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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
DANIELE PAMPANINI DIAS
O TRABALHO COM LITERATURA NO
PRIMEIRO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL:
MODOS DE PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NA
ELABORAÇÃO DO SENTIDO ESTÉTICO
CAMPINAS
2017
DANIELE PAMPANINI DIAS
O TRABALHO COM LITERATURA NO
PRIMEIRO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL:
MODOS DE PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NA
ELABORAÇÃO DO SENTIDO ESTÉTICO
Dissertação de Mestrado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Faculdade de Educação
da Universidade Estadual de Campinas
para obtenção do título de Mestra em
Educação, na área de concentração
Educação.
Orientador(a): Profa. Dra. Ana Luiza Bustamante Smolka
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO
FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO(A)
ALUNO(A) DANIELE PAMPANINI DIAS, E
ORIENTADA PELO(A) PROF.(A) DR.(A) ANA
LUIZA BUSTAMANTE SMOLKA
CAMPINAS
2017
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
O TRABALHO COM LITERATURA NO
PRIMEIRO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL:
MODOS DE PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NA
ELABORAÇÃO DO SENTIDO ESTÉTICO
Autor: Daniele Pampanini Dias
COMISSÃO JULGADORA:
Dra. Ana Luiza Bustamante Smolka
Dra. Maria Nazaré da Cruz
Dra. Luciane Maria Schlindwein
A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.
2017
AGRADECIMENTOS
Na conclusão deste intenso percurso de pesquisa, não há como não agradecer
imensamente àqueles que se fizeram presente durante toda a caminhada. Assim, registro
aqui os meus sinceros agradecimentos:
À querida Ana, orientadora e grande parceira deste trabalho. Muito obrigada por,
desde o trabalho de conclusão de curso, fomentar e instigar o olhar sensível e atento às
questões que se colocam à educação; por compartilhar conosco todo o seu saber e
paixão pelas elaborações vigotskianas. As suas provocações teóricas e analíticas, de
tantas conversas inspiradoras, continuarão me acompanhando por toda a vida.
Aos meus amados pais, Janete e Edson. É difícil estimar a importância que vocês
tiveram neste processo. Obrigada mãe, pela paciência e compreensão ao ver tantos
livros espalhados pela casa; e por respeitar minhas ausências. Obrigada pai, por também
entender a pressa em algumas visitas; e pela fé na vida e no amor que nos últimos anos
nos fizeram ainda mais fortes.
Às professoras Maria Nazaré Cruz e Luciane Maria Schlindwein, por terem
aceitado participar da banca de qualificação e defesa. Obrigada pelo cuidado e olhar
atento ao trabalho e por todas as contribuições sugeridas.
Ao meu amado Tiago, pelo apoio de sempre; e por não ter se cansado de ouvir e
ler as tantas páginas deste trabalho.
Aos amigos da época da graduação que, mesmo diante da correria da vida,
permanecem presentes: ao Anderson e à Flávia, pela amizade sincera e parceria; à
Valéria, pelo carinho; e ao Ricardo, por tudo o que me ensinou ao longo desses anos e
por sempre me apoiar e acreditar em mim.
Aos amigos do GPPL, pelas deliciosas quartas (ou quintas-feiras) ao longo
destes últimos dois anos.... E por também terem contribuído nas elaborações deste
trabalho. Em especial, deixo aqui o meu muito obrigada à Débora, companheira, amiga
e parceira em todas as horas que precisei; à Núbia, mineirinha querida, pela energia e
bondade; à Lívia, amiga desde a graduação, pelo ombro e ouvido amigo de sempre.
Aos professores do programa de pós-graduação: Ana Lúcia Horta Nogueira,
Luci Banks Leite, Lavínia Magiolino, Márcia Strazacappa, Eliana Ayoub e Joaquim
Fontes Brasil. Todo o aprendizado das disciplinas cursadas ecoa aqui neste trabalho.
Aos funcionários da Faculdade de Educação da Unicamp, em especial à querida
Márcia e Marli, da biblioteca.
À professora Bete, por ter aberto sua sala e permitido que a pesquisa fosse
desenvolvida.
Às crianças da escola, por tudo o que partilhamos juntos! Obrigada, obrigada,
obrigada....
Por fim, à Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior), que mesmo em meio a tanto cortes anunciados, deu auxílio financeiro para
que a pesquisa fosse realizada.
RESUMO
Esta pesquisa tem por objetivo investigar as possibilidades da vivência estética com
crianças do primeiro ano do ensino fundamental, em situações de leitura da literatura.
Ancorado na perspectiva histórico-cultural e movido pelas inquietações de Lev S.
Vigotski sobre o estatuto da arte no desenvolvimento humano, o estudo pretende
aprofundar as discussões sobre a possível emergência do sentido estético no processo
formal de escolarização das crianças. Assim sendo, concomitante à problematização
teórica, desenvolve-se um trabalho empírico em uma escola da rede pública municipal
de Campinas-SP. Assumindo as dificuldades conceituais que permeiam os textos de
Vigotski, mais particularmente na Psicologia Pedagógica, texto no qual se encontram
termos como percepção estética, reação estética, vivência estética, educação estética, o
estudo busca realçar e circunscrever os modos como as crianças reagem, percebem e se
envolvem com a narrativa do texto literário, na tentativa de compreender aspectos da
elaboração - social, individual - do sentido estético (Pino, 2006, 2007), conceito que
ainda demanda posterior aprofundamento teórico e refinamento conceitual. Nas análises
do material empírico, são destacadas quatro situações, duas que enfocam os modos de
recepção e escuta do texto literário, e duas que dizem respeito à produção das crianças,
sendo uma de caráter coletivo, orientada pela professora, e outra envolvendo a produção
escrita de uma criança. As análises de palavras e gestos, inspiradas na leitura de
indícios, mostram os modos de participação das crianças tanto na recepção da literatura
como obra de arte, quanto na autoria e na atividade criadora de produção de textos.
Palavras-chave: literatura, ensino fundamental, sentido estético, Vigotski, perspectiva
histórico-cultural
ABSTRACT
This study aims to investigate the possibilities of aesthetic experience with 1st grade
children at a Brazilian public elementary school, involving the work with literary texts
in classroom situations. Anchored by the historical-cultural perspective and taking into
account Lev S. Vigotski’s inquiries concerning status of art in human development, the
research intends to deepen the discussions about the development of aesthetic sense in
the children’s formal school process. Assuming the conceptual difficulties that pervade
Vigotski’s texts – particularly in Pedagogical Psychology, book in which concepts such
as aesthetic perception, aesthetic reaction, aesthetic experience, aesthetic education can
be found, the study searches to highlight and circumscribe the ways by which children
react, perceive and get involved in narratives of literary texts. An attempt is made to
understand the social and individual elaboration of the aesthetic sense (Pino, 2006,
2007), concept that still demands posterior theoretical deepening and conceptual
refinement. The empirical analysis privileges four situations: two of them focus on the
children’s ways of receiving and listening to literary texts; the other two concern the
children’s text production, one of them having a collective character, guided by the
teacher, and the other approaching the written production of an individual child. The
analysis of words and gestures, inspired by the indiciary paradigm, gives visibility to the
children’s participation in the reception of literature as work of art as well as to their
participation as authors in the creative activity of text production.
