o triângulo secreto

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Didier Convard O TRIÂNGULO SECRETO As lágrimas do papa Tradução Maria Alice Araripe de Sampaio Doria

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Um thriller que leva o leitor ao coração da Maçonaria e que mostra os segredos dos Templários e o lado obscuro do Vaticano. Com excelente visão histórica, As Lágrimas do Papa será um sucesso que deixará todos ansiosos pelo segundo volume.

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Page 1: O Triângulo Secreto

3ª prova

Didier Convard

O TRIÂNGULO SECRETOAs lágrimas do papa

TraduçãoMaria Alice Araripe de Sampaio Doria

Abertura Triângulo-a 13.01.12 20:15 Page 3

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1.

O cortejo

As chamas das tochas crepitavam ao vento. A espessa chuva fria jáanunciava a neve. Dois homens e duas mulheres carregavam umcorpo envolvido num sudário branco, seguidos pelos vultos de umaprocissão, recolhidos e silenciosos.

O cortejo avançava por uma floresta de carvalhos. Ao gesto deum homem muito velho, que ia à frente, todos pararam. Os quatroque levavam o cadáver depuseram-no no solo argiloso. Era uma terrade marga pastosa que colava nas solas das sandálias. Uma terra rica eperfumada.

O ancião se posicionou junto à cabeça do morto, os pés formandoum esquadro,* quase tocando o sudário. Imediatamente, seus compa-nheiros espetaram as tochas na terra e, dando-se as mãos, formaramum círculo em torno do corpo estendido.

Todos estavam unidos. Todos se davam as mãos com força. O ancião, erguendo com os braços tal cadeia humana, disse as se-guintes palavras:

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* O esquadro é um dos símbolos maçônicos mais usuais. (N. T.)

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— Já que está na hora e temos a idade,* vamos abrir os trabalhosda nossa Loja.

Homens e mulheres ergueram e abaixaram a corrente de braçospor três vezes, depois a romperam.

E o ancião falou.A chuva havia dobrado de intensidade, empurrada pelo vento

sobre a clareira, encharcando os casacos de algodão e as túnicas delinho.

A voz do orador era fraca e rouca por ter sido muito usada, por tercantado em excesso o amor e a fraternidade através de mil regiões emil países. Era uma voz cansada e desencantada, uma voz triste.Infinitamente triste.

Quando o ancião terminou o discurso, três homens deram algunspassos e se abaixaram ao mesmo tempo. Levantaram uma argola debronze e, num impulso sonoro, arrancaram do solo uma laje de pedra,abrindo um túmulo vazio.

Tornaram a pegar o corpo do morto.O ancião se aproximou da cova onde agora repousava o amigo.

Seu mestre. Enfiando a mão sob o casaco, retirou um objeto e o apertoucontra si por um instante.

Inclinando-se lentamente, ajoelhou-se com dificuldade à beira dotúmulo escuro e chorou.

Chorou por longo tempo, antes de depositar o objeto no peito domorto. Erguendo-se, deu ordem para colocarem a laje no lugar e des-prenderem a argola de bronze. Em seguida, disse:

— Que teu Segredo permaneça contigo, Mestre... Malditos sejamtodos aqueles que tentarem roubar a tua Palavra para deturpá-la!Bendito sejas, meu irmão, pelo ensinamento que nos deixaste comoherança.

A argola lhe foi entregue. Apesar do peso, ele quis continuar asegurá-la, como uma relíquia.

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* Idade — Em geral, grau a que pertence o maçom. Conta-se a idade da Ordem a partir da data da iniciação do Aprendiz, e a idade simbólica é a do seu grau atual. (N. T.)

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Os homens e as mulheres retomaram o caminho e se embrenharamnovamente na espessa floresta, sob a luz das tochas com chamas incli-nadas.

O ancião ia na frente. Um rapaz muito jovem, com o rosto cobertode lágrimas e de chuva, foi ao encontro dele.

— Não encerramos os trabalhos, João... Por quê? — perguntou aomais velho.

