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O trabalho do psicólogo no Brasil A Artmed é a editora oficial da SBPOT.

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  • O trabalho do psiclogo no Brasil

    A Artmed a editora oficial da SBPOT.

  • T758 O trabalho do psiclogo no Brasil [recurso eletrnico] : um exame luz das categorias da psicologia organizacional e do trabalho / Antonio Virglio Bittencourt Bastos, Sonia Maria Guedes Gondin (organizadores). Dados eletrnicos. Porto Alegre : Artmed, 2010.

    Editado tambm como livro impresso em 2010. ISBN 978-85-363-2386-2

    1. Psicologia Trabalho Brasil. I. Bastos, Antonio Virglio Bittencourt. II. Gondin, Sonia Maria Guedes.

    CDU 159.9:331(81)

    Catalogao na publicao: Renata de Souza Borges CRB-10/1922

  • 2010

    Antonio Virglio Bittencourt BastosSnia Maria Guedes Gondim

    e colaboradores

    O trabalho do psiclogo no Brasil

  • Artmed Editora S.A., 2010

    Capa: Heybro design

    Preparao de originais: Marcos Vincius Martim da Silva

    Leitura final: Rafael Padilha Ferreira

    Editora snior Sade Mental: Mnica Ballejo Canto

    Editora responsvel por esta obra: Carla Rosa Araujo

    Editorao eletrnica: Formato Artes Grficas

    Reservados todos os direitos de publicao, em lngua portuguesa, ARTMED EDITORA S.A.

    Av. Jernimo de Ornelas, 670 Santana90040-340 Porto Alegre RS

    Fone (51) 3027-7000 Fax (51) 3027-7070

    proibida a duplicao ou reproduo deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrnico, mecnico, gravao, fotocpia, distribuio na Web e outros), sem permisso expressa da Editora.

    SO PAULOAv. Embaixador Macedo Soares, 10.735 Pavilho 5 Cond. Espace Center

    Vila Anastcio 05095-035 So Paulo SPFone (11) 3665-1100 Fax (11) 3667-1333

    SAC 0800 703-3444

    IMPRESSO NO BRASILPRINTED IN BRAZIL

  • Antonio Virglio Bittencourt Bastos (org.) Doutor em Psicologia pela Uni ver-sidade de Braslia, com concentrao em Psicologia Organizacional e do Trabalho. Mes tre em Educao pela Universidade Federal da Bahia. Psiclogo pela Universidade Federal da Bahia. Membro da Comisso de Psicologia do INEP e da comisso de rea da Psicologia na CAPES. Pesquisador I-A do CNPq. Professor Titular de Psicologia Social nas Organizaes na Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

    Snia Maria Guedes Gondim (org.) Doutora em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Estgio ps-doutoral na Universidad Complutense de Madrid e na University of Cambridge. Professora Associada no Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Bolsista em Produtividade em Pesquisa do CNPq. Atua na graduao e na ps-graduao dos programas de Psicologia, Gesto Social e Administrao da Universidade Federal da Bahia. Vice-presidente da Associao Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT). Editora associada da Revista Psicologia: Organizaes e Trabalho (rPOT). Vice-diretora do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. E-mail: [email protected]

    COAUTORES

    Gardnia da Silva Abbad Doutora em Psicologia pela Universidade de Braslia. Mestre em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Braslia. Pesquisadora e bolsista de produtividade do CNPq. Membro do Conselho Acadmico da Fundao Escola Nacional de Administrao Pblica (ENAP). Editora associada da Revista Psicologia: Organizaes e Trabalho (rPOT). Professora Adjunta na Universidade de Braslia.E-mail: [email protected]

    Jairo Eduardo Borges-Andrade M.Sc. e Ph.D. em Sistemas Instrucionais pela Florida State University, EUA. Psiclogo pela Universidade de Braslia. Fez estgios ps-doutorais no International Food Policy Research Institute, EUA, na University of

    Autores

  • Sheffield, Inglaterra, e na Rijksuniversiteit Grningen, Holanda. Professor Titular na Universidade de Braslia.E-mail: [email protected]

    Janice Aparecida Janissek de Souza Doutora em Administrao pela Univer sidade Federal da Bahia. Mestre em Administrao pela Universidade Federal de San ta Catarina. Psicloga pela Universidade Catlica de Pelotas. Professora Adjunta na Uni versidade Federal de Mato Grosso. Integrante do Grupo de Estudos Indivduo, Or ganizaes e Trabalho na Universidade Federal da Bahia Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administrao (GEPAD) na Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]

    Jos Carlos Zanelli Doutor em Educao pela Universidade Estadual de Campinas. Ps-doutorado em Psicologia pela Universidade de So Paulo e pela Pontifcia Uni ver-sidade Catlica de Campinas. Mestre em Psicologia Social das Organizaes pelo Instituto Metodista de Ensino Superior de So Bernardo do Campo. Especialista em Psi cologia Organizacional e do Trabalho pelo Instituto Sedes Sapientiae. Psiclogo pela Universidade de Braslia. Professor Associado na Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: [email protected]

    Ktia Barbosa Macdo Master en Psicologa Aplicada a Las Organizaciones, pela Escuela de Administracin de Empresas de Barcelona. Doutora em Psicologia Social pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Mestre em Educao pela Universidade Federal de Gois. Psicloga pela Universidade Catlica de Gois. Professora Titular na Universidade Catlica de Gois. E-mail: [email protected]

    Katia Puente-Palacios Doutora em Psicologia pela Universidade de Braslia. Graduao em Psicologia Industrial pela Pontifcia Universidade Catlica de Quito, Equador. Mestre em Psicologia pela Universidade de Braslia. Ps-doutorado em Psicologia pela Universidade de Valencia, Espanha. Professora Adjunta na Universi-dade de Braslia.E-mail: [email protected]

    Livia de Oliveira Borges Doutora em Psicologia pela Universidade de Braslia, com estgio ps-doutoral na Universidade Complutense de Madrid. Mestre em Admi-nistrao pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Psicloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora na Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora CNPq. E-mail: [email protected]

    Luciana Mouro Doutora em Psicologia pela Universidade de Braslia. Mestre em Administrao pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora e pesquisadora na Universidade Salgado de Oliveira. Membro da Diretoria da Associao Brasileira de Psicologia Or ganizacional e do Trabalho (SBPOT).E-mail: [email protected]

    vi Autores

  • Maria do Carmo Fernandes Martins Doutora em Psicologia pela Universidade de Braslia. Mestre em Psicologia pela Universidade de Braslia. Psicloga pela Universidade de So Paulo. Professora Titular e pesquisadora da Universidade Metodista de So Paulo. Presidente da Associao Brasileira de Psicologia Organizacional e do Trabalho (SBPOT). Professora Colaboradora na Universidade Federal de Uberlndia. E-mail: [email protected]

    Maria Jlia Pantoja Doutora em Psicologia Organizacional e do Trabalho pela Universidade de Braslia. Mestre em Psicologia pela Universidade de Braslia. Professora Adjunta e pesquisadora na Universidade de Braslia.E-mail: [email protected]

    Maria da Graa Corra Jacques Doutora em Educao pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Ps-doutorado em Psicologia Social pela Universidade Aberta, Portugal. Mestre em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Psicloga pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

    Mauro de Oliveira Magalhes Doutor em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Psiclogo pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul. Professor no Programa de ps-graduao em psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia. Professor Adjunto na Universidade Luterana do Brasil. Certificado como Career Coach pelo Career Planning and Adult Development Network, EUA.E-mail: [email protected]

    Mirlene Maria Matias Siqueira Doutora em Psicologia pela Universidade de Braslia. Mestre em Psicologia pela Universidade de Braslia. Psicloga e Pesquisadora do CNPq. Professora Titular e pesquisadora na Universidade Metodista de So Paulo, Faculdade de Sade. E-mail: [email protected]

    Narbal Silva Doutor em Engenharia de Produo pela Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Administrao pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Psicologia Organizacional e do Trabalho pelo Conselho Federal de Psicologia. Psiclogo pela Universidade de Federal de Santa Catarina. Professor Adjunto na Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenador do Programa de Ps-Graduao em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina. Editor da Revista Psicologia: Organizaes e Trabalho (rPOT). E-mail: [email protected]

    Oswaldo Hajime Yamamoto Doutor em Educao pela Universidade de So Paulo. Mestre em Educao pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Psiclogo pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Professor Titular na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: [email protected]

    Autores vii

  • Roberto Heloani Doutor em Psicologia Social pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Ps-doutorado em Comunicao pela Universidade de So Paulo. Mestre em Administrao pela Fundao Getulio Vargas de So Paulo. Psiclogo pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade de So Paulo. Professor Titular da Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas. Professor no Departamento de Gesto Pblica da Fundao Getulio Vargas de So Paulo. Livre-Docente em Teoria das Organizaes na Universidade de Campinas.E-mail: [email protected]

    Sigmar Malvezzi Doutor em Department Of Behaviour In Organizations ,University of Lancaster. Mestrado em Psicologia Social pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Psiclogo pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Professor do Instituto de Psicologia na Universidade de So Paulo. Professor visitante na Universidade Icesi de Cali, Colmbia. Professor visitante na Universidad de Belgrano, Argentina. Professor visitante na Universidad Tecnologica Nacional, Argentina. E-mail: [email protected]

    Talyson Amorim Tenrio de Carvalho Mestre em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Administrao de Recursos Humanos pelo Centro Universitrio de Volta Redonda. Professor na Universidade Salvador.E-mail: [email protected]

    COLABORADORES

    Andr de Figueiredo Luna Psiclogo pela Universidade Federal da Bahia. Membro do grupo de pesquisa Indivduo e Trabalho: processos micro-organizacionais. E-mail: [email protected]

    Ana Carolina de Aguiar Rodrigues Psicloga pela Universidade Federal da Bahia. Bacharel em Administrao pela Universidade do Estado da Bahia. Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Professora Substituta na Universidade Federal da Bahia.E-mail: [email protected]

    Fabiana Queiroga Psicloga pela Universidade Federal da Paraba. Especialista em Matemtica e Estatstica pela Universidade Federal de Lavras. Doutoranda no programa de Psicologia Social, do Trabalho e das Organizaes pela Universidade de Braslia. E-mail: [email protected]

    Graceane Coelho de Souza Psicloga pela Universidade Federal da Bahia. Aluna de MBA em Gesto de Recursos Humanos pela Universidade Salvador.E-mail: [email protected]

    Liana Santos Alves Peixoto Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da UFBA. Bolsista do grupo de Reestruturao e Expanso das Universidades Federais. E-mail: [email protected]

    viii Autores

  • Louise Cristine Santos Sobral Mestranda do Programa de Ps-Graduao em Psicologia na Universidade Federal da Bahia. Bolsista Institucional da Universidade Federal da Bahia (Fapesb). E-mail: [email protected] e [email protected]

