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209 (*) Doutor em arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. [email protected] Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 209-245, 2005-2006. I. Introdução Sistemas de Informação Geográfica têm revolucionado nos últimos anos a maneira com a qual disciplinas como a geografia, ecologia e arqueologia manuseiam e interpretam grupos de dados espacialmente referenciados. Estes sistemas de informação fornecem um meio de manipular observações complexas e multi-variadas com muita flexibilidade. Uma das maiores vantagens do GIS é o poder de visualização que se tem dos dados, seja em duas ou três dimensões. Outra vantagem é a possibilidade de calcular distâncias e superfícies de fenômenos referenciados espacialmente em relação a características físicas específicas. No caso específico da arqueologia, embora o GIS ofereça um conjunto ilimitado de ferramentas de análise, cuidados devem ser tomados principalmente se considerarmos o fato de que as características arqueológicas geralmente se apresentam sobrepos- tas pelas características geográficas atuais. Fatores sociais, culturais, topográficos e geográficos, tinham e continuam tendo um impacto significativo sobre a maneira na qual os indivíduos se movimentavam na paisagem. Alguns destes fatores, como a localiza- ção de antigos sítios, tipos diferenciados de O USO DO GIS PARA ENTENDER O SISTEMA DE TROCAS NO EGITO ANTIGO E NA NÚBIA : MAPAS DE CIRCULAÇÃO, UMA NOVA ABORDAGEM PARA AS SUPERFÍCIES DE CUSTO José Roberto Pellini* PELLINI, J.R. O uso do GIS para entender o sistema de trocas no Egito Antigo e na Núbia: mapas de circulação, uma nova abordagem para as superfícies de custo. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 209-245, 2005-2006. RESUMO: Nos últimos anos, análises de custo de superfície têm sido utilizadas na arqueologia para modelar os antigos sistemas de troca. O principal problema relacionado com este tipo de análise é que em geral estes modelos obedecem a uma estrutura interpretativa derivada da moderna teoria econômica, o que reduz a análise de custo a uma questão de racionalização das distâncias. Como a movimentação de pessoas bem como circulação de bens dentro da paisagem é condicionada tanto por aspectos físicos quanto simbólicos, propusemos, em nosso doutorado, mapas de custo de superfície que incorporam não somente fatores físicos mas também fatores sócio- culturais. A estes mapas de custo de superfície físico-culturais, agregamos dados sobre a distribuição de objetos arqueológicos dentro da área de estudo. O resultado final é o que denominamos como mapas de circulação, onde cada tipo diferenciado de movimento pode, dependendo da área a ser estudada, evidenciar a presença de diferentes sistemas e esferas de troca. UNITERMOS: Egito Antigo – GIS – Sistemas de troca – Comércio.

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(*) Doutor em arqueologia pelo Museu de Arqueologiae Etnologia da Universidade de São [email protected]

Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 209-245, 2005-2006.

I. Introdução

Sistemas de Informação Geográfica têmrevolucionado nos últimos anos a maneira com aqual disciplinas como a geografia, ecologia earqueologia manuseiam e interpretam grupos dedados espacialmente referenciados. Estes sistemasde informação fornecem um meio de manipularobservações complexas e multi-variadas com muitaflexibilidade. Uma das maiores vantagens do GIS é

o poder de visualização que se tem dos dados, sejaem duas ou três dimensões. Outra vantagem é apossibilidade de calcular distâncias e superfícies defenômenos referenciados espacialmente em relaçãoa características físicas específicas. No casoespecífico da arqueologia, embora o GIS ofereçaum conjunto ilimitado de ferramentas de análise,cuidados devem ser tomados principalmente seconsiderarmos o fato de que as característicasarqueológicas geralmente se apresentam sobrepos-tas pelas características geográficas atuais. Fatoressociais, culturais, topográficos e geográficos, tinhame continuam tendo um impacto significativo sobre amaneira na qual os indivíduos se movimentavam napaisagem. Alguns destes fatores, como a localiza-ção de antigos sítios, tipos diferenciados de

O USO DO GIS PARA ENTENDER O SISTEMA DE TROCAS NOEGITO ANTIGO E NA NÚBIA : MAPAS DE CIRCULAÇÃO,

UMA NOVA ABORDAGEM PARA AS SUPERFÍCIES DE CUSTO

José Roberto Pellini*

PELLINI, J.R. O uso do GIS para entender o sistema de trocas no Egito Antigo e na Núbia: mapasde circulação, uma nova abordagem para as superfícies de custo. Rev. do Museu deArqueologia e Etnologia, São Paulo, 15-16: 209-245, 2005-2006.

RESUMO: Nos últimos anos, análises de custo de superfície têm sido utilizadas naarqueologia para modelar os antigos sistemas de troca. O principal problema relacionadocom este tipo de análise é que em geral estes modelos obedecem a uma estruturainterpretativa derivada da moderna teoria econômica, o que reduz a análise de custo auma questão de racionalização das distâncias. Como a movimentação de pessoas bemcomo circulação de bens dentro da paisagem é condicionada tanto por aspectosfísicos quanto simbólicos, propusemos, em nosso doutorado, mapas de custo desuperfície que incorporam não somente fatores físicos mas também fatores sócio-culturais. A estes mapas de custo de superfície físico-culturais, agregamos dados sobrea distribuição de objetos arqueológicos dentro da área de estudo. O resultado final é oque denominamos como mapas de circulação, onde cada tipo diferenciado demovimento pode, dependendo da área a ser estudada, evidenciar a presença dediferentes sistemas e esferas de troca.

UNITERMOS: Egito Antigo – GIS – Sistemas de troca – Comércio.

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cobertura vegetal, fontes de água e recursosambientais, extensão das terras aráveis etc. podemser reconstruídos pelos arqueólogos com o auxiliodas novas tecnologias relacionadas aos sistemas deinformação geográfica.

Dada a abrangência e a infinidade dos tipos deanálise espacial que nos oferecem os softwares deGIS, eles se tornam especialmente indicados para oestudo dos sistemas de troca. Como salientaramBell, Wilson e Wickhan (2002), os sistemas deinformação geográfica são uma ferramenta podero-sa e indispensável nos estudos dos problemasrelacionados às rotas comerciais e de comunicação.Mas computar e modelar as antigas rotas requer umgrande esforço na reconstrução daqueles elementosdentro da antiga paisagem que direcionavam osmovimentos ao longo de uma certa região.

II. O GIS e o estudo dos sistemas de troca

Nos três últimos anos, análises de custo desuperfície têm sido utilizadas na tentativa demodelar o movimento dos indivíduos através dapaisagem. Muitos softwares de GIS oferecem apossibilidade de gerar superfícies de custo. Estassuperfícies de custo podem ser consideradas comoum produto baseado em proximidades contínuasque levam em conta não somente a proximidade,mas também o caráter do terreno sobre o qual asproximidades são calculadas. Superfície de custo,assim como distância, é um modelo matemáticocujo significado arqueológico não é fixado,cabendo ao pesquisador definir os parâmetros deanálise. Uma superfície de custo é, portanto, ummodelo computadorizado da paisagem no qual paracada parte da superfície é assinalado um valor, oucusto, que representa o esforço ou energia requeridapara alcançar um certo ponto a partir de um pontopré-determinado. O custo total é determinado porum logaritmo que incorpora não só as distâncias emrelação ao ponto final, quanto os custos adicionaisrelacionados a aspectos particulares da paisagem.Estes custos adicionais são determinados pelopesquisador e são derivados de sistemas declassificação nos quais para cada característica dapaisagem é determinado um certo valor de custo.Por exemplo, para se determinar a melhor rota deacesso a um determinado ponto, dentro de umaárea caracterizada pela existência de savanas eflorestas densas, valores diferenciados de custo

devem ser assinalados para cada tipo específico devegetação. Sendo assim, como é mais difícilcaminhar dentro de florestas densas, poderíamosassinalar um valor de custo de 6 para as áreas defloresta e um valor de 2 para as áreas de savana.Quando se constrói um modelo de análise desuperfície de custo, o valor de custo de cada classeé estabelecido em relação à classe de menor valorde custo. Se dentro desta mesma área existemlocais que são culturalmente proibidos como, porexemplo, cemitérios ou zonas limites, poderíamostambém assinalar um valor de custo para estasáreas socialmente definidas.

