como descrever um objet tecnico

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Como descrever os objetos técnicos? 1 Madeleine Akrich Vários autores se interessaram pelo modo como a técnica pode prolongar, no espaço e no tempo, a ação política 2 . Nós propusemos inverter essa hipótese e mostrar como, longe de representar mais que um apêndice sobre um dispositivo político preexistente, os objetos técnicos possuem um conteúdo político no sentido de que eles constituem os elementos ativos de organização das relações dos homens entre eles e com seu ambiente. Os objetos técnicos definem, em sua configuração, uma certa partição do mundo físico e social, atribuem papéis a certos tipos de atores — humanos e não- humanos — excluindo outros, autorizam certos modos de relação entre estes diferentes atores etc… de maneira tal que eles participam plenamente da construção de uma cultura, no sentido antropológico do termo, ao mesmo tempo que eles se tornam obrigatoriamente os mediadores em todas as relações que nós mantemos com o “real”. Nos atentaremos a investigar as consequências dessa hipótese sobre a natureza das descrições que as ciências humanas podem propor aos objetos técnicos. Embora as ciências e as técnicas, em uma linguagem corrente, sejam sempre associadas, elas apresentam fisionomias fortemente diferentes. As ciências se 1 Texto originalmente intitulado “Comment décrire les objets techniques?”. Tradução baseada na versão publicada na revista “Techniques & Culture”, 54-55, 2010, p. 205-209. (Disponível em http://tc.revues.org/4999, 30 de junho de 2013. Acesso em 16 de junho de 2014). A versão original do artigo encontra-se publicada na revista “Techniques et Culture”, 9, 1987, p. 49-64. Tradução: Carlos Eduardo Nobre (IG/Unicamp). Agradecimentos: Madeleine Akrich e Frédéric Joulian (Techniques & Culture). 2 L. Winner mostrou como a altura das pontes no interior do parque de Long Island foi escolhida a fim de impedir a passagem dos ônibus, meio de transporte privilegiado dos negros, de tal modo que a frequência nestas áreas de lazer continuasse a ser prerrogativa dos brancos. B. Latour conta como, de uma maneira também análoga, a municipalidade radical de Paris do fim do século XIX decidiu construir os túneis de metrô muito estreitos para permitir a passagem dos trens de linha: realizado durante 70 anos, o objetivo foi prevenir o domínio das companhias ferroviárias privadas (sustentadas pelos partidos de direita) no metrô de Paris, e isto independentemente dos resultados das eleições posteriores… 161 Boletim Campineiro de Geografa, v. 4, n. 1, 2014.

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objeto técnico

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  • Como descrever os objetostcnicos?1

    Madeleine Akrich

    Vrios autores se interessaram pelo modo como a tcnica pode prolongar, noespao e no tempo, a ao poltica2. Ns propusemos inverter essa hiptese emostrar como, longe de representar mais que um apndice sobre um dispositivopoltico preexistente, os objetos tcnicos possuem um contedo poltico no sentidode que eles constituem os elementos ativos de organizao das relaes dos homensentre eles e com seu ambiente.

    Os objetos tcnicos definem, em sua configurao, uma certa partio domundo fsico e social, atribuem papis a certos tipos de atores humanos e no-humanos excluindo outros, autorizam certos modos de relao entre estesdiferentes atores etc de maneira tal que eles participam plenamente daconstruo de uma cultura, no sentido antropolgico do termo, ao mesmo tempoque eles se tornam obrigatoriamente os mediadores em todas as relaes que nsmantemos com o real. Nos atentaremos a investigar as consequncias dessahiptese sobre a natureza das descries que as cincias humanas podem proporaos objetos tcnicos.

    Embora as cincias e as tcnicas, em uma linguagem corrente, sejam sempreassociadas, elas apresentam fisionomias fortemente diferentes. As cincias se

    1 Texto originalmente intitulado Comment dcrire les objets techniques?. Traduo baseada naverso publicada na revista Techniques & Culture, 54-55, 2010, p. 205-209. (Disponvel emhttp://tc.revues.org/4999, 30 de junho de 2013. Acesso em 16 de junho de 2014). A versooriginal do artigo encontra-se publicada na revista Techniques et Culture, 9, 1987, p. 49-64. Traduo: Carlos Eduardo Nobre (IG/Unicamp). Agradecimentos: Madeleine Akrich e FrdricJoulian (Techniques & Culture).

    2 L. Winner mostrou como a altura das pontes no interior do parque de Long Island foi escolhida afim de impedir a passagem dos nibus, meio de transporte privilegiado dos negros, de tal modo quea frequncia nestas reas de lazer continuasse a ser prerrogativa dos brancos. B. Latour conta como,de uma maneira tambm anloga, a municipalidade radical de Paris do fim do sculo XIX decidiuconstruir os tneis de metr muito estreitos para permitir a passagem dos trens de linha: realizadodurante 70 anos, o objetivo foi prevenir o domnio das companhias ferrovirias privadas(sustentadas pelos partidos de direita) no metr de Paris, e isto independentemente dos resultadosdas eleies posteriores

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    referem ao exterior do mundo social e quer expressar uma verdade no sujeita scontingncias da vida humana. Da uma srie de tarefas que a sociologia dascincias definiu: a anlise detalhada do trabalho cientfico evidencia aheterogeneidade dos recursos que se manipulam e associam, a reconstruo dosmecanismos pelos quais se estende o campo do qual pertence um saber localizadoat que se alcance o estatuto de verdade universal e atemporal

