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O vazio no poder (the art of spaciousness) Uma jornada reflexiva pelo fenômeno político Eduardo Rombauer van den Bosch Orientador: Allan Kaplan Dissertação apresentada à London Metropolitan University para obtenção do título de Mestrado em Prática Social Reflexiva 2 a versão – traduzida e revisada. Novembro de 2015

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O vazio no poder (the art of spaciousness)

Uma jornada reflexiva pelo fenômeno político

Eduardo Rombauer van den Bosch Orientador: Allan Kaplan

Dissertação apresentada à London Metropolitan University

para obtenção do título de Mestrado em Prática Social Reflexiva

2a versão – traduzida e revisada. Novembro de 2015

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Resumo Nesta dissertação, eu exploro os possíveis efeitos da combinação de uma prática reflexiva de desenvolvimento social (a "Arte do Invisível") com o ativismo político (a "Arte do Impossível"). Minha própria jornada é descrita para ilustrar como, quando uma sabedoria prática é construída a partir do encontro destes dois campos, uma compreensão ampliada da vida política pode surgir e inverter o senso comum de que "em política não há espaço vazio". A partir do legado de Vaclav Havel e em diálogo com outros profissionais e ativistas de ambos os campos, especialmente com a líder Marina Silva, defendo que a política pode ser percebida como um espaço aberto e fértil para que os cidadãos criem as suas próprias formas de exercer a sua responsabilidade, cultivando assim uma noção mais profunda de pertencimento ao mundo. Como é que é possível construir coletivamente outro nível de consciência no âmbito da ação política? Minha própria experiência no processo que dá origem a um partido político (Rede Sustentabilidade) e na criação de uma comunidade de práticas políticas transformadoras demonstra na prática como outra maneira de ver o mundo e a nós mesmos pode se desenvolver a partir de uma abordagem fenomenológica de pensamento. É a partir do encontro mais profundo com as experiências que os praticantes políticos podem encarnar as virtudes e atitudes de uma prática política radicalmente diferente. Por fim, sugere-se a combinação dos dois campos de atuação por meio de espaços de formação em que pode-se desenvolver habilidades que permitam abraçar os aspectos paradoxais da vida política e, assim, superar a separação aparentemente inevitável entre teoria e prática. Quando um tipo de poder delicado é encontrado, um sentido renovado de espacialidade (spaciousness) emerge, nutrindo abordagens radicalmente abertas, horizontais e significativas de participação nos destinos da humanidade.

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Abstract

In this dissertation, I explore the possible effects of combining a reflective development practice (the “Art of the Invisible”) with political activism (the “Art of the Impossible”). My own journey in bridging these two fields is described to illustrate how, when a practical wisdom is built from this encounter, a broader understanding of political life may emerge and become embodied – one which reverses a common sense in which “there is no empty space in politics”. Drawing on the legacy of Vaclav Havel and in dialogue with other reflective practitioners from both fields, I argue that politics can be faced as an open and fertile space for citizens to create their own ways to participate in the destinies of humankind, and to assume true responsibility and thus to nurture a deeper notion of belonging in the world. How is it possible to build another level of awareness, collectively, in the realm of political action? My own participation in a new-born political party and a community of political practice are brought forth to demonstrate how this understanding can be held with a phenomenological quality of thinking, from which another way of seeing the world and ourselves, in practice is to be found: from a deeper encounter with our experiences, political practitioners may embody the virtues and attitudes of a radically different political practice. One combination of the two fields of practice is suggested in the holding of formative spaces, in which political practitioners may gain abilities that enables them to embrace the paradoxical aspects of the political realm, and thus to collapse the seemingly unavoidable split between theory and practice that diminishes their authenticity and conviction. When a delicate kind of power is found, an ever-renewed sense of spaciousness emerges, from which a radically open, horizontal and meaningful way of participating in the broader destiny of humankind takes place.

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Agradecimentos

São incontáveis os colegas e amigos que me ajudaram ao longo do percurso: desde os pequenos gestos de tolerância com meus atrasos, faltas e esquecimentos, até diversos tipos de colaboração mais direta, sem os quais esta dissertação não teria sido possível.

É claro que eu não poderia deixar de mencionar algumas dessas pessoas:

Em primeiro lugar, devo a mais profunda gratidão aos meus orientadores: a Alan Kaplan, por sua infindável disposição de me levar adiante, e a Sue Davidoff, pelo apoio tão dedicado ao me preparar para mergulhar na prática reflexiva. Expresso também minha profunda gratidão a David Harding, que sempre atendeu à minha curiosidade.

Quero também expressar minha gratidão a todos os meus colegas do mestrado, que se tornaram amigos para toda a vida. Nossos grandes momentos juntos propiciaram muito aprendizado e boas lembranças.

Meu especial obrigado a dois parceiros desde sempre: Clóvis Henrique, que me deu força para ver o valor deste trabalho; e Henrique Santana, que sempre me mostra o mundo para além do visível. Considero esta dissertação mais um passo de uma grande caminhada com vocês dois.

Minha eterna gratidão a Marina Oliveira, que definiu os marcos deste caminho. Que este trabalho faça jus à sua generosidade. Estendo minha gratidão a todos os seus parceiros do Instituto Fonte, que preparou o terreno para a prática de desenvolvimento e para este programa de mestrado no Brasil.

Minha calorosa gratidão aos colegas e amigos que caminharam de mãos dadas comigo e tão próximos na prática de campo, e que nunca hesitaram em me apoiar com firmeza quando precisei: Alexandra Reschke, Larissa Barros, Marcos Woortmann, Rafael Poubel, Rangel Mohedano. Com cada um de vocês a jornada me pareceu mais verdadeira e compensadora.

Sou extremamente grato aos amigos da República Tcheca, Ditta Dolejsiova e Petr Lebeda, e especialmente à incrível equipe da Biblioteca Vaclav Havel, na pessoa de Marta Smolikova. Sua generosa receptividade e apoio foram determinantes para este trabalho.

Eu gostaria de agradecer a todos os que inspiraram e apoiaram meu trabalho reflexivo: Amanda Gambale, Antonio Brennand, Antonio Lino, Aron Belinki, Alan Dubner, Beatriz Pedreira, Caio Tendolini, Cândido Azeredo, Carol Ramalhete, Cassio Martinho, Daniel Cara, Denise Castro, Drica Guzzi, Erich Baptista, Fernando Sapelli, Fábio Brotto e Denise Jayme, Gil Scatena, Gisela e Mariana Moreau, Igor Oliveira, José Moroni, Liliana Salvo, Marcel Taminato, Marina e David Feffer, Maristela Bernardo, Michelle Prazeres, Neca Setubal, Oliver Henman, Oscar Motomura, Ricardo Leal, Rogerio Godinho, Talita Montiel. Esta dissertação não seria a mesma sem o apoio de cada um de vocês.

Gostaria também de expressar meu enorme reconhecimento a todos os meus companheiros da Rede: Alessandra Monteiro, André Lima, Bazileu Margarido, Eduardo Reiner, Gabriela Batista, João Francisco, Leonardo Secchi, Lucas Brandão, Marcela Moraes, Marina Silva,

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Muriel Saragoussi, Pedro Ivo, Pedro Piccolo, Rafael Poço, Shalon Souza, Antônio Alves, Zé Gustavo – e tantos outros que permaneceram firmes no campo de batalha. Obrigado a todos vocês por manterem a coragem, a força e a sabedoria.

Meu reconhecimento se estende igualmente a todos os meus companheiros da comunidade de práticas políticas transformativas, nas pessoas de Patricia Shaw, Ricardo Young, Izabella Ceccato e Juliana Schneider: a presença de vocês permitiu que esta jornada reflexiva avançasse mais.

Minha gratidão pela excelente contribuição de meus revisores: Bete Torii e Lou Gold.

À minha família – meu pai Carlos, minha mãe Patricia e irmã Cristina – que me deu apoio incondicional, meu mais afetuoso amor e gratidão.

Esta dissertação é dedicada à minha esposa, Elisa Marie, a maior professora de todas as minhas práticas.

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Apresentação Esta dissertação foi apresentada em julho de 2015 como trabalho conclusivo do mestrado em Prática Social Reflexiva, oferecido pela Proteus Initiative em parceria com a London Metropolitan University. O documento, originalmente escrito em inglês com o título “The Art of Spaciousness – A reflective journey through the phenomenon of political power”, foi traduzido para o português, em novembro de 2015, após a aprovação pela banca examinadora, e apresenta alguns aprimoramentos em relação ao texto original. O propósito do mestrado, segundo o manual dos estudantes, foi o de “ampliar a capacidade de Práticas Sociais Reflexivas entre os participantes e suas organizações/comunidades”. Para tanto, o curso buscou viabilizar uma visão crítica sobre modelos dominantes de desenvolvimento, oferecendo uma disciplina profunda que permitisse aos estudantes construir significados – de si mesmo e da situação – a partir do que ocorre atrás das superfícies. Foi proposto que cada estudante em sua dissertação demonstrasse a capacidade de desenvolver um diálogo crítico com os temas dos seis módulos do curso: parâmetros e abordagens de desenvolvimento social; leitura e significação de situações sociais; pesquisa em situações sociais (pesquisa-ação); o ser na prática (self in practice); premissas e princípios para a prática profissional; e imagens das organizações.1 Cada dissertação deveria retratar a aplicação das aprendizagens destes módulos em seu próprio ambiente de atuação social, de modo a elucidar o desenvolvimento do seu entendimento de si mesmo em relação ao seu contexto. Para isso, o estudante deveria desenvolver alguma pesquisa que demonstrasse a qualidade reflexiva em sua própria prática. Neste sentido, o foco da minha pesquisa foi observar como minhas aprendizagens nesta Prática Reflexiva incidiram no meu processo de ativismo político. A abordagem desta dissertação, seguindo as premissas de um pensamento fenomenológico que fundamentam o próprio curso, é estruturada de um modo distinto do que é mais comumente conhecido na academia. Categorias usuais, como “tese”, “hipótese” e “conclusão”, não são utilizadas nesta pesquisa, na qual busca-se dar visibilidade a uma experiência pessoal e interpessoal vivenciada. Portanto, este documento trata-se de uma narrativa, em 1a pessoa, de um processo de construção do conhecimento fruto de uma jornada percorrida, que contribuiu para o amadurecimento de minha atuação no mundo. Espero que sirva de inspiração para todos aqueles que acreditam em uma sociedade mais justa e sustentável.

                                                                                                               1 Mais informações sobre o programa, inclusive conteúdos de todos os módulos mencionados, podem ser acessado no site: https://proteusmasters.wordpress.com/

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Sumário

1. Os muros em nossos mundos  .....................................................................................................................  9  

2. Fluir pelas brechas  .......................................................................................................................................  16  

3. A arte do Impossível  ...................................................................................................................................  26  

4. Ver o Invisível  ...............................................................................................................................................  35  

5. Sustentar o Vazio  .........................................................................................................................................  43  

6. Por uma Arte da Amplidão  .......................................................................................................................  51  

Referências  ..........................................................................................................................................................  62  

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Enquanto a noção de poder estiver ela mesma corrompida

por uma oposição romântica entre poder e amor, alma, bem, beleza,

o poder de fato corromperá, como se costuma dizer.

Esta corrupção se inicia não no poder,

mas na ignorância a seu respeito.

James Hillman

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1. OS MUROS EM NOSSOS MUNDOS

Não seria muito mais fascinante participar dos destinos do nosso jardim?

Rubem Alves

O que pode fazer uma pessoa que se preocupa com o futuro de seu lugar, cidade, país e planeta, quando ela se dá conta que não há outro caminho para agir senão com algum envolvimento na dimensão política da vida? Um cidadão comum que escolhe agir politicamente em nome de uma causa ou uma ideia, que faz escolhas de vida com base em um compromisso com o bem comum, ao se envolver com a política inevitavelmente irá encarar uma jornada complexa e difícil. A política tal como está construída é um ambiente hostil, que afasta a maioria das pessoas, justamente para que alguns poucos possam manter-se no comando. Irá se deparar com grandes e espessos muros que separam os assim chamados “poderosos” dos “sem-poder”. Até mesmo nos sistemas de governo democráticos, estes muros são construídos de muitas formas, para evitar que as pessoas possam se conscientizar do que realmente acontece do outro lado. Os sistemas políticos acabam sendo engolidos por sua própria lógica interna e sufocam as próprias dinâmicas da vida as quais deveriam servir. Existem incontáveis frases e tratados que identificam os malefícios desta separação entre os cidadãos e a vida política. Ainda que o senso comum muitas vezes atribua uma culpa aos próprios políticos por esta cisão perversa, o ponto de convergência entre estes muitos estudiosos e praticantes é claro: está nos cidadãos o potencial de reverter esta separação. Berthold Brecht talvez tenha sido o mais enfático ao afirmar que “é de nossa não-participação política que decorrem a criança abandonada, o ladrão e, acima de tudo, funcionários corruptos, os lacaios das corporações exploradoras”. Entre estes praticantes e estudiosos está Vaclav Havel (1975), que investiu grande parte de sua vida buscando superar essa tendência destrutiva, deixando um riquíssimo – porém pouco conhecido - acúmulo reflexivo sobre as maneiras com que os cidadãos podem participar da vida política a serviço da vida. Vaclav Havel (1975) nomeou o padrão destrutivo dos sistemas políticos de entropia, ou seja, um caminho que serve à morte ao invés da vida:

Na vida de uma pessoa, como sabemos, há um momento em que a complexidade da estrutura começa subitamente a declinar e seu trajeto se volta em direção à entropia. Esse é o momento em que ela também sucumbe à lei geral do universo: o momento da morte. Em algum lugar no fundo de todo poder político que escolhe o caminho da entropia, jaz oculto o princípio da morte.

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E ilustrou este muro de muitas formas ao longo de sua trajetória. Ao assumir a presidência de seu país, declarou que:

Um ser humano comum que, com sua consciência pessoal, responde pessoalmente por algo a alguém e assume responsabilidade diretamente, parece estar se afastando mais e mais do campo da política. (1992a)

Enquanto isso, além dos muros:

Políticos parecem se transformar em marionetes que têm somente a aparência humana e se movimentam em um teatro gigantesco e bastante inumano; eles aparentam ser meras engrenagens em uma grande máquina, objetos de um automatismo civilizacional que saiu do controle e pelo qual ninguém é responsável. (1992a)

O que significa esta entropia? Como nos afeta, de fato? Com o acesso a informações que temos atualmente, não é difícil imaginar as movimentações de recursos controlados por toda sorte de interesses contrários às necessidades comuns da vida que ocorre de modo invisível através das engrenagens das instituições governamentais e seus contratados. O motor desse sistema operacional é uma combinação gananciosa de interesses ocultos, mentiras e a manutenção das pessoas em estado de ignorância e alienação. Mesmo quando conseguimos compreender como este jogo funciona, nos sentimos impotentes diante destas dinâmicas ocultas. Os poucos com determinação, capacidade e força para lograr alguma atuação que possibilite ocupar alguns espaços de ação política, podem às vezes reverter ou diminuir alguns dos fios destrutivos. Por vezes criam e mantêm espaços de ação que crescem com o tempo, consolidam uma liderança que lhes permite mobilizar cada vez mais forças de apoio, e ainda fortalecem outros cidadãos ativos em nome dos impulsos de vida latentes na sociedade. Entretanto, ao mesmo tempo em que esses atores aprendem como criar e ocupar tais espaços, aqueles que agem em nome dos interesses escusos também aprendem maneiras de usar este mesmo potencial em seu proveito. Mesmo quando não são corrompidos, geralmente as lideranças emergentes são constrangidas, contidas e controladas de forma a que não possam ameaçar as forças hegemônicas. Quando nos deparamos com a direção destrutiva do atual modelo de desenvolvimento que prevalece nas sociedades, já em velocidade crítica, e analisamos como o mesmo se encontra imbricado nestes arranjos de entropia, a situação revela-se crítica: o uso crescente de energia suja em detrimento das soluções limpas, o aprofundamento da desigualdade social, todo tipo de intolerância e destruição de culturas ancestrais, a expropriação da água por grupos de interesse, a produção e consumo irresponsáveis de alimentos, e a indústria química lucrando com as doenças produzidas pelos efeitos disso, as florestas sendo destruídas, guerras sendo patrocinadas pelos fabricantes de armas, a hipocrisia de setores da sociedade legitimando o setor de narcóticos, trabalho escravo e semi-escravo liquidando economias no mundo todo, a migração de refugiados sem perspectivas de resolução, as mudanças do clima – todos são exemplos de destruição da vida que se viabilizam por meio de arranjos políticos ocultos.

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A capacidade de alguns grupos de influenciar decisões que direcionam os recursos públicos para o seu próprio benefício se intensifica com o índices crescentes de concentração de riqueza. Adicionalmente, muitos que acumulam riquezas desta maneira realizam “boas ações” para nutrir uma imagem positiva, como uma espécie de disfarce para legitimar sua participação no jogo oculto, reforçando este ciclo destrutivo. Este é um modus operandi de manutenção do status quo vem sido decodificado de várias maneiras ao longo da história, desde que Thomas Hobbes escreveu (1651) seu Leviatã: um controle sempre crescente sobre nosso destino nas mãos daqueles poucos que operam, por meio do estado, a economia e nossa vida cultural. Mas também não nos faltam exemplos de como foram encontradas brechas para romper este muro e gerar transformações necessárias à sobrevivência e ao florescimento humano: o fim da escravidão, a emancipação do colonialismo, o próprio surgimento da democracia; são transformações resultantes da capacidade de alguns atores criarem e ocuparem brechas e reverter características entrópicas nos seus sistemas políticos. Diversos estudos contemporâneos têm pesquisado o fenômeno da chamada “sociedade em rede”, e buscam identificar distintos aspectos de uma transição estrutural alicerçada na revolução das tecnologias de comunicação. Esta revolução combinada com temas urgentes de proporções globais (diante das mudanças climáticas e do desafio dos refugiados, por exemplo) forçam a humanidade a se perceber cada vez mais como uma comunidade. Neste cenário, cada vez mais os temas locais e globais são percebidos como interdependentes. Um dos mais conhecidos pesquisadores neste campo, Manuel Castells (2009) identificou que um traço central desta sociedade em rede são os “espaços de fluxo” – novas formas de arranjos espaciais que permitem interações à distância, sincrônicas e em tempo real. Castells demonstra com inúmeros exemplos como uma série inimaginável de oportunidades para participação cidadã foi lançada em direção ao nosso futuro. Um efeito evidente deste contexto é que as velhas estruturas de governança não parecem capazes de absorver o que está sendo sugerido nesse novo contexto. Moises Naím (2013, p. 243) em seu livro “O Fim do Poder”, defende que:

Uma onda avassaladora de inovações está se erguendo, onda essa que promete mudar o mundo tanto quanto as revoluções tecnológicas das duas últimas décadas mudaram. Ela não vai ser de cima para baixo, organizada e rápida, como um resultado de cúpulas ou reuniões, mas desordenada, espalhada e aos solavancos. Mesmo assim, é inevitável. Levada pela transformação na aquisição, uso e retenção do poder, a humanidade terá de encontrar, e encontrará, novos modos de se governar.

Seu argumento central é que o fim da eficácia das velhas estruturas de poder (desde as grandes corporações empresarias até os governos) é causado pela inabilidade dos seus centros para lidar com a profusão de atores que se tornaram capazes de influenciar suas decisões. Podemos acrescentar a esta narrativa que centros de poder se tornam incapazes de lidar com o que Marina Silva nomeou como as bordas e os núcleos vivos da sociedade (SILVA, 2013), a partir de onde uma ampla gama de novos modos de ação emerge, organizada em torno de diferentes temas e causas cujas formas de ser e viver-com-o-outro se consolidam cada vez mais como um traço comum.