    Marissa Silva Lima Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia.E-mail: [email protected]

    Raphael Andrade Nunes Freire Psiclogo pela Universidade de Braslia. Certificado em Gesto de Projetos pelo Prince 2, Projects in Controlled Environments, EUA. E-mail: [email protected]

    Rosngela Cassiolato Ps-graduanda da Universidade Estadual de Campinas. Psic-loga pela Universidade So Judas Tadeu. Mestrado em Psicologia pela Universidade So Marcos. Aperfeicoamento em Psicologia Clnica pela Universidade So Judas Tadeu. E-mail: [email protected]

    Suzana Tolfo Doutora em Administrao de Recursos Humanos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Administrao pela Universidade Federal de Santa Catarina. Especialista em Dificuldades de Aprendizagem pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Psicloga pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora Adjunta do na Universidade Federal de Santa Catarina.E-mail: [email protected]

    Autores ix

  • Prefcio .................................................................................................................................................... 13

    1 A profissionalizao dos psiclogos: uma histria de promoo humana ............................ 17 Sigmar Malvezzi

    2 Uma categoria profissional em expanso: quantos somos e onde estamos? ........................ 32 Antonio Virglio Bittencourt Bastos, Snia Maria Guedes Gondim e Ana Carolina de Aguiar Rodrigues

    3 A formao bsica, ps-graduada e complementar do psiclogo no Brasil .......................... 45 Oswaldo Hajime Yamamoto, Janice Aparecida Janissek de Souza, Narbal Silva e Jos Carlos Zanelli

    4 Escolha da profisso: as explicaes construdas pelos psiclogos brasileiros ................. 66 Snia Maria Guedes Gondim, Mauro de Oliveira Magalhes e Antonio Virglio Bittencourt Bastos

    5 Insero no mercado de trabalho: os psiclogos recm-formados ........................................ 85 Sigmar Malvezzi, Janice Aparecida Janissek de Souza e Jos Carlos Zanelli

    6 O exerccio da profisso: caractersticas gerais da insero profissional do psiclogo ..... 107 Roberto Heloani, Ktia Barbosa Macdo e Rosngela Cassiolato

    7 O psiclogo como trabalhador assalariado: setores de insero, locais, atividades e condies de trabalho ................................................................................ 131 Ktia Barbosa Macdo, Roberto Heloani e Rosngela Cassiolato

    8 O psiclogo autnomo e voluntrio: contextos, locais e condies de trabalho .................. 151 Luciana Mouro e Maria Jlia Pantoja

    9 reas de atuao, atividades e abordagens tericas do psiclogo brasileiro ............................ 174 Snia Maria Guedes Gondim, Antonio Virglio Bittencourt Bastos e Liana Santos Alves Peixoto

    10 O psiclogo e sua insero em equipes de trabalho ..................................................................... 200 Maria do Carmo Fernandes Martins e Katia Puente-Palacios

    Sumrio

  • 11 A identidade do psiclogo brasileiro .......................................................................................... 223 Snia Maria Guedes Gondim, Andr de Figueiredo Luna, Graceane Coelho de Souza, Louise Cristine Santos Sobral e Marissa Silva Lima

    12 O significado do trabalho para psiclogos brasileiros ................................................................... 248 Livia de Oliveira Borges e Oswaldo Hajime Yamamoto

    13 Dilemas ticos na atuao do psiclogo brasileiro......................................................................... 283 Narbal Silva, Jos Carlos Zanelli e Suzana Tolfo

    14 Os vnculos do psiclogo com o seu trabalho: uma anlise do comprometimento com a profisso e com a rea de atuao ....................................................... 303 Antonio Virglio Bittencourt Bastos, Mauro de Oliveira Magalhes e Talyson Amorim Tenrio de Carvalho

    15 Bem-estar subjetivo do psiclogo ..................................................................................................... 327 Mirlene Maria Matias Siqueira

    16 Sade/doena no trabalho do psiclogo: a sndrome de burnout ................................................ 338 Maria da Graa Corra Jacques, Livia de Oliveira Borges, Roberto Heloani e Rosngela Cassiolato

    17 Aprendizagem no trabalho do psiclogo brasileiro ........................................................................ 359 Jairo Eduardo Borges-Andrade, Maria Jlia Pantoja, Fabiana Queiroga e Raphael Andrade Nunes Freire

    18 Competncias profissionais e estratgias de qualificao e requalificao ............................... 380 Gardnia da Silva Abbad e Luciana Mouro

    19 Imagem da profisso e perspectivas futuras de mudana ............................................................. 402 Katia Puente-Palacios, Gardnia da Silva Abbad e Maria do Carmo Fernandes Martins

    20 As mudanas no exerccio profissional da psicologia no Brasil: o que se alterou nas duas ltimas dcadas e o que vislumbramos a partir de agora? .............................. 419 Antonio Virglio Bittencourt Bastos, Snia Maria Guedes Gondim e Jairo Eduardo Borges-Andrade

    Apndice 1 A pesquisa nacional do psiclogo no Brasil: caracterizao geral e procedimentos metodolgicos ................................................................... 445 Antonio Virglio Bittencourt Bastos e Snia Maria Guedes Gondim

    Apndice 2 Instrumentos da pesquisa nacional do psiclogo brasileiro ........................................... 452

    ndice .............................................................................................................................................................. 499

    xii Sumrio

  • Uma profisso se constitui e se institu-cionaliza em funo das demandas sociais que se responsabiliza por atender e que re-que rem saber especializado, domnio de tec -nologias apropriadas e forte adeso a um conjunto de padres ticos fundamentais pa-ra garantir a qualidade dos servios que co-loca disposio da populao. O fato de ar ticular campo de conhecimento e demanda de servios oriunda da sociedade faz com que as profisses, e a Psicologia em parti-cular, necessitem lidar com dois mundos em contnua transformao e com ritmos de mudana diferenciados, o que impe enor-me exigncia, tanto para o sistema de for ma-o quanto para o sistema de acompa nha-mento das aes profissionais.

    Os campos profissionais e a Psicologia, em especial, configuram-se como espaos ml tiplos, diversificados, muitas vezes mar-cados por conflitos de diversas ordens te-ricos, tcnicos, polticos, ideolgicos e pela tenso de construir uma identidade prpria a partir da diversidade que a distingue. Re-lacionar diversidade, processo de formao, atualizao permanente e necessidades que nem sempre se traduzem em demandas so-ciais o maior desafio para as entidades que se responsabilizam por zelar pela profisso.

    Essas caractersticas, que singularizam e definem um campo profissional, ressaltam, por outro lado, a importncia das profisses

    se tornarem objeto constante de estudo e de pesquisa cientfica que ofeream dados e promovam reflexes no s para avaliar o quanto seus compromissos sociais esto sen-do cumpridos, mas, sobretudo, para apontar problemas, desafios e limites que possam im-pulsionar os seus processos de mudana. Sem investigao sistemtica faltaro insu-mos para se avaliar e rever a formao que est sendo oferecida aos profissionais exi-gn cia fundamental de toda atuao respon-svel. Faltaro, tambm, elementos para a definio, por parte das entidades cientficas e profissionais, de polticas, de programas e de aes que possam dirigir a profisso para os seus objetivos maiores e que, enfim, justi-ficam a sua existncia.

    As razes para o desenvolvimento do es-tudo cujos resultados se concretizam neste livro residem exatamente a: na conscincia da importncia de a Psicologia se conhecer, se analisar, dimensionar seu crescimento e defrontar-se com seus problemas. S assim, dispondo de informaes sobre o que fazem os seus profissionais, em que condies atuam, que dificuldades enfrentam e que relao es-ta belecem com os diversos segmentos so ciais, que a Psicologia poder construir e recons-truir seu projeto futuro.

    Assim, com enor me prazer que apresen-tamos este livro a pes quisadores, docentes, profissionais, estu dan tes de psicologia e de-

    Prefcio

  • 14 Bastos, Guedes e colaboradores

    mais interessados em conhecer e discutir o cenrio atual e o futuro da profisso de psi-clogo no Brasil.

    O livro fruto de uma ampla investigao proposta por um Grupo de Trabalho (GT) de Psicologia Organizacional e do Trabalho (POT) (GT1) pertencente Associao Na-cional de Pesquisa e Ps-Graduao em Psi-cologia (ANPEPP), cuja histria data de 1990, por ocasio do III Simpsio de Pesquisa e Intercmbio Cientifico da ANPEPP. De l para c, muitos projetos foram realizados, sem pre com a preocupao de consolidar redes de pesquisa que pudessem produzir conhecimento relevante para o campo da Psi cologia Organizacional e do Trabalho e tornar tal conhecimento acessvel ao sistema de formao de psicologia. Desse ncleo nas-ceram, tambm, iniciativas importantes para institucionalizar a rea de PO&T* no Brasil, criando espaos institucionais como a SBPOT que passou a dar voz a um importante con-tingente de psiclogos no conjunto das en-tidades da categoria.

    O desenvolvimento de uma pesquisa nacional sobre a profisso de psiclogo no Brasil sustentou-se na argumentao de que a rea de PO&T acumulara um amplo vo-lume de conhecimentos sobre distintas ocupa es, profisses e contextos organiza-cionais. Seria oportuno, pois, tomar como objeto de estudo a nossa prpria categoria profissional. Ademais, a ltima pesquisa de abrangncia nacional sobre a profisso do psiclogo no Brasil havia sido feita no final da dcada de 1980 pelo Conselho Federal de Psicologia, e duas dcadas depois o quadro brasileiro poderia ter se alterado signifi ca-tivamente, como por exemplo, com a expan-so dos cursos de psicologia e a emergncia de novos subcampos de conhecimento e reas de atuao. Tornava-se urgente realizar um estudo nacional que permitisse avaliar as mudanas ocorridas ao longo das ltimas dcadas para subsidiar melhor a elaborao

    de polticas no mbito da formao e da atuao profissional.

    A proposta do referido GT, apresentada sob o ttulo A Ocupao do Psiclogo: um exame luz das categorias da psicologia or-ganizacional e do trabalho, favoreceu a am-pliao de uma rede de pesquisadores de diversos pontos do pas e que estudavam diversos temas tendo como foco o trabalho e as organizaes para, em conjunto, inves-tigarem a ocupao do psiclogo brasileiro no cenrio atual e caracterizar as trans for-maes de nossa profisso. A pesquisa contou com o apoio do CNPq no financiamento de trs subprojetos de pesquisadores integrantes do GT. O leitor pode encontrar informaes mais detalhadas sobre a equipe do projeto, o desenvolvimento da pesquisa e os instru-mentos usados nos Apndices 1 e 2.

