o trabalho, o conhecimento, os saberes e as aprendizagens dos

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UNIVERSIDADE DE TRÁS-OS-MONTES E ALTO DOURO O Trabalho, o Conhecimento, os Saberes e as Aprendizagens dos Técnicos de Educação de Adultos Numa ONGDL Contribuições etnográficas para uma renovação da Sociologia da Educação Dissertação de doutoramento Armando Paulo Ferreira Loureiro Vila Real, 2006

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  • UNIVERSIDADE DE TRS-OS-MONTES E ALTO DOURO

    O Trabalho, o Conhecimento, os Saberes e as Aprendizagens dos

    Tcnicos de Educao de Adultos Numa ONGDL

    Contribuies etnogrficas para uma renovao da Sociologia da Educao

    Dissertao de doutoramento

    Armando Paulo Ferreira Loureiro

    Vila Real, 2006

  • UNIVERSIDADE DE TRS-OS-MONTES E ALTO DOURO

    Departamento de Educao e Psicologia

    O Trabalho, o Conhecimento, os Saberes e as Aprendizagens dos

    Tcnicos de Educao de Adultos Numa ONGDL

    Contribuies etnogrficas para uma renovao da Sociologia da Educao

    Dissertao de doutoramento

    Armando Paulo Ferreira Loureiro

    Orientadores:

    Professor Doutor Artur Fernando Arde Correia Cristvo

    Professor Doutor Telmo Humberto Caria

    Vila Real, 2006

  • Este trabalho foi expressamente elaborado como

    dissertao original para efeito de obteno do grau de

    Doutor em Educao/Sociologia da Educao, sendo

    apresentado na Universidade de Trs-os-Montes e Alto

    Douro.

  • Slvia, ao Eduardo e ao Afonso

  • Agradecimentos

    A concretizao da investigao efectuada no foi uma tarefa totalmente individual, embora tenham havido perodos de alguma solido. Na verdade, ao longo de todo o processo recebemos vrios tipos de ajudas, de influncias, de incentivos. Uns de foro cientfico, outros logsticos e outros ainda de cariz afectivo.

    Desta forma, comeamos por agradecer famlia e tambm a alguns amigos que sempre nos apoiaram, sobretudo nos momentos mais difceis. Dirigimos um especial agradecimento ao Ascenso pela ajuda concedida na traduo de alguma da bibliografia utilizada, Ilma pela mesma razo e Slvia pelas opinies pertinentes que sempre foi dando acerca do que ia sendo realizado.

    Agradecemos Universidade de Trs-os-Montes e Alto Douro, na pessoa dos seus Reitores, Professores Doutores Jos Manuel Torres Pereira e Armando Mascarenhas Ferreira, pelas facildades concedidas. No esquecemos o apoio e a preocupao dos dois Coordenadores do Departamento de Educao e Psicologia que acompanharam a realizao do trabalho: Professores Doutores Jos Bianchi e Conceio Azevedo. No esquecemos igualmente o incentivo dado por alguns colegas, quer do departamento a que pertencemos, quer de outros departamentos. Prestamos tambm o nosso reconhecimento senhora Manuela Mouro pela preciosa ajuda na configurao final da tese e ao senhor Emlio Santos e sua equipa pelo valoroso trabalho de impresso final da mesma.

    O desenvolvimento do projecto de investigao em si mesmo no teria sido possvel sem a ajuda de muitas pessoas. Antes de mais, devemos um enorme reconhecimento aos dois orientadores, o Professor Doutor Artur Cristvo e o Professor Doutor Telmo Caria. De ambos registamos o rigor cientfico, a anlise crtica e as sugestes efectuadas, bem como a disponibilidade sempre demonstrada para nos acompanharem em todas as fases do percurso. Dos dois recebemos ensinamentos muito teis para a realizao da investigao.

    Entre Outubro e Dezembro de 2000, foram realizadas algumas entrevistas com alguns especialistas nacionais sobre o tema inicialmente definido: Professor Alberto Melo da Universidade do Algarve; Professores Almerindo Afonso e Licnio Lima da Universidade do Minho; Professor Jos Alberto Correia da Universidade do Porto; e Professor Rui Canrio da Universidade de Lisboa. A todos expressamos gratido pelos comentrios ento proferidos.

    De importncia fulcral para a concretizao da fase inicial do estudo foram todos aqueles que permitiram realizar o levantamento das organizaes no governamentais de desenvolvimento local (ONGDL) existentes nos cinco distritos da zona Norte do nosso Pais com actividades de educao de adultos. Assim, agradecemos aos que, entre Outubro de 2000 e Fevereiro de 2001, forneceram dados preciosos que possibilitaram identificar as ONGDL dos distritos de Braga, Bragana, Porto, Viana do Castelo e Vila Real. Aos cinco governadores civis de tais reas geogrficas, aos representantes da ANIMAR e aos representantes da Federao Portuguesa das Associaes de Desenvolvimento Local Minha Terra, o nosso agradecimento.

  • Igual sentimento expressamos aos representantes da Direco Regional de Educao do Norte, dos Centros de rea Educativa dos distritos acima referidos, aos vrios Coordenadores Concelhios do Ensino Recorrente e da Educao Extra-Escolar, aos tcnicos da ANEFA, quer a nvel central, quer a nvel das suas unidades locais da zona Norte, e aos representantes da Unidade de Educao de Adultos da Universidade do Minho, pelos dados que disponibilizaram, entre Setembro de 2001 e Abril de 2002, e que nos ajudaram a identificar as ONGDL com actividades de educao de adultos.

    Aos tcnicos de 22 das 26 ONGDL com um envolvimento significativo em actividades de educao de adultos, que, entre Junho e Setembro de 2002, permitiram realizar-lhes entrevistas sobre diferentes matrias, o nosso muito obrigado por toda a informao concedida e pelo que nos possibilitaram aprender sobre alguns aspectos da actividade destas entidades.

    Por fim, agradecemos profundamente direco e, sobretudo, equipa tcnica do Centro de Educao e Formao da ONGDL seleccionada para poder realizar a observao do trabalho dos tcnicos de educao de adultos. Jamais esqueceremos a vossa colaborao, sem ela a fase etnogrfica da investigao no teria sido possvel. Muito obrigado pelo que nos permitiram aprender sobre a vossa actividade, pelo que, entre Setembro de 2003 e Fevereiro de 2004, nos proporcionaram.

  • Resumo

    A sociologia da educao tem desenvolvido grande parte da sua investigao no campo da educao escolar. No desvalorizando de modo algum tais estudos, pensamos que ela deve dar conta tambm de outras formas de educao, de outros contextos e actores para alm daqueles que se referem instituio escola.

    A investigao que realizmos pretende ser um contributo nesse sentido. Ela teve como foco de anlise o trabalho realizado pelos tcnicos de educao de adultos das ONGDL. O principal objectivo do estudo foi perceber o que fazem esses tcnicos, que usos realizam do conhecimento abstracto com que lidam, de que feito o seu saber e como o usam, e de que formas o contexto de trabalho para eles educativo. Procurmos ainda definir um perfil das aces de educao de adultos levadas a cabo por estas outras instituies de educao, dando conta, assim, de contextos educativos no escolares.

    Metodologicamente, a investigao teve duas fases. Comemos por realizar um levantamento das ONGDL no Norte do Pas, e por proceder seleco daquelas que realizavam educao de adultos, o que nos permitiu efectuar uma caracterizao dessas instituies nesse sentido. Esta fase foi feita atravs da anlise documental e de entrevistas. Foi a partir dela que escolhemos a equipa tcnica de uma ONGDL onde realizmos o estudo etnogrfico da sua actividade e com ele procurmos responder ao principal objectivo da nossa investigao.

    Os resultados mostram-nos a existncia de uma assinalvel diversidade de tipos de educao de adultos praticada nestas instituies, embora assuma principal relevo a formao profissional. O estudo etnogrfico mostrou-nos estarmos perante uma comunidade de prtica, cuja actividade vai, grosso modo, do diagnstico avaliao das aces de educao de adultos. Permitiu-nos verificar que mesmo num contexto de trabalho fortemente normativo possvel fazer usos recontextualizadores do conhecimento abstracto, estabelecer com ele uma relao activa, para a qual contribui a mobilizao de alguns dos saberes dos tcnicos, e que tambm dessa articulao que se constri o saber colectivo. Permitiu-nos ainda concluir que se trata de um contexto de trabalho educativo, assumindo particular relevo a heteroformao, um dos processos basilares da constituio da comunidade de aprendizagem estudada.

    Palavras-chave: Sociologia da educao; tcnicos de educao de adultos; actividades; usos do

    conhecimento abstracto; saberes; aprendizagens.

  • Abstract

    Much of the research of sociology of education has been developed in the particular area of schooling education. However sociology of education must also cover a much larger field than this one and try to embrace other forms of education, other contexts and other actors.

    The research we have carried out, aims at giving a contribution to those forms, contexts and actors. We focused our analysis on the work of skilled technicians in adult education of the NGDO. It was our purpose to understand what they do, how they use the abstract knowledge in real situations and in wich forms is their working context an educational one. By trying to define an outline of the adult education actions undertaken by these other educational institutions we have picked up, for our research, non-schooling educational contexts.

    We have divided our work in two phases. (1) survey of all the NGDO in the North of Portugal and selection of those devoted to adult education. This allowed us to characterize these instituitions in what concerns this area. This phase of research was done trough a documental analysis as well as interviews. (2) Based on that we chose the technical team of an NGDO and we emprehended an ethnographic study of its activity, trying in this way to find out and give an answer to the main purpose of our investigation.