    O socilogo da tcnica se acha diante de um objeto que, embora claramentedefinido em seu aspecto fsico, no curiosamente menos imperceptvel: os objetostcnicos se do imediatamente como compostos, heterogneos; meio carne, meiopeixe, no sabemos como apreend-los. Eles retornam sempre a um fim, um usopara o qual so projetados, ao mesmo tempo em que no deixam de ser um termointermedirio de uma longa cadeia que associa homens, produtos, ferramentas,mquinas, moedas mesmo a entrada nos contedos propriamente tcnicos nopermite fazer uma elaborao perfeita que substitua esta imagem imprecisa aoscontornos mal definidos da viso simultnea e descolada do objeto e do magosobre o qual ele se inscreve. Sem ir aos casos extremos, como aqueles analisadospor B. Latour e L. Winner, onde a forma do objeto tcnico esposa estritamente avontade poltica de um grupo social3, suficiente considerar os objetos mais banaisque nos cercam para constatar que sua forma sempre o resultado de umacomposio de foras cuja natureza a mais diversa. A resistncia dos materiaisque so utilizados para a fabricao dos carros est relacionada com a supostaviolncia dos choques a que eles podem ser submetidos, choques que esto ligados velocidade dos veculos, que resultado de um compromisso complexo entreperformances dos motores, regulao em vigor, meios utilizados para fazer cumpri-la, valor atribudo aos diferentes comportamentos individuais Em contrapartida,o estado de uma carroceria se transforma pela avaliao que lhe dada (pelosexperts em seguros, pela polcia, os espectadores etc.) segundo a conformidade deum comportamento norma da qual ela uma materializao.

    A partir desse pequeno exemplo j podemos ver que o objeto tcnico aformatao e a medida de um conjunto de relaes entre elementos heterogneos.

    Descrever nesses termos o conjunto do veculo automotivo requereria umtrabalho colossal. Haveria, sem dvida alguma, que se considerar a satisfaoesttica de um grande quadro onde, partindo dos parafusos e porcas, dos pistes epedalarias, das rodas dentadas e das correias, chegaramos ao tipo de sistema

    3 bvio que mltiplas tradues so necessrias para chegar a esse resultado: no caso de Winner, necessrio passar da separao preto/branco quela carro/nibus, depois altura das pontes; nocaso citado por B. Latour, a largura dos tneis que permite separar as ferrovias e o metr, e porltimo as diferentes companhias e os diferentes partidos polticos.

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    eleitoral, estratgia dos grandes grupos industriais, definio da famlia ou fsica dos slidos Ao longo de nossa pesquisa, provavelmente acharamos umamultiplicidade de indicadores (homens, textos, objetos) prontos a efetuar-nosuma traduo adicional que estendesse ainda um pouco mais a rede constituda; naqualidade de quem ela se apresentaria, em nome de que princpio os recusar, queno o arbitrrio cansao do analista? Alm da durao indefinida de tal trabalho, aquesto principal que se coloca aquela de seu interesse; uma aposta segura quedesse grande afresco se liberaria uma impresso de banalidade: o automvel adereassim ao mundo no qual vivemos, sua sociografia (isto , evidenciar o conjunto deconexes que ele efetua) se apresentaria como uma constelao de lugares comuns,isto , lugares onde elementos tcnicos, sociais, econmicos etc. se superpemrigorosamente, sendo o autor livre num dado momento, em funo da relaoparticular em que feito, para acomodar sobre um ou outro elemento, para utilizarum ou outro registro4.

    Ora, precisamente neste lugar que se pratica a eficcia de um objetotcnico, nesse piscar incessante entre interior e exterior. O objeto tcnico nopode mais ser confundido com um dispositivo material em conjunto com os usospreenchidos por este dispositivo: ele se define exatamente como narrativaconstruda entre esses dois termos.

    Se ns queremos descrever esses mecanismos elementares, necessrio nosdistanciarmos dessas zonas onde os movimentos so muito bem ajustados uns aosoutros; necessrio introduzirmos uma distncia, uma discordncia aqui onde tudoe todos aderem.

    4 Nos colocamos naquilo que poderamos chamar de zona consensual do automvel, que se definiu,por sua vez, pelos principais elementos tcnicos comuns maior parte dos veculos e pelos seushabituais usos reconhecidos. bem evidente que s margens subsistem as zonas fortementecontroversas e que esto em torno desses pontos de frico onde se jogam as batalhas quepermitem estabelecer a supremacia de tal ou tal construtor ou de tal ou tal tipo de carro.

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    Figura 1. Montagem de um cata-vento para bombeamento de gua. Costa doMarfim.

    A maioria das solues ou terrenos demonstra que estes se desfazemnaturalmente, isto , independentemente da vontade do analista, a evidncia deuma oferta que iria sem esforo particular ao encontro de uma demanda, ou de umobjeto que viria alojar-se docilmente no espao definido por uma funo: a histria,a arqueologia, a inovao, a transferncia de tecnologias. Ao mergulhar nosproblemas e projetos tecnolgicos dos sculos, at mesmo dos milnios precedentes,nos beneficiamos de uma dupla distncia: no temos mais em nossa frente osusurios das tecnologias em questo, e os desenvolvimentos ulteriores das tcnicasnos conduziram a reformular os conceitos, categorias e critrios de julgamento quenos permitem apreender as tecnologias; a composio de suas duas colocaes distncia torna a tarefa do analista singularmente complicada, pois ele deve fazersimultaneamente a arqueologia da tcnica e de seu prprio saber sobre ela. Osoutros dois terrenos tm em comum uma vantagem substancial a partir do anterior:no lugar dos objetos mudos e imveis, ns nos achamos diante dos mltiplosmovimentos e, sobretudo, dos atores que se colocam na prtica a mesma questoque ns e que experimentam as solues para resolver. Doravante, nos apoiamos

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    sobre um conjunto de exemplos tirados de experincia de pases em via dedesenvolvimento (PVD), experincias que ns pudemos seguir pessoalmente e queabrangem situaes contrastantes, depois a transposio pura e simples de umdispositivo tcnico largamente difundido nos pases industrializados, at aelaborao de objetos especificamente destinados aos PVD.