Os logaritmos utilizados para as análises desuperfície de custo podem ser classificados em doisgrandes grupos, logaritmos isotrópicos, que sãoaqueles que levam em conta o custo do movimentoem uma superfície sem considerar a direção de talmovimento e logaritmos anisotrópicos, nos quais adireção do movimento que afeta o custo dedeslocamento passa a ser considerada.

Análises de superfície de custo isotrópicas

Nos exemplos de análise de superfície decusto mais simples, os logaritmos requerem doistipos de arquivos de entrada, um arquivo contendoa localização das características para as quais ocusto de distância será calculado, geralmentechamado de raster de fonte, e um arquivo quecontém a especificação do custo relativo de sepercorrer uma dada distância dentro das unidadesda paisagem, normalmente denominado superfíciede fricção. Os dois tipos de arquivo necessitam ainserção de valores de custo proporcionais,relativos a uma base de custo 1. Se, por exemplo,algum indivíduo gasta 350 calorias para percorreruma superfície plana e 700 calorias para caminhar,na mesma velocidade ao longo de um terreno maiselevado, podemos dizer que o terreno maisacidentado tem uma superfície de fricção de valor2. Em contrapartida, se um indivíduo gasta 175calorias para caminhar ladeira abaixo em umaelevação, pode se dizer que a superfície de fricçãoé de 0.5. Em outras palavras, uma superfície comvalor de fricção de 0,5 determina que será realizadametade do esforço de se cruzar uma superfície devalor 1, assim como uma superfície de valor trêsrequer três vezes mais esforço.

A partir dos dois arquivos de entrada ologaritmo inicia o processo de análise da superfície

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em cada raster de fonte, calculando sucessivamen-te o custo de se alcançar uma localidade vizinha.Sendo assim, o produto final é um modelo cumula-tivo do custo de se alcançar um determinandoponto na paisagem a partir de um ponto inicial.Devemos lembrar que o logaritmo de superfície decusto não modela algo real, como movimento oudispersão, ao contrário, custo aqui é um processoabstrato sendo que a análise de custo poderepresentar uma grande variedade de fatores, todosdependentes do modelo inicialmente proposto.Normalmente, análises de custo têm sido utilizadasem arqueologia bem como em outras ciências paramodelar o tempo ou a energia gasta no movimentoentre dois pontos na paisagem.

Análises de superfície de custo anisotrópicas

Análises isotrópicas de custo são utilizadasonde o custo de retorno à base está sendo calcula-do ou em casos onde a direção do movimentoatravés de uma dada superfície de fricção não afetao custo da movimentação. Entretanto há casos nosquais a direção do movimento em uma superfície defricção afeta diretamente o custo de distância. Esteé o caso, por exemplo, das superfícies de elevação,onde um determinado custo está envolvido nosmovimentos rumo às partes altas do terrenoenquanto um outro custo está envolvido nosmovimentos rumo às partes mais baixas.

Nestes casos uma abordagem mais sofistica-da é necessária. Uma possibilidade é criararquivos não só para a magnitude da fricção,como no caso das análises isotrópicas, mastambém para a direção na qual a fricção tem seuefeito amplificado. As funções matemáticasutilizadas para calcular a fricção efetiva causadapelo caminhamento em relação à direção domovimento e em relação à magnitude da fricçãosão denominadas funções de análise anisiotrópicas.A função geral determina que:

Custo = Custo base

x F max

cos k(aaaaa) ,

em que custo base é o custo, F max é amagnitude da fricção, a é o ângulo entre a direçãodo caminhamento e a direção da fricção e K é aconstante utilizada para efetivar o custo entre a= 0o

e a= 180o, ou seja a constante K é utilizada paracalcular o rumo no qual a elevação modifica osvalores de fricção.

A criação de uma superfície de fricçãodetermina a natureza da análise. Onde o resultadoesperado é um modelo do gasto de energia, então asuperfície de fricção precisa representar a energiadispensada no caminhamento em relação a umadistância fixa. Se considerarmos que a energiadispensada é apenas um produto da elevação doterreno, então a relação precisa ser postulada entrea elevação e a energia.

A forma mais simples de superfície de fricção éo chamado modelo de inclinação. Neste caso, orequerimento básico é o valor da altitude. Teorica-mente o custo de transposição de uma superfícieaumenta conforme aumenta a inclinação do terreno.Uma abordagem mais sofisticada converte osvalores da inclinação em velocidade de desloca-mento através da função Hiker. A função Hiker,desenvolvida pelo geógrafo Waldo Tobler (1993:4), tem sido utilizada com sucesso por arqueólogose etnógrafos. A função Hiker se dá pela fórmula

T = D/(6exp(-3,5 X abs (S+0,05))),

onde T igual a tempo necessário para cruzarcada célula do Modelo de Elevação Digital, D igualà distancia através de cada célula e S igual àinclinação do terreno em cada célula. A aplicaçãodesta fórmula produz uma superfície de custo quemede a quantidade de tempo necessário para setranspor cada célula. A grande vantagem destemétodo é a possibilidade da criação de mapas querepresentem o gasto calórico envolvido em cada tipode deslocamento. Outra vantagem é a possibilidadede discutir, com base nos mapas de gasto calórico,a existência de paragens e centros de abastecimen-to ao longo de uma dada rota, avaliabilidade derecursos e por fim quantidade e tipos necessáriosde alimento a serem levados no caminho.

Há dois pontos importantes que devem serincluídos nos chamados modelos de inclinação. Emprimeiro lugar não devemos considerar que o custode transpor uma inclinação é diretamente proporci-onal ao grau de inclinação, sendo assim, caminharem um terreno com uma inclinação de 45o não ésimplesmente 45 vezes mais difícil que caminhar emuma superfície plana com 0o de inclinação. O custorelativo de se caminhar em superfícies inclinadasdeve ser expresso como a média das tangentes dosângulos de inclinação.

O segundo ponto a ser considerado quandoutilizamos modelos de inclinação para a criação de

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superfícies de custo é que a inclinação não exerce amesma força uniformemente em todas as direções,isto porque quando o movimento é perpendicular àinclinação o esforço exercido é menor. Nestesentido o uso de modelos de custo de superfícieanisotrópicos é mais eficiente, pois leva em contatanto a magnitude quanto a direção do movimentoentre o ponto A e B, o que produz uma superfíciede custo direcional na qual a direção é calculadacontra a suavidade e o aspecto da inclinação.Devido ao fato de que modelos de custo desuperfície calculam o custo de deslocamento entredois pontos, dentro de uma paisagem eles sãoestritamente pontuais, sendo assim, não é possívelgerar superfícies de custo com a proposta deanalisar movimentos bidirecionais entre múltiplospontos dentro de uma determinada área.

