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verbojuridico.net Contencioso Administrativo Português - 1 O TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO E A IV REVISÃO CONSTITUCIONAL * Contribuição para uma apreciação crítica do Contencioso Administrativo Português * Dr. J. E. Gonçalves Lopes Juiz Desembargador do Tribunal Central Administrativo

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Contencioso Administrativo Português - 1

O TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO

E A IV REVISÃO CONSTITUCIONAL

*

Contribuição para uma apreciação crítica do

Contencioso Administrativo Português

*

Dr. J. E. Gonçalves Lopes Juiz Desembargador do

Tribunal Central Administrativo

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Contencioso Administrativo Português - 2

O Tribunal Central Administrativo

e a IV Revisão Constitucional

*

Contribuição para uma apreciação crítica do

Contencioso Administrativo Português

J.E.Gonçalves Lopes

juiz desembargador do

Tribunal Central Administrativo

1. Um novo tribunal acaba de chegar à jurisdição administrativa portuguesa. Vem enroupado de um único objectivo, o de prevenção (possível) da situação de ruptura vivida na Secção de Contencioso Administrativo e no respectivo pleno do Supremo Tribunal Administrativo 1; atribui-se-lhe a missão urgentíssima de salvar o Supremo Tribunal Administrativo da situação desonrosa em que se encontra, retirando-se-lhe cerca de 40% do trabalho 2. Para além da transferência pura e simples de competências do Supremo Tribunal Administrativo para o Tribunal Central Administrativo, o desejo de descongestionar vai ao ponto de impor a transição para o Tribunal Central Administrativo dos recursos contenciosos directamente interpostos para a Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo para cujo conhecimento passe aquele a ser competente, desde que entrados no Supremo Tribunal Administrativo nos três meses imediatamente anteriores à data do inicio do funcionamento do Tribunal Central Administrativo (art.º 119.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção do Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro). Contudo, ainda antes de começar a funcionar, o Tribunal Central Administrativo já vem com o labéu de mais não ser que uma “solução de ‘meias tintas’ - nem lógica, nem eficaz -, incapaz

1 «Proposta de lei n.º 49/VII», in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1.ª Sessão

Legislativa (1995-1996), II Série-A, n.º 51, de 22.6.96, «Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias sobre a Proposta de lei n.º 49/VII», in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1995-1996), II Série-A, n.º 54, de 3.7.96, «Proposta de lei n.º 53/VII», in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1995-1996), II Série-A, n.º 55, de 6.7.96.

2 Discurso de introdução ao debate do Sr Ministro da Justiça (José Vera jardim) da «Proposta de lei n.º 53/VII», na Reunião Plenária da Assembleia da República de 10.7.96, in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1995-1996), I Série, n.º 94, de 11.7.96.

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de resolver quer os problemas de congestionamento do actual volume de serviço do STA, [...] quer de dar uma resposta cabal aos litígios em matéria de função pública [...]” 3. E, apesar de novo, o Tribunal Central Administrativo envelhece precoce e irremediavelmente com a entrada em vigor da IV Revisão Constitucional (1997) 4.

3 Vasco Pereira da Silva, «Breve crónica de uma reforma anunciada», in Cadernos da Justiça Administrativa,

n.º 1, Janeiro/Fevereiro de 1997, pág. 8. Vide igualmente as reservas de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, «Ainda a Reforma do Contencioso Administrativo», in Cadernos da Justiça Administrativa, n.º 2, Março/Abril de 1997.

4 A IV Revisão Constitucional (1997) consubstancia-se na Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro, tendo entrado em vigor em 5.10.97. Trabalhos preparatórios: a)-Projectos de Revisão Constitucional «Projecto de revisão constitucional n.º 1/VII (apresentado pelo PP)», in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1..ª Sessão Legislativa (1995-1996), II-A Série, Suplemento ao n.º 21, de 1.2.96, e (Aditamento) Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1..ª Sessão Legislativa (1995-1996), II-A Série, 2.º Suplemento ao n.º 27, de 7.3.96, «Projecto de revisão constitucional n.º 2/VII (apresentado por Deputados do PSD)», «Projecto de revisão constitucional n.º 3/VII (apresentado pelo PS)», «Projecto de revisão constitucional n.º 4/VII (apresentado pelo PCP)», «Projecto de revisão constitucional n.º 5/VII (apresentado pelo PSD)», «Projecto de revisão constitucional n.º 6/VII (apresentado por Deputados do PSD)», «Projecto de revisão constitucional n.º 7/VII (apresentado por Deputados do PS)», «Projecto de revisão constitucional n.º 8/VII (apresentado por Deputados do PS)», «Projecto de revisão constitucional n.º 9/VII (apresentado por Deputados do PSD)», «Projecto de revisão constitucional n.º 10/VII (apresentado por Os verdes)», «Projecto de revisão constitucional n.º 11/VII (apresentado por um Deputado do PCP)», todos in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1..ª Sessão Legislativa (1995-1996), II-A Série, Suplemento ao n.º 27, de 7.3.97; b)-Reuniões da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional Reunião de 7.5.96, in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1..ª Sessão Legislativa (1995-1996) , II Série, n.º 1, RC, de 8.5.96, Reunião de 13.5.96, in n.º 2, RC, de 14.5.96, Reunião de 17.5.96, in n.º 3, RC, de 18.5.96, Reunião de 21.5.96, in n.º 4, RC, de 22.5.96, Reunião de 24.5.96, in n.º 5, RC, de 25.5.96, Reunião de 28.5.96, in n.º 6, RC, de 29.5.96, Reunião de 4.6.96, in n.º 7, RC, de 5.6.96, Reunião de 12.6.96, in n.º 8, RC, de 13.6.96, Reunião de 18.6.96, in n.º 9, RC, de 19.6.96, Reunião de 21.6.96, in n.º 10, RC, de 22.6.96, Reunião de 25.6.96, in n.º 11, RC, de 26.6.96, Reunião de 28.6.96, in n.º 12, RC, de 29.6.96, Reunião de 2.7.96, in n.º 13, RC, de 3.7.96, Reunião de 16.7.96, in n.º 14, RC, de 17.7.96; c)-Debates em reuniões plenárias Reunião plenária de 15.7.97, in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 2..ª Sessão Legislativa (1996-1997), I Série, n.º 94, de 16.7.97, Reunião plenária de 16.7.97, in n.º 95, de 17.7.97, Reunião plenária de 17.7.97, in n.º 96, de 18.7.97, Reunião plenária de 22.7.97, in n.º 99, de 23.7.97, Reunião plenária de 23.7.97, in n.º 100, de 24.7.97, Reunião plenária de 24.7.97, in n.º 101, de 25.7.97, Reunião plenária de 25.7.97, in n.º 102, de 26.7.97, Reunião plenária de 29.7.97, in n.º 103, de 30.7.97, Reunião plenária de 30.7.97, in n.º 104, de 31.7.97. Na Reunião plenária de 3.9.97, in n.º 106, de 4.9.97, foi aprovado em votação final global e por maioria qualificada de dois terços o Decreto de Revisão Constitucional O texto final aprovado constitui o Decreto constitucional n.º 1/97, in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 2..ª Sessão Legislativa (1996-1997), II Série-A, n.º 74, de 6.9.97. Bibliografia:

Jorge Miranda, Ideias para uma revisão constitucional em 1996, Edições Cosmos, Lisboa, 1996, Jorge Miranda, «Introdução», in Constituição da República Portuguesa, Principia, Lisboa, 1997, José Carlos Vieira de Andrade, «As transformações do contencioso administrativo na Terceira República Portuguesa», in Legislação - Cadernos de Ciência de Legislação, INA, n.º 18, Janeiro-Março de 1997, Uma Constituição Moderna para Portugal (A Constituição da República revista em 1997, anotada por Luís Marques Guedes), Prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa, Edição do Grupo Parlamentar do PSD, Lisboa, 1997, Constituição da República Portuguesa, prefácio e anotações por Jorge Lacão, Texto Editora, Lisboa, 1997.

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I-Introdução § 1.º-Intróito 2. Com origem no Gabinete do Ministro da Justiça, encontram-se em consulta de algumas entidades dois anteprojectos, um da Lei Orgânica dos Tribunais Administrativos e Fiscais, outro do Código de Processo Administrativo Contencioso 5. Inicialmente, o prazo da referida consulta tinha o seu termo em 15 de Abril de 1996; contudo, a necessidade de “um consenso tão amplo quanto possível” levou a estender o prazo de consulta por mais três meses e meio, até finais de Julho de 1996, de forma a que o Governo pudesse apresentar à Assembleia da República as propostas de lei correspondentes, nos primeiros meses da sessão legislativa de 1996/1997 6 - para “ter, no início de 1997, uma nova Lei Orgânica e um novo Código de Processo, que são muito necessários” 7. 3. Algo surpreendentemente, com invocação da “situação verdadeiramente dramática em que se encontra o Supremo Tribunal Administrativo”, situação de “ruptura” que “não honra a jurisdição administrativa nem, naturalmente, o Estado português”, sendo certo que “muitos dos processos que se encontram pendentes quer na Comissão quer no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em Estrasburgo, dizem muitas vezes respeito ao contencioso administrativo” 8, iniciou o Governo o processo legislativo que culminou na criação do Tribunal Central Administrativo 9 pela Lei n.º 49/96, de 4 de Setembro 10. Como é óbvio, no início de 1997, continuava a não haver “uma nova Lei Orgânica e um novo Código de Processo”, não obstante serem “muito necessários”. 4. Impõe-se então verificar a dimensão da novidade da criação do Tribunal Central Administrativo, no que se refere ao contencioso administrativo, partindo do princípio de que se está perante uma novidade, tendo como horizonte os referidos anteprojectos, agora decerto remetidos ao esquecimento de alguma gaveta, e como contexto cultural de cidadania as alterações resultantes da IV Revisão Constitucional (1997) .

5 Referência V3.18/12/95. 6 «Exposição de motivos», n.º 4, da Proposta de lei n.º 49/VII, in Diário da Assembleia da República, VII

Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1995-1996), II Série-A, n.º 51, de 22.6.96. 7 Intervenção do Sr Ministro da Justiça (José Vera Jardim) na Reunião Plenária da Assembleia da República de

10.7.96, in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1995-1996), I Série, n.º 94, de 11.7.96.

8 Intervenção do Sr Ministro da Justiça (José Vera Jardim) na Reunião Plenária da Assembleia da República de 10.7.96, in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1995-1996), I Série, n.º 94, de 11.7.96.

9 Com entrada em funcionamento em 15 de Setembro de 1997 - Portaria n.º 398/97, de 18 de Junho. 10 Regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, e pelo Decreto-Lei n.º 114/97, de 12 de

Maio.

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5. A regulamentação específica do contencioso administrativo português encontra-se dividida entre o Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril 11 (organização e funcionamento dos tribunais e estatuto dos juizes 12), o Decreto-Lei n.º 374/84, de 29 de Novembro 13 (diploma complementar do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril), o Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho 14 (lei de processo), a Lei Orgânica do Supremo Tribunal Administrativo 15, o Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo 16, o Código Administrativo, o Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho 17 (execução de sentenças), o Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967 (responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas), a Tabela de Custas 18, o art.º 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 227/77, de 31 de Maio, com apoio subsidiário na Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, no Estatuto dos Magistrados Judiciais, e no Código de Processo Civil 19. 6. Ora, é precisamente aquela regulamentação específica que os diplomas em anteprojecto pretendem substituir na totalidade, numa preferência pelo tratamento unitário e sistemático das matérias relativas ao contencioso administrativo 20. O que só por si não deixa de ser louvável, se bem que aparentemente postergado pela criação do Tribunal Central Administrativo.

11 Rectificado por Declaração publicada no Diário da República, I Série, n.º 150, 2.º Suplemento, de 30.6.84.

Ratificado com alterações pela Lei n.º 4/86, de 21 de Março. A Lei n.º 46/91, de 3 de Agosto, criou os tribunais administrativos dos círculos do Funchal e de Ponta Delgada, tribunais que ainda hoje se encontram por instalar. O quadro de juízes dos tribunais administrativos de círculo foi aumentado pelo Decreto-Lei n.º 28/90, de 24 de Janeiro. O Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, foi também alterado pela Lei n.º 11/93, de 6 de Abril. Cabe referir as alterações consubstanciadas pela Lei n.º 49/96, de 4 de Setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro.

12 No Estatuto dos Juízes cabe a matéria relativa ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Por isso, neste elenco normativo, há ainda a referir o «Regulamento do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais» de 14 de Abril de 1987, publicado no Diário da República, II Série, n.º 104, de 7 de Maio de 1987.