    Atravs desses exemplos, nos propusemos evidenciar os mecanismoselementares de ajustamento recproco do objeto tcnico e de seu ambiente. Peladefinio das caractersticas de seu objeto, o projetista avana num certo nmerode hipteses sobre os elementos que compem o mundo ao qual o objeto destinado a se inserir5. Ele prope um script, um cenrio que se pretendepredeterminado encenao em que os usurios so chamados a imaginar a partirdo dispositivo tcnico e das prescries (notcias, contratos, conselhos) que osacompanham. Mas como ele no se apresenta aos atores para encarnar os papisprevistos pelo projetista (ou intentando outros), seu projeto permanece no estadode quimera: s a confrontao realiza ou irrealiza o objeto tcnico.

    Se forem os objetos tcnicos que nos interessam e no as quimeras, nopodemos metodologicamente nos contentar somente com o ponto de vista doprojetista ou daquele do usurio: necessrio efetuarmos sem parar o ir e vir entreo projetista e o usurio, entre o usurio-projeto do projetista e o usurio real, entreo mundo inscrito no objeto e o mundo descrito pelo seu deslocamento. Pois nessejogo incessante de gangorra, somente os relatos nos so acessveis: so as reaesdos usurios que do um contedo ao projeto do projetista, mesmo que o ambientereal do usurio seja uma parte especfica dada pela introduo de um novodispositivo. nesse esquema que se deve entender o sentido da descrio quepropomos, como recenseamento e anlise dos mecanismos que permitem essarelao conjunta entre uma forma e um sentido que (e quem) constitui o objetotcnico.

    Cada qual em seu lugar e a tcnica ser bem guardada

    Uma das primeiras operaes que um objeto tcnico realiza aquela quedefine os atores e um espao. F. Sigaut (1984) oferece alguns exemplos deferramentas de lavoura cuja forma descreve (como em um Sherlock Holmes)precisamente o usurio: a enxada de Angola, com um cabo para duas mos, que destinada s mulheres que levam seu filho nas costas, ou a estaca para arar quecom sua nica ponta s se usa em par e supe, portanto, a constituio de um uso

    5 Para ter um exemplo impressionante da inter-relao entre a definio de parmetros tcnicos e adefinio de um mundo para o qual o objeto destinado, ver CALLON (1981).

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    coletivo. Esses mecanismos tornam-se ainda mais visveis quando eles funcionamcomo excludentes, como nos exemplos de L. Winner e B. Latour, que ns jcitamos, ou deste kit de iluminao fotovoltaica, no que, no ltimo caso, essaexcluso seja explicitamente desejada por quem quer que seja. Os subterfgiosparticulares que conduziram sua concepo permitem explicar certas caractersticasrestritivas que se pretendiam, tornaram-se repulsivas: o kit de iluminaofotovoltaica nasceu da vontade de uma agncia governamental de promoo denovas energias, a AFME, que desejava, no contexto de suas atividades decooperao, testar e produzir uma resposta aos bem-intencionados informantes quelhes haviam o descrito como necessidade crucial aos PVD a iluminao , tudopara ajudar a indstria francesa de fotoclulas em seu trabalho de criao demercados.

    Figura 2. Instalao dos kits de iluminao fotovoltaica na Costa do Marfim,1986.

    Figura 3. Instalao dos kits de iluminao fotovoltaica na Costa do Marfim,1986.

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    Figura 4. Instalao dos kits de iluminao fotovoltaica na Costa do Marfim,1986.

    Assumida em uma rede bem particular que mescla a cooperao apoiada peloEstado da indstria, os diferentes atores projetaram seus dispositivos em funo dasnecessidades, restritas, especficas que essa rede lhes permitiu apreender. Emnenhum momento, por exemplo, as consideraes comerciais entraram em jogo:nesse sentido, o kit de iluminao descreve muito bem o funcionamento dessa redeque caracterizada pela circulao de certos tipos de recursos, circulao quenecessita que a rede no se abra para outros atores.

    O painel fotovoltaico que, como diz a notcia converte diretamente a energialuminosa em energia eltrica, fornece esta energia sob uma forma particular, umacorrente contnua. A corrente contnua define os polos e torna no equivalentes ospontos de conexo. Recorrer a um eletricista local, formado na corrente alternativaque no distingue polos, torna-se perigoso na medida em que no existe nenhumamarca de polos e onde toda conexo defeituosa suscetvel de danificardefinitivamente a instalao. Os tubos fluorescentes utilizados so de um modeloque no se encontra no mercado local exceto nas capitais, mesmo que as bateriasselecionadas sejam impermeveis para que a manuteno no seja um fatorlimitante durao da vida do sistema. O comrcio local no possui nenhumrecurso para o usurio; este, para quem a bateria um elemento habitual de seuambiente tcnico, perde todo controle sobre a instalao e v o familiar virar umestranho (a primeira questo que faz o usurio: quando eu devo adicionar gua bateria?). Os fios que religam os diversos elementos entre eles, painel, baterias etubos fluorescentes tm um comprimento fixado na partida que no possam serfacilmente modificados: as conexes so feitas para as tomadas no padres. Essascaractersticas no se do ao acaso ou por negligncia; na argumentao dosprojetistas, todas possuem uma justificativa: a corrente contnua mais econmica,

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    um dispositivo de converso comeria uma grande parte da energia disponvel; asbaterias impermeveis e as conexes no padres esto aqui para prevenir todainterveno, o comprimento dos fios devem ser controlados, pois em excesso, eleproduziria nefastas perdas ao rendimento da instalao O objetivo ltimo dessesdispositivos que o kit de iluminao caminhe em sentido oposto e contrrio atudo (e a todos); uma necessidade para os industriais em relao ao seu clienteque, recordemo-nos, no mais o usurio da AFME, e para a AFME em relao aospases a quem ela doou. Isso vai at mesmo ao ponto que os projetistas de bomgrado tm omitido ao propor um interruptor separado do tubo fluorescente, esseapresenta algum inconveniente quando as lmpadas so colocadas, como convm, auma certa altura no meio do aposento que elas devem iluminar: um interruptorarriscaria ser um ponto de entrada ilcito no sistema.