    The results have brought up a remarkably large diversity of types concerning the education of adults carried out in these instituitions. A particular relevance was however given to professional training. The ethnographic study has also revealed us to be before a community of practice, doing its activity, in general, from the diagnosis to the evaluation of the adult education actions. It also allowed us to state that even in a highly normative framework, abstract knowledge may be adapted and recontextualised. Here the mobilization of certain skills and knowledge by the technicians actually plays an important role and from such an articulation one other collective knowledge may be built. We have also come to the conclusion that we have been dealing with a context of educational work, within which the in-pair formation, a basic process for the constitution of the learning community, assumes a particular high relevance

    Key words: Sociology of education; adult education technicians; uses of abstract knowledge;

    skills; learninging

  • I

    NDICE

    ndice de figuras V

    ndice de quadros VI

    Lista de siglas utilizadas IX

    Introduo 1

    Captulo 1 - Sociologia da educao escolar: uma anlise centrada nos contedos do conhecimento 9

    1.1. Origem, institucionalizao e objecto de estudo tradicional 9

    1.1.1. Origem e institucionalizao 9

    1.1.2. Objecto de estudo 12

    1.2. A anlise do conhecimento em diferentes correntes da sociologia da educao 15

    1.2.1. Os funcionalistas 19

    1.2.2. As teorias do conflito e da reproduo social 23

    1.2.2.1. As teorias da reproduo econmica 23

    1.2.2.2. As teorias da reproduo cultural e de classe 31

    1.2.3. A problematizao do conhecimento escolar explcito 49

    1.2.3.1. A nova sociologia da educao inglesa 50

    1.2.3.2. A sociologia da educao e o interaccionismo simblico 53

    1.2.3.3. A sociologia do currculo 56

    1.2.4. As teorias da resistncia 69

    1.2.5. A sociologia da educao e as diferenas: classe, gnero e raa 77

    Captulo 2 - Sociologia da educao escolar: uma anlise centrada nos usos e relaes com o

    conhecimento

    81

    2.1. O lugar do conhecimento na actual sociedade 83

    2.2. A teoria da recontextualizao do conhecimento de Bernstein 90

    2.3. Para uma relao activa dos actores com o conhecimento 104

    Captulo 3 - Outras sociologias da educao: a sociologia da educao no escolar e a sociologia da

    educao de adultos

    123

    3.1. Estender o objecto de estudo da sociologia da educao 123

    3.1.1. O relevo das outras educaes 124

    3.1.2. Para uma definio de reas de investigao 126

    3.2. A sociologia da educao no escolar, a sociologia da educao de adultos e a anlise do conhecimento 134

    3.2.1. A anlise do conhecimento na sociologia da educao no escolar 134

    3.2.2. A anlise do conhecimento na sociologia da educao de adultos 136

  • II

    3.2.2.1. Os currculos da educao de adultos 138

    3.2.2.2. O informal e o no formal na educao de adultos 142

    3.2.2.3. A literacia 144

    3.3. mbitos, agncias e agentes de educao de adultos 146

    3.3.1. Modalidades de educao de adultos 146

    3.3.1.1. A educao de adultos no contexto do desenvolvimento local 149

    3.3.2. As instituies da educao de adultos 159

    3.3.3. Os trabalhadores da educao de adultos 164

    3.3.3.1 Uma tipologia dos trabalhadores da educao de adultos 164

    3.3.3.2. O conhecimento nos trabalhadores da educao de adultos 169

    Captulo 4 - O trabalho como local de conhecimento, saber e aprendizagem 175

    4.1. O conhecimento e os trabalhadores do conhecimento 175

    4.2. O conhecimento e o saber, suas modalidades e outros conceitos afins 180

    4.2.1 A qualificao 181

    4.2.2. A competncia 182

    4.2.3. Conhecimento e/ou saber? A diversidade de tipos 185

    4.2.3.1. Conhecimento e saber: diferentes entendimentos 186

    4.2.3.2. A multiplicidade de tipologias 188

    4.3. A estrutura e a aco: uma relao mediada pela reflexo. 196

    4.4. Procurando um quadro geral de anlise do trabalho 199

    4.4.1. Das tarefas s actividades: a pertinncia do conceito de comunidade de prtica 199

    4.4.2. Outros elementos de anlise do trabalho 204

    4.5. Saber e aprender em contexto de trabalho 205

    4.5.1. O conhecimento e o saber em contexto de trabalho 205

    4.5.1.1. A base do saber profissional 206

    4.5.1.2. A dinmica do saber profissional 209

    4.5.2. Dimenses educativas do contexto de trabalho 219

    4.5.3. Comunidades de prtica, de saber e de aprendizagem 229

    Captulo 5 - Metodologia 231

    5.1. Breve abordagem terica aos mtodos e tcnicas 233

    5.2. A construo de uma problemtica 235

    5.3. Procedimentos e tcnicas desenvolvidos 246

    5.3.1. At escolha do caso 247

    5.3.2. Reflexes em torno de uma etnografia 256

    5.3.2.1. O contexto de anlise 256

    5.3.2.2. Estratgias de recolha, registo e anlise do observado 259

    5.3.2.3. Um mtodo baseado no relacionamento observador - observado 269

    5.3.2.4. Uma nota final 275

    Captulo 6 - A educao de adultos nas ONGDL no Norte do Pas 277

    6.1. Grau de envolvimento das ONGDL na educao de adultos 278

  • III

    6.2. Caracterizao das ONGDL com maior envolvimento em actividades de educao de adultos 288

    6.2.1. Perfil dos tcnicos entrevistados 288

    6.2.1.1. Formao dos tcnicos 290

    6.2.2. Caracterizao geral das ONGDL 299

    6.2.2.1. Origem e tipos de instituies 299

    6.2.2.2. Principais actividades 302

    6.2.2.3. Planos/programas de aco e intervenientes nos processos de planeamento e avaliao 304

    6.2.2.4. Estrutura organizacional 310

    6.2.2.5. Recursos humanos 314

    6.2.2.6. Principais dificuldades/problemas das ONGDL 319

    6.2.2.7. Materiais e documentos escritos 326

    6.2.3. Contexto de trabalho dos tcnicos 328

    6.2.3.1. Actividades 329

    6.2.3.2. Usos da escrita 331

    6.2.3.3. Autonomia dos entrevistados relativamente s actividades desempenhadas 334

    6.2.3.4. Situaes problemticas do quotidiano de trabalho 337

    6.2.3.5. Grau de satisfao 344

    6.2.4. O perfil da educao de adultos nas ONGDL 344

    6.2.4.1. Estrutura/organizao da educao de adultos 345

    6.2.4.2. Produtos 347

    6.2.4.3. Estratgias/polticas 354

    6.2.4.4. Processo/forma 363

    6.2.4.5. Avaliao da educao de adultos praticada pelos entrevistados 371

    6.3. Aproximaes aos usos do conhecimento abstracto, aos saberes e s aprendizagens em contexto de

    trabalho

    383

    6.3.1. O trabalho como espao educativo 384

    6.3.2. Saberes e usos do conhecimento abstracto 387

    Captulo 7- Etnografia do trabalho tcnico em educao de adultos numa ONGDL 391

    7.1. O local 391

    7.1.1. Breve caracterizao da ONGDL 391

    7.1.2. A equipa tcnica e o seu trajecto profissional/ocupacional 393

    7.2. O contexto de trabalho tcnico 399

    7.2.1. Funes, recursos, tempo e espaos da actividade 400

    7.2.2. Actividades e tarefas de trabalho 404

    7.2.2.1. A actividade de plano de formao 405

    7.2.2.2. A actividade cursos e dossis tcnico-pedaggico 412

    7.2.2.3. A actividade de acreditao 424

    7.2.2.4. As restantes actividades 427

    7.3. Aspectos transversais da actividade 430

    7.3.1. As principais formas de fazer 430

  • IV

    7.3.1.1. A entreajuda, a reformulao e generalizao do fazer 431

    7.3.1.2. Encontros entre a aco e a reflexo 434

    7.3.1.3. O carcter normativo do trabalho 435

    7.3.2. As zonas problemticas da actividade 438

    7.3.2.1. Fontes de problemas 439

    7.3.2.2. Principais modalidades de resoluo dos problemas 449

    7.3.3. Uma comunidade de prtica 455

    Captulo 8 - O conhecimento, os saberes e as aprendizagens dos tcnicos de educao de adultos 459

    8.1. O trabalho como lugar de saberes 459

    8.1.1. Modalidades contextuais do saber 459

    8.1.2. A dinmica do saber contextual numa comunidade de saber 472

    8.1.2.1. Usos quotidianos do saber 472

    8.1.2.2. A construo e a reconstruo do saber 474

    8.1.2.3. As transferncias do saber 478

    8.1.2.4. A dimenso temporal do saber 482

    8.1.2.5. Elementos de sntese 483

    8.2. O conhecimento abstracto e a recontextualizao pedaggico-profissional 484

    8.2.1. Veculos e modalidades do conhecimento abstracto 487

    8.2.2. As modalidades do conhecimento abstracto nas diferentes actividades 489

    8.2.2.1. A actividade de plano de formao 490

    8.2.2.2. A actividade cursos e dossis tcnico-pedaggico 494

    8.2.2.3. A actividade de acreditao 505

    8.2.2.4. As restantes actividades 511

    8.2.2.5. Principais mobilizaes das modalidades do conhecimento abstracto 512

    8.2.3. Usos do conhecimento abstracto em contextos: encontros e desencontros com o saber 513

    8.2.3.1. Finalidades dos usos do conhecimento abstracto 513

    8.2.3.2. Usos reprodutores e recontextualizadores do conhecimento abstracto 518

    8.2.3.3. Elementos da dinmica do saber contextual 528

    8.3. O trabalho como local de educao 530

    Captulo 9 - Consideraes finais 535

    Referncias bibliogrficas 547

    Anexos 577

    Anexo 1 - Inqurito aos tcnicos das ONGDL com envolvimento em educao de adultos 579 Anexo 2 - Lista dos tipos de ONGDL identificadas por distrito e das ONGDL com envolvimento mdio e forte em educao de adultos

    583

    Anexo 3 - Reconhecimento institucional de competncia para fazer educao de adultos 587 Anexo 4 - Instrumentos de avaliao construdos e usados pelos tcnicos 589 Anexo 5 Exemplo do carcter normativo na actividade dos tcnicos 601 Anexo 6 - Exemplos de textos na actividade dos tcnicos 605 Anexo 7 - Entrevistas de seleco dos formandos 617

  • V

    ndice de Figuras

    Figura 1 - A relao com o saber de acordo com Charlot 118

    Figura 2 - mbitos da Sociologia da Educao 133

    Figura 3 - Agncias de educao de adultos 164

    Figura 4 - O trabalho como comunidade de prtica, saber e aprendizagem 230

    Figura 5 - Uma comunidade de prtica 457

    Figura 6 - A construo e reconstruo do saber 478

    Figura 7 - Manifestaes da dinmica do saber contextual 483

    Figura 8 - Campos de recontextualizao e de reproduo do discurso pedaggico oficial 486

    Figura 9 - A dinmica do saber contextual 529

  • VI

    ndice de Quadros

    Quadro 1 Modelo da construo do discurso pedaggico de Bernstein 95

    Quadro 2 Modalidades do conhecimento e do saber 196

    Quadro 3 Principais estratgias metodolgicas 235

    Quadro 4 Fases da investigao e produo escrita 236

    Quadro 5 Principais momentos da construo/reconstruo do objecto de estudo 245

    Quadro 6 Tcnicas de recolha, registo e tratamento da informao 268

    Quadro 7 Total de organizaes identificadas nos cinco distritos 278

    Quadro 8 As ONGDL nos cinco distritos 278

    Quadro 9 ONGDL segundo a tipologia criada 280

    Quadro 10 ONGDL por tipo nos cinco distritos 281

    Quadro 11 Grau de envolvimento das ONGDL em educao de adultos (EA) 1 aproximao 282

    Quadro 12 Grau de envolvimento das ONGDL em actividades/programas/projectos de EA por categoria 283

    Quadro 13 Grau de envolvimento das ONGDL em actividades/programas/projectos de EA de acordo com

    a participao na diversidade de categorias

    284

    Quadro 14 Grau de reconhecimento institucional para realizar EA 285

    Quadro 15 Grau de envolvimento das ONGDL em EA segundo a dimenso a) 286

    Quadro 16 Grau de envolvimento das ONGDL em EA segundo a dimenso b) 286

    Quadro 17 Grau de envolvimento das ONGDL em EA segundo a dimenso c) 287

    Quadro 18 Grau de envolvimento das ONGDL em cada dimenso 287

    Quadro 19 Grau de envolvimento das ONGDL em EA 287

    Quadro 20 Distribuio dos tcnicos de acordo com o cargo e o vnculo com a ONGDL 289