Keywords: literature, elementary school, aesthetic sense, Vigotski, historical-cultural
perspective
Sumário
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10
PRIMEIRA PARTE ....................................................................................................... 21
Capítulo 1 - A educação estética na obra de L. S. Vigotski ....................................... 21
SEGUNDA PARTE ....................................................................................................... 44
Capítulo 2 - A realização do trabalho empírico e as in(ter)venções na prática .......... 44
2.1. A pesquisa de campo: um breve panorama do seu percurso ............................ 45
2.2. Procedimentos de registro adotados ................................................................. 59
2.3. A construção dos dados da pesquisa ................................................................ 61
Capítulo 3 - Sobre os modos de participação das crianças nas rodas de leitura:
possibilidades analíticas .............................................................................................. 63
3.1. Palavras e gestos na incorporação do texto literário ........................................ 64
3.2. Ler, ouvir, sentir, significar .............................................................................. 87
Capítulo 4 - Sobre os modos de participação das crianças na autoria e na atividade
criadora de produção de textos ................................................................................. 108
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 128
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 135
ANEXO 1: Quadro “Correspondência dos termos nas duas traduções brasileiras de
Psicologia Pedagógica” ............................................................................................... 145
ANEXO 2: Texto do livro “A operação do Tio Onofre: uma história policial” .......... 147
ANEXO 3: Livro coletivo produzido pelas crianças .................................................... 149
10
INTRODUÇÃO
São muitas as possibilidades de criação humana e suas produções. Englobam
desde as mais simples invenções cotidianas, do homem comum, como aquelas dos
grandes talentos das áreas científicas, técnicas e artísticas1. Para o que interessa a este
presente trabalho, concentremo-nos nestas últimas. Mais especificamente na literatura, a
arte da/na palavra. Podemos começar comentando sobre o processo criativo na
construção da obra de arte. Alguns poetas e escritores relatam as dificuldades que os
acometem ao querer transmitir e objetivar o pensamento/sentimento em palavras, o
chamado “suplícios da criação”2. O brasileiro Olavo Bilac, em um dos seus poemas, nos
mostra como essas criações, contrariamente a uma visão que as concebem quase como
resultado de uma “intervenção divina”, são fruto de um (in)tenso e incansável trabalho
do autor na composição dos versos e rimas, em que trabalha, e teima, e lima, e sofre, e
sua!3
Se de um lado temos o procedimento do escritor, as tensões, alegrias e dramas
por ele vivenciados, do outro temos os sentimentos e envolvimento dos sujeitos
apreciadores dessas criações. Sejam as palavras escritas, faladas, declamadas, recitadas,
de outrora ou de agora, afetam e emocionam adultos, jovens e crianças. Mas o que leva
o ser humano a se encantar e comover pelas palavras em um texto literário ou aquelas
que ganham vida num palco de teatro? Como isso se produz no homem? É algo que
irrompe de repente ou é resultado da constituição humana do homem4? Afinal, por que
vias isso se dá? Como é que se trabalha isso no sujeito? O que é essa dimensão estética
humana? Como isso se opera no sujeito?
Sem a pretensão de querer responder e esgotar questões tão complexas, o
presente trabalho de mestrado constitui-se tendo como guia mais amplo essa
problemática. Assim, cabe aqui delinear quais são as perguntas e os objetivos, em
1 Como nos diz Pino (2006), sustentado nos princípios da perspectiva histórico-cultural: “criar é uma
necessidade da existência humana [...] Contrariamente a uma ideia muito difundida em certos meios
educacionais, [...] a capacidade de criar estende-se a todas as esferas da vida social e cultural do ser
humano: a artística, a técnica, a científica e a social. Não apenas a alguma delas” (p. 56). 2 Em Imaginação e criação na infância, Vigotski (2009, p. 55) cita versos do poeta russo Semion Nadson,
em que diz: “não há no mundo suplício maior que o suplício da palavra; inutilmente um grito quer sair, às
vezes, da boca; inutilmente, o amor está pronto para queimar a alma: nossa língua pobre é fria e
deplorável”. 3 O trecho em itálico é o verso do poema de Bilac, chamado “A um poeta”, que a professora Dra. Marisa
Lajolo comentou em sua conferência no Congresso de Leitura do Brasil (COLE), do qual participei em
julho de 2016. 4 Pino, 2006.
11
específico, que assumimos como foco de investigação. Para dizer em poucas palavras e
de maneira direta, poderíamos colocar que temos a intenção, nas linhas e capítulos que
se seguem, de discutir os modos pelos quais as crianças se envolvem e participam das
leituras literárias, fundamentando-se e dialogando com a perspectiva histórico-cultural
do desenvolvimento humano. Contudo, antes de mostrar os desdobramentos dessa
colocação e melhor detalhar pontos importantes que integram a pesquisa, julgo ser
fundamental apresentar de forma breve os caminhos que me trouxeram até ela.
Seja no domínio das ciências humanas, biológicas ou exatas, a pesquisa
configura-se como uma atividade que dificilmente encontra um “ponto final”. Se
perguntássemos àqueles que se ocupam desse métier, talvez diriam que é exatamente
esse aspecto que a torna tão interessante: no terminar de um trabalho, descortinam-se
outras possibilidades, perguntas e inquietações. Digo isto porque é justamente nesse
movimento que a presente dissertação se coloca.
Com a produção do trabalho de conclusão de curso (TCC) ao final da graduação
em Pedagogia, intitulado “O teatro na educação infantil: um estudo a partir da teoria
histórico-cultural”, algumas questões permaneceram em aberto, assim como o interesse
pelas obras de Lev S. Vigotski5 sobre estética começou a se firmar, o que incentivou a
continuidade do trabalho. O TCC foi fruto da minha intensa e apaixonada relação com o
teatro, de uma história como atriz que começa comigo ainda criança e que se estendeu
por toda minha formação humana e profissional e, principalmente, pela participação no
projeto “Teatro na Educação”, realizado em uma cidade do interior do estado de São
Paulo, que entre os anos de 2013 e 2014 levou espetáculos teatrais às crianças das
escolas públicas municipais. Essas experiências tornaram-se objeto de investigação e
análise, em que se problematizou o impacto do teatro no seu público infantil.
Ancorada pela perspectiva histórico-cultural, procurei entender, no referido
estudo, os possíveis modos de participação da criança no contexto teatral, bem como os
efeitos e afetos que o teatro produz no seu espectador. O problema de como as pessoas
recebem, percebem e se envolvem com a obra de arte foi um aspecto ressaltado por
Vigotski em sua monografia A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, escrita em
5 Nesta dissertação iremos empregar ao nome do teórico a grafia “Vigotski”, respeitando as outras grafias
presentes nas citações e referências bibliográficas que aqui utilizamos.
12
1915, em que ele, partindo da concepção denominada “crítica de leitor”, procurou
entender a maneira pela qual os receptores interpretam os textos literários6.
Por meio da análise de alguns episódios registrados, foi possível perceber
diferentes maneiras da criança participar do teatro e o quanto a arte redimensiona os
processos mentais que o seu apreciar envolve, provocando uma ampliação das
experiências e uma transformação nas funções psicológicas superiores humanas: amplia
o “material” com o qual sua imaginação opera; oferece possibilidades de emoção e
novas condições de reflexão e elaboração da consciência; aumenta a compreensão sobre
si e sobre a vida do ser humano que a aprecia. Evidenciou-se, também, a (con)fusão
entre arte e vida, isto é, o entretecimento entre o imaginário e o real, pois a experiência
do palco mobiliza dramaticamente a experiência vivida, possibilitando meios de novas
formas de significação e elaboração (DIAS, 2014).
Ao debruçarmo-nos sobre a teoria elaborada por Vigotski e os trabalhos que
contam sua história pessoal e percurso intelectual7, percebemos a profunda relação do
autor com as artes e a intensa influência que exerceu na sua vida e escritos, pois suas
experiências com o teatro e como professor de literatura marcaram fortemente a forma
como ele concebe o psiquismo humano, a educação e a arte (SMOLKA, 2009). Barros
et al. (2011), por exemplo, contam que Vigotski dirigiu, produziu e atuou em
espetáculos teatrais, além de ter chefiado a seção de teatro do departamento de
Educação Popular de Gomel e editar a seção de teatro do jornal local, Polesskaja
Pravda (VAN DER VEER; VALSINER, 2001; BARROS et al., 2011).