    Figura 5. Instalao dos kits de iluminao fotovoltaica na Costa do Marfim,1986.

    Figura 6. Instalao dos kits de iluminao fotovoltaica na Costa do Marfim,1986.

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    Figura 7. Instalao dos kits de iluminao fotovoltaica na Costa do Marfim,1986.

    Figura 8. Plano de instalao.

    Ns vemos, portanto, acerca desse primeiro exemplo, como o objeto tcnicodefine os atores aos quais ele se dirige; neste caso o kit de iluminao (e antes dele,seu projetista) procede por eliminao e no tolera um usurio dcil excluindo-oem relao a outro ator que contribua normalmente constituio das redestcnico-econmicas, como os tecnicistas e os comerciantes.

    Retornemos um instante acerca da maneira que ns chegamos a essesresultados: se ns parssemos na primeira descrio que deram os industriais-projetistas, o kit de iluminao apareceria como montagem de trs elementos-funes: um painel produtor de eletricidade, uma bateria de armazenamento, umalmpada consumidora. Ns no teramos visto (e no vimos efetivamente) a

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    ausncia do interruptor, nem a presena das conexes no padres. somente naconfrontao entre o usurio real e o usurio projetado que aparecem as conexes eo interruptor que fornece uma medida de defasagem entre eles. Dito de outramaneira, o desenho do projetista no s um desgnio (as duas palavras so detoda maneira indistintas uma da outra at o sculo XVIII), a formatao do objetotcnico passa por um processo longo de fabricao simultneo dos elementostcnicos e sociais que vai muito alm das fronteiras do laboratrio ou do atelier.

    O paradoxo aparente (entre a indeterminao do uso e a sobredeterminaodo usurio) ainda mais forte, j que esses equipamentos foram concebidosespecificamente para os PVD, portanto, o exemplo que se seguir e que concerneaos geradores, veremos se colocar em prtica uma micro-organizao complexa emtorno de um equipamento elaborado para outros homens e outros cus.

    Uma das utilizaes mais difundidas, no meio rural, no Senegal, os geradoresparecem ser isso que ns chamamos de grupo festivo: uma administrao comprapequenos geradores que ela distribui s associaes de jovens das aldeias, osgeradores podem ser acompanhados de materiais diversos como lmpadas, toca-discos, um megafone. A associao de jovens se serve de suas atividades, teatro,festas, empresta a seus membros para suas prprias celebraes, estes pagam ocombustvel e leo necessrio, alugam aos aldees no membros que, por sua vez,devem tambm assegurar por seus prprios meios o fornecimento de combustvel.O dinheiro da locao dividido em duas partes, uma que retorna ao portador [dogerador] e outra associao. Se junta assim sobre o gerador uma pequenamultido de atores que podem ser considerados como apndices dos elementosidentificveis do gerador.

    O chassi metlico que serve de suporte ao gerador e permite seudeslocamento tem um papel protagonista: na circulao do gerador que sedefinem o campo dos usos possveis e as relaes entre os diversos atores.

    O tanque de gasolina disputa a evidncia: ele opera uma distinofundamental entre isso que conveniente chamar custo de investimento e custo defuncionamento. Essa partilha est inscrita desde o incio da montagem social queconduz o grupo na aldeia: por um lado a administrao que garante o investimentoe por outro a associao que gerencia o funcionamento. As negociaes entre asduas partes se reduzem ao mnimo de gentileza ao dispositivo tcnico que propede imediato um acordo todo negociado; a situao seria fortemente diferente se nosachssemos, por exemplo, diante de um dispositivo cujos custos so concentradossobre o investimento como o caso do fotovoltaico: qual modo de relao se preventre o comprador e o usurio? Essa questo se coloca bem prtica aos promotores

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    do desenvolvimento do fotovoltaico na Polinsia Francesa; depois da implantaode sistemas fotovoltaicos no contexto de eletrificao rural, nem sempre, ao queparece, se encontrou o meio de introduzir uma diviso de custos de modo quenenhum dispositivo funcione e, alm disso, no fornea nenhuma medida suscetvelde ser reconvertida em termos socioeconmicos: qualquer que seja o uso, um painelfotovoltaico fornece a corrente, em uma quantidade que determinada pelo clima ea posio em relao ao Equador; a relao habitual entre produo e consumo(que manifesta a dependncia recproca entre dois grupos de atores) acha-seatravessada e substituda por uma submisso individual, direta e, portanto,arbitrria s foras da Natureza.

    Situao bem diferente daquela criada pelo gerador: o reservatrio mede aproporcionalidade entre a utilizao do gerador e a despesa ocasionada por estautilizao, proporcionalidade que realiza o motor em seu conjunto. Oestabelecimento de um nexo social particular, aquele da locao, condicionadopela existncia dessa proporcionalidade que permite a deslocalizao da posse dogerador. Os grupos de atores ligados ao gerador so muito numerosos j que nos necessrio distinguir compradores-investidores, proprietrios-usurios, usurios-associados, usurios-arrendatrios e, enfim, portadores. Estes ltimos tornam aindamais puro o contedo da propriedade j que a libera de toda servido; suaretribuio marca o limite da solidariedade associativa: o trabalho de um s nopode contribuir ao enriquecimento da coletividade. No mesmo processo, o geradorconstri seu espao cuja geografia social; ele significativo deste ponto de vistaquando os professores primrios de uma das aldeias que foram pesquisar meios deiluminao para assegurar cursos noturnos no considerariam utilizar o gerador e omaterial da associao para esse fim.

