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Jurisprudência do STJ Publicado in www.verbojuridico.net Processo n.º 4540/2004 Data do Acórdão: 09-12-2004 Relator: Cons. Simas Santos Descritores: Princípio do juiz natural - Recusa de juiz desembargador – Requisitos - Revogação da aplicação da prisão preventiva - Recurso da decisão de não pronúncia - Imparcialidade objectiva. Sumário: 1 - A consagração do princípio do juiz natural ou legal (intervirá na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas) surge como uma salvaguarda dos direitos dos arguidos, e encontra-se inscrito na Constituição (art. 32.°, n.° 9 - "nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior"). 2 - Mas a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos desse princípio levou à necessidade de os acautelar através de mecanismos que garantam a imparcialidade e isenção do juiz também garantidos constitucionalmente (art.ºs 203.° e 216.°), quer como pressuposto subjectivo necessário a uma decisão justa, mas também como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela comunidade, e que compreendem os impedimentos, suspeições, recusas e escusas. Mecanismos a que só é licito recorrer em situação limite, quando exista motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. 3 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, com base na intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art. 40.º do CPP. 4 - A intervenção em recurso de Juízes Desembargadores que revogam o despacho que aplicou a prisão preventiva a uma arguido, por entenderem que se não verificam indícios suficientes da prática por este dos crimes imputados, num juízo autónomo e detalhado de tais indícios deve levar à sua recusa, nos termos do art. 43.º, n.º 2 do CPP, no recurso posterior interposto da decisão de não pronuncia desse mesmo arguido, por constituir um caso paralelo "inverso" do previsto na parte final do art. 40.º do CPP. 5 - Não estando em causa a imparcialidade subjectiva dos julgadores que importava ao conhecimento do seu pensamento no seu foro íntimo nas circunstâncias dadas e que se presume até prova em contrário, não se verifica a imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas por forma a preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos. M . S. S.

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Jurisprudência do STJ Publicado in www.verbojuridico.net Processo n.º 4540/2004 Data do Acórdão: 09-12-2004 Relator: Cons. Simas Santos Descritores: Princípio do juiz natural - Recusa de juiz desembargador – Requisitos - Revogação da aplicação da prisão preventiva - Recurso da decisão de não pronúncia - Imparcialidade objectiva. Sumário: 1 - A consagração do princípio do juiz natural ou legal (intervirá na causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas) surge como uma salvaguarda dos direitos dos arguidos, e encontra-se inscrito na Constituição (art. 32.°, n.° 9 - "nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior"). 2 - Mas a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos perversos desse princípio levou à necessidade de os acautelar através de mecanismos que garantam a imparcialidade e isenção do juiz também garantidos constitucionalmente (art.ºs 203.° e 216.°), quer como pressuposto subjectivo necessário a uma decisão justa, mas também como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela comunidade, e que compreendem os impedimentos, suspeições, recusas e escusas. Mecanismos a que só é licito recorrer em situação limite, quando exista motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. 3 - A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, com base na intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art. 40.º do CPP. 4 - A intervenção em recurso de Juízes Desembargadores que revogam o despacho que aplicou a prisão preventiva a uma arguido, por entenderem que se não verificam indícios suficientes da prática por este dos crimes imputados, num juízo autónomo e detalhado de tais indícios deve levar à sua recusa, nos termos do art. 43.º, n.º 2 do CPP, no recurso posterior interposto da decisão de não pronuncia desse mesmo arguido, por constituir um caso paralelo "inverso" do previsto na parte final do art. 40.º do CPP. 5 - Não estando em causa a imparcialidade subjectiva dos julgadores que importava ao conhecimento do seu pensamento no seu foro íntimo nas circunstâncias dadas e que se presume até prova em contrário, não se verifica a imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas por forma a preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos. M . S. S.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Processo n.º 4540/04, 5.ª Secção. Única instância Relator: Conselheiro Simas Santos

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1.

Os assistentes, no processo n° 6882/04, 3 Secção da Relação de

Lisboa, vieram requerer:

«Os Assistentes, assim formalmente constituídos no âmbito dos

referenciados autos, no caso de não vir a ser atribuído efeito suspensivo ao

recurso pelos mesmos interposto do acórdão proferido em 06.10.2004 pelo

Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n° 3 169/04, que corre

seus termos pela 3ª Secção do referido Supremo tribunal, vêm, por mera

cautela de patrocínio, expor e requerer a V. Ex” o que se segue.

1. O arguido P...., melhor identificado nos autos, por não se conformar

com a decisão judicial que decidiu pela aplicação da medida de coacção de

prisão preventiva, interpôs recurso junto do Tribunal da Relação de Lisboa.

2. O qual veio a merecer provimento, com os votos favoráveis dos

Venerandos Desembargadores C... e T....

3. Inconformados com a decisão instrutória relativa ao caso “Casa

Pia”, nos termos da qual foi proferido despacho de não pronúncia

relativamente aos arguidos P...., H... e F..., os aqui assistentes vieram a

interpor recurso ordinário.

4. O qual foi distribuído à 3” Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

sob o n° 6882/04.

5. Tendo sido, face a uma notícia do Jornal ‘Público”, oportunamente

deduzido incidente de recusa relativamente ao Venerando Desembargador

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Processo n.º 4540/04, 5.ª Secção. Única instância Relator: Conselheiro Simas Santos

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Relator V….., interveniente no recurso que se irá pronunciar sobre a referida

decisão instrutória.

6. Incidente esse que, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,

não foi apreciado por alegada falta de objecto.