    Quadro 21 Grau acadmico e curso dos tcnicos 291

    Quadro 22 reas de formao procuradas pelos tcnicos 292

    Quadro 23 Razes apontadas pelos tcnicos para fazerem formao 294

    Quadro 24 Distribuio dos tcnicos de acordo com a identificao (ou no) de necessidades formativas 294

    Quadro 25 reas identificadas pelos tcnicos como fazendo parte das suas necessidades acadmicas 295

    Quadro 26 Apreciaes feitas pelos tcnicos quanto utilidade da sua formao acadmica e profissional

    face ao trabalho

    296

    Quadro 27 Tipos de utilidade identificados pelos tcnicos quanto sua formao acadmica e profissional

    face ao trabalho

    298

    Quadro 28 Razes apontadas pelos tcnicos para a no utilidade das formaes para o seu exerccio

    profissional

    298

    Quadro 29 Distribuio das ONGDL de acordo com a data de criao 299

    Quadro 30 Distribuio dos tipos de ONGDL 300

    Quadro 31 Razes apontadas pelos tcnicos para a criao das ONGDL 302

    Quadro 32 Principais actividades das ONGDL 303

    Quadro 33 Principais actividades a decorrerem nas ONGDL 304

  • VII

    Quadro 34 Responsabilidade e tipo (interna e interna/externa) do planeamento e avaliao das actividades

    nas ONGDL

    306

    Quadro 35 Nmero de pessoas por ONGDL 314

    Quadro 36 Nmero e tipo de recursos humanos das ONGDL 315

    Quadro 37 Habilitaes dos tcnicos das ONGDL 316

    Quadro 38 Distribuio dos tcnicos das ONGDL por grau e curso 316

    Quadro 39 Nmero de pessoas remuneradas por tipo de recursos humanos 317

    Quadro 40 Dirigentes em contexto de trabalho remunerados ou no por tipo de funo 317

    Quadro 41 ONGDL com dirigentes no contexto de trabalho remunerados ou no 317

    Quadro 42 Nmero e tipo de recursos humanos com outra profisso ou ocupao 318

    Quadro 43 Principais dificuldades/problemas das ONGDL 319

    Quadro 44 Principais fontes de financiamento das ONGDL 320

    Quadro 45 Materiais e documentos escritos produzidos pelas ONGDL 327

    Quadro 46 Responsabilidade na produo dos materiais e documentos escritos 328

    Quadro 47 Tipo de actividades exercidas por tipo de tcnicos 330

    Quadro 48 Usos da escrita no decorrer da ocupao dos tcnicos 332

    Quadro 49 Autonomia dos tcnicos por actividade desempenhada 335

    Quadro 50 Origem dos imprevistos no trabalho dos tcnicos 337

    Quadro 51 Meios a que os tcnicos recorrem para procurar resolver situaes imprevistas 342

    Quadro 52 Grau de satisfao dos tcnicos 344

    Quadro 53 Nmero de pessoas com actividades especficas de EA por ONGDL 346

    Quadro 54 Tipos de EA nas ONGDL 349

    Quadro 55 Grau de envolvimento das ONGDL em tipos de EA, segundo o grupo a que pertencem

    349

    Quadro 56 Tipos de EA nas ONGDL praticados no momento 350

    Quadro 57 Grau de envolvimento das ONGDL em tipos de EA no momento, segundo o grupo a que

    pertencem

    350

    Quadro 58 Grau de envolvimento das ONGDL em EA, segundo a regularidade 351

    Quadro 59 Grau de envolvimento das ONGDL em EA de acordo com a sua participao em tipos de EA e

    regularidade

    351

    Quadro 60 Grau de envolvimento das ONGDL em EA 352

    Quadro 61 Objectivos da EA promovida pelas ONGDL 357

    Quadro 62 Maiores dificuldades na implementao/realizao da EA 372

    Quadro 63 Recursos humanos envolvidos com a ONGDL em 2003 393

    Quadro 64 Elementos de caracterizao da equipa tcnica 394

    Quadro 65 Experincia profissional/ocupacional externa ao local de observao 395

    Quadro 66 Distribuio dos tcnicos e cargos por tipo de actividades e tarefas 400

    Quadro 67 Elementos e componentes da actividade da equipa tcnica 403

    Quadro 68 Origem dos problemas de acordo com a regularidade observada 439

  • VIII

    Quadro 69 Recursos usados para resolver situaes complexas 449

    Quadro 70 Usos dos saberes em diferentes situaes da prtica 474

    Quadro 71 Modalidades de conhecimento abstracto mobilizadas nas diferentes actividades/tarefas 512

    Quadro 72 Uso reprodutor do conhecimento abstracto 520

    Quadro 73 Usos recontextualizadores do conhecimento abstracto 527

  • IX

    Lista de Siglas Utilizadas

    ANEFA Agncia Nacional de Educao e Formao de Adultos

    ANIMAR Associao Portuguesa para o Desenvolvimento Local

    AP Autoridade Pedaggica

    ASPTI Seminrio de Anlise Social das Profisses em Trabalho Tcnico Intelectual

    CAE Centro de rea Educativa

    CESE Cursos de Estudos Superiores Especializados

    CLA Comisso Local de Acompanhamento

    CRVCC Centros de Reconhecimento, Validao e Certificao de Competncias

    DGFV Direco Geral de Formao Vocacional

    DREN Direco Regional de Educao do Norte

    EA Educao de Adultos

    EFA Educao e Formao de Adultos

    FSE Fundo Social Europeu

    IEFP Instituto de Emprego e Formao Profissional

    INE Instituto Nacional de Estatstica

    INOFOR Instituto para a Inovao na Formao

    IPSS Instituies Particulares de Solidariedade Social

    OCDE Organizao de Cooperao e Desenvolvimento Econmico

    ONGD Organizaes No Governamentais de Desenvolvimento

    ONGDL Organizaes No Governamentais de Desenvolvimento Local

    POEFDS Programa Operacional de Emprego, Formao e Desenvolvimento Social

    PPDR Promoo do Potencial de Desenvolvimento Regional

    Reprofor Recontextualizao Profissional da Formao

    RMG Rendimento Mnimo Garantido

    RVC Reconhecimento e Validao de Competncias

    SE Sistema de Ensino

    TE Trabalho Escolar

    TP Trabalho Pedaggico

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Cooperao na Educao e Cincia

  • X

  • 1

    INTRODUO

    O estudo que levmos a cabo pretende ser enquadrado dentro do mbito da sociologia da educao. A problemtica analisada foi a do uso do conhecimento abstracto, dos saberes e das aprendizagens realizadas em contexto de trabalho, no caso concreto dos tcnicos das organizaes no governamentais de desenvolvimento local (ONGDL) com actividades de educao de adultos. Isto , procurmos perceber como que aqueles que diagnosticam, planeiam, concebem, executam e avaliam as actividades de educao de adultos nas ONGDL usam o conhecimento abstracto, tentmos identificar de que feito o seu saber e ainda se, e como, aprendem no seu contexto de trabalho. A explorao desta problemtica foi realizada, essencialmente, atravs do estudo etnogrfico do trabalho concretizado por uma equipa de tcnicos de uma ONGDL do norte Pas, por ns seleccionada.

    Devemos esclarecer que a clarificao da problemtica a estudar, dos objectivos a atingir e das principais questes a responder, foi objecto de um processo de amadurecimento longo, de um caminho que no partiu da definio que aqui apresentamos. Desse processo daremos conta no captulo relativo metodologia.

    Tendo em conta o que dissemos, a investigao realizada , portanto, um estudo sobre educao, mas fora do contexto escolar. Assim, o ponto de partida foi a realizao duma investigao em sociologia da educao sobre agncias, agentes e tipos de educao normalmente no estudados por ela (referimo-nos ao tipo de instituio e aos tcnicos que so responsveis pelo diagnstico, planificao, concepo, desenvolvimento e avaliao dum tipo de educao a que normalmente tambm a disciplina no se tem dedicado, a educao de adultos) e sobre temas muito recentemente abordados por ela, como o uso dos conhecimentos em contexto de trabalho, a constituio desses conhecimentos e saberes, a forma e as modalidades pelas quais esses contextos so educativos para quem neles trabalha, entre outros. Tudo isto foi relacionado com temas abordados no mbito da Teoria Social (como por exemplo, as questes da modernidade e ps modernidade, da estrutura e da aco, do risco, das incertezas, da reflexividade, do conhecimento, da aprendizagem social, etc.) e ainda com questes normalmente estudadas pela sociologia das profisses (autonomia, rotinas, entre outras).

    Trata-se, como pensamos que ficar claro ao longo do texto, dum estudo que, partindo da sociologia da educao, vai recorrendo a outras reas do conhecimento para tratar dos temas que pretende. , portanto, um estudo de mbito disciplinar que valoriza e reconhece a importncia das abordagens interdisciplinares. Acreditamos, tal como outros (Lahire, 1993; Perrenoud, 1995,

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    1999, 2001; Caria, 2000a, 2002a; Charlot, 2000; Cerd, 2000; entre outros), que essa uma forma de fazer avanar a prpria sociologia da educao.

    Enfim, o objectivo principal desta investigao conseguir realizar uma anlise, o mais profunda possvel do trabalho tcnico intelectual (Caria, 2003a, 2003b) dos agentes de educao de adultos e do seu contexto de actuao. Paralelamente a este aspecto, o estudo pretende tambm realizar uma caracterizao (definir um perfil) das aces de educao de adultos levadas a cabo por estas instituies de educao, dando conta, desta forma, de contextos educativos no escolares, que tambm produzem educao.

    Assim, talvez possamos falar duma sociologia da educao de adultos no escolar, em dois sentidos: no sentido dos usos do conhecimento, dos saberes e das aprendizagens que pessoas com nveis escolares superiores fazem no e atravs do seu contexto de trabalho (os tcnicos de educao de adultos em contexto de desenvolvimento local, no caso); e no sentido de instituies e agentes no escolares que produzem um tipo especfico de educao a educao de adultos.

    Com isto no estamos a defender a criao duma nova cincia, duma nova disciplina. Estamos apenas a defender a necessidade de renovao do seu objecto de estudo que, quer entre ns quer a nvel internacional, tem estado centrado na educao escolar, como sabido. Tambm no defendemos o abandono do estudo da escola, muito pelo contrrio, pois ela continua a ter uma importncia fundamental na actual sociedade. , alis, essa relevncia que tem justificado o interesse da sociologia da educao no seu estudo (Afonso, 2005).

    Bonal (1998), por exemplo, diz-nos isso mesmo ao justificar tal facto com a importncia que a educao formal, consubstanciada na instituio escolar, teve e tem nas sociedades modernas, quer por ter sido vista, numa primeira fase, como forma de coeso social, quer pelo sentido estruturante e legitimador que assumiu depois. Para este autor, o grmen da sociologia da educao encontra-se no sculo XIX, numa fase de grandes transformaes sociais, aquando da transio da sociedade do Antigo Regime para a Sociedade Industrial, altura em que a educao universal, institucionalizada na escola, aparece como o melhor mecanismo para assegurar a adaptao social dos indivduos (ibidem:18), o que justifica que as primeiras teorias sociolgicas da educao se debruassem sobre a instituio escolar. Em segundo lugar, a partir da segunda metade do sculo XX a escola assume um papel fundamental como subsistema social de atribuio e legitimao das posies sociais dos indivduos, o que explica que o objecto central da disciplina passe a ser a explicao das desigualdades sociais e dos mecanismos pelos quais estas se constroem, se mantm, se reproduzem ou se modificam (ibidem:20).