    O kit de iluminao se apresentava como um objeto hipottico, j que ogerador um equipamento banal, integrado em mltiplos setores da vidaeconmica. No devemos, contudo, exagerar a distncia que os separa e que podeser descrito em termos de resistncia diferencial: para (r)estilhaar o gerador, faz-senecessrio um movimento de rejeio de toda dimenso que envolve o kit deiluminao. Mas, nos dois casos, ns temos que lidar com a criao ou a extensode redes sociotcnicas que se efetuam por especificao conjunta do social e dotcnico: as conexes no padro, o interruptor etc. aparecem no movimento dedesaparecimento do usurio-projeto antes do usurio real; a abrangncia dascompetncias da Associao de Jovens, a forma de relaes que ela mantm comoutros componentes da aldeia, a definio mesmo desses componentes precisadaconjuntamente lista dos elementos que constituem o gerador. Se nos interessamos

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    unicamente pela funo assegurada por este dispositivo no interior daAssociao, ns podemos imaginar que outro sistema tcnico (fotovoltaico, conexoem rede) assegura o mesmo servio de iluminao e de sonorizao: sendoassim, as relaes da Associao com o resto da aldeia seriam em parte diferentesou teriam atingido um grau menor de especificao. nesse sentido que nspodemos dizer que nossas relaes com o real so mediadas pelos objetostcnicos.

    Em certos casos, os projetistas ou construtores podem explicitamente utilizaros sistemas tcnicos, como mediadores, permitindo-lhes alcanar certos atores e delhes atribuir papis particulares. o que acontece na Costa do Marfim com a redeeltrica, cuja implantao fsica inseparvel de um vasto movimento deorganizao do pas atravs do plano espacial, arquitetnico, jurdico que conduzem certos casos construo de novas entidades modernas tais quais o indivduo-cidado.

    At perodos recentes, a propriedade alde na Costa do Marfim umapropriedade coletiva administrada pelos ancios que distribuem a cada qual asparcelas [de terra] segundo suas necessidades: essa diviso no estvel, a zona dehabitao chega mesmo a ser inteiramente removida. As autoridades marfinensesdecidiram subordinar a implantao da rede [eltrica] existncia de um plano deloteamento, isto , de uma diviso do espao fsico inscrita em um espao dedireito, diviso que distingue propriedades privadas individuais e propriedadespblicas. A rede [eltrica] contribui com a materializao dessa diviso desde que,na perspectiva daqueles que a implantam e se fazem porta-vozes do interesse geral,no se sobrevoe o espao pblico; ela permite ao Estado criar um espao prprio,inaproprivel para um grupo particular, o espao do interesse comum , aomesmo tempo em que lhe define os interlocutores: s o indivduo possui umaexistncia de direito no novo sistema que exclui os modos anteriores derepresentao da coletividade alde.

    Notemos que a um indivduo no se v atribudo o papel de cidado,condio para se entrar numa relao, aqui efetuada pela intermediao de cabos,de postes, de transformadores, de medidores etc., com um representantereconhecido do Estado. Na Frana, o indivduo comprimido em um conjunto talde redes que h poucas chances de escapar de seu destino de cidado: a partir doestado civil, passando pela escola obrigatria at o servio militar e seguridadesocial, as malhas da rede estatal, formada pelo emaranhado de diferentes redes,se fecham sobre ele. Nos pases de constituio mais recente, certas redes podemfornecer um apoio a um Estado frgil ou inexistente: a rede eltrica efetua e

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    mantm a relao entre um indivduo e um lugar. Assim, na Costa do Marfim ondesomente a minoria dos assalariados paga os impostos sobre a renda, a fatura deenergia torna-se o meio pelo qual se opera a recuperao dos impostos locais emmunicpios recm-criados: confirmao flagrante disto que a rede eltrica asociotcnica que permite hoje, nesse pas, fornecer a extenso mais ampla aoconceito de cidado.

    Abobo-La-Guerre e Marcory-Sans-Fil6: quando a tcnica de acusao

    Nos diferentes exemplos precedidos, ns vimos como o objeto tcnico defineos atores, o espao no qual eles se movem e, embora no tenhamos insistido acercadesse ponto, das relaes entre esses atores. Mas eles so mais que isso: eles douma medida dessas relaes, estabilizam as hierarquias, definem as normas: nosencontramos diante dos mecanismos de atribuio ou de acusao generalizadosque tomam a forma de retribuies, sanes, controles, submisses etc

    Como vimos, a rede eltrica estabelece uma solidariedade forada entre osdiferentes indivduos da Costa do Marfim. As relaes de cada indivduo-consumidor com a rede e atravs da rede com a sociedade eltrica so codificadas,quantificadas por um dispositivo tcnico banal: o medidor. O medidor sematerializa na durao do contrato inicial firmado entre produtor e consumidor: seum dos dois faltar com suas obrigaes, o medidor ou inativo ou removido.Ento cada medidor tem um efeito de tornar simtrica a relao produtor-consumidor faz-se necessrio o acordo dos dois para faz-lo rodar , oconjunto de medidores constitui um forte instrumento de controle que mede acoeso do edifcio sociotcnico materializado pela rede. Assim, ns podemos ler nojornal da EECI7, le Kanien, em seu nmero de fevereiro-maio de 85:

    Operao de grande impacto em Abobo-La-Guerre. Umintermitente vermelho acende o [dispositivo] DR8 no bairro popularde Abobo em Abidjan que administra 66.854 assinantes: a queda dodesempenho da rede (a relao entre a energia emitida na produoe a energia cobrada clientela) cai de 0,93 a 0,87 em um ano!

    6 Nota de traduo: Abobo um bairro popular, populoso e perifrico situado ao norte da cidade deAbidjan na Costa do Marfim. Em 2010 foi palco central de um conflito armado que resultou emvrios mortos e refugiados. Marcory-Sans-Fil faz referncia a uma avenida do bairro Marcory,localizado ao sul de Abidjan e que desprovido de rede eltrica, portanto, em uma traduo literal,Marcory-Sem-Fio.