7. Sustenta, para o efeito, não ter o Venerando Desembargador

recusado intervenção no processo, nem como juiz relator, nem como juiz

adjunto, uma vez que, de acordo com a informação prestada pelo Venerando

Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, “O Relator do processo é o

Senhor Desembargador Dr. C..., sendo Adjuntos os Senhores

Desembargadores Dr. M…. e Dr. T....”

8. Precisamente os mesmos que, mediante intervenção em fase

processual anterior, à excepção do Venerando Desembargador M... que

votou vencido, colocaram em liberdade o arguido P...., com fundamento na

inexistência de indícios suficientes.

9. Pelo que é de esperar que voltem a considerar não existirem

indícios suficientes, e, nessa medida, venham a confirmar o despacho de não

pronúncia.

10. O que constitui motivo de preocupação dos aqui Assistentes.

11. Os quais consideram não se encontrarem reunidas as garantias de

imparcialidade e objectividade dos Venerandos Desembargadores C... e T...,

atenta a intervenção em fase processual anterior dos mesmos e o sentido do

acórdão atrás referido, relativamente à decisão final que venha a ser

proferida no âmbito dos autos de recurso.

12. Decisão essa que é definitiva, já que processualmente é

insusceptível de qualquer posterior reapreciação.

13. Pelo que torna-se bem evidente para os Assistentes que é maior a

injustiça resultante da absolvição definitiva daqueles a quem imputam os

crimes contra si praticados do que a submissão destes a julgamento, sede

própria para provar a sua inocência, caso ela exista.

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Processo n.º 4540/04, 5.ª Secção. Única instância Relator: Conselheiro Simas Santos

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14. Daí que a Justiça do caso concreto imponha uma decisão

absolutamente isenta e totalmente imparcial quanto aos interesses em jogo,

de modo a não ser merecedora de qualquer reparo.

15. Nos termos anteriormente expostos, e ao abrigo do preceituado no

artigo 43°, n° 1, do Código de Processo Penal (CPP), requerem os Assistentes

que seja deferido o pedido de recusa de Juiz ora suscitado, uma vez que a

sua intervenção no processo corre o risco de ser considerada suspeita, por

existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua

imparcialidade.

Nos termos precedentes, e caso não venha a ser atribuído efeito

suspensivo ao recurso, relativo à recusa de juiz, interposto pelos assistentes

em 22.10.2004, por mera cautela de patrocínio, pedem os aqui assistentes o

deferimento do presente requerimento de recusa de juiz contra os exm°s

senhores venerandos desembargadores Dr. C... e Dr. T....»

Requereram, ainda, ao abrigo do disposto no art. 45.º, n°s 1 e 3,

do CPP, a instrução de tal requerimento com cópia do acórdão da

Relação de Lisboa que, em Outubro de 2003, colocara em liberdade o

arguido P.... no âmbito do processo 1718/02.9JDLSB e cópia do

acórdão de 6.10.2004 deste Supremo Tribunal de Justiça relativamente

ao incidente de recusa de juiz deduzido pelos assistentes.

2.1.

O Senhor Desembargador Relator Dr. C... pronunciou-se, ao

abrigo do disposto no art. 45.º, n.º 2 do CPP:

«1. A recusa e a escusa de um juiz, tal como o seu impedimento [basta,

para tanto, comparar o disposto nos artigos 390 e 400 do Código de Processo Penal] visam,

como se sabe, em determinados casos, garantir a imparcialidade do tribunal

[desiderato que não é apenas prosseguido por estes institutos mas também justifica o regime

estabelecido no artigo 23° do Código de Processo Penal] (artigo 430, n° 1, do Código de Processo

Penal) e, noutros, impedir a prática de uma pluralidade de actos processuais pelo mesmo

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magistrado como forma de assegurar o sentido de cada um desses actos e, assim, efectivar o

modelo processual que se quis erigir (artigo 43°, n° 2, do mesmo diploma legal) [Ver, neste

sentido, AROCA, Juan Montero, in «Sobre la Imparcialidad dei Juez y la Incompatibilidad de

Funciones Procesales», Tirant lo Blanch, Valência, 1999].

2. Os assistentes [note-se que, através do requerimento apresentado, fica-se sem

saber quais são os assistentes que suscitam o incidente. De facto, para além da «Casa Pia de

Lisboa» (admitida como assistente apenas quanto ao crime de peculato de uso imputado ao

arguido Carlos Silvino — v. fls. 16 323), foram, pelo despacho de fls. 18 412, admitidas 17 pessoas

singulares como assistentes, sendo que a maioria delas não tem qualquer relação com o

requerido], ao invocarem como fundamento do seu pedido o citado n° 1 do

artigo 43° do Código de Processo Penal e ao reproduzirem parte do seu

texto, afirmando que existe motivo sério e grave de suspeita, parecem querer

colocar apenas a questão da imparcialidade do juiz e já não a da eventual

incompatibilidade entre os actos por ele praticados.

3. Parece que, para os requerentes, a decisão de um recurso relativo à

prisão preventiva de um arguido deve obstar a que o juiz que a proferiu

aprecie posteriormente um outro recurso desse mesmo arguido, ainda que

interpostos ambos nas fases preliminares do processo [curiosamente, os

assistentes não suscitaram incidente idêntico relativamente à sr° juíza que presidiu à fase da

instrução se bem que ela tenha, depois de apreciar as medidas de coacção impostas aos arguidos,

vindo a proferir a decisão instrutória].

4. Em concreto, no entender dos requerentes, a imparcialidade do

signatário para a apreciação do presente recurso, interposto do despacho de

não pronúncia, estaria afectada pelo facto de ele ter subscrito, juntamente

com os seus colegas Desembargadores T... e M..., o acórdão n° 7002/03, que

revogou um despacho que tinha mantido a prisão preventiva imposta a um

dos arguidos que vieram a ser posteriormente não pronunciados e ordenou

que o mesmo fosse restituído à liberdade.