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Na sociedade em rede, o exercício da cidadania também encontra novos espaços de fluxo. Uma nova cultura altamente interativa e horizontal se desenvolve e possibilita a rápida formação das chamadas “células democráticas” (BOX 1824, 2015), espaços em que são construídas pontes entre as bordas e os centros, com abordagens inovadoras que reinventam nossos modos de participação na sociedade. Os exemplos desta mudança de padrão são infindáveis, e revelam formas de ativismo que expressam outras perspectivas de desenvolvimento. Novos modos de influenciar a esfera pública são inventados a cada dia, hoje menos inclinadas a utopias ideológicas, mas dirigidas pelo desejo de gerar soluções e apontar caminhos práticos que possam incidir nesta transição do paradigma civilizatório. No entanto ainda temos como antever o grau de coesão e convergência destas bordas versus as tendências de fragmentação que as limitam: cada vez mais – Castells e outros autores também demonstra em seus estudos – os movimentos parecem mais atomizados, reforçados por uma cultura individualista. Em que medida este individualismo desconstrói ou possibilita uma reinvenção da política é uma das discussões presentes entre estes pesquisadores (P2P, 2015). A crescente complexidade do cenário parece ser dinâmica demais para ser controlada pelas mesmas estruturas centralizadas de governança – e a emergência de “Novos Poderes” (HEIMANS, 2014) se mostra irreversível. Mas até que ponto podemos olhar para nosso atual contexto reconhecendo que estejamos de fato caminhando para “o fim do poder” tal qual o conhecemos até agora? Mesmo que apostemos em uma grande mudança estrutural à frente – assim como Naim e Castells enfatizam - essa mudança não será necessariamente para o bem. Onde estaria a diferença? O que realmente pode fazer pesar esta balança para o lado “da vida”?

* * * * *

Diante de muitas possibilidades e incertezas, em quaisquer que sejam os tipos de sistema político e modelos de governança vindouros, retornamos ao nosso argumento inicial: “Sem cidadania não há Democracia”, como afirmou Havel (sem data, p.6). Ao longo das gerações, aqueles que se debruçaram sobre este desafio deixam uma mensagem clara: a cidadania ativa é a única maneira de reverter esta entropia de um sistema político. Resta-nos descobrir como, em cada contexto histórico, se fortalece esta cidadania. Atualmente, se células democráticas, as movimentações das bordas ou os novo poderes permanecerem marginais ou mantiverem uma cultura de fragmentações, estes cidadãos ativos perderão a oportunidade de agenciar espaços de fluxo para influenciar realmente nas decisões estruturantes, que balizam nossos rumos. Como então seria possível consolidar uma visão mais ampla de cidadania para conjugar as forças emergentes, que são esparsas, em capacidade real de ação política? Para isso seria necessária uma mudança profunda e ampla no próprio entendimento que nós, cidadãos, construímos a respeito da nossa própria vida política. Mas esta transformação – e certamente no Brasil onde a política é vista com um manto de preconceitos - parece ainda distante da realidade. Apesar de todas as novas possibilidades de ação, ainda somos condicionados por um tipo de pensamento que mina nossa capacidade de agir de forma mais

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ampla e efetiva: quando palavras como “poder”, “políticos” e “política” são reproduzidas com conotação pejorativa, forma-se uma imagem negativa da política em nossas mentes e – voilà – a base do muro está erguida. Existe uma nobreza no significado real da política, que resgata um senso de serviço ao invés de um servir-se, e que deveria ser resgatado. Como fazê-lo? Motivada por resgatar esta nobreza da ação política, Hannah Arendt deixou-nos um legado que pode nos apoiar nesta busca. Arendt buscou justamente revisitar as noções fundantes que organizam o pensar político, demonstrando que conceitos como “Poder” precisariam ser entendido não como o senso comum nos induz a compreender – “a capacidade de fazer outras pessoas fazerem o que queremos”. Esse senso comum, nessa perspectiva, é somente um tipo restrito de poder - o “poder sobre”, baseado em manipulação e controle; não é a política verdadeira, mas sim a “politicagem”. O ativismo de Arendt foi de revelar como a essência do poder não tem nada a ver com violência, força ou propriedade. O poder em seu sentido mais pleno é “inerente à própria existência das comunidades políticas” e “surge sempre que as pessoas se juntam e agem em concerto, mas tira sua legitimidade da reunião inicial, e não de quaisquer ações que possam se seguir a isso” (ARENDT 1972, p. 151). Nesse sentido, o verdadeiro poder é a capacidade básica que as pessoas têm de agir juntas pelo bem comum; é “poder com”2. Nessa perspectiva, no coração da política está a ação da conversação; os encontros entre seres humanos diferentes com seus respectivos interesses, visões de mundo, históricos sociais etc. Arendt demonstra que este poder “que emana” se constrói na medida em que, destes diálogos se articulam novos atos para expressar suas intenções, são assumidas responsabilidades que são sustentadas no tempo. É desta capacidade de sustentar promessas no tempo que se gera um laço de reciprocidade de onde este poder emana. Na medida em que há múltiplos laços de promessas simultaneamente ocorrendo, o futuro se torna moldável pela ação humana, e portanto imprevisível. (2005, apud HAYEK 2014, p. 215 a 217) Arendt (2005, apud HAYEK 2014, 69) ainda diagnosticou como corrupção dessa nobreza da política se intensificou no mundo moderno ocidental, através da maneira em que o nosso modo de pensar foi estruturado pelas ciências: abriu-se “um abismo” entre pensamento e ação que erodiu a solidariedade humana e as formas espontâneas de vivermos juntos. A natureza da política requer que desenvolvamos a habilidade de cooperar com o outro, e um outro que não escolhemos e que é diferente de nós, e com quem muitas vezes não sabemos como nos relacionar. É aqui que nos deparamos com a dureza do muro que nos separa desta nobreza da política: somos limitados em nossa capacidade lidar com pessoas que representam outras ideologias, outros movimentos, outras culturas e outras narrativas de vida. É como se o próprio cimento do muro fosse nossa própria incapacidade de lidar com o diferente. Tornamo-nos facilmente reativos ao ambiente político, pois ali é inevitável encontrarmos pessoas e atitudes com os quais não sabemos lidar; e estas dificuldades encontram raízes em padrões culturais ainda mais antigos. No Brasil poderíamos ressaltar a herança do chamado Homem Cordial3 que tem

                                                                                                               2 Vale observar que este entendimento sobre poder encontra ressonância inclusive no artigo primeiro da constituição Brasileira, onde é declarado que todo o poder emana do povo. 3 Em sua obra clássica da historiografia brasileira, Sérgio de Holanda (1995) demonstra as origens de um dos traços mais autoritários da cultura política do Brasil: a cordialidade. O medo da solidão, explica ele, é a base para um fingimento em que

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pavor de lidar com seus próprios sentimentos. E, quanto maiores as desigualdades sociais, as culturas de preconceito e as estruturas de manipulação do pensamento dos cidadãos (na imprensa, nos partidos, etc.); e quanto menor a qualidade dos processos educativos que formam estes cidadãos, mais intransponível se torna este muro. Diante do muro, a pessoa que se sente chamada a transformar o mundo pode facilmente chegar à conclusão de que é melhor voltar às coisas pequenas, à sua própria vida, concentrar-se em seu próprio trabalho. Todos temos muito a fazer no espaço seguro em que encontramos aqueles que são mais “como nós”. E essa é na verdade uma escolha válida e necessária, pois o pequeno sem dúvida é belo4, e nunca haverá grandes mudanças se não as praticarmos em pequena escala: não traremos felicidade ao mundo sem que a felicidade floresça em nossas próprias vidas. Mas essa escolha que prima somente por um destes polos tem uma implicação profunda: é precisamente esta atitude que as forças entrópicas mais esperam de nós. E no fundo e sabemos que é por meio de nossa aquiescência que as perversidades se sustentam. “Tem que haver um outro jeito!” é o que uma pessoa pode escolher pensar. Nossa questão inicial - o que pode fazer uma pessoa que realmente se preocupa com o futuro de seu lugar, cidade, país e mundo, quando ela percebe que não há outro caminho senão se envolver de algum modo com a dimensão política da vida? - reflete justamente o impulso para a ação que nos mobiliza quando não podemos mais evitar o reconhecimento de nossa responsabilidade. Como então havemos de assumir nosso poder real enquanto cidadãos, sem sucumbir à desesperança ao nos depararmos com este muro? Que tipo de prática pode nos emancipar desse paradigma que transforma políticos em máquinas e estimula o cidadão a se tornar uma pessoa alheia à vida politica? Como pode ser preenchido o intervalo entre essa compreensão mais profunda e as realidades limitadoras da prática? Esta dissertação é sobre a busca de uma sabedoria prática – ou phronesis 5 – que possa contribuir para que estas questões sejam tratadas com outro olhar, atual e capaz de sustentar o desenvolvimento de um ser político capaz de romper estes muros.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       nenhum sentimento que possa de algum modo confrontar o outro é mostrado. Esse padrão engendra uma espécie de superficialidade na qual mesmo as atitudes mais tirânicas podem ser invocadas como gestos nobres. 4  Small is beautiful, livro que marcou o nascimento do pensamento ecológico nas décadas de 70 e 80. 5 Phronesis, nos termos de Aristóteles, é uma virtude intelectual que “é racional, e capaz de ação com relação às coisas que são boas ou más para o homem”. Conforme Flyvbjerg (2003), ela tem a ver com valores, indo além do conhecimento científico analítico (episteme) e do conhecimento técnico ou “know how” (techne), e “envolve julgamentos e decisões feitas à maneira de um ator social virtuoso”.  

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É possível imaginar milhares de pequeninas e inconspícuas decisões diárias cujo denominador comum é precisamente o espírito

e o ethos de uma política que tem consciência da ameaça global à raça humana e que não apoia a resignação geral do consumidor mas, ao contrário,

busca despertar um interesse mais profundo quanto ao estado do mundo, e reunir a disposição de confrontar as ameaças que pairam sobre ele.

Acima de tudo, no entanto, é possível imaginar que por intermédio de milhares

de ações públicas adequadamente escolhidas, cuidadosamente combinadas e feitas no tempo certo, o clima local positivo em um país – isto é, um clima de solidariedade, criatividade, cooperação, tolerância e de aprofundamento da

responsabilidade cívica – seja fortalecido de modo lento e inconspícuo, mas constante.

O que está em questão aqui não é um conjunto de dogmas, postulados e teses

ideológicas, mas um estilo político, uma atmosfera política, o espírito interior da política.

Vaclav Havel

Wroclaw University - 1992

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2. FLUIR PELAS BRECHAS

O rio não quer chegar, mas ficar largo e profundo.

Guimarães Rosa

No ano de 1998, nas profundezas da Amazônia, um grupo de sucessores de Chico Mendes, após décadas de resistência contra degradações ambientais e assassinatos a lideranças sociais e ambientais na defesa dos povos da floresta, conquistaram uma vitória: venceram as eleições para governar o estado do Acre. Iniciava-se a primeira gestão do “Governo da Floresta”, organizado em torno da ideia de Florestania, uma junção de “floresta” e “cidadania” que afirmava a integração da vida nas cidades e nas florestas, reconhecendo a relevância das culturas dos povos indígenas. A Florestania reconhecia ainda as formas de vida não-humanas também como participantes ativos de um outro modelo de desenvolvimento. Este grupo foi reeleito em 2002, quando eu estava no início de minha vida profissional e tive a oportunidade de ser convidado por meus professores para apoiá-los como membro da equipe de planejamento estratégico. Aquela era para mim uma chance de ouro: motivado por participar do sonho da Florestania, e por minha admiração por uma das representantes daquele grupo político, a Senadora (e depois Ministra) Marina Silva, tornei-me parte da equipe do gabinete do governador durante um ano. Ao longo das várias reuniões que eu participava, impressionava-me como uma voz influenciava o pensamento daquelas pessoas: era a de Antônio Alves, o criador do conceito de Florestania e considerado um mentor intelectual desse grupo político. Me deixava intrigado o fato de que Antônio havia deixado a posição de secretário de cultura para se tornar um crítico das contradições daquele mesmo governo, e passara a escrever artigos e proferir palestras junto às organizações da sociedade civil. Suas mensagens defendiam a mesma abordagem horizontal, ecológica e aberta do poder que me chamavam atenção no estilo político de Marina Silva. Sempre ilustradas com histórias de sabedoria do povo e de outras formas de vida da floresta; e defendia que aquele governo “melhorado muito o navio, porém na direção do mesmo iceberg”, ou seja: a destruição das florestas com base no desenvolvimento a qualquer custo se intensificava, mas de forma ocultada. Conforme eu fui conhecendo a prática real daquele governo e meditava sobre as palavras de Antônio, pude observar como vários daquelas gestores haviam se tornado “parte da máquina”: mesmo que em conversas internas expressassem concordância com a crítica de Antônio, silenciavam-se diante dos comandos de suas respectivas autoridades. Revelava-se para mim pela primeira vez uma característica marcante na maioria dos espaços de ação política: a enorme dificuldade de integrar o discurso com a prática. E como mais tarde viria a compreender, também testemunhava, pela primeira vez a partir de dentro, a complexa realidade de um sistema político sendo tomado pela entropia. Os sistemas políticos tendem a fechar-se em si mesmos. Como manter a capacidade das movimentações das bordas conseguirem influenciar de fato o sistema político, superando o muro e evitando esta tendência de fechamento e de entropia?

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Em sua juventude, Havel vivia num regime comunista autoritário, mas que orgulhava-se por um diferencial em relação aos demais regimes comunistas: oferecia uma certa liberdade à elite artística da sociedade. Conforme Havel destacou-se, ainda jovem, como um talentoso poeta e dramaturgo, encontrou nos espaços de liberdade artística uma brecha para expressar-se politicamente em favor da liberdade humana. Sem temor de buscar o diálogo aberto com lideranças do sistema político, desenvolveu uma capacidade de persuasão tamanha, que passou a ser impossível ignorar suas mensagens. Até que, com o recrudescimento do regime comunista, Havel assumiu-se publicamente como um dissidente, e passou a organizar um movimento de crítica ao regime comunista, o que o levou à prisão. Mas este fato tornou sua voz ainda mais reconhecida, e no contexto de crise do regime comunista Havel passou a ser visto como o principal símbolo de resistência e de abertura democrática. Após anos de idas-e-vindas e intensificação da crise do regime comunista, as pressões populares que de lá o retiraram e levaram a assunção da presidência de seu país. Durante os seus três mandatos, seguida de uma trajetória internacional como “estrela da política” internacional no advento da Democracia e dos Direitos Humanos, a defesa de Havel em prol do fortalecimento da cidadania e das organizações da sociedade civil foi incansável. Manteve uma sensibilidade e lealdade ao que estava acontecendo nas bordas, na defesa de algumas bandeiras de fronteira em sua época: a emergência dos Direitos Humanos, a causa ecológica, o fortalecimento da sociedade civil organizada; e fazia-o sem se submeter às polaridades “esquerda” versus “direita” – pelo contrário: defendia que a ação humana necessita emancipar-se dos grilhões das ideologias. Sua crítica à cultura política da modernidade, que frequentemente ilustrava com a metáfora de uma máquina, era constante: seria preciso desenvolver uma cultura capaz de resgatar a autenticidade humana na vida política. (HAVEL, 1992 a) O exemplo de Havel ilustra o significado de buscar transformar a política a partir das brechas: quando encontramos brechas no muro, mesmo diante de um regime altamente hierárquico ou burocrático, a “máquina” da política revela-se formada por uma teia muito complexa de muitos centros que têm suas próprias bordas, formadas por outros centros que também são bordas de outros centros, e assim por diante. A elite cultural da qual Havel pertencia, por exemplo, pelas relações com aquela estrutura de poder, teve um papel importante para protege-lo e incidir para que tanto na sociedade, como nas estruturas de poder, o processo de abertura democrática ocorresse sem o uso da violência. Para além das aparências e formalidades das instituições, os espaços políticos não correspondem estritamente a formas estáticas: um grupo que tem pouco poder pode se tornar um ator chave para uma escolha relevante; uma instância política que agora é poderosa pode em breve nem mais existir; um líder que hoje atrai esperança pode ser amanhã um símbolo de retrocesso. É da natureza da política ser instável e incerta, como um pântano. Nas dinâmicas de poder, as bordas e os centros formam-se em relação no meio dessa teia de incerteza, num processo no qual um centro não pode agir efetivamente sem suas bordas – pois é a interação com as bordas que constitui cada centro. (KAPLAN, 1997) Nesta compreensão complexa e dinâmica sobre os processos sociais que organizam as relações políticas, reconhecemos possibilidades que vão além daquelas que o jogo político das cartas marcadas determina. Trata-se de um olhar que contrasta diretamente com a mentalidade hegemônica que prevalece atualmente na prática política, baseada na ideia de

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que “em política não existe espaço vazio”. Talvez esta premissa esteja sendo colocada em cheque novos espaços de fluxo criados no contexto de uma sociedade em rede

* * * * * Quando fui ativista em movimentos de juventude, organizava e facilitava vários fóruns, redes e cursos que intencionalmente misturavam ONGs e partidos políticos para criar conjuntamente políticas públicas. Chamava-me a atenção a capacidade que os grupos partidários tinham de manipular pessoas e situações a favor de seus interesses. Os “líderes” dos grupos jovens partidários intervinham sutilmente nestes encontros, escolhendo quem seria o último a falar, pegando ideias de outra pessoa como se fossem suas, ocultando informações relevantes, seduzindo potenciais lideranças com trocas de favores. Quando tive a oportunidade de conhecer mais de perto algumas destas organizações partidárias, pude observar que aqueles líderes jovens eram ensinados a controlar seu ambiente por meio de um sistema muito bem orquestrado de “formação de quadros”, dirigidos por hierarquias que operavam por trás das cenas de maneira quase imperceptível. Mas minha motivação era o inverso daquelas práticas: envolvido no surgimento de organizações em rede no Brasil (GIGLIOTTI, 1999), tornei-me um ativista em defesa de uma transformação da cultura política a partir dos pequenos espaços de ação (BOSCH, 2003). Tentava por todos os meios possíveis descobrir como transformar estas práticas manipulativas, e substituí-las por abordagens horizontais, criativas e dinâmicas. Tive a sorte de encontrar, ainda no início desta jornada, um grupo de pessoas mais experientes, engajadas internacionalmente no fomento a redes da sociedade civil. Identificando em mim algum potencial que eu mesmo não enxergava, este grupo “adotou-me” como uma espécie de aprendiz, oferecendo oportunidades raras de participar de encontros e cursos avançados. E alguns apresentaram-me o caminho da facilitação de grupos (ou moderação) como um caminho profissional. Através deles conheci a moderação de grupos, o psicodrama, e uma metodologia criada na Espanha para conduzir grupos de grandes proporções. Estas oportunidades surgiam impulsionadas por uma nova força política emergia no Brasil, com uma forte base social. Os ideais de Democratizar a Democracia6 (SANTOS, 2007) era o farol de uma série de inovações e instâncias de participação cidadã nos processos decisórios, que colocava o Brasil como um destaque mundial em inovações democrática, dentre as quais o Orçamento Participativo que despontava como uma referência mundial em inovação na gestão participativa dos recursos públicos. Havia uma crescente demanda por profissionais capazes de criar um espaço para novas formas de conversação e diálogo com os cidadãos. Assim encontrei o caminho da facilitação de processos participativos. E pouco depois esta profissão viveria um “boom”, e conforme os espaços de diálogo floresciam, abria-se à minha frente um campo fértil de possibilidades, dentro, fora e nas bordas de governos que defendiam políticas altamente inovadoras. Enquanto formava equipes para atender várias frentes de trabalho simultaneamente, pude vivenciar desde um lugar privilegiado de vivenciar

                                                                                                               6 Democratizar a Democracia foi um dos principais lemas a emoldurar o impulso das políticas públicas participativas no Brasil, de um ponto de vista de esquerda. Boaventura Souza Santos (2007) enquadra essa ideia no conceito de “duas democracias”, que propõe que um ponto de vista cultural e centrado no cidadão é resposta necessária a uma visão hegemônica e utilitária da democracia como mero “mecanismo de governo”. O Orçamento Participativo e as Conferências Nacionais foram os marcos práticos dessa visão política.