    Nossa expectativa, ao redigir este livro, foi a de que ele tivesse uma ampla utilizao por todos os interessados na profisso, espe-cial mente pelo sistema de formao. Certa-mente, ele dever ser usado nas disciplinas introdu trias dos cursos de psicologia, permi-tindo ao aluno calouro conhecer aspectos im-portantes da realidade da profisso que esco-lheu, sob superviso de um docente que o ajude a refletir criticamente sobre o cenrio atual da psicologia no Brasil. H captulos especficos que seriam bastante contributivos sobre os motivos de escolha da psicologia, a histria da profisso no Brasil, o significado do tra balho, as perspectivas de insero profis-sional nos dois primeiros anos de formados, as capacita es e as competncias do psiclogo e as es tratgias de qualificao, aprendizagem no trabalho e os dilemas ticos no exerccio da profisso. Mais do que um simples pa nora- ma descritivo da situao do profissional, o aluno encontrar, nestes captulos, refle xes tericas que, apoiadas nos dados gera dos pela pesquisa, apontam os grandes pro ble mas e desafios que enfrentamos como profissionais em nossa insero no mundo do trabalho.

    * N. de R. Psicologia Organizacional e doTrabalho.

  • O trabalho do psiclogo no Brasil 15

    O livro poder ser usado tambm para aju dar em disciplinas de formao em pes-quisa. Para tanto, disponibiliza, em dois ane-xos, uma descrio do desenho da pes quisa e apresenta todos os instrumentos uti li zados com informaes psicomtricas adi cionais no caso de uso de escalas. A deciso de deixar como apndice foi justamente para facultar ao leitor, docente, pesquisador, profis sional ou aluno a deciso de conhecer o contedo do estudo ou aprofundar-se na compreenso do processo de construo da pesquisa. Outra razo para incluir as informaes detalhadas sobre pesquisa, originou-se a partir dos resul-tados do Exame Nacional de Desempenho Acadmico de 2006, que revelou que os es-tudantes de psicologia apresentam lacunas relativas a com petncias fundamentais para investigao cien tfica. Um campo cientfico s pode avan ar se houver pesquisa, e incluir os apn dices seria uma oportunidade de con-tribuir para despertar o interesse em pesquisa e na reali zao de futuras rplicas para testar os resul tados obtidos. Na realidade, o exerccio profis sional do psiclogo j objeto de pes-quisa por parte da nossa comunidade cientfi-ca. Disser taes, teses e projetos de pesquisa estudam aspectos especficos importantes. Es-pera-se que este livro possa contribuir para este esforo coletivo de autoconhecimento da profisso, favorecendo a consolidao de li-nhas de pes quisa que tomem as prticas pro fis-sionais co mo objeto legtimo de investigao.

    Finalmente, o livro poder ser largamente utilizado por alunos, docentes e profissionais da rea da Psicologia Organizacional e do Trabalho. Aqui eles podero encontrar temas que so centrais no seu domnio aplicados realidade do exerccio profissional da Psico-logia. Escolha profissional, comprometimen-to com a profisso, identidade, sade e bem--estar, burnout, qualificao e aprendizagem so importantes temas de pesquisa na rea que aqui foram estudados em amostras de psiclogos brasileiros. Nesse sentido, o livro vai alm de uma simples descrio de um campo profissional, o que, por si s, j seria

    temtica de interesse para a rea de PO&T. Ele oferece uma oportunidade rara de termos vrios fenmenos que estudamos em outros trabalhadores sendo discutidos a partir da realidade do profissional de Psicologia.

    Alm do suporte formao, o livro tambm rene informaes relevantes sobre a profisso que permitem ao Conselho Fe-deral de Psicologia, aos Conselhos Regionais e s diversas associaes cientficas extrarem insumos para a elaborao de polticas para a categoria profissional e suas subreas. In-formaes sobre o psiclogo assalariado e o autnomo encontram-se apresentadas em de talhes em captulos especficos. Indicado-res de sade do psic logo brasileiro, como bur nout e bem-estar sub jetivo, constam neste li vro. A forma de realizao do trabalho tam-bm contemplada no captulo que discute se o trabalho do psi clogo est sendo feito mais individualmente ou em equipes e, neste ltimo caso, com que profissionais est tra-balhando e que ativi dades realizam. Quais as orientaes tericas predominantes entre psi-clogos e se h dife renas entre reas de atuao permitem vi sualizar de modo claro a diversidade terico-metodolgica que a mar ca da psicologia brasileira. Enfim, inme-ras outras discusses sobre identidade profis-sional, comprometi mento com a profisso e rea de atuao, imagem social do psiclogo e intenes de mudana de profisso, rea de atuao e em prego integram este amplo panorama da pro fisso na atualidade, ofere-cendo insumos significativos para fundamen-tar programas e aes das nossas entidades representativas.

    O livro estrutura-se em cinco segmentos. O primeiro inclui uma breve apresentao do grupo de pesquisa e dos motivos que nos levaram a realizar o estudo cujo produto foi este livro e tambm um captulo inicial sobre a histria da psicologia como profisso. O segundo segmento tem como foco a forma-o e a atuao do psiclogo. Nove ca ptulos compem esse segmento e discor rem sobre a caracterizao geral e de dis tribuio de psi-

  • 16 Bastos, Guedes e colaboradores

    clogos no Brasil, a formao bsica, ps- -gra duao e complementar, a es colha da pro fisso, a insero de recm-for ma dos no mercado de trabalho, caracterizao geral da insero de psiclogos, o psi c logo assala-riado, o psiclogo autnomo e o volun trio, reas de atuao, atividades e orien taes te ricas do psiclogo brasileiro e fi naliza com a insero do psiclogo em equi pes uni ou multidisciplinares de trabalho. O prxi-mo segmento enfoca o psiclogo como tra-ba lha dor. Os captulos so reu nidos versam sobre a iden tidade pro fis sional do psiclo-go, o sig ni ficado do trabalho, dilemas ticos na atua o pro fissional, com prometimento com a pro fisso e rea de atuao, bem- -estar subje tivo, sade e doena no trabalho do psiclogo, apren dizagem no trabalho e competncias profis sionais e estratgias de qualificao e requa lificao. Os dois lti-mos captulos ana lisam a imagem so cial da profisso e as mudanas no exerccio pro-fissional na psicolo gia brasileira que ocor-reram nas duas ltimas dcadas, compa-

    rando a pesquisa nacio-nal rea lizada pelo Conselho Federal de Psico logia no final da dcada de 1980 e a pesquisa atual realizada em 2006. O quinto e ltimo segmento composto de dois apndices cuja funo oferecer aos docentes, pesquisadores e de-mais interes sa dos a oportu nidade de acesso a informaes mais detalha das sobre a pes-quisa que pode ro subsidiar desdobra men-tos futuros, po ten cializando a pro duo do conhecimento em psicologia.

    Em nome de toda a equipe do Grupo de Pesquisa que representamos, agradece- mos o apoio do CNPq, do Sistema Conselhos de Psicologia, e dos estudantes de primeiro semestre da UFBA (2009-1) que contribu-ram de modo signifi cativo na avaliao dos captulos des te livro aos objetivos da dis ci-plina Psicologia, Cincia e Profisso, e a to-dos os demais co la boradores que ajudaram a tornar realizvel este ousado projeto de grande mobiliza o nacional.

    Antonio Virglio Bittencourt BastosSnia Maria Guedes Gondim

  • A Psicologia criou um campo frtil de conhecimento sobre a pessoa, largamente evi denciado em seu visvel e contnuo de-sen volvimento ao longo dos ltimos 150 anos, amplamente reconhecido por ineg-veis con tri buies para o progresso da cin-cia (Ma chado et al., 2000; Bastos e Rocha, 2007) e para a construo de uma sociedade mais justa e humanizada (Bar, 1998; Ze-melman, 2002). A conscientizao das pes-soas sobre a vida pessoal e comu nitria, sobre a sade, sobre o bem-estar e sobre a prpria parti cipao na construo do fu-turo pessoal e da sociedade como um todo, obser vada nos l timos 100 anos, fruto das teorias e dos conceitos sobre os processos psquicos, e do trabalho dos psi clogos que, oferecendo ex plicaes sobre o funcio na-men to psquico do ser humano, inspirou e fundamentou proje tos e atividades que con- tri buram para o de sen volvi mento da qua li-dade de vida. Domi nando o campo dos pro-cessos psquicos, os psiclogos mergu lharam em aes afirma tivas que cons tru ram estru-turas e mode la ram processos di versos de interveno, ela bo raram e publi ca ram cr-ticas e denncias s injustias e s desi -

    gual dades, criaram ins trumentos estrat - gi cos para o funcionamento das comunida-des e apoiaram o trabalho de outros pro-fissio nais. Investindo na com preenso da pessoa, no desenvolvimento das poten cia-lidades da vida, no ajustamento in divduo-ambiente e na superao do sofri mento, a Psicologia in tegra os instrumentos reque ri-dos pela cons truo consciente e res pon-svel da so cie dade. A criao da pro fis- so do psic logo um dos resultados mais posi tivos e promis sores do desenvol vimento da Psicolo gia no Brasil.

    A profisso de psiclogo , hoje, um pa-trimnio onipresente em toda a sociedade, largamente reconhecida em sua potencia-lidade de servios, como revelado empiri-camente nos diversos captulos deste livro. A origem dessa profisso como espao tc-nico e especializado de conhecimentos e de servi os est evidenciada em incontveis ativi dades nos campos acadmico, jurdico, so cial, da sade, do trabalho e da educao, desde a segunda metade do sculo XIX. Sua aceitao e sua consolidao ocorre- ram mui to rapidamente pela atratividade das ques tes implicadas na pesquisa do psi-

    A profissionalizao dos psiclogos uma histria de promoo humana

    1

    Sigmar Malvezzi

  • 18 Bastos, Guedes e colaboradores

    quis mo humano, pela importncia dos pro-ble mas que dependiam da compreenso do comportamento do sujeito, pela funciona-lidade e pela eficcia de tcnicas oriundas do conhecimento dos processos psquicos e pela confiana que mereceu das pessoas e das instituies. Em espao inferior a 50 anos, a identidade do psiclogo tornou-se presena marcante em diversos pases, lar-ga mente integrada ao repertrio profissio-nal dos ser vios tcnicos requeridos por quase todos os setores da sociedade. Hoje, incio do s culo XXI, a profisso do psiclogo um ter ritrio ocupacional regulamentado, institu cio nali zado e integrado dinmica da so ciedade por significativa e crescente demanda comer cial em quase todos os cam-pos de ati vi dades em que as pessoas atuam, como sujeito e como objeto de ateno e de estudo. O nas cimento, o crescimento e a consolidao da Psicologia e da profisso do psiclogo no Bra sil ocorreram em con-comi tncia com os mesmos fenmenos nos pases mais desen volvidos do planeta.