13 Alterado pelo Decreto-Lei n.º 114/97, de 12 de Maio. 14 Rectificado por Declaração publicada no Diário da República, I Série, n.º 200, 2.º Suplemento, de 31.8.85.

Alterado, pela Lei n.º 12/86, de 21 de Maio (ratificação), pelo Decreto-Lei n.º 326/89, de 26 de Setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro.

15 Aprovada pelo Decreto-Lei n.º 40.768, de 8 de Setembro de 1956, e várias vezes alterada. 16 Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 41.234, de 20 de Agosto de 1957, e várias vezes alterado. 17 Rectificado por declaração publicada no Diário da República, I Série, de 8 de Outubro de 1977. 18 Aprovada pelo Decreto-Lei n.º 42.150, de 12 de Fevereiro de 1959. 19 Sobre quais as disposições legais dos diplomas referidos, anteriores à reforma de 1984/85, que se encontram

em vigor vide, Artur Maurício et alii, Contencioso Administrativo, Rei dos Livros, Lisboa, 1997, João Caupers e João Raposo, Contencioso Administrativo Anotado e Comentado, Aequitas, Lisboa, 1994, e Simões Botelho, Contencioso Administrativo, Almedina, Coimbra, 1995.

20 Assim, Freitas do Amaral, «Projecto de Código do Contencioso Administrativo», in Scientia Ivridica, Janeiro-Junho de 1992, Tomo XLI, n.ºs 235/237, pág. 8.

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Não obstante, no relatório relativo às Grandes Opções do Plano para 1998, considera-se um dos objectivos para 1998, a aprovação da nova lei orgânica dos tribunais administrativos e fiscais e do novo regime do contencioso administrativo 21. §2.º-Apontamento histórico A-Antes de “25 de Abril de 1974” 7. Em “25 de Abril de 1974” o contencioso administrativo encontrava-se repartido pelo Supremo Tribunal Administrativo e pelas duas auditorias administrativas, a de Lisboa e a do Porto 22. O Supremo Tribunal Administrativo, funcionava junto da Presidência do Conselho de Ministros, era composto por juizes livremente nomeados pelo Governo 23, e circunscrevia a sua competência contenciosa ao conhecimento dos recursos de actos de ministros e subsecretários de Estado e de órgãos dirigentes dos serviços personalizados do Estado. 8. As auditorias administrativas 24, por sua vez, funcionavam no edifício dos governos civis de Lisboa e do Porto, e cingiam-se ao contencioso da administração local. B-Depois de “25 de Abril de 1974”

21 Relatório sobre as Grandes Opções do Plano para 1998, relativo à «Proposta de Lei n.º 146/VII», in Diário da

Assembleia da República, VII Legislatura, 3..ª, II-A Série, 2.º Suplemento ao n.º 2, de 16.10.97. 22 Sobre a evolução da Administração publica, vide Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2.ª

Edição, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1994, Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, Vol. I, Danúbio, Lisboa, 1982, Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1980.

Sobre a evolução do contencioso administrativo em relação com os direitos dos administrados, do Estado Novo à 3.ª República, vide, Freitas do Amaral, «A evolução do direito administrativo em Portugal nos últimos dez anos», in Contencioso Administrativo, Livraria Cruz, Braga, 1986, Freitas do Amaral, «Direitos Fundamentais dos Administrados» (comunicação apresentada em 17.4.86, nas Jornadas de Direito Constitucional promovidas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), in AAVV, Nos dez anos da Constituição, organização de Jorge Miranda, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, s.d., Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. IV, lições, Lisboa, 1988, Sérvulo Correia, «Direito Administrativo II (Contencioso Administrativo)», in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Volume XXXV, n.º 1,1994, Lex, Sérvulo Correia, Contencioso Administrativo, lições ao 5.º ano jurídico, AAFDL, 1990, Lisboa, Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia, Da Justiça Administrativa em Portugal - Sua origem e evolução, Colecção “Teses de Direito”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 1994.

Especificamente sobre o contencioso administrativo do Estado Novo, vide, Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, revisto e actualizado por Diogo Freitas do Amaral, 2 tomos, Almedina, Coimbra, Rui Machete, «Contencioso Administrativo», in Estudos de Direito Público e Ciência Política, Fundação Oliveira Martins, Centro de Estudos Administrativos, s.l., 1991, págs. 301 e seguintes.

23 Recrutados de entre professores das Faculdades de Direito, magistrados judiciais ou do Ministério Público, ajudantes do procurador-geral da República, directores-gerais, secretários dos governos civis, auditores administrativos, doutores em Direito e advogados - cfr art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 40.768, de 8 de Setembro de 1956.

24 Compostas por auditores administrativos recrutados de entre funcionários de qualquer classe da 1.ª categoria do quadro geral administrativo dos serviços externos do Ministério do Interior, aprovados em concurso de habilitação por provas públicas, escritas e orais - cfr art.º 800.º do Código Administrativo.

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9. No período “post 1974” há importantes momentos para a configuração actual do contencioso administrativo português. Desde logo, a Lei constitucional revolucionária n.º 4/74, de 14 de Maio, ao determinar a exclusividade do exercício das funções jurisdicionais por “tribunais integrados no Poder Judicial” (art.º 18.º). Em execução de tal desiderato, o Decreto n.º 250/74, de 12 de Junho, integrou o Supremo Tribunal Administrativo e as auditorias administrativas no Ministério da Justiça 25 26. Por outro lado, o Decreto-Lei n.º 256-A/77, de 17 de Junho, impôs a fundamentação obrigatória dos actos administrativos, e consagrou as teses defendidas por Freitas de Amaral no tocante à execução das sentenças dos tribunais administrativos 27. Foi também alargada a competência contenciosa do Supremo Tribunal Administrativo à sindicabilidade dos actos em matéria administrativa de alguns órgãos superiores do Estado 28 - presidente da Assembleia da República 29, Conselho Superior do Ministério Público 30, Governador e Secretários-adjuntos de Macau 31.

25 É curiosa esta mudança do Supremo Tribunal Administrativo e das auditorias administrativas da Presidência

do Conselho de Ministros para o Ministério da Justiça, limitada a uma movimentação no interior da Administração pública. A menos que se entenda que, na altura, o Ministério da Justiça integrava o “Poder Judicial”, o que era dado pela circunstância de os juizes constituírem um corpo específico de funcionários daquele ministério - parece ser aquele o entendimento de Sérvulo Correia, «Direito Administrativo II (Contencioso Administrativo)», in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Volume XXXV, n.º 1,1994, Lex, pág.156. É certo que logo em 1976 a Constituição da República Portuguesa, ao pulverizar os tribunais em múltiplos órgãos de soberania, acabou com qualquer concepção de “Poder Judicial”. De qualquer forma, é recorrente o discurso sobre o “Poder Judicial”. A ambiguidade daí resultante, com o desfasamento entre a Constituição da República Portuguesa e as concepções ideológicas subjacentes às diversas políticas para a justiça, acarretam um princípio de desagregação, a culminar na degradação progressiva do sistema de justiça. A reforma em análise é um bom exemplo desta degradação: em vez da criação de um sistema de justiça administrativa para o Século XXI, propõe-se meramente inverter a tendência caótica do Supremo Tribunal Administrativo.

26 No que toca à jurisdição fiscal, a promessa “revoluçionária” de 1974 apenas agora é parcialmente cumprida. Com efeito, o Tribunal Tributário de 2.ª instância, transformado na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo, em 15 de Setembro de 1997, sai da esfera do Ministério das Finanças e passa para a esfera do Ministério da Justiça, em sede de gestão administrativa (art.º 105.º do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção do Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro), ao passo que os restantes tribunais fiscais continuam confinados às repartições de finanças, o que o Sr Ministro da Justiça (José Vera Jardim) considera como uma situação atentatória do prestígio da magistratura dos tribunais fiscais - intervenção na Reunião Plenária da Assembleia da República de 10.7.96, in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1995-1996), I Série, n.º 94, de 11.7.96.

27 Freitas do Amaral, A Execução das Sentenças dos Tribunais Administrativos, Colecção Jurídica Portuguesa, n.º 39, Edições Ática, Lisboa, 1967. A 2.ª edição foi publicada em Julho de 1997, pela Livraria Almedina.

28 Sobre actos materialmente administrativos praticados por órgãos políticos, parlamentares e jurisdicionais, e por entes privados, vide, Mário Esteves de Oliveira, «Anotação», in Direito Administrativo - Revista de actualidade e Crítica, Ano 2, n.º 10, Novembro/Dezembro, 1981.

29 Art.º 3.º, n.º 4, da Lei n.º 32/77, de 25 de Maio. 30 Art.º 30.º da Lei n.º 39/78. De 5 de Julho. 31 Art.º 18.º, n.ºs 4 e 5, da Lei n.º 1/76, de 17 de Fevereiro.

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C-Reforma de 1984/85 10.Em 1984 dá-se a única grande reforma do contencioso administrativo32. Se bem que seja inegável um decisivo avanço no sentido da plena jurisdicionalização e independência dos tribunais administrativos 33, a verdade é que tal reforma teve como principal motivo próximo o descongestionamento do enorme número de processos em atraso, através do que veio a redundar numa mera reorganização de competências de uns tribunais para outros, analisada em sucessivas transferências de sobrecarga 34. Já nessa altura Freitas do Amaral entendia ter sido mais avisado criar um Tribunal Administrativo Central, de 2.ª instância, entre o Supremo Tribunal Administrativo e os tribunais administrativos de círculo, a receber competências de ambos e também com competência exclusiva para as questões relativas ao funcionalismo público 35. D-Projecto de Código do Contencioso Administrativo 11.Mais tarde, em 1990, Freitas do Amaral apresentou um Projecto de Código do Contencioso Administrativo, visando não só “consolidar e alargar as garantias jurisdicionais dos particulares que são a pedra de toque de um Estado de Direito e de um regime democrático”, mas também reunir num texto único as matérias relativas ao contencioso e pulverizadas por muitos diplomas legais 36. O art.º 1.º, n.º 1, do Projecto em causa, define o contencioso administrativo como “as questões litigiosas que envolvam duas ou mais pessoas colectivas públicas ou uma pessoa colectiva

32 É interessante a consulta dos trabalhos preparatórios; vide Proposta de Lei n.º 21/III, in Diário da

Assembleia da República, III Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1983-1984), II Série, n.º 18, de 9.7.83, sessão plenária in Diário da Assembleia da República, III Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1983-1984), I Série, n.º 23, de 16.7.83, Decreto n.º 21/III, in Diário da Assembleia da República, III Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1983-1984), II Série, n.º 26, de 4.8.83, e Lei n.º 29/83, de 8 de Setembro, a lei de autorização legislativo, no uso da qual, foi emitido o Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril. Sobre a inadmissibilidade de legislar sobre o Estatuto dos Juízes e sobre o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais mediante autorizações legislativas, vide o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 472/95, in Diário da República, I-A, n.º 206/95, de 6.9.95. É igualmente de grande importância a consulta de Rui Machete (na altura Ministro da Justiça e responsável pela reforma de 1984), «O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais», in Estudos de Direito Público e Ciência Política, Fundação Oliveira Martins, Centro de Estudos Administrativos, s.l., 1991, págs. 387 e seguintes. Há algum interesse num texto anterior, António José Simões de Oliveira, «Reforma dos Tribunais Administrativos», in Direito Administrativo - Revista de actualidade e Crítica, Ano 1, n.º 1, Janeiro/Fevereiro, 1980, em que se fala de um “Tribunal Central Administrativo”.

33 Avanço de que se encontram excluídos os tribunais fiscais de 1.ª instância, enfeudados ainda hoje à Administração fiscal, tanto a nível de instalações, como a nível de pessoal de apoio.

34 Cfr. Freitas do Amaral, «A evolução do direito administrativo em Portugal nos últimos dez anos», in Contencioso Administrativo, Livraria Cruz, Braga, 1986, págs. 17 e 18.

35 Freitas do Amaral, «A evolução do direito administrativo em Portugal nos últimos dez anos», in Contencioso Administrativo, Livraria Cruz, Braga, 1986, pág. 18.

36 Freitas do Amaral, «Projecto de Código do Contencioso Administrativo», in Scientia Ivridica, Janeiro-Junho de 1992, Tomo XLI, n.ºs 235/237.