Quase desconhecidas pelos leitores e estudiosos da perspectiva histórico-
cultural, Marques (2015) nos brinda com algumas traduções das críticas literárias e
teatrais de Vigotski, publicadas em jornais locais e até então inéditas para nós - ao que a
própria autora/tradutora vai chamar de “Vigotski incógnito” -, que foram produzidas
entre 1915 e 1926, período em que o teórico se dedicou mais intensamente as questões
relacionadas às artes. Entretanto, vale lembrar, como afirmam Van der Veer e Valsiner
(2001, p. 20), que desde o seu trabalho inicial, A tragédia de Hamlet, príncipe da
Dinamarca, resultado do seu antigo interesse pela obra shakespeariana, até um dos seus
6 Neste trabalho, Vigotski (1999a) analisou a relação do crítico com o autor e sua obra. Segundo ele, uma
vez criada, a obra de arte separa-se do seu criador e torna-se passível de múltiplas interpretações, uma vez
que, na visão do teórico, não existe um sentido único da obra, aquele que o seu autor quis oferecer, pois
cada leitor o apreende de uma forma. 7 Ver Veresov (1999) e Van der Veer e Valsiner (2001).
13
últimos trabalhos sobre a psicologia do ator, são notáveis as referências de Vigotski às
artes.
Trabalhos como de Wedekin e Zanella (2016), ao discorrerem sobre as relações
entre o pensamento e os escritos de Vigotski sobre arte, e as manifestações artísticas na
Rússia de seu tempo, nos ajudam a compreender o contexto cultural da época e o
panorama do ensino das artes antes e após a Revolução de 1917, contribuindo para
conhecermos como se estruturavam algumas dessas instituições de ensino e quais eram
os princípios que as norteavam. Em outro artigo, as mesmas autoras também
apresentam como a questão da complexa relação entre arte e vida teve repercussão no
modernismo russo e descrevem a maneira variada com que foi respondida pelas
vertentes realistas e simbolistas, situando a obra de Vigotski neste contexto. Para tanto,
elas explicam para o leitor a estética do realismo russo e de Tolstoi, grande
representante desta tendência na literatura, bem como a estética simbolista, a qual
grande parte dos biógrafos de Vigotski afirmam tê-lo influenciado (WEDEKIN e
ZANELLA, 2013)8.
Sobre as produções iniciais do teórico, ou seja, aquelas mais ligadas à arte teatral
e literária, Del Río e Álvarez (2007) contrapõem-se aos estudiosos e comentadores que
veem certa periodização nos escritos de Vigotski e que, por isso, dão menos visibilidade
e importância a essas primeiras obras. Para estes autores, na verdade, há um processo de
crescimento em espiral, uma evolução de caráter dialético e circular nos trabalhos de
Vigotski e que, portanto,
esas tres inquietudes: de artista, de educador y de psicólogo expresan,
todas ellas, la personalidad científica e intelectual de Vygotski y su
intenso forcejeo por integrarlas se prolongará todas su vida. Más que
etapas preparatorias del Vigotski psicólogo, como muchos las han
considerado, parece que el Vygotski artista y el Vygotski educador
serán, junto al Vygotski psicólogo, personajes interiores permanentes
que dotarán de vitalidad al pensamiento científico que se manifestará a
lo largo de la siguiente y última década de su trayectoria vital - 1925-
1934 - (DEL RÍO; ÁLVAREZ, 2007, p. 9).9
8 Estas e outras questões são melhor exploradas na tese de doutorado (WEDEKIN, 2015) em que tais
artigos de baseiam. 9 “Estas três preocupações: de artista, educador e psicólogo expressam, todas elas, a personalidade
científica e intelectual de Vigotski e sua intensa luta por integrá-las se prolongará por toda a sua vida.
Mais que etapas preparatórias do Vigotski psicólogo, como muitos têm considerado, parece que o
Vigotski artista e o Vigotski educador serão, junto com o Vigotski psicólogo, personagens interiores
permanentes que dotarão de vitalidade o pensamento científico que se manifestará por toda a seguinte e
última década de sua história de vida – 1925 – 1934” (Tradução nossa).
14
Foi nos estudos teóricos na época realizados das produções derivadas das
inquietações do Vigotski-artista e Vigotski-educador, que me deparei com um trecho da
obra Psicologia da Arte, o qual viria a se tornar ponto de ancoragem para a pesquisa de
mestrado:
[...] ao definir o papel vital e a influência da arte, é necessário levar
em conta as peculiaridades que o estudioso encontra ao se aproximar
da criança. Evidentemente, isto é assunto para um estudo especial,
porque tanto o campo da arte infantil quanto a reação da criança a
esse campo diferem substancialmente do adulto (VIGOTSKI, 1999b,
p. 326, grifo nosso).
Nessa passagem, percebe-se um assunto ao qual Vigotski não pôde se dedicar a
analisar. Partindo dessa questão deixada em aberto para estudos futuros, surgiram as
indagações para esta dissertação de mestrado: Como esse “papel vital” da arte pode ser
percebido na relação com as crianças? Em que consiste essa diferença entre adultos e
crianças, de que o autor nos fala? Quais os modos da criança responder à leitura de um
texto literário? Como a literatura atrai/afeta à criança?
Tendo em vista a pertinência e validez das elaborações teóricas de Vigotski na
compreensão da dinâmica educacional, bem como o inacabamento de algumas de suas
ideias, vimos no seu trabalho um instigante horizonte de pesquisa. A proposta central
deste estudo, portanto, orienta-se em torno de dois eixos, que se tangenciam:
pretendemos aprofundar o estudo da produção teórica de Vigotski, principalmente
aquelas em que se dedica à questão da arte e da estética, delineando-a no âmbito da
psicologia infantil e, junto a este movimento de aprofundamento e problematização
teórica, dialogar com o trabalho de campo realizado no segundo semestre de 2015 em
uma escola da rede pública municipal de Campinas-SP, em que foi acompanhada uma
turma de primeiro ano do Ensino Fundamental e desenvolvido com esse grupo rodas de
leitura.
É interessante colocar que a questão relacionada à estética tem sido trabalhada
por diferentes pesquisadores contemporâneos (DUARTE Jr., 2000, 2008; LEONTIEV,
2000; PINO et al., 2010; CAMARGO e BULGACOV, 2008; AMORIM e
CASTANHO, 2008). Estudos atuais, nacionais e estrangeiros, inspiram-se na teoria de
Vigotski para fundamentar o trabalho acerca da arte, emoção e imaginação, tanto no
âmbito da formação do professor quanto do aluno (PINO, 2006, 2007; MOLON, 2007;
BARROCO e SUPERTI, 2014; JAPIASSU, 2003; SCHLINDWEIN, 2015, 2012;
15
SCHLINDWEIN e SOARES, 2007; MAHEIRIE et al., 2015; DA ROS et al., 2006;
DEL RÍO, 2004; LIMA, 2004, LIMA et al., 2004; MAGIOLINO, 2015). Dessa forma,
vê-se que as discussões aqui realizadas inscrevem-se em preocupações já
compartilhadas por outros trabalhos.
Com o fito de conhecer o que tem sido estudado sobre a questão estética a partir
do referencial teórico de Vigotski e, assim, situar o nosso trabalho dentro deste cenário,
realizamos um levantamento bibliográfico das produções acadêmicas brasileiras sobre
esta temática10
. Para tanto, fizemos uso dos seguintes bancos de dados virtuais: Banco
de Teses e Dissertações da Capes e Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações
(BDTD).
Ao utilizarmos das palavras-chave “educação estética”, “Vigotski” e “literatura”,
o portal da Capes indica um montante de mais de vinte mil (20.000) trabalhos realizados
desde 1987, quando o banco de dados foi criado. Isto significa que a produção
acadêmica envolvendo a perspectiva histórico-cultural, a literatura e a estética têm se
mostrado intensa no país, vindo num crescente com o passar dos anos. Contudo, como o
sistema não agrupa os três termos para uma busca mais precisa, a circunscrição do
objeto específico fica comprometida, uma vez que é nas mais diversas perspectivas
teóricas que aparecem os trabalhos com relação à estética e literatura.