5. É, em primeiro lugar, curioso que este incidente apenas tenha sido

suscitado quanto aos dois juízes desembargadores que fizeram vencimento

naquele acórdão e não também quanto ao que nele ficou vencido, uma vez

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que todos, e não apenas os dois primeiros, se pronunciaram, embora em

sentidos diferentes, sobre as questões colocadas pelo então recorrente.

6. De facto, os requerentes não suscitam agora o incidente de recusa

daquele outro magistrado, embora considerem (se bem que erradamente

[Tendo-me sido distribuído o processo fiquei sendo o relator (corpo do n° 1 do artigo 7000 do

Código de Processo Civil), devendo intervir na conferência os juizes seguintes (n° 2 da mesma

disposição), que, no caso, são os Desembargadores T... e A…..]) que o Dr. M... integra o

colectivo a quem, por sorteio e em resultado do funcionamento das regras

legais, cabe apreciar o presente recurso, nem o fizeram anteriormente

quando suscitaram o incidente de recusa do Dr. V…, sendo certo que,

naquela altura, se esperava que o Dr. M... viesse a ter intervenção nos autos

uma vez que, durante as férias judiciais, tinha aposto o visto no processo e

se preparava para intervir na conferência em que o presente recurso deveria

ter sido julgado.

7. Perdoe-se-nos o desabafo. Mais parece que se está a tentar compor

um tribunal “à medida” [E, mais do que isso, sujeito a regras próprias. De facto, de uma

forma larvar, tenta-se inculcar a ideia de que, no nosso direito processual penal, um nível mínimo

de indícios seria suficiente para proferir um despacho de pronúncia (veja-se, sobre o tema,

recentemente, SILVEIRA, Jorge Noronha e, in «O conceito de indícios suficientes no processo

penal português», in «Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais», Almedina,

2004, p. 155 e segs.) e que seria na audiência que os arguidos deveriam provar a sua inocência! o

que consta do ponto 13 desse requerimento quando aí se afirma que, para os assistentes, ‘é maior

a injustiça resultante da absolvição definitiva daqueles a quem imputam os crimes contra si

praticados do que a submissão destes a julgamento, sede própria para provar a sua inocência,

caso ela exista»] do que a pretender salvaguardar a imparcialidade.

8. Feito este reparo, centremo-nos no essencial: a questão da

imparcialidade [para um amplo tratamento da imparcialidade à luz da Convenção

Europeia dos Direitos do Homem, veja se QUIROGA, Jacobo Lopez Baija de, in «Tratado de

Derecho Procesal Penal», Aranzadi, 2004, p. 355 e segs].

9. A imparcialidade pressupõe, de um ponto de vista objectivo, que o

juiz não tenha qualquer relação, ou pelo menos uma relação próxima, nem

com “as partes”, nem com o objecto do litígio [Veja-se, neste sentido, JUNOY, Joan

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Pico Y, in oLa Imparcialidad Judicial y sus garantias: la abstention y la recusación», J. M.

Bosch Editor, Barcelona, 1998, p. 23] ou seja, que se encontre numa posição de

«desinteresse e neutralidade» [veja-se ASENSIO, Rafael Jiménez, in o Judicial y

Derecho aI Juez Imparcial», Aranzadi, Navarra, 2002, p. 71].

10. Neste caso, há cerca de um ano, quando relatei o acórdão n°

7002/03, não existia nenhuma relação com “as partes” deste processo e com

o seu objecto.

11. Hoje, a situação mantém-se inalterada.

12. Diga-se, de resto, que nem mesmo os requerentes afirmam existir

qualquer relação desta natureza.

13. Por isso, não vejo que, de um ponto de vista objectivo, se possa

pôr em causa a minha imparcialidade.

14. Também nada afecta a minha imparcialidade subjectiva. No

acórdão que anteriormente relatei procurei respeitar escrupulosamente o

que entendi ser uma correcta realização do direito no caso concreto, não

tendo, minimamente, extravasado esse limite.

15. Por isso, não vejo como é que o facto de ter proferido aquela

decisão deva obstar a que intervenha no julgamento do presente recurso.

16. Essa decisão não constitui qualquer factor alheio ao exercício da

minha função que comprometa a minha imparcialidade [a imparcialidade

subjectiva estará garantida quando ‘o juiz não pretender servir os interesses de nenhuma das

partes no processo, isto é, quando o seu julgamento for apenas determinado pelo correcto

cumprimento da função que tem a seu cargo, quer dizer, pela realização do direito objectivo no

caso concreto, sem que qualquer circunstância alheia ao exercício dessa função influa na decisão

(Montero Aroca, ob. cit. p. 187 e 188)].

17. Não existe, portanto, em meu entender, qualquer fundamento para

o requerimento ora apresentado.»

2.2.

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8

O Senhor Desembargador Dr. T... pronunciou-se igualmente,

nos termos do n.º 2 do art. 45.º do CPP:

«Depois do Exmo. Desembargador Dr. C... se ter pronunciado, com

brilhantismo, sobre o requerimento apresentado pelos assistentes – ou por

alguns deles –, apenas diremos, pela nossa parte, nos termos e para os

efeitos do n.° 2 do art. 45° do Cód. Proc. Penal, que sempre procurámos

decidir, ao longo dos anos, apenas em conformidade com a lei e segundo os

ditames da nossa consciência, sem pré-juízos e sem reparar ao nome dos

sujeitos processuais.

Assim continuaremos a proceder, independentemente de quaisquer

posições, aliás respeitáveis, que outros possam tomar.»