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pública e um particular, seja ele indivíduo ou pessoa colectiva privada, que por lei não estejam submetidas à jurisdição de outros tribunais”, e estabelece a sua especificidade pela existência de tribunais administrativos e de uma regulamentação própria. Como se vê, pretende estabelecer-se o critério caracterizador do contencioso administrativo assente na relação jurídica administrativa. Por outro lado, projecta-se a consagração do “princípio da plenitude da garantia jurisdicional”, segundo o qual “a toda a ilegalidade ou ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos, resultante de acção ou omissão dos poderes públicos, corresponde uma forma adequada de garantia jurisdicional no âmbito do contencioso administrativo” (art.º 6.º, n.º 1). Consequentemente, se os meios regulados no Código não forem aptos a proporcionar a plena garantia jurisdicional dos particulares face à Administração Pública, os tribunais administrativos utilizarão as formas processuais necessárias a efectivar aquela garantia (art.º 6.º, n.º 2) 37. O que implica que a violação do princípio da plenitude possa envolver denegação de justiça, tanto mais que o n.º 3 do art.º 6.º proíbe a abstenção de julgar “sob pretexto de falta ou obscuridade da lei, carência de provas, inutilidade da decisão ou qualquer outro motivo que envolva denegação de justiça”. Acresce que os órgãos da jurisdição administrativa propostos são constituídos pelos Tribunais Administrativos Regionais, pelo Tribunal Administrativo Central e pelo Supremo Tribunal Administrativo. E-Reforma de 1995 12.Em 1995, o Governo fez aprovar na Assembleia da República uma proposta de lei, pretendendo ser autorizado a legislar sobre o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Decreto n.º 266/VI 38. Contudo, por iniciativa do Presidente da República, o Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 472/95 39, em apreciação preventiva da constitucionalidade, considerou que “[…]o estatuto dos juizes, enquanto titulares de cada um dos órgãos de soberania não pode deixar de se considerar como estando incluído no âmbito da norma do art.º 167.º, alínea l), da 37 Parece-nos que o princípio da plenitude da garantia jurisdicional implicará ainda a postergação do recurso

hierárquico necessário, como acesso à garantia jurisdicional através da verticalização dos actos administrativos, bem como a do carácter residual e supletivo da acção para o reconhecimento de um direito.

38 Vide Proposta de lei n.º 131/VI, in Diário da Assembleia da República, VI, 4.ª Sessão Legislativa (1994-1995), II-A, n.º 43, de 18.5.95; apreciado na generalidade na reunião plenária de 16.6.95, in Diário da Assembleia da República, VI, 4.ª Sessão Legislativa (1994-1995), I, n.º 88, de 17.6.95; aprovado na generalidade, especialidade e em votação final global na reunião plenária de 21.6.95, in Diário da Assembleia da República, VI, 4.ª Sessão Legislativa (1994-1995) , I, n.º 90, de 22.6.95; Decreto n.º 266/VI - Autoriza o Governo a legislar sobre o ETAF, in Diário da Assembleia da República, VI, 4.ª Sessão Legislativa (1994-1995) , II-A, n.º 57, de 4.8.95.

39 In Diário da República, I-A, n.º 206/95, de 6.9.95.

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Constituição [versão de 1989]. O que vale dizer que quanto a tal matéria - modificação do estatuto dos juizes - não é legítima a concessão de uma autorização legislativa ao Governo [...]”, e que, relativamente ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais se trata de matérias que “directa ou indirectamente respeitam ao estatuto dos juizes enquanto titulares de órgão de soberania”, pelo que “a composição e as competências do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nessa parte, pertencem também à reserva absoluta da Assembleia da República, não sendo admissível que quanto a ela se peça e conceda autorização legislativa”, vindo a pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes do art.º 1.º do Decreto n.º 266/VI, quando conjugado com o disposto nas alíneas f) e g) do seu art.º 2.º. Consequentemente o Presidente da República vetou o Decreto n.º 266/VI e devolveu-o à Assembleia da República 40, sem que haja notícia da expurgação das normas julgadas inconstitucionais, ou da sua confirmação por maioria qualificada. § 3.º-Síntese 13.Do pequeno excurso histórico, fica a ideia que a aproximação ao contencioso administrativo não se encontra totalmente conseguida, decorridas duas décadas de Estado de direito democrático. O que talvez sugira a resistência de todo e qualquer poder em submeter-se a instâncias de controlo. Por outro lado, aparece como um dos momentos decisivos a criação de um tribunal, intermédio ao Supremo Tribunal Administrativo e aos tribunais administrativos de 1.ª instância, inspirado no figurino do ex-Tribunal Tributário de 2.ª instância 41, criação cuja necessidade está ligada à ideia de um foro especial para sindicar os actos dos órgãos superiores do Estado e da Administração pública. Acresce que se terá por líquida a existência de uma específica ordem de tribunais administrativos e fiscais, separada da ordem comum, visando sempre um julgamento em dois graus de jurisdição.

40 In Diário da Assembleia da República, VI, 4.ª Sessão Legislativa (1994-1995) , II-A, n.º 59, de 22.9.95. 41 Apesar da ser denominado de “2.ª instância”, o ex-Tribunal Tributário de 2.ª instância era fundamentalmente

um tribunal de contencioso de 1.ª instância, com competências paralelas às dos tribunais administrativos de círculo - cfr art.º 41.º, n.º1, alínea b), e art.º 42.º, n.º 1,alínea b), na redacção original do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril. Na verdade, de acordo com o art.º 2.º, corpo, do Decreto com força de lei n.º 16733, de 13 de Abril de 1926, “Os processos [do contencioso das contribuições e impostos] serão julgados em 1.ª instância pelo chefe de repartição de finanças do respectivo concelho ou bairro”, havendo recurso “das decisões proferidas em 1.ª instância [...] para o tribunal de 2.ª instância que será composto de três juízes e funcionará junto da Direcção de Finanças de Lisboa” (art.º 3.º), cabendo ainda recurso “das decisões do tribunal de 2.ª instância [...] para o Tribunal Superior do Contencioso das Contribuições e Impostos, que será composto de três juízes e funcionará junto da Direcção Geral das Contribuições e Impostos” (art.º 4.º). Como se verifica a 2.ª instância era afinal a 1.ª instância jurisdicional.

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II-“Reforma” de 1996/97

§ 4.º-Forma A-Reforma orgânica e processual 14.A reforma de 1996 surge no contexto de uma intenção de reforma global do contencioso administrativo português, consubstanciada numa “Lei Orgânica dos Tribunais Administrativos e Fiscais” e num “Código de Processo Administrativo Contencioso” Nessa reforma global, releva a criação de um tribunal intermédio entre os tribunais administrativos de círculo e o Supremo Tribunal Administrativo, destinado a receber um grande elenco de competências cujo exercício cabia ao Supremo, por um lado, e a aproximação do recurso contencioso ao figurino da acção, valorizando-se claramente os restantes meios processuais principais ou acessórios, incluindo a execução das decisões, no sentido da plena acessibilidade do cidadão à justiça administrativa, por outro 42. B-Reforma intercalar - Tribunal Central Administrativo 15.Contudo, prevenindo a situação de ruptura da Secção do Contencioso Administrativo e no respectivo Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, procedeu-se à criação, desde logo, do referido tribunal intermédio, que se designa por Tribunal Central Administrativo, única via para se obter o descongestionamento (possível) da jurisdição administrativa daquele supremo tribunal 43. § 5.º-Condicionantes 16.Qualquer reforma do contencioso administrativo português, está condicionada, em primeiro lugar, pela recorte constitucional deste tipo de justiça do poder, podendo afirmar-se que a IV Revisão Constitucional (1997), a revisão “do reforço dos direitos de participação e de cidadania” 44, revoluciona a protecção jurisdicional de direitos fundamentais, ao consagrar a sua efectividade - o leitmotiv é a tutela jurisdicional efectiva (art.º 268.º, n.º 4) 45. 42 Cfr a “Exposição de motivos” da Proposta de lei n.º 53/VII, in Diário da Assembleia da República, VII

Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1995-1996), II Série-A, n.º 55, de 6.7.96. 43 Ibidem. 44 Nota justificativa do «Projecto de revisão constitucional n.º 8/VII (apresentado por Deputados do PS)», in

Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1..ª Sessão Legislativa (1995-1996), II-A Série, Suplemento ao n.º 27, de 7.3.97. Cfr Jorge Miranda, «Introdução», in Constituição da República Portuguesa, Principia, Lisboa, 1997, pág. 25, «Prefácio» de Marcelo Rebelo de Sousa a Uma Constituição Moderna para Portugal (A Constituição da República revista em 1997, anotada por Luís Marques Guedes), Edição do

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Há ainda uma referência às Grandes Opções do Plano para 1996, para 1997, e para 1998, e ao Programa do XIII Governo Constitucional. A-Constituição da República Portuguesa I-Direito administrativo constitucional 17.O Estado de hoje, irremediavelmente distanciado do desenho linear e apaziguador do Estado de direito do Séc XIX, reclama um entendimento da constituição “com maior largueza do que estava suposto na representação do simples catálogo de garantias negativas do século passado” 46; a dimensão política do homem, enquanto cidadão, realçada a partir da 2.ª Grande Guerra, patenteia a fragilidade de protecção do direito administrativo, traduzida na garantia da adequação do comportamento da Administração à prossecução do interesse público, e circunscrita à teoria do acto administrativo e à da actividade administrativa 47; e “é numa região de condomínio entre o direito constitucional e o direito administrativo que este último vai procurar a sua razão de ser e as possibilidades do cumprimento da sua missão de defesa do sujeito privado, uma vez que ganha dia a dia arreigada consciência de que os quadros tradicionais deixam escapar uma administração cada vez mais complexa e agressiva” 48. Não será, pois, de estranhar que a Constituição da República Portuguesa se refira abundantemente à Administração pública, tantos nos aspectos organizatórios e de funcionamento, como nos de relacionamento, de tal forma que se pode falar de um direito administrativo constitucional 49. 18.A Constituição define como uma das tarefas fundamentais do Estado, o “garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de direito democrático” (art.º 9..º, alínea b)), insinuando a ligação necessária entre os cidadãos e o Estado. Esta ligação aparece confirmada pela imposição da prossecução do interesse público a cargo da Administração Pública, “no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos

Grupo Parlamentar do PSD, Lisboa, 1997, e «Prefácio» de Jorge Lacão a Constituição da República Portuguesa, Texto Editora, Lisboa, 1997.

45 Cfr José Carlos Vieira de Andrade, «As transformações do contencioso administrativo na Terceira República Portuguesa», in Legislação - Cadernos de Ciência de Legislação, INA, n.º 18, Janeiro-Março de 1997, págs 76 e seguinte.

46 Rogério Ehrhardt Soares, Direito Público e Sociedade Técnica, Atlântida Editora, Coimbra, 1969, pág. 184. 47 Idem, págs 6 e seguinte. 48 Idem, pág. 8 e passim. 49 Assim, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2..ª edição, Vol. I, Almedina, Coimbra,

1994, pág. 172. Sobre as relações entre direito constitucional e direito administrativo, vide Afonso Rodrigues Queiró, Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 1976, págs 159 e seguintes.

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cidadãos” (art.º 266..º, n.º 1, da Constituição) 50, balizada “pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé” (n.º 2). Assim, os direitos fundamentais do cidadão, mais do que limites externos à prossecução do interesse público, aparecem verdadeiramente como uma das suas dimensões constitutivas. II-Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva 51 19.O art.º 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa efectiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos 52. Com a IV Revisão Constitucional (1997) passam a ser direitos fundamentais, a decisão de qualquer causa “em prazo razoável e mediante processo equitativo” (art.º 20.º, n.º 4), bem como a garantia de que “para defesa de direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura

50 Freitas do Amaral e outros, Código do Procedimento Administrativo Anotado, Almedina, Coimbra,

1992, pág. 33, em anotação ao art.º 4.º do Código do Procedimento Administrativo, referem que “num Estado de Direito, as duas realidades [prossecução do interesse público e protecção dos direitos dos cidadãos] encontram-se indissociavelmente ligadas, não sendo possível, sob pena de ilegalidade, a realização do interesse público sem a devida consideração dos direitos e interesses dos particulares”. É de invocar também o dever imposto aos órgãos da Administração Pública de actuar em estreita colaboração com os particulares, procurando assegurar a sua adequada participação no desempenho da função administrativa - art.º 7.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.