    A pesquisa sobre a profisso do psic-logo no Brasil, publicada neste livro, oferece uma cartografia da realidade brasileira so-bre a profissionalizao do conhecimento cientfico focado no comportamento huma-no e, como tal, propicia subsdios para o enriquecimento da reflexo crtica sobre a prpria sociedade brasileira. O dinamismo, as peculiaridades e os contrastes presentes na sociedade brasi lei ra seriam dificilmente compreendidos sem a contribuio dos co-nhecimentos pro duzidos pela pesquisa no campo do compor tamento e pelos servios prestados pelos psi clogos. Os dados aqui revelados evidenciam a participao dos psi clogos nos mais di versos setores da so-ciedade brasileira e, ex plicitando como essa participao ocorre, re velam a conver gn-cia das atividades para a definio da mis-so dos psiclogos no Bra sil. Esses pro-fissionais contribuem para a rea lizao e para o bem-estar de todo o povo por meio do fortalecimento do indivduo co mo su-

    jeito e da comunidade como espao de vida. O leitor deste livro, ao enxergar me lhor a in sero do psiclogo na sociedade bra si lei-ra, alm de enriquecer sua capacidade pa ra co laborar com o desenvolvimento e a con-vivncia entre as profisses, estar mais apto a identificar e a criar solues maduras para os problemas que circundam todos os brasileiros. Agregando valor a essa tarefa, este captulo oferece algumas reflexes so-bre o contedo e a construo dessa pro-fisso. Essa reflexo poder estimular a sen-sibilidade do leitor para os desafios en fren-tados na ma nuteno e no desenvolvimento de uma profis so no con texto que se glo-baliza, se volatiliza e, por isso, reabastece o combustvel dos co nheci mentos e servios sobre os processos psquicos. A profisso do psiclogo um espelho desse mundo, por-que com ele inte ra ge o profissional, acei-tando estudar seus problemas e se com- pro metendo com a trans formao reque rida para a construo da jus tia e do bem-estar, bem como com o re co nhecimento da dig ni-dade das pessoas. Pa ra realizar essa ta re- fa, este captulo tentar res ponder a qua- tro questes: como a Psico logia foi institu-cionalizada na profisso de psic logo? Co- mo o conhecimento sobre o com por tamen- to evo luiu em nossa profisso? Quais os pro -blemas que desafiam o desenvol vimento des -sa pro fisso no sculo XXI? Por que a Psi co-logia e os psiclogos merecem confiana?

    A PrOfISSIOnAlIzAO DO PSIClOgO

    A produo e a aplicao de conheci-mentos sobre os processos psicolgicos exis-tem desde os primrdios da histria huma-na, mas somente em meados do sculo XVI apa re ce pela primeira vez o vocbulo Psy-cho logia, na lngua latina, para designar o estudo ou a cincia da alma, que era um campo do saber integrado Teologia e Anatomia. A palavra Psychologia aparece

  • O trabalho do psiclogo no Brasil 19

    em textos escri tos por pensadores como Filip Melanchton, Johann-Thomas Fregius e Rodolphe Gocl nius, docentes nas uni-versidades protestantes de Marburg, na Ale-manha, e de Leyde, na Holanda (Carroy, Ohayon e Plas, 2006). Bem diferentemente daquilo que ocorre hoje, os fenmenos e os eventos compreendidos nesse neologismo do sculo XVI incluam questes como os fantasmas, a transmisso do pecado original, a ao da alma sobre o corpo e a possesso demona-ca. A alma era assumida como um ele men-to essencial da vida e inspirava as ex pli caes sobre o funcionamento psquico. A atribuio de um vocbulo especfico para o conjunto de conhecimentos sobre a pessoa foi apenas uma das etapas importantes na construo que revelou a necessidade de um campo autnomo do saber dedicado aos processos psicolgicos. As questes sobre a natureza da realidade psquica e sobre a arquitetura de seus processos, ainda so motivos de importantes debates que man-tm a Psicologia na fronteira com outras cincias, como a Fisiologia (Poldrack e Wag-ner, 2008) e a Filosofia (McMahon, 2006). Naquele momento, a delimitao de um cam- po do conhecimento no foi de imediato cor-respondida ao desenvolvimento de um con-ceito. O vocbulo Psicologia representa-va um conjunto de eventos a serem estu dados mais do que um sistema conceitual sobre a alma humana. Como conceito, a Psicologia foi surgindo, pouco a pouco, a partir das contribuies dos filsofos como Descartes, Malbranche, Leibnitz e Locke, en tre tantos outros pensadores, que investi gavam os pro cessos psquicos, por meio da busca de critrios do conhecimento, das con dies produtoras das certezas, da expli cao da conscincia e da avaliao das trans gresses. A evoluo dessas ideias ali cer ou a cons-tituio de um campo do co nhecimento que somente foi reconhecido co mo autnomo na segunda metade do s culo XIX. Tal re-conhecimento foi uma etapa importante porque abriu o espao necessrio para a

    criao da profisso do psiclogo. No Brasil, a Psicologia foi construda a partir do ter-ritrio da Medicina. Ainda no sculo XIX, nas Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, j eram discutidas questes comportamentais como parte da ampliao do conceito de sude para os problemas de higiene, preveno e bem-estar individual e social (Massini, 1990), como evidenciado na tese de doutorado do mdico baiano Eduardo E. F. Frana, na Faculdade de Me-dicina de Paris, 1834.

    Os primeiros sinais de uma profisso emergente, alicerada no conhecimento so-bre o comportamento humano, apare ce ram ainda no final do sculo XIX, em con co mi-tncia com a reorganizao de outras ocupa-es j tradicionais, como aquelas dos m-dicos, engenheiros, administradores e advo-gados. Todas essas profisses foram insti-tucionalizadas nesse mesmo momento his-trico, como parte do movimento inercial de formao do Estado moderno e da adap-tao da sociedade como um todo ao mo- do de produo industrial. Espaos, papis e fronteiras profissionais foram redefini- das para se ajustarem s novas demandas de recursos institucionais, ao imperativo de pro blemas inditos vida quotidiana e disponibilidade de tecnologias que ofere-ciam esperana de controle de muitas ad-versidades. Ainda no final do sculo XIX, j eram encontrados, em diversos pases, la-bo ratrios, revistas, disciplinas acadmicas, congressos, associaes e servios profis-sionais que levavam o nome de Psicologia (Hearshaw, 1964; Koppes, 2007; Carroy, Ohaton e Plas, 2006). Esse conjunto de ins-trumentos oriundos da Psicologia foram ex-pandidos e constituram o repertrio de ati-vidades que veiculava a divulgao, o ensino e a apli cao de conhecimentos no campo da Psi cologia. Tais atividades fomentaram a repre sentao de um novo profissional de-dicado aplicao dos conhecimentos sobre os processos psquicos aos problemas exis-tentes na sociedade.

  • 20 Bastos, Guedes e colaboradores

    Essa reorganizao das profisses foi balizada por dois fatores principais. O pri-mei ro foi a guarida e o controle advindos da fora do paradigma burocrtico que nes-se momento se impunha ao Estado e aos ne-gcios como instrumento de eficcia ad-ministrativa. Por fora da racionalidade bu-rocrtica, as atividades eram reagrupadas para corresponder lgica do conhecimento cientfico produzido nas distintas cincias. Esse reagrupamento promoveu significativa diferenciao ocupacional que foi dando corpo territorializao das atividades em profisses. O segundo fator foi a reorga-nizao das profisses que, embora produtos da burocracia, estimulavam a inovao por fora de novas descobertas nas diversas reas do conhecimento cientfico e das tec-nologias que, por sua vez, enriqueciam o repertrio de recursos tcnicos em todas as esferas da sociedade. O aparecimento dos testes psicolgicos nesse momento uma das evidncias mais explcitas dessa inova-o. Toda a sociedade se mobilizava para se ajustar s condies criadas pelo proces- so de industrializao, redesenhando ou adap tando estruturas e servios. As profis-ses foram um objeto peculiar dessa reor-ganizao porque ocupavam a funo de ponte entre os problemas da sociedade e o avano cientfico e tecnolgico. O conhe ci-mento cientfico recebeu significativos in-ves timentos, foi desenvolvido rapidamente e aplicado, com certa eficcia, aos incon-tveis e crescentes problemas da sociedade. As tarefas se tornaram mais complexas e fo-ram pouco a pouco migrando para as mos de pessoas que tinham alguma for mao cien tfica. Essa reorganizao dos ser vios profissionais foi a alvorada da ins tituio e do conceito de carreira que apa receu na so-ciedade por fora de trajetrias e regula men-taes criadas pela organizao do tra balho no contexto burocrtico e tc nico.

    At meados do sculo XIX, a mobilidade entre atividades profissionais era reconhe-cida e restrita s instituies militares e reli-

    giosas. At ento, a vida profissional no pres supunha trajetrias e nem a movi men-tao entre cargos e tarefas era um fator impor tante, porque a vida e suas atividades eram reguladas pelas tradies e pelos sis-temas sociais sem ser alvo de inovaes ou pres sionadas por mudanas. A partir da di-fe renciao ocupacional produzida nos dis-tin tos campos de trabalho, como fruto da ar quitetura burocrtica para o aprovei ta-men to do avano tecnolgico, o exerccio de muitas atividades ocupacionais foi paula-tinamente submetido a controles advindos da lgica emergente do prprio conhecimento cient fico, reificada no conceito de competn-cia tcnica. Essa condio incitou a criao e a visibilidade de trajetrias profissionais que se impunham sobre os indivduos e sobre os servios. Assim, a formao profissional for-mal, adquirida em alguma instituio aca-dmica apropriada, tornou-se etapa obriga-tria para o desempenho da grande maioria das atividades tcnicas, j caracterizando a existncia de alguma trajetria. No caso dos psiclogos, muitos foram buscar essa for mao nos laboratrios da Alemanha, que nesse momento era reconhecida como um centro de referncia sobre os estudos em Psicologia. W. Rivers e H. Watt, embora es-tivessem alocados no contexto ingls da Psi-cologia, foram estudar na Alemanha, que nessa poca atraa profissionais do mundo todo por seu avano na Psicologia Expe ri-mental (Hearshaw, 1964). Essas trajetrias foram legitimadas pelo engajamento profis-sional dos psiclogos em instituies como hos pitais, fbricas e escolas, e da, rapi da-men te acopladas s estruturas hierr qui cas, ou aos sistemas de status.