3.

Recebidos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça, o Relator

ordenou a junção de cópia certificada do segundo acórdão proferido

no processo n.º 3169/04, da 3.ª Secção.

Colhidos os vistos legais, foram os autos presentes à

conferência, pelo que cumpre conhecer e decidir.

3.1.

Os assistentes vieram, «por mera cautela de patrocínio»,

requerer a recusa de Juiz, «no caso de não vir a ser atribuído efeito

suspensivo ao recurso pelos mesmos interposto do acórdão proferido

em 06.10.2004 pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do

processo n° 3 169/04, que corre seus termos pela 3ª Secção do referido

Supremo Tribunal».

Importa, pois, considerar a condição aposta ao requerimento

sujeito, desde logo, quanto à eventual ocorrência.

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Como se vê da cópia certificada que se mandou juntar, a Casa

Pia de Lisboa e os Assistentes, não se conformaram com o acórdão de

6.10.04 (proc. n.º 3169/04-3) que recaiu sobre o incidente de recusa

que haviam deduzido dela recorreram, nos termos dos art.ºs 69°, n.º 2,

al. c), 399.º, 400.°, n.° 1, a contrario sensu, 401°, n.° 1 al. b), e 411°, n.° 1

do CPP, para o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de

Justiça (art.ºs 11°, n.° 2 al. b) e 433.º ), recurso a subir em separado e

imediatamente, com efeito suspensivo.

Mas, a 3.ª Secção deste Tribunal, por acórdão de 3.11.04,

decidiu não receber tal recurso.

Verificada está, pois, a condição aposta ao presente

requerimento, pelo que nada obsta ao seu conhecimento.

3.2.1.

E conhecendo.

A consagração do princípio do juiz natural ou legal (intervirá na

causa o juiz determinado de acordo com as regras da competência

legal e anteriormente estabelecidas) surge como uma salvaguarda dos

direitos dos arguidos, e encontra-se inscrito na Constituição (art. 32.°,

n.° 9 “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência

esteja fixada em lei anterior”).

Mas a possibilidade de ocorrência, em concreto, de efeitos

perversos desse princípio, levou à necessidade de os acautelar através

de mecanismos que garantam a imparcialidade e isenção do juiz,

também garantidos constitucionalmente (art.ºs 203.° e 216.°), quer

como pressuposto subjectivo necessário a uma decisão justa, mas

também como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela

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comunidade, e que compreendem os impedimentos, suspeições,

recusas e escusas.

Mecanismos a que só é licito recorrer em situação limite,

quando exista motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança

sobre a sua imparcialidade.

Dispõe o art. 43.º, n.º 1 do CPP que a intervenção de um juiz no

processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada

suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar

desconfiança sobre a sua imparcialidade (n.º 1), podendo constituir

fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz

noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos

casos do art. 40.º (n.º 2).

O que impõe, para que possa ser pedida a recusa de juiz, que:

⎯ A sua intervenção no processo corra risco de ser considerada

suspeita;

⎯ Por se verificar motivo, sério e grave;

⎯ Adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

É, pois, imprescindível a ocorrência de um motivo sério e grave,

do qual ou no qual resulte inequivocamente um estado de forte

verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz

(propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento

de outro), a avaliar objectivamente.

Na verdade, não basta a simples discordância jurídica em

relação aos actos processuais praticados por um juiz, que podem

conduzir à impugnação processual; não basta um puro convencimento

subjectivo por parte de um dos sujeitos processuais para que se

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Processo n.º 4540/04, 5.ª Secção. Única instância Relator: Conselheiro Simas Santos

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verifique a suspeição, tendo de haver uma especial exigência quanto à

objectiva gravidade da invocada causa de suspeição.

É que do uso indevido da recusa resulta, como se viu, a lesão do

princípio constitucional do juiz natural, ao afastar o juiz por qualquer

motivo fútil.

Neste sentido se vem pronunciando este Tribunal:

— «(4) - A regra do n.º 2 do art.º 43.º do CPP, agora introduzida pelo DL 59/98, de

25-08, só adquire sentido, como do próprio contexto do artigo dimana, se o fundamento da

recusa que nele se contempla se apoiar nos mesmos pressupostos - os da existência de

motivo sério e grave - que alicerçam aquele que se define no n.º 1 do referido normativo. (5)

- É precisamente a imprescindibilidade desse motivo sério e grave que faz não só avultar a

delicadeza desta matéria, como leva a pressentir que, subjacente ao instituto da recusa, se

encontra a necessidade (e a conveniência) de preservar o mais possível a dignidade

profissional do magistrado visado e, igualmente, por lógica decorrência e inevitável

acréscimo, a imagem da justiça em geral, no significado que a envolve e deve revesti-la. (6)

Por isso é que, determinados actos ou determinados procedimentos (quer adjectivos, quer

substantivos) só podem relevar para a legitimidade da recusa que se suscite, se neles, por

eles ou através deles for possível aperceber - aperceber inequivocamente – um propósito de

favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro. (7) - As meras

discordâncias jurídicas com os actos processuais praticados ou com a sua ortodoxia, a não se

revelar presciente, através deles, ofensa premeditada das garantias de imparcialidade, só por

via de recurso podem e devem ser manifestadas e não através de petição de recusa» (Ac. do

STJ de 27-05-1999, proc. n.º 323/99).

— «(1) - O fundamento básico de recusa de juiz consiste em o mesmo poder ser

considerado suspeito, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre

a sua imparcialidade. (2) - Para a sua correcta processualização, haverá no entanto que

alegar sempre factos concretos que possam alicerçar tal desconfiança e indicar as normas

legais aplicáveis que fundamentam a recusa» (Ac. do STJ de 29-06-2000, proc. n.º 943-B/98).