    No est em causa, portanto, a relevncia do estudo da escola. Do que falamos e o que defendemos um processo de renovao que , alis, o movimento natural duma cincia, pois como nos diz Hinojal (1987:523): Contra o crer popular (...) a cincia, um saber pouco seguro e modifica-se. Se fosse seguro, no estaria em constante reviso, no mudaria e seria outra coisa, uma doutrina, ou uma crena. Um processo que tenha tambm em considerao a educao no

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    escolar, a educao de adultos e se centre nos usos de conhecimento, na reflexo dos actores e suas aprendizagens, nomeadamente em contextos de trabalho.

    Do que falamos, ento, da necessidade da sociologia da educao ter em conta uma nova realidade, pois se concordamos que a educao formal/escolar tem tido um papel inegvel nas nossas sociedades, no se pode negar a relevncia cada vez maior da educao de adultos e da educao no escolar nessas mesmas sociedades. A defesa desta necessidade e o estudo efectivo destas reas no sequer nova, nem entre ns, nem a nvel internacional, embora o seu significado dentro da sociologia da educao seja ainda diminuto, quando comparado com o estudo do fenmeno escolar. O mesmo dizemos da questo dos usos do conhecimento, quando comparado com o estudo sobre os contedos desse mesmo conhecimento.

    Em Portugal a defesa e o debate da introduo do no escolar (educao no formal e informal) na sociologia da educao tem sido feita, j h mais de dez anos, por Afonso (1992, 2001a, 2001b, 2005). O mesmo foi defendido por Pain (1990), em Frana. Em Espanha tambm se alerta para o mesmo facto desde h anos e isso mesmo retratado nas palavras de Bonal (1998:21), que admite que novos espaos educativos se abrem para a sociologia da educao em virtude da importncia que vm assumindo: Na realidade, a complexidade da sociedade actual est revalorizando as formas de educao no formal e informal como aspectos com cada vez mais peso especfico na aquisio de capital cultural, e, portanto, na estruturao das posies sociais. Se abrem assim novos espaos de produo terica na sociologia da educao.

    O mesmo podemos dizer relativamente educao de adultos, pois tm sido vrios os autores a defender o seu estudo pela sociologia da educao (por exemplo, Hinojal, 1991; ou Jarvis, 1989). Entre ns poderamos referir o trabalho desenvolvido por Lima (1994, 2000) ou Canrio (1999), autores que, embora no faam aluso directa importncia de a sociologia da educao estudar a educao de adultos, tm desenvolvido um trabalho que pensamos poder ser situado no cruzamento destes dois mbitos de estudo.

    E, se inegvel a importncia do no escolar e da educao de adultos, o que dizer da questo dos usos do conhecimento e da reflexividade dos actores na dita sociedade do conhecimento, da informao, ou outras designaes paralelas? Autores como Bonal (1998) e Cerd (2000), ao referirem-se necessidade de renovao do objecto de estudo da sociologia da educao, do relevo precisamente a esta nova rea/enfoque de anlise. aqui que situamos o estudo que Caria (2000a) desenvolveu sobre os usos do conhecimento abstracto realizados pelos professores e que se tem vindo a estender a outras profisses.

    Enfim, pensamos que o estudo que desenvolvemos poder ser situado no cruzamento duma srie de novas abordagens sociolgicas da educao que tm permitido renovar o seu campo de anlise e a sua abordagem terica, como sejam: a dos usos, mobilizaes, relaes com o conhecimento e aprendizagens diversas, ainda em contexto escolar (Caria, 2000a; Charlot, 2000; Lahire, 1993; Perrenoud, 1995); a que chama a ateno para a importncia da reflexividade na sociologia da educao escolar (Bonal, 1998; Bonal e Rambla, 1998; Caria, 1999); a da

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    literacia e das competncias (Benavente, 1990, 1996; Costa, 2003; Perrenoud, 1999, 2001); a da conceptualizao duma sociologia da educao que nos permite falar de uma sociologia da educao no escolar, ou seja, aquela que procura dar conta dos contextos no formais e informais de educao, como seja o trabalho, os processos de desenvolvimento local, etc. (Afonso, 1992, 2001a, 2001b, 2005; Correia, 1997a, 1998; Pain, 1990; Cerd, 2000; entre outros); e a da sociologia da educao de adultos quer escolar, quer no escolar (Jarvis, 1989a, 1989b, 1997, 2000; Flecha, 1997; Domngues, 2000; Canrio, 1999; Cabo, 2000; Correia, 1997, 1998; Josso, 2002, 2004; Moisan, 1997; entre outros)1. De todas elas daremos conta, recorrendo no s aos autores referidos e outros que se situam dentro da sociologia da educao, mas tambm a outros que, embora fora deste campo, nos ajudam a tratar destas questes e da problemtica do estudo.

    Com isto no queremos dizer que a forma como a sociologia da educao escolar tem tratado a questo do conhecimento no nos interesse, muito pelo contrrio. Como procuraremos elucidar, tambm dela recolhemos vrios e muito importantes contributos. Referimo-nos, por exemplo, ideia de produo, recontextualizao e reproduo do discurso pedaggico de Bernstein (1993, 1998), ideia de Aronowitz e Giroux (1992) de professores como intelectuais transformadores e, portanto, utilizadores crticos de conhecimento, anlise que Aplle (1987, 1997) faz da forma curricular e do controlo tcnico do trabalho dos professores (isto , da forma como o conhecimento chega j pronto a usar a estes agentes), ao conceito do professor inter/multicultural atravs do campo da recontextualizao pedaggica (Stoer, 1994:7) e ao estudo que Caria (2000a) fez sobre o uso do conhecimento abstracto realizado por professores do ensino bsico, j antes citado. Isto para falar em alguns dos aspectos desta disciplina que permitiram tratar precisamente da questo daqueles que lidam com o conhecimento e o mobilizam para trabalhar, sob vrias formas, e dos efeitos sociais que da possam ocorrer.

    Portanto, trata-se dum estudo que procura articular os vrios contributos dados pela sociologia da educao, escolar e no escolar, e de outras reas disciplinares, como j foi dito, para tratar da problemtica em questo.

    Fruto deste tipo de abordagem, isto , de uma abordagem que parte da sociologia da educao para outros mbitos do conhecimento, o tratamento das vrias questes e conceitos que mais nos interessam (o conhecimento e os seus usos, as relaes dos actores com ele, as aprendizagens, a reflexo dos actores, entre outros) no iro aparecer analisadas de uma forma compacta num s momento, como veremos. Muitas dessas questes comearo por ser tratadas no mbito da sociologia da educao, para depois serem retomadas e cruzadas com os contributos de outras reas, de uma forma mais ampla. Assim, a conceptualizao de vrios dos temas a tratar vai sendo feita ao longo do texto.

    1 evidente que existem entre estes campos vrios aspectos que se cruzam, nomeadamente entre a educao no

    escolar e a vertente da educao de adultos que se situa no mesmo campo de anlise. Referimo-nos, por exemplo, questo da educao de adultos em processos de desenvolvimento local. O mesmo pode ser dito da questo da literacia, que tratada pela educao de adultos, etc. Tentaremos dar ao texto um tratamento que evite o mais possvel repeties.

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    Antes de nos referirmos s diferentes partes que constituem o estudo, gostaramos de salientar algumas das dificuldades que encontrmos para o efectuar. Uma das principais foi o nosso distanciamento, quer terico, quer emprico, relativamente ao objecto de estudo. Efectivamente, nunca tnhamos abordado o uso do conhecimento abstracto, os saberes profissionais, as aprendizagens realizadas em contexto de trabalho, ou tratado de vrias questes ligadas educao de adultos, por exemplo. Tambm no tnhamos qualquer conhecimento especfico e prvio sobre as ONGDL e suas actividades de educao de adultos, nem sobre aqueles que nelas se dedicam a este tipo de educao. Ora, tudo isto trouxe dificuldades na abordagem inicial dessas temticas e ainda limitaes iniciais acerca do entendimento da actividade, da linguagem, entre outros aspectos, que fazem parte do quotidiano dos tcnicos que estudmos.

    Outra grande dificuldade teve a ver com parte do trabalho de campo que efectumos, que recorreu a um mtodo de investigao de tipo etnogrfico, que nunca tnhamos realizado. Esse aspecto trouxe alguns problemas, nomeadamente de desconfiana inicial relativamente a essa abordagem, que aprofundaremos no captulo da metodologia.

    O estudo encontra-se dividido em nove captulos. Os quatro primeiros so referentes reviso bibliogrfica, sendo os restantes dedicados metodologia, s diferentes fases do estudo emprico e s consideraes finais.

    Mais precisamente, o primeiro captulo dedica-se anlise da forma como a sociologia da educao escolar tradicional tem tratado a questo do conhecimento. Comeamos por dar conta da institucionalizao da sociologia da educao e do seu objecto de estudo tradicional2, passando, de seguida, a uma anlise das principais correntes da mesma e da forma como nelas tem sido abordada a problemtica do conhecimento.

    No segundo captulo continuamos ainda no mbito da sociologia da educao escolar e da anlise do conhecimento. No entanto, as abordagens a reunidas marcam uma ruptura com as que inserimos no primeiro captulo, pois estas centram a sua anlise, sobretudo, nos contedos do conhecimento escolar, enquanto que as que fazem parte deste segundo captulo desenvolvem uma abordagem centrada nos usos e relaes dos actores com o conhecimento. Comeamos por fazer referncia importncia que o conhecimento tem na actual sociedade, para, depois, apresentarmos as tais abordagens.

    O terceiro captulo dedicado s outras educaes: educao no escolar e educao de adultos. outro captulo que pretende apresentar abordagens que marcam rupturas com a sociologia da educao tradicional. Comeamos por tentar definir o que se constituir como as reas de investigao de uma sociologia da educao no escolar e de uma sociologia da educao

    2 No se pretende realizar uma anlise em profundidade da histria do desenvolvimento da sociologia da educao.

    Tal poder ser apreciado, por exemplo, em Quintana (1989), Hinojal (1991), Torres e Rivera (1994), Morrow e Torres (1997), Bonal (1998), Enguita et al. (1999), entre outros.

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    de adultos3. Procuramos, de seguida, realizar uma anlise sobre a forma como elas se tm dedicado questo do conhecimento. Terminamos com uma abordagem dos mbitos, agncias e agentes da educao de adultos, o que se justifica pelo facto de ser neste vasto campo que se situam os trabalhadores da educao que investigmos. Portanto, este o campo de trabalho daqueles que se constituram como objecto da nossa anlise e ser por referncia aos campos de produo e tambm de recontextualizao (Bernstein, 1993, 1998) desse tipo de conhecimento que actuaro, ser com base nesses campos que usaro o conhecimento abstracto que ter a ver com a sua actuao quotidiana.