Em arqueologia considera-se que o gasto tantode energia quanto de tempo é uma função dasdiferenças na elevação do terreno. Esta é umaafirmação simplista, já que também outras caracte-rísticas meio ambientais condicionam a energiagasta no deslocamento, como é o caso, por exemplo,das dunas e das áreas de cobertura vegetal densa.Devemos lembrar, como dissemos acima, que amovimentação dentro da paisagem é condicionadatanto por aspectos físicos quanto simbólicos. Aexistência de áreas sagradas, como cemitérios,áreas de tabu, ou o simples desejo de se passar poruma certa vila, podem ter mais influência sobre aestrutura do deslocamento do que simplesmente atopografia da área em questão. Nos casos ondetemos uma área culturalmente proibida ou áreasafetadas positivamente por rotas de transporte,podemos assinalar valores de fricção diferenciados afim de melhor contextualizar as superfícies de análise.

A maioria dos modelos de análise de superfíciede custo obedece a uma estrutura interpretativaderivada em grande parte da moderna teoriaeconômica, que reduz a análise de custo a umaquestão de racionalização das distâncias. O quetemos, assim, de fato, é uma descrição sistêmica efuncional na qual os fatores sócio-culturais sãoretirados da análise. Nestas teorias há umasuposição implícita de que a ação dos indivíduos éestritamente econômica e que a minimização dasdistâncias poderia resultar na minimização do custoou do esforço. Chisholm (1962, 1963) sugeriu quea minimização do custo de transporte e da distânciapercorrida resulta em uma concentração naprodução e na distribuição dos produtos em

poucos pontos. Aqui o indivíduo é visto, pelamaneira como maximiza sua satisfação através daescolha de determinados meios para alcançardeterminados fins. Isto acontece através de umgrupo de motivações que são puramente econômi-cas, que não levam em conta outras motivaçõesque possam interferir no processo. É o chamadopostulado da escassez (Hopkins 1965: 348). Se deum lado o princípio da maximização separa asmotivações econômicas das não econômicas, deoutro o princípio da alocação abstrai-se docomplexo institucional, sendo assim, a economia évista como uma alocação racional de meiosescassos para alcançar determinados objetivos.Como salientou Olsson (1965: 43), no entanto,uma certa flexibilidade tem de ser considerada nosestudos de interação e distância, não só pelo fatode que diferentes grupos e indivíduos concebem adistância de formas diferentes, mas também porqueestas concepções variam de acordo com o tipo deinteração, um aspecto que foi bem demonstradopor Clarke (1965) em sua análise do comércio pré-histórico de itens de prestígio na Europa e Austrália.Quando analisamos esquemas de distribuição edistância devemos ter em mente que são vários osfatores que afetam as escolhas e a distânciapercorrida. A probabilidade de um indivíduo semover de um local para o outro precisa sercomputada como uma função das características doindivíduo (idade, raça, sexo, vida urbana ou ruraletc.), das características da área estudada (formasde relevo, paisagens, formações urbanas, contextosócio-econômico), das características dos possíveisdestinos bem como das diferenças entre eles, e nãoapenas sob uma variável custo.

Embora as chamadas “análises de superfície decusto” estejam em parte relacionadas às teorias deminimização do esforço, devemos lembrar quecusto é uma medida relativa e que varia de acordocom o sistema e com a sociedade a ser analisada.Por exemplo, para algumas pessoas, caminharmorro acima rumo a um pequeno jardim nãorepresenta custo algum, já para outras pessoas omesmo trajeto incide em uma série de restrições, oucusto. Isto se torna ainda mais relevante sedeixarmos de considerar apenas o meio físico epassarmos a considerar a paisagem como algosocialmente construído. Como salientou Gillings eWheatley (2002), as análises de custo de superfíciesão modelos matemáticos que modificam uma certasuperfície e cujo significado não é fixado, cabe aos

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pesquisadores definirem os parâmetros de análise.Portanto, quando se está interessado em análisesque visem apenas a determinação de rotas queincidam em menor custo dentro do ambiente físico,as implicações metodológicas são claras. Masquando os parâmetros de análise passam a integrarfatores sócio-culturais outros que não apenas aminimização do esforço, os resultados são maisabrangentes e não tão reducionistas.

III. O objeto de estudo

A Núbia até o inicio do século XX era umaregião relativamente inexplorada e assim poucoconhecida, pelo menos do ponto de vista arqueoló-gico. Com os progressivos aumentos do lago darepresa de Aswan e a conseqüente construção dolago Nasser que abasteceria a futura represa, aárea culturalmente rica onde se localizava a antigaNúbia seria inundada. Devido a estes fatores, trêscampanhas de salvamento ocorreram na Núbia como objetivo de resgatar e preservar os restosarqueológicos desta área, sendo a maior delaspromovida pela UNESCO na década de 60.

A primeira etapa de salvamento dos restosarqueológicos da Núbia ocorreu entre os anos de1907 e 1911 em razão da necessidade de seaumentar a capacidade do lago que abastecia arepresa, fato que iria resultar na inundação degrande parte do vale do Nilo no país. Entre 1929 e1934 foi necessário realizar mais um aumento nacapacidade do lago, e assim uma nova campanhade salvamento teve inicio. Entre as inúmerasequipes de pesquisadores que foram trabalharnestas duas etapas de salvamento se destaca aequipe da Universidade da Pensilvânia chefiada porDavid Randall-MaIver e Leonard Wolley, quetrabalharam nos sítios de Karanog, em alguns sítiosmeroíticos da região e em Areika, um grandecemitério do grupo C. Outra equipe que muito sedestacou foi a do Fine Arts Museum de Boston emconjunto com a Universidade de Harvard sob acoordenação do Prof. George Reisner, que aolongo dos 18 anos em que trabalhou na Núbiaconseguiu estudar e escavar os sítios de Kerma,Napata, Meróe e Nuri. Foi o Prof. Reisner quemprimeiro identificou e estudou os grupos A e C. Em1960, houve, pela terceira vez, a necessidade de serealizar um projeto de salvamento arqueológico naNúbia, mas, neste caso, em um grau muito maior

do que nas outras etapas. A campanha foi lideradae promovida pela UNESCO que denominou oprojeto de Campanha Internacional para o Salva-mento dos Monumentos da Núbia. Os diversosprojetos de salvamento na região núbia fizeram comque o mundo inteiro pela primeira vez desviasseseus olhares para esta área. Uma equipe internacio-nal de arqueólogos realizou um imenso esforço afim de investigar e resgatar os restos arqueológicosque seriam submergidos após a construção do lagoNasser. Assim, graças a estas campanhas desalvamento, a Núbia é considerada uma das regiõesmais pesquisadas do mundo. Isto não significanecessariamente que todo o material escavado eque todos os sítios arqueológicos tenham sidopesquisados de maneira correta e eficiente. Comoafirmou Williams (1992), muito sítios arqueológicosforam perdidos pela ineficiência de alguns pesquisa-dores e pela simples falta de metodologia, fruto dogigantesco afluxo de pesquisadores com as maisdiferentes formações. Isto tem se tornado um sérioobstáculo para o completo entendimento dospadrões de assentamento da região núbia.