Em vista disto, realizamos uma consulta na plataforma BDTD, que conta com a
opção de “busca avançada”, o que torna possível a pesquisa com todos os descritores
juntos. Assim, ao inserirmos os termos “educação estética”, “Vigotski” e “histórico-
cultural” (todos no campo todos os campos), foram encontradas duas dissertações, uma
da Universidade Federal do Espírito Santo e outra da Universidade Federal do Paraná.
São elas, respectivamente:
1) “A dimensão formativa do cinema e a catarse como categoria psicológica: um
diálogo com a psicologia histórico-cultural de Vigotski”, de Santiago Daniel Hernandez
Piloto Ramos, defendida em 2015;
2) “A dimensão formativa da arte no processo de constituição da individualidade para-
si: a catarse como categoria psicológica mediadora segundo Vigotski e Lukács”, de
Vitor Marcel Schühli, defendida em 2011.
10
Vale ressaltar que tal levantamento teve um teor mais quantitativo, no sentido de demarcar o número de
produções dentro desta temática.
16
No mesmo site, mas com os descritores “educação estética”, “Vigotski” e
“literatura infantil”, apenas um trabalho de doutorado da Universidade Federal de Goiás
foi encontrado. No entanto, é importante destacar que, segundo consta no resumo, a
autora parte de outros referenciais teóricos para a fundamentação de sua tese:
1) “Literatura sem fronteira: por uma educação literária”, de Ebe Maria de Lima
Siqueira, defendida em 2013.
Se com tais descritores foi restrito o número de trabalhos encontrados, ao
utilizarmos das palavras “arte” e “Vigotski” um total de cento e vinte (120) trabalhos
foram localizados, os quais estão distribuídos da seguinte forma pelas universidades
brasileiras:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (22);
Universidade Federal do Espírito Santo (14);
Universidade Federal de Goiás (11);
Universidade Estadual de Londrina (10);
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (8);
Universidade de São Paulo (6);
Universidade do Estado de Santa Catarina (5);
Universidade Federal do Paraná (5);
Universidade Presbiteriana Mackenzie (4);
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (4);
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (4);
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (3);
Universidade Federal de Santa Catarina (3);
Universidade de Brasília (3);
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2);
Universidade Federal de Juiz de Fora (2);
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2);
Universidade Federal de Sergipe (2);
Universidade Federal de Uberlândia (2);
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (1);
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1);
Universidade de Caxias do Sul (1);
Universidade Federal da Bahia (1);
Universidade Federal do Ceará (1);
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1);
Universidade Estadual de Campinas (1);
Universidade do Grande Rio (1).
17
(Fonte: BDTD - http://bdtd.ibict.br/vufind/)
Por fim, com as palavras-chave “sentido estético” e “Vigotski”, foram
encontrados seis (6) trabalhos, dos quais, após a leitura dos respectivos resumos, filtrou-
se apenas quatro (4) 11
. Os resultados foram os seguintes:
1) “Crônicas pedagógicas: revivescências, arte e educação”, de José Francisco
Quaresma Soares da Silva, dissertação de mestrado defendida em 2012, pela
Universidade Estadual de Londrina;
2) “Diferentes olhares: um “tour” com crianças pelo centro histórico da cidade”, de
Rafaela Tzelikis Mund, dissertação de mestrado defendida em 2012, pela Universidade
Federal de Santa Catarina;
3) “O que pode a música do Arma-Zen?: relações entre o rap, o bairro e a cidade”, de
Tainá Wandelli Braga, dissertação de mestrado defendida em 2014, pela Universidade
Federal de Santa Catarina;
4) “Educação estética pela mediação de leitura de imagens de obra de arte”, de Michele
Pedroso do Amaral, dissertação de mestrado defendida em 2014, pela Universidade de
Caxias do Sul.
Circunscrito ao Grupo de Pesquisa Pensamento e Linguagem
(GPPL/UNICAMP), ao qual a presente dissertação está vinculada, podemos ainda citar
o capítulo de Magiolino (2015), que no diálogo com autores da perspectiva histórico-
cultural, tais como Wallon, Bakhtin e Vigotski, tematiza e problematiza as complexas
relações entre afetividade, imaginação e dramatização na educação infantil, tomando
como foco de análise o faz de conta que se explicita na leitura e dramatização de textos
literários em sala de aula.
Embora existam muitos trabalhos que tratem da dimensão estética na perspectiva
histórico-cultural, cada um com suas nuances, é no âmbito dessas pesquisas que este
11
Isto porque, como pudemos constatar ao fazer a leitura dos resumos e palavras-chave de tais pesquisas,
duas não estavam relacionadas às questões sobre estética e/ou arte. Por este motivo, optou-se por excluí-
las do levantamento.
18
estudo pretende dar uma contribuição específica à temática. Portanto, é neste contexto
que o presente trabalho se insere: como mais um esforço teórico de (re)colocar os
conceitos, ideias e pensamentos de Vigotski na contemporaneidade. Entende-se que,
mesmo que a obra de Vigotski esteja situada em outro contexto histórico, social e
cultural, com as preocupações pontuais daquela época, as ideias e conceitos trazidos
pelo teórico são repletos de possibilidades e desdobramentos de análise.
Além disso, como já comentamos, os questionamentos que foram anteriormente
explicitados serão olhados no contexto da educação formal. Busca-se nesse movimento
elementos para entender as formas como as crianças recebem e reagem às histórias
infantis: Como a palavra, cunhada pelo autor nas páginas dos livros, pela voz/narrativa
do texto literário pelo leitor, afeta e emociona às crianças? Como elas reagem? Como
elas respondem e se envolvem? Ao observar os modos de participação das crianças e
procurar indicadores desse envolvimento, o diálogo com a teoria torna-se fundamental.
Podemos dizer, então, que este estudo se configura como mais um exercício de
análise que mostra a atenção que deve ser dada à vivência estética pela criança no seu
processo de educação, para, a partir dos modos como elas reagem, percebem e se
envolvem com a narrativa do texto literário, tentar entender e problematizar a possível
gênese desse sentimento e sentido estético no ser humano. Deste modo, articula-se
nessa pesquisa a leitura do empírico com a discussão conceitual.
Levando em consideração as preocupações que atravessam este trabalho,
podemos sistematizar os objetivos da seguinte forma: 1. Investigar os diferentes modos
da criança receber, perceber e se envolver com a literatura; 2. Observar as relações
existentes entre obra literária/leitor/criança, ou seja, de que forma a obra escolhida, a
partir da leitura do outro, impacta a criança; 3. Explorar as possibilidades de análise da
vivência estética pela criança, ao propor e viabilizar encontros com a literatura em uma
unidade escolar específica; 4. Problematizar e discutir os diferentes termos trazidos por
Vigotski sobre a questão estética, tais como reação, percepção, emoção, vivência etc.,
em diálogo com o conceito de sentido estético, tal como proposto por Pino (2006,
2007).
Nesse sentido, considerando os escritos de Vigotski inspiradores, como ponto de
partida para as análises a serem feitas, na primeira parte desse trabalho será realizado
um estudo do capítulo sobre a educação estética, que integra a obra Psicologia
Pedagógica. Salienta-se que empreender uma leitura de Vigotski acerca da arte e da
estética é assumir as dificuldades conceituais que permeiam sua obra com relação a esta
19
temática, bem como a amplidão deste tema no transcorrer da história. Admitindo tal
complexidade conceitual, o presente trabalho pretende constituir-se numa singela
contribuição à temática em questão, a partir do estudo detalhado e atento a ser realizado
desta obra, buscando-se traçar o diálogo de Vigotski com os seus autores
contemporâneos e os possíveis sentidos dos termos utilizados pelo teórico, tais como
reação estética, educação estética, experiência estética, vivência estética, entre outros.