    No quarto captulo samos do mbito exclusivo, ou quase, da sociologia da educao. um captulo dedicado ao conhecimento, ao saber, s aprendizagens e ao trabalho. O conhecimento e os seus trabalhadores so o nosso primeiro foco de anlise. De seguida, discute-se o que o conhecimento, o saber, a qualificao e a competncia. Passamos, depois, para a apresentao da relao entre estrutura e aco, que, como procuraremos elucidar, no tem de ser sempre uma relao de fora e de determinao absoluta da primeira para a segunda, nomeadamente em contexto de trabalho. Continuamos com um debruar sobre alguns instrumentos de anlise que, pensamos, ajudam a olhar o trabalho: tarefa, actividade, comunidade de prtica, autonomia. Por fim, centramo-nos no contexto de trabalho como local de conhecimento, saber e aprendizagem.

    Prosseguimos com o captulo dedicado metodologia, o quinto. Realizamos uma breve abordagem terica aos mtodos e tcnicas, para passarmos, a partir da, a dedicar-nos ao nosso estudo em concreto. Damos conta de como fomos construindo a nossa problemtica de anlise e, depois, procuramos explicitar os procedimentos e tcnicas usados nos dois grandes momentos da investigao emprica: at escolha do caso a estudar em profundidade (anlise documental e entrevistas) e a etnografia de um local de trabalho.

    O sexto captulo dedicado a essa primeira parte do trabalho emprico. Nele faz-se uma caracterizao geral da educao de adultos praticada nas ONGDL do norte do pas. Foi a partir dessa anlise que conseguimos seleccionar a equipa tcnica a estudar em profundidade. Nesse captulo, para alm da referida caracterizao, iniciamos tambm uma aproximao a alguns dos aspectos que viramos a aprofundar quando efectumos o estudo etnogrfico, como, por exemplo, a identificao dos principais problemas vividos no quotidiano de trabalho dos entrevistados e a aproximao ao local de trabalho como espao de saber, de uso do conhecimento abstracto e de aprendizagens. Apesar de no corresponder parte mais importante da fase emprica da nossa investigao, um captulo longo, o que se deve ao carcter descritivo que assume em vrios dos seus momentos.

    3 Devemos esclarecer que a rea do trabalho, abordada pela sociologia da educao no escolar de adultos, s

    muito brevemente ser aqui explorada. Isto porque, embora essa rea seja tambm o fulcro da nossa anlise (quer pelo lado dos usos do conhecimento e dos saberes, quer pelo das aprendizagens, que alis esto interrelacionados como procuraremos mostrar), no quarto captulo do enquadramento terico faremos referncia alargada questo do contexto de trabalho como local de educao informal e no formal, por isso, e para evitar repeties, no trataremos no terceiro captulo dessa questo.

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    no stimo e no oitavo captulos que a anlise da nossa problemtica efectuada, atravs da realizao da descrio e anlise do acompanhamento do trabalho de uma equipa tcnica, pertencente a uma ONGDL que se dedica exclusivamente educao de adultos, conforme j dissemos. No captulo sete, comeamos por fazer uma breve caracterizao dessa ONGDL, passando, de seguida, a centrar-nos na equipa tcnica, nas suas actividades, nos seus problemas e nas suas principais formas de realizao da actividade. Posteriormente, no captulo oitavo, analisamos o contexto de trabalho desta equipa, dando conta das dimenses e da dinmica do saber local, dos usos do conhecimento abstracto realizados e das formas atravs das quais esse contexto de trabalho se manifesta educativo.

    Por fim, no ltimo captulo, tecemos algumas consideraes finais relativas aos principais resultados do nosso estudo, s suas limitaes e ao que pensamos poderem vir a ser alguns dos caminhos a explorar em investigaes futuras.

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    CAPTULO 1 SOCIOLOGIA DA EDUCAO ESCOLAR: UMA ANLISE CENTRADA NOS CONTEDOS DO CONHECIMENTO

    Nesta parte comeamos por dar conta da institucionalizao da sociologia da educao e do seu objecto de estudo tradicional, passando de seguida a uma anlise das principais correntes da mesma e da forma como nelas tem sido tratada a questo do conhecimento.

    No faremos um tratamento particular das teorias sociais em que se baseiam as diferentes correntes que apresentamos. Tal poder ser visto na anlise rigorosa que Morrow e Torres (1997) fizeram da sociologia da educao. Tambm no nos referiremos de uma forma profunda aos contextos sociais em que as diferentes correntes vo aparecendo, desenvolvendo-se e transformando-se, no porque achemos que tal abordagem no importante, mas porque no esse o nosso objectivo. Recordamos que o nosso objectivo mais limitado, apenas pretendemos ver como a questo do conhecimento tem sido tratada pela sociologia da educao. Uma leitura nesses sentidos pode ser encontrada na obra que acima referimos e tambm em Bonal (1998), ou em Hinojal (1991), por exemplo.

    1.1. ORIGEM, INSTITUCIONALIZAO E OBJECTO DE ESTUDO TRADICIONAL

    1.1.1. Origem e institucionalizao

    Diversos autores consideram que a origem da sociologia da educao remonta s origens da prpria Sociologia e, como tal, consideram como seus percursores ou fundadores Durkheim, Weber, Marx, entre outros clssicos da disciplina me (Hinojal, 1987, 1991; Ribolzi, 1988; Quintana, 1989; Morrow e Torres, 1997; Saha, 1997; Bonal, 1998; Enguita et al., 1999; Coomonte, 2000). No faremos aqui uma anlise desse aspecto, tal pode ser aprofundado nos autores acabados de enunciar, entre outros. Apenas nos interessa realar que o germinar da disciplina ter estado no sculo XIX e na obra desses clssicos, em particular na de Durkheim, que considerado por alguns como o verdadeiro fundador da sociologia da educao, pois, ao contrrio dos outros clssicos, ele desenvolveu uma obra especfica sobre a educao (Hinojal, 1987; Cherkaoui, 1994; Bonal, 1998; Enguita, 1999; Coomonte, 2000; Vidal, 2000)4.

    4 A obra deste autor referente educao pode ser analisada numa edio recente realizada em Frana, Durkheim

    (1999) e tambm numa edio portuguesa no to recente, Durkheim (1984), mas mais desenvolvida, pois contm nela a educao moral, o que no se verifica naquela edio.

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    Portanto, a influncia dos clssicos da sociologia neste seu ramo inegvel. Alis, a tendncia de influncia dos desenvolvimentos tericos da sociologia, ou da teoria social se quisermos ser mais latos, na sociologia da educao mantm-se atravs de autores contemporneos. Veja-se o caso das obras de Giddens (1992, 1995, 1997, 2000a, 2000b) de Touraine (1978, 1994), ou de Habermas (2001), por exemplo. Isto apesar de, como dizem McLaren e Giroux (1997:9), no prefcio da obra de Morrow e Torres (1997), a sociologia da educao nem sempre tem acompanhado esses novos desenvolvimentos, preferindo em vez disso restringir a sua leitura do mundo social a um quadro terico truncado e a um certo provincianismo epistemolgico.

    Mas, polmicas parte, voltemos ao ponto de partida. Desde essa altura at hoje j passou muito tempo. Vejamos, brevemente, seguindo de perto o que nos diz Bonal (1998) acerca do assunto, quais so os principais passos dados pela disciplina. Este autor aborda o seu desenvolvimento e institucionalizao duma forma cronolgica. Faz, em simultneo, uma anlise das transformaes sociais que foram acompanhando a evoluo da disciplina. Assim, considera um primeiro perodo de pr-formao da sociologia da educao, que vai desde a obra de Durkheim at finais dos anos quarenta do sculo XX, onde fica desde logo definido um centrar na instituio escola, que se mantm at hoje e que o autor justifica da forma que j referimos antes.

    Segue-se um segundo perodo, entre os anos 50 e 60, altura em que ocorre, segundo o mesmo autor, o verdadeiro nascimento da abordagem sociolgica da educao5. O contexto social desta altura caracteriza-se pela expanso econmica e tambm educativa, pela democratizao e pelo Estado de Bem-estar. A escola encarada como o principal mecanismo estruturante das sociedades avanadas, por isso continua a fazer parte central da pesquisa sociolgica. Este um momento em que ocorre, em termos de teoria social, o predomnio do estruturo-funcionalismo norte-americano, o que naturalmente se repercute nos estudos ocorridos nesse perodo no mbito da sociologia da educao. Assim, imperam as anlises de carcter fundamentalmente empirista, sendo o funcionalismo tcnico econmico e o reformista as duas principais orientaes de desenvolvimento terico e emprico, e o seu principal objecto de estudo a relao entre a educao e o emprego.

    O terceiro perodo acontece na dcada seguinte, com o predomnio do marxismo na teoria social. Trata-se dum contexto social marcado pelo fracasso das polticas de igualdade de oportunidades, em particular as assentes na educao. a altura do aparecimento e predomnio da sociologia da educao crtica, das teorias da reproduo, que vem na escola um mecanismo completamente diferente do que os funcionalistas viam. Para os autores da sociologia desta dcada, a escola um factor de reproduo das posies sociais de origem e no um factor de democratizao em funo do mrito de cada um.

    5 Relativamente a este aspecto parece existir, no seio da comunidade cientfica, uma concordncia geral. Por

    exemplo, Haecht (1994) aponta tambm esse perodo como aquele onde uma verdadeira sociologia da educao surgiu.

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    E nesta altura ainda, nos anos 70, que com Young (1971) e com o aparecimento da nova sociologia da educao, ocorre o verdadeiro ponto de inflexo epistemolgica da sociologia da educao (Bonal, 1998:25), pois a proposta desta abordagem, contrariamente s anteriores, que se deixe de olhar para a escola como uma caixa negra distribuidora de ttulos e se passe a observ-la por dentro, nomeadamente atravs duma anlise do currculo escolar, para se perceber a forma como ele seleccionado e organizado e como tal reflecte as relaes de poder existentes na sociedade.

    No entanto, estas ideias s vm a ser desenvolvidas nos anos 80, o quarto perodo do desenvolvimento da sociologia da educao, sobretudo nos Estados Unidos, atravs da sociologia do currculo e das teorias da resistncia. Este perodo caracterizado por um complexo cenrio (Bonal, 1998:27) dentro sociologia da educao, no qual se cruzam diversas tendncias tericas e mbitos de investigao. a altura do paradigma interpretativo, das teorias da resistncia, da integrao das dimenses gnero e etnia na anlise sociolgica da educao escolar.

    Este cenrio de complexidade mantm-se na dcada seguinte, o ltimo perodo identificado pelo autor a que nos temos referido. E neste contexto, de rpidas mudanas tecnolgicas e econmicas, da dita sociedade da informao, e numa altura onde ocorreram vrias reformas educativas em distintos pases, que se abriram novos campos de anlise e de produo terica na sociologia da educao (Bonal, 1998:27): a relao entre educao e emprego, tendo como pano de fundo a sociedade da informao; a sociologia da poltica educativa; a sociologia da educao das diferenas culturais. E ainda neste perodo que novos desafios metodolgicos e epistemolgicos se colocam, como seja o da articulao da anlise macro e micro e o da incorporao da reflexividade dos actores sociais nas anlises sociolgicas da educao.