Para nossa pesquisa escolhemos a região entreQustul no Egito e Gamai no Sudão por ter sido umadas mais intensivamente trabalhadas durante os projetosde salvamento da Núbia. Embora estas regiõestenham sido pesquisadas por equipes diferentes, jáque a região entre Qustul e Adindan contou com aparticipação do Oriental Institute de Chicago e aregião entre Faras e Gamai tenha sido trabalhadapela Scandinavian Joint Expedition, são as áreas queem conjunto contam com as maiores e melhorespublicações relativas aos sítios arqueológicos datadosdo Novo Império e aos resultados dos salvamentos.

IIIa. Qustul, Adindan e Serra

Os sítios arqueológicos de Qustul e Adindanfazem parte da área de salvamento sul, concedidaao Instituto Oriental de Chicago em 1960, pelogoverno do Egito, estendendo-se, tanto do ladooeste quanto do lado leste do banco do rio Nilo,do norte do Templo de Abu Simbel até a fronteiracom o Sudão. A concessão excluía Abu Oda,Gebel esh Shamis, Gebel Ada e os templos de AbuSimbel. A área assim incluía quase 20km daextensão do rio Nilo de norte para sul (em relaçãoà direção do rio) e dois terços da vila de AbuSimbel, com Qustul e Adindan no banco esquerdodo rio e a vila de Ballana no banco direito. Como

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apontou Williams (1992) a área da concessão emgeral não difere das outras áreas ao redor do Nilona baixa Núbia. No aspecto geomorfológico, ocenário que encontramos abaixo do Wadi es Sebuaapresenta pequenas planícies aluviais em forma decrescente ou terraços, cada um contendo uma vila.Em poucos casos como em Teshka, a vila ocupamais do que uma planície. Formações montanhosascircundam grande parte do vale do Nilo ao longoda área de concessão. No leste são as encostas doplatô de Abu Simbel, constituído de arenito núbioerodido e preservado sobre sólidas capas, mascortados por wadis perto do rio. Para nordeste asencostas se aproximam do rio ao lado da vilamoderna de Abu Simbel alcançando o rio em GebelAda. Exceto pela presença de pequenas ilhas norio, o aspecto geral de Qustul era típico de uma vilanúbia moderna. O banco do rio era ocupado pormatas e palmeiras, a vertente do rio por camposseguido por uma coluna ou pares de colunas decasas núbias. A quase 2 km da vila de Qustul osgrandes túmulos do grupo X foram encontrados.

Em Adindan o gebel estava mais próximo aoscampos e somente umas poucas casas foramdescobertas ao longo de sua base. Muitas foramconstruídas sob o próprio gebel freqüentemente emcolunas com a orientação leste-oeste. Perto dolimite sul do crescente de Adindan, o gebel erabaixo e as casas tinham as mesmas característicasde Qustul, sendo que a vila terminava a cerca de500 m da fronteira com o Sudão. Em Qustul, após1930, um grande grupo de casas foi construído nolimite leste da baixa planície, de costas para ogebel, deixando o espaço do terraço desérticoentre os dois grupos. No limite sul da vila o espaçoentre os dois grupos aumentou, o primeiro emcultivo e o segundo em um gebel mais proeminente.

Mais a sudeste temos o baixo arenito núbio emmeio a um solo pedregoso, área onde se localiza osítio de Serra. A principal diferença entre a antiga ea moderna paisagem neste ponto foi uma pequenamudança do leito do Nilo na direção oeste, o queaumentou a quantidade de terras aráveis no ladoleste da margem. Assim como nos casos de Qustule Adindan, uma série de pequenas casas selocalizava nas proximidades do sítio.

IIIb. Faras

Também como parte dos projetos de salva-mento dos sítios e monumentos da Núbia, uma

equipe de pesquisadores escandinavos, sob acoordenação de Torngny Save Soderbergh, foiconvidada pelo diretor geral da UNESCO em1959 para dirigir o regaste dos sítios arqueológicosentre a região de Faras e Gamai no Sudão. A partenorte da concessão, autorizada pelo Departamentode Antiguidades do Egito e do Sudão, incluía osdistritos modernos de Faras, Serra, Debeira,Ashkeit e Sahaba. A parte sul compreendia asáreas de Wadi Halfa, Halfa Degheim, Abka eGamai.

Uma das principais características da regiãoentre a fronteira do Egito com o Sudão e a segundacatarata do Nilo são as faixas estreitas de depósitosaluviais entre o rio e a formação estrutural Inselbergdo gebel (também chamado de paisagem mesa).Três diferentes depósitos circundam esta área: omoderno aluvião a 120 m do nível do rio, o baixodepósito limoso a 130 m do nível do rio e silt alto a140m do nível do rio. Assim, a sucessão consistede um terraço de 10 m de silt cinza resistente eoutro terraço, com 20 m, com depósitos de areia.

Seguindo o Nilo para o sul, o Wadi Serradelimita os distritos de Serra e Debeira. Aqui a áreade aluvião começa ao longo do Nilo na direção sulda costa arenosa. Esta área, que é rica para ocultivo, se estende ao sul ao longo do Nilo nadireção do distrito de Askheit. Em sua porção nortea área é coberta por uma areia de formação eólica,sendo muito utilizada para o plantio de tâmaras. Aonorte da área de cultivo há imensas capas de areia,muitas das quais eram habitadas antes da inundaçãode 1946, sendo que o mesmo tipo de formaçãoocorre ao norte do Wadi Halfa. Este tipo deformação constitui uma espécie de “ilha” de areiano meio das áreas de cultivo entre Debeira eAskheit. Ao sul destas ilhas estava localizada a vilade Fadrus. A parte norte da ilha, chamada deKomangana, é coberta por uma areia profunda,levemente misturada com silt. Mais ao sul ocascalho predomina formando também um estratoprofundo. Em um topo de cascalho mais duro estálocalizado um grande cemitério do Novo Império, osítio 185 foco de nossas análises.

A fim de possibilitar uma análise mais detalha-da tanto dos sítios, mas principalmente entre ossítios estudados, foram estabelecidas fases deocupação para os cemitérios de Qustul, Adindan,Serra e Faras. O principal problema em se tentardefinir uma cronologia para as tumbas com as quais

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estamos trabalhando diz respeito principalmente àreutilização das covas de enterramento em diferen-tes períodos de tempo. Como apontou Williams(1975), embora a prática de enterramentosindividuais não fosse desconhecida, este tipo deenterramento não era usual entre egípcios e núbiosdurante o Novo Império. Em geral as covasescavadas inicialmente eram aprofundadas a fim dereceberem novas câmaras, que eram posicionadasseja nas extremidades da câmara principal seja emsuas laterais, o que possibilitava que novosenterramentos fossem realizados. A fim de solucionareste problema dois fatores foram considerados. Emprimeiro lugar foi analisada a evolução estratigráficade cada uma das tumbas a partir dos aspectosdeposicionais e pós deposicionais. Tais aspectos serelacionam principalmente com as modificações edistúrbios ocorridos nos cemitérios e nas tumbas apartir do momento de sua construção. Em segundolugar foram consideradas as diferenças e similarida-des estilísticas relativas ao equipamento funerárioproveniente de cada um dos enterramentos. Comisso pudemos definir cinco diferentes fases deocupação para as tumbas estudadas. As fases aquiestipuladas se baseiam não só na cronologiaaplicada por Williams (1992) aos cemitériosescavados pelo Instituto Oriental, mas também àcronologia aplicada por Säve-Söderbergh (1990)aos sítios da SJE e às diferenças estratigráficas epós deposicionais. A chamada Fase I cobre operíodo entre o início da 18a dinastia até o início doreinado de Hatshepesut (1550-1479 a.C.). Esteperíodo é chamado por Nordstrom (1972) deperíodo Pré Hatshepesut. Já a segunda fase deocupação, Fase II, abrange os reinados deHatshepesut e Tutmósis III (1479-1427 a.C.). Afase seguinte, Fase III, abriga os reinados deAmenófis II e Tutmósis IV (1427-1391 a.C.). NaFase IV estão incluídos o reinado de Amenófis III eo período amarniano (1391-1323 a.C.). Por fimtemos a Fase V que vai do final do períodoamarniano até o final da 18a dinastia e início da 19a