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as transformações que acontecem quando o sistema político é receptivo às influências que vêm das bordas: diversos desafios eram coletivamente resolvidos com a integração de perspectivas de longo e curto prazo, e em processos de diálogo e cooperação que possibilitavam aos participantes aumentar sua capacidade de influenciar positivamente uns aos outros. Mas a expansão destes processos, em alguns anos atingiu um “teto” e passou a sofrer resistências de grupos conservadores dentro da base política do governo. Cada vez mais os recursos foram investidos em programas que refletiam uma concepção inversa à de democratizar a democracia, e a inércia dos modos cristalizados de fazer política se fez prevalecer: escândalos de corrupção vieram à tona; cargos ministeriais foram cada vez mais usados como moeda de troca; fortaleceu-se uma agenda desenvolvimentista de crescimento econômico a qualquer custo; e políticas inovadoras nas áreas cultural, educacional, energética e social foram progressivamente enfraquecidas ou mesmo desmanteladas. O resultado era evidente: a asfixia cada vez maior dos impulsos vivos que emergiam através daquelas estruturas, e a consequente perda do vigor e adesão de diversos segmentos da sociedade aos diversos espaços de participação, a perda do interesse da sociedade nos temas políticos. As conferências figuravam cada vez mais como simulacros de participação, que serviam mais para agradar a base social de apoio daquele governo do que como consultas de fato. À exceção de algumas áreas de políticas públicas que lograram um maior grau de maturidade, a capacidade real de engajar as diversas vozes da sociedade em diálogos sobre o bem comum e de influir efetivamente sobre decisões políticas mais relevantes foi perdida. Deparei-me frontalmente com este processo de entropia quando empreendi uma inovação que levava esses espaços de participação um passo além: as conferências livres (BOSCH, 2009) eram um arranjo participativo inovador que extrapolava os limites convencionais das conferências, reconhecendo as bordas como espaços legítimos de ação política. Neste novo formato, as pessoas nas suas casas, escolas e até mesmo em presídios podiam trazer tais discussões para sua vida e trazer sua vida para as discussões, sem necessariamente precisar se submeter às instâncias formais de participação. Protagonizando suas próprias “conferências livres”, cidadãos se tornavam co-autores dos processos de diálogo, estabelecendo espaços de horizontalidade nas relações que possibilitavam novas ideias e diferentes modos de fazer política convergirem num mesmo processo participativo. Esta inovação representava ainda uma considerável economia de recursos, na medida em que o custo por pessoa em cada conferência foi enormemente reduzido; e a qualidade das propostas foi consideravelmente elevada (DERIVI, 2011). A inovação já havia sido aplicada com sucesso em três conferências nacionais, a meu ver o suficiente para que fosse levada um passo adiante: propus que cada “conferência livre” pudesse se tornar um lugar contínuo de participação, e que pudesse ainda dialogar com várias conferências, de modo e se tornar um espaço multitemático de reflexão e aprendizagem integrada. Além de aprofundar os processos participativos a partir de onde o cidadão estava, esta seria uma maneira de lidar com outro desafio na gestão daquele governo: as políticas públicas que abordavam temas mais complexos, de maneira transversal e interdisciplinares, estavam falhando devido à competição interna e à burocracia entrincheirada na estrutura governamental. As conferências livres portanto ofereciam uma oportunidade de criar espaços de diálogo entre os departamentos, estabelecendo contrapontos a estas fragmentações, pois na medida em que novos espaços (ou espaços de fluxos) em que gestores, lideranças políticas e

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cidadãos engajados nos temas poderiam conversar de maneira horizontal, poderiam sustentar novas ideias e articulações transversais, para influenciar positivamente as estruturas verticais. Todavia, subitamente fui impedido de levar adiante a proposta, sendo silenciosamente “desconvidado” dos fóruns internos ao governo nos quais as estratégias para as conferências eram desenhadas. E conforme este cenário de entropia foi se tornando mais explícito e a vitalidade dos diálogos decaía, naturalmente meu trabalho como facilitador tornava-se cada vez menos interessante. Meu entusiasmo com aquele projeto político esvaneceu-se quando o presidente começou a indicar como sua sucessora um nome que representava a tendência a meu ver mais retrógrada em todo o governo, que para mim simbolizava a total incapacidade de diálogo e o descompromisso com os temas ambientais e culturais, com as questões indígenas e outras tendências de inovação em uma sociedade em rede. Foi assim que voltei a me dedicar a movimentos sociais, aproximando-me de um grupo de ativistas de cultura de paz, sem quaisquer vínculos político-partidários. Pouco tempo depois, num almoço informal do grupo, deparei-me com uma situação inesperada: os integrantes do grupo compartilhavam um sentimento de indignação com o caminho de sucessão presidencial do país. E todos à mesa descobriram que tinham a mesma opinião: a de que Marina Silva – à época sofrendo consecutivas derrotas enquanto Ministra do Meio Ambiente - é quem representaria a possibilidade de manter as conquistas daquele governo e corrigir a rota destrutiva do desenvolvimentismo, rumo a um futuro mais sustentável, e congruente com nossa bandeira de cultura de paz. Foi quando um integrante fez uma proposta um tanto quanto ousada: criarmos um movimento independente de cidadãos para defender o nome de Marina Silva à presidência do país. A intenção, maior do que qualquer pretensão eleitoral de fato, seria de fortalecer a presença de Marina Silva como um símbolo de que a política poderia ser feita de outro jeito, com outros valores e outra perspectiva de desenvolvimento. Sem qualquer envolvimento com a própria ministra, semanas depois, alguns membros do grupo distribuíam anonimamente milhares de bottons com os seguintes dizeres: “Marina Silva Presidente”. E menos de dois anos depois o movimento ganhava visibilidade nas redes sociais (MACHADO, 2007 e 2009). Mas a ideia da candidatura em si veio a se tornar uma realidade somente quando, de forma inusitada, o Partido Verde ofereceu a Marina Silva a possibilidade de uma vaga de candidata à Presidência. O aceite de Marina Silva ao convite fez com que uma confluência de atores sociais diversos, muitos dos quais novatos em uma campanha eleitoral, desembocasse em sua candidatura na campanha presidencial de 2010. Era a primeira campanha na história do país a emergir desde fora das estruturas tradicionais da política e com militância organizada a partir das redes sociais. A partir deste momento o movimento, por razões legais e para manter suas características originais, retirou o nome “Presidente” do nome, recebeu o apelido de MovMarina e prosseguiu ativo no jogo eleitoral como um espaço independente de atuação cidadã na defesa de um novo jeito de fazer política. Minha função naquela campanha foi basicamente monitorar e manter uma abertura vital do centro do MovMarina, de forma que os atores nas bordas pudessem se reconhecer continuamente como seus co-criadores e partícipes do conjunto da campanha. A nossa estratégia resumia-se em um novo jeito de fazer política, e nosso papel coletivo era pautado por uma premissa: trabalhar para manter a frequência da campanha – e de Marina – elevada. Os talentos e boas ideias que emergiam das bordas eram surpreendentes. E haviam também aqueles que se aproximavam para nos proteger das armadilhas do jogo tradicional. Antônio

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Alves permanecia nas bordas do nosso movimento, trazendo poderosos insights do campo que nos ajudava a compreender dinâmicas ocultas do jogo político. Nosso trabalho era relativamente fácil pois estilo de liderança de nossa candidata ressoava com nosso estilo horizontal e aberto que defendíamos em nosso novo jeito de fazer política. Estabeleceu-se assim com relativa naturalidade um ambiente de cooperação, no qual informações e ideias criativas podiam se mover das bordas para o centro e do centro novamente para as bordas, de maneira extremamente dinâmica. Este fluxo criativo foi determinante em algumas das estratégias oficiais da campanha, tais como motes de comunicação, estratégias de mobilização, inovações na utilização das redes sociais e até mesmo algumas das ideias defendidas pela candidata emergiam ou se fortaleciam nesta dinâmica. O resultado eleitoral surpreendentemente positivo7 fez com que Marina Silva se tornasse um dos principais players políticos no país e atraiu muitas forças novas para a defesa da sustentabilidade e de um novo jeito de fazer política. Mas, do meu ponto de vista, desde o novo jeito de fazer política do movimento, sofremos uma derrota interna: com estilos muito diferentes, os atores chave que se juntaram na campanha colidiam entre si. Para além do espaço de fluxo aberto com Marina e com alguns dos outros grupos, não havia suficiente confiança entre nós como um conjunto e toda uma série de conflitos internos solapadores reduziram a competência de nossa campanha como um todo. Passadas as eleições, o MovMarina foi encerrado, pois entendíamos que nosso objetivo estava cumprido. Depois disso, com a desfiliação do grupo de Marina Silva do Partido Verde, um novo movimento apartidário (O Movimento Nova Política) foi criado para tentar expandir e consolidar o campo que havia emergido da campanha presidencial (BORGES, 2011). Embora a visão de criar uma política nova tenha permanecido como ideia central (IDS, 2011) muitos de nós que vínhamos do estágio anterior do MovMarina não sabíamos como nos relacionar com o estilo de gestão daqueles que tomaram as rédeas deste novo movimento. Para a maior parte dos integrantes que lideravam o movimento, a prática não exemplificava o que nós entendíamos como nova política nem mostrava qualquer interesse em ancorar a nova fase nas lições de nossa experiência acumulada (D’ANGELO, 2012). Assim, a maioria das pessoas que lideraram o Movimento Marina Silva Presidente afastou-se, dirigindo-se a outros espaços onde podíamos encontrar abertura e autenticidade, além de modos de agir mais significativos. Ao longo dos anos, o movimento da nova política enfrentou uma crise de identidade (como ser eficaz sem nenhum espaço real de ação dentro do sistema político?). Mas o grupo formado ao redor de Marina na campanha, continuando ativo em encontros reflexivos, parecia amadurecer sua visão de mundo. Nossas diferenças iam devagar se integrando, e tornava-se mais evidente que a nova política não devia ignorar as velhas estruturas, e que o novo e o velho eram complementares. Assim, fui reaproximando-me do processo e no começo de 2013 fui partícipe na decisão de fundar uma nova instituição política baseada na ideia de abertura radical ao protagonismo cidadão, através de modos horizontais e compartilhados de poder. A Rede Sustentabilidade (Rede) estava sendo concebida para se tornar um “partido-não-partido” que abrisse uma brecha no sistema para candidaturas independentes e uma agenda de participação qualificada para o desenvolvimento sustentável.

                                                                                                               7 Marina Silva obteve 20 milhões de votos, muito além das previsões das pesquisas.

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Em 2013, quando injustificadamente os cartórios eleitorais recusaram as assinaturas (principalmente nos municípios com maior influência do partido no governo) a Rede permaneceu ativa informalmente, aliando-se efetivamente com grupos organizados no modelo mais tradicional. Marina Silva tornou-se candidata à vice-presidência ao lado do candidato à presidência Eduardo Campos, um líder extremamente talentoso que abraçava a visão e principais propostas da Rede. Sua morte trágica8 forçou o retorno de Marina Silva para o centro das eleições presidenciais. O súbito aumento de intenções de votos que ela atraiu provocou uma resposta drástica: a campanha que concorria à reeleição passou a difamá-la intensamente, bem como a sua família e principais aliados, com uma avalanche de mentiras contra os quais não havia qualquer chance de defesa. Uma onda de confusão e raiva foi gerada, o que corroborou para afastar ainda mais a população da política.9 Este esforço pela aniquilação moral e simbólica teve um relativo sucesso, e a imagem de Marina Silva passou a ser percebida por uma parcela dos cidadãos politicamente ativos como uma pessoa completamente diferente da identidade que toda sua trajetória havia construído até então. Em uma situação tão dramática, nossa campanha foi (de novo) incapaz de se integrar internamente e resistir externamente à máquina destrutiva da campanha das forças vigentes.

* * * * *

Ao observar esta narrativa, que sabedoria prática (phronesis) podemos encontrar? O que estas consecutivas derrotas do ponto de vista do jogo tradicional podem revelar sobre o poder de fluir pelas brechas para transformar a política? Para compreendermos a sabedoria prática que possivelmente se desenvolve nesta experiência, seria necessário recuperar uma perspectiva de longo prazo, tendo em mente que algumas das maiores conquistas políticas da humanidade, a exemplo do fim da escravidão, o sufrágio universal e os Direitos Humanos emergiram das margens e encontraram (e ainda encontram!) resistência feroz em alguns estágios de sua evolução. Frustrações e derrotas fazem parte dos processos de amadurecimento das lutas sociais. Pequenos grupos iniciam sua atuação muitas vezes isolados nas áreas periféricas onde é mais fácil manter uma intenção verdadeira em conjunto, e com o tempo, ganham maior adesão e fortalecem suas capacidades de incidir sobre os centros de poder político, até o ponto em que elas adentram o fluxo central (mainstream) da consciência política. Neste momento de aproximação com o centro dos poderes, tornam-se alvos de diversas estratégias de cooptação e fragmentação, correndo o risco de perder sua capacidade de coesão interna. É aí que os líderes políticos excepcionais fazem uma grande diferença: ao passo que simbolizam perante à opinião pública o anúncio de um novo caminho, tecem narrativas e articulam processos de convergência que integram diferentes grupos sociais e motivam um grande leque de atores a trazerem o que têm de melhor para os propósitos comuns.

                                                                                                               8 Eduardo Campos morreu em um trágico acidente aéreo cerca de um mês após o início da campanha eleitoral. 9 Como possível resultado, foi eleito o congresso mais conservador que já tivemos na nossa história, e uma série de retrocessos de longo prazo, inclusive alguns que ferem artigos sobre direitos humanos da nossa Constituição, está agora em foco; e ondas de protestos de rua e a mais baixa popularidade de um presidente na história da democracia brasileira são indicações de uma resposta natural contra essa prática.  

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O advento da sociedade em rede parece trazer um novo componente nesta dinâmica: o contexto de um mundo cada vez mais conectado e com desafios interdependentes provoca como respostas uma miríade de movimentações em prol das mais diversas causas, que emergem das bordas tentando num esforço de lançar raízes mais profundas na sociedade. Ainda que a fragmentação tenha se tornado maior, podemos visualizar esta miríade de movimentos tão variados como um imenso mosaico desenhado por incontáveis mãos, cuja forma podemos imaginar - mas não antever. Cada movimento questiona algum aspecto do atual modelo de desenvolvimento, e adiciona algum novo tipo de prática com potencial de difusão em larga escala para transformá-lo. Neste “multiverso” de práticas e narrativas transformadoras, talvez possamos reconhecer alguns traços do mosaico, como o usufruto das tecnologias de comunicação de maneira inclusiva para difusão destas práticas e a busca por consolidar vínculos econômicos e sociais que se diferenciam dos modelos insustentáveis de produção e consumo (empreendedorismo, associativismo, cooperativas, redes, etc). Também podemos identificar algumas tendências e valores que se consolidam como caminhos para evitar a entropia dos sistemas políticos, a exemplo das noções de transparência e abertura (Governo Aberto, Dados Abertos, Democracia Aberta, etc). A Rede Sustentabilidade se coloca, a meu ver, como uma componente desse grande mosaico, buscando atuar como catalizadora deste novo conjunto de tendências. Reconhece que esta convergência requer uma compreensão mais complexa de nossa realidade, que abarca diferentes níveis de sustentabilidade (REDE SUSTENTABILIDADE, 2015), e que parte desta perspectiva passa por incorporar estratégias e arranjos institucionais que revelam a intenção de não tomar o poder nos termos hegemônicos tradicionais, mas reconhecendo justamente que uma nova política passa pela mudança na relação entre estes centros e bordas, de modo que possa haver maior diálogo e horizontalidade. Ocupar o espaço político com esta outra abordagem requer, por sua vez, um corpo consistente de ideias capazes de “jogar o jogo e, simultaneamente, sustentar fortes fluxos de cooperação entre os centros e as bordas (GARCIA, 2013) com a perspectiva de que sejam geradas sinergias transformadoras em toda a arena política. Seria a Rede capaz de conseguir realizar este papel catalizador? Ou haverão outros grupos políticos com melhores condições servir de catalisar este potencial transformador? Ou ainda: seria a estratégia por meio de um partido um equívoco? Não temos uma resposta certa, além da que qualquer reflexão honesta nos levaria: de que não podem emergir respostas deste ou daquele grupo, de líderes notáveis ou de modelos e soluções universais. Portanto o que eu ressaltaria dessa experiência toda, seguindo o diagnóstico anterior de Arendt e Havel, é que nosso “sucesso” será relativo à nossa capacidade de gerarmos fluxos de ação efetiva em um mundo que ainda é organizado por uma mentalidade fragmentadora do mundo em nossa própria cultura política. Mas como gerar esta transformação cultural quando, na prática, observamos que as atitudes que proclamamos como nova política, tal como abertura e horizontalidade não estão suficientemente incorporados em nossa prática cotidiana? Como evitamos o risco de sermos tragado pelo buraco negro do auto-engano de considerarmos que nós “já somos a mudança que queremos ver no mundo”?

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Neste contexto, a minha percepção é de que a sabedoria prática que nos permite tratar adequadamente questões desta ordem não está sendo tecida somente em um lugar, em determinadas correntes de pensamento e prática, mas se desenvolve maneira transversal ao conjunto de iniciativas que convergem para a transformação da vida política. Se reconhecermos ainda que o saber prático é um tipo de conhecimento raramente encontrado nos livros e suas linguagens que falam “sobre” nosso mundo, podemos argumentar que esta sabedoria está sendo tecida de modo invisível por muitas mãos, respondendo à nossa necessidade de compreender e narrar nossas realidades com ideias que falam diretamente a nós mesmos na prática.

* * * * * Anos mais tarde eu vim a aprender com Antônio Alves uma história que me permitiu enxergar de maneira vívida a relevância destas brechas, e que me fez compreender a sua própria estratégia de atuação política. Ele me contou que, nas culturas indígenas, o Cacique (o Chefe) detém responsabilidades sociais no centro da tribo, enquanto que o Pajé (o curador ou xamã) tem um papel político: ele sente as pessoas da tribo, percebe a dinâmica sutil do mundo espiritual e se mantém constantemente atento à vida da profundeza da floresta, de forma a poder traduzir para o Cacique o que está acontecendo além do alcance da visão deste. Estas percepções do Pajé são fundamentais para que o cacique consiga fazer as escolhas acertadas. Considero essa sabedoria ancestral um guia para compreender como a dinâmica entre os centros e as bordas são um elemento central da nossa reflexão em busca de um fazer político autêntico. Estas pequenas sociedades tradicionais aprenderam, ao longo dos milênios, que o centro tem consciência de sua tendência de deixar passar coisas importantes, e se mantém acordado para os sopros de vida que vem das suas bordas (ALVES, 2014). Na concepção moderna os centros de poder, formados como locais de controle dos fluxos, tornam-se resistentes a influência que vêm das regiões fronteiriças, cheias de ideias que lhes parecem estranhas, caóticas e menos confiáveis. Como seria possível sustentar semelhante equilíbrio dinâmico entre centros e bordas no mundo contemporâneo, diante de uma estrutura tão sofisticada em sua capacidade de fechar-se aos impulsos vivos da sociedade?

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Quanto mais sensível uma pessoa for a todos os perigos que a ameaçam, mais capaz ela será de se defender deles. Em relação a esse assunto, sempre pensei que sentir-se vazio e perder contato com o significado da vida é, no fundo, apenas um desafio para buscar novas coisas para preencher a vida, um novo significado para a própria existência e o próprio trabalho. Não é o momento da dúvida mais profunda que dá nascimento a novas certezas? Talvez a desesperança seja o solo mesmo que nutre a esperança humana; talvez não se possa jamais achar sentido na vida sem experimentar antes o seu absurdo.