O ancião respondeu:— Eles jamais serão encerrados, meu irmão... Jamais! Nossa Loja

se abriu para sempre, fora dos muros do seu templo, fora do tempo.Nosso trabalho apenas iniciou. Para toda a eternidade...

— O que faremos sem Ele?O ancião sorriu e respondeu:— Nós O buscaremos. E esse será o nosso trabalho. Por todos os

séculos dos séculos, nós o buscaremos, irmão...

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2.

A quinta mensagem

Didier Mosèle olhava a chuva cair no bulevar exterior.* Ele coloua testa no vidro frio da janela e ficou assim por alguns instantes, pensativo. Depois, saiu da janela, voltou para a mesa do escritóriocoberta de livros e documentos em desordem, procurou o maço decigarros, pegou um, acendeu e aspirou uma tragada de queimar ospulmões.

Didier Mosèle estava próximo dos quarenta anos. Tinha cabeloslouros e compridos penteados para trás, queixo pronunciado comuma covinha no centro, maçãs do rosto altas e ligeiramente salientes,olhos de um azul-claro quase acinzentado. Alto, de ombros largos,vestia jeans e camisa polo pretos.

Havia mais de uma hora que passava e repassava a fita cassete nogravador de trabalho. Havia mais de uma hora que fumava um cigarroatrás do outro, sentava-se, levantava-se, ia até a janela, voltava, desar-rumava os dossiês e pisava nos livros espalhados pelo chão.

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* O bulevar exterior faz parte do bulevar periférico, que é uma via de alta velocidadeque circunda Paris e que se divide em bulevar exterior e interior. O bulevar periféricoexterior é a via mais afastada do centro de Paris; portanto, a mais próxima do su-búrbio parisiense. (N. T.)

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E, mais uma vez, ele apertou o replay do aparelho. A voz foi ouvidano escritório. Uma voz apressada, nervosa, entrecortada por uma res-piração dolorosa:

“Meu Caríssimo Didier, quando escutar esta mensagem, sem dúvidanão estarei mais neste mundo. Meus perseguidores, em breve, me desco-brirão, e me resta pouco tempo para relatar os últimos acontecimentosque me levaram às portas da morte... Os assassinos estão na minha colahá muito tempo... Presumo que você tenha recebido a minha últimacarta. Ela não era muito enigmática? Conseguiu compreendê-la? Tentelembrar-se... Antes de sair da sua casa, eu disse que levaria cinco enve-lopes com o seu endereço. CINCO! Para nos lembrar da época em quehavíamos sido elevados ao grau de companheiro,* na nossa Loja-mãe**Eliah... Cinco! O número simbólico desse grau, durante o qual o maçomdeve viajar... Foi naquela noite, depois da nossa Sessão,1 que conversamoslongamente... Queríamos nos lançar numa incrível busca... Na ocasião,parecia uma aposta de intelectuais parisienses desejosos de oferecer a simesmos um último sopro de juventude. Ignorávamos que estávamosseguindo os passos de gigantes! O que achávamos não ser mais do queuma hipótese de ratos de biblioteca tornou-se uma investigação perigosa.O romanesco daquela noite, talvez um pouco regada demais abrouilly,*** se transformou em pesadelo!

E essa viagem vai custar a minha vida...Estávamos longe de pensar que uma prova material voltaria do pas-

sado para nos perturbar a ponto de comprovar de vez a hipótese demo-níaca que eu me deliciava em levantar!

Como vê, meu velho amigo... meu irmão... Estou perdendo tempo,de novo... Estou ruminando a origem da minha desgraça e não falo

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* Maçom de segundo grau. (N. T.)** Loja em que o maçom recebeu a iniciação. (N. T.)1 Nome dado à reunião maçônica.*** Vinho tinto de uma localidade do Rhône (Beaujolais). (N. T.)

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sobre o que você gostaria tanto de conhecer... Saber se a minha teoriaestava certa, não é?