    Assim, como vemos, o caminhar da sociologia da educao tem sido definido sempre em funo do estudo da educao formal e da sua relao com a sociedade. Pensamos, no entanto e como j fomos dizendo, que novas rotas se tm aberto e cada vez com maior intensidade.

    No nosso pas, o aparecimento e desenvolvimento da cincia em causa ocorreu muito mais tarde. Parece existir um certo consenso entre os autores que tm investigado o seu percurso (Stoer, 1992; Stoer e Afonso, 1999; Afonso, 2001b, 2005) que ela ter tido o seu perodo de consolidao aps a revoluo de Abril de 1974, o que no quer dizer, como nos diz Afonso (2001b), referindo-se a Silva (2000), que no seja possvel traar um itinerrio anterior a essa altura, podendo ir o comeo desse percurso at s primeiras dcadas do sculo XX (ibidem:9). Tambm entre ns ela tem estado centrada na anlise do fenmeno educativo escolar, como nos mostram os estudos realizados pelos autores que se tm dedicado a este aspecto do seu percurso no nosso pas e aos quais nos voltaremos a referir na seco seguinte, na qual reforaremos a ideia que vimos acentuando: a do predomnio da anlise da escola por parte da sociologia da educao.

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    1.1.2. Objecto de estudo

    Antes de reforar a ideia acabada de enunciar, gostaramos de realar que a leitura das obras de sociologia da educao d conta de uma variedade de formas de a abordar. Seja quanto delimitao do seu objecto de estudo, das abordagens tericas utilizadas (correntes funcionalistas, do conflito e da reproduo, da resistncia, etc.), dos autores considerados como fazendo parte desta disciplina, das designaes usadas, entre outros aspectos. De toda esta diversidade a que nos preocupa a ltima, porque as outras do conta da vivacidade da prpria disciplina, enquanto esta traduz uma srie de confuses. Por isso, faremos uma brevssima referncia a esta questo antes de nos centrarmos no foco de interesse desta parte do texto.

    Assim, colocamos a questo nos seguintes termos: ser que falar de sociologia da educao a mesma coisa que falar de sociologia educacional, de sociologia pedaggica, de pedagogia social, ou de pedagogia sociolgica? No, no estamos a falar do mesmo. No entanto, a confuso tem existido. Por exemplo, Wallner (1980:265) diz-nos que a sociologia da educao e a da formao regra geral so compreendidas sob a designao de sociologia pedaggica. Para Ardig (1970) a sociologia da educao uma sociologia aplicada. No sendo o nosso interesse aprofundar esta discusso6, gostaramos de esclarecer apenas a diferena entre sociologia da educao e sociologia educacional, que coincide com a designao sociologia pedaggica (Quintana, 1989), pois tm sido aquelas que mais vezes se utilizam de forma indiferenciada, como o caso de Toscano (1999).

    A primeira, refere-se ao estudo sociolgico da educao enquanto facto social, trata-se de um ramo da sociologia, cujo interesse analtico e descritivo (Lenhard, 1981; Quintana, 1989). A segunda, insere-se na primeira, mas trata-se de uma cincia aplicada aos problemas, necessidades e solues da escola (Fainholc, 1979; Lenhard, 1981; Quintana, 1989; Jarvis, 2000). Portanto, a sociologia da educao, em nosso entender, no deve ser vista como uma disciplina normativa, o que o caso da pedagogia, mas sim como uma das cincias da educao de mbito analtico e descritivo.

    Mais do que esta discusso, interessa-nos perceber o que tem feito e a que temas se tem dedicado a sociologia da educao. Embora o seu objecto de estudo seja muitas vezes definido de forma ampla, considerando vrios temas, vrias instituies educativas, etc., a verdade que ela se tem centrado quase exclusivamente, como j dissemos, na anlise da educao formal, do sistema de ensino, da escola (os saberes, os alunos sobretudo do ensino bsico e secundrio os professores...), seja por estudo directo do sistema de ensino ou da escola, seja pela anlise das suas relaes com a sociedade e os seus diferentes agentes. O que no quer dizer que no existam sinais de modificao na abordagem prpria escola e que no hajam referncias a outros 6 Caso exista interesse em desenvolver este aspecto ver: Fainholc (1979:7-28); Lenhard (1981:17-18); Quintana

    (1989:27-32; 1998:68-71); Afonso (1992:83-84); Colom et al. (1992:15-33); Ibes e Serrano (2000:27-33); Vidal (2000:9-12, 20-22).

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    contextos educativos como campos de anlise, como tambm j fomos afirmando e das quais procuraremos continuar a dar conta adiante.

    Seja como for, o que inegvel o predomnio do estudo da instituio escolar, cujas razes foram tambm j adiantadas e se podem resumir importncia que esta instituio teve, tem e ter, pelo menos nos anos mais prximos, na nossa sociedade (Bonal, 1998; Cerd, 2000).

    Tal predomnio confirmado por vrios autores. Mnica (1977:989), afirmava que esta disciplina no mais do que a aplicao da perspectiva sociolgica anlise duma instituio, neste caso, a escola. Hinojal (1990:x), afirmava, referindo-se ao caso espanhol: Em qualquer caso e, especialmente entre ns, a chamada sociologia da educao no considerada para alm da educao formal, do sistema educativo, e no , portanto, mais que sociologia escolar. Mais prximos de ns no tempo, Bonal e Rambla (1998:141-142) afirmam que Nos ltimos vinte e cinco anos a sociologia da educao recorreu fundamentalmente s teorias da reproduo e da correspondncia com o fim de explicar de que forma a escola de massas mantm e refora as desigualdades sociais, e s teorias da resistncia para explicar como alguns grupos de alunos produzem uma subcultura contra-escolar. Cerd (2000:255) conclui no mesmo sentido, dizendo-nos que a maior parte das publicaes em sociologia da educao centram, de forma quase exclusiva, seus estudos em torno da instituio escolar. Tambm Afonso (2005:143) nos diz algo de parecido, ao afirmar que a sociologia da educao () tem sido, em boa medida e em diferentes pases, uma sociologia da Escola e dos percursos educativos formais.

    Naturalmente, tal facto reflecte-se na seleco dos temas considerados como prioritrios para a disciplina e tambm no prprio ttulo de muitas obras. Por exemplo, Cesareo (1972), citado por Quintana (1989), props cinco reas de estudo: a relao entre o sistema educativo e a estrutura social; os determinantes sociais da educabilidade; as instituies escolares; o pessoal docente como grupo profissional; e os efectivos do sistema escolar. Quanto aos ttulos, podemos ilustrar com as seguintes obras: Uma sociologia na escola primria (Berger, 1980); Sociologie de Lcole: pour une anayse de ltablissement scolaire (Beaudot, 1981); Sociologa educacional y escolar (Ribolzi, 1988); Gesto das Escolas Secundrias. A Participao dos Alunos (Lima, 1988); Life in School. The Sociology of Pupil Culture (Hammersley e Woods, 1989); Sociologie de Lcole (Duru-Bellat e van Zanten, 1992); A sociologia na escola: professores, educao e desenvolvimento (Esteves e Stoer, 1992); Sociologia da Escola (Pinto, 1995); entre muitas outras.

    Se fizermos uma anlise geogrfica da questo chegaremos mesma concluso, ou seja, ao predomnio do sistema de ensino e da escola como temas de estudo. Numa obra publicada em primeira-mo em Frana, em 1990, cujo objectivo foi realizar um apanhado geral da sociologia da educao com base nas publicaes feitas na dcada de oitenta na Revue Franaise de Pdagogie, fica claramente retratada a situao a que nos temos vindo a referir7, pois os captulos apresentam-se-nos assim: sociologia das desigualdades de acesso educao (escolar entenda-se); abordagem 7 Embora exista uma aluso ao no escolar como uma nova dimenso no campo de anlise. Devemos elucidar que

    apenas o cap.4 diz respeito exclusivo Frana, os outros referem-se a diferentes espaos, tendo particular relevo a Gr-Bretanha, os Estados Unidos e, claro, a prpria Frana.

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    sociolgica do sucesso e do fracasso escolares; a nova sociologia da educao na Gr-Bretanha (cujo centro de anlise o que ensinado nas escolas e como ensinado); as tendncias da pesquisa em sociologia da educao na Frana (1975-1983), tendo sido a evoluo mais notria de pesquisa as centradas nos docentes e nas suas prticas; abordagens etnogrficas em sociologia da educao: escola e comunidade, estabelecimento escolar, sala de aula; e etnometodologia e educao, centrando-se a anlise uma vez mais na escola (Forquin, 1995a).

    Um outro livro publicado no mesmo pas, no incio da dcada de oitenta, d-nos conta duma srie de estudos realizados nos Estados Unidos, Inglaterra, Hungria, Polnia e Qubec, acerca dos estabelecimentos escolares (pr-escolar, bsico, secundrio) analisados na sua totalidade, como sistemas complexos de comportamentos humanos, como organizaes especficas. Nessa obra defende-se a necessidade de se desenvolver este tipo de estudos na Frana, defende-se a necessidade de se desenvolver uma sociologia da escola: O equivalente a uma obra como a de Shipman sobre a sociologia da escola no existe em Frana... (Beaudot et al., 1981:2).

    Dez anos depois, Duru-Bellat e van Zanten (1992:1) confirmam o estudo preferencial da escola e defendem-no claramente: La rssuite scolaire, l`insertion des jeunes, la dfinitions des programmes, l`evolution du mtier d`enseignant, ou la vie dans les tablissements (...) son (...) l`objet de recherches dans un des champs les plus riches de la sociologie franaise, la sociologie de l`ducation. (...) la plupart des travaux mens dans ce champ concernent les institutions d`enseignement, essentiellement d`ailleurs les formations initiales. La formation permanente et plus largement les formes non scolaires d`apprentissage et d`enseignement sont beaucoup moins tudies.. Um pouco adiante escreve-se: Mme si, par commodit, le terme consacr de sociologie de l`ducation est frquemment utilis dans cet ouvrage, c`est bien la scolarisation qu`il est consacr (...) d`o le titre de Sociologie de l`cole. (ibidem:2). Alis, uma destas autoras, poucos anos depois, refere que os temas mais recentes de investigao no contexto francs so: a relao entre a escola e o espao local, o estabelecimento escolar, e a experincia escolar dos alunos (Van Zanten, 1998). Muitas outras obras confirmam esse predomnio em Frana, como por exemplo a de Haecht (1994).

    Esta tem sido a tendncia geral, como cremos ter j mostrado, e que pode ainda ser confirmada por outros estudos em Portugal, como nos comprovam os trabalhos realizados por Stoer (1992), por Stoer e Afonso (1999) e por Afonso (2001b, 2005) acerca do desenvolvimento da sociologia da educao no nosso pas, em Itlia (Ribolzi, 1988), em Espanha (Lerena, 1987; Hinojal, 1990; Campos, 1998; Cerd, 2000), nos Estados Unidos e na Amrica Latina (Torres e Rivera, 1994) e em muitos outros contextos geogrficos.

    H, no entanto, sinais de mudana, quer na abordagem educao formal instituda na escola, quer na abertura a outros campos de anlise, como fomos dando conta antes. Para terminar esta parte, gostaramos apenas de referenciar algumas dessas transformaes mais recentes, nomeadamente as ocorridas entre ns, e que no tm a ver directamente com a nossa investigao.