dinastia (1323-1300 a.C.).Além da definição das fases de ocupação

para os cemitérios núbios aqui analisados, foinecessário padronizar a nomenclatura utilizada porambas as equipes de escavação para a descriçãoe catalogação dos objetos, principalmente no quese refere aos objetos cerâmicos. Os objetosdescobertos nas tumbas foram assim reduzidos aonze categorias; ânforas, garrafas alongadas,

jarros, jarros de estocagem, jarros carenados,jarros de vinho, suporte, tigela, objetos importa-dos, objetos de metal e, por fim, objetos depedra. Para cada fase de ocupação foi confeccio-nada uma matriz de correlação (Pellini 2005). Osresultados da correlação entre estas categoriasnos mostram, por exemplo, que as ânforas estãointimamente relacionadas aos jarros de vinho eaos objetos importados independentemente dafase a ser analisada. Durante a Fase IV surgetambém uma associação entre as ânforas e osjarros carenados, que perdura até a fase V. Oíndice de associações das ânforas na Fase I e naFase II é idêntico, sendo que aumenta progressi-vamente nas Fases III, IV e V, o que significadizer que as ânforas passam a ter um maiornúmero de objetos correlacionados a ela. No casodos jarros de vinho o que vemos é que o índice decorrelação se mantém quase inalterado em todasas fases de ocupação, estando sempre associadosàs ânforas, objetos importados e, nas Fases III,IV e V, também aos jarros de estocagem. Já emrelação aos jarros de estocagem, não se observanenhuma associação destes objetos com quais-quer outros nas Fases I e II, sendo que nas fasesseguintes passam a estar associados aos objetosimportados e aos jarros de vinho. No que serefere aos objetos de metal, eles aparecemassociados aos objetos de pedra na Fase I e aosobjetos importados e novamente os objetos depedra na Fase V.

Se passarmos a analisar a questão quantitativae sua relação com as fases de ocupação, percebe-remos que há um padrão de deposição dos objetosnas tumbas. Como pudemos observar em nossatese de doutoramento, temos um pico na quantida-de de objetos na Fase II e outro na Fase IV, sendoque tanto as tigelas quanto os jarros comunsapresentam o mesmo tipo de curva de regressão.Jarros de vinho, ânforas e suportes, apresentamnão somente o mesmo tipo de curva de regressão,mas também uma magnitude muito semelhante, oque ressalta mais uma vez a grande correlaçãoentre estes itens. No caso dos demais objetos,percebe-se uma pequena tendência de aumento naFase IV, mas não tão evidente como no caso dasânforas.

Quando passamos a analisar a questãorelativa à matéria prima utilizada para a confecçãodos objetos cerâmicos pudemos observar oabsoluto predomínio, cerca de 85% de todo o

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material, das argilas aluviais, representadas pelafábrica1 Nilo B/C. Apenas 15% dos objetosidentificados foram confeccionados com argilacalcária.

Como ressaltou Bourriau (1998: 5), já existeum certo consenso, pelo menos para o períodocompreendido entre o Antigo Império e SegundoPeríodo Intermediário (2920-1550 a.C.), que Altoe Baixo Egito seguiam diferentes tradições ceramistas,principalmente no que se refere à utilização dasargilas calcárias. Vasilhames confeccionados com afábrica MC eram feitos no Baixo Egito, enquantoos objetos confeccionados com as fábricas MA2,MA3 e MB eram preferencialmente produzidos noAlto Egito, na região de Tebas. Todas estasfábricas eram utilizadas, de maneira geral, paravasos de estocagem. Ainda segundo a autora, sepudermos identificar os tipos de fábricas presentesno material cerâmico, poderemos, por inferência,postular o local de origem dos vasilhames. Estasinformações podem ser utilizadas não só pararefinar as datações da cerâmica egípcia, particular-mente do Novo Império, como também paramelhorar nosso conhecimento sobre os contatosregionais praticados naquela época (Nicholson eBourriau 1992).

É nossa opinião que, pelo menos aparente-mente e no caso específico dos sítios da Núbia comos quais estamos trabalhando, a presença deobjetos confeccionados com argila calcária poderepresentar um certo índice de status, ou pelo menos,algum tipo de conexão do sepultado com a regiãodo Delta, tenha sido ela feita na forma de trocascomerciais ou não. Como salientaram Bourriau(1997) e Williams (1992), as argilas calcárias eramencontradas geralmente na forma de rochas, o quesignifica que a extração e manuseio deste tipo deargila requeriam um certo grau de especialização.Sendo assim, como apontaram recentementeGreenough, Mallory-Greenough e Owen (1998), asargilas calcárias podem ter sido consideradas maisvaliosas do que a argila aluvial comum, não só peladificuldade de obtenção, mas por algumas de suascaracterísticas como alta resistência a choquetérmico e baixa permeabilidade à água.

IV. Um novo modelo de superfície de custo

Com este quadro inicial em mãos foi possíveldelinear as bases das análises de custo de superfíciea fim de modelar a circulação de produtos na áreaestudada.

Como afirmou Castro (1993), os atuaismodelos de análise de custo de superfície tentamimpor uma geometria cartesiana, abstrata eatemporal sobre uma realidade que é fundamental-mente reflexiva, subjetiva e contingente. O espaçonestes casos é visto como uma entidade puramentefísica, separada do tempo e expressa como umvalor absoluto. Sabemos que o espaço não é narealidade um conceito cartesiano neutro, mas ésocialmente construído. Sendo assim se faznecessário mapear, nas análises de superfície decusto, o meio ambiente sócio-natural, a fim derepresentá-lo em uma perspectiva da ecologia doespaço social, que foi definida por McGlade(1993) como ecodinâmica humana. Dentro destaperspectiva, as análises de superfície de custoincorporam não somente fatores físicos comodeclividade, elevação, tipos de solo, vegetação,mas também fatores sócio-culturais. Partindo destepressuposto, em nossas análises de custo desuperfície, custo foi baseado em dois gruposdiferenciados de parâmetros: fatores físicos efatores sócio-culturais, que preferimos denominarde fatores contextuais.

No primeiro grupo, o dos fatores físicos, estãocolocadas características como topografia, relevo,formação geológica e paleo-geológica, localizaçãode fontes de matéria prima e quantidade de terrasaráveis disponíveis. Em sua maioria estes dadosforam carregados no ArcGis 9.0 através do móduloArcGisServer. Ao todo foram utilizados setediferentes mapas de dados para a confecção do rasterde custo físico: foto do satélite MODIS de agosto de2003, fornecida pela NASA; mapas topográficosnas escalas 1:250.000 e 1:500.000 da EgyptSurvey; mapa da cobertura vegetal; mapa geológi-co; mapa com a localização das principais fontes dematéria prima; um mapa da rede hidrográfica. Emseguida reclassificamos cada um dos mapas dedados sob uma mesma escala para que fossepossível criar um raster de custo físico. Todos osmapas foram por fim reunidos em um único rastercom o auxílio do módulo Spatial Analyst.