Como nesse mesmo período Vigotski escreveu Psicologia da Arte, este livro também
será foco de problematização teórica, bem como Imaginação e criação na infância, que
darão suporte à análise da dimensão empírica. Outrossim, trabalhos de interlocutores
contemporâneos também foram consultados e darão sustentação às discussões, os quais
deixo para serem apresentados no respectivo capítulo.
Já na segunda parte, cuidaremos do eixo empírico que integra este estudo,
começando por situar em qual metodologia apoiamo-nos para a realização da pesquisa,
seguida de uma breve apresentação do trabalho de campo, para dar ao leitor uma visão
geral de todo o percurso empírico. A partir daí, selecionamos algumas situações
registradas no campo por meio de vídeo-gravação e diário de campo para explorar as
possibilidades e as potencialidades da literatura, observando como as crianças são
capturadas, impactadas e afetadas pelas histórias narradas, a partir das reações,
expressões, comentários e emoções nelas provocadas, os quais serão analisados à luz
das discussões teóricas anteriormente encaminhadas. Entendemos que os escritos
deixados por Vigotski sobre esta temática, bem como os fundamentos da teoria
histórico-cultural, nos oferecem um excelente material para elaborações e análises
acerca da arte e dos efeitos, afetos e sentidos que ela produz/provoca no ser humano.
No fechamento das reflexões e análises da dissertação, no último capítulo iremos
versar sobre a proposta de produção coletiva de uma história que fora criada pela turma
acompanhada na pesquisa, momento em que as crianças, de “leitoras-ouvintes” dos
textos literários, tornam-se autoras. Com isso, temos a intenção de compreender a
possível repercussão do trabalho com leitura da literatura e produção literária na
formação e desenvolvimento do sentido estético na criança. Por fim, traçamos algumas
considerações finais acerca das discussões aqui empreendidas, apontando para a
necessidade de maiores investigações em torno desta temática.
Sem mais estender essa parte introdutória, para terminar gostaria apenas de
comentar um pensamento que me ocupou a mente no percurso de elaboração desse
trabalho, retomando a ideia que apresentei logo no início da minha escrita. Tendo em
20
vista o que escreve Vigotski (2009), de que “tudo o que nos cerca e foi feito pelas mãos
do homem, todo o mundo da cultura [...] é produto da imaginação e criação humana que
nela se baseia” (VIGOTSKI, 2009, p. 14), gostaria de afirmar que entendemos a
construção da escrita acadêmica como um processo criativo. Nesse sentido, trago aqui
as palavras de Salles (2006), pois mesmo que a autora esteja se referindo a outro
contexto, o processo criador do artista, vemos nelas possíveis diálogos com o trabalho
acadêmico - como defendemos, esse também criativo. Por mais que a produção artística
e a acadêmica tenham suas especificidades, com estéticas e objetivos próprios, elas se
aproximam em alguns pontos, como na incompletude e constante inacabamento. Como
a autora coloca:
Estamos falando do inacabamento intrínseco a todos os processos, em
outras palavras, o inacabamento que olha para todos os objetos de
nosso interesse - seja um romance, uma peça publicitária, uma
escultura, um artigo científico ou jornalístico - como uma possível
versão daquilo que pode vir a ser ainda modificado (SALLES, 2006,
p. 20).
Portanto, mesmo o trabalho acadêmico é um projeto que sempre se renova, a ser
preenchido com novas perguntas e a descobrir outras respostas. É o quase infindável
trabalho de escrita (e pesquisa), que se faz recheados por contínuas idas e vindas,
retomadas, ponderações, dúvidas e escolhas.... Como a mesma autora diz, citando as
palavras de Carlyle, “publicamos para não passar a vida corrigindo” (ibidem, p. 21).
Assim, lanço a vocês, leitores, a forma como o texto e as ideias se apresentam neste
momento. Que o instante imediato que se instaura com o término da minha escritura e
suas decorrentes leituras, abra espaço para outras (re)criações.
21
PRIMEIRA PARTE
Capítulo 1 - A educação estética na obra de L. S. Vigotski
Educação estética: Qual o seu papel na vida e no processo de formação humana?
Qual a função da arte na sociedade? Por que/para que educação estética? Quais são seus
objetivos? Em que consiste? Esses são apenas alguns exemplos de questões que o
grande teórico russo Lev Seminovich Vigotski nos convida a pensar, ao mergulharmos
na leitura de um dos seus escritos sobre arte e estética, o capítulo “A educação estética”
que integra a obra Psicologia Pedagógica.
Em termos históricos, os estudos sobre a estética remontam à Grécia Antiga,
desde a concepção de Platão, que suspeitava da arte contrapondo-a à filosofia e à
ciência, estas sim, consideradas obra da razão humana - inaugurando a oposição da
experiência sensível e da experiência racional -, como a visão de Aristóteles, da
imitação como fonte da produção artística e da arte como catarse, purificação das
emoções (PINO, 2007). No entanto, mesmo que a estética seja um tema clássico para a
filosofia, presente desde a época grega, a preocupação com a educação estética no
campo educacional é algo recente; apesar da presença da arte estar legalmente prevista
na educação básica brasileira, o interesse por essa temática é quase inexistente no plano
das administrações escolares (ibidem, 2007). Nas práticas pedagógicas, impera a
dicotomia entre razão e emoção, por ainda prevalecer a visão de que a aprendizagem só
acontece por meio da cognição, com a primazia de práticas que prezam por “conteúdos”
em detrimento de aspectos ligados ao sensível.
Considerando o escrito de Vigotski inspirador, fecundo e ainda profundamente
relevante para a compreensão da dimensão estética da educação, a intenção do presente
trabalho é fazer uma descrição do já referido capítulo da obra de Vigotski e, ao mesmo
tempo, realizar uma leitura crítica de suas ideias. Portanto, como será visto, dois
movimentos básicos constituem esse exercício: menções diretas ao texto do autor, as
quais irão entrecruzar-se com os nossos comentários e análises.
Um primeiro aspecto merece ser ressaltado. Compreendemos que para apreender
as teses centrais desenvolvidas por Vigotski, é preciso apropriar-se do texto levando em
consideração a época em que foi produzido. Nesse sentido, antes de avançar nas
discussões do capítulo em específico, é imprescindível contextualizar historicamente a
produção de Vigotski, ou seja, marcar em que período do desenvolvimento intelectual
22
do autor ela se encontra e situar o momento histórico que a atravessa, com vistas a
entender as contribuições dos principais autores com os quais dialoga e quais são os
impactos no texto. Afinal, nos disse Vigotski, o homem e suas produções são “sempre
fruto de seu tempo e de seu meio”12
. Por isso, começaremos por apresentar, em linhas
gerais, as circunstâncias que acompanharam a elaboração deste trabalho.
“Este livro se propõe uma questão de natureza principalmente prática. Ele
gostaria de ajudar a nossa escola e o mestre [...]”: é assim que Vigotski (2010, p. XI)
apresenta Psicologia Pedagógica, logo nas primeiras linhas do prefácio. Como o
próprio autor anuncia, o principal interlocutor eram os professores13
, constituindo o
mais extenso escrito do teórico com questões relativas à educação (TOASSA, 2013b).
Escrita entre 1921 e 1923/início de 1924 (BLANCK, 2003, p. 15) e publicada
em 192614
, época em que a Rússia se recuperava da destruição ocasionada pela guerra
civil, de acordo com Vigodskaia e Lifanova15
(1996 apud PRESTES; TUNES, 2012, p.
334) a obra representa a tentativa de Vigotski em colocar a psicologia a serviço da
prática educacional na construção da nova sociedade socialista, dando formação à nova
geração de professores soviéticos.