Mas o próprio fato de eu estar tão perto da morte, de ser, em breve,eliminado por aqueles que ocultam o Segredo que existe há tantos séculos,não é a prova de que encontrei?”

Mosèle interrompeu a gravação e esmagou o cigarro, consumidopela metade, num cinzeiro. Levantando-se da poltrona, andou pelasala por alguns minutos e voltou até a mesa para continuar a escutara mensagem, cujo conteúdo sabia quase de cor:

“Abandone a nossa busca! Eu lhe imploro: feche todos os seuslivros, queime todos eles e sopre as cinzas ao vento! Esqueça tudo o quelhe disse. ESQUEÇA! Desconfio que o carimbo do correio desta últimaremessa vai chamar a sua atenção. Não se fie demais nele! Fique foradessa farsa macabra!”

Nova pausa e enésimo cigarro da noite. Mosèle jurou a si mesmoque ia parar de fumar. Mais tarde... Olhou o envelope de papel kraft,a embalagem do cassete. A remessa fora postada na estação de Reims,quatro dias antes. Seu endereço realmente havia sido escrito peloamigo Francis Marlane, que tinha a mania incorrigível de inclinar os“I” maiúsculos para a direita:

Senhor DIDIER MOSÈLE33, avenue de la Porte-Brancion. 75015 PARIS

Mosèle continuou a escutar:

“Didier, você se limitou às pesquisas livrescas e estava certo. Eu também deveria ter me contentado com elas e não devia ter me atiradofisicamente numa aventura para a qual não fui talhado.

Não passamos de anões diante desse enigma, Didier... de criançascegas e impotentes que devem ser destruídas para que a Mentira perdure...

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Os homens não são sensatos o suficiente para saber... O mundo viriaabaixo; os valores, a moral, as leis, tudo seria varrido por uma tempestadeque mergulharia a humanidade num abismo!

Suplico que destrua este cassete depois de escutá-lo. Peço que nãofale nada sobre isso tudo com ninguém. Em nome do nosso juramentode maçons, obedeça-me, meu irmão!

Fique fora dessa farsa macabra! Queime o envelope que foi com afita. Pelo nosso juramento, pela nossa iniciação, não siga o meu exemplo.De mim, guarde apenas as cartas que todo profano, ao se tornar maçom,lê pela primeira vez na sombra do Templo... As cartas cujo sentido realeu só compreendo agora, V.I.T.R.I.O.L.... que resume esta frase: ‘VisitaInteriora Terrae, Rectificandoque, Invenies Occultum Lapidem.’1 Principal-mente, não corrija nada, Didier! Não busque a pedra nem o irmão!Adeus, Meu Caríssimo Irmão.

Seu amigo perdido, Francis.”

Mosèle deixou que a fita terminasse por si mesma, girando vaziae cuspindo os últimos ruídos de estática. Empurrada pelo vento, achuva batia nas vidraças. Ruído surdo do bulevar exterior. Ruídoconstante de fundo, do qual, às vezes, se elevava uma sirene de po-lícia, um cantar de pneus... Era noite. O outono chegava. Uma noitecomum.

Mosèle tirou a fita do gravador, enfiou-a no bolso do jeans e digitouum número de telefone no celular. Alguns instantes depois:

— Martin? Aqui é Didier. Desculpe-me por incomodá-lo a essahora. Queria falar com você... Sim, o mais cedo possível... É muitosério. Prefiro não dizer nada ao telefone. Por favor, aceita me receber?Posso chegar aí em vinte minutos.

Satisfeito, Mosèle desligou o celular e, com o cigarro nos lábios,saiu do escritório. Na entrada, tirou, de passagem, a capa do cabide deparede.

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1 Visita o Interior da Terra e, Retificando, Encontrarás a Pedra Oculta.

