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3 1 - INTRODUÇÃO: A soma da linguagem verbal com a linguagem musical resulta em uma nova linguagem: a linguagem da Canção. Este trabalho é uma análise semiótica da canção “Último pau de arara”, composta por “Venâncio e Corumbá, gravada por Raimundo Fagnerno ano de 1.973, em seu primeiro LP intitulado: Manera Fru Fru Manera”. A metodologia seguida é a da Teoria da Semiótica da Canção, desenvolvida pelo lingüista, músico e professor de Semiótica Luis Tatit (USP), que através da análise da letra (texto lingüístico), utilizando as ferramentas teóricas do “Percurso Gerativo do Sentido”, e da melodia (texto musical), busca evidenciar as relações de interação entre essas duas formas de expressão, objetivando a construção do sentido pleno da canção analisada.

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1 - INTRODUÇÃO:

A soma da linguagem verbal com a linguagem musical resulta em

uma nova linguagem: a linguagem da Canção.

Este trabalho é uma análise semiótica da canção “Último pau de

arara”, composta por “Venâncio e Corumbá”, gravada por “Raimundo

Fagner” no ano de 1.973, em seu primeiro LP intitulado: “Manera Fru Fru

Manera”.

A metodologia seguida é a da Teoria da Semiótica da Canção,

desenvolvida pelo lingüista, músico e professor de Semiótica Luis Tatit

(USP), que através da análise da letra (texto lingüístico), utilizando as

ferramentas teóricas do “Percurso Gerativo do Sentido”, e da melodia (texto

musical), busca evidenciar as relações de interação entre essas duas

formas de expressão, objetivando a construção do sentido pleno da canção

analisada.

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2 – ANÁLISE DA LETRA:

2.1 – Letra:

Último pau-de-arara

A vida aqui só é ruim / Quando não chove no chão

Mas se chover dá de tudo / Fartura tem de porção

Tomara que chova logo / Tomara, meu Deus, tomara

Só deixo o meu Cariri* / No último pau-de-arara**

Só deixo o meu Cariri* / No último pau-de-arara**

Enquanto a minha vaquinha / Tiver o couro e o osso

E puder com o chocalho / Pendurado no pescoço

Eu vou ficando por aqui / Que Deus do céu me ajude

Quem sai da terra natal / Em outros cantos não pára

Só deixo o meu Cariri* / No último pau-de-arara**

Só deixo o meu Cariri* / No último pau-de-arara**

Legenda: Fonte – Wikipedia (www.wikipedia.com.br).

* Cariri: A microrregião do Cariri é uma das microrregiões do estado brasileiro do Ceará

pertencente à mesorregião Sul Cearense.

** Pau-de-arara: Forma de transporte irregular, usado sobretudo na região Nordeste do

Brasil.

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2.2 – Análise da Letra – Nível Discursivo:

Analisando este texto em seu nível discursivo, o mais concreto e

superficial, é possível identificar o tema central, as personagens, e as

categorias de pessoa, tempo e espaço do enunciado.

Logo na primeira leitura desta letra, podemos perceber facilmente,

do primeiro ao último verso, expresso claramente pelo enunciador, sujeito

que assume os valores da narrativa, um desejo muito forte de permanecer

na terra onde nasceu e sua plena convicção de nela ficar até que sua

sobrevivência fique insustentável. A angústia e o sofrimento causado pela

seca ao sertanejo nordestino, é o ponto comum que atua como fio condutor

deste enredo. Também podemos identificar as personagens “eu”, “Deus”,

“Cariri”, “último pau de arara” e “vaquinha”.

Os versos “Tomara, meu Deus, tomara”, “Só deixo o meu Cariri”;

“Enquanto a minha vaquinha”, “Eu vou ficando por aqui / Que Deus do céu

me ajude”, e ainda mais especificamente as palavras grifadas “meu”,

“deixo”, “minha”, “eu vou” e “me”, apresentam o discurso na primeira

pessoa e ao não deixar claro se o enunciador é do sexo masculino ou

feminino, além de confundir-se com o narrador, criando um efeito de

aproximação com o leitor, torna marcante o caráter subjetivo do texto,

expressando e manifestando seus sentimentos, idéias e preferências

pessoais, apresentando-os de maneira universal, independente do gênero

a que pertence.

Explícitos no trecho “A vida aqui só é ruim / Quando não chove no

chão / Mas se chover dá de tudo, fartura tem de porção”, encontramos dois

aspectos diferentes do enunciado:

- O primeiro aspecto diz respeito à marcação de espaço, quando usa

a palavra grifada “aqui”, ligada diretamente ao “Cariri”, descrevendo um

ambiente puramente rural, ressaltando seus aspectos negativos e

positivos.