    Pouco a pouco, a mobilidade profissional deixou de ser um fato insignificante, ga-nhando o status de etapas do aprofunda-men to ou do avano no domnio do co nhe-cimento e da instrumentalidade, ou do po-der gestionrio, fato que reforou a re pre-sentao da carreira como mobilidade entre atividades profissionais e a territorializao

  • O trabalho do psiclogo no Brasil 21

    das profisses. Dentro dessa lgica, o traba-lho sob o vnculo do emprego e o trabalho autnomo foram moldados como espaos substantivos, constitudos por tarefas e ins-trumentos especficos e, como tal, torna-ram-se fortes referncias para a avaliao das competncias, da remunerao e dos vn-culos dos profissionais com as instituies e com os clientes. As profisses, tal como hoje so co nhecidas, nasceram dessa raciona lidade que foi ganhando fora e se tornando a base para a organizao ocupacional (McKinlay, 2002). Os dados da pesquisa publicada neste livro oferecem pistas sobre como, desse pon-to, a pro fisso de psiclogo evoluiu para a con dio atual. Esse conjunto de informaes so bre a profisso do psic logo esclarece aspec-tos como a diversidade que caracteriza a in-sero desse profissional, a etapa da formao, o incio da profisso, a identidade profissional e a abertura para o psiclogo evoluir em dis-tintas direes den tro dessa carreira.

    O investimento nessa racionalidade foi generalizado e crescente, impactando sobre o sentido das estruturas e dos espaos de ao, remodelando-os dentro de uma racio-nalidade que funcionava como cartilha para a busca de estabilidade e eficcia. Essa re mo-delagem foi legitimada e fortemente apoiada pelas comunidades intelectuais emer gentes nos diversos campos do saber, tornando-se um paradigma no apenas para as organi-zaes industriais, mas tambm para outras instituies. Fortalecidos pela confiana nes-sa racionalidade, os diversos espaos profis-sionais, pouco a pouco assu midos como ati-vidades tcnicas, foram re configurados co-mo veculos apropriados pa ra a aplicao dos conhecimentos cientficos tanto aos pro-blemas mais gerais quanto rotina da vi- da cotidiana. No Brasil, devido ao baixo n-mero de escolas de formao profissio-nal, e ao ainda incipiente inves ti mento em pes qui-sas, os jovens interessados no campo da Psi-cologia eram enviados Europa, onde pode-riam cumprir a primeira etapa de suas car-reiras.

    Em resumo, a profissionalizao da apli-cao do conhecimento produzido pela Psi-cologia ocorreu na virada do sculo XIX para o sculo XX, em um perodo aproximado de 50 anos, no qual essas atividades profis-sionais foram sujeitadas a trajetrias e con-troles crescentemente rgidos e visveis den-tro das organizaes, sob a gide da lgica administrativa, como tambm fora destas, na oferta de servios profissionais aut no-mos, sob a gide da lgica dos mercados. A profissionalizao das chamadas ocupa es tradicionais expressava a aplicao do rigor exigido da pesquisa cientfica, no de sempe-nho dos profissionais. Esse perodo entre a modelagem da sociedade pela buro cracia e a fora de produo criada pela tecnologia eletromecnica (1880) e o tr mino da pri-meira grande guerra (1918) foi o palco pa ra a formatao e para a viabilizao dessas profisses que assumiam o conhe cimento tcnico como instrumento de inter veno nos problemas da sociedade. A pro fisso de psiclogo integrou e foi produto dessa ra-cionalidade dentro desse palco. Os psiclogos foram chamados para contribuir com avalia-es diversas sobre a pessoa e com inter-venes para o ajustamento e o desenvolvi-mento dos indivduos frente aos mais di ver-sos grupos sociais.

    A ElABOrAO DO SABEr OCUPACIOnAl DO PSIClOgO

    Embora haja sinais esparsos, porm vis-veis, de servios profissionais focados no comportamento humano, ainda no final do s culo XIX, somente nos anos que se segui-ram Primeira Guerra (1919), a Psicologia aparece claramente configurada no reper-trio de atividades ocupacionais j sob o formato de profisso institucionalizada. As inmeras associaes profissionais j conso-lidadas, as demandas regulares por parte do mercado e a oferta de solues propostas para tais problemas (que pouco a pouco se

  • 22 Bastos, Guedes e colaboradores

    tornavam generalizadas e poderiam ser apli-cadas em distintas situaes) indicavam si-nais de um territrio profissional autnomo. Nesse momento, profissionais que portavam o nome de psiclogos estavam presentes e visveis nos hospitais, nas universidades, nas fbricas e nas escolas e cuidavam de vasta amplitude de problemas que desafiavam a sociedade, como as questes de sade e bem-estar, de marketing (Munsterberg) e das atividades militares (Yerkes). Alm dis-so, a partir dos conhecimentos que produ-ziam, os psiclogos se faziam visveis nesses diversos campos, ora criticando trincheiras tradicionais de outras cincias, como se cons tata no trabalho pioneiro de Gabriel Tarde (1898) na esfera da Psicologia Social frente s ideias de E. Durkheim, ora contri-buindo com as polticas pblicas, como ocor reu na influncia dos trabalhos de Fer-dinand Buisson sobre o Ministro da Educao Jules Ferry na elaborao das leis escolares que instituram a escola obrigatria e gra-tuita (Carroy, Ohayon e Plas, 2006, p. 99). No Bra sil, as atividades de diversos profissio-nais, no incio do sculo XX, revelam o ali-nha mento com o avano da Psicologia na Eu ropa e nos Estados Unidos.

    Diversas obras evidenciam estudos e ati vidades profissionais, indicando que, no Brasil, da mesma forma que em outros pa-ses, a profisso de psiclogo tambm se for-matava. Na rea da sade mental, a tese de Maurcio Medeiros, intitulada Mtodos em Psicologia, apresentada no Rio de Janeiro em 1907; o laboratrio de Psicologia do Hos pital Eugnio de dentro, fundado em 1923 por Gustavo Riedel, igualmente no Rio de Janeiro; os trabalhos de Psicologia desen-volvidos por Francisco Franco da Rocha, na difuso das teorias psicanalticas, desde 1918, em hospitais e na Faculdade de Me-dicina de So Paulo; as atividades e as pu-blicaes de Ulisses Pernambucano, em Re-cife, mostram a existncia de um grupo ativo de profssionais, j dispersos pelo territrio brasileiro. O projeto de lei, proposto por

    Pau lo Egdio Cmara legislativa da Provn-cia de So Paulo, em 1892, ao reorganizar a formao do magistrio primrio, previa cria o da disciplina de Psicologia para a formao dos futuros professores de Escolas Normais, indicando a diversidade da refle-xo da Psicologia ao atingir tambm a esfera da Educao.

    Essa visibilidade, j inegvel no Brasil e na Europa, se tornou ainda mais clara quan-do o desempenho dos psiclogos passou a criar instrumentos que poderiam ser genera-liza damente aplicados aos problemas da so-cie dade. O artigo de Max Freyd, publicado em 1923, no Journal of Personnel Research e seu impacto sobre as atividades dos psic-logos que atuavam no campo da ento deno-minada Psicologia da Indstria, revelam um caso em blemtico de padronizao de solu-es tcni cas criadas pelos psiclogos para responder a uma demanda regular e espe-cfica da socie dade de seleo tcnica de trabalhadores, pa ra as fbricas de telefonia e de automveis que se expandiam rapida men-te nos dois la dos do Atlntico. Situaes co-mo essa, nos campos da sade e da edu cao, foram os principais elementos que or ganiza-ram o sa ber ocupacional na profisso.

    Nesse texto, Freyd oferece uma anlise cientfica e tcnica da seleo de pessoal e prope uma sequncia de atividades para ser realizada quando da seleo de novos trabalhadores, fundamentada na lgica da mensurao do comportamento disponvel na poca. Essa proposta era um modelo de trabalho tcnico, como outros que foram criados na mesma ocasio nos campos do diagnstico psicolgico, da terapia e da for-mao escolar fundamental. Alm de criar categorias, anlises e o processo ritua lizado de avaliao dos trabalhadores para com-preen so e realizao das atividades de sele-o, Freyd instituiu os testes psicolgicos co mo instrumentos especficos e seguros pa-ra a aferio das habilidades humanas de candidatos. Essa sequncia de atividades pro posta por Freyd foi generalizadamente

  • O trabalho do psiclogo no Brasil 23

    reconhecida como um caminho racional e seguro para ser aplicado como uma espcie de paradigma a todos os processos de sele-o. A inovao contida nesse modelo de resposta a demandas da sociedade, por par-te das cincias aplicadas, fortaleceu o con-ceito de profisso como uma forma de agir fundamentada no conhecimento cientfico que poderia ser regulamentada e controlada pela prpria sociedade. Assim como na rea de seleo e de recrutamento de pessoal era possvel criar solues tcnicas aplicveis aos problemas, nas outras reas, os rituais e os instrumentos eram desenvolvidos com igual empenho e esperana. Essa f na efi-ccia tcnica legitimava a lgica e a ideologia burocrticas e, assim, se transformava em elemento vital na modelagem da Psicologia como profisso. O reconhecimento e a legi-timao dos servios tcnicos oferecidos pe-los psiclogos por parte das organizaes, foram fatores polticos que contribuiram de modo significativo para o desenvolvimento e para a legitimidade dessa profisso. Esse casamento entre demanda de servios e oferta de solues tcnicas padronizadas ga-nhou espao e se consolidou de modo con-tnuo e consistente, modelando o trabalho de profissionais nos campos da sade, da educao, da engenharia e dos negcios. Po-de-se assumir que, nesse momento, no qual muitas solues padronizadas para as ques-tes comportamentais eram visveis e efica-zes, a profisso do psiclogo j era uma ati-vidade com os elementos bsicos previstos pela institucionalizao de uma profisso. No final dos anos de 1920, os psiclogos j ti nham um rosto, uma certido de nasci-men to e um espao para construir suas car-reiras. Es sa etapa no significa que problemas e de safios estavam superados, como ser ana lisado na prxima seo deste captulo.

    Embora seja difcil delimitar uma fron-tei ra para a existncia plena da profisso de psiclogo no Brasil, no h como negar que em meados do sculo XX, essa profisso, mes mo ainda no reconhecida em alguns

    pases, j apresentava regularidades nos pa-pis profissionais, representaes de sua iden tidade na literatura cientfica, diversi-dade de subculturas em campos distintos como sade e indstria, alguns padres de conduta e farta base bibliogrfica decorrente de pesquisas experimentais e de propostas tericas. Essa massa patrimonial tcnica, mer cadolgica e poltica alimentou a deman-da de novos conhecimentos a serem pesqui-sados no campo do comportamento, esti mu-lou a necessidade de novos profissionais para o mercado, fomentou o aprofundamento das solues criadas para os problemas e forta-leceu o capital poltico para o ajusta mento das fronteiras com outras profisses. Dina mi-zada pelos problemas que tornavam a socie-dade mais complexa e pelo desenvol vimento do conhecimento cientfico sobre o comporta-mento humano, a Psicologia am pliou seu es-pao de atuao e sua legitimao como pro-fisso, tornando sua institu ciona lizao, des-se momento em diante, um fato irreversvel em todos os pases do planeta. Ho je, como atestam os dados empricos da pes quisa pu-blicada neste livro, o Brasil conta com 150 mil psiclogos para uma popu la o de quase 200 milhes de habitantes, situao que permite concluir que o psiclogo uma pro-fisso necessria, legiti mada e mo ti vadora, embora ainda em cont nuo processo de re-formatao interna e de de finio de suas fronteiras com outras profisses.