    7 N. T.: EECI Energie Electrique de la Cte dIvoire: antiga companhia eltrica da Costa doMarfim. Atualmente, a CIE Compagnie Ivoirienne de llectricit (Companhia Marfinense deEletricidade) assumiu a EECI.

    8 N. T.: Dispositivo DR (Diferencial Residual): dispositivo que detecta fugas de corrente quandoocorre vazamento de energia dos condutores.

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    Qualquer diminuio no desempenho compreensvel como multiplicao deligaes clandestinas, corrupo dos agentes ou trfico de medidores. Porque a redefunciona a partir da unio de coisas controlada por atores tanto tcnicos comohumanos, a rede mede a intensidade dos fenmenos marginais e doscomportamentos ilcitos dos quais ela determina a existncia ou, pelo menos, fixa aforma.

    Essa definio de espao social vai ainda mais longe, uma vez que ela seestende s zonas no eletrificadas que se encontram caracterizadas em relao aisso que vir a se tornar norma, a saber, a eletrificao. Assim, um outro bairro deAbidjan, Marcory, se encontra cindido pela rede em duas partes, cada umaidentificada por um nome e uma fisionomia social:

    Marcory-sem-fio , contrariamente Marcory residencial, porexemplo, Marcory sem eletricidade, sem fio eltrico. Os abidjanesespossuem humor, sabido. Um bairro sem eletricidade, sem fioeltrico, imagine o que ele pode oferecer como espetculo. Pois aeletricidade um signo do progresso, sua falta supe outras faltas:higiene das ruas, habitat construdo conforme certas normas, centrode sade, campo de jogo ou de esporte etc. Na escurido da noitejunte essas privaes e voc obter um covil de ladres, diriam osguardies da ordem (TOUR, 1985).

    As negociaes podem, entretanto, ter lugar no limite que separa o lcito doilcito: por ocasio de suas operaes de grande impacto, os agentes da EECI tmpor misso substituir os medidores ditos russos que se mostram defeituosos sempenalizar seus proprietrios: suficiente dar batidinhas no medidor para bloquear econtinuar a consumir eletricidade que no ser cobrada. Ao contrrio desseshomlogos, o medidor russo revela-se tecnicamente incapaz de fazer a separaoentre comportamentos lcitos e ilcitos, entre influncias humanas e nohumanas: a atribuio aqui contrariada e o medidor desaprovado em seu papelde inscrio material do contrato, apesar de o prprio contrato ser mantido entre asduas partes em questo.

    O medidor intervm como rbitro e gestor de uma relao quando ele considerado isoladamente. O conjunto de medidores opera a maior parte do tempocomo polcia da organizao coletiva: ele constata, sem os localizar nem ossancionar, as irregularidades, compreensveis em um primeiro momento, comoum desvio moral, mas rapidamente reconvertidos em termos sociais.

    Certos dispositivos vo mais longe no controle social: eles estabelecem asnormas de comportamento e punem os insolentes que as transgridam. Os sistemasde armazenamento-regulao sobre as instalaes fotovoltaicas so, geralmente,

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    compostos por baterias e mdulos eletrnicos: as baterias estocam a energiaproduzida e no consumida no momento de sua produo; elas so indispensveisno caso dos sistemas de iluminao que funcionam durante a noite, quando opainel no fornece mais eletricidade na falta de luz. Os dispositivos de regulaoesto no centro de um imbrglio tcnico-econmico-social: uma bateria no deveestar muito descarregada, sob pena de ter sua durao de vida consideravelmenteencurtada; se ela est, ao contrrio, muito carregada, arrisca se descarregar sobre opainel fotovoltaico, danificando-o de maneira irremedivel. Para evitar esse tipo deinconveniente, seria possvel fornecer ao usurio alguns instrumentos de controleque lhe permitisse planejar sua consumao em conformidade: nunca a soluoadotada, pois os fabricantes possuem uma confiana muito limitada quanto capacidade dos usurios controlarem seus desejos e os subordinar s exignciastcnicas do sistema. Outra soluo consistiria em dimensionar amplamente odispositivo de produo e de estocagem de energia em relao consumaoocasionada pela utilizao prevista. O custo de tal sobredimensionamento muitoelevado, o que leva a preferir outras modalidades, tal como a criao de umdispositivo de regulao. Essa regulao comporta geralmente dois limiares quecorrespondem aos dois efeitos mencionados mais acima: para alm de certa carga,mensurada pela tenso dos limites da bateria, a regulao corta a conexo entre opainel e a bateria; abaixo do outro limiar, a conexo entre a bateria e o sistemautilizando a energia que se interrompe. Para ser completo, convm adicionar umterceiro limiar, que corresponde ao momento onde essa ltima conexo restabelecida, quando a bateria est suficientemente recarregada. Certos modos deconsumo se encontram assim impedidos pela regulao: o usurio no pode sermuito ganancioso; ele no pode esperar comprar novamente seus excessos deganncia por uma falta prolongada. A sano de um comportamento fora dasnormas vemos aqui que essas normas so inextricavelmente tcnicas e sociais imediata e abrupta: a interrupo e a impossibilidade de restaurar a correnteantes que a carga da bateria atingisse um novo limiar.

    A regulao prova que constituir um sistema de adestramento do usurioatravs da sano e recompensa conduz a uma interiorizao das normas decomportamento. Existe, contudo, uma falha nesse sistema: ns no sabemossimplesmente medir a carga de uma bateria; a medida da tenso que sai norepresenta mais do que uma aproximao grosseira. Quando se est incerto sobreuma tropa, duas possibilidades se apresentam: redobrar as precaues e medidasdisciplinares ou no fazer nada alm de se expor a litgios e vicissitudes. A primeirasoluo foi a adotada pelos construtores dos kits de iluminao fotovoltaica dosquais j falamos: a traio possvel do dispositivo de regulao, que poderia se

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    voltar contra eles como acusador, uma das razes que os levou a reforartotalmente seu sistema para as conexes no padro. Enquanto que a regulao secontenta em dizer ao usurio: No pense que voc maior, pois voc no ! Sevoc se submeter s minhas ordens, voc ser recompensado, porque voc tirar omximo do seu dispositivo., as conexes no padro so mais castradoras: Nsseremos mais fortes que seus desejos! Elas gritam ao usurio9.