- O outro aspecto diz respeito à categoria de tempo, que apesar de

inicialmente não descrever uma marcação exata, pois estes versos

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carregam a idéia de que esta situação acontece sempre ou

periodicamente, quando complementados pelos versos “Tomara que chova

logo / Tomara, meu Deus, tomara”, assume o tempo presente, quando o

enunciador enfrenta dificuldades e espera por tempos melhores.

2.3 – Análise da Letra - Nível Narrativo:

Encontramos no Nível Narrativo, os elementos responsáveis pela

construção do esquema narrativo, através das ações realizadas por

sujeitos e das relações entre si.

Nos primeiros quatro versos da letra, “A vida aqui só é ruim /

Quando não chove no chão / Mas se chover dá de tudo / Fartura tem de

porção”, podemos perceber claramente que o sujeito “eu / narrador”,

expressa sua opinião pessoal sobre o lugar onde vive, conhece sua

dinâmica regida pelo frágil equilíbrio que a chuva ou a estiagem pode

causar na sua produtividade e é manipulado por forças da natureza que

fogem inteiramente ao seu controle. Apesar da chuva aparentemente ser o

sujeito que o manipula, o sujeito manipulador é algo maior que isso.

Nos versos, “Tomara que chova logo / Tomara, meu Deus, tomara”,

conseguimos identificar “Deus” como o sujeito manipulador da narrativa,

pois é para ele que o narrador, que não tem poderes para intervir na

natureza, dirige suas súplicas e pede ajuda para que forneça o único e

essencial recurso necessário representado aqui pela chuva, para que a

fartura se torne presente novamente em sua terra.

Nos versos “Só deixo o meu Cariri / No último pau-de-arara”, “Eu vou

ficando por aqui / Que Deus do céu me ajude” e “Quem sai da terra natal /

Em outros cantos não pára”, fica evidente que baseado no conhecimento

que possui sobre o Cariri, sua terra natal, e na fé que deposita em “Deus”,

o narrador julga que para ele, apesar das dificuldades que enfrenta no

momento atual, este ainda é o seu lugar ideal para viver. Também

expressa sua crença de que quem abandona sua terra natal não consegue

se fixar em qualquer outro local e só o abandonará no último momento

possível, quando sua sobrevivência se tornar impossível.

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Além de reafirmar essa idéia, os versos “Enquanto a minha vaquinha

/ Tiver o couro e o osso / E puder com o chocalho / Pendurado no

pescoço”, determinam um limite para o narrador, ligando-o diretamente à

sobrevivência de sua “vaquinha”, tratando-a como um símbolo referencial

de tempo.

Na narrativa desta letra, conseguimos perceber que a manipulação

periódica imposta pelo sujeito manipulador “Deus”, causa um grande

sentimento de angústia ao sujeito manipulado “eu / narrador”, que nada

pode fazer a não ser rezar, submetendo-se à vontade divina e contando

com a esperança de que suas preces sejam atendidas, para que seja

possível a concretização de seu maior desejo que é o de permanecer em

sua terra natal.

2.4 – Análise da Letra - Nível Fundamental:

Neste nível de análise, mais profundo e abstrato, encontramos os

valores que sustentam o texto, que são opostos entre si e indicam sua

positividade ou negatividade. Na letra analisada, podemos perceber que

fundamentalmente, os valores opostos que se apresentam são os de “Vida

VS Morte”, sendo que o valor “Vida” sustenta a positividade e o valor

“Morte” sustenta a negatividade. É importante ressaltar que a passagem

entre a vida e a morte, é um processo no texto que nunca ocorre

repentinamente e que sempre há uma narrativa sobre esse acontecimento.

Este processo, que na narrativa do texto analisado, descreve a

situação atual de nosso narrador que apresenta um sentimento de angústia

causada pela falta de fartura ou “não vida”, temendo pela sua

sobrevivência e caminhando contra a “Morte”, rezando a Deus lhe

proporcione chuva trazendo assim a fartura ou “Vida” de volta, pode ser

visualizado através do “Quadrado Semiótico” e de suas articulações:

+ -

Vida VS Morte

Não vida Não Morte

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3 – TRANSCRIÇÃO MELÓDICA:

Para tornar possível a visualização das interações que ocorrem entre letra

e melodia, será utilizado um diagrama que se apresenta da seguinte forma: O

número total de linhas da tabela corresponde à distância entre a nota mais grave

e a mais aguda encontrada nesta canção e cada linha da tabela corresponde à

distância de meio tom entre as notas musicais.

