no sesatisfazcomoBeloquesimplesmenteapareceenadamaistemoquedizer,excludoexigir,daqueletomado pelo xtase, contemplao e silncio.O dilogo amoroso de conhecer, contudo, busca um belo que se estratifica no mais profundo. O belo dacondutaabertaaosigno,comosigno;umaordemdialoganteeevolutivaquefazdo Amornoapenaspalavra , mas gape, fora cosmicamente eficiente para o crescimento no to-somente da Razo, masda Razoabilidade [3 CP-1.613-615 (1903)]Recorde-se Shakespeare. A interioridade aberta dos amantes transgride o que era mera aparncia humbelomaisprofundoindiferentetemporalidadedestaapenassevaleuparaatingiraverdadeiramediaoamorosa:And all in war whith Time for love of you,As he takes from you, I engraft you new[4 Sonnet XV. Na traduo de Ivo Barroso (Shakespeare Comdias e Sonetos. Editora Abril, 1981.):Ecrua guerra contra o Tempo enfrento. Pois tudo que te tomaeu te acrescento. ]O Universo se diverte, tambm, como poeta. Jamais se permitiu pintar o cu do mesmo modo ao fim decada tarde. Em nenhum instante privou-se de se desviar de suas prprias leis, exercendo sua liberdadecriadora de diversidade.Paciente, ele prossegue a cada dia esta tarefa, ironizando a palavra crepsculo e desfazendo, por sculos,os relgios com os quais o representvamos.Permite, tambm, amoroso e paciente, que suponhamos organiz-lo com nosso pensamento e com nossalinguagem. Hedionda e despercebida humana confuso entre critrio de relevncia e ordem real Saber oque perguntar , apenas, garantir sentido para ns. Nossa humana linguagem no d forma ao mundo; aocontrrio, extrai deste sua possibilidade formal.Pacienteeamoroso,elesabedenossosequvocosenosadormecequandosefaznoite.Emalgumtempo futuro aguarda que reconheamos no ser nossa nossa idia de Universo.BibliografiaHARDWICK, Charles 5. (ed.). Semiotic and Significs - The Correspondence Between Charles S. Peirceand Victoria Lady Weby. Bloomington, Indiana University Press. 1977. (Referncia no texto comoPW)HARTSHORNE, Charles; WEISS, Paul and BURKS, Arthur (eds.). Collected Papers of Charles SandersPeirce. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1931-35 e 1958; 8 vols. (Refernciano texto como CP)KETNER, Kenneth L.; COOK, James Edward (eds.). Charles Sanders Peirce: Contributions to the Nation.Lubbock, Texas Tech Press, 1975-1987; 4 vols. (Referncia no texto como N.)