Vaclav Havel Salzburg Festival – 1990

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3. A ARTE DO IMPOSSÍVEL

“A política não é um campo aberto onde o sol destaca flores e frutos. É um emaranhado sobre um pântano. Com qualquer tropeço, a queda pode ser fatal.

(…) Eu nunca tive medo de me envolver nesse Cipoal10, de afundar meus pés no brejo, de rasgar a pele nas pedras que,

na obscuridade, indicam o caminho para o futuro." Frei Betto

Quando a entropia de um sistema político impede os cidadãos ativos de influenciar seu centro, estes respondem com ações que buscam revertê-la. A partir de onde estiverem, pelas bordas, encontram modos de nutrir a vitalidade por meio das brechas existentes. As estruturas deste sistema são também permeadas por processos dinâmicos, e quando fluxos são abertos de ação entre os centros, criam-se novos campos de ação política. Mas o que acontece, na prática, quando as bordas atingem espaços reais de decisão onde as forças da máquina e suas engrenagens são inevitáveis? E o que resulta do encontro entre os diferentes neste espaço, quando as inevitáveis tensões provenientes dos diferentes valores, propósitos e interesses se tornam uma força impeditiva do diálogo? Consideremos inicialmente alguns aspectos que constituem a própria natureza da ação política, enquanto o espaço em que os diferentes se encontram para agir. A este respeito, Hannah Arendt (1952, p. 52) afirma:

Viver juntos no mundo significa essencialmente que um mundo de coisas se coloca entre aqueles que o têm em comum, como uma mesa está colocada entre os que se sentam ao redor dela; o mundo, como tudo que fica no meio, põe os homens em relação e os separa ao mesmo tempo. O domínio público, assim como o mundo em comum, nos reúne e no entanto impede que tropecemos uns nos outros, por assim dizer. O que torna a sociedade tão difícil de suportar não é a quantidade de pessoas envolvidas, ou pelo menos não é isso em primeiro lugar, mas sim o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de as reunir, relacionar e separar.

Se pode haver uma sabedoria prática compartilhada que sustente uma ação política transformadora, essa sabedoria precisa nos levar a uma compreensão integral das interações humanas tal como ocorrem no mundo real da ação política. Aprendi a partir da minha experiência com Marina Silva a pensar nesse espaço de encontro, esse mundo comum nas palavras de Hannah Arendt, onde a ação política se torna mais densa e a fricção entre as diferenças se intensifica, como um cipoal. A simbologia do cipoal nos remete a um lugar sombrio, obscuro, onde nada é linear; quando o atravessamos, tropeçamos e nos enroscamos em lugares que nossa consciência não alcança. Quando alguém se perde

                                                                                                               10 Na cultura oral amazônica, há muitas histórias de pessoas que passaram horas perdidas dentro de um cipoal. Muitas vezes, o único meio de sair é ter alguém do lado de fora chamando, para que a pessoa de dentro possa ter um senso de direção.  

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num cipoal, parece impossível ver o que está acontecendo nos espaços externos - o que dificulta encontrar a saída no meio do emaranhado. Algumas pessoas desenvolvem uma notável capacidade de se movimentar por este cipoal da política; elas dominam a delicada arte de tecer convergências e gerar sinergia, cooperação e compromisso entre largas gamas de atores. Elas possibilitam àqueles que trazem vitalidade à esfera política de fluir pelas brechas, de passar por dentro e por fora das estruturas, de transitar nos diferentes campos que coexistem nos ambientes políticos. Por sua função de abrir e sustentar espaços relacionais para que as diferenças se encontrem e dialoguem, são portanto sujeitos que mantêm a vitalidade de todo o sistema político. São pessoas que desenvolveram uma habilidade de enxergar “através” do cipoal, que não se confundem facilmente no emaranhado e por isso conseguem nutrir aquele sistema para que respire e recupere seu sentido de serviço genuíno. Entretanto quando uns poucos desenvolvem esta capacidade é impossível propiciar a dinâmica entre centros e bordas rumo às mudanças maiores, sistêmicas e estruturais, que a sociedade em rede nos convida a empreender. Portanto a questão com a qual nos deparamos é: como aprender a caminhar através do cipoal, conjuntamente? Sem essa sabedoria prática de maneira compartilhada e por um contingente mais amplo de pessoas, nós cidadãos continuaremos a projetar esperanças em umas poucas criaturas iluminadas, mas permanecemos distantes de nossa responsabilidade mútua. A imagem do cipoal também nos ajuda a identificar uma das maiores dificuldades que enfrentamos na vida política: no mundo real das relações nos espaços de poder, nesse desafiador encontro entre os diferentes, cada um de nós corre o constante risco de se tornar parte do emaranhado. É comum nos “enroscamos” nas tramas, seja por sermos “capturados” pelas movimentações ocultas, que nos induzem a agir de maneira contrária ao que faríamos se pudéssemos reconhecê-las, seja por características pessoais que nos induzem a agir/reagir de uma maneira destoante com nossos próprios “valores” diante de determinadas situações. Somos continuamente testados em nossa capacidade de discernir as forças que nos afetam no jogo político. No cipoal nos deparamos com uma polaridade que é estrutural da vida política: a dinâmica entre os aspectos visíveis e invisíveis que compõe cada contexto de ação. Estas dinâmicas visíveis e invisíveis se entrelaçam com outra polaridade: os acontecimentos internos e externos que regem o nosso fazer político. Quanto maior a responsabilidade que uma pessoa tem, mais fortes são as demandas externas. E como a visibilidade e a publicidade são características estruturantes na ação política, a pessoa politicamente responsável vê-se obrigada a lidar com as aparências do mundo tal como ele é, ou seja: as aparências são parte necessária do jogo (“Não basta ser, é preciso também parecer”, ouvi algumas vezes Marina Silva nos instruir em uma lógica complementar ao ditado de que “Não basta parecer, é preciso ser”). Ao mesmo tempo, a ação no plano visível somente é eficaz na medida em que o sujeito consegue perceber as movimentações que ocorrem de maneira invisível. Tanto o trabalho de interpretar o invisível como o de moldar as dinâmicas visíveis requerem um esforço qualificado de perceber as dinâmicas que ocorrem fora de nós. Mas esta capacidade de leitura requer espaço de reflexão interna para que possamos fazer escolhas conscientes a respeito destas dinâmicas, de modo que consigamos manter o sentido de nossa

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ação sempre atualizado. É comum que, em certas situações (por exemplo, em campanhas eleitorais), a sobrecarga impeça que este ser político encontre condições mínimas para refletir de modo a integrar sua vida interna (o que sente, o que intui, o que sonha) ao seu fazer externo. E uma das consequências mais dramáticas desta pressão de fora é que aos poucos as convicções vão se perdendo - daí a preocupação de Havel com os políticos que se tornam uma máquina. Chegamos aqui a uma polaridade que é característica no amago da política que Max Webber (1994, p. 92) nomeou como a ética da convicção e a ética da responsabilidade: um ator político sempre corre o risco de adentrar uma situação em que é impossível reconciliar sua responsabilidade com sua convicção. No entanto, precisa a todo custo evitar chegar ao ponto em que a conexão entre esses dois polos se parta, uma vez que: “a ética da convicção e a ética da responsabilidade não são antíteses absolutas, e sim mutuamente complementares, e somente quando tomadas juntas constituem o ser humano autêntico que é capaz de ter uma ‘vocação para a política’.” Como viabilizar que esta autenticidade que Webber, Havel e Arendt enfatizam como uma qualidade essencial a ser cultivada pelo ser político na prática?

* * * * * Essa tensão entre convicção e responsabilidade que coloca a autenticidade do ser político em cheque é um risco para qualquer pessoa e organização que assuma uma responsabilidade política. Naturalmente, a Rede Sustentabilidade também enfrenta esta tensão em seu processo de nascimento: foi concebida com base em uma perspectiva radicalmente democrática, como uma tentativa de libertar-se do monopólio da política por parte dos partidos dominantes, por meio da afirmação de novos modos autorais (SILVA, 2014) e horizontais de ação política. Desde seu mito de origem, a Rede almeja reverter alguns dos antigos modos autoritários que geram aparelhamento do partido por forças ocultas, a exemplo da restrição dos valores e tipos de doações para campanhas, dos limites à reeleição e à defesa de candidaturas de cidadãos independentes. Anuncia um programa sofisticado que pretende vencer a tradicional fragmentação de políticas, reconhecendo a interconexão de todos os temas relevantes sob uma visão complexa de desenvolvimento sustentável. Por outro lado, a Rede não tem mais a prerrogativa – como teve o Movimento Marina Silva Presidente entre 2007 e 2010 - de ser um experimento político visionário ou uma aventura idealista; pois já não vive somente de “convicção”. Ela honra um compromisso com sua própria história e potencial, carregando o legado de um significativo número de votos e uma larga gama de apoiadores, além dos muitos atores políticos que desejam se aliar assim que seu status de partido político tenha se formalizado. Esta condição atrai consigo um tsunami de demandas externas, muito além de sua capacidade de responder, porque trata-se de um grupo pequeno, em comparação com o tamanho da responsabilidade já adquirida. E a maior parte dessas demandas são colocadas sobre os ombros de sua principal líder, Marina Silva. Quanto maior a responsabilidade, mais necessária se torna a virtude da prudência: na experiência política não temos opção de escolher quem serão todos os nossos pares, portanto, com frequência esbarramos em atitudes que achamos realmente “duras de engolir”. O que

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nos obriga a manter algum nível de cooperação com estas mesmas pessoas, pois sabemos que um passo em falso, uma ruptura de confiança, uma exposição inadequada sobre o outro (mesmo que tenhamos alguma razão), pode gerar desgastes contraproducentes ao processo. Às vezes não podemos ou não conseguimos ficar em silêncio diante de uma atitude que consideramos equivocada ou incoerente, mas também não queremos nos colocar em risco de que alguém possa se sentir ameaçado por nossas palavras e gestos, muito menos queremos provocar uma exposição do outro de forma injusta. Em síntese, não podemos confiar inteiramente em tudo que é dito e em todos que se aproximam, mas algum nível de confiança compartilhada é necessário, senão a jornada se inviabiliza. O encontro dos diferentes nos coloca, portanto, em constante necessidade de cuidar do que é dito e feito. Mas, por outro lado, quando agimos com prudência excessiva, nossas próprias convicções correm o risco de se atrofiar. Nosso olhar perde o brilho, o tom de nossa voz perde parte de seu timbre, nossos gestos perdem o entusiasmo e a espontaneidade. E, por consequência, aqueles que nos observam a partir das bordas, quando não mais conseguem reconhecer nosso propósito expresso em nossas atitudes, tendem a se afastar. E quando as bordas que prezam pela autenticidade do processo se afastam, o centro se torna mais vulnerável para ser ocupado por práticas que polarizam pela excessiva ética da responsabilidade – o pragmatismo, o utilitarismo, a noção de que “os fins justificam os meios”, etc. À medida que a pressão da responsabilidade aumenta, este mesmo centro tende a ter ainda maior dificuldade para manter a cooperação com as bordas, porque seus espaços passam a ser disputados por indivíduos que estão prontos a fazer o trabalho duro que muitos outros não podem ou não querem fazer - ou simplesmente ainda não desenvolveram a maturidade e a confiabilidade necessárias. E é assim que um espaço vai, mesmo contra a vontade de quem o lidera, se tornando hermético, árido e rígido, e portanto um ambiente insalubre aos que não se dispõem a jogar o jogo do poder pelo poder. É a partir deste afastamento das bordas que se forma a entropia. Complementarmente a esta observação, é preciso reconhecer que, para manter a integridade diante das responsabilidades que assume, um centro de poder necessita de certo grau de controle sobre o que pode passar por suas fronteiras. É justamente os limites que um centro cria que permite ou não uma composição adequada com outros centros. Quando o centro começa a operar de forma reativa ao que acontece em suas fronteiras, quando esse controle se torna excessivo e manipulador, os laços de confiança e cooperação começam a se esvanecer. É assim que se dá inicio às chamadas “Jaulas de Cristal” (MATUS, 2000, p. 9): por causa dos filtros de informação que os “assessores tecnopolíticos” criam para subsidiar as decisões de quem ocupa o lugar de liderança, estas lideranças já não conseguem ver o que acontece ao redor. Uma das aprendizagens mais duras que eu tive neste sentido, foi durante os primeiros passos da Rede, antes mesmo da decisão por iniciar seu processo de formalização. Me percebi sendo empurrado para fora do processo, juntamente com outros que mantinham a defesa da horizontalidade, abertura e inovação como elementos da prática neste processo. Nossos nomes eram cortados de listas inexplicavelmente; nossas propostas não eram consideradas e palavras inesperadamente agressivas nos eram dirigidas pelas pessoas de maior confiança de Marina Silva. Eu reagia propondo espaços informais de cooperação horizontal e conversação aberta para que pudéssemos construir confiança enquanto grupo. Entretanto, quanto mais eu me esforçava para reverter a tensão, mais fortes eram as resistências.

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Depois de várias tentativas, fiquei paralisado na minha incapacidade de lidar com aquela disputa interna, chegando ao ponto de perder o entusiasmo e a convicção em participar. Parei de “forçar a barra” e comecei e refletir se valia mesmo a pena permanecer naquele espaço. Sentia-me por um lado contrariado com os rumos do processo, mas por outro insatisfeito comigo mesmo, pois sentia que minha própria prática não espelhava as convicções que me motivavam. Retirei-me em reflexão por alguns meses, e neste processo me dei conta como estava internamente dividido: parte de mim tinha perdido as esperanças na Rede, e outra parte simplesmente não aceitava que eu me distanciasse do centro novamente. Então reconheci como o dilema webberiano traduzia meu conflito interno. Eu havia perdido a convicção naquele processo, mas ainda sentia-me responsável pelo mesmo. Portanto não conseguia simplesmente abandoná-lo. Para conseguir lidar com aquela situação, pensei que seria necessário um trabalho intensivo de autoconhecimento. Neste estudo, logo eu consegui identificar que em parte eram as minhas próprias atitudes inconscientes que mais prejudicavam aquele esforço, pois ainda que eu buscasse gerar cooperação e confiança, algo no meu modo de agir amplificava as disputas fragmentadoras. No entanto, eu não conseguia enxergar claramente o que tornava a minha prática o inverso do que eu buscava manifestar no mundo. Tomando consciência do tamanho da minha dificuldade de lidar com este desafio, pedi ajuda para outros profissionais de desenvolvimento e para meus companheiros mais próximos na política. No conjunto destas conversas, mergulhei nas minhas próprias sombras: do que é que estou inconsciente, nesta situação?11 Usando situações concretas como espelho, estudei a fundo minhas próprias reações e padrões de comportamento. Um acompanhamento terapêutico contribuiu para que eu conseguisse digerir todo o conjunto de informações. À medida que essa situação ia se desemaranhando, o cipoal se revelou como algo que estava também “dentro” de mim: cada conflito externo, cada tensão e mal-entendido, eram como ramos dos cipó que se alimentavam de sentimentos com os quais eu não sabia lidar – frustração, raiva, angústia. Eu estava amarrado à situação de afastamento pelas minhas próprias sombras. Conforme fui destrinchando o meu próprio emaranhado, identifiquei um nó central deste conflito sentido na prática: não conseguia dizer realmente o que eu pensava. Por exemplo, a minha percepção de que a ideia de “Nova Política” estava sendo utilizada como slogan, enquanto as práticas que haviam originado o conceito estava sendo abandonada, transformava-se numa angústia contida, que se traduzia em palavras críticas e irônicas, em atitudes imaturas de uma “criança contrariada” que não conseguia elaborar seus argumentos de forma madura. Ainda que minhas convicções (pela horizontalidade, diálogo, abertura, etc) gritassem internamente, eu não conseguia defende-las de maneira verdadeira. Minha voz contida formava um nó na garganta e se traduzia em um tom de voz ácido, em gestos de afastamento repentino e atitudes arrogantes. Embora eu quisesse transformar a competição corrosiva de nosso grupo em cooperação, tornava-se cada vez mais claro as maneiras com as quais minhas próprias atitudes estavam solapando este mesmo propósito. Foi quando escrevi em meu diário: minha excessiva prudência tornou-se covardia (diário do autor, 2014)

                                                                                                               11 Essa é uma das principais questões de confrontação autoconsciente sugerida por James Hollis (2007, p. 209) para a identificação das sombras, enquanto dinâmicas inconscientes que impedem o florescimento humano.

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Se havia uma separação entre teoria e prática que me incomodava naquele grupo, agora eu enxergava minha responsabilidade como parte deste problema. E esta compreensão me permitiu entender: era preciso coragem para olhar honestamente para mim mesmo, assumir minhas convicções e expressar autenticamente minha voz para o mundo, e superar o medo de me expor. Desenvolver esta capacidade exigia destrinchar aspectos internos que me tornavam reativo a determinadas situações e aprender a acessar e integrar minhas próprias vulnerabilidades e sentimentos como elementos vivos da prática política. Mas isto não seria resultado apenas da introspecção reflexiva, era necessário ir além da minha zona de conforto. Dediquei-me então a um trabalho intencional de conversar mais francamente com as pessoas, inclusive algumas com quem eu encontrava maior dificuldades para interagir. Compartilhava com elas esta busca por uma transformação no meu modo de agir e pedia que me ajudassem a compreender como eu poderia trazer o melhor de mim para o processo. Este exercício me trouxe informações valiosíssimas, contidas em frases como: “Você parece se sentir incompreendido”; “Te vejo como alguém muito determinado, mas às vezes pouco flexível”; “Eu não sei como lidar com suas descontinuidades”; “Você parecia reivindicar para si um protagonismo, mas não deixa isso claro”. Estas conversas ajudaram-me a explorar mais atentamente minhas próprias sombras, na medida em que revelavam como traduziam-se em gestos que geravam afastamento. Cada passo deste exercício reafirmava o valor da aprendizagem de colocar mais franqueza e significado em cada palavra dita, e a fazê-lo juntamente com o exercício da empatia. Foi neste estágio que encontrei um significado renovado para uma das afirmações mais recorrentemente proferidas por Marina Silva: “A verdade não está em nós, mas entre nós”. Esta afirmação se tornou uma espécie de mantra orientador para encontrar as virtudes necessárias para dar conta do desafio. Encontrei também inspiração para reconhecer esta verdade entre nós em diversos textos de Vaclav Havel, em especial em seu lema de vida de viver em verdade. Ele dizia: “a verdade não é simplesmente o que você pensa que é; ela é também a circunstância em que é dita, e a quem, por que e como é dita.” (2000, p. 67). Na medida em que a coragem para enfrentar mais honestamente as consequências de minhas atitudes era encontrada, tornava-se mais fácil expressar minha voz com maior nitidez e integridade. Assim, uma surpreendente e quase instantânea reciprocidade foi encontrada: os muros naquelas relações interpessoais foram caindo e, em alguns casos, revelando-se somente como fantasias nas quais eu projetava nos outros algumas das minhas contradições. Ao fazer o exercício de movimentar-me para além da minha pequena jaula de cristal, não somente encontrei pessoas “desarmadas”, mas parceiras em potencial. E algo mais interessante emergiu desta transformação: pude enxergar nitidamente como elas vivenciavam situações muito similares à minha! Muitos tinham as mesmas críticas e preocupações, e não sabiam bem como lidar com as mesma tensões diante das quais eu estava imobilizado. “Não somos um grupo, se fôssemos, teríamos um espaço para falar francamente”; "Sinto que fazemos hoje um esforço para evitar entrar em conflito; fazemos de conta que não existem conflitos entre nós”; "Ainda não fomos capazes de apresentar essa nova política para a sociedade porque não a refletimos e não tentamos praticá-la internamente"; “Estamos perdendo nossa radicalidade”; “Não participei de nenhuma conversação significativa durante todo o ano passado no ambiente da Rede”, “Existe um sistema de proteção colocado em torno de nós que parece impossível de romper” (registros do autor, 2013 - 2014).