Para o segundo grupo foi considerada umasérie de dados históricos. Fatores gerais de

(1) O termo fábrica, como definido por Nordström (1972),se refere ao conjunto de características tecnológicas (tipode argila, tempero e queima) de um determinado objetocerâmico.

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planificação como, por exemplo, a existência depequenos agrupamentos de casas ao redor deoficinas e locais de trabalho (Kemp 1972), oposicionamento de palácios e templos em relação àarquitetura urbana (O´Connor 1989), dados comoa quantidade média de vilas existentes em torno decada cidade, a quantidade de consumo de grão e adensidade demográfica aproximada (Hassan 1990),bem como o padrão de assentamento egípcio enúbio (O´Connor 1990), também foram considera-dos. Tais dados foram tabulados e reunidos em umbanco de dados que foi utilizado para a criação dequatro diferentes mapas de dados: um mapa com alocalização dos templos, centros administrativos evilas da Núbia; um mapa com a planificação urbanade alguns destes templos e vilas; mapas de densida-de demográfica estimada e consumo de calorias.Estes quatro mapas de dados foram somadosdando origem ao raster de custo contextual.

O passo seguinte foi reunir o raster de custofísico e o raster de custo contextual em um rasterfinal que representasse o custo geral de superfíciedentro da área estudada. Para tanto, mais uma vezrecorremos ao módulo Spatial Analyst a fim desomar os dois rasters. O resultado final foi umraster de custo contextual que reunia informaçõesfísicas e sócio-culturais da área de estudo.

IVa. Mapas de circulação

Com a criação do raster de custo contextual,passamos à confecção dos mapas de distribuição dosobjetos arqueológicos escavados nas tumbas. Paracada objeto em cada fase de ocupação foi confeccio-nado um mapa de distribuição a partir do móduloGeostatistical Analyst do ArcGis 9.0. Para tanto,cada objeto arqueológico dentro da área de estudo foiplotado a partir de sua coordenada real e mapas detendência foram gerados. Para a base de interpolação,foi utilizado o método de Inverse Distance Weightedou IDW. Em seguida os mapas de distribuição foramreclassificados tendo em mente a idéia de que ospontos de concentração de material arqueológicorepresentam áreas onde há um custo de superfíciemenor. Por fim cada mapa de distribuição foirecalculado em função do raster de custo contextual.O resultado final é uma série de mapas, que denomi-namos mapas de circulação, que nos mostra comocada um dos objetos analisados circula dentro da áreaestudada. O esquema abaixo resume os processos deconfecção dos mapas de circulação.

Em primeiro lugar foi confeccionado um mapade custo de superfície baseado em fatores físicos esócio-cultuais que denominamos mapa de custocontextual. Em seguida mapas de distribuição foramproduzidos a partir da plotagem de cada um dosobjetos identificados nas escavações. Tais mapasde distribuição foram reclassificados tendo emmente que áreas de adensamento de materialrepresentam áreas onde há uma maior circulaçãode objetos. Por fim os mapas de distribuição foramrecalculados em função do mapa de custo desuperfície contextual.

Nos mapas de circulação, as áreas em brancorepresentam áreas onde há pouca ou nenhumacirculação de produtos, ou seja não há muitasinterações presentes.2 Já as áreas que apresentamuma gradação entre tons de preto, representamáreas onde a circulação dos objetos é intensa,sendo que quanto maior a quantidade de tonspresentes maior é a intensidade de circulação, ouseja maior o número de interações. Quanto maior aárea coberta por tons de preto maior será afreqüência de interação e maior será a intensidade

(2) Por motivos relacionados à publicação, os mapas decirculação foram convertidos para tons monocromáticos.Uma versão colorida dos mapas de circulação pode serencontrada em minha Tese de Doutorado (Pellini 2005).

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de circulação dos produtos, resultado de uma sériede trocas sucessivas entre um ponto e outro. Ospontos pretos isolados representam áreas onde acirculação é mais pontual. Nestes casos a circula-ção é focada e direcionada a um ponto especifico.

Limitaremos nossa análise às Fases I, II e V,pois é nossa opinião que estas são as mais repre-sentativas do ponto de vista da análise. Acredita-mos que seria redundante trabalhar também com asFases III e IV, pois, como vimos em nossa tese dedoutoramento (Pellini 2005), os índices de correla-ção entre os objetos nestas fases são semelhantes eo contexto é o mesmo, ou seja, estas fasesrepresentam momentos de queda na quantidadegeral e relativa de bens imobilizados nas tumbas,sendo assim é preferível trabalhar com a Fase V,pois acreditamos que esta melhor representa estemomento de diminuição de bens nos cemitérios.Temos, desta maneira, a Fase I representando ummomento de ascendência na quantidade de bensnas tumbas, a Fase II como o pico quantitativo e aFase V como o momento em que os bens nãoestão mais presentes em grande quantidade.

Começando pela análise dos mapas decirculação dos jarros e tigelas, itens consideradosde uso doméstico, veremos que na Fase I, início daocupação dos cemitérios por egípcios e núbios“egcipcianizados”, os vasilhames circulam dentro deuma área ainda pequena. A diferença entre as áreasem branco (áreas com ausência de circulação) eáreas com gradações de tons de preto (áreas comcirculação) é quase equivalente. No caso da Fase I,embora exista circulação destes objetos, ela não éintensa e abrangente, estando confinada a poucoslaços de interação. Já na Fase II, o que podemosperceber é a grande difusão da área de circulação.Neste período temos não só a cristalização dapolítica egípcia para a Núbia como também umamaior quantidade de assentamentos na área. Deacordo com as análises de rede que realizamos, éneste período que a rede de fluxo de produtosatinge sua forma mais complexa. Neste momento,tanto os jarros quanto as tigelas estão circulandointensamente por toda a área, o que significa dizerque possuem um maior número de laços deinteração. A ausência de tons de banco é um dosindicativos de que estes objetos estão circulandopor toda parte. Já na Fase V, período que coincidecom o momento em que estes cemitérios já nãoestão sendo mais utilizados, jarros e tigelas passama apresentar uma circulação diferenciada. Os

jarros perdem popularidade e, embora aindacirculem, estão restritos a uma área menor.Enquanto isso as tigelas continuam, mesmo que demaneira mais reduzida, a circular com certaintensidade.

No caso dos objetos intimamente relacionadosà importação, como é o caso dos jarros de vinho edas ânforas, veremos em primeiro lugar que, assimcomo acontece para jarros e tigelas, há uma maiorcirculação dos objetos importados durante a FaseII. A diferença está na intensidade da circulação.Enquanto jarros e tigelas aparecem circulando portoda a área, os objetos importados, jarros de vinhoe ânforas, aparecem com uma distribuição bemmais pontual. Os jarros de vinho, diferente do queacontece com as ânforas, mantêm uma certa áreade circulação ao redor de um ponto de grandeintensidade. No caso de outros objetos importa-dos, objetos cerâmicos em geral, estes deixam decircular no final da Fase II, após apresentarem umaestrutura de circulação quase idêntica à dasânforas. É de se imaginar que a importação deânforas viesse acompanhada de outros itensproduzidos fora da Núbia e que o decréscimo dasimportações afetasse todos os produtos que eramfruto deste tipo de comércio.