    DIfICUlDADES qUE AInDA rOnDAm A PrOfISSO DO PSIClOgO

    Embora consolidada de forma irrevers-vel, a profisso de psiclogo no esteve livre de obstculos externos e de desafios internos que dificultaram (e ainda dificultam) sua ca minhada, ao mesmo tempo que a ajuda-ram a se enriquecer e se fortalecer. Algumas des sas dificuldades so analisadas a seguir.

    Por fora da diversificao das deman-das, desde seus primrdios, a profisso de

  • 24 Bastos, Guedes e colaboradores

    psiclogo foi institucionalizada na forma de identidade polivalente. O psiclogo um pro fissional da pessoa humana, onde quer que esta esteja e a qual atividade se dedique. Seu objetivo de trabalho promover e res-gatar o indivduo como sujeito. Essa identi-dade em parte explicada pela origem igual mente mltipla da Psicologia, como produto da juno dos campos da Filosofia e da Medicina (Plas, 2000). Interessados em explicar o comportamento humano, os pio-neiros da Psicologia, mesmo imaginando realizar algo diferente daquilo que j faziam, integravam as teorias oferecidas pela Filoso-fia ao avano do conhecimento experimental fomentado pelo estudo das neuroses em hos pitais, pelos experimentos laboratoriais na esfera da biologia, como foi o caso da fa-diga nas fbricas e a pesquisa sobre a eficcia das atividades educacionais. Theo dule Ri-bot, pioneiro da Psicologia na Frana pode ser aqui colocado como um dos casos em que essa polivalncia predicado iden tit-rio do psiclogo. Ainda em pleno sculo XIX, Ribot oferece claras evidncias. Era fil sofo por formao e provavelmente por interesse, em 1876, ele fundou a Revue Phi-losophique de la France et de ltranger; as-sumiu e atuou por muitos anos na primeira ctedra de Psicologia do Collge de France, na disciplina intitulada Psychologie Expri-men tal et Compare. Ao longo de sua car-reira, Ribot publicou diversos artigos sobre enfer midades, como Les maladies de la m-moi re, em 1881, e Les maladies de la per-so nalit, em 1885. A experincia polivante de Ribot no foi a nica e revela o alcance da prpria Psicologia, que diante da dificul-dade de definir e pesquisar seu objeto, no oferece resistncia alguma para examin-lo, ainda hoje, sob diferentes olhares como o caso da Filosofia, da experimentao e da pesqui sa-ao. Dentro da inrcia dessa poli-valncia, a Psicologia abrigou a produo de instru mentos que poderiam ser aplicados em mui tas situaes, como o caso dos tes-tes e do aconselhamento psicolgicos. Os

    testes per mi tiram e fomentaram a genera- li zao do conceito de diagnstico psicol-gico como uma das atividades mais iden-tificadas com a profisso de psiclogo.

    Esse carter polivante alimentou o dina-mis mo advindo de fontes distintas de refle-xo, de grande amplitude de problemas e de distintos critrios de avaliao do desem-penho. Esse alargamento de fronteiras foi sustentado, legitimado e fomentado pela crescente demanda de informaes sobre o comportamento humano, no somente na esfera das patologias, em hospitais, sana-trios e clnicas, mas tambm na estruturao das rotinas de servio, como constatado nos territrios das fbricas e das escolas. Os psiclogos dessa poca foram solcitos, efi-cazes e rpidos na oferta de repostas a todas as demandas. No eram eles que selecio-navam as demandas, mas eles eram selecio-nados dentre outros profissionais e outras instituies disponveis no mercado, como especialistas em comportamento humano, para cuidar de problemas diversos que se espalhavam por todos os rinces da socie-dade. Essa flexibilidade de atuao estava em parte associada s origens do estudo da pessoa humana. No havia consenso entre os intelectuais se a Psicologia seria uma cincia autnoma, um ramo da Fisiologia ou se seria um dos braos da Filosofia. Johann F. Herbart, um dos pioneiros da Psicologia na Alemanha, publica, em 1825, um texto intitulado A Psicologia como cincia nova fundada sobre a experincia, a metafsica e a matemtica, no qual ele situa a Psicologia nesses distintos campos. Um pouco mais tarde, Charcot funda a Societ de Psychologie Physiologique, em 1885, demonstrando a dificuldade de delimitao de fronteira entre distintos fenmenos. Paul Janet publica em 1888 um texto na Revue des Deux Mondes, no qual defende a existncia de uma psico-logia objetiva que complete a psicologia subjetiva, mais uma vez evidenciando a dificuldade de delimitao e de compreenso do objeto da Psicologia. Em todos esses tex-

  • O trabalho do psiclogo no Brasil 25

    tos, e em muitos dos que foram publicados anos depois, sobram evidncias da poliva-lncia e da ambiguidade identitrias da Psi-cologia que se refletia na institu cionalizao da prpria identidade do psiclogo. Ainda dentro dos anos de 1920, os psiclogos le-gitimaram as adjetivaes diversas em suas especialidades, e as associaes comearam a aceitar a departamentalizao interna co-mo forma de acomodar a diferenciao pro-movida pela polivalncia do traba lho dos psiclogos. Esse predicado identitrio est evidenciado em diversos dados da pes quisa publicada neste livro. A Psicologia uma profisso que transcende as fronteiras insti-tucionais porque seus conhecimentos so re queridos sempre que demandada al gu-ma explicao sobre a pessoa e seus com-portamentos.

    Alm da polivalncia e de seu sucesso na sociedade, essa jovem profisso enfrentou dias difceis devido ao dinamismo interno do prprio conhecimento sobre o comporta-mento humano que diferenciava os profis-sionais, alocando-os em caminhos episte mo-lgicos radicalmente distintos, como aque -les trilhados por Freud e por Watson. Essa diferenciao terica e epistemolgica foi, ao mesmo tempo, uma fonte de riqueza e de dificuldades para os psiclogos. Essa diferen-ciao foi exacerbada em alguns mo mentos e angustiou muitos psiclogos, co mo se po-de verificar no livro de Daniel La gache, LUnit de la Psycholgie publicado em 1949, no qual ele intitula o primeiro captulo de A psicologia e as cincias psicolgicas. A ques to que Lagache apresenta como te ma desse livro existiria a possibilidade de uni versalizao dos critrios epistemolgicos para a Psicologia? ainda est em p e sem uma resposta. Hoje, tais diferenas conti-nuam existindo, mas a preocupao com elas menor, no sentido de que todos apren-deram a reconhecer e a conviver com as li-mitaes de sua prpria epistemologia, co-mo evidencia o estudo seminal de Michael Mahoney (1991) sobre a eficcia das psico-

    terapias. Nesse estudo, Mahoney demonstra as distncias que separam os psiclogos dos pontos de vista tcnico e epistemolgico, e como eles se unem pela utilizao comum do bom-senso. Apesar das diferenas abis-mais, o trabalho deles se aproxima no reco-nhecimento das limitaes de suas tcnicas e da incerteza que os move a ser prudentes e respeitosos com outras abordagens. Desse fato, pode-se concluir que a ambiguidade identitria da Psicologia no se mostra como um obstculo, mas, antes, como um teste-munho da complexidade da pessoa huma-na. Seguramente, a Psicologia uma cincia mais rica por causa dessa diversidade, assim como os psiclogos dispem de mais recur-sos tcnicos e so instados a agir com pru-dncia diante da diversidade de opes que a prpria Psicologia lhes oferece.

    Alm da polivalncia e da diversidade criadas pela interface com outros campos do conhecimento, outra dificuldade visvel no exerccio da profisso de psiclogo advm da abertura da Psicologia a muitas atividades para as quais os conhecimentos tericos po-dem ser aplicados. Assim, as dezenas de teo-rias de motivao podem ser aplicadas na compreenso e na soluo de problemas na esfera do trabalho, da educao, das rela-es sociais, do cuidado consigo mesmo, entre muitos outros. Essa abertura decorreu de seu prprio objeto, que era o estudo dos processos psquicos, no importando onde estes ocorriam. Tal amplitude de campo de aplicao criou problemas, como foi o caso da introduo de categorias de anlise da patologia na seleo de pessoal, da qual re-sultaram dificuldades srias, at mesmo de natureza tica. Aos poucos, os psiclogos aprenderam a questionar se o conhecimento sobre o comportamento poderia ser consi-derado fora de qualquer contexto. Como fru to desse aprendizado, os psiclogos ad-qui riram experincia sobre o valor das de-cises tticas e, consequentemente, dife ren-ciaram, em um mesmo objetivo e em um mes mo problema, as nuanas de sincronia

  • 26 Bastos, Guedes e colaboradores

    geradas pela fora do contexto. Uma ilus-trao dessa dificuldade e do aprendizado que se seguiu ao seu enfrentamento foi o afastamento da Psicanlise dos problemas da Psicologia apli cada ao trabalho. A pro-fundidade do diagnstico produzido dentro da abordagem psicanaltica complicava a possibilidade de administrao do desempe-nho e tornava qua se impossvel a participao de outros profissionais das empresas na dis-cusso dos problemas. A gesto do desem-penho carecia de conhecimentos e de ins-trumentos para inserir o inconsciente na ro tina de capaci tao e ajustamento das ta-refas. Essa situa o foi superada recente-mente a partir de inmeros estudos (Men-zies, 1971; Enri quez, 1992; Pags et al., 1979) que eviden ciaram como a reflexo psicanaltica pode tambm ser aplicada s condies estrutu rais, enriquecendo a com-preenso do jogo estratgico e, por conse-guinte, a compreenso do papel do desem-penho in dividual dentro dos processos so-ciais e po lticos. O estudo de Steffy e Grimes (1992), comparando trs diferentes episte-mologias e suas consequn cias prticas, evi-denciou como a polivalncia da Psicologia permite a acomodao da ao dos psic-logos a dife rentes ideologias e co mo estas contribuem para a legitimao das decises profissionais. Essas questes reve lam como o trabalho pro fissional do psic logo com-plexo, exigin do dele no somente conhe ci-mentos de sua cincia, mas tambm do con-texto no qual ele atua. Essa condio alo ca a profisso de psi clogo, em si mesma, como atividade multi disciplinar.