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Revelou-se que uma parte vital de nosso pensamento reflexivo estava confinado a conversas de bastidores, muitas vezes fechado “dentro” de nós, e que este seria um caminho de suprimir nossa autenticidade. Conforme esta percepção se tornava mais nítida, parecia também que o campo da minha prática política (pois não somente na Rede eu reconhecia este mesmo padrão) revelava a necessidade de que outros pudessem ter acesso a experiências semelhantes: espaços de desenvolvimento integral do ser humano de modo conjugado com uma reflexão sobre a sua própria prática política. Foi assim que percebi que havia um trabalho de transformação atitudinal a ser fortalecido de modo integrado às novas instituições e movimentações emergentes. E conforme eu percebia que neste âmbito das atitudes estava um “fio da meada” para resgatar o ativismo pela mudança de cultura política, sentia o entusiasmo da convicção de volta. Foi assim que comecei a me mover de maneira diferente pelo cipoal, e logo algumas mudanças começaram a se desenrolar.

* * * * * Talvez por reconhecer a importância desta verdade entre nós que Arendt tenha afirmado que a “solidão organizada” da nossa condição moderna seja “consideravelmente mais perigosa do que a impotência desorganizada de todos aqueles que são governados pela vontade tirânica” (ARENDT, 1951, apud LAFAY, 2014, p. 143). Em resposta à esta solidão, Arendt sugere que talvez possamos descobrir um tipo de felicidade, ou eudaimonia, que é vista como o objetivo ou ideal supremo do tipo de política. Esta eudaimonia não é um fim separado dos meios para alcançá-lo, como se costuma pensar no mundo moderno. “Quando o homem participa da vida pública, ele abre para si mesmo uma dimensão da experiência humana que de outra forma fica fechada para ele, e que de certa forma constitui uma parte da ‘felicidade’ completa.” (ARENDT, 1972, apud LAFAY, 2014, p. 143).

* * * * * Aprendi com um mateiro que os cipós possuem uma função vital para a floresta: a de abraçar as árvores para que não caiam quando chegam as tempestades. Sua presença ainda contribui para garantir a diversidade de árvores nos espaços em que ocupa, mantendo a integridade e diversidade do sistema – especialmente nas áreas mais secas e vulneráveis ao vento e o sol. Por esta razão, sabendo que as sombras dos cipós combinado com o gesto de abraçar estruturas e nutrir diversidades, agricultores utilizam certos cipós como plantas pioneiras no reflorestamento de áreas devastadas. Da mesma forma, o cipoal da política contém em sua escuridão e aparente confusão uma oportunidade valiosa: ele nos desafia a nos tornarmos mais íntegros, cientes de como somos interdependentes. O Cipoal revela a unidade entre nós que simplesmente não pode ser ignorada; onde qualquer suposição sobre o que seja verdadeiro será colocado à prova pela verdade entre nós. Talvez compreender o poder deste cipoal seja necessário para recuperar a terra arrasada e sustentar a vitalidade dos espaços da ação política.

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Esta experiência me faz refletir também sobre como, ao ampliarmos nossas perspectivas sobre a realidade, podemos reconhecer que há uma continuidade no que acontece “fora” e “dentro” de nós: assim como os centros e as bordas são constituídos de maneira relacional e iterada, nós mesmos podemos nos enxergar como centros com bordas, conforme nossa capacidade de compreender as dinâmicas vitais e as de entropia. E, assim como no cipoal, nossas sombras revelam-se como os lugares onde os raios mais sutis de nossa luz podem ser encontrados: lá onde nossos medos nos retiverem, podemos encontrar as chaves para abrir novos espaços de consciência necessários para transformar as circunstâncias e a nós mesmos. Pelo simples fato de expandirmos a compreensão sobre como criamos o mundo tal como é, a cada momento, em cada gesto e cada relacionamento, podemos ser surpreendidos por um mundo já em mudança. Como é possível nutrir esta outra qualidade de compreensão sobre nosso ser político na prática?

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Podemos saber imensamente mais sobre o universo do que nossos ancestrais sabiam e, ainda assim, cada vez mais parece

que eles sabiam algo mais essencial a seu respeito, algo que hoje nos escapa.

O mesmo se dá em relação à natureza e a nós mesmos.

Quanto mais detalhadamente são descritos todos os nossos órgãos e suas funções, sua estrutura interna e as reações bioquímicas que se

processam em seu interior, mais parece que deixamos de captar o espírito, propósito e significado do sistema que eles criam juntos

e que nós experimentamos como nosso ‘eu’ único.

Assim nos encontramos hoje numa situação paradoxal: desfrutamos de todas as conquistas da civilização moderna que tornaram nossa existência física nesta terra mais fácil

sob muitos aspectos importantes.

No entanto, não sabemos exatamente o que fazer de nós mesmos, para onde devemos nos voltar.

O mundo de nossas experiências parece caótico, desconectado, confuso. Parece não haver forças de integração, nem sentido unificado, nem

compreensão interna verdadeira dos fenômenos em nossa experiência do mundo.

Os especialistas podem explicar

qualquer coisa do mundo objetivo para nós, mas compreendemos cada vez menos nossa própria vida.

Vaclav Havel

The Philadelphia Liberty Medal - 1994

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4. VER O INVISÍVEL

“A coisa mais difícil de ver é a que está em frente aos olhos.”

Johann W. von Goethe "A política continuará sendo o resultado de defeitos do coração e loucura da razão”, segundo Frei Betto (2006, p. 280), “enquanto os seres humanos permanecerem incapazes de se reinventar". Aqui encontramos uma afirmação que corrobora com o axioma declarado por Mahatma Gandhi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo”. Da mesma maneira, Vaclav Havel (1990) nos convidou a compreender que “a política pode não ser simplesmente a arte do possível, especialmente se isso significa a arte da especulação, do cálculo, da intriga, dos acordos secretos e manobras pragmáticas, mas pode ser também a arte do impossível, isto é, a arte de melhorar nós mesmos e o mundo”. A transformação ocorre simultaneamente dentro e fora; em nosso ser e em nosso fazer. É uma linha contínua, tal como simbolizado pela fita de moebius, que elegemos como símbolo da Rede:

Mas ainda que estas afirmações inspiradoras sejam razoavelmente conhecidas, parece-me que a capacidade de realizarmos esta arte do impossível ainda se coloca fora do nosso repertório comum, como uma qualidade que somente alguns líderes excepcionais em quem projetamos nossas esperanças seriam capazes. As contradições que temos minam nossa capacidade de agir de modo diferente, e ainda não nos consideramos aptos para liberar este potencial de ação política indicado por Havel. É como se, à beira de um despenhadeiro, estivéssemos buscando o horizonte, enquanto à nossa frente uma ponte permanecesse invisível até que desenvolvamos nossa capacidade de vê-la. Como podemos aprender a reconhecer as forças “ocultas” que necessitamos para realizar esta travessia? Talvez um primeiro passo para reconhecê-las seja observar as contradições de maneira minuciosa e com um olhar mais compreensivo e apreciativo sobre nosso desenvolvimento. Podemos, por exemplo, reconhecer que a distância entre o discurso e a prática não se trata de mera hipocrisia, como se costuma julgar desde um ponto de vista mais abstrato sobre a experiência política. Quando vamos além dos julgamentos estéreis, podemos reconhecer as nuances do individualismo e de um modo de ser fragmentado no qual estamos culturalmente imersos, e que nos limitam nesta capacidade de compreender as dinâmicas invisíveis que regem os processos sociais e políticos. Tal como nos campos magnéticos, os acontecimentos invisíveis da vida social não podem ser enxergados a partir de uma abstração da realidade: não há modelos que as expliquem sem

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incorrer em uma simplificação que nos afasta da compreensão integral destas dinâmicas formativas. O invisível revela-se por meio de uma observação cuidadosa da experiência; e enxergar estas nuances requer ampliar nossa participação no mundo tal como é, conforme Havel (1992 a) nos indica:

É minha convicção profunda que temos que libertar de nosso íntimo forças tais como uma vivência natural, única e irrepetível do mundo, um senso de justiça elementar, a capacidade de ver as coisas como os outros veem… As coisas devem ter a chance de mais uma vez se apresentarem como são, de serem percebida em sua singularidade. Precisamos ver o pluralismo do mundo, e não tolhê-lo buscando denominadores comuns ou reduzindo tudo a uma só equação comum. Precisamos fazer um esforço maior para compreender do que para explicar. O caminho a seguir não é a mera construção de soluções sistêmicas universais a serem aplicadas à realidade a partir de fora; ele consiste também em buscar chegar ao coração da realidade através da experiência pessoal. Tal abordagem promove uma atmosfera de solidariedade tolerante e unidade na diversidade, com base em respeito mútuo, pluralismo e paralelismo genuínos. Em resumo, a singularidade humana, a ação humana e o espírito humano devem ser reabilitados.

Este “buscar chegar ao coração da realidade através da experiência pessoal” pode ser um caminho que revoluciona nossas vidas, como aconteceu comigo quando me deparei com o caminho da prática de desenvolvimento. Naquela época em que eu acreditava ser um “expert em participação”, ao perceber minha incapacidade de empreender algumas inovações, senti que era hora de procurar novas referências de aprendizagem. Aproximei-me então de um professor internacionalmente conhecido em abordagens mais profundas de facilitação e desenvolvimento de pessoas e organizações. Pensei, com meu elevado senso de auto-importância, “posso oferecer a ele a oportunidade de trabalhar comigo em um campo novo, ao passo que eu poderia aprender alguns métodos para melhorar minha intervenção em reuniões complexas”. Mas não foi isso que aconteceu, é claro. Ao contar minhas ousadas inovações em metodologias de processos participativos, ouvi: “Parece ser um trabalho muito interessante, Eduardo. No entanto, o que você faz não é participação, da maneira como eu entendo.” No decorrer da conversa, recebi a sua primeira lição: compreendi que minhas escolhas profissional e atitudes, ainda que revestidas de um discurso transformador, estavam na verdade simplesmente jogando o jogo da máquina e das manipulações. A maneira como eu empreendia minha energia vital estava promovendo a entropia, em lugar de revertê-la. Os meios que eu utilizava não exemplificavam os fins que eu desejava; e meu trabalho havia se tornado uma prática instrumental, e não transformadora. Aquele pensamento intrigou-me completamente. O que seria afinal, “participação”? Para ele, “participação não é somente algo que acontece quando as pessoas votam ou vão às conferências, portanto não é algo que tenha que ser facilitado usando metodologias especializadas. Participação é uma qualidade do nosso relacionamento com o mundo que surge por nosso intermédio e simultaneamente nos molda. Participar do mundo significa corporificar um modo de viver, não como consequência de uma facilitação ou de uma metodologia, mas como um modo de ser no mundo”,.

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Estas palavras me tocaram, e não tive dúvidas de que meu caminho seria o de absorver estes novos ensinamentos. Não tardou para surgir uma grande oportunidade com o curso “Artistas do Invisível” 12, que não tinha o objetivo de “construção de competências”. Tratava-se de um processo longo, com uma abordagem radicalmente distinta de compreensão sobre as dinâmicas estruturais da vida, que oferecia a oportunidade de desenvolver habilidades muito além dos limites da facilitação, consultoria ou ativismo político. Eu sequer imaginava que algumas noções fundamentais minhas seriam de fato transformadas, como o próprio significado do que é ser humano. O grupo era diverso e com a maioria das pessoas com larga experiência em práticas sociais transformadoras. Nossa busca comum seria foi corporificar, em nossas práticas sociais, outro modo de ver o mundo que trouxesse maior eficácia aos nossos esforços de transformação no âmbito social. Passamos semanas mergulhados na natureza, ampliando nosso pensar tão larga e profundamente quanto possível: torcendo nosso antigo senso de realidade com meditações e exercícios de observação; buscando dissolver nosso modo dualista de percepção com a visão do fenômeno da luz em prismas; revisitando nosso modo de perceber o mundo com atividades de desenho; desnudando as leis do infinito através de exercícios de geometria projetiva; permitindo que nosso inconsciente se expressasse por meio de atividades com argila. As mais variadas práticas ofereciam um elemento em comum: nos relacionar com a natureza a partir de perspectivas diferentes para entender os padrões formativos mais profundos da vida, e remodelar o nosso modo de pensar de forma integrada com a prática social. Repetida e incansavelmente nossas respectivas práticas eram observadas de distintos ângulos. Esmiuçávamos algumas situações sociais em que cada um de nós estava imerso e que nos desafiavam: “Como você faz o que você faz? O que esta situação desafiadora revelou para além de suas aparências?”. Olhávamos para estas questões com base em uma constante reflexão sobre o desenvolvimento da nossa vida, refinando a percepção de nossos pontos cegos, investigando as reais intenções em cada ação, aprendendo a perceber mais sobre o que estava realmente acontecendo em nossas práticas. Estas reflexões eram ancoradas em um espaço contínuo de integração de corpo e mente, no qual voltávamos diariamente à respiração e à contemplação da Natureza, como principal fonte de nutrição. A partir de um senso cada vez mais ampliado do Ser, retornávamos aos exercícios reflexivos e de observação de nossas práticas. Então, voltávamos às nossas respectivas vidas e campos de trabalho, até um novo encontro alguns meses mais tarde, para outra jornada de aprendizado.

… libertar de nosso íntimo forças tais como uma vivência natural,

única e irrepetível do mundo, um senso de justiça elementar, a capacidade de ver as coisas como os outros veem ....

O primeiro efeito prático destes exercícios, já desde o começo, foi desmascarar minha “zona de conforto”. Percebi que, muito embora a participação fosse meu tema de especialidade, sem ser um participante eu nunca poderia, de fato, nem facilitar nem liderar o tipo de

                                                                                                               12 “Artistas do Inivisível” é um Programa oferecido pela Iniciativa Proteus e pelo Instituto Fonte, sob a orientação de Allan Kaplan, no qual participei em São Paulo, de março de 2009 a novembro de 2011.

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transformação que me sentia chamado a realizar no mundo. Revelou-se que era preciso me emancipar daquela identidade de “expert em participação”, para aprender a me tornar um “igual” aos outros. E o lugar para esta prática já estava dado: era o “Movimento Marina Silva Presidente” e o grupo político em formação para a primeira campanha presidencial. Ali eu era apenas “mais um”, como afirmava nosso slogan. Meus conhecimentos de facilitação eram praticamente desconhecidos, e nada do que eu dizia tinha mais o peso de um consultor especializado: apenas de um participante. No começo, largar a antiga armadura e as armas da abstração foi difícil. Porém, a cada abandono de meus modos usuais revelavam como este outro jeito de ver começava a sustentar transformações em meu jeito de ser, um jeito no qual percebia cada situação de uma perspectiva mais ampla. Um observador interno foi progressivamente fortalecido, que me acalmava diante das dificuldades, me orientava a respirar fundo, me instruía a aceitar as incertezas e paradoxos daquele contexto e a manter-me atento às minhas vulnerabilidades. “Agora reconheço: estou perdido, e isso faz parte da minha jornada”, escrevi no meu diário (março de 2014) pouco antes do período em que o “desembaraçamento dos cipós” começou a acontecer: novas possibilidades de ação apareceram, exigindo de mim uma atitude de consentimento em vez de tensionamento. Reconheci que era a partir das bordas daquele grupo que eu poderia encontrar este caminho de volta ao meu próprio centro e, portanto, ao meu verdadeiro poder, por meio de uma relação renovada com o mundo – sem a necessidade de desperdiçar energias com disputas por espaço. Era aí que o efeito real da jornada de aprendizado estava acontecendo: na transformação do meu modo de ver o mundo. Os ensinamentos básicos deste outro olhar emanavam de escritos menos conhecidos de Goethe, resgatados após sua morte com base nos quais foi formada uma das correntes do pensamento fenomenológico contemporâneo. Alguns dos seus estudiosos afirmam que este legado oferece outro modo de consciência, no qual reconhece-se que “há uma diferença entre ver e ver, que os olhos do espírito têm que trabalhar em continua conjunção viva com os olhos do corpo, pois de outra forma a gente se arrisca a ver e no entanto relevar uma coisa.” (BARNES, p. 270). Esse outro modo de consciência, como Henry Bortoft o nomeou, requer que seja desenvolvida a capacidade de superarmos os limites de nosso pensamento analítico para uma mudança na maneira de vermos “a relação entre os elementos, isto é, em seu modo estarem juntos (togetherness)” (BORTOFT, 2004 p. 64). Conforme eu desenvolvia esta habilidade de enxergar as relações entre todos os elementos, ficava mais nítido para mim onde estava meu lugar real e o que cabia ser feito por mim. As tensões e disputas não tinham terminado, as contradições ainda estavam em mim e ao meu redor: nada tinha mudado exceto minha maneira de tomar consciência dos acontecimentos. E, ainda assim, tudo tinha mudado inteiramente.

… As coisas precisam ter mais uma vez a chance de se apresentarem como são …

Ver o invisível significa ver as relações – é a capacidade de identificar tudo como parte de um contexto maior, e ver cada parte em seu relacionamento com todas as outras que formam esse todo. “O modo intuitivo da ciência de Goethe entra no fenômeno para ver que é o mesmo fenômeno em outra dimensão”, segundo Bortoft (2004, p. 73). Essa compreensão da natureza

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e de mim mesmo permitiu que me aproximasse com mais respeito e contemplação dos paradoxos de cada situação; comecei a ver através da densidade de palavras e ações no cipoal, a entender alguns dos padrões que estavam por trás dos conflitos. Fui então abandonando as palavras e gestos sem sentido e passei a cultivar mais a autenticidade. Também pude compreender melhor algumas dinâmicas de meu contexto, a exemplo de como o medo que o centro tinha das bordas era formado em nosso grupo e como eu havia inconscientemente contribuído para ser empurrado para fora por esta dinâmica reativa. Desta mudança de perspectiva, passei a compreender de outra maneira aquela antiga crença segundo a qual “não há espaço vazio na política”, e pude contrapor esta noção desde uma maneira mais efetiva: cada vez que um colega repetia esta frase, eu respondia que “eu nos vejo permeados por vazios”, e o convidava a apreciar as possibilidades de ação despercebidas nos vazios que podemos descobrir ou mesmo criar. Até hoje não encontrei respostas que pudessem contrapor a esta minha posição. Ao cultivar um olhar apreciativo sobre a força destes vazios, fui enxergando a antiga crença como um simples hábito de pensar, forjado como um componente de uma cultura política com base no comando-controle. Foi deste encontro com o vazio e com o invisível que a “verdade entre nós” tornou-se então fortemente sentida como um desses fios de ressignificação da prática política: à medida que eu aprofundava minha reflexão neste pensamento, a abertura e a empatia com os diferentes foi aumentando, e alguns de meus preconceitos e arrogâncias foram esvanecendo. A disparidade entre nosso discurso e prática se tornou para mim um tema instigante, um dos paradoxos que éramos convidados a lidar. “A verdade é que precisamos uns dos outros, e as pessoas que somos neste estágio de nosso desenvolvimento são nossa matéria prima básica para a ação política”, escrevi então no meu diário (registros do autor, agosto, 2014). Compreendi que faz parte de nós sermos simultaneamente abertos e fechados, agirmos verticalmente e horizontalmente, pensarmos de modo pragmático e idealista; e passei a perceber como estas polaridades entram em tensão, muitas vezes, e que justamente nestas tensões está o trabalho da transformação. Somos seres paradoxais, faz parte de nossa busca descobrir nossa força em fraqueza, nossas luzes por entre sombras, e nosso verdadeiro poder até mesmo por meio de nossas atitudes equivocadas. Assim, compreendi que parte da resposta desta busca por um saber prático requereria trazer à consciência nossos limites e contradições, sendo menos reativos e prestando mais atenção às inter-relações. Compreendi ainda que a polaridade entre centros e bordas está também dentro de nós: para que um indivíduo seja verdadeiramente ‘centrado’ (no sentido de estar inteiro e presente), ele precisa também estar aberto às suas bordas, ao passo que atividade livre e generosa nas periferias do nosso ser permite que um centro aberto e receptivo surja. Assim, a força de um polo é o que possibilita a força do outro: o gesto de ocupar espaços se complementa a capacidade de torna-los mais abertos para os vazios necessários para que os mesmos possam ser atravessados pelos fluxos de vida; nossas diferenças são manifestadas a partir da condição de sermos iguais; as transformações de longo prazo requerem mudanças pequenas em cada momento, e assim por diante.