    Na Polinsia Francesa, a regulao tem se revelado uma pssima aliada nocampo dos construtores e de seus representantes que ainda realizaram um grandenmero de instalaes fotovoltaicas. Impondo sua sano de uma maneiraconsiderada arbitrria pelos usurios, tendo em vista as promessas iniciais dosistema, eles a denunciaram e manifestaram seu descontentamento telefonando aoinstalador, a cada vez que, tranquilamente instalado em frente ao televisor, osistema se soltava traioeiramente. O infeliz instalador, cansado de passar suasnoites fazendo reparos, usou-se de um estratagema com a regulao e lhe imps umformidvel concorrente. Ele instalou, paralelamente com a regulao, um circuitofechado pela interposio de um fusvel: quando a regulao corta a corrente, ousurio pode restaur-la criando um curto circuito com o fusvel que ignora aregulao; isso que permite esperar at amanh de manh antes de incomodar oinstalador. O fusvel marca a submisso do instalador a seus clientes e lhe permiteestar l pelo objeto interposto a partir desse que o julga necessrio.

    9 Dever-se-ia inventar algumas ordens bsicas que descrevem as principais operaes efetuadas pelosobjetos tcnicos, semelhana do charmoso suivez-moi-jeune-homme (siga-me jovem) de nossasavs.

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    Figura 9. Instalao dos kits de iluminao fotovoltaica na Costa do Marfim,1986.

    Figura 10. Mastros dos kits de iluminao fotovoltaica erguidos noite.

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    Por causa de seu carter precrio e improvisado, manifesta-se a necessidadede uma interveno, ainda que diferida. O instalador declara-se culpado nesseprocesso: ele reconhece, ao mesmo tempo, por intermdio do fusvel, alegitimidade de uma regulao e aquelas reclamaes de seus clientes; ele se colocaem posio de ser convocado por estes e corrigir a arbitragem operada pelaregulao no local sobre o dispositivo.

    A ordem das coisas e a natureza do homem

    Vimos atravs de vrios exemplos como os objetos tcnicos pr-formam asrelaes entre os diferentes atores que eles suscitam e lhes do isso que poderamoschamar um contedo moral: ao atribuir papis e responsabilidades, eles ficam empoder das fontes de acusao. Teoricamente, nada nem ningum est protegido detal denncia: no caso da rede, os usurios so designados por no respeitar ocontrato-medidor, mas a EECI denuncia certos medidores como mausrepresentantes do contrato; no caso dos sistemas fotovoltaicos o instalador e paraele o construtor que esto no banco dos rus pelo intermdio da regulao. Ahistria dos kits poderia ser lida como uma longa srie de acusaes recprocasentre as diferentes partes interessadas: no daramos mais que dois exemplos: porum lado os industriais pelos quais: se isso no funciona (subentendidotecnicamente), porque mal utilizado (socialmente), por outro lado os usurios,ou melhor, esses que se querem seus representantes: se isso no funciona(socialmente), por que mal projetado (tecnicamente). Ns nos encontramosdiante de uma reversibilidade quase perfeita que ilustra essencialmente a falta derelaes amarradas pelo kit entre projetistas e usurios. Ao industrial nointeressa o usurio, ele no lhe necessrio tanto quanto que usurio, massomente como alvo que lhe permite retornar para a AFME demonstrando anecessidade de um suporte do Estado para o desenvolvimento de produtos aindasem mercado. O kit no tem que ser mexido nessa histria, o usurio que instrumentalizado na relao AFME-industriais.

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    Figura 11. Medidor eletrnico

    Fonte: http://www.ivorian.net

    Bem diferente a situao da rede [eltrica]. Ns dificilmente podemosimaginar uma argumentao plausvel que justifique ligaes clandestinas e quecoloque a EECI em posio de acusada. A rede [eltrica] realiza mltiplas relaes:ns demos os exemplos do medidor e da partilha do espao, dever-se-ia aindaadicionar a estabilizao e configurao do habitat (somente as casas resistentesso eletrificadas por razes de segurana e porque uma maneira de avaliar asolvabilidade), a criao de redes comerciais ao longo das quais circulam todo umconjunto de material eltrico, a interposio desses equipamentos entre o usurio eos principais objetivos perseguidos cotidianamente etc. A estabilidade da rede(tanto fsica como social) um dos resultados da associao de todos esseselementos e da relevncia que elas lhes do. Uma pequena margem de prticasdesonestas no pode encontrar a fora necessria para contrabalancear essamultiplicidade de atores cujos medidores so os porta-vozes unvocos que a EECIdesejaria convocar. Nos encontramos diante de uma dupla irreversibilidade, umairreversibilidade material inscrita no espao e nos usos, e uma irreversibilidade desentidos no podemos reverter os processos de imputao ou acusao , ambosesto intimamente ligados.

    Um objeto tcnico define no somente os atores e as relaes entre essesatores, mas deve, para continuar a funcionar, estabiliz-los e canaliz-los: eleestabelece os sistemas de causalidade que se apoiam sobre os mecanismos derarefao de sentidos. A substituio dos medidores russos reala bemdiretamente esse processo, cujo um dos resultados constitudo pelo diagnsticoautomatizado e a mais nova inteligncia artificial10.