Toassa (2013a) afirma que Vigotski
[...] após 1917 reorientou seus esforços na direção da constituição de
uma sociedade comunista. A ‘Psicologia Pedagógica’ é o retrato mais
eclético do esforço vigotskiano em contribuir com tal fundação,
procurando suprir importantes lacunas na formação de professores
(TOASSA, 2013a, p. 69).
Por este motivo, entendemos que para compreender os argumentos, propostas e
conceitos que envolvem a leitura desta obra, não podemos perder de vista o contexto
histórico na qual se inscreveu. Além disso, dado que é uma das primeiras obras do
jovem Vigotski, consideramos ser necessária a busca por relacioná-la e situá-la no curso
12
VIGOTSKI, L.S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009, p. 42. 13
Segundo Blanck (2003, p. 15) o livro se dirigia a estudantes que pretendiam lecionar para crianças de
10 a 15 anos. 14
Segundo Van der Veer e Valsiner (2001, p. 62), é possível acreditar que esse livro tenha sido escrito
antes da publicação de 1926 por dois motivos: “Primeiro, a maneira como Vygotsky analisou várias
questões e pensadores não está de acordo com as visões defendidas em seus artigos e palestras que
sabemos terem sido escrito por volta de 1926. Segundo, quando Vygotsky começou a trabalhar no
Comissariado de Educação Pública do Povo em julho de 1924, ele preencheu uma ficha e colocou sob o
item publicações ‘uma breve descrição da psicologia pedagógica [...]’ ”, o que sugere para os autores de
que ele estava se referindo à Psicologia Pedagógica, possivelmente já completa à época. 15
VIGODSKAIA, G. L.; LIFANOVA, T. M. Lev Semionovitch Vigotski: jizn, deiatelnost, chtrirri k
portretu. Moskva: Smisl i Smisl, 1996.
23
de todo o pensamento e produção teórica do autor. Embora Psicologia Pedagógica seja
anterior à elaboração dos fundamentos da perspectiva histórico-cultural, nela já é
possível observar alguns pontos que seriam posteriormente abordados e aprofundados
por Vigotski, tais como: i) a abordagem dialética sobre o desenvolvimento humano; ii) a
reflexão sobre o papel do ambiente social; iii) a relação entre educação e
desenvolvimento (PRESTES e TUNES, 2012, p. 334).
Entretanto, neste mesmo movimento, também notamos aspectos que mais tarde
serão repensados e até mesmo abandonados pelo autor, como, por exemplo, a própria
concepção de educação e desenvolvimento, pois entre essa produção e as posteriores “é
evidente que [...] apresentam diferenças de ênfases. O Vigotski dos anos 30 parece dar
mais importância à cooperação que o dos anos 20” (VAN DER VEER, 2003, p. V).
Nesse sentido, concordamos com Toassa (2013a) quando afirma que o
importante é apreender este trabalho de Vigotski em perspectiva, isto é, “considerando
que traz capítulos mais e menos próximos dos conceitos posteriores do autor [...]
buscando, ainda, extrair contribuições para o debate em psicologia educacional na
atualidade” (ibidem, p. 70). Por isso, não defendemos que se deva negar radicalmente as
ideias e contribuições presentes na obra, confirmando certo menosprezo que ela teve
pelos seus primeiros divulgadores16
. Acreditamos, na verdade, que sua leitura deve ser
encaminhada considerando que é marcada pela “imaturidade teórica, ecletismo e
problemas de composição – decorrentes tanto do seu caráter de compêndio quanto de
sua rápida elaboração” (TOASSA, 2013b, p. 498), para evitar, assim, incorrer em erros
e considerações incoerentes ao pensamento vigotskiano.
Ao longo de mais de duzentas páginas, Vigotski (2010) trata dos mais diversos
assuntos - a educação moral e estética, a personalidade, os instintos, a educação pelo
trabalho, dentre outros - no diálogo com diferentes autores de sua época, dos quais
destacamos Pavlov17
, Kornilov18
e Blonski19
- fato que nos indica que já nesse período,
16
Como destacam Del Río e Álvarez (2007): “los dos principales libros de la primera década de
producción vygotskiana tuvieron un destino editorial distinto, una menor visibilidad que las situadas en el
escaparate de las citas (…) Así, Psicología pedagógica fue publicada por primera y única vez en ruso en
1926, permaneciendo agotada desde entonces, y la Psicología del arte, escrita (…) en 1925, no aparecería
por primera vez en ruso hasta la década de los sesenta” (p. 10). 17
Ivan Pavlov (1849-1936) foi um fisiologista e médico soviético, tendo sido laureado em 1904 com o
Prêmio Nobel de Medicina, por seus estudos sobre os sistemas digestivos. Ao estudar as atividades das
glândulas digestivas nos cães, Pavlov notou o fenômeno de “secreção psíquica”, o que o levou a
desenvolver a chamada ‘teoria do reflexo condicionado’ (ver Van der Veer, 2007). 18
Konstantin Kornilov (1879-1957) foi um psicológico soviético. Para saber mais sobre a trajetória do
teórico, ver capítulo 6 de Van der Veer e Valsiner (2001) e Van der Veer (2007).
24
anterior à sua entrada na psicologia, o autor demonstrava ter conhecimentos das
questões e perspectivas psicológicas daquele momento.
É importante dizer que a influência da ciência dos reflexos de Pavlov e a
reactologia de Kornilov, que se mostram evidentes neste livro, vão ser mais tarde
reelaboradas, isto é, vão ganhar outro estatuto nas futuras elaborações teóricas de
Vigotski. Já no prefácio, o teórico observa e assinala as limitações da teoria dos
reflexos, ao afirmar que
a teoria dos reflexos condicionados é a base sobre a qual deve ser
construída a nova psicologia [...] Entretanto seria incorreto ver nesse
princípio um meio que tudo abrangesse e tudo salvasse [...] Ocorre
que a psicologia pedagógica [...] opera com fatos e categorias
psicológicas de natureza e ordem mais complexas do que algumas
respostas isoladas ou reflexo [...] (VIGOTSKI, 2010, p. XI-XII).
Além disso, em suas palavras iniciais ao leitor, Vigotski (2010) já indicava
visualizar a “crise” pela qual a psicologia do seu tempo passava. Deixaremos para tratar
essas influências e suas consequentes marcas no texto de Vigotski, um pouco mais
adiante.
Cabe aqui comentar sobre a chegada dessa obra em terras brasileiras, o que
aconteceu pela primeira vez em 2001, publicada pela Martins Fontes, com tradução de
Paulo Bezerra. Diferindo do original em russo que conta com dezenove capítulos, na
edição brasileira foram acrescentados mais dois capítulos, além de outros dois textos
avulsos, ao final do livro20
(PRESTES e TUNES, 2012). Com relação a essa mudança,
Prestes e Tunes (2012) são categóricas ao tecerem suas críticas, defendendo que a
alteração sem nenhum comentário prévio que alerte ao leitor, o induz a acreditar que
Psicologia Pedagógica foi escrita da forma como é apresentada - o que representa um
erro de ordem cronológica, pois esses escritos datam de outro período nas elaborações
vigotskianas. Há ainda outra edição no país, feita pela Artmed em 2003, a versão em
português da tradução e comentários feitos pelo argentino Guillermo Blanck – a qual
respeita a estrutura e organização do original em russo21
.
19
Pavel Blonski (1884-1941) foi um psicólogo e educador soviético. Para saber mais sobre a trajetória do
teórico, ver Van der Veer (2007) e Danilchenko (1993). 20
São eles “O problema do ensino e do desenvolvimento mental na idade escolar” e “A dinâmica do
desenvolvimento mental do aluno escolar em função da aprendizagem”, respectivamente capítulos XX e
XXI, além dos textos “Desenvolvimento dos conceitos cotidianos e científicos na idade escolar” e “A
análise pedológica do processo pedagógico”. 21
Apesar das críticas feitas por Prestes e Tunes (2012), neste trabalho optamos por fazer as citações com
a tradução realizada por Paulo Bezerra, uma vez que foi feita diretamente do russo.