51 A referência a “tutela jurisdicional efectiva” é retirada da epígrafe do art.º 20.º da Constituição, na redacção da IV Revisão Constitucional (1997), pretendendo esta “uma melhor adequação terminológica ao conteúdo normativo do artigo” - Uma Constituição Moderna para Portugal (A Constituição da República revista em 1997, anotada por Luís Marques Guedes), Edição do Grupo Parlamentar do PSD, Lisboa, 1997, anotação ao art.º 20.º. Cfr José Eduardo de Oliveira Figueiredo Dias, Tutela Ambiental e Contencioso Administrativo (Da legitimidade processual e das suas consequências), Stvdia Ivridica 29, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pág 82. A nova epígrafe pretende traduzir a “ideia de que não basta garantir aos cidadãos o direito de acesso aos tribunais, é preciso que os tribunais concedam, efectivamente, ao cidadão a tutela que requer, é preciso que, efectivamente, as sentenças proferidas pelos tribunais tenham para os cidadãos a utilidade que possa satisfazer os seus interesses”, utilidade derivada da celeridade na decisão, no âmbito de um processo equitativo - intervenção do Sr Deputadao Cláudio Monteiro na Reunião plenária da Assembleia da República de 15.7.97, in Diário da Assembleia da República, VII, 2.ª (1996-97), I, n.º 94, de 16.7.97, pág. 3388.

52 No texto do art.º 20.º, n.º 1, a IV Revisão Constitucional (1997) substituiu a expressão “interesses legítimos” pela de “interesses legalmente protegidos”, já que aquela não era unívoca - Uma Constituição Moderna para Portugal (A Constituição da República revista em 1997, anotada por Luís Marques Guedes), Edição do Grupo Parlamentar do PSD, Lisboa, 1997, anotação ao art.º 20.º. Também Jorge Lacão, Constituição da República Portuguesa, prefácio e anotações por Jorge Lacão, Texto Editora, Lisboa, 1997, pág. 99, em anotação ao mesmo art.º 20.º, refere que se excluem, assim, interpretações redutoras do conceito de legitimidade como revelando essencialmente significado processual. A expressão “interesses legalmente protegidos” engloba duas realidades distintas, o interesse indirectamente protegido e o interesse reflexamente protegido; sobre a distinção vide Manuel Gomes da Silva, O dever de prestar e o dever de indemnizar, Volume I, Lisboa, 1944, pág 41: “interesses que, sem terem [a] qualidade [de direitos subjectivos], se encontram protegidos juridicamente, isto é, aqueles interesses que beneficiam reflexamente da protecção legal doutros interesses [...], ou da protecção concedida pela lei a esse mesmo interesse não de forma individual, mas em conjunto com os interesses semelhantes duma generalidade de pessoas”; cfr , Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, Volume I, Lisboa, 1994/95, págs 116 e seguintes. Considerando a expressão “interesses legalmente protegidos” um neologismo desnecessário, vide Freitas do Amaral, Direito Administrativo, Vol. II, lições, Lisboa, 1988, pág 80.

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aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos” (art.º 20.º, n.º 5). Por outro lado, a lei fundamental responsabiliza civilmente o Estado e as demais entidades públicas, de forma solidária com os titulares de órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrém (art.º 22.º). 20.Estes direitos à efectivação jurídica dos direitos e interesses jurídicos são especifica e constitucionalmente concretizados no que toca ao cidadão na veste de administrado: não só a IV Revisão Constitucional (1997) garante aos “administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas” (art.º 268.º, n.º 4), como consigna que os “cidadãos têm igualmente direito de impugnar as normas administrativas com eficácia externa lesivas dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 268.º, n.º 5); e o art.º 271.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, responsabiliza os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos. III-Tribunais administrativos e fiscais 21.A tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados é prosseguida pelos tribunais administrativos e fiscais, uma das cinco categorias de tribunais previstos na Constituição da República Portuguesa. 22.O julgamento das acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas 53 e fiscais é da competência dos tribunais administrativos e fiscais (art.º 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa), órgãos de soberania (art.º 110.º, n.º 1), independentes (art.º 203.º), a quem incumbe a administração da justiça em nome do povo (art.º 202.º, n.º 1), assegurando a defesa dos direitos e interesses

53 Sobre o conceito de “relações jurídicas administrativas”, vide Sérvulo Correia, «As relações jurídicas de

prestação de cuidados pela unidades de saúde do Serviço Nacional de Saúde», in Direito da Saúde e Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, Vitalino Canas, «Relação jurídico-pública», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume VII, Lisboa, 1996.

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legalmente protegidos dos cidadãos, reprimindo a violação da legalidade democrática e dirimindo os conflitos de interesses públicos e privados (art.º 202.º, n.º 2). 23.Por outro lado, os juizes dos tribunais administrativos e fiscais, inamovíveis (art.º 216.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), irresponsáveis (n.º 2), independentes e imparciais (art.º 222.º, n.º 5), são geridos por um conselho superior específico (art.º 217.º, n.º 2). 24.A II Revisão Constitucional, aprovada pela Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de Julho, impôs de vez a plena jurisdicionalização dos tribunais administrativos (art.º 211..º, n.º 1, alínea b), da Constituição, versão de 1989), atribuindo-lhes a específica competência de “julgamento das acções e recurso contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (art.º 214..º, n.º 3, da Constituição, versão de 1989) 54. 54 Questiona-se se a II Revisão Constitucional (1989), para além de instituir a jurisdição administrativa como

obrigatória, a terá definido com a jurisdição comum em matéria de relações jurídicas administrativas, em paralelo com a jurisdição comum tradicional - os tribunais judiciais “são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (art.º 213.º, n.º 1, da Constituição, versão de 1989, 211.º, n.º 1, na versão de 1997). Ou seja, a Constituição é expressa em determinar que, para além da matéria cível e criminal, a competência dos tribunais judiciais é residual e supletiva, apenas abrangendo as matérias não atribuídas a outras ordens de jurisdição. No que toca aos tribunais administrativos e fiscais, a Constituição é omissa naquela qualificação de “tribunais comuns”. Na medida em que os tribunais administrativos e fiscais e os tribunais judiciais são órgãos de soberania (art.º 113.º, n.º 1, da Constituição, versão de 1989, 110.º, n.º 1, na versão de 1997), a sua competência é a definida pela Constituição (n.º 2). Segundo Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 1991, pág 693, no domínio das competências constitucionais, há que atender aos princípios da indisponibilidade de competências e ao da tipicidade de competências, ou seja, as competências constitucionalmente fixadas não podem ser transferidas para órgãos diferentes daqueles a quem a Constituição as atribuiu, e as competências dos órgãos constitucionais são, em regra, apenas as expressamente enumeradas na Constituição. “Para além da competência definida directamente na Constituição, os tribunais [...] só podem ter a competência que a Constituição autorize que a lei lhes atribua” - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 84/85, de 22.5.85, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 360, Suplemento, págs 344 e seguintes. Se esta autorização se verifica em relação aos tribunais militares (art.º 215.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, versão de 1989), o mesmo não acontece em relação aos tribunais administrativos e fiscais, e aos tribunais judiciais. Portanto, a medida da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é exclusivamente a de julgar “as acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, e a dos tribunais judiciais é a de julgar as matérias cíveis e criminais e as que não sejam atribuídas a outras ordens jurisdicionais. Consideram Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª Edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pág 814, que o n.º 3 do art.º 214.º da Constituição (versão de 1989) não admite excepções “no sentido de consentir que [os tribunais administrativos e fiscais] possam julgar outras questões ou que certas questões de natureza administrativa possam ser atribuídas a outros tribunais”. Assim não será de seguir a interpretação de José Carlos Vieira de Andrade, Direito Administrativo e Fiscal, lições 93/94, pág. 10, no sentido do art.º 214.º, n.º 3, da Constituição (versão de 1989) conter a “mera definição da área própria (do âmbito-regra) da 'nova' ordem judicial administrativa e fiscal no contexto da organização dos tribunais, sem com isso pretender necessariamente estabelecer uma reserva material absoluta”, ou a concepção que defende, em «As transformações do contencioso administrativo na Terceira República Portuguesa», in Legislação - Cadernos de Ciência de Legislação, INA, n.º 18, Janeiro-Março de 1997, págs 68 e 74, da jurisdição administrativa como jurisdição comum em matéria de relações jurídicas administrativas. Na verdade, a interpretação de Vieira de Andrade transfigura uma norma atributiva de atribuições/competência numa norma descritiva, o que

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25.Vem pois afirmada a reserva de jurisdição, caracterizada materialmente como resolução de litígios 55, configurados em questões de direito, necessária e exclusivamente atribuída a órgãos dotados de independência (objectiva e subjectiva), in casu, os tribunais administrativos, vocacionados à efectivação da tutela jurisdicional dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos administrados. Assim, perante os tribunais administrativos deixa de haver reserva de administração, podendo afirmar-se um contencioso de plena jurisdição 56, radicalmente de carácter subjectivo. IV-Direito ao contencioso administrativo i-Caracterização 26.Podemos traduzir o direito fundamental e constitucional de tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados pela expressão de “direito ao contencioso administrativo”. Caracterizando o direito ao contencioso administrativo, verificamos que é actuado por uma ordem 57 específica e própria de tribunais, através de meios processuais também específicos e próprios.

não é suportado pelo texto constitucional - “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal [...]” (art.º 213.º, n.º 1, versão de 1989), “Compete ao tribunais administrativos e fiscais [...]” (art.º 214.º, n.º 4, versão de 1989). Por outro lado, o estabelecimento da reserva material absoluta não decorre do art.º 214.º, n.º 3, da Constituição (versão de 1989), mas da circunstância do texto constitucional não autorizar que o legislador ordinário atribua a outros tribunais o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais - cfr o art.º 215.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, versão de 1989, relativo ao tribunais militares. Por seu turno, a consideração da jurisdição administrativa como jurisdição comum ou ordinária da justiça administrativa decorre, segundo Sérvulo Correia, «Direito Administrativo II (Contencioso Administrativo)», in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Volume XXXV, n.º 1,1994, Lex, págs 76 e 77, do disposto na alínea j) do n.º 1 do art.º 51.º do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, segundo o qual compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer “dos recursos e acções pertencentes ao contencioso administrativo para que não seja competente outro tribunal”. Ora, esta disposição legal data de 1984, muito antes portanto da consagração constitucional obrigatória da jurisdição administrativa, pelo que a configuração desta é dada pelo texto constitucional e não por um mero texto legal anterior - não é a Constituição que é interpretada segundo o direito ordinário, mas sim o direito ordinário que é interpretado `a luz da Constituição. Aliás, Rui Machete, «A Constituição, o Tribunal Constitucional e o Processo Administrativo», in AA VV, Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional, Colóquio do 10.º aniversário do Tribunal Constitucional, Coimbra Editora, 1995, pág 160, claramente refere que o art.º 214.º, n.º 3, da Constituição (versão de 1989), consagra uma reserva material de competência dos tribunais administrativos e fiscais, o “juiz natural das lides administrativas”. Cfr Paulo Castro Rangel, Reserva de jurisdição - sentido dogmático e sentido jurisprudencial, Universidade Católica Editora, Porto, 1997, pág 32.

55 Para a caracterização do conceito de litígio, cfr João de Castro Mendes, Manual de Processo Civil, Manuais da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1963, págs 21 e seguintes, Miguel Teixeira de Sousa, Sobre a teoria do processo declarativo, Coimbra Editora, 1980, págs 22 e seguintes.

56 Assim, José Eduardo de Oliveira Figueiredo Dias, Tutela Ambiental e Contencioso Administrativo (Da legitimidade processual e das suas consequências), Stvdia Ivridica 29, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pág. 89, sem considerar as opções constitucionais resultantes da IV Revisão Constitucional (1997).

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ii-Ordem administrativa e fiscal 27.A jurisdição, constitucionalmente, não só se encontra repartida entre diversas ordens de tribunais, como também, dentro de cada ordem, essa repartição chega a atingir a pulverização, no que toca aos tribunais judiciais. Estas repartições, horizontal e vertical, assumem o significado político resultante da divisão de poderes. A multiplicidade de tribunais, com competências exclusivas, impede, por um sistema equivalente ao de “checks and balances”, que se configure um hipotético órgão de cúpula, expoente de um mítico “poder judicial”. 28.Por outro lado, a manutenção da ordem administrativa e fiscal, e portanto a exclusão do direito ao contencioso administrativo do âmbito dos tribunais judiciais, implica que os litígios entre os cidadãos 58 e a Administração pública passam pela ponderação da desigualdade política, e não pela da intromissão pública na esfera meramente privada. Há aqui muito da “desconfiança revolucionária” de 1789 em relação aos Parlamentos do “Ancien Régime”, não podendo esquecer-se, especificamente no que toca a Portugal, que ainda não foi esclarecido o papel efectivamente desempenhados pelos Tribunais durante o Estado Novo. 29.Uma das linhas de orientações do Estado Novo foi a de retirar dos tribunais comuns a competência para o julgamento dos crimes políticos, atribuindo-a aos tribunais militares, num primeiro momento, e aos Tribunais Plenários (em Lisboa e Porto), depois 59. Estes eram constituídos por um presidente, juiz desembargador, e por dois vogais, os juizes mais antigos dos Juízos Criminais, de nomeação governamental. Das decisões dos Tribunais Plenários apenas cabia recurso para a secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça. “Daí manter-se inalterável o seu carácter especial, agora baseado na colaboração activa da magistratura com a polícia política” 60.