Uma circulação bem pontual ocorre tambémno caso dos objetos de metal e de pedra. No casodos metais, que sempre foram monopólio de estadodurante a história egípcia e que funcionavam comounidade de valor, não há uma variação muitogrande entre as fases estudadas, apenas a freqüên-cia e a intensidade da circulação é que variam umpouco entre a Fase II e V, mas a estrutura geralpermanece. No que se refere aos objetos de pedra,é interessante notar que sua circulação na Fase I seapresenta bem pontual, na Fase II difusa mas semintensidade e na Fase V estrita mas com muitaintensidade. Esta pequena modificação, não naestrutura de circulação, mas no sistema de acúmulo,pode ser resultado de uma maior atividade dasminas de arenito e alabastro que se localizam pertodos sítios, na segunda metade da 18a dinastia(Nicholson 2000).

Tanto os jarros carenados quanto asgarrafas possuem uma estrutura de circulaçãosimilar. Ambos os itens apresentam uma circula-ção relativamente abrangente na Fase I, sendoque os jarros carenados mostram uma maiorintensidade. Já na Fase II, os dois produtospassam a circular em uma área maior, com mais

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abrangência e de maneira mais intensa. Na FaseV, embora ambos percam intensidade e abrangência,continuam circulando e mantendo a mesmaestrutura de interação.

Mudando um pouco nosso foco de atençãodos objetos, para as fábricas cerâmicas, veremosmais claramente as estruturas de circulaçãoexistentes na área analisada. As fábricas do tipo I,utilizadas normalmente para a confecção deobjetos cerâmicos de uso doméstico, eramconstituídas de argilas aluviais, de fácil obtenção.Estas fábricas eram produzidas localmente. Seobservarmos o mapa de circulação destasfábricas, veremos que elas circulam tanto na FaseI quanto na fase II, por toda a área e combastante intensidade, ou seja, ela se movimentampor todo o sistema. Comparando estes mapascom os mapas confeccionados paras as fábricasdo tipo II e III, que são geralmente associadas àsfábricas de uso mais restrito e de obtenção nãotão fácil, podemos observar que apenas a fábricatipo II, na Fase II, é que apresenta uma circulaçãoum pouco maior, em todos os outros casos acirculação é bem restrita e pontual. No caso dasfábricas do tipo IV, associadas aos objetoscerâmicos importados, vemos que emboracirculem na Fase I, circulam com muito poucaintensidade. Já na Fase II aumenta um pouco aintensidade de circulação mas não a abrangência.Por fim, na Fase V, este tipo de fábrica passa anão mais figurar no sistema de circulação. Nestecaso as implicações são claras. Ao que parece,parte dos objetos que eram importados e confec-cionados com este tipo de fábrica passa a serconfeccionado com argilas locais.

Conclusão

Durante o Segundo Período Intermediário, agrande confluência cultural entre os povos doGrupo C, kushitas e egípcios, resulta praticamenteno desaparecimento das antigas culturas nativas ena assimilação do modo de vida egípcio. Este fatoé bem evidenciado na cerâmica, que deixa deapresentar formas tradicionais locais e passa aapresentar, tanto na forma quanto na decoração,características egípcias. Este fenômeno seestende também para as práticas funerárias aoponto de, como afirma Williams (1992), ser muitodifícil distinguir um enterramento núbio e um

enterramento egípcio durante o Novo Império.Então nos perguntamos como diferenciar umenterramento egípcio de um enterramento núbio?Para Save-Soderbergh (1990), a resposta ésimples. Deve-se procurar não o que estápresente no mobiliário funerário, mas o que estáfaltando. Tanto nos sítios de Qustul, Adindan eparte de Serra, como em geral nos cemitériosescavados pela SJE, pudemos ver através daanálise estatística do material que o que falta nomobiliário funerário são identificações queremetam aos mortos enterrados. Embora todo oconjunto arquitetônico das tumbas assuma umaforma egípcia, embora as características comoposição do corpo, mobiliário funerário, tambémassumam formas egípcias, a falta de objetos comoestelas e ushabitis, que servem para identificar omorto, são um forte indicativo de que estesenterramentos não são de egípcios. De acordocom as crenças religiosas egípcias, seriaimpensável ser enterrado e não ser identificado.Em cemitérios nas proximidades de centrosadministrativos como Soleb e Buhen, são encon-trados enterramentos egípcios com a devidaidentificação dos mortos. O que os cemitérios queanalisamos demonstram é que ali foram enterradosnúbios que assumiram a cultura egípcia, mas nãoassimilaram todo o caráter ideológico de algumaspráticas como a funerária.

No caso da política, com a reconquista daNúbia, surge a questão do verdadeiro papelegípcio na região. Os antigos centros administrati-vos são reconstruídos e novos fortes são instala-dos na área. Mas qual o papel dos egípcios naNúbia: colonização, exploração, reafirmação dadivindade real do governo egípcio, ou uma políticade benefício mútuo? A resposta pode ser encon-trada, pelo menos na fase inicial da 18a dinastia,na grande liberdade política e econômica exercidapelo principado de Teh Khet, localizado entre osdistritos de Debeira e Serra. Segundo Smith(1976), o principado foi deixado sob o controledos príncipes locais, sendo que a maioria do setorburocrático era formada por membros de famíliaslocais. A administração egípcia funcionava em umaesfera mais elevada, principalmente no que serefere à manutenção da ordem local. A nosso ver,a política egípcia para a Núbia incluía umadominação política e territorial forte, mas quevisava um equilíbrio mútuo na área, que geravabenefícios para ambos os lados. Não podemos

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entender a reconquista da Núbia e o papelexercido pelos egípcios baseando-nos apenas emum aspecto ou outro. É na realidade, uma gamaenorme de fatores, políticos, econômicos,ideológicos e religiosos que dirigem as açõesegípcias. Mas como esta política se refletia naestrutura econômica vigente na área?

A eventual liberdade que os governanteslocais possuíam fazia com que as pessoas direta-mente ligadas ao aparelho do estado usufruíssemcertas regalias, como por exemplo, o acesso aprodutos importados do Egito. Como afirmouSave-Soderbergh (1990), a Fase I de ocupaçãode Fadrus, é caracterizada por uma grande egenerosa distribuição de valor, que fazia com quea classe dirigente e parte da classe média tivessemacesso direto a bens de prestígio e status. Estaliberdade e esta riqueza se traduzem em nossomaterial pela grande presença de ânforas, jarrosde vinho e objetos importados e de metal ao longodas Fases I e II de ocupação dos cemitérios.Através de gráficos de regressão confeccionadospor fase de ocupação, após o término da Fase II,ocorre um declínio da riqueza imobilizada nastumbas. Isto é um reflexo direto da políticaegípcia, que durante a segunda metade da 18a

dinastia substitui a antiga classe dirigente local porburocratas egípcios. Este ato resulta na fragmenta-ção e na redução significativa da classe dirigentelocal. Ao mesmo tempo, há uma gradativamudança dos centros administrativos na direçãode Dongola, mais ao sul. Esta mudança do eixode gravidade política mais para o sul leva aoenfraquecimento da economia local dos antigoscentros administrativos, que perdem seu papel deimportância na administração da região. O reflexodesta mudança pode ser observado nos cemitériosque analisamos. Na Fase IV e V de ocupação,não há mais itens importados entre o materialfunerário. Há também neste período um aumentosignificativo dos itens de uso doméstico e deconfecção local, resultado do desaparecimento daantiga classe dirigente e do aumento deenterramentos nestes cemitérios de membros daclasse mais baixa. Ao mesmo tempo, as ânforas naFase III, IV e V passam a se correlacionar comum número maior de objetos. O interessante énotar que as fábricas do tipo III, associadasprincipalmente às ânforas, têm nestas fases umacirculação muito reduzida, como foi evidenciadono mapa de circulação das fábricas do tipo III

para a Fase V. Esta aparente incongruência é umclaro indício de que a maioria das ânforas dasFases IV e V, não são ânforas confeccionadascom fábricas importadas mas sim com fábricaslocais do tipo I.