— «(4) - A simples discordância jurídica em relação aos actos processuais praticados

por um juiz, podendo e devendo conduzir aos adequados mecanismos de impugnação

processual, não pode fundar a petição de recusa. (5) - Se o recorrente se limita

"objectivamente" a invocar simples discordâncias jurídicas e a partir daí, sem desenvolver

qualquer esforço probatório ou argumentativo, concluiu que o Senhor Juiz recusado se

colocou "decidida e decisivamente, do lado da sua Colega proponente da acção em causa",

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Processo n.º 4540/04, 5.ª Secção. Única instância Relator: Conselheiro Simas Santos

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em seu favorecimento manifesto, denunciando claramente com esses despachos "a especial

afinidade, afeição e amizade", assim a "grande intimidade" entre o Juiz e o requerente, é de

indeferir a pedida recusa.» (Ac. de 16/05/2002, 3914/01-5, do mesmo Relator)

— (1) A consagração do princípio do juiz natural ou legal (intervirá na causa o juiz

determinado de acordo com as regras da competência legal e anteriormente estabelecidas)

surge como uma salvaguarda dos direitos dos arguidos, e encontra-se inscrito na

Constituição (art. 32.°, n.° 9 − “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja

competência esteja fixada em lei anterior”). (2) Mas a possibilidade de ocorrência, em

concreto, de efeitos perversos desse princípio levou à necessidade de os acautelar através de

mecanismos que garantam a imparcialidade e isenção do juiz também garantidos

constitucionalmente (art.ºs 203.° e 216.°), quer como pressuposto subjectivo necessário a

uma decisão justa, mas também como pressuposto objectivo na sua percepção externa pela

comunidade, e que compreendem os impedimentos, suspeições, recusas e escusas.

Mecanismos a que só é licito recorrer em situação limite, quando exista motivo sério e grave,

adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. (3) A intervenção de um juiz no

processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir

motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, com base

na intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos

casos do art. 40.º do CPP. (4) A simples discordância jurídica em relação aos actos

processuais praticados por um juiz, podendo e devendo conduzir aos adequados mecanismos

de impugnação processual, não pode fundar a petição de recusa, pois não basta um puro

convencimento subjectivo por parte de um dos sujeitos processuais para que se verifique a

suspeição. Tem de haver uma especial exigência quanto à objectiva gravidade da invocada

causa de suspeição, pois do uso indevido da recusa resulta, como se viu, a lesão do princípio

constitucional do Juiz Natural, ao afastar o juiz por qualquer motivo fútil. (Ac. de 9.12.2004,

proc. n.º 4308/04-5, do mesmo Relator).

Posições que, como também já ponderou este Tribunal, se

compaginam igualmente com a Convenção Europeia dos Direitos do

Homem e jurisprudência sobre ela tirada.

— «(1) - O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) já foi chamado a

apreciar vários recursos em que se suscitaram questões semelhantes - chegando a

conclusões diferentes, em consequência de o Tribunal de Estrasburgo, nas suas sentenças,

não se vincular a uma jurisprudência de conceitos ou a raciocínios dedutivos, concluindo de

proposições tomadas como premissas outras proposições através de simples regras lógicas;

método que não convém à argumentação filosófica, irredutível a um simples encadeamento

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formal que representaria completamente o conhecimento de ligação entre conceitos,

preferindo uma metodologia que se traduz na análise de cada caso nas suas particularidades

para, em função destas, decidir se se mostra violado o art. 6º, § 1 da Convenção Europeia que

garante o direito a um tribunal independente e imparcial. (2) - O TEDH, relativamente à

imparcialidade garantida no referido art. 6º, § 1, entende que esta deve apreciar-se de um

duplo ponto de vista: aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção

pessoal de tal juiz em tal ocasião; e também, segundo uma apreciação objectiva, isto é se ele

oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima. E também

tem dito que o Tribunal não tem por missão examinar in abstracto a legislação e a prática

pertinentes, antes a de averiguar o modo como elas são aplicadas ao interessado ou

infringem o art. 6º § 1. (3) - O que conta é a extensão e a natureza das medidas tomadas pelo

juiz antes do processo. O simples facto de um juiz ter tomado decisões antes do processo não

pode justificar, em si, as apreensões quanto à sua imparcialidade. (4) - É esta jurisprudência

da maior relevância no caminho a um tempo construtor do princípio da imparcialidade

objectiva do tribunal e da sua aplicação à diversidade dos casos concretos, que vem trilhando

a jurisprudência da instância europeia. A imparcialidade, como exigência específica de uma

verdadeira decisão judicial, define-se, por via de regra, como ausência de qualquer prejuízo

ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão. (5) - O

TEDH tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário; e que, sendo

assim, a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e o

elevado grau de generalização e de abstracção na formulação de conceito apenas pode ser

testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos actos

processuais do juiz. As dúvidas sobre a imparcialidade no plano objectivo apenas se poderão

suscitar formalmente sempre que o juiz desempenhe no processo funções ou pratique actos

próprios da competência de outro órgão ou tenha tido intervenção no processo numa outra

qualidade; não integrando qualquer destas hipóteses o caso em que o juiz exerce no

processo uma função puramente judiciária, integrada tanto processualmente como

institucionalmente na mesma fase para a qual o sistema nacional de processo penal lhe

atribui competência.» (Ac. do STJ de 13-01-1998, proc. n.º 877/97).

3.2.2.

Como se viu, de acordo com o n.º 2 do art. 43.º do CPP, a

intervenção do juiz noutro processo, ou em fases anteriores do mesmo

processo fora dos casos do art. 40.º do mesmo diploma, pode

constituir fundamento de recusa.