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Do lado de fora, praguejou contra a chuva que o atingia de frente.Levantou o colarinho da capa e atravessou o pátio do prédio em algumas passadas, desembocando na avenida da Porte-Brancion, queservia de ligação com o bulevar periférico. Seu carro estava estacionadoperpendicularmente à calçada, do outro lado da rua. Mosèle esperoudois carros passarem e atravessou fora da faixa de pedestres.Imediatamente, uma caminhonete branca, estacionada a uns dezmetros, arrancou acelerando violentamente. Mosèle virou a cabeçana direção dela, espantado:

“Esse cara é louco. Parece que quer me...”Mal teve tempo de se jogar de lado para não ser atingido pela

caminhonete que, perceptivelmente, ia para cima dele. Choque dosjoelhos no chão. Contato com o piso encharcado.

O veículo virou na esquina da avenida, entrou no fluxo do trânsitodo bulevar e desapareceu. Mosèle se levantou; tempo suficiente paraver dois homens dentro da caminhonete. Visão fugidia. O passageiroo havia encarado. Ínfima fração de segundo em que Mosèle leu araiva nos olhos dele. Raiva de o motorista ter errado o alvo.

Mosèle chegou até o carro mancando ligeiramente. Abriu a porta,jogou-se no banco e, por um instante, ficou grudado na direção, refle-tindo... Por fim, acionou o contato.

— Esses malucos tentaram me atropelar de propósito!Deu-se conta de que havia mantido o cigarro nos lábios. Abriu a

janela e o jogou fora com um piparote. Sentia um gosto de tabacomolhado na garganta. Amargo e grudento. Pegajoso como os seuspensamentos. Isso porque Mosèle agora sabia que Francis Marlanehavia morrido. Francis, o seu amigo. O seu irmão! Francis, trinta eseis anos, em processo de divórcio, autor de sucesso modesto — masreconhecido — de várias obras históricas, aquarelista delicado e fran-co-maçom. Sem sombra de dúvida, tinha sido assassinado...

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3.

A Loja Eliah

Enquanto dirigia, Mosèle recordava.Nove anos atrás, na sede da Grande Loja da França, rua de

Puteaux... Ele acabara de ser iniciado juntamente com um rapazmoreno, aparência de adolescente, sorridente, olhar perpetuamentecurioso e radiante por trás das lentes dos óculos que lhe davam um arlunático, distraído e simpático. Francis Marlane, assim como Mosèle,usava um smoking. Mas dava a impressão de estar fantasiado; elenadava dentro do paletó e a gravata borboleta estava torta.

Logo depois da cerimônia de iniciação, que havia durado mais deduas horas, o Venerável* Martin Hertz, que oficiava na ocasião, con-vidara todos os irmãos para descerem ao Círculo Escocês, a fim departiciparem do banquete.

Martin Hertz, um gigante com aspecto de gato gordo, já de iníciofez um brinde:

— Parabéns, meus irmãos Didier e Francis, pois é assim que serãochamados de hoje em diante! Bem-vindos à Loja Eliah! Creio que vãose sentir bem entre nós.

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* Tratamento que se dá ao presidente das Lojas simbólicas. (N. T.)

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Um segundo irmão acrescentara, às gargalhadas:— O principal é que nos sintamos bem ao lado de vocês! Mas, já

que os maçons são tolerantes, então...Mosèle lembrou-se de ter sussurrado ao ouvido de Marlane:— Tolerância? Uma questão de tempo e de hábito. Presumo que

isso se aprenda!Marlane sorrira. Timidamente. Ainda estava sob o efeito da emoção

sentida durante a cerimônia. Olhava sem cessar para todos os lados,esticando seu pescoço de passarinho para a esquerda e para a direita.Ele se deixava impregnar pelo local, pelo rosto dos irmãos, pelaatmosfera do Círculo, aquele grande espaço composto de duas amplassalas abobadadas nas quais perambulavam os garçons de túnicas brancas e onde a fumaça dos cigarros e dos charutos começava a formar uma névoa espessa.

Marlane molhou os lábios na taça de champanhe. Depois, colocouo copo de volta na mesa e perguntou a Mosèle:

— Então, se compreendi bem a cerimônia, o fato de termos sidoiniciados juntos nos torna “gêmeos”?