... Tal abordagem promove uma atmosfera de solidariedade tolerante e unidade na diversidade...

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Se antes eu compunha o coro dos que reclamavam daquilo que parecia ser uma falta de liderança interna de Marina Silva, comecei a entender algumas de suas atitudes não mais como ambíguas, e sim como um esforço para lidar com os paradoxos de nossa situação: um modo de cultivar o vazio no nosso centro e simultaneamente suportar o peso do velho jogo político. Aquele centro de poder formado a sua volta, que antes eu julgava como uma jaula de cristal, agora aos meus olhos estava sustentando fielmente um impulso vivo de abertura para suas bordas, mas que por sua responsabilidade não poderia nos forçar a encontrar nosso verdadeiro poder antes do nosso tempo de maturação. Desta maneira a vida me mostrava que não era hora de me envolver diretamente naquele centro: outro tipo de trabalho era necessário da minha parte: para evitarmos a futura entropia deste campo emergente, para revertermos as tendências de fechamento, seria necessário aumentar a capacidade de liderança para uma atuação política transformadora a partir das bordas. A formação e ampliação desse campo requeria um tempo de maturação: longe das exigências do jogo eleitoral e institucional que um centro é obrigado a resolver cotidianamente, meu lugar seria nutrir o tipo de prática que almejávamos a partir de onde eu encontrava a possibilidade real para oferecer “o melhor de mim”. Esta verdade entre nós revelava-se com nitidez cada vez maior, e pude constatá-la em diversas ocasiões. Uma destas ocorreu num encontro nacional da Juventude em Rede, quando Marina Silva se juntou inesperadamente ao grupo e perguntou se podia apenas ouvi-los – “quero saber de vocês quais podem ser nossos próximos passos”. O gesto de simplesmente escutá-los foi uma dentre muitas demonstrações de um posicionamento por uma transformação de longo prazo, indicando um campo aberto e vivo construído através de laços humanos, no qual a verdade se expressa no encontro entre as diferentes gerações. Esta história trata de como encontrei de novo o sentido de fazer parte daquele processo e comecei a integrar essa outra abordagem da vida ao campo político. Na medida em que este pensamento vivo floresceu em mim, comecei a identificar que a capacidade que Marina Silva e Antônio Alves carregam de perceber a dinâmica sutil da vida a partir de uma profunda relação com a natureza, traz consigo a mesma qualidade de consciência que pude cultivar junto aos Artistas do Invisível. Percebi como o respeito a culturas antigas e o modo simbólico de pensamento carregavam o mesmo impulso de refinar os olhos do espírito que eu vinha aprendendo com a fenomenologia de Goethe. “O que precisamos, mais do que mudar o modelo de desenvolvimento, é mudar nossa maneira de ver as coisas. Trata-se de uma eterna busca de sentido”, aponta Marina Silva (PRADO, 2008). Pude reencontrar esta eterna busca de sentido, a busca que não pode ser imposta nem obtida – apenas se pode permitir que surja em nós, entre nós, com o tempo.

... Em resumo, a singularidade humana, a ação humana e o espírito humano devem ser reabilitados.

O campo de nossos relacionamentos é um domínio infinito de possibilidades a serem transformadas. Ao aprendemos a reconhecer estas dinâmicas invisíveis, aprendemos a observá-las nos acontecimentos mais elementares de nossas práticas cotidianas. Na medida em que desenvolvemos a faculdade de pensar de maneira mais abrangente, nos tornamos mais aptos a encontrar bem diante de nossos olhos os espaços vazios, que paradoxalmente

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estão cheios de possibilidades, esperando para serem descobertos como nova base para nosso desenvolvimento. Embora essa mudança ocorra num âmbito coletivo, ela principia em nossa perspectiva íntima da vida. A questão é: como cultivar uma capacidade recíproca de modos mais expandidos de consciência? E como nutrir esta capacidade enquanto escalamos as encostas de nossos espinhosos desafios políticos? Eis o tipo de participação que não é o resultado de facilitação, que não se submente a uma noção instrumental da nossa ação, mas sim a expressão de nosso pertencimento ao mundo. Aqui, no cultivo deste modo expandido de consciência, me parece estar parte desta ‘sabedoria prática’ que estamos à procura para nutrir o desenvolvimento de um ser político renovado. O que aconteceria se estes modos ampliados de consciência fossem mais difundidos no campo político?

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Tenho a impressão de que mais cedo ou mais tarde a política enfrentará a tarefa de encontrar uma face nova, pós-moderna.

Um político terá de se tornar uma pessoa, novamente, alguém que confia não somente em uma análise ou representação científica do mundo, mas

também no mundo em si. Ele deverá acreditar não somente em estatísticas sociológicas, mas nas pessoas reais. Ele deverá confiar não apenas em

uma interpretação objetiva da realidade, mas também em sua alma, não apenas em uma ideologia adotada, mas também em seus próprios

pensamentos; não apenas nos relatórios resumidos que recebe a cada manhã, mas também em sua própria sensação.

Alma, espiritualidade individual, percepção pessoal em primeira mão das

coisas, coragem para ser ele mesmo e seguir o caminho que sua consciência aponta, humildade em face da ordem misteriosa do Ser,

confiança em sua orientação natural e, acima de tudo, confiança em sua própria subjetividade como principal ligação com a subjetividade do

mundo – essas são, na minha opinião, as qualidades que os políticos do futuro devem cultivar.

Vaclav Havel

Davos – World Economic Forum - 1992

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5. SUSTENTAR O VAZIO

“É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar” Gilberto Gil

Nosso observador interno – aquele a quem Goethe chama de olhos do espírito – floresce quando nosso pensamento se torna mais aberto, vivo e permeável às mais diversas expressões da vida. Nesta ciência fenomenológica aprendemos a ver como as polaridades geram um movimento dinâmico através de todas as formas de existência. Contemplamos em profundidade os processos de crescimento e fenecimento; a dança entre luz e a sombra; o oculto e o visível; o cheio e o vazio – como elementos complementares do todo em cada ser e em cada processo vivo. Quanto mais aprendemos a observar os fenômenos sem filtros, mais desenvolvemos nossos “órgãos de percepção”, nos termos de Goethe (SEAMON, 1998, p. 262). A sabedoria prática aqui significa a capacidade de manter uma qualidade de presença frente a cada acontecimento, que nos permita compreender em vez de explicar; ver a vida a partir de dentro (ou, para dizer de outra forma, vivenciar a vida interior do fenômeno observado). Eis uma base com a qual podemos nutrir a autenticidade necessária para uma prática política transformadora. Arendt foi pioneira ao levar o conhecimento fenomenológico ao pensamento político e a revelar o potencial transformador deste modo de enxergar o mundo. Seus ensaios, especialmente “Eichmann em Jerusalém”, tornaram-se marcos paradigmáticos na ciência e filosofia política justamente por atingirem lugares que a teoria habitual (observa a realidade a partir de uma hipótese e de enquadramentos preestabelecidos) não era capaz de perceber (HAYDEN, 2014, p. 1–19). O ensaio mencionado demonstrava que as análises dos grandes julgamentos contra regimes totalitários eram enganosas por projetar as tragédias daquela época em bodes expiatórios. Arendt indicou, com este outro modo de pensar os fenômenos políticos, como padrões de pensamento que minam nosso real poder de realizar nossa eudaimonia podem e devem ser revertidos. Motivada por sua convicção de que haveria de ser encontrada uma espécie de responsabilidade mais integral dos cidadãos perante aos acontecimentos da política, Arendt provocou uma fissura no modo hegemônico de consciência de seu tempo, para que a humanidade (ao menos no mundo Ocidental) enxergasse além da polarização entre Bem e Mal.

* * * * * Nos capítulos anteriores busquei demonstrar a maneira como encontrei na prática de desenvolvimento uma fonte renovada, que reafirma o entendimento de Vaclav Havel da política como sendo “a arte do impossível”, ou seja, a transformação de si e do mundo de maneira simultânea. Indiquei como esta integração fez reencontrar com o impulso de meu

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ativismo juvenil pela transformação da cultura política, e como compreendi que o mesmo poderia estar conjugado coma reversão da crença de que em “politica não há espaço vazio”. O olhar fenomenológico sobre minha prática me revelou não apenas que este vazio precisava ser encontrado internamente, mas que exercer esta habilidade de cultivar vazios requeria de mim abraçar igualmente a sua polaridade: a de preencher espaços. Isto significava “ocupar” meu lugar no campo político com integridade renovada a serviço deste “esvaziar”. Os passos dados neste sentido geraram uma transformação nas minhas relações, que por sua vez reverberaram diretamente em meu ativismo político como um todo. Com a abertura do campo que mencionei anteriormente, surgiram diversas situações nas quais a confiança e a cooperação foram reestabelecidas, e que levaram esta maneira renovada de ser e fazer na política para além de uma transformação pessoal e das minhas próprias circunstâncias. Houve uma série de aberturas que me reposicionaram em relação ao centro de poder da Rede, e que me permitiram explicitar de forma mais madura os princípios que regiam a prática de um novo jeito de fazer política. No entanto, foram em espaços nas bordas onde encontrei a possibilidade de vivenciar ainda mais integralmente esta combinação entre a “arte do invisível” e a “arte do impossível”. Relatarei duas destas situações para ilustrar como esta combinação. Um dos membros originais do nosso grupo político, Ricardo Young, em 2012 fora eleito vereador em São Paulo. Era sua primeira incursão com um mandato, após uma campanha inovadora e inspirada na experiência do Movimento Marina Silva Presidente. Porém, após um ano de mandato, Young deu-se conta de que era impossível praticar a nova política com as referências de pensamento com que estava acostumado, e passou a procurar formas de ressignificar sua prática. A resposta não tardou a ser encontrada: junto a outra escola de aprendizado fenomenológico com base em Goethe13, Young (2014) vivenciou o que chamou de “o ponto de virada em minha jornada política, quando eu percebi que havia outra teoria a partir da qual eu poderia levar à prática a nova política, com base no pensamento da complexidade em vez da teoria cartesiana" . Após esta vivência, Young decidiu aprofundá-la em seu mandato e com outros pares do ativismo político, dando início a um grupo de estudos para que essa teoria pudesse ser explorada com outros parceiros. Rangel Mohedano, um dos fundadores do MovMarina que trabalhava em seu gabinete e um dos pares com os quais eu havia partilhado minha jornada reflexiva, relatou-lhe como meus estudos eram parecidos com seu novo sonho. Assim, fui convidado a fazer parte desse grupo, onde pude pela primeira vez “falar a mesma língua” aprendida junto aos Artistas do Invisível com outros ativistas políticos. Outros facilitadores e empreendedores sociais que também vinham procurando estar mais envolvidos na prática política juntaram-se ao grupo, e desde então passou a ocorrer uma sequência de reuniões de exploração em profundidade das nossas experiências políticas. Paralelamente, fui convidado a participar de um encontro nacional de jovens lideranças da Rede. Alguns destes jovens me relataram seus desafios como pré-candidatos à próxima campanha, e identificamos a necessidade de algum tipo de contribuição que os ajudasse a responder a questão: como praticar de fato a “nova política” na minha campanha? A resposta que surgiu foi oferecer uma pequena oficina-piloto de desenvolvimento para um

                                                                                                               13 A Schumacher College, com sede na Inglaterra.

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grupo de candidatos jovens, com foco na preparação de suas futuras campanhas (BOSCH, 2014). Essa oficina e o grupo de estudos foram os espaços em que pela primeira vez tive a oportunidade de praticar a abordagem de desenvolvimento social junto a outros pares da política. Ainda que em ambas as iniciativas o espaço e o tempo tenham sido escassos para algum grau de profundidade na prática de desenvolvimento social, foram o suficiente para que pudéssemos viabilizar algumas experiências de auto-observação, com alguns exercícios de exploração sobre polaridades, e de fortalecimento de algumas das qualidades fundamentais necessárias para a prática da nova política. João Francisco, um fundador da rede intelectualmente engajado, havia recentemente lançado um livro que defendia como alicerce da Nova Política o resgate do terceiro pilar de uma democracia republicana: a Fraternidade, sem a qual a Liberdade e a Igualdade estão incompletas14. A Fraternidade na forma de cooperação era o eixo de sua campanha a deputado distrital, que contava com um pequeno, porém entusiasmado, grupo de ativistas – na maior parte, amigos de militância social envolvidos em movimentos apartidários. João tinha um discurso vivo, com uma visão consistente e mobilizadora. Mas ao se deparar com os preparativos da campanha, parecia estar cambaleando, sozinho e angustiado, confuso em relação a como deveria exercer esta cooperação que ele mesmo defendia. Como poderia ele “fazer o que falava” sobre cooperação, na própria campanha? Durante a oficina, um exercício de compartilhar experiências com outros candidatos jovens fez João Francisco perceber a necessidade de rever a aproximação que tinha com a equipe e com a base social de sua campanha. Solicitou-me a continuidade deste trabalho de desenvolvimento, o que me levou a contribuir durante um dia inteiro com seu grupo numa imersão de planejamento estratégico. Fiz a leitura que neste momento seria preciso oferecer um espaço de intimidade e conversação franca, o que era uma situação estranha para alguns: “Não vejo por que é que estamos falando de nós aqui, quando temos uma campanha toda para discutir!”, uma participante reclamou no início da conversa. Eu lhes pedi que confiassem na proposta mesmo que inicialmente causasse algum estranhamento, e não tardou para que as resistências se invertessem completamente: ao escutarmos os desafios de João Francisco, já não havia mais dúvidas que todos os temas da campanha passavam por esta dimensão. Eu o estimulei a revelar questões que estava mantendo para si: seus medos e incertezas a respeito de ser um candidato e a solidão que sentia diante de uma quantidade esmagadora de tarefas. O grupo lhe fez perguntas bem diretas, o que ajudou a levá-lo para um lugar de franqueza e abertura, que rapidamente o fez explicitar várias dificuldades práticas que ainda não haviam sido compartilhadas. Ficava evidente que o assunto “nós” não estava separado do assunto “campanha”, muito pelo contrário. Enquanto ele falava e expressava suas lutas pessoais, pude ver sua feição se transformando, seu corpo ficar mais solto; um nó na sua voz parecia estar se desfazendo. Notei que o grupo estava cada vez mais presente na escuta, até chegarmos ao ponto em que uma “verdade entre nós” revelou-se: João Francisco não conseguiria dar conta das tarefas que tinha em mãos sem o envolvimento mais ativo dos outros. Então, eu convidei o grupo a revisitar o verdadeiro significado de estarem ali juntos: o que estava realmente em questão naquele diálogo? Em poucos momentos uma reflexão sobre a razão de ser daquele grupo veio                                                                                                                14 Fraternidade, na prática, “é cooperação e engendra uma premissa fundamental para outro modelo de desenvolvimento”, explica João Francisco em seu livro Caminhos para Nova Política (Maria, 2012, p. 61), baseado em sua dissertação de mestrado, em que um quadro teórico é proposto no contexto do Movimento “Nova Política”.

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à tona, o que os levou ao entendimento de que, independentemente do resultado eleitoral, uniam-se em torno de valores e responsabilidades que compartilhavam, enquanto cidadãos envolvidos com a transformação de sua cidade. Nesta mudança de perspectiva, João Francisco era um deles; e era o um que fazia uma ponte daquele grupo com a política; e a campanha agora era vista como uma oportunidade de fortalecer as convicções que compartilhavam. Após a campanha, João Francisco observou que “daquele momento em diante, uma compreensão renovada do grupo emergiu, com uma nova narrativa para a campanha” (MARIA, 2015). José Gustavo (Zé Gustavo), então o candidato mais jovem da Rede, também participou da oficina com jovens pré-candidatos. Seu desafio revelou-se praticamente o inverso de João Francisco: sua campanha contava com uma equipe que funcionava de maneira quase autônoma. Eram todos jovens, mas com alguma experiência e um espírito de equipe aguçado. A nova política como prática já estava incorporada em sua cultura de formação, e a base social da campanha crescia rápida e espontaneamente. O desafio aqui estava no “falar”: Zé Gustavo parecia preso num labirinto de insegurança que crescia à medida que o período oficial de campanha se aproximava. Suas ideias pareciam dispersas, e seu slogan - “Ocupe a Política” – encontrado alguns meses antes como uma mensagem significativa e mobilizadora, parecia estar perdendo a vitalidade, como se fosse repetido mecanicamente. Na oficina, especialmente durante as atividades de autoconhecimento, Zé Gustavo “mergulhou como um urso no pote de mel”. Em um exercício de desenho, no qual ele se representou dividido em duas partes com cores contrastantes, um insight lhe ocorreu: o medo que tinha de se tornar ele mesmo a figura que mais desprezava – a de um “candidato oportunista” – o estava imobilizando. Percebendo que ali se fazia necessário um trabalho de desenvolvimento de narrativa conjugado com o de desenvolvimento interno, eu o convidei para uma imersão em Mauá junto ao nosso grupo de estudo, sem a presença de outras pessoas de sua equipe, a uma semana do início das campanhas eleitorais. Dedicamos duas horas do encontro para que Zé Gustavo pudesse compartilhar com o grupo a história que o levara a se tornar um candidato, e fizemos diversas perguntas que o provocaram a expressar com maior consistência onde estava a sua real convicção. Em dado momento, quando a conversa havia chegado a suas memórias de infância, ocorreu uma mudança sutil em sua fala, mas que ficou evidente para todos no grupo: pudemos perceber que sua narrativa passou a ser uma expressão de sua alma. Seu “candidato interior” ganhou vida diante de nossos olhos, e emergia uma história diferente da que ele nos narrava até então:

Em Mauá eu atingi um lugar de autoconsciência que hoje percebo como o início de um novo ciclo para meu ativismo político. Com aquela experiência de compartilhar minhas vulnerabilidades mais profundas e ouvir perguntas fortes e significativas que me provocaram a buscar além dos meus entendimentos anteriores, consegui assumir que ser um candidato era só outra expressão da pessoa que sempre fui (…). Reconhecer esses sentimentos profundos em mim, juntamente com meus limites e contradições, foi essencial para o desenvolvimento não apenas da minha candidatura, mas também de meu papel de liderança e o da minha vida pessoal. (registros do autor, 2014)

Experiências semelhantes ocorreram com outros jovens candidatos, quase todas resultando em algum tipo de transformação no seu trabalho de equipe ou em suas narrativas. Já os

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encontros do grupo de estudo foram retomados após a campanha, onde prosseguimos com reflexões sobre nossas variadas experiências práticas enquanto fontes de aprendizado coletivo. Sem a pressão eleitoral, agora podíamos nos debruçar mais calmamente sobre alguns dos desafios vividos nas campanhas, o que nos levou a refletir sobre algumas das nossas próprias contradições. “Estamos aprendendo a ver aqui como a política é uma prática transpessoal real, que somente pode ser compreendida e praticada em nível de excelência, quando essas múltiplas dimensões podem ser integradas de tal modo que possamos suportar todas as suas contradições”, disse Ricardo Young (registros do autor, 2014) durante uma das reuniões. Suportar todas essas contradições é mesmo desafiador, pois facilmente perdemos de vista essa percepção quando imersos no meio do jogo político. Não por outra razão um dos fundadores do pensamento complexo, Edgar Morin (2007, p. 47-59) argumenta que, na complexidade do reino da política, contradições éticas são inevitáveis, forçando a necessidade constante de encarar um alto nível de incerteza. Em resposta, utilizo o argumento de Morin que “devemos construir uma espécie de conhecimento que nos permita considerar as condições da ação”, o que exige que reconheçamos nossas contradições “de forma aberta e dialógica”. Estas experiências revelavam a pertinência deste apontamento de Morin, e um desafio: como tornar esta capacidade reflexiva parte de nossa prática cotidiana? Também identificamos quão desafiador é nutrir este espaço de abertura para além destes momentos. Amanda Gambale, uma facilitadora que participou de ambas as iniciativas e se tornou integrante voluntária da campanha de Zé Gustavo, em um momento de avaliação sobre o efeito do grupo de estudos em sua prática naquela campanha, relatou que “aquelas conversações significativas foram fundamentais para cultivar nossa visão e nossas estratégias, mas elas se chocavam com a realidade da campanha. Não tínhamos tempo suficiente para manter esse cultivo vivo, na prática” (GAMBALE, 2015). Manter essa qualidade de abertura para acolhermos os paradoxos da realidade no nosso modo de “ser com o outro”, tornando a reflexão um traço de nossa cultura política e não apenas como exercício ocasional, evidenciava-se como o desafio seguinte ao desenvolvimento deste prática de convergir as artes do invisível e do impossível. Outro assunto recorrente nas reflexões do grupo de estudo foi a necessidade de desenvolver maior confiança mútua. O choque do qual Amanda fala, tal como o compreendi, me parece ser contra uma barreira cultural na qual a competição, burocracia, interesses ocultos, conflitos interpessoais etc., minam nossa capacidade de sustentar os espaços contínuos de abertura e diálogo. Competências políticas fundamentais, como a capacidade de ler situações complexas, a habilidade de definir estratégias eficazes, a articulação de atores e saber trabalhar em equipe, todas são sustentadas pela habilidade de construir e manter algum grau de confiança mútua, e exigem-nos a capacidade de emancipação de nossas jaulinhas de cristal. Estas conversas indicaram-me que um caminho para integrar esta reflexão ao nosso cotidiano seria o de cultivar laços mais fortes em nossos relacionamentos no campo de ação política, de modo a sustentar a reflexão dialógica sobre a experiência em curso, para além dos espaços confortáveis de conversação. Dito de outra maneira, seria criar e diversificar espaços reflexivos em nossos vínculos cotidianos, de modo que esta confiança pudesse tornar-se cada vez mais presente em nossas práticas.