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14

Ora, no caso sujeito, os requerentes invocam exactamente a

intervenção dos mesmos Senhores Juízes Desembargadores em outro

recurso atinente ao mesmo processo de inquérito e instrução e a um

arguido também recorrido no recurso onde foi deduzida a recusa.

Dispõe-se naquele art. 40.º que nenhum juiz pode intervir em

recurso ou pedido de revisão relativos a uma decisão que tiver

proferido ou em que tiver participado, ou no julgamento de um

processo a cujo debate instrutório tiver presidido ou em que, no

inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a

prisão preventiva do arguido.

Na dimensão que aqui releva, importa reter que nenhum juiz

pode intervir no julgamento de um processo em que, no inquérito ou

na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão

preventiva do arguido.

Este segmento da norma resultou da alteração introduzida pela

Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto que introduziu a expressão «ou em que

tiver aplicado e posteriormente mantido a prisão preventiva» indo ao

encontro da declaração do Tribunal Constitucional, com força

obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do art.

40.º do CPP, na parte em que permitia a intervenção no julgamento do

juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a

prisão preventiva do arguido, por violação do art. 32.º, n.º 5, da

Constituição (Ac. n.º 186/98 de 18.2.98, DR-ISA de 20.3.1998) e ainda da

intercalação da expressão «o inquérito ou na instrução» a seguir a «em

que» feita pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro.

Escreveu o Relator noutro local (Leal-Henriques e Simas Santos, CPP

Anotado, I volume, pág. 238-9) sobre essa evolução legislativa:

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«Acompanhamos o Conselheiro MAIA GONÇALVES, quando em anotação a este artigo escreve: «não descortinamos porque é que um juiz de instrução fica necessariamente preso a um pré-juízo só porque aplicou ao arguido uma qualquer medida de coacção, ainda que seja prisão preventiva.». Com efeito, e como defendíamos no STJ, o impedimento mesmo nestes casos dependeria das circunstâncias, v.g. de ter sido formulado pelo juiz um juízo autónomo, divergente do que lhe era proposto e que implicaria um mais elevado grau de envolvimento.

Se o juiz de instrução aplicou uma outra qualquer medida de coacção, que não a prisão preventiva, não fica automaticamente impedido, impondo-se uma análise casuística a poder originar o pedido de suspeição. O mesmo se diga de outras intervenções do juiz de instrução, como autorização de escuta telefónica ou busca domiciliária.

Como dá notícia o STJ (Ac. de 98-01-13, proc. n.° 877/97), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, relativamente à imparcialidade garantida no art.° 6.°, § 1, da Convenção Europeia, que garante o direito a um tribunal independente e imparcial, entende que esta deve apreciar-se de um duplo ponto de vista: aproximação subjectiva, destinada à determinação da convicção pessoal de tal juiz em tal ocasião; e também, segundo uma apreciação objectiva, isto é, se ele oferece garantias bastantes para excluir a este respeito qualquer dúvida legítima. E também tem dito que o Tribunal não tem por missão examinar in abstracto a legislação e a prática pertinentes, antes a de averiguar o modo como elas são aplicadas ao interessado ou infringem o art.° 6.° § 1. Conta, sim, a extensão e a natureza das medidas tomadas pelo juiz antes do processo. O simples facto de um juiz ter tomado decisões antes do processo não pode justificar, em si, as apreensões quanto à sua imparcialidade.

E tem entendido o mesmo Tribunal que a imparcialidade se presume até prova em contrário; e que, sendo assim, a imparcialidade objectiva releva essencialmente de considerações formais e o elevado grau de generalização e de abstracção na formulação de conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, na análise in concreto das funções e dos actos processuais do juiz. As dúvidas sobre a imparcialidade no plano objectivo apenas se poderão suscitar formalmente sempre que o juiz desempenhe no processo funções ou pratique actos próprios da competência de outro órgão ou tenha tido intervenção no processo numa outra qualidade; não integrando qualquer destas hipóteses o caso em que o juiz exerce no processo uma função puramente judiciária, integrada tanto processualmente como institucionalmente na mesma fase para a qual o sis tema nacional de processo penal lhe atribui competência.

Como considerou o STJ (Ac. de 98-01-13, proc. n.° 8 77/97), a esta luz, mesmo o facto de o juiz instrutor ter intervindo somente em actos processuais isolados, nas fases anteriores ao julgamento (v.g. na “aplicação de uma medida de coacção”), em tal caso não ficará ele impedido de participar no mesmo julgamento; sem prejuízo, em todo o caso, de os sujeitos processuais interessados poderem requerer a recusa de um tal juiz — e ele próprio poder formular um pedido de escusa sempre que a participação anterior no processo, se bem que meramente incidental, esteja rodeada de circunstâncias susceptíveis de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador (art.° 43.°). Assim tomou o Código de Processo Penal posição equilibrada sobre a noção de “tribunal independente e imparcial” para efeito do disposto no art. 6.° § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, referindo-se então o STJ à redacção anterior deste artigo.»

Mas, voltemos ao mencionado acórdão com força obrigatória

geral, dada a sua influência na alteração legislativa.

Escreve-se aí, citando o Ac. n.º 935/96 do mesmo Tribunal (de

10.7.96, DR IIS de 11.12.96):

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«Pretende a Constituição que os arguidos, que hajam de ser

submetidos a julgamento, acusados da prática de uma infracção criminal,

tenham um julgamento independente e imparcial, que é justamente o que

também se lhes garante no artigo 6. º, n.º 1, da Convenção Europeia dos

Direitos do Homem, aprovada pela Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, quando

aí se dispõe como segue: “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa

seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um

tribunal independente e imparcial [...]”.