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    Destacamos os estudos realizados sobre o ensino superior (Resende e Vieira, 1993; Vieira, 1995; Arroteia, 1996; Cabrita, 1997; Grcio, 1997; Meek, 1997; Loureiro, 1999), pois, como vimos, a sociologia da educao tem-se dedicado preferencialmente aos nveis de ensino precedentes.

    Realamos os estudos sobre polticas educativas, nomeadamente os que reflectem sobre a crise do Estado Providencia e consequentes processos de desregulao, de que Bonal (1998:181,185-186) d conta e que entre ns mereceu a reflexo de Cardoso (2005), de Lima (2000) acerca do caso concreto da educao de adultos e tambm de Afonso (1999) no caso da avaliao. Assinalamos os estudos sobre as formas de regulao transnacional das polticas educativas (Teodoro, 2005). Ainda inserida neste mbito destacamos a obra de Morrow e Torres (1997), que muito mais que uma anlise de sntese da sociologia da educao, pois os autores, como dizem McLaren e Giroux (1997:9) no prefcio da dita obra, Atravs do desenvolvimento de uma noo de sociologia poltica da educao e de uma anlise particularmente atenta das relaes entre a educao, o poder, o conhecimento e o Estado, este livro fornece uma anlise e uma crtica conceptuais da reproduo social no domnio da educao, avanando simultaneamente novos caminhos para a investigao terica e emprica. Esta , efectivamente, uma obra onde a questo do estudo do Estado ganha relevo.

    So de referenciar tambm os estudos dedicados educao multi e intercultural (Stoer, 1994; Corteso e Stoer, 1995b; Souta, 1997; Stoer e Corteso, 1999) e ainda as novas abordagens tericas e empricas sobre a relao entre educao e trabalho (Correia et al., 1993; Bonal, 1998:172-179). Uma anlise mais profunda relativamente ao caso portugus pode ser visto em Stoer (1992), Stoer e Afonso (1998/1999) e em Afonso (2001, 2005).

    1.2. A ANLISE DO CONHECIMENTO EM DIFERENTES CORRENTES DA SOCIOLOGIA DA EDUCAO

    Feita esta breve referncia ao aparecimento, desenvolvimento e objecto de estudo tradicional da sociologia da educao, passamos a centrar a nossa ateno na forma como ela tem feito a anlise do conhecimento escolar. Tratamos desta problemtica a partir das principais correntes da sociologia da educao, como j referimos, procurando destacar os autores que dentro delas mais se dedicaram questo que nos interessa de momento. No se trata, portanto, de uma abordagem exaustiva dos autores pertencentes a cada corrente, mas, como dissemos, de uma apresentao daqueles que nos pareceram ser os mais representativos das mesma e que, simultaneamente, mais se tenham debruado sobre a questo principal em anlise. Tal feito procurando, sempre que possvel, vislumbrar os efeitos sociais desse conhecimento, bem como o papel que nesse processo tm os professores, isto, claro est, de acordo com os autores a que nos formos referindo. Devemos esclarecer tambm que reduziremos o tratamento deste assunto ao contexto Europeu e dos Estados Unidos da Amrica.

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    Ainda que a sequncia com que apresentamos as ditas correntes obedea a um certo critrio temporal a preocupao no realizar uma exposio temporal da sociologia da educao, mas sim o de enquadrar dentro dessas mesmas correntes abordagens tericas que, embora com caractersticas prprias e diferentes, tenham traos comuns que nos permitam a sua incluso dentro desta ou daquela corrente. Admitimos que as teorias, os autores que inclumos nesta ou naquela corrente poderiam ser enquadrados noutra, h vrias formas de o fazer. Por outro lado, a prpria distino entre correntes no rgida, porque no existem entre elas paredes de beto impermeabilizadas. No h barreiras totalmente fixas entre elas, possvel encontrar pontes de ligao, mas possvel tambm ir enquadrando as diferentes teorias de acordo com certas caractersticas comuns. Foi isso que procurmos fazer e a isso que a classificao que apresentamos, bem como a incluso de teorias e autores nela, obedece.

    Portanto, a questo da classificao dos paradigmas, das correntes e dos autores pertencentes a cada uma delas, no pacfica. A este propsito, podemos reter as palavras de Morrow e Torres (1997:49) quando, referindo-se aos paradigmas da reproduo educativa que consideram, admitem que h casos em que modelos includos nesses paradigmas (...) acabam por transcender em aspectos importantes o paradigma de onde so originrios. Estes autores, partindo duma discusso do que se entende por reproduo social, qual atribuem uma dimenso de estabilidade e outra de mudana, optam por tratar todas as correntes neste enquadramento terico, ou seja, entendendo-as a todas na perspectiva da reproduo social. J Pinto (1995) distingue dois paradigmas, o determinista e o da aco, considerando no primeiro tanto as teorias funcionalistas como as da reproduo. Martins (1993), por sua vez, a propsito do problema do insucesso escolar, fala-nos da teoria meritocrtica, dos culturalistas e dos deterministas.

    A mesma diversidade pode ser referida quanto a autores, como deixamos entender acima. Bourdieu, por exemplo, colocado por Hinojal (1991) dentro do que este designa por funcionalismo crtico e por Bonal (1998) dentro das teorias do conflito e da reproduo. Bernstein, e tendo por referncia ainda estes dois autores, colocado por Hinojal (1991) no cruzamento da corrente funcionalista, marxista e interpretativa, enquanto que Bonal (1997) o coloca dentro das teorias da reproduo cultural.

    A questo do conhecimento escolar parece ter estado sempre presente na anlise que os socilogos fizeram da educao escolar, embora em graus e nveis de anlise diferentes.

    Hinojal (1987;1991), ao referir-se queles que considera como os clssicos da sociologia da educao e ao procurar mostrar porque os considera como tal, vai, simultaneamente, mostrando como nalguns deles a questo do conhecimento escolar est patente, realando a actualidade do tratamento que alguns desses clssicos deram ao conhecimento escolar.

    De Durkheim diz-nos que foi o inspirador da nova sociologia da educao e como na sua obra L`ducation pedagogique en France, esto j presentes questes actuais da sociologia da educao que se dedica ao currculo: o currculo no se ocupa apenas do qu mas tambm do como, e do como se ocupa tambm Durkheim (...). Toda esta obra de Durkheim , de facto, um

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    estudo do conhecimento escolar e das suas relaes mltiplas e de mltipla natureza (Hinojal, 1987:526). Opinio semelhante tem Cherkaoui (1976), citado por Haecht (1994), que considera que nessa obra est um projecto de sociologia do conhecimento.

    De Veblen, outro dos autores referido por Hinojal (1991:47,527) como um dos clssicos da sociologia da educao, diz que foi um antecessor (...) das novas correntes da sociologia da educao e da sociologia do conhecimento, um percursor da actual sociologia do currculo, pelo tratamento que fez do conhecimento escolar e do conhecimento cientfico/acadmico, que considerava como conhecimentos socialmente no neutrais.

    Referncia especial feita tambm a Mannheim, a quem considera estar na actualidade da sociologia da educao e do currculo (Hinojal, 1987:530), isto pelo tratamento que deu ao conhecimento e em particular ao conhecimento escolar.

    Como dissemos antes, no nosso objectivo realizar um tratamento particular dos clssicos da abordagem sociolgica da educao. Apesar disso, detemo-nos um pouco mais em Durkheim, que de todos foi aquele que, sem dvida, mais influenciou a sociologia da educao, mais particularmente a sua corrente funcionalista. Para alm dela, este autor influenciou tambm outros autores que normalmente so enquadrados noutras correntes, como Bernstein (1989:176), que assume o relevo daquele autor nas anlises que fez ao afirmar, por exemplo, que: O trabalho de Durkheim uma viso verdadeiramente magnifica das relaes entre ordens simblicas. As relaes sociais e a estruturao da experincia. O mesmo se pode dizer de Bourdieu, que, considerando as palavras de Morrow e Torres (1997:61,63), foi tambm influenciado por Durkheim: Foi este entendimento de Durkheim que influenciou a escola de investigao histrica dos Annales e a tradio estruturalista de Lvi-Strauss a Bourdieu, e que teve um efeito profundo sobre as teorias da reproduo educativa orientada para o conflito. (...) autores como Pierre Bourdieu e Basil Bernstein expandem princpios da anlise funcional que empurram Durkheim em direces muito diversas, que acabam por se relacionar com certos aspectos de Marx e Weber.

    Se tivermos em conta o conceito que Durkheim (1984) deu de educao e das suas funes, vemos como esto presentes a funo de adaptao/socializao dos indivduos sociedade, bem como a funo de diferenciao social (diviso especializada do trabalho), ambas procurando responder s necessidades funcionais da sociedade como um todo:

    A educao a aco exercida pelas geraes adultas sobre as que ainda no se encontram

    amadurecidas para a vida social. Ela tem por objectivo suscitar e desenvolver na criana um certo

    nmero de condies fsicas, intelectuais e morais que dela reclamam, seja a sociedade poltica, no seu conjunto, seja o meio especial a que ela se destina particularmente (ibidem:17).

    A funo dessa mesma educao pois de suscitar na criana: 1, um certo nmero de estados fsicos e

    mentais que a sociedade qual a criana pertence considera no deverem estar ausentes de qualquer dos

    seus membros; 2, certos estados fsicos e mentais que o grupo social particular (casta, classe, famlia,

    profisso) considera igualmente dever encontrar-se em todos aqueles que o constituem (ibidem:16).

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    Outra ideia que transparece do conceito dado, que alis esclarecida com maior pormenor nas pginas que se lhe seguem (Durkheim, 1984:17-27), a de que aos adultos (pais, no caso da educao familiar, e professores, no caso da educao escolar), como representantes da gerao a que pertencem, apenas lhes cabe o papel de transmissores dos conhecimentos, hbitos e valores considerados socialmente ajustados de serem transmitidos. Assim, como vemos, o papel do professor aqui entendido, tal como o prprio conceito, de forma colectiva, sendo a sua aco a de ajudar a responder s tais necessidades da sociedade, por via da tal transmisso8.

    Ora, so estas funes da educao, aquelas que respondem s necessidades da sociedade entendida como um todo, que iro estar presentes na sociologia da educao funcionalista.

    Como diz Bonal (1998:18,19), aps se ter referido a Durkheim: As primeiras teorias sociolgicas da educao, portanto, indicam-nos a relevncia da educao como subsistema social de aprendizagem das normas e valores sociais nos quais se fundamenta a sociedade. Socializao e controlo social so identificadas como funes fundamentais do processo de transmisso de conhecimentos e hbitos e nesse processo de transmisso uniformizam-se hbitos e valores e diferencia-se o conhecimento aos indivduos para se adaptarem sociedade como um todo orgnico.