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Esta confiança, da maneira como consegui compreender até agora, é a própria expressão da cooperação. Uma vez que é na confiança que se desmontam as reatividades e abrem-se possibilidades de fluxos criativos a partir da interação. Pode-se dizer que o exercício da confiança é o de tecer vazios plenos de possibilidade entre nós, algo complicado por todas as razões que ilustrei anteriormente com a imagem do cipoal, já que a confiança cega nos leva à imprudência. Portanto, é preciso desenvolver a habilidade de criar confiança mútua sem descuidar de nossa responsabilidade. É como diz a sabedoria popular: “um olho bem aberto, outro bem fechado”. Assim, como tornar o exercício da confiança mais presente quando nossa cultura política nos condiciona a evitar um nível mais profundo de contato com o outro e com nossos próprios sentimentos? A “Arte do Invisível” trata precisamente de dar suporte para que os organismos sociais possam reverter seus padrões destrutivos, e manter sua a vitalidade permitindo que a consciência seja nutrida de forma mais consistente. No livro que batiza esta prática, Allan Kaplan (2002, p. 108) argumenta que:

Nós trabalhamos com a cultura do organismo, seu propósito e sua visão, seus valores e compreensão de si mesmo e do mundo; precisamos trabalhar com o espírito que o anima. O organismo deve estar em contato consigo mesmo e com os impulsos que o movem. Se for assim, o resto se seguirá.

Diferente do trabalho que eu anteriormente fazia de facilitação de conversações, a prática de desenvolvimento vai além: integra o componente reflexivo aos diálogos, com base no entendimento de que uma intenção de qualificar nosso observador interno pode engendrar mudanças em cada situação social. Talvez esta qualidade, aplicada aos nossos vínculos humanos, na prática política possa ser um caminho para sustentar transformações desta cultura política. Voltamos aqui novamente ao legado de Vaclav Havel em sua Arte do Impossível, que demonstra didaticamente como o exercício da autoconhecimento revela ser a base para esse passo à frente: em sua prática reflexiva disciplinada a busca por identificar suas próprias incoerências era incansável, expressos em seu diário pessoal e em diversos diálogos. “Desconfiado de mim mesmo”, Havel dizia que “quanto mais baixo estou, mais adequado parece ser o meu lugar; e quanto mais alto estou, mais forte fica a minha suspeita de que houve algum engano” (1990b). Suas próprias vulnerabilidades foram reveladas em atitudes públicas, em seus discursos, peças e até mesmo no filmes que dirigiu ao final de sua vida. Havel se apossou de suas contradições, com um senso de humor sofisticado e a ironia particular da cultura Tcheca15, buscou desconstruir qualquer tendência à sua idealização. Sua defesa era de que qualquer cidadão poderia encontrar sua liberdade e responsabilidades no mundo ao invés de projetá-las para fora de si.

* * * * * Na perspectiva deste olhar dinâmico sobre os processos sociais, retornamos à capacidade de lidar com as polaridades como a essência de um pensar e um agir dinâmico e virtuoso: o                                                                                                                15 Havel (1985) assume que sua principal inspiração para esse seu traço irônico foi Franz Kafka: “em Kafka encontrei uma grande parte da minha experiência do mundo, de mim mesmo e do meu modo de estar no mundo (…) . Franz Kafka, um dos autores mais sérios e trágicos deste século, não é ao mesmo tempo um humorista? Uma pessoa que não ri ao ler seus romances (como se supõe que o próprio Kafka fazia quando os lia em voz alta para seus amigos) não os entende”.

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exercício da confiança é acompanhado da dose correta de desconfiança. Ser bem sucedido em apenas um dos polos sempre significará alguma estagnação. Tal como a busca Webberiana, nosso objetivo é sermos capazes de integrar as qualidades de ambos os polos, de desenvolver a noção de simultaneidade ao invés da polarização ou da dicotomia. Felizmente temos a Natureza como exemplo constante para nos inspirar e instruir nesta tarefa: a vida é capaz de se manter aberta para o impossível e realizá-lo a todo momento. A natureza toda segue leis semelhantes de polaridade em que a impossibilidade é transformada (de novo de maneira paradoxal) em uma possibilidade radical, contra todas as chances. Goethe por exemplo observou que uma planta cresce por meio da paradoxal ‘contraforça’ de um vácuo que a atrai para cima e para fora, contra a gravidade (ADAMS E WHICHER, 1982). E reconhecendo este mesmo traço vital em nós, outro praticante da fenomenologia, o terapeuta Fritz Perls (1969, apud NARANJO, sem data), denominou como “vazio fértil” a qualidade de consciência de estar simultaneamente cheio e vazio, uma condição primordial para que a integração humana floresça. Assim como na dança que envolvem parcerias, aprendemos a nos movimentar de modos que ocupam e esvaziam, mantendo uma “tensão aberta” que traz atenção ao relacionamento, onde um espaço fértil para o novo pode emergir a todo momento. Da mesma maneira, a simultaneidade de esvaziar e ocupar os espaços da ação política não é uma mera atitude passiva: nós ocupamos/esvaziamos espaços para permitir que a ação do outro, como expressão de vida, nos perpasse e se torne parte de nós. Temos a possibilidade de manter o vazio nos campos invisíveis para que as pessoas possam movimentar-se dentro deles, encontrar a si e aos outros e abrir novas possibilidades em seu mundo – nosso mundo comum. Tudo isso é para encontrar outro tipo de poder, um poder autêntico que provoque o ser político a tornar-se cada vez mais amplo, a partir de seu próprio cerne.

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Todas as formas de conhecimento geral são importantes, é claro,

mas somente quando sua aplicação é acompanhada por coisas aparentemente banais e misteriosas, como compaixão,

senso de paz, bom gosto, adequação, solicitude, compreensão, solidariedade.

Repito mais uma vez que tudo isto é fácil de dizer, mas difícil de fazer.

Seguir esse caminho exige infinita tenacidade, infinita paciência, muita criatividade, nervos de aço, grande dedicação

e, não menos importante, grande coragem.

Não estou de forma nenhuma dizendo que eu mesmo sei como seguir por esse caminho.

No entanto, sinto que no mundo dramático, confuso e ameaçado de hoje, esse é precisamente o caminho que temos de tomar.

(....)

Naturalmente, não sei se conseguiremos.

Só o tempo poderá dizer.

Vaclav Havel

Wroclaw University - 1992

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6. POR UMA ARTE DA AMPLIDÃO

O que aconteceria ao mundo se fôssemos humanos? Fernando Pessoa

Busquei retratar até aqui alguns traços centrais de um ativismo político que se inspira no exemplo e no pensamento de Vaclav Havel, Hannah Arendt, Marina Silva, Antônio Alves entre outros que reconhecem a dimensão do ser como base da ação política. Quando observo as possibilidades que a sociedade em rede nos oferece, à luz destas referências, reconheço que minha geração tem em mãos uma oportunidade de rompermos um dos padrões que minam nosso poder político mais autêntico: o hábito de projetar altas expectativas em nossos líderes, o que por consequência os tornam, no futuro, sombras de nossas frustrações. Como podemos gerar mais cooperação e confiança entre aqueles que pensam e agem com perspectivas diferentes? Como podemos desenvolver um senso ampliado de ser político a partir de onde possa ser mantida viva a autenticidade? Como a habilidade de abrir e ocupar espaços de poder com uma atitude de esvaziamento podem efetivamente reverter a entropia dos sistemas políticos? Como não cair nas maneiras utilitaristas e manter vivo o significado da ação política, tornando nossas convicções cada vez mais integradas ao nosso senso de responsabilidade? Como os nossos discursos podem ser mais verdadeiramente expressos em nossas práticas? E como construir, na prática, um corpo de conhecimento que nos permita tratar adequadamente do conjunto destas questões? Até o momento de concluir esta dissertação, minha jornada de aprendizagem trouxe parte das respostas. Nos espaços criados para uma prática de desenvolvimento social junto a outros ativistas políticos, os participantes puderam nutrir virtudes, atitudes e habilidades, que indicam possíveis caminhos para respondê-las. Recentemente o grupo de estudos mencionado evoluiu para uma comunidade de práticas políticas transformadoras, que ampliou seus integrantes ao empreender uma primeira jornada de aprendizado, na qual tivemos mais tempo e preparo para trabalhar esta abordagem de desenvolvimento com maior propriedade. Nesta etapa, a fenomenologia de Goethe, o legado do pensar político de Arendt e diversos pensadores da teoria da complexidade foram trazidos à luz como parte da própria reflexão, e não apenas como pano de fundo. Em diálogo com essa experiência, indico algumas premissas para os processos de desenvolvimento do ser político nesta perspectiva integrada e fenomenológica. Ampliar a compreensão sobre “prática política”: a reflexão como fio condutor. Como apontado nos capítulos anteriores, ambientes onde ativistas políticos refinam e expandem a compreensão de sua própria experiência de vida e sua prática política, podem provocar transformações em vários âmbitos de seu ser e fazer. Tendo em vista que um praticante político venha a desenvolver uma capacidade reflexiva contínua e cada vez mais qualificada, esperamos que esta qualidade de sua prática possa ser traduzida em seu cotidiano e contribua com a transformação das culturas políticas de seus espaços de atuação.

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A abordagem fenomenológica oferece-nos a possibilidade de observar a prática desde uma perspectiva integrada, que não reduz a complexidade do mundo a modelos e teorias abstratas. Aqui, mais uma vez, Vaclav Havel (1991, p. 12) corrobora com este modo de olhar:

Não é verdade que você deve primeiro ter uma ideia para um mundo melhor e somente então colocá-la em prática, mas, ao contrário, pelo fato de sua existência no mundo, você cria a ideia ou a manifesta – cria, por assim dizer, com o “material do mundo”, articula-a na “linguagem do mundo.

Semelhante compreensão se faz presente em outras escolas das chamadas novas ciências, baseadas em abordagens transdisciplinares para compreender a complexidade do mundo. Partindo da experiência como diretora em uma das escolas pioneiras neste campo, a Schumacher College, uma das integrantes fundadoras da comunidade de práticas, Dra. Patricia Shaw, observou na preparação desta jornada que:

Não precisamos de mais teorias; o que precisamos é desfazer a separação entre teoria e prática. Precisamos de descrições detalhadas e precisas e de relatos de ação que revelem uma nova prática – novos modos de trabalhar e viver juntos, novos modos de saber e de pensar. Nós os encontramos quando contamos nossa história ao vivo, publicamente, entre nossos companheiros, de forma que o que é novo e significativo e sem precedentes possa se revelar nas falas e escutas recíprocas e atentas.

A disciplina, por assim dizer, não é teórica, mas orientada por processos: o conteúdo principal está contido na experiência dos participantes, a serem continuamente revisitadas sob os mais diversos ângulos, de modo que o entendimento que cada um tem sobre a própria prática seja continuamente expandido. Esse tipo de abordagem, como Donald Schön demonstra em suas reflexões sobre a prática profissional (1983, p. 21 - 69), significa uma postura distinta à da epistemologia dominante de matriz cartesiana, na qual o “excesso de aprendizado” de conhecimentos técnicos e teóricos condicionam nosso pensar a partir de noções abstratas que negam a complexidade do mundo. Estes excessos nos induzem a perceber somente alguns traços da realidade como se fossem isolados, gerando em nosso pensamento uma incapacidade de perceber cada todo em função do excesso de ênfase em algumas partes. Schön sugere uma perspectiva de apreciação dos tipos de inteligência que não são atingidas por esta atitude cartesiana:

A reflexão de um praticante pode servir de correção para o excesso de aprendizado. Por meio da reflexão ele pode trazer à tona e criticar os entendimentos tácitos que cresceram em torno das repetitivas experiências de uma prática especializada, e pode ver novo sentido nas situações de incerteza ou singularidade que pode se permitir vivenciar (SCHÖN, 1983, p. 61).

Este conhecimento tácito é como a phronesis de Aristóteles: um tipo de compreensão que somente o olhar qualificado sobre a própria experiência possibilita lograr. Isso significa que um processo formativo com esta qualidade precisa ser desenhado para favorecer uma reflexão qualitativa sobre a prática. Aqui, em vez de organizar uma grade curricular fixa, preestabelecida e transmitir conteúdos, os facilitadores (ou instrutores) sustentam um espaço

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onde os praticantes políticos podem vivenciar cada componente de aprendizagem de maneira conjugada com a reflexão que constroem juntos, de modo conjugado com momentos voltados ao desenvolvimento integral de cada um – onde a reflexão individual sobre sua própria prática é o eixo central. Esta perspectiva fenomenológica é portanto oferecida como um convite aberto para que um relacionamento renovado (e portanto mais significativo) com a experiência política das pessoas possa ser nutrido. Se consideramos a premissa de Vaclav Havel (1996) de que a política é “a soma concentrada de todas as coisas”, é nesta reflexão qualificada que os participantes poderão ver sentido nas múltiplas camadas de realidade nas quais suas respectivas práticas se realizam. Onde quer que o praticante esteja, existe uma singularidade a ser revelada e possibilidades ilimitadas de ação a serem descobertas. Cultivar Virtudes: o trabalho intergeracional que embasa outro ser-fazer político. “Pessoas virtuosas criam instituições virtuosas; e instituições virtuosas corrigem as pessoas quando faltam com as suas virtudes” – esse é outro dos “mantras” proferidos por Marina Silva em seu ativismo pela democratização da democracia. Esta frase ressoa em mim como uma orientação clara: um ativista da transformação política precisa se tornar capaz de compreender como as virtudes se desenvolvem na vida das instituições políticas. Mas que virtudes são essas e como cultivar essas virtudes, na prática? Observar esta questão requer uma reflexão anterior: o que entendemos por “virtudes”? Segundo algumas correntes de estudo sobre o fenômeno das virtudes nas práticas sociais, as “virtudes” precisam ser compreendidas não como se fossem coisas, ou noções abstratas que impingem uma moral às relações, mas sim como qualidades – modos de ser-fazer no mundo. Alasdair MacIntyre (1984, p. 191), em sua obra “After Virtude” (“Em Busca da Virtude”, não traduzido para o português) oferece um pensamento neste sentido:

Uma virtude é uma qualidade humana adquirida, cuja posse e exercício tende a nos capacitar a conquistar os benefícios que são internos às práticas, e cuja falta efetivamente nos impede de conquistar esses bens.

MacIntyre argumenta que a fidelidade aos benefícios internos à uma prática é o que mantém vivo o propósito que sustenta a própria existência daquela prática no mundo. Um dos exemplos que utiliza é o de mestre de xadrez que reconhece um talento num menino. Inicialmente, ele oferece benefícios externos ao jogo: ele joga de modo que o menino consegue obter algumas vitórias, e ainda complementa este benefício com uma recompensa (um doce, por exemplo). Porém, o que este mestre deseja é que o menino descubra os benefícios da própria experiência de jogar o jogo, para que um dia ele encontre sentido no próprio jogar e não nas recompensas externas. É somente com a experiência que ele poderá reconhecer os benefícios internos daquele jogo. As virtudes são aquelas qualidades que o permitirão atingir os benefícios internos. Em todas as práticas existe a possibilidade de que os benefícios internos e os externos entrem em choque. Um médico, por exemplo, pode optar por uma abordagem de trabalho que tome

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mais tempo e assim obtenha um salário menor que a maioria de seus colegas. Pois sabe que esta opção é condizente com as virtudes da medicina e que, portanto, desfrutará de outros benefícios internos, como a satisfação pessoal. Muitas vezes, para encontrar as virtudes de uma prática demanda-se a negação de benefícios externos. No caso da política, pode-se nominar alguns destes benefícios externos: reconhecimento público, poder de influência, etc. No entanto, quais seriam os benefícios internos de uma prática política? E quais qualidades humanas necessitamos exercitar para alcançar estes benefícios internos? E como se manter fiel a estas qualidades quando os benefícios externos podem obscurecer nossa própria compreensão sobre os internos? O exercício da reflexão ajuda-nos a sair da idealização conceitual (abstração) e, portanto, moralista sobre o que seriam virtudes, e nos leva ao caminho apontado por Havel rumo ao “coração da realidade por meio da experiência pessoal”. Ou seja, não há uma lista de virtudes a priori, pois é a experiência que irá nos revelar e nos oferecer a possibilidade de desenvolvê-las de acordo com cada contexto de ação. Assim, o praticante de um tipo de política horizontal, aberta, autêntica e de poder compartilhado precisaria tornar-se cada vez mais apto a reconhecer em que medida as virtudes buscadas estão vivas na sua experiência real. No entanto, este exercício não pode ser feito de maneira isolada – não se trata de uma reflexão introspectiva, individual apenas – mas um processo de desenvolvimento que requer espaços de partilha entre praticantes políticos. É nesta perspectiva que MacIntyre reconhece a dimensão interpessoal na qual as virtudes são nutridas ao longo do tempo, na medida em que esta qualidade reflexiva sobre a prática é fortalecida. MacIntyre (1984, p. 194) sugere também que, a base de sustentação destas virtudes é construída através das gerações:

Adotar uma prática é adotar um relacionamento não apenas com seus praticantes contemporâneos, mas também com aqueles que nos precederam naquela prática, especialmente aqueles cujas conquistas ampliaram o alcance da prática até o ponto atingido hoje. É portanto a conquista, e a ‘fortiori’ a autoridade, de uma tradição que então eu passo a confrontar e da qual tenho que aprender. Para esse aprendizado e a relação com o passado que ele incorpora, as virtudes (...) são pré-requisitos, precisamente do mesmo modo e precisamente pelas mesmas razões pelas quais o são na sustentação dos relacionamentos existentes nas práticas.