Num Estado de direito, a solução jurídica dos conflitos há-de, com

efeito, fazer-se sempre com observância de regras de independência e de

imparcialidade, pois tal é uma exigência do direito de acesso aos tribunais,

que a Constituição consagra no artigo 20.º, n.º 1 (…). A garantia de um

julgamento independente e imparcial é, de resto, também uma dimensão – e

dimensão importante – do princípio das garantias de defesa, consagrado no

artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, para o processo criminal, pois este tem de

ser sempre a due process of law.

Para que haja um julgamento independente e imparcial, necessário é

o que o juiz que a ele proceda possa julgar com independência e

imparcialidade.

Ora, a independência do juiz "é acima de tudo, um dever – um dever

ético-social. A “independência vocacional”, ou seja, a decisão de cada juiz

de, ao “dizer o direito”, o fazer sempre esforçando-se por se manter alheio –

e acima – de influências exteriores é, assim, o seu punctum saliens. A

independência, nessa perspectiva, é sobretudo uma responsabilidade que

terá a “dimensão” ou a “densidade” da fortaleza de ânimo, do carácter e da

personalidade moral de cada juiz" (…).

E continua a citar o mesmo aresto:

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«Com sublinhar estes pontos não pode, porém, esquecer-se a

necessidade de existir um quadro legal que “promova” e facilite aquela

“independência vocacional”.

Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz

seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e

a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.

É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público

nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em

condições de “administrar justiça”. Nesse caso, não deve poder intervir no

processo, antes deve ser pela lei impedido de funcionar – deve, numa

palavra, poder ser declarado iudex inhabilis.

Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E

importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como

um julgamento objectivo e imparcial. E que a confiança da comunidade nas

decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao

“administrar a justiça”, actuem, de facto, “em nome do povo” (cf. artigo 205.º, n.º

1, da Constituição)»

Ainda citando o mesmo Acórdão n.º 935/96, refere que o

impedimento previsto na versão originária do art. 40.º do CPP tinha

como objecto obstar a que o juiz de instrução pudesse “eventualmente

vir a ser influenciado pelo conhecimento dos factos do processo no

decurso da fase instrutória, com vista a garantir a imparcialidade e a

independência do tribunal”.

E frisa o mesmo Acórdão com força obrigatória geral,

acompanhando a posição de Jorge Figueiredo Dias, que «a solução do

impedimento expresso por participação em processo anterior já não se

justifica se atentarmos em actos isolados (v. g. aplicação de uma

medida de coacção) que o juiz de julgamento tiver praticado na

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qualidade de juiz de instrução» (Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria

João Antunes, Coimbra, 1988-1989, pp. 101-102), admitindo aquele Autor que os

sujeitos processuais pudessem apresentar um requerimento de

impedimento ao juiz que se limitasse a praticar um acto isolado de

instrução – ou mesmo que o próprio juiz pudesse formular um pedido

de dispensa, «sempre que a intervenção anterior no processo

comportasse circunstâncias que impliquem desconfianças quanto à

imparcialidade do juiz».

Citando novamente o Ac. n.º 935/96:

«Quando o juiz reaprecia a subsistência da prisão preventiva que

antes decretou, num momento em que o inquérito está a chegar ao seu

termo e em que já existem no processo quase todos os elementos que é

possível carrear sobre a autoria do crime imputado ao arguido e sobre a sua

gravidade, pode dizer-se que fica com uma convicção de tal modo arreigada

quanto a estes aspectos do processo que, objectivamente – e sem prejuízo da

independência interior que ele for capaz de preservar –, fica

inexoravelmente comprometida a sua independência e imparcialidade na

fase do julgamento.»

Conclui-se, assim, que a norma do artigo 40.º do Código de Processo

Penal, na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na

fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do

arguido, é inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 5 da

Constituição.».

3.2.3.

No caso presente, relembre-se, os dois Senhores Juízes

Desembargadores, cuja recusa se pede, decidiram, na Relação de

Lisboa – acórdão de 8.10.04 proferido no recurso n.º 7002/03, 3.ª

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Secção, «revogar o despacho recorrido e, consequentemente, a medida

de coacção por ele mantida, ordenando a imediata libertação do

arguido P….», tendo o Senhor Juiz Desembargador Dr. M... votado

vencido, pois, de acordo com a declaração que juntou, revogaria o

despacho recorrido, substituindo a medida de coacção de prisão

preventiva pela obrigação do arguido permanecer na habitação, art.

201.º, n.º 1 do CPP.

Nesse acórdão são analisados detalhadamente os indícios

documentados, referentes àquele arguido, designadamente os

depoimentos de seis testemunhas e o valor dos reconhecimentos em

geral e dos reconhecimentos fotográficos em particular.

E escreve-se naquele aresto, na «avaliação global desses

indícios»:

«16 – Do que se disse, resulta por demais evidente que todos os indícios recolhidos são claramente insuficientes para imputar ao arguido a prática de qualquer crime concreto. Isto bastaria, só por si, para revogar a prisão preventiva que lhe foi aplicada e determinar a sua libertação imediata (artigo 27°, n° 3, alínea b), da Constituição da República Portuguesa e artigos 202°, n° 1, alínea a), e 212°, n° 1, alínea a), do Código de Processo Penal).