Com estas mudanças as estruturas decirculação de produtos se alteram. A intensidadeda circulação cai de modo geral. Há uma maiorcirculação de objetos de uso cotidiano e de itensutilitários e a redução quase completa dacirculação de itens de valor, como metais,ânforas, jarros de vinho e objetos importados.Em nossos mapas de circulação estes itens, nasFases I, II e V, sempre aparecem com umacirculação restrita e pontual. Com a mudança docentro administrativo de Farás para Solebdurante o reinado de Tutankamum, a região deFarás, onde se localizam os sítios estudados,passa a sofrer um colapso que resultará pratica-mente no desaparecimento da população daárea. Um dos fatores que apoiam esta idéia é ofato de não encontrarmos sítios do períodoramessida na região de Farás (Williams 1992).

Como vimos nos mapas de circulação, osobjetos de uso cotidiano possuem uma circulaçãomais abrangente e intensa, como pode serobservado no caso dos jarros e tigelas. Ao longode todas as fases analisadas, jarros e tigelassempre apresentaram índices de correlaçãosemelhantes o que é em parte refletido nos mapasde circulação. Neste sentido, não seria difícilimaginar que estes itens fariam parte de um mesmocircuito de distribuição, ficando restritos à área docircuito de distribuição número 3 (Pellini 2005).Este circuito é um circuito mais regional, onde arede de distribuição tende a ficar centradalocalmente. A circulação destes produtos poderiaoperar dentro de um sistema de reciprocidade.Neste caso, a grande quantidade de interações emsérie, típica dos sistemas de reciprocidade, setraduz em uma abrangência espacial sem grandespicos de concentração. Em nossos mapas decirculação o sistema de reciprocidade pode serpercebido onde há o predomínio de áreas commuitas gradações de tons de preto e cinza.

No que se refere aos jarros carenados, jarrosde estocagem e suportes, os mapas de circulaçãosugerem que estes poderiam circular dentro de umsistema de redistribuição. Isto porque nestescasos, ao mesmo tempo em que temos uma certaabrangência espacial, ela se apresenta com

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intensidade focal, ou seja, com picos de concen-tração. A nosso ver, a analogia deste tipo deestrutura com os sistemas de redistribuição éclara, pois poderíamos pensar que os produtossão concentrados em um dado local e distribuídosao redor.

Em relação às ânforas, objetos importados,jarros de vinho, objetos de metal e objetos depedra, embora os mapas de circulação apresentempequenas variações entre a circulação destesobjetos, principalmente em relação às ânforas, ficaclaro que formam um grupo relativamente coeso. Agrande diferença entre eles se dá, a nosso ver, emrelação aos circuitos de distribuição e não aosistema de troca. As análises de correlaçãoefetuadas apontam um índice de correlaçãosemelhante entre os objetos de metal e os objetosde pedra, mas diferente dos índices de correlaçãoobtidos para as ânforas, jarros de vinho e objetosimportados. Como estes objetos apresentam umadistribuição parecida, mas um índice de correlaçãodiferente, a nossa sugestão é que embora partici-passem do mesmo sistema de circulação chegavamà área dos sítios através de circuitos de distribuiçãodiferentes. Os objetos de metal e os objetos depedra possivelmente utilizavam as rotas do deserto,principalmente circuitos 1 e 2 e os demais itensutilizavam as rotas do Nilo. Este tipo de sistema setraduz espacialmente em uma circulação não tãoabrangente e com pontos de concentração bemdirecionados. A diferença entre este sistema e osistema de redistribuição é que a área ao redor dospontos de concentração é muito pequena ouinexistente.

Com os dados obtidos ao longo de todo estetrabalho, temos uma visão mais clara de comooperava o sistema de trocas e de circulação noEgito durante o Novo Império. A nosso ver doissistemas básicos estavam em operação: umsistema que resultava em uma circulação difusa egeneralizada dos bens; e um outro sistema queresultava em uma circulação focada e direcionadados bens. No primeiro sistema circulam preferen-cialmente objetos ordinários e de uso cotidiano. Jáno segundo sistema circulam objetos importados ede luxo. Nas áreas onde se observa a presença deuma circulação difusa, temos um sistema decirculação direta, ou seja, os membros de cadaunidade econômica viajam para outras localidadesa fim de adquirirem os produtos de que necessi-tam, sendo assim, os residentes de cada localida-

de têm de se locomover a inúmeros locais parasatisfazer suas necessidades, o que gera umaumento na distância percorrida e assim umaumento no custo das transações. Em um sistemade distribuição direto, como por exemplo areciprocidade, em um número de pontos deprodução (N), cada produtor teria a necessidadede visitar ou ser visitado por (N - 1) representan-tes de outras localidades para que uma distribui-ção total operasse, com uma conseqüente jornadaexpressa por N (N – 1)/2. Em sistemas como estetemos uma grande quantidade de interações entreindivíduos, sendo assim, os objetos partem doponto de origem e passam de mão em mão entreos indivíduos até chegar a seu destino final. Comouma grande quantidade de pessoas poderia estarenvolvida nestas relações de troca, a manutençãodas forças sociais coesas e as boas relações devizinhança são um dos principais fatores desustentação do sistema. Neste caso, como afirmouJanssen (1994: 135), todos são credores edevedores de muitos outros. Aqui a atuação dacomunidade é vista como uma participação degrande generosidade e reciprocidade. Os indivídu-os que se apresentam neste sistema para trocarsão indivíduos morais.

Já nas áreas onde há uma circulação focal edirecionada os objetos partem da fonte deorigem e seguem diretamente para seu destinosem um grande número de interações. Nestecaso temos provavelmente movimentos deapropriação em direção a um centro e umaposterior distribuição a partir deste centro. Esteé um exemplo de circulação indireta, ondeprodutos e serviços de fora da unidade econômi-ca são adquiridos em algum local central, assimos indivíduos não necessitam viajar a diferenteslugares para obter os produtos que desejam. Emsistemas indiretos como a redistribuição ousistemas de mercado, onde uma localidadefunciona como um local central de distribuição,os habitantes das vilas ao redor terão que viajarsomente uma vez, sendo que a jornada pode serexpressa apenas por (N – 1).

Embora ainda reste muito a se fazer emrelação ao que conhecemos dos sistemas de trocapraticados no Egito Antigo do Novo Império,esperamos que esta pesquisa venha a fornecer umacontribuição, mesmo que pequena, para um melhorentendimento dos processos relativos às trocas debens e serviços na antiguidade egípcia.

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ABSTRACT: In the last years cost surface analysis became part of exchangesystem studies. The basic problem with this GIS methodology is that the principles ofanalysis are based in modern economic theory and in the concept of economicrationality. This kind of analysis doesn’t consider the social aspect of landscape. In myPhD dissertation, I considered a new approach to cost surface analysis based in socialand physical cost raster. This cultural cost surface map was added with archaeologicaldistribution maps. The final result I named as circulation maps.

UNITERMS: Ancient Egypt – GIS – Exchange systems – Trade.

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Recebido para publicação em 7 de março de 2006.