Este ser político, que reconhece o campo no qual nutre suas virtudes, moldará a sua ação política por uma “tradição” (não no sentido da um conjunto de dogmas, mas como um legado que contém uma sabedoria), com a qual será confrontado a nutrir as virtudes específicas daquela prática. Talvez esteja aqui uma maneira para cultivar a “eterna busca de sentido” que Marina Silva nos chama a atenção. Quanto mais vividamente os participantes reconhecerem que o desenvolvimento de sua prática é, em si, uma busca transpessoal e intergeracional, encontrarão mais elementos para tornar sua atuação política virtuosa e significativa. É neste refletir sobre o “fazer juntos” que os praticantes da política podem estabelecer uma capacidade mais refinada do que Hannah Arendt nomeou como julgamento prático (também traduzido como julgamento reflexivo), “a mais política das capacidades mentais humanas” (HAYDEN, 2014, p. 168). Um bom julgamento prático/reflexivo precisa ser realizado “sem

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bitolas”, navegando por entre as incertezas entre “o que ainda não é e o que já deixou de ser”, ou seja, a medida de cada julgamento prático que embasa a ação política virtuosa é altamente contextual. O ativista político em busca das virtudes pode, assim, realizar escolhas mais consistentes, na medida em que seu julgamento considere os prós e contras dos benefícios internos e externos que estão em jogo em cada situação. O trabalho interno encontra o mundo: quando a separação entre teoria e prática desmorona. Nesta abordagem de desenvolvimento, em que as próprias experiências dos praticantes são a “matéria prima” de aprendizagem, balizadas por uma busca das virtudes do fazer político autêntico, é preciso reconhecer que a capacidade de explorarmos estas vivências é condicionada pelo alcance do autoconhecimento de cada praticante. Em outros termos, somente quando vivenciamos esta amplitude em nós é que podemos engendrar a mesma qualidade entre nós. Como habilitar profissionais da política a cultivarem uma abertura real em seu modo de ser, quando tantas vezes sua estratégia de sobrevivência no mundo, muitas vezes desde a infância, é justamente de formar uma capa protetora sobre sua personalidade? Qual a vantagem de se tornar mais aberto, vulnerável, perceptivo, etc., quando o campo político é tão agressivo? Em resumo: como sustentar a ruptura das nossas pequenas jaulas de cristal? Nesta perspectiva, é preciso que o praticante possua ou desenvolva uma receptividade à ideia de que as próprias sombras (medos, hábitos, ambições, contradições etc.) são um dos mais preciosos materiais de aprendizado que temos à disposição. Em defesa desta mesma premissa, James Hollis (2013, p. 113) argumenta que “o que eu não reconheço dentro de mim cedo ou tarde vai me encontrar no mundo exterior através de projeções que tenho do outro”. Há suficiente embasamento sobre a relevância de que um ativista amplie sua abertura para este trabalho interno, mas como provocar esta ampliação? Sabemos que esta abordagem, sob o ponto de vista da perspectiva dos benefícios externos da “politica dura” (hard politics, o nome dado à dinâmica competitiva de ocupação de espaços institucionalizados), será percebida como um total contrassenso. Ademais, talvez seja possível que o participante consiga ir além da “zona de conforto”: os espaços de aprendizagem propostos podem exigir a extrapolação de algumas situações habituais, que possivelmente o levem a identificar traços de sua personalidade contrastantes com aqueles que formaram sua autoimagem. É preciso, portanto, lidar com a possibilidade que o participante enfrente um choque de paradigmas. Não é desejável que ele seja puxado demasiadamente para fora de sua zona de conforto, nem que seja levado para uma abstração que somente reforça traços de auto-idealização. Os exemplos ilustraram meus primeiros passos neste exercício, pois histórias de vida são um recurso valioso para criar espaços seguros para esta abertura: o storytelling 16 permite

                                                                                                               16 Arendt demonstra o valor de cultivar o storytelling como base para “uma lealdade à vida”, em contraponto ao pensamento racionalista moderno. Como “ninguém é (sozinho) o autor ou produtor de sua própria história de vida”, o cultivo repetido e compartilhado de nossas histórias na imaginação “preserva um espaço de reflexão crítica sobre o que certas ocorrências e eventos significam para o nosso mundo comum” e, assim, pode-se encontrar uma cura para a solidão (HAYDEN, 2014, p. 66-77).

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compreender as inter-relações em todos os níveis de realidade e desconstruir as percepções inconscientes que projetamos sobre nós mesmos; e também abre a sensibilidade para vermos a ação política a partir de um contorno mais humano, apreciativo de nossas próprias vulnerabilidades e contradições. No campo das práticas de desenvolvimento social existem muitos exercícios de narrativa pessoal, nos quais, ao relatar/escutar histórias de vida, com base em perguntas-chave, identificamos elementos vitais que indicam outro modo de enxergar a nós mesmos. São processos que geram uma empatia e um ambiente em que o olhar apreciativo se torna mais forte do que o pensamento crítico ou abstrato. Também podemos encontrar na observação fenomenológica da natureza um solo fértil para orientar essa capacidade de abertura para outro modo de olhar a si mesmo e aos próximos. A delicadeza das plantas, por exemplo, com seus movimentos sutis na relação com as intempéries de seu ambiente, nos convida a “desacelerar” nosso pensamento rápido e a perceber a importância de nossa sutileza. “A planta é um corretivo natural para voos da fantasia ou meras opiniões. Tudo que precisamos dizer é: olhe de novo, como ela é de fato?”, (HOLDREGE, 2013, p 48). Quando nos observamos observando a natureza, criamos um espaço interior para uma relação mais consciente com nosso próprio pensar – e, assim, somos capazes de nos emancipar de nossas tendências de abstração. No desenvolvimento de uma planta podemos observar a vida e a decrepitude, a parte e o todo, o visível e o invisível, etc. Dessa forma adquirimos novas referências para observar com mais precisão como as dinâmicas da vida formam a nós mesmos, que naturalmente se estendem aos processos sociais e políticos os quais participamos. Quando o praticante amplia a consciência sobre como sua vida interior se relaciona com a política, pode reconhecer que “se o que estamos fazendo é realmente certo para nós, a energia está disponível e dá suporte” (HOLLIS, 2013, p. 112) e, assim, descobrir os benefícios internos da prática do autoconhecimento na ação política. Em minha jornada, por exemplo, descobri o valor de expressar minha voz no mundo, encontrando novo entusiasmo e significado para minha prática política. O poder delicado: a arte do invisível encontra a arte do impossível. Ao romper as barreiras internas impeditivas da expansão do autoconhecimento, que nutre espaços de observação integrada de nossas práticas, toda uma gama de possibilidades emerge. À medida que os participantes desenvolvem essa capacidade de “ver o invisível”, formam os “órgãos de percepção” que os possibilitam contribuir com o desenvolvimento de si e do outro. Nesta prática compartilhada, descobrem o valor de uma delicadeza que os nutrem para lidar com situações mais desafiadoras. É aqui que o componente transpessoal, anteriormente indicado por Ricardo Young, entra em jogo: o espaço reflexivo entre praticantes rumo à expansão do conhecimento possibilita a percepção das forças emergentes, fazendo surgir possibilidades de ação nunca antes imaginadas. Uma imagem recorrente tem emergiu na comunidade de prática que exemplifica esta delicadeza: como se cada participante fosse ele mesmo um pedaço de barro, todos moldam-se a si mesmos em uma roda, de modo que a presença dos demais gera um campo de nutrição mútua do lapidar-se individual. A transpessoalidade aqui está na constatação de que

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a transformação individual e a do outro são parte de um mesmo campo. Assim, reconhecemos que qualquer ação no mundo é também formativa devido aos componentes de aprendizagem e desenvolvimento que contém e, portanto, é sempre simultaneamente de curto e longo prazo. Eis o valor da apreciação da delicadeza – a ser mantida em toda situação; precisamente a compreensão que outra anfitriã desta jornada de aprendizagem, Juliana Schneider (2012, p 51)., desenvolveu em sua pesquisa sobre a atenção nas relações sociais e de aprendizagem: “se cultivarmos uma atenção para ver o que não está explícito (…) arriscamo-nos a levar a sério nossas experiências através da vida.” Na prática política essa atenção está presente quando reconhecemos, por exemplo, que um preconceito ou reação inconsciente pode nos restringir na construção de parcerias e alianças; que uma confiança ou desconfiança excessiva está limitando nossas possibilidades de ação; ou que uma atitude ou medo nos afasta do que é nosso propósito real, e assim por diante. Estas “tomadas de consciência” invisíveis modificam significativamente a nossa ação. Há ainda um componente estratégico neste modo de olhar, como indicado pela sabedoria prática da tradição fenomenológica milenar chinesa, na qual a interdependência dos fatos e eventos é constantemente observada. Nesta visão, nos tornamos capazes de nos colocar em melhor posição para trabalhar com as “propensões” (transformações sutis imanentes) que condicionam as “transformações silenciosas” em cada situação (JULLIEN, 2004, p. 113 - 119). Quando se trabalha adequadamente com a perspectiva fenomenológica, inclusive desde um ponto de vista da estratégia da ação politica, um praticante expande o domínio sobre o “fazer do seu fazer” (uma expressão comumente utilizada no campo de desenvolvimento social para distinguir os efeitos de nossa ação no mundo), sem que necessariamente seja estabelecida uma atitude de controle sobre o seu contexto de ação. Talvez por esta razão, nos preparativos da jornada de aprendizagem, Shaw (2014) sugeriu que em nossa abordagem de aprendizagem deveríamos: “Procurar maneiras de tornar essa teia invisível de atividades tangível e visível”. Quando buscamos ter uma perspectiva precisa das nuances da ação política e, ao mesmo tempo, reconhecemos a visibilidade como sendo estruturante da ação política, estamos justamente alimentando o lugar em que o invisível encontra o visível; a cultura encontra a instituição; o gesto encontra o discurso; e uma abordagem mais ampla engendra uma renovação do fazer político. “Temos então que aprender a expandir nossos órgãos de percepção para que se tornem órgãos de ação!”, disse subitamente um dos membros de nossa comunidade de práticas, Rangel Mohedano (registros do autor, 2015), durante uma sessão de aprendizado sobre a fenomenologia de Goethe. Sua metáfora brincalhona (e no entanto bastante acurada) indica como um praticante e aprendiz com a capacidade aumentada de ver e agir através do invisível, aperfeiçoa a atenção nos julgamentos práticos das decisões cotidianas. Estes “órgãos de ação perceptiva” são recursos preciosos quando, por exemplo, temos que lidar com conflitos ou discernir quando uma ação de articulação se torna uma manipulação, ou reconhecer quando desviamos de nossa autenticidade.

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Conversas significativas: onde bate o coração do poder. Ao participar de um processo de aprendizagem desta natureza os participantes estão qualificando-se na habilidade mais essencial da ação política: a de conversar. Convencionalmente, nos círculos políticos, uma conversação pode se referir principalmente à arte da persuasão. No entanto, não é a esse tipo de conversa que estou me referindo aqui: há de se reconhecer que existem muitos tipos de conversas, e cada qual requer de nós qualidades e habilidades distintas. No campo das práticas de diálogo valoriza-se as chamadas “conversas significativas”, aquelas em que uma percepção integral de si e dos outros emerge em cada momento; permitindo um acolhimento mútuo das singularidades de cada um, na capacidade do grupo de se coordenar em ação conjunta (MATURANA, 1999, p. 74-79). Aqui, é vital desenvolvermos uma consciência aumentada de como o diálogo interno condiciona o diálogo com o outro: a autoconsciência, em uma conversação, abre vastamente a percepção do fazer do nosso fazer. Segundo Arendt (1958, p. 190):

Como a ação age sobre seres que são capazes de suas próprias ações, a reação, além de ser uma resposta, é sempre uma nova ação que chama atenção por si mesma e afeta outros. Assim, ação e reação entre os homens nunca se movimentam num círculo fechado e nunca se pode confiar que fiquem restritas a dois parceiros. Essa ausência de limites é característica não apenas da ação política, no sentido mais estrito da palavra, como se a ilimitação do inter-relacionamento humano fosse somente o resultado da quantidade ilimitada de pessoas envolvidas, que poderia ser evitada quando alguém se resigna a agir dentro de um quadro limitado e alcançável de circunstâncias; o menor dos atos na mais limitada circunstância carrega a semente da mesma ilimitação, porque um só feito, e às vezes uma só palavra, é suficiente para mudar toda uma constelação.

O cerne da narrativa, diferentemente de uma abordagem técnica ou ideológica, se concentra no efeito prático da ação. Patricia Shaw (2014), inspirando-se em Arendt, indica como se empenhar nessa perspectiva:

O âmbito político de ação e discurso é incontrolável e imprevisível. O principal risco da ação é que começamos iniciativas que reverberam de maneiras desconhecidas, de modo que as pessoas não conseguem saber o que vai resultar do que fazem. Isso significa que precisamos estar sempre perguntando não ‘o que pretendi fazer’, mas sim ‘o que o meu fazer está fazendo?’(...). Precisamos nos preparar para participar do imediatismo e abertura de uma política do dia-a-dia na qual os próximos passos continuamente aparecem à nossa frente. Precisamos desenvolver a competência, a coragem e o comedimento para ver e responder aos apelos dessas aberturas.

Estas conversas significativas podem ser a base para um componente fundamental que identificamos, em nossa comunidade de prática, para a ação política transformadora eficaz: a capacidade de tecer confiança mútua. Sabemos que bons relacionamentos geram informações valiosas, criam oportunidades de ação, possibilitam receber feedbacks consistentes para reconhecermos hábitos a serem superados, e assim por diante. Um ativista político, que incorpore em seu modo de vida uma dinâmica virtuosa de parcerias com base na confiança

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mútua, em especial com aqueles que são diferentes, naturalmente se tornará um dos que abrirá caminhos através dos cipoais pelos quais transita. Narrativas que ampliam espaços: gerando olhares dinâmicos sobre a ação política. Conversas significativas formam um solo fértil no ambiente político para que a autenticidade que almejamos floresça. Conforme ampliamos nosso modos de enxergar nossa prática, criam-se oportunidades para que nosso linguajar se emancipe dos clichês, jargões e abstrações. Os espaços de reflexão aberta compartilhada nutrem as nossas narrativas para que se tornem constantemente renovadas, como Shaw sugere. Nesta dança entre o visível e o invisível que permeia qualquer ação política, já que “uma palavra pode mudar toda uma constelação”, a capacidade de elaborar narrativas que explicitem os significados latentes nos processos políticos se torna vital para o agenciamento das possibilidades de transformação dos fazeres políticos. Na abordagem fenomenológica, como as palavras e os conceitos são percebidos de maneira sempre contextualizada, o ‘mundo’ é visto como um cenário vivo e dinâmico onde as possíveis variáveis precisam ser consideradas em suas inter-relações, de acordo com cada situação. Esta perspectiva nos provoca a desenvolver maior flexibilidade em nosso pensamento, em face da natureza mutante da realidade, a perceber a relevância de evitar as armadilhas dos modos de pensamento ideológicos fechados ou utilitaristas. Desenvolvemos um repertório cognitivo para interpretar nossas própria realidades de maneira mais vívida, rica e dinâmica. Alguns dos termos correntes do linguajar que utilizei nesta dissertação, como as bordas e centros, o muro e o cipoal, revelam como, nos ambientes em que tenho atuado politicamente, forma-se um modo dinâmico de pensar e agir. Surgem metáforas e simbologias que se expressam em contraposição aos conceitos usualmente aplicados, desde um ponto de vista hegemônico, tais como interesse, líder, oposição ou situação, bem como a noção de separação entre ‘meios’ e ‘fins’. No entanto, este outro linguajar não exclui o uso destes termos: o ser político autêntico, para ser efetivo em sua prática, precisa tornar-se um “poliglota”, segundo Marina Silva em suas recorrentes reflexões sobre o fato de que “a realidade responde na língua em que é perguntada” (SILVA, 2010). Isto significa nutrir a habilidade de lidar com as múltiplas realidades que coexistem no âmbito da ação política e, como já foi dito, simultaneamente. As habilidades básicas de um fazer político transformador, tais como: transitar tanto nos “velhos” como nos “novos” modos de fazer política; agir nas perspectivas de curto e de longo prazo; saber contemplar o visível e o invisível em seu modo de olhar; de lidar com as maneiras horizontais e verticais de ação coletiva; de compreender como o indivíduo e o coletivo compõe um mesmo todo - todas requerem uma capacidade de ressignificar a ação política com narrativas que nos permitam desenvolver maneiras não-dicotômicas de pensamento e que propiciem efetividade à prática política.

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Onde “não há espaços vazios”, que sejam criados! Talvez o maior efeito que estes espaços de aprendizagem possam oferecer, seja o de possibilitar que os participantes tornem-se mais aptos a incidir no que, no linguajar da prática política, chamamos de campos. Estes campos são os lugares invisíveis nos quais se organizam as forças que incidem em qualquer decisão. É a partir de onde emerge a “capacidade de vida pré-narrativa” (HAYDEN, 2014, p. 73) que Arendt indica como a base na qual o poder verdadeiro se exerce. São lugares invisíveis para quem não os conhece: uma foto, um texto, até mesmo um filme, não os revelarão, porém estes lugares são absolutamente reais para quem deles participar. Os campos são mais vastos do que os lugares formalmente estabelecidos pelas instituições. Atravessam os diálogos, os fóruns, cargos e instâncias decisórias. Nos campos são formados os vínculos que articulam centros e bordas e os espaços que engendram novas ideias e narrativas, moldando as relações interpessoais e interinstitucionais que determinam cada ação política. Estes são por excelência o âmbito em que a horizontalidade se exerce, uma vez que na perspectiva de um campo todas as partes se influenciam mutuamente, de maneira complexa e imprevisível, sem necessariamente submeterem-se às formalidades. Quanto mais estes ativistas políticos estiverem preparados para incidir nestes campos invisíveis e entrelaçados que determinam cada situação, maior sua capacidade de abrir, ocupar e criar espaços para que modifiquem a configuração do jogo político, ampliando radicalmente as possibilidades. Assim, este ser político com uma prática renovada por esta arte da amplidão pode vir a se tornar um agente catalizador das dinâmicas vitais que atravessarão os muros entre os mundos.

* * * * * De acordo com Arendt “a História é uma história que tem muitos começos, mas não tem fim” (1954, apud Bairules, 2009). Talvez uma contribuição desta jornada reflexiva seja retratar como certas escolhas de vida fazem “a história sair do livro” e ser experimentada como nosso próprio caminho de vida, na própria carne. Quando a arte do invisível encontra a arte do impossível, quando outro nível de abertura é encontrado para nossa experiência no mundo, revela-se um tipo de espacialidade que amplia nosso senso de pertencimento ao mundo. Ao olhar as escolhas com perspectivas mais amplas de tempo e espaço, do mundo e de nós mesmos, talvez consigamos agir mais sabiamente, conscientes do valor dos legados vivos que atravessam as gerações. E talvez no cuidar deste legado esteja o maior benefício interno da prática política: um senso sempre renovado de se tornar mais plenamente humano e pertencente a este mundo misterioso e desafiador.

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Se eu levar em consideração minha própria impaciência política,

percebo com nova urgência que um político do presente e do futuro – permitam-me usar a expressão “político pós-moderno” –

deve aprender, no melhor e mais profundo sentido da palavra, a importância de esperar.

Assim como não podemos enganar uma planta, não podemos enganar a história.

Porém precisamos igualmente regar a história, pacientemente e todos os dias.

Precisamos regá-la não só com compreensão, não só com humildade,

mas com amor.

Vaclav Havel – Atenas - 1992

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