57 Pela expressão de “ordem de tribunais” pretende significar-se a organização de um conjunto de tribunais,

interrelacionados funcionalmente de acordo com uma hierarquia, e pela qual as decisões de uns, para o efeito considerados em nível inferior, são revistas por outros (ou outro), considerados em plano superior.

58 O argumento não serve para os litígios interorgânicos. 59 Os Tribunais Plenários foram criados pelo Decreto-Lei n.º 35044, de 20 de Outubro de 1945, com a

competência predominante de julgamento dos crimes contra a segurança exterior e interior do Estado, cabendo a instrução preparatória à PIDE/DGS - cfr. Arlindo Martins, «Plenário do Tribunal Criminal», in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 11, e Joaquim Roseira Figueiredo e Flávio Ferreira, O poder judicial e a sua independência, Hoje e Amanhã, Moraes Editores, Lisboa, 1974. Como exemplo desse tipo de justiça, vide Em defesa de Aquilino Ribeiro, org. Alfredo Caldeira e Diana Andringa, Terramar, Lisboa, 1994.

60 João Martins Madeira, «Tribunais especiais», in Dicionário de História do Estado Novo, dir. de Fernando Rosas e de J. M. Brandão de Brito, Volume II, Círculo de Leitores, Lisboa, 1996, pág 979.

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Cabe aqui citar o Plano de acção do Ministério da Justiça, aprovado em Conselho de Ministros de 20.9.74 61: referia que a acção do Ministério se desenvolvia e prosseguia “com dificuldade por virtude das estruturas e quadros herdados do regime anterior a 25 de Abril de 1974”, acrescentando que a “magistratura judicial, apesar da resistência da sua maior parte ao permanente controle administrativo da sua actividade atentatório da sua independência, numa certa fracção [tinha-se comprometido] com o regime deposto, sobretudo pela colaboração nos tribunais criminais plenários” e que a “magistratura do Ministério Público, [estava], em certos sectores, tão contaminada pelas pressões fascistas como a judicial”. Também a caracterização do sistema da justiça do Estado Novo feita por Guilherme da Fonseca 62 é impressiva, destacando o ingresso na carreira dependente da declaração do interessado de activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas (só abolida em 1969), com prévia e decisiva informação política da polícia política, a PIDE/DGS, a proibição do sindicalismo da magistratura a existência de tribunais políticos, os Tribunais Plenários, cujos processos eram geridos pela polícia política, o baixo nível da remuneração dos magistrados, com limitações especialmente de raiz cultural, a influenciar o recrutamento, sobretudo na pequena burguesia rural, estruturalmente conservadora. iii-Meios processuais 30.Quanto aos modos de actuação do direito ao contencioso administrativo, temos, como meios típicos, o recurso contencioso contra actos lesivos, a acção para o reconhecimento de direito ou interesse legalmente protegido, e a acção de indemnização contra pessoa colectiva pública e titulares de órgãos, funcionários e agentes, por violação de direito ou interesse legalmente protegido. O pressuposto do recurso contencioso assenta na lesividade actual de um acto autoritário e unilateral emanado no âmbito de uma relação juridico-administrativa. Já a acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido prescinde da decisão administrativa prévia. Ao passo que a acção de indemnização humaniza o poder, transformando os seus titulares em seres falíveis. 31.Por outro lado, o direito ao contencioso administrativo implica que não possa mais falar-se de um direito não justiciável, reserva da Administração, num esquema político de divisão de poderes. A liberdade da Administração perante os tribunais cede perante o controlo jurisdicional dos comportamentos públicos lesivos de direitos dos administrados.

61 In Boletim do Ministério da Justiça, n.º 240. 62 «O 25 de Abril e a justiça administrativa», in Vértice. Cfr do mesmo autor «O Ministério Público e a

Constituição», in Revista do Ministério Público, Ano 8.º, Julho-Setembro 1987, n.º 31, págs 73 e seguintes.

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B-Grandes Opções do Plano e Programa do Governo 32.A 5.ª Grande Opção do Plano para 1996, consubstanciada em respeitar uma cultura de cidadania, promover a reforma do Estado, traduz-se “na área da justiça, por uma melhoria da organização, gestão e condições de trabalho no sistema judiciário, envolvendo alterações processuais, revisão da orgânica judiciária, investimentos e modernização de métodos” 63. Considerando que a área da Justiça apresenta deficiências graves que põem em causa direitos fundamentais, as principais actuações previstas, no que respeita à Justiça administrativa e fiscal são, a alteração da Lei Orgânica dos Tribunais Administrativos e Fiscais com o fim de assegurar a capacidade de resposta dos respectivos tribunais, a modificação das lei de processo administrativo contencioso, com especial atenção aos aspectos da legitimidade, dos procedimentos cautelares, dos recursos e das garantias de execução das sentenças, e a alteração do Código do Processo Tributário, com vista a garantir condições de independência e de imparcialidade das decisões 64 65. 33.Por sua vez, o relatório sobre as Grandes Opções do Plano para 1997 66, no que se refere ao funcionamento do Sistema Judiciário, salienta a morosidade da administração da justiça, a carga burocrática que recai sobre os magistrados, a inadequação da actual orgânica e do regime processual, na área da justiça administrativa, alguma inadequação dos requisitos de ingresso e de modelo de formação dos magistrados 67, e define como opções de política judiciária, prosseguir a revisão dos regimes processuais e estabelecer uma reorganização coerente do sistema judiciário, seja na área dos tribunais judiciais, seja na dos tribunais administrativos e fiscais, propondo-se concretizar em 1997, as medidas de codificação do processo contencioso administrativo, consagrando novos mecanismos processuais de garantia dos direitos dos cidadãos, revisão do estatuto dos tribunais administrativos e fiscais, com a atribuição ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais de estruturas e meios próprios, revisão do mapa territorial da justiça administrativa, ao nível dos tribunais administrativos de círculo, com análise da necessidade da criação de tribunais administrativos e fiscais nas Regiões Autónomas, e instalação do Tribunal Central Administrativo; em sede de acesso às magistraturas e formação de magistrados, propõe-se a revisão da Lei Orgânica do

63 Art.ºs 3.º, alínea e), e 8.º, da Lei n.º 10-A/96, de 23 de Março. 64 Cfr Relatório sobre as Grandes Opções do Plano para 1996, em anexo à Lei n.º 10-A/96, de 23 de Março, e

Programa do XIII Governo Constitucional in Diário da Assembleia da República, VII, 1.ª, II Série-A, Suplemento ao n.º 2, de 8.11.95.

65 A referência a “garantir condições de independência e de imparcialidade” reportada às decisões, é manifestamente incorrecta, pois as condições referidas traduzem um determinado posicionamento do juiz perante os interesses em litígio. É, pois, ao juiz que importa garantir tais condições.

66 Em anexo à Lei n.º 52-B/96, de 27 de Dezembro. 67 Transcrevemos apenas o que de imediato se relaciona com a justiça administrativa.

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Centro de Estudos Judiciários, tendo em vista a reformulação do regime de ingresso nas magistraturas, o aprofundamento da co-responsabilização do Conselho Superior da Magistratura 68 na sua gestão, e a formação de magistrados dos tribunais administrativos e fiscais. 34.No relatório relativo às Grandes Opções do Plano para 1998, refere-se que “criada e posta em funcionamento a 2.ª instância da jurisdição administrativa e fiscal, pelo Tribunal Central Administrativo, cabe dotá-la de uma orgânica actualizada, e de uma nova lei de processo mais simples e mais racional, e que responda às necessidades actuais em matéria dos direitos dos cidadãos perante a administração”, considerando-se um dos objectivos para 1998, a aprovação da nova lei orgânica dos tribunais administrativos e fiscais e do novo regime do contencioso administrativo 69. § 6.º-Descrição da Reforma de 1996 A-Estratégia 35.Como vimos, a intenção de reforma é dada por dois diplomas, um relativo aos órgãos jurisdicionais administrativos e fiscais, e o outro respeitante à lei de processo dos tribunais administrativos. Não podemos esquecer o ainda relativamente recente Código de Processo Tributário. A simultaneidade de diplomas, a manter-se, tenderá a implicar a compatibilidade entre órgão e processo, o que é adequado a uma jurisdição de direitos, liberdades e garantias. Por outro lado, na expressão “Lei Orgânica dos Tribunais Administrativos e Fiscais” 70 há o eco da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional 71 e da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, sendo de aplaudir a sugestão de aproximação ao lastro comum a estas duas espécies de tribunais.

68 Há aqui a manifesta omissão da co-responsabilização do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e

Fiscais na gestão do Centro de Estudos Judiciários, na medida em que se tem em vista a formação de magistrados dos tribunais administrativos e fiscais.

69 Relatório sobre as Grandes Opções do Plano para 1998, relativo à «Proposta de Lei n.º 146/VII», in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 3..ª, II-A Série, 2.º Suplemento ao n.º 2, de 16.10.97.

70 Uma vez que o este texto inclui a regulamentação relativa aos juizes e ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, talvez lhe quadrasse melhor o título de Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na continuidade da designação que vem desde 1984, com a emissão do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril .

71 A preponderância constitucional do Tribunal Constitucional, dada pela sua regulamentação pormenorizada no texto constitucional, serve de matriz aos outros tribunais. Por outro lado, a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional revestem a forma de lei orgânica - cfr art.ºs 169.º, n.º 2, e 167.º, alínea c), ambos da Constituição da República Portuguesa.

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Quanto ao Código de Processo Administrativo Contencioso ressalta o figurino do Código de Processo Civil. 36.Se é imposto constitucionalmente que a Lei Orgânica dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na parte relativa aos juizes e ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, siga a forma de lei da Assembleia da República 72, já a regulamentação da organização e funcionamento dos tribunais, bem como o Código de Processo Administrativo Contencioso, podem seguir a forma de Decreto-Lei autorizado 73. Aqui, continua a não se de menos relembrar que os dois diplomas, bem como a instalação do novo figurino de justiça administrativa, devem entrar em funcionamento simultaneamente. B-Orgânica 37.A nível orgânico, destaca-se, como melhorias projectadas, a agregação dos tribunais administrativos e fiscais de 1.ª instância, nos casos em que não se justifique o seu funcionamento autónomo; a simplificação da organização do Supremo Tribunal Administrativo em Secções e em Pleno, que passa a dispor de juizes próprios especialmente afectos a funções de uniformização da jurisprudência, com possibilidade de especialização das subsecções de cada Secção do Supremo e do Tribunal Central Administrativo 74. C-Juízes 38.Quanto a juizes, opta-se pela formação especializada de juizes de direito para ingresso nos tribunais administrativos e fiscais de 1.ª instância, com procedimentos tendencialmente de transparência no acesso a cargos 75. D-Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais 39.Autonomiza-se o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que passa a dispor de serviços e de inspectores próprios 76. 72 Cfr o art.º 167.º, alínea l), da Constituição da República Portuguesa: é da exclusiva competência da

Assembleia da República legislar sobre estatuto dos titulares dos órgãos de soberania, ou seja, dos órgãos enumerados no art.º 113.º, n.º 1, entre os quais se encontram os tribunais.

73 Cfr o art.º 168.º, da Constituição da República Portuguesa - É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre, salvo autorização ao Governo: alínea b) Direitos, liberdades e garantias; alínea q) Organização e competência dos tribunais; alínea u) Associações públicas, garantias dos administrados e responsabilidade civil da Administração.

74 Cfr a “Exposição de motivos” da Proposta de lei n.º 53/VII, in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1995-1996), II Série-A, n.º 55, de 6.7.96.