    Ainda outra dificuldade enfrentada pe-los psiclogos para administrar sua profis-sionalizao advm do avano do conhe-cimento e da crescente complexidade da sociedade, contingncias que dificultam a alocao de fronteiras, de critrios e de pa-dres de anlise. Desde o final da segunda guerra, mais particularmente a partir de 1950, a contnua adaptao a cons tantes mudanas que, a cada ano se tornam mais

    rpidas e mais profundas na sociedade, tem sido um crescente desafio para todos, sobre-tudo para os psiclogos. As alteraes que tm ocorrido desde a disseminao da tele-fonia celular e da rede eletrnica de in for-mao sugerem, como assume Guillebaud (1999), um processo de refundao do mun-do e, portanto, de refundao da profis so do psiclogo. A certeza que se tem sobre essa questo a de que tarefas, funes, fronteiras e categorias de anlise esto sob reviso. No contexto atual, quase impos-svel a oferta de solues como aquela ofe-recida por Freyd em 1923 para a seleo de pessoal. Poucos procedimentos podem ser generalizados, como Freyd props, para a se leo de pessoal. Essa volatilidade da so-cie dade e da profissionalizao dos conhe ci-mentos tem sido crescentemente inten si-ficada pela diferenciao de tecnologias e estimulada por ideologias emergentes como o caso da absolutizao dos resultados e da busca por inovao que caracterizam a cultura do presente momento histrico.

    Nessas condies criadas na sociedade atual, administrar e regulamentar uma pro-fisso mostram-se tarefas necessrias, porm quase impossveis diante da volatilidade e da fragmentao que enfraquecem as estru-turas e os vnculos tanto dos indivduos quanto das instituies. Um sintoma desses problemas a crescente demanda de inter-disciplinaridade como paradigma para a atua o profissional. Nos diversos campos nos quais os psiclogos atuam, essa integra-o de especialidades e de desempenhos profissionais tem sido incentivada pelo cres-cimento da oferta dos servios e pela sua diferenciao em atividades subespe cializa-das, duas condies que forjaram as ambi-guidades em todas as fronteiras, seja na di-viso de tarefas, seja na territorializao entre as diversas profisses, isto , nos li-mites entre os campos do conhecimento, como fartamente evidenciados nas atividades profissionais oriundas dos campos da Psico-logia, da Medicina, da Pedagogia, da Admi-

  • O trabalho do psiclogo no Brasil 27

    nistrao e da Sociologia. comum que um profissional de administrao, de sade ou de educao tenha dvidas se as atividades que ele realiza pertencem ao territrio desta ou daquela profisso. A regulamentao de uma profisso que abriga a responsabilidade sobre problemas que varrem todas as reas da vida humana do nascimento ao envelhe-cimento, do lazer ao trabalho, da guerra e da paz, da sade e da educao, das iden-tidades e das instituies uma tarefa para a prpria sociedade como um todo e no para uma profisso em particular. Essas condies tm estimulado e justificado a di-ferenciao de papeis profissionais, hoje di-fceis de serem analisados e categorizados, porque as atividades que constituem seus contedos so complexas e podem ser inter-pretadas partir de diferentes contextos. Na prtica, tais atividades tm sido mais contro-ladas pela expectativa de valor agregado pela ao do profissional do que por uma base terica especfica, ou por uma regula-mentao especfica. Essas condies tm desestimulado os antigos ideais de profis-sionalismo e, assim, sub meti do a ao pro-fis sio nal aos ventos do mercado. A evoluo da psicoterapia um caso em blemtico des-sa dinmica.

    O trabalho psicoteraputico foi inicial-men te uma atividade territorializada na pro fisso mdica, que se estendeu para os psiclogos, j no incio do sculo XX, por fora dos conhecimentos que eles apresen-tavam sobre os processos psquicos. A diver-sidade de problemas de ajustamento social e de integrao psquica cresceu significati-vamente a partir dos anos de 1980, dife-renciando a psicoterapia em atividades dis-tintas como o aconselhamento, o coaching, a Ioga, o acompanhamento teraputico, o mentoring, a psicopedagogia e o tutoramen-to , condio que abriu espao para que essa atividade fosse gradativamente esten-dida a outras profisses. Hoje, no tarefa simples diferenciar a psicoterapia dessas ou-tras atividades. No h consenso sobre as

    diferenas entre esses distintos servios e, consequentemente, sobre os critrios de ter-ritorializao dos mesmos dentro das distin-tas ocupaes que abrigam tais atividades. Situao anloga ronda a territorializao dos testes psicolgicos. Administradores, so-cilogos, pedagogos, engenheiros e psic-logos tm produzido farta diversidade de instrumentos de diagnstico em suas ati vi-dades profissionais, tornando difcil a iden -tificao de critrios para diferenciar quando esses instrumentos focam os proces sos ps-quicos e o territrio ao qual eles po deriam pertencer. A interdisciplinaridade, a inova-o e a ideologia de busca por re sul tados tm dificultado essa tarefa.

    Essas relaes de fronteira, sejam inter-nas na atividade dos psiclogos, sejam na relao com outras ocupaes igualmente ins titucionalizadas, (como a medicina, a edu cao e a administrao que, concomitan-temente Psicologia, construram a profis-sionalizao de suas tarefas e de seus es-paos de trabalho dentro da racionalidade burocrtica ou do mercado), no aparecem na pesquisa relatada neste livro mas no deixam de merecer alguma reflexo. Plas (2000) escreve que as relaes de vizinhana no incio da profissionalizao da Psicologia foram difceis. Segundo seu testemunho, du rante o perodo inicial de desenvolvimento da Psicologia, os filsofos se mantinham in-formados dos progressos da Psicologia cien-tfica, no propriamente para enriquecer suas anlises sobre a pessoa atravs dos no-vos dados produzidos, mas para poder cri-ticar o trabalho experimental dos psic logos. Esse fato mostra as tenses e a no legi ti-mao entre diferentes campos profis sionais, as relaes nem sempre foram ami gveis, tal como ocorre hoje nas fronteiras da pro-fisso do psiclogo com algumas pro fisses. Ao longo de toda a histria da pro fisso de psiclogo, ocorreram disputas com mdicos, administradores, pedagogos e so ci logos. No momento da reorganizao pro fissional, espaos e tarefas especficos, embora dispu-

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    tados por distintas profisses, comearam a ser previstos e realizados co mo forma de viabilizao da aplicao de conhecimentos particulares a problemas pre sentes na vida humana em seus diferentes aspectos. Desse momento em diante, os es paos profissionais emergentes no campo da Psicologia foram fortalecidos por causa do aprofundamento e da expanso do conhe cimento e pela eficcia das solues que eram nele inspiradas e le-gitimadas. A elabo rao de testes psicolgi-cos sustentados por teorias especficas da Psi cologia contribu-ram muito para a iden-tificao do territrio pro fissional dos psic-logos, como especialis tas em diagnsticos e na interveno para tra balhar a adaptao e a integrao ps quicas. O desenvolvimento cientfico e tec nolgico agravou essa situa-o. Hoje, di fcil deli mitar onde termina uma profisso e uma outra comea. Os pro-blemas j no ca bem dentro do territrio de uma cincia, deman dando a contribuio de outras, como essen ciais. Para ilustrao dessa dificuldade, tem-se, nos Estados Unidos, a le-gis lao de trs estados permitindo aos psi-clogos a pres cri o de medicamentos, aber-tura que pe mais combustvel na interface com os mdi cos e os farmacuticos, assim co-mo as ambi gui dades nos limites entre psico-te rapias e diversas for mas de aconselhamen-to borram os limites dos psiclogos com ou-tras profisses.

    Uma soluo emergente para essas ques-tes que tm crescido em alguns pases a criao de comunidades especializadas em de- terminados servios profissionais, ho je abri -gadas sob a alcunha de consultorias, em pre-sas de servio profissional ou, simples mente, de comunidades de ao. Esses gru pos apre-sentam concentrao em uma profisso par-ticular, como psiclogo ou advo gado, mas so enriquecidos por profissionais de diversas reas do saber que trabalham jun tos e se comple-tam nas informaes e nas tarefas requeri- das para o enfrentamento dos proble mas (Faul conbridge e Muzio, 2008). Nesses gru-pos, a fluidez das fronteiras ex ponen cia-

    da, tornando mais dificil a diferen ciao das identidades profissionais e, por con se guinte, a regulamentao e o controle sobre as ati-vidades dos trabalhadores que ofe recem ser-vios profissionais. A regula men tao de al-gumas profisses, como o ca so do jorna lis-mo, tem sido signifi cati va men te dificultada pelo direcionamento da evo luo da sociedade (Aldridge e Evetts, 2003).

    Se a identidade do psiclogo foi cons-truda e consolidada pela clara demanda de conhecimentos especializados sobre a pes-soa e a conduta humanas, aplicados em am-pla diversidade de problemas, fato que esti-mulou a oferta de diversas tarefas a esses profissionais, hoje ocorre um processo inver-so. Dentro dessas empresas de consultoria e comunidades de servios, a identidade do psi clogo diluda pelo baixo reconheci-men to da existncia de fronteiras entre as profisses e pela consequente atribuio de tarefas a diversos profissionais, no impor-tando sua trajetria profissional formal, mas suas com petncias atuais. O critrio para a atribuio de tarefas se resume na compe-tncia que o problema em questo exige. A integrao entre demandas da sociedade que apre sen tam problemas aos profissionais e a cria tividade tcnica por parte destes j no for mata papis e espaos que diferenciam tais profissionais de diversos ramos do saber entre si. No trabalho atravs de projetos que tem sido modelo crescente de atuao pro-fissional, a distribuio de tarefas tem ocor-rido por meio das competncias aferidas na equipe e no em critrios de profissio nali-zao do conhecimento. Por isso, os pro fis-sionais no mais aparecem, a exemplo dos anos de 1920, como mediadores necess rios entre o conhecimento cientfico e as neces-sidades humanas da sociedade. John son (1972) identifica nessa mediao o ger me do controle ocupacional que caracterizou as profisses ao longo do sculo XX e que hoje no est mais rigidamente circunscrita ao indivduo portador do diploma, mas se es-tende quele que revela competncia para a

  • O trabalho do psiclogo no Brasil 29

    tarefa. Dentro dessa dinmica da ao por projetos, a mediao preconizada por Johnson entre o mercado e o conhecimento, os psi- c logos j no controlam com exclusivida - de mtodos, valores, critrios, referenciais, pro cedimentos e condies que constituem os elementos visveis que modelam e institu-cionalizam sua profisso. Como Guillebaud acredita, tal como o mundo e as outras pro-fisses, a profisso de psiclogo sofre algum tipo de refundao. Essa tendncia refor-ada pela diversidade e pela ampliao dos cursos de especializao e ps-graduao. Programas de ps-graduao em Adminis-trao, em Psicologia Social admitem enge-nheiros, historiadores e mdicos, assim co-mo cursos de medicina e engenharia admi-tem outros profissionais. O conceito de fron-teira foi alterado, de um elemento que di-vide e diferencia, para um elemento que integra. A brilhante anlise desenvolvida por Amin Maalouf (1998) sobre as identida-des uma ilustrao contundente sobre o desafio da alocao de fronteiras no mundo atual. Se um indivduo psiclogo, traba-lhador social, educador, ou agente de sade depende da articulao do contexto onde ele est alocado. Igualmente, a anlise de Nicole Aubert (2003) sobre a influncia da valorizao do tempo (rotina, imediato, ur-gncia, prioridade) sobre os limites do poder e da legitimidade da ao profissionais reve-la a relativizao da territorializao ocupa-cio nal diante dos imperativos do contexto oriundos da ideologia dos resultados.