Mas, mesmo que se entendesse que existiam indícios com algum grau de consistência, ou mesmo que eles eram suficientes para deduzir uma acusação ou suportar um despacho de pronúncia, nunca seriam “fortes”, como exige a lei para a imposição das três medidas de coacção mais graves, entre as quais se conta a prisão preventiva

Contrariamente ao que se diz no despacho prévio à solicitação de levantamento da imunidade parlamentar, a expressão “fortes indícios” representa uma exigência acrescida de probabilidade de condenação relativamente ao conceito de “indícios suficientes”

E, note-se, que, de resto, já este conceito pressupõe «a mesma exigência de verdade requerida para o julgamento final. A diferença está apenas na maior fragilidade dos elementos considerados, uma vez que resultam de uma actividade não contraditória, sem imediação, nem oralidade.

Essa maior exigência, de resto, bem se justifica já que é muito mais grave sujeitar uma pessoa à prisão preventiva do que deduzir contra ela uma acusação, por muito relevante e pernicioso que isso mesmo possa ser. O entendimento contrário, levado até ao absurdo, legitimaria que se prendesse preventivamente uma pessoa em relação à qual não existiam sequer indícios para, contra ela, deduzir acusação. A prisão preventiva nesse caso só poderia servir, então, como meio de obter indícios, o que, pelo menos desde 1972, é expressamente proibido, legal e constitucionalmente.».

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O que vale por dizer que os Senhores Desembargadores cuja

recusa se pede, formularam, naquele recurso, um juízo autónomo e

fundamentado sobre a (in)existência de indícios suficientes para a

dedução de acusação contra o arguido P…..

E fizeram-no no processo de inquérito onde veio a ser proferida

a decisão de não pronúncia relativamente aos arguidos P...., H... e F....

Dessa decisão foi interposto recurso para a Relação de Lisboa (3ª

Secção, n° 6882/04), no qual se pede a recusa agora em apreciação.

Na impugnação pendente é colocada à Relação de Lisboa, que

decidirá sem recurso, a questão de saber se os autos contêm ou não

indícios suficientes da prática pelos recorridos, entre os quais se inclui

P….., dos crimes que lhes são atribuídos na acusação deduzida.

Nesse recurso têm intervenção os dois Senhores

Desembargadores que concluíram naqueloutro recurso pela

inexistência de indícios da prática daqueles crimes pelo arguido P…..,

num juízo autónomo e divergente do despacho que aplicara a medida

de coacção de prisão preventiva.

Fazendo uma aproximação ao segmento do art. 40.º do CPP, que

destacamos, o julgamento da questão de saber se verificam aqueles

indícios suficientes, que estiveram na origem da aplicação da prisão

preventiva, é atribuída aos Juízes que já decidiram revogar

exactamente esse despacho por entenderem que inexistem tais

indícios suficientes.

Como vimos, aquele segmento do art. 40.º do CPP dispõe que

nenhum juiz pode intervir no julgamento de um processo em que, no

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inquérito ou na instrução, tiver aplicado e posteriormente mantido a

prisão preventiva do arguido.

Ora no caso presente são chamados, sem possibilidade de

revista, ao julgamento da existência de indícios suficientes, os mesmos

juízes que revogaram a prisão preventiva do arguido. O que constitui

como que um lugar paralelo inverso do expressamente previsto na

parte final do falado art. 40.º

Que cai igualmente na alçada do n.º 2 do art. 43.º do CPP,

podendo constituir fundamento de recusa enquanto intervenção do

juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo.

É que importa notar, de acordo com a posição que se já

adiantou, que os dois Senhores Juízes, cuja recusa se pede, tiveram

uma intervenção anterior de fundo sobre a matéria em apreciação que

não se confinou a um universo formal e esporádico, mas antes se

revelou detalhada e autónoma num juízo divergente daquele que então

apreciaram. Na verdade, não se limitaram a confirmar medida

aplicada sem proceder a uma análise crítica autónoma, nem a discutir

a legalidade da medida, por outros parâmetros que não os dos indícios

da prática dos crimes.

O que permite, dentro do entendimento deste Supremo Tribunal

de Justiça (Ac. de 98-01-13, proc. n.° 8 77/97 citado por Leal-Henriques e Simas Santos,

loc. cit.), que se considere que esta intervenção dos dois Senhores

Juízes, no anterior recurso no mesmo processo criminal, se rodeou de

circunstâncias susceptíveis de gerar desconfiança sobre a

imparcialidade do julgador, por forma a poder fundar um pedido de

recusa pelos interessados, à luz do art. 43.º do CPP, conjugado com o

disposto no art. 40.º, parte final do mesmo diploma.

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De notar, aliás, que o art. 122.º do Código de Processo Civil, no

seu n.º 1, al. c) diz textualmente que [nenhum juiz pode exercer

funções em jurisdição contenciosa ou voluntária]: «quando tenha

intervindo na causa como mandatário ou perito ou quando haja que

decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha

pronunciado, ainda que oralmente».

Não está em causa a imparcialidade subjectiva dos julgadores

que importava o conhecimento do seu pensamento no seu foro íntimo

nas circunstâncias dadas e que, aliás, se presume até prova em

contrário.

«Mas – como refere Ireneu Barreto (Notas para um processo equitativo,

análise do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à luz da jurisprudência da

Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, in Documentação e Direito Comparado,

n.ºs 49-50, pp. 114 e 115) – esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma

imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas,

porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo

com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must

also be seen to be done.

Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta

de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade

democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.»

Como acontece, como se viu, no presente pedido de recusa.

4.

Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Supremo

Tribunal de Justiça em deferir ao pedido de recusa dos Senhores

Juízes Desembargadores C…. e T..., no recurso n.º 6882/04-3 da

relação de Lisboa.

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Sem custas.

Lisboa, 9 de Dezembro de 2004

Manuel José Carrilho de Simas Santos (Relator)

José Vaz dos Santos Carvalho

António Joaquim da Costa Mortágua