    10 O problema da pane bastante interessante a esse respeito e mereceria um pouco de ateno: apane retorna precisamente definio que demos de objeto tcnico j que ela s pode ser

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    A partir do momento em que o objeto tcnico quase estabilizado, ele torna-se, pelo seu desaparecimento, um instrumento de conhecimento. Atravs das tarifasde eletricidade diferentes conforme se trata de uma consumao domsticabastante insuficiente (iluminao-ventilador), confortvel, profissional-artesanal, ouindustrial, a sociedade de eletricidade11 se d os meios de caracterizar os diferentesestratos sociais que ela permite identificar. Se ela escolhe as categorias utilizadasnoutras redes scio-econmico-polticas, ela se coloca em posio de fabricar umconhecimento exportvel, no sentido de que seus dados podem ser abstradosda rede, que somente os torna possveis. Assim, as legies de economistastrabalham sobre a relao preo de energia-consumao, ou PNB12-consumao deeletricidade.

    A transformao de fatos sociotcnicos a simples fatos passa, portanto, pelatransformao do objeto tcnico em caixa-preta: ele desaparece ao mesmo tempoem que mais indispensvel que nunca. Mais uma vez, um exemplo a partir dasexperincias dos PVD vai nos permitir precisar o propsito.

    A Burkina-Faso um pas pouqussimo eletrificado; depois de alguns anos, ogoverno tenta mudar essa situao eletrificando os centros urbanos. O primeiroproblema que se coloca aos engenheiros e tcnicos aquele do dimensionamentoda rede: como avaliar a demanda? Dois mtodos foram experimentados.

    O servio de Estudos Econmicos aplicou uma pesquisa junto aos potenciaisassinantes perguntando a qual preo (determinado pelos intervalos de variao dospreos) eles estariam dispostos a solicitar sua conexo futura rede. Talquestionrio baseia-se na ideia implcita de que h, certamente, uma relao entreoferta e demanda, preo e consumao.

    O servio tcnico procedeu bem diferentemente: ele fez um levantamento dosplanos das cidades em questo identificando os bairros loteados e as caractersticasde habitao (tamanho, se resistente ou no etc.). A partir desse plano, elesdesenharam a rede possvel juridicamente, economicamente, tecnicamente, isto ,uma rede que sobrevoa o espao pblico e que servisse as casas resistentes e asadministraes. O servio tcnico felicitou-se por ter adotado esse mtodo, porque,diz ele, seguindo as instrues do servio econmico, as potncias instaladas teriamsido ridiculamente insuficientes em relao demanda expressa uma vez

    compreendida em ato, como ruptura dessa relao constituda pelo objeto tcnico entre umdispositivo material e um uso. Toda pane , portanto, uma prova de resistncia da uniosociotcnica materializada pelo objeto tcnico, a rapidez com a pesquisa das causas leva a umconsenso dando uma medida dessa resistncia.

    11 N. T.: A autora se refere EECI.12 N. T.: PNB Produit National Brut (Produto Nacional Bruto).

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    construda a rede.O servio de Estudos Econmicos agiu como se no houvesse necessidade da

    mediao tcnica para basear uma relao entre preo e consumao, como se essarelao fosse um fato natural ao qual o objeto tcnico viria oferecer um contedoconcreto. Eles tm sido de alguma maneira abusados pelo efeito de naturalizaoque produz a completa integrao de sistemas tcnicos ao tecido social.

    A constituio de disciplinas (economia, a tcnica etc) passa peloestabelecimento e eliminao de dispositivos externos ao campo disciplinar: aeconomia se coloca disposio dos objetos tcnicos da mesma forma que a tcnicase coloca disposio da economia ou do social (por exemplo, no caso dodiagnstico automatizado). Esses mecanismos funcionam nas situaes bemestabilizadas: se introduzirmos, por exemplo, os aparelhos eltricos deaquecimento, o economista integrar essa mudana tcnica na relao preo-consumo; o economista no est rompendo com a tcnica, simplesmente, elesuspende suas relaes com ela.

    nesse sentido que os objetos tcnicos podem ser considerados como osinstrumentos politicamente poderosos: ao mesmo tempo em que eles produzem osmodos de organizao social, eles os naturalizam, os despolitizam, d-lhes umcontedo diferente.

    A inverso a posteriori de todas as histrias particulares que resultaram naaplicao e no funcionamento de certos objetos tcnicos est na base dessesprocessos de naturalizao, isto , de fixao unvoca de conexes de causalidade. dessa maneira que os objetos tcnicos constroem nossa Histria e nos impecertas estruturas de pensamento. isso tambm que torna possvel e indispensveluma antropologia das tcnicas.

    Bibliografa

    CALLON, M. Pour une sociologie des controverses technologiques. FundamentaeScientiae. II, 3/4, 1981. p. 381-399.

    LATOUR, B. How to Write the Prince for Machines as well as for Machinations? Working Paper. Seminar of Technology and Social Change. Edinburgh, June, 1986. p. 12-13.

    SIGAUT, F. Essai didentification des instruments bras du travail du sol. Cahiers ORSTOM. Srie Sciences Humaines. XX, 3/4. 1984, p. 359-374.

    TOUR, A. Les Petits mtiers Abidjan. Paris: ditions Karthala, 1985.

    WINNER, L. Do Artefacts Have politics? Daedalus. 109, 1980. p. 121-136.

    Nota da verso utilizada para publicao: Todas as imagens fotogrficas so de propriedade da autora exceo do medidor eltrico reproduzido ao fim do artigo.

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    Sobre a autora

    Madeleine Akrich: sociloga e engenheira francesa, diretora do Centro de Sociologiada Inovao (CSI) de Mines Paris Tech de 2003 a 2013. Seus trabalhos soconsagrados sociologia das tcnicas e se inscrevem na perspectiva da teoria doator-rede desenvolvida em colaborao com Michel Callon e Bruno Latour. Aoprivilegiar a anlise dos usurios, Madeleine Akrich se debruou notadamentesobre as relaes daqueles com as tecnologias. Ela tem se interessado, tambm, pelamedicina e prticas obsttricas.

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    BCG: http://agbcampinas.com.br/bcgCopyright 2010; 1987 by Revue Techniques & Culture.

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