Mosèle respondeu:— Sim... E confesso que nunca imaginei que ficaria tão emocionado

e encantado com um ritual!Sentado na frente deles, Hertz se intrometeu na conversa,

apontando-os com o garfo:— Isso porque não se trata de uma cerimônia comum. Essa

possui as indefectíveis virtudes da Tradição. Eis o segredo! Mosèle notara imediatamente a maneira como Hertz brincava

com os interlocutores, como os dominava com as garras quase à mostra, miando com voz suave. Ele prosseguiu:

— Não se esqueçam de que acabaram de prestar um juramento!Sob o olhar do Grande Arquiteto do Universo*... E, sobretudo, sob omeu! Ainda serei o Venerável por um ano. Em seguida, quando

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* Título dado à divindade suprema em todos os ritos maçônicos. (N. T.)

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terminar o meu mandato, ficarei à porta do Templo, como modestoporteiro da Loja, que chamamos de irmão Cobridor.* Durante trêsanos... É assim! A maçonaria nos ensina a humildade aos nos fazerbaixar de cargo.

Mosèle não acreditou na possibilidade de Hertz se tornar, algumdia, o irmão humilde que mencionava. No olhar que trocou comaquele homem gordo, Mosèle compreendeu que Hertz não era bobo.Havia um orgulho excessivo naquela aparente bondade. Um apetitevoraz nos olhos e nos lábios daquele homem... E uma maneira dezombar que encobria seus verdadeiros pensamentos sob um rosáriode banalidades.

A refeição havia sido animada, calorosa e ruidosa. O vinho deixaraalguns espíritos exaltados. As vozes se elevavam. Por vezes, irrompiamalgumas risadas. Sobretudo as de um irmão gordinho, de faces rosadas,um tabelião que não cessava de fazer brindes.

Descobrindo vários pontos em comum, Francis Marlane e DidierMosèle se entrincheiraram numa conversa particular, apesar do bur-burinho da sala.

Vinte minutos depois, Marlane exclamou:— Os rolos do mar Morto? Está trabalhando neles? Achei que você

era especialista em manuscritos medievais e outros palimpsestos!— Nem todos são rolos de cobre. Em Khirbet Qumran também

foram encontrados pergaminhos... Alguns com três quartos roídospelos ratos, que neles afiaram os dentes! Metros e metros de manus-critos que prefiguram os Evangelhos — respondeu Mosèle.

— E o seu trabalho, nesse caso?— A Fundação na qual trabalho, sob a tutela da Escola Bíblica de

Jerusalém, me encarregou da restauração de dois rolos numerados,4Q456-458 — explicou Mosèle. — Datados pelo geneticista HenriSqualler da universidade Rockefeller, esses pergaminhos teriam sidoredigidos algumas dezenas de anos depois da morte presumida de

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* Cargo dos oficiais encarregados da segurança da Loja, que selecionam os visitantescertificando-se de que são realmente maçons. (N. T.)

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Cristo; não podemos ter cem por cento de certeza da data exata. Elesforam descobertos no famoso sítio do mar Morto e, inegavelmente,despertam um interesse inédito. Estão incluídos na longa sequênciade decodificação desse tesouro enigmático, iniciada em 1947, quandoQumran ainda estava sob jurisdição palestina.

— É como se você me falasse do Graal, Didier!— Você é muito sonhador, Francis... Eles não passam de longas

litanias religiosas ou de códices severos, redigidos pelos austeros essênios* no famoso mosteiro de Qumran. Abandonei por um tempoos trabalhos que fazia na restauração de um magnífico livro de salmosdo século XIV, para me dedicar a essa tarefa. E não me arrependo!

Hertz dava a impressão de se interessar por uma discussão entrealguns irmãos iniciada à sua direita, a respeito das últimas decisões doConvento.** Na realidade, acompanhava a conversa entre Mosèle eMarlane, absorvendo cada palavra.