25
Não nos interessa aqui entrar nos meandros destas discussões - problemáticas e
polêmicas - em torno das traduções das obras de Vigotski no Brasil. O objetivo já
anunciado do presente trabalho, é levantar as contribuições de Vigotski sobre a
educação estética e compreender os principais aspectos teóricos e conceituais que nos
ajudem a pensá-la e entendê-la na perspectiva histórico-cultural. Contudo, como durante
o trabalho de investigação empreendemos um estudo das duas versões existentes em
português e notamos algumas diferenças entre as traduções, em certos momentos do
texto, como o leitor verá mais adiante, traremos ambas as citações para apontar alguns
aspectos importantes.
Após essa breve exposição inicial, seguiremos analisando o capítulo treze, da
referida obra, que trata sobre a estética, direcionando o nosso olhar na tentativa de
capturar as sutilezas do texto, em que o teórico apresenta e elabora suas concepções a
respeito dessa temática. Nesse exercício, destacamos que vemos como importante a
necessidade de se apurar conceitualmente as proposições vigotskianas acerca da estética
e de sua relação com a educação, pois este foi um assunto que Vigotski não pôde voltar
a estudar. Como destaca Leontiev22
(1991 apud TOASSA, 2009, p. 84), o autor
propunha-se a fazer um estudo sobre as emoções que a reação estética desencadeava,
para analisar os mecanismos da criação artística e as funções específicas da arte, mas,
infelizmente, este trabalho nunca foi concluído. Assim, nos parágrafos que se seguem,
entrelaçados à apresentação dos principais pontos do capítulo, teceremos nossos
comentários, questionamentos e percepções sobre os mesmos.
Dividido em dez pequenas seções23
, Vigotski (2010) abre o capítulo sob o título
de “A estética a serviço da pedagogia”, em que discorre sobre as diferentes concepções
acerca do papel da estética na vida das crianças e as funções alheias que lhe são
designadas, posicionando-se contrário a três objetivos erroneamente impostos a ela pela
pedagogia tradicional: o conhecimento, o sentimento e a moral.
Primeiramente, o autor defende ser um equívoco impor objetivos sociais e
cognitivos à estética, como se a arte fosse um meio do aluno ampliar seu conhecimento,
substituindo valores estéticos por valores sociais, até porque, como ele adverte, a
realidade nunca se apresenta de forma plena e verdadeira na obra de arte: apesar de
22
LEONTIEV, A. N. Artículo de introducción sobre el labor creador de L. S. Vygotski. In: VYGOTSKI,
L. S. Obras escogidas I. Madrid: Visor Distribuiciones, 1991, p. 419-450. 23
São elas: “a estética a serviço da pedagogia”; “moral e arte”; “a arte e o estudo da realidade”; “a arte
como objetivo em si”; “o passivo e o ativo na vivência estética”; “o sentido biológico da atividade
estética”; “característica psicológica da reação estética”; “a educação da arte, do juízo estético e das
habilidades técnicas”; “o conto de fadas” e “a educação estética e o talento”.
26
constituir-se a partir de elementos tomados da realidade, o autor nos lembra que estes
são reelaborados criativamente e que, portanto, não refletem diretamente a realidade
concreta. Apesar disto, tanto nesta como em outras obras de Vigotski, são notáveis as
constantes referências e usos que o autor faz da literatura para ilustrar e esclarecer as
discussões teóricas que levanta.... O que não deixa de tornar sua escrita ainda mais
envolvente, fato também que nos indica o profundo conhecimento literário de Vigotski,
que recorre a Tolstoi, Puchkin, Tchekhov, dentre muitos outros.
Outro objetivo erroneamente atribuído à estética é o de restringi-la ao sentimento
do agradável, como se todas as emoções suscitadas pela obra de arte se reduzissem ao
sentimento imediato de prazer e alegria. Por fim, o teórico afirma ser um equívoco
enquadrar qualquer vivência estética a um conhecimento moralista, uma vez que numa
história é possível uma diversidade de interpretações e conclusões morais, não só aquela
esperada pelo adulto. Tomando como exemplo textos literários – “A cigarra e a
formiga” e “A cabana do Pai Tomás” -, o autor demonstra o quanto não podemos estar
certos do tipo de efeito moral que a vivência estética provocará na criança, criticando
que ao se enfatizar apenas os preceitos morais de uma obra, perde-se de vista o que ela
tem de artístico.
Vemos que nessa primeira parte do livro, a ênfase de Vigotski é posta, ao
pensarmos a arte na educação, no perigo de tendê-la à certa “pedagogização” ou
“didatização”, que nada mais é do que a instrumentalização da arte para fins outros que
não estéticos. Sobre essas colocações de Vigotski, o mais interessante é perceber e
reconhecer que, por mais que tenham sido escritas há mais de 90 anos, tais
interpretações atribuídas à estética quando à serviço da educação permanecem atuais –
isso para falar quando, de fato, a estética se faz presente na escola.
Contudo, como o teórico explora mais à frente do capítulo, tais objetivos - que
não são inerentes e constitutivos da estética -, se podem existir, teriam sempre um
caráter secundário ou derivado da primordial realização da “ação estética” (VIGOTSKI,
2010, p. 340), que ele apresenta como sendo a “reação estética” (ibidem, p. 339).
Portanto, na concepção do autor, os três fins atribuídos erroneamente à estética na
verdade podem ocorrer de forma indireta, por não haver uma transposição direta de tais
objetivos para a arte, sendo por ele considerado um processo íntimo e interior do
sujeito.
Antes de seguir com as considerações sobre as discussões apresentadas pelo
teórico no capítulo, gostaríamos de nos deter e discutir um pouco mais o termo “reação
27
estética”, usado por Vigotski para se referir à resposta do sujeito diante de algum objeto
estético. Julgamos como importante a necessidade de um aprofundamento teórico e
novas investigações em torno deste conceito, por se tratar de uma terminologia que
circulava na época de Vigotski que, como já dissemos, era marcado pelas influências do
campo da reflexologia e reactologia.
Para entender a extensão dessas influências, vale citar um relato de Alexander
Luria24
(apud VAN DER VEER; VALSINER, 2001), companheiro de Vigotski no
Instituto Psicológico de Moscou, sobre os efeitos da nomeação de Kornilov25
na direção
do Instituto. Luria afirma que
a reforma da psicologia estava acontecendo de duas formas: primeiro,
dando-se novos nomes às coisas, e segundo, mudando a mobília de
lugar. Se a memória não me falha, a percepção era chamada de
recepção de um sinal para reação; memória era retenção com
reprodução de reação; [...] em resumo, inseríamos a palavra “reação”
onde podíamos, acreditando sinceramente que estávamos fazendo algo
importante e sério (LEVITIN, 1982, apud VAN DER VEER;
VALSINER, 2001, p. 142, grifo nosso).
Vê-se, portanto, o quanto as ideias da reactologia e reflexologia eram influentes
naquele momento e como Vigotski, inicialmente, acabou afetado por elas. O profundo
impacto das produções de Kornilov nos escritos do teórico é notável ao observarmos,
por exemplo, sua menção ao termo “reação estética” na obra Psicologia Pedagógica.
No entanto, como comenta Toassa (2013b), o termo “reação” também está presente no
Tomo III das Obras Completas, contendo o espantoso número de 492 ocorrências e no
Tomo II, com 79 ocorrências. A autora argumenta que, diferentemente de outras notas
que são feitas pelos estudiosos da teoria com relação aos conceitos que Vigotski
emprega em seus escritos, “outras [notas] – e reação talvez seja a principal –
desenvolveram-se com a psicologia histórico-cultural e não vem recebendo devida
análise por parte dos comentadores” (TOASSA, 2013b, p. 499). Diante dessa fala,
evidencia-se a relevância de novos estudos que avaliem os usos e qual a abrangência
dessa terminologia na obra de Vigotski.