75 Ibidem. 76 Ibidem.

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E-Processo 40.A nível processual, aproximam-se as posições relativas da Administração Pública e dos particulares no contencioso administrativo, no que se refere ao ónus de impugnação; torna-se o processo de recurso contencioso, mais simples pela abolição do despacho saneador, da especificação e do questionário, mais flexível, passando as alegações a ser facultativas, e mais rápido por encurtamento de prazos; reforça-se a contraditoriedade e o inquisitório, admitindo-se a prova pericial e testemunhal e a não preclusão das questões prévias; alargam-se os fundamentos do recurso contencioso a outras formas de invalidada do acto, bem como a legitimidade activa para a interposição de recursos contenciosos; amplia-se o âmbito do meio processual “intimação para um comportamento” por forma a abranger actos da própria Administração Pública e casos de violação de deveres decorrentes de acto ou contrato administrativos e de direitos fundamentais; garante-se a execução das decisões jurisdicionais através da disponibilização de uma dotação anual para o efeito gerida pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, da adopção de medidas compulsórias contra quem tem o dever de as cumprir e da sua responsabilização civil, disciplinar e criminal 77. § 7.º-Reforma intercalar de 1996/97 A-Objectivos 41.A reforma intercalar de 1996/97 cinge-se à criação do Tribunal Central Administrativo, harmonizando as disposições legais relativas à organização dos tribunais do contencioso administrativo, à sua competência, aos respectivos juizes, ao seu funcionamento, e à mecânica dos meios processuais. B-Descrição 42.A reforma intercalar de 1996/97 processa-se mediante a Lei n.º 49/96, de 4 de Setembro, lei mista de autorização legislativa e de alteração estatutária de juizes, o Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Setembro, emitido no uso daquela autorização legislativa, o Decreto-Lei n.º 114/97, de 12 de Maio, chamado o diploma complementar, e a Portaria n.º 398/97, de 18 de Junho. A forma híbrida usada na Lei n.º 49/96, de 4 de Setembro, autorização legislativa e lei material, tem a ver, em parte 78, com a reserva absoluta de competência legislativa da

77 Ibidem. 78 Em parte, a forma mista usada relaciona-se com um entendimento político obtido na Assembleia da

República - cfr a intervenção do deputado José Magalhães, na discussão na generalidade da Proposta de lei

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Assembleia da República no que toca ao estatuto dos titulares de órgãos de soberania, categoria que inequivocamente integra os juizes dos diversos tribunais. 43.O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, no uso de autorização legislativa concedida pela Lei n.º 29/83, de 8 de Setembro. Esta lei de autorização legislativa não se refere minimamente ao Estatuto de Juizes, já que foi concedida para legislar sobre revisão do processo do contencioso administrativo (art.º 1.º, alínea a)), reformulação da organização e da competência dos tribunais administrativos (art.º 1.º, alínea b)), revisão do processo dos tribunais fiscais (art.º 1.º, alínea c)), e reformulação da orgânica e competência dos tribunais fiscais (art.º 1.º, alínea d)), tendo em vista permitir um mais eficaz funcionamento dos tribunais administrativos e fiscais e uma maior protecção dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, permitindo aos tribunais um mais amplo acesso às relações administrativas e fiscais controvertidas (art.º 2.º). Aliás, o próprio Ministro da Justiça, Dr Rui Machete, ao introduzir o respectivo pedido de autorização legislativa 79, na Reunião Plenária da Assembleia da República de 15.7.83, referiu expressamente: “nesta autorização legislativa, não estamos a considerar o problema do estatuto dos magistrados em geral, nem sequer em especial. Essa matéria será objecto ou de uma proposta de lei ou de um pedido de autorização legislativa, mas aí penso que a urgência não é tanta que o Governo não possa vir a apresentar um projecto que esclareça essa autorização legislativa, visto que será articulado, quer em matéria de magistrados do ministério público, quer em matéria de juizes. Portanto, isso não está previsto dentro dos limites desta autorização legislativa” 80. Contudo, isto não impediu que o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ou seja, o Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, trate nos art.ºs 77.º e seguintes precisamente do Estatuto dos Juizes dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Daí que, logo por carência de norma habilitante, o Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na parte relativa ao estatuto dos juizes dos tribunais administrativos e fiscais, fosse inconstitucional por violação do art.º 201.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, da Constituição (versão de 1989), art.º 198.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3 (versão de 1997). De qualquer forma, a competência legal para a definição do estatuto dos juizes sempre pertenceu em exclusividade à Assembleia da República, assim reconhecido pela doutrina mais

n.º 53/VII, in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1995-1996), I Série, n.º 94, de 11.7.96, pág. 3210.

79 «Proposta de Lei n.º 21/III», in Diário da Assembleia da República, III Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1983-1984), II Série, n.º 18, de 9.7.83.

80 Diário da Assembleia da República, III Legislatura, 1.ª Sessão Legislativa (1983-1984), I Série, n.º 23, de 16.7.83, pág. 1025.

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representativa 81, e também, num momento mais recente, pela própria Assembleia da República 82. A questão foi ultrapassada com o Acórdão n.º 472/95 do Tribunal Constitucional 83, ao considerar o estatuto dos juizes, enquanto titulares de órgãos de soberania, incluído no âmbito da norma do art.º 167.º, alínea l), da Constituição, versão de 1989, art.º 164.º, alínea m), versão de 1997. Assim, as normas do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, relativas ao estatuto dos juizes, em que se incluem as normas relativas ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, são inconstitucionais, por serem da autoria do Governo, em vez da da Assembleia da República, o que denota a invasão da esfera de competência deste órgão de soberania. Entretanto, algumas das disposições legais do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, foram sujeitas a ratificação na Assembleia da República (Lei n.º 4/86, de 21 de Março), ou aí alteradas (Lei n.º 11/93, de 6 de Abril, e Lei n.º 49/96, de 4 de Setembro), pelo que a questão da inconstitucionalidade poderá apenas abranger as normas constantes dos artigos nunca alterados, ou sejam, os art.ºs 77.º, 79.º, 81.º, 82.º, 83.º, 84.º, 87.º, 88.º, 89.º, 95.º, e 101.º. Vão assim supostos duas ordens de questões: se a “ratificação com emendas” implica uma posição da Assembleia da República em relação ao decreto-lei no seu todo; se a modificação legislativa operada pela Assembleia da República tem também essa leitura. Quanto à primeira questão, aponta-se a circunstância de a decisão legislativa da Assembleia da República só existir no que toca às modificações adoptadas ou rejeitadas, e não quanto à ratificação em si mesma, pelo que não influencia a eventual inconstitucionalidade orgânica 84. Relativamente à segunda questão, parece-nos que a solução não será diversa, se atendermos a que as disposições legais não consideradas no processos legislativo continuam a valer o que valiam até aí, o que se reforça com a inocuidade resultante da não entrada em vigor do diploma legislativo modificativo. C-Carências 44.A metodologia da reforma é dada pela alteração da redacção de segmentos normativos preexistentes, pela revogação, e pela intercalação de normas legais. 81 Cfr, por todos, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª

Edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pág. 821. 82 Vide o relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da

Assembleia da República de 30.3.93, sobre o Projecto de Lei n.º 266/VI (relativo a vencimentos de juízes), aprovado por unanimidade, in Diário da Assembleia da República, VI Legislatura, 2.ª Sessão legislativa, II Série-A, n.º 27, de 3.4.93, onde se acentua que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre o estatuto dos titulares dos órgãos de soberania, sendo os juízes os titulares dos órgãos de soberania, os tribunais.

83 In Diário da República, I-A, n.º 206/95, de 6.9.95. 84 Cfr Jorge Miranda, Funções, Orgãos e Actos do Estado (apontamentos de lições), Lisboa, 1990, págs

514 e 515, e Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 1991, pág. 892.

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Se se posterga o sentido originário dos enunciados linguísticos em opções políticas posteriores, não deixa sobretudo de se hipotecar a coerência sistemática do modelo. Tanto mais que, como acontece na reforma de 1996, esta mais não é que um expediente dilatório da constatação de uma crise instalada, sem horizonte de superação. 45.Como parece óbvio, a criação do Tribunal Central Administrativo vem a mascarar a análise da crise que se pretendesse fazer numa perspectiva de reforma global - que era a intenção inicial. Ou seja, a reforma intercalar de 1996/97 está voltada para o passado, a situação de ruptura, sem curar das respectivas razões, sem portanto equacionar a eventual saturação do sistema. 46.Que o sistema resultante da prática jurisprudencial se encontra desajustado em relação ao direito garantido de acesso à justiça administrativo85 é dado, desde logo, pela extrema

85 Parece inegável a generalizada crítica ao sistema jurisprudencial de tutela jurisdicional de direitos, liberdades

e garantias, bem patente nas vicissitudes da IV Revisão Constitucional (1997). Embora não tenha ainda sido instituído, constitucionalmente, o recurso de amparo, ou a acção constitucional de defesa, o certo é que vários projectos de revisão constitucional as previram: o «Projecto de revisão constitucional n.º 3/VII (apresentado pelo PS)», o «Projecto de revisão constitucional n.º 4/VII (apresentado pelo PCP)», o «Projecto de revisão constitucional n.º 5/VII (apresentado pelo PSD)», o «Projecto de revisão constitucional n.º 6/VII (apresentado por Deputados do PSD)», o «Projecto de revisão constitucional n.º 8/VII (apresentado por Deputados do PS)», e o «Projecto de revisão constitucional n.º 9/VII (apresentado por Deputados do PSD)», todos in Diário da Assembleia da República, VII Legislatura, 1..ª Sessão Legislativa, II-A Série, Suplemento ao n.º 27, de 7.3.97. Já Jorge Miranda, Ideias para uma revisão constitucional em 1996, Edições Cosmos, Lisboa, 1996, pág. 29, propunha a “alteração necessária” do art.º 280.º, n.º 6, da Constituição, no sentido de “esgotados os recursos ordinários, cabe também recurso [...] para o Tribunal Constitucional de decisões de outros tribunais quando arguidas de violação de direitos, liberdades e garantias”, invocando que a “experiência tem mostrado a necessidade de, por esta via se reforçarem os direitos dos cidadãos e se controlar a constitucionalidade das decisões judiciais”; apesar das dúvidas manifestadas a respeito da acção directa de inconstitucionalidade - Jorge Miranda, «A Fiscalização da Constitucionalidade, Uma Visão Panorâmica», in Scientia Ivridica, Julho-Dezembro de 1993, Tomo XLII, n.ºs 244/246, pág. 179.. Em sede de intervenções de deputados, destaca-se a «Reunião plenária da Assembleia da República de 30.7.97», in Diário da Assembleia da República, VII, 2.ª (1996-97), I, n.º 104, de 31.7.97, em que o Sr Deputado José Magalhães (pág 3954), a propósito da revisão constitucional de 1989, e da remodelação profunda da justiça administrativa, considera que “essa reforma soçobrou por uma interpretação restritiva dos tribunais e por um comedimento excessivo do legislador ordinário”; em que o Sr Deputado Barbosa de Melo (pág 3956), a propósito as alterações do art.º 268.º da Constituição, manifesta o voto de que o “Parlamento continue a empenhar-se nesta nobre tarefa de ajudar os portugueses a saberem lutar pelos seus direitos na sede adequada”, que são os tribunais; e em que o Sr Deputado Cláudio Monteiro (pág. 3956), menciona ser “necessário que tenhamos consciência de que não basta alterar a lei e de que, para além da lei, haverá ainda que contar com a mentalidade dos nossos tribunais e da nossa Administração e com a própria mentalidade dos nossos cidadãos pois, infelizmente, nem todos eles ainda têm conhecimento dos seus direitos ou, pelo menos, dos meios que existem à sua disposição para fazerem valer os seus direitos”, e (pág. 3957) preconiza que “a única forma de obstar a que o mau funcionamento da nossa justiça em geral e da nossa justiça administrativa em particular possa prejudicar, definitivamente, os direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados é permitir que os tribunais possam regular a sua situação jurídica enquanto dura o processo, por forma a que, se a sentença vier a ser favorável, o administrado possa efectivamente retirar a utilidade que pretende dessa mesma sentença”, terminando com um apelo e um desejo de que as alterações ao artigo 268.º sejam efectivamente assumidas por todos, já que apesar das sucessivas revisões que foram feitas ao texto constitucional original, a “prática pouco se tem alterado, quer a prática da nossa Administração quer,

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formalística em que vem a redundar o direito jurisprudencial - é o caso da adjectivação do acto recorrível como definitivo e executório, do problema conexo da mecânica das competências dos directores-gerais, do estrangulamento da legitimidade activa 86, da confirmatividade do acto apesar do art.º 9.º, n.º s 1 e 2, do Código do Procedimento Administrativo, da compreensão do art.º 214.º, n.º 3, da Constituição (versão de 1989), enquanto norma atributiva de atribuições/competência, como mera norma descritiva. 47.Não pode deixar de se ver nessa formalística uma compreensão do “direito administrativo” como privilégio das administrações, esquecendo que afinal aquele mais não é que o direito dos administrados contra os privilégios das administrações. A este propósito do desfasamento jurisprudencial, Marcelo Rebelo de Sousa refere que se encontra “ainda hoje, perante a realidade nova que temos do Direito Administrativo dos últimos quase 20 anos, a aplicação de posições doutrinárias que já não correspondem nem ao texto constitucional, nem à filosofia ou à principiologia do sistema administrativo português” 87. 48.A par desta Raison Administratif, índice da justice deleguée, temos a manutenção do foro privativo do administrador, em 1.ª instância, a exigir juizes de categorias superiores, em sessões colegiais de julgamento. Não se pode ignorar o acréscimo de garantia de “acerto” dado pela colegialidade, sendo certo que o consenso implicado se obtém por um apego maior ao status quo - de qualquer forma, é desadequada a formação colegial em 1.ª instância, ao contrário da regra dos restantes tribunais, na medida em que os custos que acarreta não possibilitam a disseminação de tribunais pelo país, além de que pressupõem uma tramitação processual vocacionada à não celeridade.