— Se estiver interessado — propôs Mosèle —, eu o convido a visitarmeu departamento esta semana. Li seus livros; talvez pudesse me daruma ajuda. O aval de um especialista nas Sagradas Escrituras, comovocê, vai alegrar meus diretores.

— É mesmo verdade? Você leu meus livros?— Li, sim. Não concordo necessariamente com todas as suas

teorias, mas senti um grande prazer em estudá-las. Algumas das suas interpretações rodaram por toda a Fundação e, aliás, você temalguns admiradores por lá. Quanto a mim, não compartilho das suashipóteses... Elas exalam um odor de enxofre que, em outros tempos,o teriam mandado direto para a fogueira.

Marlane enrubesceu e se ergueu na cadeira para reagir, escandindoas palavras:

— Não são hipóteses! São certezas... Estou dizendo: certezas!

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* Seguidores de seita religiosa judaica da Palestina, de caráter monacal e tendênciaascética. Praticavam a pobreza, o celibato e a obediência a um superior. (N. T.)** Reunião geral dos delegados das Lojas maçônicas, realizada anualmente. (N. T.)

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Em seguida, depois de um longo momento de reflexão, ele acres-centou:

— Jesus não era esse carpinteiro pobre que representam, barbudo,louro e de pele branca! Acha realmente que o Filho de Deus poderiase parecer com um vulgar ator californiano de filmes de tevê? Jesustinha a pele morena, cabelos castanhos, e nasceu numa família relativa-mente rica! Ah, é claro, com isso, o símbolo vai por água abaixo, não é?

Surpreso de que um homem com a inteligência de Marlane, queacreditava num Deus revelado, pudesse fazer tais afirmações, Mosèlecontinuou a provocá-lo durante toda a ceia. Divertia-se quando Marlanese exaltava, tentando demonstrar a legitimidade das suas teorias a res-peito da família, dos filhos, do irmão de Cristo...

Marlane havia sido um cristão fervoroso antes de entrar para afranco-maçonaria.

— Quanto a mim — disse Mosèle —, também posso me vangloriarde possuir um bom conhecimento dos Evangelhos, o que devo aosótimos padres de uma escola particular de Amiens, na qual passei aminha adolescência. João, Lucas, Mateus e Marcos me distraírammuito e permitiram que eu me evadisse através da imaginação. Naépoca, eu considerava as façanhas de Jesus uma grande e magníficaepopeia. Seis horas de catecismo por semana! Preciso dizer mais,Francis?

— Eu me dou por vencido. Mas vamos voltar ao seu trabalhoatual. Você falou da Fundação; trata-se da Fundação Meyer, não é?

— Isso mesmo. Uma “fábrica” imensa financiada por um enormenúmero de subvenções: a Unesco, o Ministério da Cultura, dois outrês grupos privados... Confesso que não me preocupo muito emsaber de onde vem o dinheiro. Afinal, disponho de um orçamentoconsiderável, que me possibilitou o luxo de ter os melhores profissionaisde informática do mundo para me preparar um supercomputador.Esse computador parte de alguns fragmentos de velino cobertos deletras em tinta empalidecida pelos séculos e me ajuda a completar osespaços vazios do quebra-cabeça, escolhendo a solução certa entre

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milhões de possibilidades. Minha equipe e eu batizamos essa máquinade Largehead.

— Mas o seu trabalho, Didier...— Um minucioso trabalho de paciência — prosseguiu Mosèle —

que se encaixará na cadeia de estudos iniciados pelo padre Benoît,pelo professor John Strugnelle, pelo dominicano Roland de Vaux, pelodoutor Stafford e por muitos outros pesquisadores, famosos ou anô-nimos, que consagraram suas vidas a reconstituir, peça por peça, qui-lômetros de rolos rasgados, manchados, ou “com anotações” feitaspor tradutores pouco respeitosos! Se quiser, há lugar para você nomeu staff, Francis.

— Está brincando, Didier? Está me propondo fazer parte da suaequipe?