    Tambm Morrow e Torres (1997:61), ao referirem-se influncia que a obra de Durkheim teve para o desenvolvimento posterior das sociologias funcionalistas da educao, do relevo ao aspecto que acabmos de enunciar, afirmando que ele a base da teoria funcional da socializao mais comum (ibidem:62). Estes dois autores salientam ainda mais dois elementos da obra de Durkheim que tiveram influncia no desenvolvimento das posteriores anlises funcionalistas: a tese histrica de que as mudanas nos sistemas educativos eram consequncias causais das transformaes sociais e econmicas ocorridas no conjunto da sociedade e exteriores, portanto, ao domnio da educao propriamente dito (ibidem:61); e a ideia de que com a passagem duma sociedade tradicional para uma sociedade complexa e diferenciada seria necessria uma maior individuao, o que tinha expresso nas transformaes na pedagogia e na organizao da escola (ibidem:62).

    Assim, a questo do conhecimento escolar e dos seus efeitos sociais parecem ter estado, desde incio, nas anlises que a sociologia fez da educao, como acima dissemos. Alis, esta particularidade, a da anlise do conhecimento escolar e dos seus efeitos sociais, aquela que, segundo Bonal (1998:21), a distingue das outras cincias da educao: Ao contrrio de outras cincias da educao, a sociologia da educao interessa-se apenas pelos processos de transmisso de conhecimentos, pelos mtodos de ensino ou pelos contedos educativos enquanto processos importantes para a estruturao e contedo das relaes sociais. 8 Caso exista interesse em ver uma anlise mais profunda das consequncias do conceito de educao dado pelo

    autor a que nos referimos, tal poder ser visto nas pginas acima referidas, ou em anlises feitas por outros autores a propsito desse mesmo conceito, como por exemplo: Pinto (1995:78-81).

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    Mas, se a presena do conhecimento e a anlise dos seus efeitos sociais aparece j em alguns clssicos, no devemos esquecer o que nos lembra Cherkaoui (1994), quando diz que o estudo do conhecimento escolar como varivel explicativa da estratificao social dos alunos s ocorre muito mais tarde na sociologia da educao:

    Pode parecer paradoxal que as divises escolares dependam do saber, o qual, aparentemente, no traduz

    mais do que a aquisio de conhecimentos objectivos. Mas foi sem dvida o postulado implcito, segundo

    o qual o saber transmitido pela escola seria neutro e universal, que esteve na origem do desinteresse da

    sociologia da educao pelo seu estudo como complexo de variveis que estratificam os alunos. E s h

    duas dcadas a investigao sociolgica rompeu com este pressuposto e analisa o saber escolar como

    mecanismo de regulao, como processo de integrao social e intelectual, e como objecto de luta entre

    os grupos. Os conhecimentos transmitidos pela escola so estudados, quer como sistema de variveis que

    dependem de outros grupos de variveis independentes, tais como o poder poltico, os grupos de presso

    ou a epistemologia dominante, quer como cultura susceptvel de, por sua vez, determinar categorias de

    pensamento e paradigmas (Cherkaoui, 1994:40).

    Tambm Morrow e Torres (1997:23), aps se referirem s caractersticas analticas dos

    modelos de reproduo social aplicados aos sistemas educativos, salientam a importncia do conhecimento nas suas anlises: Resumindo, nas teorias da reproduo social, as instituies educativas surgem relacionadas com as questes do poder, do conhecimento e com as bases morais de produo e aquisio de cultura.

    1.2.1 Os funcionalistas

    Vejamos, ento, como estas questes tm sido analisadas nas principais correntes da sociologia da educao, comeando pela funcionalista.

    Para alm de Durkheim, outro autor influenciou e continua a influenciar esta corrente da sociologia da educao, bem como da sociologia em geral que segue esta linha. Referimo-nos a Parsons, de quem Morrow e Torres (1997:63) dizem o seguinte: A enorme obra de Talcott Parsons estende-se ao longo de um perodo de mais de cinquenta anos e continua a ser a referncia mais importante da tradio funcionalista contempornea.

    Num artigo de 1959, Parsons (1974) escreve sobre a escola primria e secundria dos Estados Unidos da Amrica, no qual procura mostrar como a escola simultaneamente um agente de socializao e de diferenciao social baseado em princpios de justeza e igualdade de oportunidades, funes consideradas essenciais para o equilbrio do sistema social. Tais funes so, de acordo com o autor, visveis no funcionamento da prpria turma.

    Basicamente, podemos dizer que Parsons retoma e aprofunda as ideias da sociologia de educao durkheimiana (Bonal, 1998:35). Assim, a escola tem como funes a socializao dos indivduos, bem como a sua diferenciao social, que se faz sentir essencialmente a partir do

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    ensino secundrio, enquanto que a primeira se faz sentir essencialmente no ensino primrio. A diferenciao dos indivduos realiza-se atravs dum processo que se baseia nas suas capacidades, motivaes e aspiraes, e nos papis que a sociedade estabelece para cada sexo. O processo de seleco, que diferencia as capacidades, realizado segundo critrios que no pem em causa o princpio da igualdade de oportunidades dos alunos, e assim essa diferenciao encontra-se legitimada, pois a neutralidade do conhecimento e dos prprios valores que transmite a instituio escolar a legitimao necessria do processo de diferenciao (Bonal, 1998:37).

    Assim, como vemos, estamos perante um dos princpios que atravessa toda a sociologia da educao funcionalista: o da igualdade de oportunidades dos alunos com base na neutralidade do conhecimento e valores escolares transmitidos. a ideia da meritocracia como base da mobilidade social ascendente, sendo a escola o factor democrtico dessa mobilidade social. Feita esta brevssima referncia a Parsons e sua influncia na sociologia da educao, passemos a uma anlise do que foram as principais abordagens desta corrente9.

    De acordo com vrios autores (Hinojal, 1991; Gmez, 1994; Pinto, 1995; Bonal, 1998; entre outros) poderemos dizer que a sociologia da educao funcionalista se moveu em torno de duas orientaes de estudo, que podem ser designadas por funcionalismo tecnolgico (e a teoria do capital humano) e por funcionalismo reformista (a educao como factor de igualdade de oportunidades), que, alis, se encontram interligadas.

    A primeira abordagem assenta na ideia geral da educao escolar como factor de desenvolvimento e crescimento econmico, no s dos pases desenvolvidos, mas tambm dos que encontravam em vias de desenvolvimento e, sendo assim, defendia-se um investimento pessoal e nacional nessa mesma educao que proporcionaria os conhecimentos e habilidades necessrias aos indivduos, exigidos pela estrutura de trabalho (Gmez, 1994). Esta basicamente a ideia do capital humano, segundo a qual existiria uma relao directa entre a educao e a produtividade da mo-de-obra, ou seja, o conhecimento adquirido graas educao proporciona a capacitao tcnica que torna o trabalhador mais produtivo (Bonal, 1998:60) e com isto contribui-se para o desenvolvimento do pas.

    Vive-se num clima de optimismo tecnolgico e econmico e de ideais democrticos (anos 50/60), no qual atribudo escola e ao seu conhecimento um papel fundamental, quer na preparao de tcnicos especializados necessrios para o mundo do trabalho, quer na seleco e distribuio social das pessoas de acordo com a sua diferente aquisio especializada de conhecimentos e habilidades requeridas por tal mercado de trabalho.

    Segundo Hinojal (1991) a obra de Burton Clark, Educating the expert society, de 1962, uma boa amostra do funcionalismo tecnolgico na sociologia da educao. As ideias base deste autor so: a existncia de uma crescente mudana tecnolgica da sociedade moderna, que requer sucessivos exrcitos de especialistas e tcnicos; ao sistema educativo cabe trein-los e 9 Para uma anlise mais profunda da obra de Parsons, nomeadamente da sua influncia na sociologia da educao,

    ver, para alm autores acima referidos (Morrow e Torres, 1997:61-76; Bonal, 1998:34-38): Hinojal (1987:536-541; 1991:66-71) e Pinto (1995:93-94).

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    seleccion-los; isto implica a expanso e a especializao do sistema de ensino (...); requer tambm que por ele passem crescentes massas de jovens, que colocam na educao as suas esperanas de xito social, sustentadas em esperanas de xito profissional (Hinojal, 1991:73).

    Desta forma, como refere Gomz (1994:119), de acordo com esta perspectiva terica, o processo de estratificao social efectua-se atravs do funcionamento objectivo, neutral e eficiente do mercado de trabalho no qual se realiza a distribuio dos trabalhadores na estrutura ocupacional, de acordo com o nvel de ajuste e adequao existente entre as habilidades e conhecimentos certificados por ttulos escolares e os requisitos educativos de cada categoria ocupacional.

    Sintetizando, esta abordagem v na educao escolar e no investimento individual e colectivo nela realizado, um factor de desenvolvimento econmico e de estratificao social com base em princpios igualitrios. A popularizao desta ideia da educao como capital humano deve-se ao economista Schultz, que, em 1960, escreveu um artigo onde expe as ideias bsicas acima enunciadas (Schultz, 1983).

    Assim, como vemos e dissemos j, esta abordagem (a da funo estratificadora da educao atravs do mecanismo regulado pelas necessidades do mercado de trabalho e pelas qualificaes adquiridas pelos indivduos atravs da escola) est prxima do outro objecto de estudo da sociologia da educao funcionalista: a igualdade de oportunidades educativas, ou seja, a da escola como factor de mobilidade social ascendente.

    Relativamente a esta outra linha de investigao, a ideia geral inicial a seguinte: a partir do momento em que h igualdade de oportunidades de acesso educao escolar esto garantidas as condies para que todos tenham iguais oportunidades de sucesso escolar e logo social, isto porque o conhecimento que se transmite neutro e portanto a seleco ser feita com base nas capacidades, interesse, motivao, enfim, no mrito dos indivduos e no com base noutros quaisquer critrios, como sejam os de ordem social. Ento, para esta primeira abordagem, para existir igualdade de oportunidades educativas bastava garantir a igualdade de oportunidades de acesso escola. Diversos autores defendem que muitos destes estudos tinham um forte suporte poltico (Pinto, 1995; Bonal, 1998; entre outros).

    O exemplo mais tpico desta abordagem, segundo vrios autores (Pablo, 1986; Bonal, 1998; Enguita, 1999), a conhecida teoria da estratificao social defendida por Davis e Moore (1999) em 1945, que traduz bem esta forma meritocrtica de ver a igualdade de oportunidades educativas e sociais.

    Esta linha de investigao sofre uma reorientao no que toca ao entendimento do conceito de igualdade de oportunidades educativas, pois conclui-se que no basta garantir a igualdade de oportunidades de acesso para que hajam iguais oportunidades de sucesso escolar, isto porque os alunos das classes sociais baixas tm um dfice cultural familiar que explica o seu insucesso escolar (Coleman, 1966). A partir do relatrio deste autor e de outros, como por exemplo do estudo de Husn (s/d), modifica-se o conceito de igualdade de oportunidades, os

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    estudos orientam-se para a anlise desses dfices, introduz-se a ideia de educao compensatria, mas mantm-se o entendimento da escola como uma instituio que transmite um conhecimento neutro.

    A sociologia da educao passa a centrar-se no estudo das causas do insucesso escolar com base nessa tal ideia de dfice cultural das famlias das classes sociais baixas, no questionando, portanto, o papel da escola como factor de insucesso escolar e de desigualdade educativa e social, o que vem a suceder, sobretudo, a partir dos anos 70, tendo-se tal facto ficado a dever ao desencanto com o reformismo educativo e com as esperanas de mudana social atravs da educao (Bonal, 1998:50). Uma forte crtica