infelizmente, até a dos nossos tribunais, cuja jurisprudência não pode dizer-se que tenha evoluído substancialmente nos últimos anos”. De tal modo, que até José Carlos Vieira de Andrade, na análise d’«As transformações do contencioso administrativo na Terceira República Portuguesa», in Legislação - Cadernos de Ciência de Legislação, INA, n.º 18, Janeiro-Março de 1997, pág. 78, exorta o legislador no sentido de dar seguimento às novas directrizes constitucionais e reformar a justiça administrativa, “responsabilizando os juízes pela fiscalização efectiva da juridicidade administrativa, em especial, pela protecção efectiva e eficiente dos direitos dos cidadãos”. Parece ser de ponderar que o recurso de amparo ou a acção constitucional de defesa, tal como propostos aqui e agora, têm o significado, não só de constatação de que os tribunais em geral não traduzem uma tutela eficaz dos direitos, liberdades e garantias, dos cidadãos, sendo certo que o acesso à Justiça constitui ele mesmo um direito fundamental; mas também o de reconhecer o Tribunal Constitucional, como tribunal por excelência dos direitos fundamentais dos cidadãos, a que não será alheio o prestígio que já alcançou - cfr Guilherme da Fonseca, «O papel da jurisprudência constitucional», in AAVV, Perspectivas Constitucionais - Nos 20 anos da Constituição de 1976, dir de Jorge Miranda, Volume II, Coimbra Editora, 1997, e José Casalta Nabais, «Os direitos fundamentais na jurisprudência do Tribunal Constitucional», in Universidade de Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXV, 1989.

86 Cfr Guilherme da Fonseca, «Garantia do recurso contencioso e fundamentação do acto administrativo», in AAVV, Estudos sobre a Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Aequitas, Lisboa, 1993, pág. 316.

87 Marcelo Rebelo de Sousa, «A Administração dos Cidadãos - desafios em Portugal», in Administração Pública e Direito Administrativo em Portugal, AAFDL, Lisboa, 1992, págs 78 e seguinte.

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49.Acresce que, num país de administração pública do tipo executivo, em que o acto autoritário unilateral é ainda preponderante e corriqueiro, apenas existem cinco tribunais de contencioso administrativo, três de 1.ª instância, um intermédio, e o outro supremo, estes dois mistos de 1.ª e 2.ª instância. De tal modo, que um litígio entre um cidadão e uma autoridade administrativa, por exemplo, dos Açores, é dirimida no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, com recurso jurisdicional para o Supremo Tribunal Administrativo, também em Lisboa. Da mesma forma, a audiência de discussão e julgamento, no âmbito de uma acção de indemnização por factos verificados na Madeira (outro exemplo), é realizada em Lisboa, no Tribunal Administrativo do Círculo, onde se deslocam os advogados e as testemunhas. O desfavorecimento geográfico nega o acesso ao Direito e à Justiça garantido constitucionalmente. 50.Com a 3.ª República a Administração Pública portuguesa entrou numa nova fase, em que se mantêm o predomínio, embora atenuado, da administração central, com forte aumento do intervencionismo estatal, a par de uma liberalização do sistema de garantias dos particulares 88. De acordo com a estimativa do Professor Freitas do Amaral, em 1994, haveria 5500 pessoas colectivas públicas (275 municípios no continente, +- 100 associações públicas, 900 institutos públicos) 55000 serviços públicos, e 520000 funcionários e agentes administrativos 89. Por outro lado, a expansão da Administração Pública tem sido efectuada de modo “avulso, casuístico, caótico”, com sobrevivência de regimes contraditórios entre si, o que a torna uma manta de retalhos 90, e a fragiliza de tal forma que, a par da precariedade dos direitos dos particulares, “não garante nem a autoridade do poder político nem a segurança dos cidadãos” 91. 51.Daí que, a par dos desfavorecimento geográfico no acesso à Justiça, tenhamos um deficit de tribunais tremendo, carência que não pode conduzir a interpretações restritivas dos direitos dos administrados, sob pena de se cair em direitos e garantias meramente nominativos e platónicos 92.

88 Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2.ª Edição, Vol. I, Almedina, Coimbra, 1994, págs 87 e

seguintes. 89 Ibidem, pág. 37. 90 Assim, Marcelo Rebelo de Sousa, «Um retrato actual da Administração portuguesa», in Administração

Pública e Direito Administrativo em Portugal, AAFDL, Lisboa, 1992, págs 44 e seguintes. 91 Ibidem, pág. 48. 92 Cfr Freitas do Amaral, «Apreciação da dissertação de doutoramento do Mestre Vasco Pereira da Silva: “Em

busca o acto administrativo perdido”, Lisboa, 1995», in Universidade Católica, Direito e Justiça, Volume X, 1996, tomo 2, págs 257 e seguinte. Sobre a interacção entre direitos fundamentais, organização e procedimento, vide Gomes Canotilho, «Tópicos de um curso de mestrado sobre direitos fundamentais, procedimento, processo e organização», in Universidade de Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LXVI, 1990, págs 165 e seguintes.

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Por isso, face também à crescente regulação da vida em sociedade, desde o nascimento até à morte, não pode deixar de se considerar, cada vez mais com premência, o acesso à Justiça, como uma das dimensões de validade daquela regulação 93. D-O Tribunal Central Administrativo I-Orgânica 52.A nível orgânico, a reforma intercalar de 1996/97, criou o Tribunal Central Administrativo (art.º 1.º, alínea b), do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril 94), e permitiu a agregação dos tribunais administrativos de círculo, dos tribunais tributários de 1.ª instância e dos tribunais fiscais aduaneiros, para funcionarem só com um juiz, quando o seu diminuto serviço o justifique (art.º 1.º, n.º 3), se bem que posteriormente esta agregação não tenha tido seguimento. II-Tribunal Central Administrativo 53.O Tribunal Central Administrativo, com sede em Lisboa e jurisdição em todo o território nacional (art.º 36.º, n.º 1), compreende duas secções, uma do Contencioso Administrativo (1.ª Secção) e outra do Contencioso Tributário (2.ª Secção) (n.º 2), podendo aquela funcionar por subsecções, de competência genérica ou especializada em função do meio processual utilizado ou da natureza da questão a conhecer (n.º 3). O Tribunal Central Administrativo tem um presidente, coadjuvado por dois vice-presidentes (art.º 37.º, n.º 1 95), eleitos, aquele de entre e por todos os juizes do Tribunal (art.º 16.º, ex vi o art.º 38.ª), e estes de entre e pelos juizes de cada uma das respectivas Secções (art.º 37.º, n.º 2) O Tribunal Central Administrativo conhece de matéria de facto e de direito (art.º 39.º), sendo vocacionado aos actos e matérias relativos ao funcionalismo público, precisamente os “que tenham por objecto a definição de uma situação decorrente de uma relação jurídica de emprego público” (art.º 104.º). III-Competência 93 Vide, entre outros, Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado, 3.ª edição, Fundação Calouste Gulbenkian,

Lisboa, 1997, págs 383 e seguintes e 462 e seguintes. 94 As disposições legais citadas sem indicação são do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, na redacção da

reforma de 1996. 95 O art.º 37.º do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, tem a redacção resultante do Decreto-Lei n.º 229/96, de

29 de Novembro, mantendo embora a anterior epígrafe “Presidência e preenchimento das secções”, sendo certo que a matéria relativa ao preenchimento das secções se encontra regulada no art.º 15.º, por força da remissão operada pelo art.º 38.º.

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54.A competência da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo é a de conhecer, entre outros (art.º 40.º): a)-Dos recursos de decisões dos tribunais administrativos de círculo que versem sobre matéria relativa ao funcionalismo público ou que tenham sido proferidas em meios processuais acessórios; b)-Dos recursos de actos administrativos ou em matéria administrativa praticados pelo Governo, seus membros, Ministros da República e Provedor de Justiça, todos quando relativos ao funcionalismo público, pelos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas e seus membros, pelo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, pelos Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, pelos órgãos colegiais de que algum faça parte, com excepção do Conselho Superior de Defesa Nacional, bem como por outros órgãos centrais independentes ou superiores do Estado de categoria mais elevada que a de director-geral. 55.Verifica-se, pois, que o Tribunal Central Administrativo é um tribunal de recurso jurisdicional das decisões dos tribunais administrativos de círculo e um tribunal de 1.ª instância de contencioso administrativo. 56.Como tribunal de recurso jurisdicional, o Tribunal Central Administrativo conhece de decisões jurisdicionais (dos tribunais administrativos de círculo) (i) que versem sobre matéria relativa ao funcionalismo público ou (ii) que tenham sido proferidas em meios processuais acessórios 57.Como 1.ª instância de contencioso administrativo, o Tribunal Central Administrativo conhece de recursos de actos administrativos ou em matéria administrativa praticados (i) pelo Governo, seus membros, Ministros da República e Provedor de Justiça, todos quando relativos ao funcionalismo público, ou (ii) pelos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas e seus membros, pelo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, pelos Chefes de Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, pelos órgãos colegiais de que algum faça parte, com excepção do Conselho Superior de Defesa Nacional, bem como por outros órgãos centrais independentes ou superiores do Estado de categoria mais elevada que a de director-geral.

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IV-Funcionalismo público 58.Parte da competência do Tribunal Central Administrativo é dada pois pelas expressões “matéria relativa ao funcionalismo público”, e “actos administrativos ou em matéria administrativa quando relativos ao funcionalismo público”. Para tais efeitos, o art.º 104.º considera “actos e matéria relativos ao funcionalismo público os que tenham por objecto a definição de uma situação decorrente de uma relação jurídica de emprego público” 96 97. V-Meios processuais acessórios 59.Os meios processuais acessórios considerados na delimitação da competência jurisdicional do Tribunal Central Administrativo são: a “suspensão de eficácia dos actos” (art.ºs 76.º e seguintes da Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho), a “intimação para consulta de documentos ou passagem de certidões” (art.ºs 82.º e seguintes), a “intimação para um comportamento” (art.ºs 86.º e seguintes), a “produção antecipada da prova” (art.ºs 92.º e seguintes), e a “execução de julgados” (art.ºs 95.º e seguintes). Todos estes meios processuais, com excepção da “execução de julgados”, são urgentes (art.º 6.º, n.º 1). 60.Estes meios processuais são de diversa natureza, configurando, ou procedimentos cautelares (“suspensão de eficácia dos actos”, “produção antecipada de prova”, “intimação para um comportamento”), ou processos especiais (“execução de julgados”, “intimação para consulta de documentos ou passagem de certidões”, “intimação para um comportamento”). A nota de acessoriedade dada pela lei pretenda traduzir, não só a circunstância de legalmente serem considerados como meios contenciosos atípicos, uma vez que os típicos são o recurso e a acção 98, como também a sua dependência em relação a outro meio 99, embora essa

96 O art.º 104.º, enquanto definição do conceito legal “matéria relativa ao funcionalismo público” encontra-se

colocado no TÍTULO III “DISPOSIÇÕES FINAIS E TRANSITÓRIAS”, sendo certo que a sua inserção sistemática deveria ocorrer no TÍTULO I “TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS”, CAPÍTULO I “DISPOSIÇÕES GERAIS”, uma vez que integrante da competência jurisdicional fixada nos art.ºs 26.º, n.º 1, alínea c), e 40.º, alíneas a) e b). É, aliás, o que acontece com o art.º 9.º, n.º 1, na definição de contrato administrativo para efeitos de competência contenciosa.

97 Sobre “emprego público”, vide José Luís Pereira Coutinho, «A relação de emprego público na Constituição. Algumas notas», in Estudos sobre a Constituição, coordenação de Jorge Miranda, 3.º volume, Livraria Petrony, Lisboa, 1979, Francisco Liberal Fernandes, Autonomia colectiva dos trabalhadores da Administração, crise do modelo clássico de emprego público, Stvdia Ivridica 9, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1995, Giovanni Paleologo, Profili di Pubblico Impiego, Principi Generali, Dirigenza statale, Contrattazione collettiva, Dott. A. Giuffrè Editore, Milano, 1980, Pietro Virga, Il pubblico impiego, Dott. A. Giuffré Editore, Milano, 1991.