Parte A

Mi

Dó cho- Si qui ve no

Sol só não

Fá Mi vi é chão ruim do

Dó Si A da a- quan-

Mi

Dó tem Si ver de

Lá por- ção

Sol dá ra

Fá Mi se de tudo tu-

Dó Si mas cho- far-

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Mi

Ré que

Dó cho- meu Si ra va deus

Lá logo ra to- ma-

Sol mara ma-

Fá Mi To-

Ré to-

Dó Si

Parte B

Mi dei-

Dó úl- Si Só xô o meu ti-

Lá ri no mo cari-

Sol pau

Fá Mi rara de a-

Dó Si

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Parte C

Mi

Dó Si

Sol e o tiver o couro os-

Fá Mi Enquanto a minha vaqui- so nha

Dó Si

Mi

Dó Si do pes-

Lá cho- pendura- no co- ço

Sol E puder o ca- com lho

Fá Mi

Dó Si

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Mi

Ré cando

Dó por que deus do céu me ju Si fi- a- de

Lá qui vou

Sol a-

Fá Mi Eu

Dó Si

Mi

Ré ter-

Dó da ra Si Quem sai na- cantos não

Lá tal em outros pa-

Sol ra

Fá Mi

Dó Si

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Parte C’

Mi

Dó Si

Lá couro e o os-

Sol so nha tiver o

Fá Mi Enquanto a mi- vaqui- nha

Dó Si

Mi

Ré do pes-

Dó pendura- no co- Si E puder choca- ço

Lá lho

Sol com o

Fá Mi

Dó Si

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Mi

Ré cando céu me a-

Dó por que deus do ju Si fi- a- de

Lá qui vou

Sol

Fá Mi Eu

Dó Si

Mi

Ré ter-

Dó da ra can- Si Quem sai na- tros tos não

Lá tal em ou- pa-

Sol ra

Fá Mi

Dó Si

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4 – ANÁLISE DA CANÇÃO:

É impossível analisar uma canção sem tê-la ouvido ao menos uma vez. A

construção de seu sentido, as interações entre letra e melodia e as sensações

que despertam podem ser totalmente diferentes, dependendo do intérprete que a

executa. Logo na primeira audição desta canção, é possível sentir a tristeza, a

angústia e tensão crescente do narrador, que ganha vida graças à interpretação

extremamente passional de Raimundo Fagner, que em sua versão, consegue

despertar essas sensações através da intensidade e timbre de sua voz, do

andamento lento, do padrão e percurso melódico adotado.

A forma ou padrão melódico desta alterna as partes A, B, C e C’, da

seguinte maneira: ABB CBB C’BB (Finalizando com a repetição da parte B várias

vezes). Nesta configuração, a parte A, que é utilizada apenas uma vez na

canção, apresenta um panorama que justifica as idéias contidas nas partes C e C’

e também nos coloca pela primeira vez em contato com a idéia contida na parte

B, que é a mais forte desta canção, pois além de evidenciada ao se repetir várias

vezes ao longo da canção, também a finaliza. É interessante ressaltar que esta

finalização, que utiliza repetidas vezes a parte B que diz: “Só deixo o meu Cariri /

No último pau-de-arara”, é um ótimo exemplo de como age a interação entre o

texto musical e o texto lingüístico, já que a repetição do tema musical parece se

encaixar perfeitamente com a letra, servindo para reafirmar a convicção plena do

narrador de continuar resistindo até o fim, até a partida do último pau-de-arara.

A observação da transcrição melódica permite comparar as diferenças

estruturais entre as partes A, B, C e C’. Esta canção, de maneira geral, apresenta

um desenho melódico com ampla tessitura, com grande distância entre as notas

das frases musicais, mais evidentes nas partes A e B, mas também presente nas

partes C e C’. As partes C e C’, com pequenas variações entre si,

especificamente, apresentam um desenho melódico crescente, como degraus de

uma escada, com o início de cada frase em uma altura superior à da frase

anterior, que imprime na canção uma sensação de tensão que vai se tornando

cada vez maior e que encontra sua resolução na parte B.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Ao apresentar de maneira tocante, através de sua interpretação, as

dificuldades de sobrevivência causadas pela estiagem, que historicamente

afligem o povo sertanejo do Nordeste do Brasil, o intérprete consegue dar vida às

personagens e trazer à tona todos os sentimentos explícitos na letra. Esta versão

de Raimundo Fagner da canção “O último pau-de-arara”, é um dos melhores

exemplos de como um intérprete consegue tornar a interação de letra e melodia,

em sua maior ferramenta de expressão artística: um canal perfeito para despertar

emoções.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO:

Sites:

http://www.raimundofagner.com.br, acesso em 24/05/2010, às 15:00 hs. http://pt.wikipedia.org/wiki/Microrregi%C3%A3o_do_Cariri, acesso em 24/05/2010, às 16:30 hs. http://pt.wikipedia.org/wiki/Pau_de_arara, acesso em 24/05/2010, às 16:37 hs.