— Sou o chefe da unidade de pesquisa, posso contratar quem euquiser para me ajudar no trabalho, desde que a pessoa em questãotenha a competência necessária.

— Aceito imediatamente! Assino com o meu sangue qualquer con-trato agora mesmo! — exclamou Marlane, quase gritando.

Hertz, então, se virou impetuosamente para os dois novos irmãose disse:

— Isso se chama pacto! Como veem, a franco-maçonaria tambémdestila seus pequenos milagres. Ela os uniu esta noite...

— Leu as nossas fichas, Martin — observou Mosèle. — Portanto, nãofinja surpresa. Já suspeitava de que algum dia tocaríamos nesse assunto.Você conhece as nossas respectivas profissões e os nossos centros deinteresse. Não vejo nenhum milagre nisso.

— Naturalmente — admitiu Martin Hertz. — No entanto, algum devocês podia não ter sido aceito por esta Loja. E, assim, essa conversajamais ocorreria.

— Concordo com você — reconheceu Mosèle. — Mas isso nãoimpede que eu não aprecie muito o termo “milagre”.

Hertz deu um sorriso sagaz e balançou a grande cabeça, apertandoos olhos. E disse:

— Porventura, prefere a palavra acaso?— Por acaso, sim... Prefiro! — opinou Mosèle.

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Martin Hertz se preparava para retomar a palavra com umaexpressão de cobiça, quando, subitamente, seu olhar se entristeceu,como se houvesse sido tomado por uma violenta tristeza. De repente,pareceu muito envelhecido aos olhos de Mosèle.

Como Hertz ficara em silêncio, Mosèle se virou para Marlane eperguntou:

— Sexta-feira? Está bem? Espero-o na sexta-feira por volta das10h, na Fundação Meyer, na praça d’Alleray. Eu lhe farei um esboçodo meu trabalho, apresentarei a minha equipe... e Largehead. Você vaificar espantado, Francis. Sem ele, os 4Q456-458 continuariam a ser enig-máticos pedaços de velino, rabiscados e mudos. Ele passou a ser umverdadeiro colega para nós...

— Nesse caso, estou ansioso para conhecê-lo — disse Marlane,entusiasmado.

** *

Tudo havia sido decidido naquela noite. Mosèle acabara de con-denar Francis Marlane à morte, ao propor que participasse dos seustrabalhos.

Por volta da meia-noite, os irmãos da Loja Eliah deixaram oCírculo Escocês em pequenos grupos. Mosèle havia estacionado o carro no bulevar dos Batignolles, e andou um pouco na companhiade Marlane e de Hertz. Este último havia recuperado o bom humor defachada e monopolizara a conversa, parecendo não se importar coma chuva que lhe escorria pela careca.

— Vocês verão — disse ele. — Com o tempo, a iniciação lhes abrirádiversas vias de introspecção. Esta noite nunca terá um fim paravocês. Eu fui iniciado há trinta e dois anos. Parece ontem!

— Acho que compreendo... — observou Mosèle.Hertz se despediu dos dois irmãos com três beijos.— Parei o carro no estacionamento.

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Afastou-se. Mosèle e Marlane o olharam por um instante. Eleandava com surpreendente leveza, apesar do peso.

— Acho que ele é advogado — disse Marlane. — Já o conheciaantes?

— Tive de vê-lo duas vezes...— Isso mesmo. O meu padrinho me apresentou a ele no ano pas-

sado e almoçamos juntos em junho.— Ele o espremeu, como fez comigo? — perguntou Mosèle.— Por mais de três horas! Tudo foi falado: a minha vida, as leituras,

o lazer... Tudo! Esse homem possui o dom de soltar a língua das pessoas.A propósito, você é casado, Didier?

— Não. Digamos que fiz algumas tentativas infrutíferas. E você?— Ela se chama Émylie.Conversaram por mais alguns minutos; depois se separaram men-

cionando o próximo encontro. Beijaram-se. Parecera natural. Trêsvezes... Três beijos rituais de fraternidade.

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