98 Cfr Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo (lições), Volume IV, Lisboa, 1988, pág. 327.

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dependência possa não verificar-se na prática, como acontece com a “intimação para consulta de documentos ou passagem de certidões”; ou possa traduzir um pressuposto constitutivo como se verifica na “execução de julgados”. 61.Os recursos jurisdicionais dos meios processuais, “suspensão de eficácia dos actos”, “produção antecipada da prova” e “execução de julgados”, originam o seguinte absurdo: a competência jurisdicional do Tribunal Central Administrativo, em sede de 2.ª instância contenciosa, é dada pela matéria relativa ao funcionalismo público, pelo que o que aqui não couber pertence à competência jurisdicional do Supremo Tribunal Administrativo; contudo, nestes casos, a respectiva “suspensão de eficácia dos actos”, ou “produção antecipada da prova” ou “execução de julgados”, são conhecidos em 2.ª instância pelo Tribunal Central Administrativo. É o caso, por exemplo, de uma decisão autárquica em matéria de urbanismo: o recurso contencioso, instaurado no tribunal administrativo de círculo, é conhecido em 2.ª instância pelo Supremo Tribunal Administrativo (art.º 26.º, n.º 1, alínea b), e art.º 40.º, alínea a), I parte, ambos do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril); a “suspensão de eficácia”, instaurada no tribunal administrativo de círculo, sobe em 2.ª instância ao Tribunal Central Administrativo, por força do art.º 40.º, alínea a), II parte, do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril. Não se vislumbra a razão de ser da disparidade. 62.Alguma legislação administrativa tem criado meios processuais tendencialmente equiparáveis a meios processuais acessórios, que contudo são de configurar como processos especiais, pelo que se encontram excluídos da hipótese normativa do art.º 40.º, alínea a), II parte, do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, geradora da competência jurisdicional do Tribunal Central Administrativo. E-Juizes 63.Em matéria de juizes, a reforma intercalar de 1996/97 limitou-se a incluir a categoria dos juizes do Tribunal Central Administrativo na carreira dos juizes da jurisdição administrativa e fiscal, sem que tenha alterado o respectivo estatuto. Uma das adaptações implicadas foi a extinção da categoria de “juiz presidente de tribunal administrativo de círculo”.

99 José Carlos Vieira de Andrade, Direito Administrativo e Fiscal, Lições ao 3.º Ano do Curso de 1993/94,

da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, págs 94 e 95.

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F-Meios processuais 64.A reforma intercalar de 1996/97 limitou-se a ajustar a tramitação processual à existência do Tribunal Central Administrativo. 65.Entre esses ajustes, cabe referir um relativo ao Ministério Público. Nos termos do art.º 15.º da Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, na redacção do Decreto-Lei n.º 229/96, de 29 de Novembro, “no Supremo Tribunal Administrativo e no Tribunal Central Administrativo o representante do Ministério Público a quem, no processo, esteja confiada a defesa da legalidade assiste às sessões de julgamento e é ouvido na discussão”. Se esse representante do Ministério Público for assistido por técnico, este também poder ser ouvido na discussão, mas agora só se o tribunal o achar conveniente - art.º 14.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril. De acordo com o art.º 3.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo (Decreto-Lei n.º 41.234, de 20 de Agosto de 1957, as sua sessões “serão públicas, mas as decisões serão tomadas em conferência particular”. No Tribunal Central Administrativo, o julgamento compete ao relator e a dois outros juizes, sem prejuízo das decisões que caibam àquele, sujeitas a reclamação para a conferência (art.º 34.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, ex vi o art.º 43.º). 66.No Tribunal Central Administrativo, como em todos os tribunais superiores, há dois órgãos jurisdicionais, a conferência e o relator. A conferência é um tribunal colegial, em que o julgamento do objecto do recurso obedece aos trâmites de “discussão” e “formação da decisão do tribunal” consignados no art.º 709.º do CPC. 67.Temos assim que, numa primeira leitura, apesar do carácter reservado do órgão jurisdicional “conferência”, o Ministério Público assiste à reunião da respectiva secção e intervém na discussão, embora não dê o seu voto. À reunião da conferência não assistem as partes, nem os seus representantes. Contudo, uma outra leitura parece possível, mais consentânea com o jogo da natureza das intervenções legalmente exigidas - a sessão é pública e aí é o campo de intervenção do Ministério Público, e das partes e seus representantes, para o que terão de ser convocados. 68.Num tribunal colegial, como órgão colegial que é, o modo de transmutação das vontades individuais em vontade do colégio é dado pelo procedimento colegial, e consequente acto colegial.

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Começa-se pela discussão dirigida pelo presidente, através da qual, o colégio toma conhecimento do objecto da deliberação e dos interesses em jogo, conhecimento que advém sobretudo da exposição do relator. De seguida, a discussão propriamente dita traduz-se numa mecânica em que os membros do colégio vão formulando proposições constituintes do texto da deliberação, sujeitas a modificações, com relevo em momentos de assentimento ou não, a redundar no deliberando. Por fim, o fecho da discussão abre o sub-procedimento “votação”, com cada um dos membros do órgão colegial a declarar a vontade de aderir ou não às proposições do deliberando. O deliberando que obtém a maioria das adesões dos membros do órgão, concretiza a deliberação deste, e torna-se deliberado 100. 69.Inserindo o Ministério Público no procedimento colegial, verificamos que a lei impõe a sua intervenção e participação na elaboração do texto da deliberação, até à abertura do sub-procedimento “votação”. Apesar de tal intervenção se encontrar circunscrita à sub-fase “discussão”, não pode deixar de se afirmar o seu carácter co-constitutivo 70.É manifesto que o Ministério Público não é juiz, por isso não tem virtualidade para integrar um tribunal colegial. Pela Constituição, ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática (art.º 219.º, n.º 1) 101. De acordo com o art.º 69.º do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, as funções do Ministério Público, nos tribunais administrativos e fiscais, são as (n.º 1) de defender a legalidade e promover a realização do interesse público, (n.º 2) de representação judiciária do Estado no contencioso de acções, e (n.º 3) de representação ou defesa de interesses de outras pessoas indicados por lei. Para tal, o Ministério Público “actua oficiosamente e goza dos poderes e faculdades estabelecidos nas leis de processo” - art.º 71.º do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril. Caso o Ministério Público intervenha em defesa da legalidade tem os poderes que cabem às partes, nomeadamente, aos recorrentes. Nos restantes casos de intervenção, mediante vista ou requerimento, o art.º 27.º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, confere ao Ministério 100 Cfr Massimo Severo Giannini, Diritto Amministrativo, Volume secondo, Terza Edizione, Giuffrè Editore,

Milano, 1993, págs 134 e seguintes. 101 Uma visão sobre a evolução do Ministério Público pode ver-se no texto do Assento do Supremo Tribunal de

Justiça de 27.10.94, in BMJ-440,72, págs 75 e seguintes. Cfr Eduardo Arala Chaves, «O Ministério Público, O seu passado e o seu presente», in Universidade de Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito, Vol. LVI, 1980.

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Público os direitos processuais de (a)) suscitar a regularização da petição, excepções, nulidades e quaisquer questões que obstem ao prosseguimento do recurso e pronunciar-se sobre questões que não tenha suscitado, (b)) promover diligências de instrução, (c)) emitir parecer sobre a decisão final a proferir, (d)) arguir vícios não invocados pelo recorrente, e (e)) requerer, assumindo a posição de recorrente, o prosseguimento de recurso interposto durante o prazo em que podia impugnar o respectivo acto, para julgamento não abrangido em decisão, ainda não transitada, que tenha posto termo ao recurso por desistência ou outro fundamento impeditivo do conhecimento do seu objecto. Procurando sintetizar as atribuições do Ministério Público, temos funções de representação judiciária do Estado Administração Central, e de defesa judiciária de interesses alheios, aqui incluído o interesse público. Aqui é de reter a expressão “o representante do Ministério Público a quem, no processo, esteja confiada a defesa da legalidade”, constante do art.º 15.º da Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho. 71.Assim, avança-se a ideia segundo a qual a audição do Ministério Público nas sessões do Tribunal Central Administrativo se desenrola em sede de defesa judiciária do interesse público, ou seja, o interesse público concretizado pela actuação das entidades públicas e questionado jurisdicionalmente. 72.Pode agora questionar-se a validade da audição do Ministério Público nas sessões do Tribunal Central Administrativo. Se a sessão é pública, tal audição deve ser contextualizada pela possibilidade do contraditório, emanação do acesso ao tribunal e à justiça, mediante um processo equitativo (art.º 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição). Se a sessão afinal não é pública, então o Ministério Público configura-se como juiz, desvirtuado do seu papel constitucional (art.ºs 202.º, n.º 2, 203.º, 219.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição). 73.Talvez a grande (e única) benfeitoria em relação aos direitos dos administrados de acesso à Justiça venha a ser a consagração do “2.ª grau de jurisdição”. Na verdade, de acordo com a redacção original do art.º 103.º do Decreto-Lei n.º 267/85, de 16 de Julho, não era admissível recurso jurisdicional de acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo que decidissem sobre recursos de actos do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais ou do seu presidente, ou sobre a suspensão de eficácia de actos contenciosamente impugnados 102.

102 Cfr Luciano Marcos, «Da inconstitucionalidade do art.º 103.º/d) da L.P.T.A.», in AAFDL, Revista Jurídica,

n.ºs 13 e 14, Janeiro-Junho de 1990.

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Agora, a partir da reforma intercalar de 1996/97, mercê de reorganização das competências contenciosas da secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo (art.º 26.º, n.º 1, alínea c), do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril), passa a haver uma segunda pronúncia jurisdicional, circunscrita aos processos julgados em 1.ª instância pelos tribunais administrativos de círculo e pelo Tribunal Central Administrativo. 74.Mas daqui resulta uma outra constatação - não era preciso a criação de um novo tribunal, a Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo, para se obter a consagração do “2.º grau de jurisdição” 103. § 8.º-E agora ...! 75.Acaba-se como se começou, com o envelhecimento do Tribunal Central Administrativo, perante os direitos dos administrados emergentes da IV Revisão Constitucional (1997). Não só o Tribunal Central Administrativo, em 1.ª instância, falha na sua distanciação em relação aos cidadãos, tal como acontecia e acontece com o Supremo Tribunal Administrativo. Também não se verifica qualquer diferença qualitativa no funcionamento do Tribunal Central Administrativo em relação ao Supremo Tribunal Administrativo - ambos são órgãos colegiais, aplicando-se-lhes as mesmas regras de tramitação. Daí que o efeito de descongestionamento que se pretende seria obtido com a criação de mais uma secção do Supremo Tribunal Administrativo. 76.Mas, talvez haja um caminho a explorar desde já, e que vem indicado pelo legislador constituinte ao consagrar a tutela jurisdicional efectiva dos administrados perante a Administração Pública - direito a uma decisão jurisdicional célere e útil, isto é, direito a uma decisão com reflexos nos interesses defendidos pelo respectivo titular, no âmbito de um processo em que haja a igualdade de armas processuais, num contexto em que é claramente estabelecida a hierarquização e prioridade dos direitos, liberdades e garantias pessoais. Assim, um pouco mais de audácia dos tribunais poderá vir a pôr parafernália processual hoje existente - acções constitutivas, declarativas, de condenação, executivas, e cautelares - ao serviço dos administrados, a fim de lhes reconhecer direitos, eliminar actos administrativos lesivos, determinar ou impor a prática de actos administrativos legalmente devidos, acautelar os direitos, e eliminar as normas regulamentares lesivas 104.

103 Cfr a intervenção do Sr Deputado Luís Sá, a propósito da IV Revisão Constitucional (1997), na reunião

plenária da Assembleia da República de 15.7.97, in Diário da Assembleia da República, VII, 2.ª (1996-97), I, n.º 94, de 16.7.97, considerando a criação do Tribunal Central Administrativo como um passo no sentido do duplo grau de jurisdição.

104 Cfr o debate a propósito da alteração do art.º 268.º da Constituição, na reunião plenária da Assembleia da República de 30.7.97, in Diário da Assembleia da República, VII, 2.ª (1996-97), I, n.º 104, de 31.7.97.

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Sim, e um pouco mais de criatividade, também!

Lisboa, Novembro de 1997