    COnClUSO

    A pesquisa divulgada neste livro oferece uma viso da institucionalizao das ativida-des profissionais dos psiclogos a partir da qual se pode compreender a dinmica que caracteriza as fronteiras interna e externa dessa profisso e do processo de diferenciao de atividades necessrio para a sua carac-terizao como um territrio autnomo na

    so ciedade. As mudanas que surgiram atra-vs do processo de globalizao complicaram os critrios de conceituao da autonomia e, consequentemente, a profissionalizao do psiclogo tornou-se uma questo permanen-temente aberta. A evoluo dos eventos in-dica que o futuro da profisso do psiclogo (como ocorre com outras profisses) depen-der menos da regulamentao existente do que do desempenho dos psiclogos (e de ou tros profissionais) no enfrentamento das dificuldades que a refundao de sua(s) pro fisso(es) exige.

    Desde as reflexes pioneiras de Parsons (1939), as profisses tm sido conceituadas como grupos de pessoas definidos pela fun-damentao de suas atividades em algum conhecimento especfico, cuja forma de atua-o caracterizada por certa autonomia que a coloca margem do controle pura mente burocrtico e significativamente dife renciado do agir com base apenas no conhe cimento intuitivo das pessoas (como ocorria antes da era das profissionalizaes). Bali zados por esses dois fatores, tais grupos so reconhecidos na sociedade pelas tarefas es pe cializadas que desempenham, pela instru mentalidade espe-cfica que utilizam e pela forma colegiada de agir para organizar suas tarefas e controlar a prpria atuao. A pos sibilidade desse con-trole tem origem em al gu mas constantes que, segundo Freidson (2001), criam o tipo ideal de profissional para cada ocupao, facili-tando sua identifi cao. Tais constantes esto materializadas no corpo de conhecimentos oficialmente re conhecidos como a base da legitimidade do desempenho tcnico daquela profisso, na organizao de categorias de prtica da qual resultam a diviso de trabalho e suas fron teiras com outros campos profis-sionais e no conjunto de normas, valores e padres ticos que regem a aplicao do co-nhecimento es pe cfico daquele grupo. Alm disso, o desem penho profissional ocorre atra-vs da aplica o de habilidades complexas que so adqui ridas a partir do aprendizado sistemtico de uma cincia, atravs de longa

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    formao aca d mica. A profissionalizao do psiclogo, como resumidamente analisada neste cap tul o, ocorreu de acordo com essa represen tao.

    O atual estgio de desenvolvimento da sociedade se assemelha a um furaco, ou seja, criou foras poderosas, imprevisveis, impossveis de serem controladas, que obri-gam todos e tudo a adaptaes penosas e cujos efeitos atingem a funo e o sentido de vrias realidades. Diante disso, a questo que se impe : como fica a profisso do psiclogo frente ao crescimento da multidis-ciplinaridade, da inveno de novas formas de trabalho por projetos, da comodificao e do fcil acesso ao conhecimento que fa-cilita o desempenho profissional, mesmo ca-rente de competncia. Sem o devido apro-fundamento do conceito de autonomia quase impossvel responder a essa questo. Talvez a autonomia seja uma condio a ser considerada a partir da intersubjetivi-dade e da dinmica da realidade.

    O desafio que esse furaco props aos psiclogos a defesa e a reconstruo de sua identidade. Tal como ocorre nas car-reiras individuais, os profissionais vivenciam a condio de nmades, no porque eles migram, como o faziam os guaranis e os bedunos, mas porque a sociedade enfrenta mudanas contnuas que alteram os critrios de julgamento e os limites entre as ativi-dades. O nmade um indivduo conti nua-mente desafiado a se readaptar e a se re- va lidar. Como se sabe, a identidade no uma condio permanente nem uma vari-vel dian te da qual as pessoas so passivas e im potentes. A identidade manifestada atra vs de predicados que so produzidos ou repro duzidos atravs das atividades do indivduo e da relao deste com os outros (Ciampa, 1986). Assim, a identidade dos psi- c logos depender de suas atividades e dos eventos presentes no contexto no qual ela se desen volve. Essa tarefa j foi consta tada pe-la Psicologia em outras profisses, como foi o caso do tipgrafo. Um indivduo que ini-

    ciou sua vida profissional nesse ofcio h 40 anos, enfrentou trs metamorfoses, passando de arteso para digitador, e de digitador pa-ra controlador de mquinas. Por trs vezes, ele teve de reaprender suas ta-re fas, radical-mente transformadas pelo de sen volvimento tecno l gico e pela relao com outros pro-fissionais com os quais suas atividades ti-nham fron teiras. O tipgrafo se constituiu como um profissional diferente diante da sociedade.

    A profisso de psiclogo, como sujeito vivo e coletivo, criou e continuar recriando sua identidade porque no lhe faltam ques-tes para estudar; seu objetivo um vir-a- -ser em contnua reconstruo devido di-n mica da sociedade, como outro sujeito vivo e coletivo com o qual ele tem interao n tima. No se pode prever como ser a or-ganizao do trabalho numa sociedade for-temente robotizada e que variveis estaro afetando a subjetividade, mas esta estar sempre presente nela, demandando cui da-dos por parte de quem pesquisa e aplica os co nhecimentos sobre o ser humano como sujeito de sua realizao e de sua histria.

    esse contnuo movimento que faz da Psicologia uma fora autocriadora. Movida por esse constante desequilbrio ela se re-cons tri, porque somente descobre quem ela a partir do conhecimento que produz, sobre seu objeto e sobre si mesma, ou seja, a partir de sua prpria ao.

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  • Desde o seu reconhecimento, em 1962, a profisso do psiclogo vem experimen-tando um contnuo crescimento, quando se consi dera o nmero de profissionais ins-critos ini cialmente no Ministrio de Edu-cao, e nos Conselhos Regionais e no Fe-deral, desde a sua instalao em 1974. Inicial mente de forma lenta, compatvel com o reduzido n mero de cursos de for-ma o existentes e fortemente concentrada na regio sudeste, a categoria dos psi c lo-gos passa a crescer em um ritmo mais acelerado na dcada de 1980, em um pri-mei ro salto numrico de cursos no sis tema privado de ensino, en to no seu primeiro ciclo de ex panso. A partir do final dos anos de 1990, verifica-se o se gundo e mais impor tante impulso de cres cimento, agora forte mente centrado em instituies parti-cula res e, cada vez mais, dirigindo-se para o interior do pas. Esse ciclo de expanso ainda atual, como bem atestam as esta-tsticas de ins cries de no vos psiclogos no sistema de informaes do Conselho.

    Esse crescimento quantitativo pode ser visto, em princpio, como um vetor positivo para a profisso, j que aponta, por um

    lado, maior reconhecimento do papel so-cial de sem penhado pela Psicologia e, por outro, destaca que a imagem social cons-truda ao longo da sua trajetria capaz de mobilizar interesses de um nmero ex-pres sivo de jo vens, adulto-jovens e adul -tos que imaginam encontrar nesse cam- po a opor tunidade de realizao de seus in teresses vocacionais, suas habili dades e seus valores pessoais. As condies de exer ccio da pro fisso, todavia, espe cial-mente aquelas di re tamente ligadas ao mer-cado de tra balho de profissionais de nvel su perior, no si tuam a psicologia entre as profisses mais valorizadas social mente, o que indica o vetor negativo deste cres ci-mento desor denado do sistema de en si no, que mui tas vezes desconsidera as efe ti- vas oportu ni dades de insero no mun do do trabalho.

    A isso, relaciona-se uma imagem social que, ao priorizar um tipo de atuao es - pe cfica e centrada na clnica psicolgica, in duz a busca pelo curso menos por um pro jeto de carreira profissional e mais pa-ra aten der a necessidades de autoconhe - ci men to, o que leva, em muitos casos, ao

    Uma categoria profissional em expanso quantos somos e onde estamos?

    2

    Antonio Virglio Bittencourt Bastos, Snia Maria Guedes Gondim e Ana Carolina de Aguiar Rodrigues

  • O trabalho do psiclogo no Brasil 33

    abandono da pro fisso. Nos anos de 1980, j se cons tatava uma enorme defasagem en tre o n mero de psiclogos graduados pe las Insti tuies de Ensino Superior e os que se ins creviam nos Conselhos Re-gionais, sinal cla ro de que a concluso do curso no garantia a insero no mercado de trabalho.

    Para caracterizar o exerccio da pro- fis so de psiclogo no Brasil, este cap- tulo dedica-se a traar o perfil bsico des te grupo ocupacional. Quantos somos atual mente? Como estamos distribudos no am plo terri trio brasileiro? Quais as nos sas carac te rsticas em termos de g-ne-ro, idade, tempo de formao? Qual a nos-sa origem social, considerando a esco lari-dade de nos sos pais? Tais questes so objeto do pre sente cap tulo. Embora lidan-do com da dos to sim ples, como vere- mos, possvel per ceber im portantes as-pectos da dinmica da nossa profisso em nosso pas.

    OCUPAnDO O ESPAO nACIOnAl

    Atualmente, h 236,100 psiclogos ca-dastrados no Conselho Federal de Psico lo-gia. Na Tabela 2.1, encontram-se o nme ro de inscritos e o percentual de cada Con selho Regional de Psicologia nos anos de 2009 e de 1987. importante destacar que a estru-tura do Conselho modificou-se bas tante nesse perodo, devido criao de vrios conselhos regionais para atender ao cresci-mento do nmero de psiclogos ins critos em cada Es tado. Em 1987, tnhamos oi to conse-lhos re gionais. Os dados de 1987, constantes na Ta bela 2.1, foram extrados a partir do nmero de psiclogos de cada Es tado, consi-derando o territrio abarcado por ele. Vale assinalar ainda que, ao longo do processo de realizao deste estudo na cio nal sobre a pro fisso do p