24
Ver LEVITIN, K. One is not born a personality. Moscou: Progress Publishers, 1982. 25
Em 1907, Kornilov era assistente do então diretor do Instituto de Psicologia Experimental da
Universidade de Moscou, Georgi Chelpanov, até que em 1923 passa a assumir a direção. Ele propôs o
que chamou de “reactologia”, tendo sido um dos pesquisadores que lideraram a busca por uma
“psicologia marxista”. Para saber mais sobre o psicólogo e a reactologia, ver Van der Veer e Valsiner
(2001), capítulo 6.
28
Mas aqui surge a questão basilar: Qual a diferença entre “reflexo” e “reação”?
Ambos os termos se constituem e têm como base o mesmo processo? Segundo Toassa
(2013b), o termo “reação” proporcionou a Vigotski uma “saída estratégica com relação
à estreiteza do conceito de reflexo” (TOASSA, 2013b, p. 499). Na tentativa de
compreender estes conceitos e suas possíveis particularidades e diferenças, consultamos
as referências e informações presentes em um dicionário de psicologia. De acordo com
um deles:
[a noção de reação] é, no entanto, infinitamente menos restritiva que a
noção de reflexo, uma vez que é aplicada a modificações de estados
ou de atividades que podem não estar inscritas na organização
fisiológica pré-instalada, que decorrem da história particular do
sujeito, e cuja complexidade e persistência podem não ter termos de
comparação com a dos reflexos (DORON; PAROT, 2006, p. 645).
Complementa-se esta explicação com uma citação do próprio Vigotski, presente
em outro capítulo de Psicologia Pedagógica, em que diz que
o reflexo, como é fácil de entender a partir de sua descrição, é apenas
um caso particular de reação: resposta do sistema nervoso. Assim, o
reflexo é um conceito estritamente fisiológico, sendo a reação um
conceito amplamente biológico. Não existe reflexo nem nos vegetais,
nem nos animas, nem nos seres dotados de sistema nervoso, mas aqui
temos pleno direito de falar reação [...] O conceito de reflexo nos
enclausura na fisiologia do sistema nervoso e restringe o círculo dos
fenômenos observáveis (VIGOTSKI, 2010, p. 19).
Como coloca Toassa (2013b), mencionando essa diferenciação no texto do
teórico, o conceito de reação marca o caráter de “resposta a estímulo” de certo
movimento (TOASSA, 2013b, p. 499). Outros autores também explicitam este assunto,
como é o caso de Van der Veer e Valsiner (2001), ao afirmarem que
Todo comportamento humano encontra sua origem em reações a
estímulos vindos do mundo exterior [...] essas reações apresentam três
partes: (1) recepção ao estímulo, (2) processamento do estímulo, e (3)
resposta ao estímulo. Embora este esquema fosse semelhante ao
esquema dos reflexos, Vygotsky, seguindo Kornilov, preferia falar em
“reações”. Em sua opinião, reação era o termo mais geral, aplicável
também a animais sem sistema nervoso e a plantas, e devia ser usado
preferencialmente para enfatizar o fato de que seres humanos
partilham a natureza reativa de seu comportamento com formas
primitivas de vida. Na prática, porém, Vygotsky frequentemente
referia-se a “reflexos” e fazia amplo uso da teoria de reflexos
29
condicionados de Pavlov (VAN DER VEER; VALSINER, 2001, p.
63).
Entretanto, tais ideias reactológicas e reflexológicas serão mais tarde
questionadas por Vigotski e “isto se reflete de maneira muito interessante em seu
manuscrito sobre a crise na psicologia” (ibidem, p. 152), que data de 1927. Mas o mais
interessante e curioso é ver que ainda em 1925, Vigotski, recém-convidado a integrar o
Instituto de Psicologia de Moscou, na conferência que deu origem ao texto A
Consciência como problema da psicologia do comportamento26
, já dá indícios de um
rompimento com as ideias de Kornilov. Cole e Scribner (2007) comentam e nos ajudam
a entender este contexto:
Pode-se imaginar, assim, a sensação causada, um ano mais tarde, no
segundo encontro de neuropsicologia, pela palestra de Vigotski [...]
principalmente porque, qualquer que seja o aspecto pelo qual se veja a
abordagem reatológica de Kornilov, não se conseguirá caracterizar de
uma forma clara o papel da consciência na atividade humana, assim
como não se conseguirá atribuir ao conceito de consciência um papel
na ciência psicológica. Vigotski começava, assim, a divergir da
autoridade recentemente estabelecida. Ele não propunha, entretanto,
um retorno à posição advogada por Chelpanov (COLE; SCRIBNER,
2007, p. XXII, grifo nosso).
Em vista destes aspectos e circunstâncias acima ressaltados, para adensar o
debate, poderíamos indagar: Sabemos que Vigotski não voltou a estudar questões
relacionadas à estética; mas se o fizesse, seria o termo “reação estética” aceito da forma
como foi incialmente elaborado e explicitado, uma vez que é fruto dessas marcas e
influências anteriormente comentadas? Evidentemente, trata-se aqui apenas de uma
elucubração sobre o assunto. Contudo, vemos nos próprios escritos de Vigotski pistas
para tal questão.
Mesmo que reação estética seja o conceito central nas obras do teórico sobre
estética, notamos uma coexistência de outros termos no interior dos seus escritos. No
decorrer do capítulo aqui estudado27
, a questão aparece de distintas maneiras: vivência
estética (p. 323; p. 328; p. 335; p. 343), educação estética (p. 323; p. 331; p. 349; p.
352), reação estética (p. 332; p. 339), impressões estéticas (p. 324; p. 342), emoções
estéticas (p. 323; p. 328; p. 333; p. 345), percepção estética (p. 331), percepção artística
26
Ver VIGOTSKI, L.S. La conciencia como problema de la psicología del comportamiento. In:
VIGOTSKI, L.S. Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la Psicología, 2013, p. 39-60. 27
Como dissemos, neste trabalho utilizamos como referência a tradução de Paulo Bezerra, que foi feita
diretamente do russo.
30
(p. 328; p. 338; p. 351) e experiência estética (p. 351). Quais são os sentidos e
significados destes termos? Em que diferem? Em que se aproximam? E, dada toda essa
gama de nomeações, qual que exprime melhor os efeitos e afetos causados pela obra de
arte? Seria, de fato, uma reação? Seria uma experiência? Uma emoção? Em se tratando
de crianças, quais destes termos melhor caracterizaria o impacto e o modo como a obra
de arte nelas repercutem? Se se trata de uma reação, de que natureza ela seria?
Sabemos, por exemplo, a enorme importância que o conceito de “vivência”,
posteriormente elaborado por Vigotski, assume em seus escritos28
. Seria, então,
“vivência” um conceito consistente e profícuo para abordar a estética? É em meio a
estas tantas questões que o presente trabalho se desenvolve, buscando contribuir para o
diálogo e elaborações em torno destes conceitos.
Vale destacar, ainda, que estudos mais recentes na perspectiva histórico-cultural,
como os de Pino (2006; 2007), também trazem para o debate a noção de “sentido
estético”29
que, segundo o autor,
[...] constituiria assim uma experiência tanto do autor da obra de arte
ou artista quanto do receptor ou espectador dessa obra, embora em
níveis diferentes. No primeiro caso, a obra de arte é a projeção externa
ou objetiva da experiência estética subjetiva do artista. Isso quer dizer
que o sentido estético faria parte da própria atividade artística. No
segundo caso, porém, é a experiência vivida na contemplação da obra
de arte que produz o sentimento estético subjetivo, o qual pode se
traduzir na experiência de fruição, acompanhada ou não, de uma
experiência cognitiva da natureza artística dessa obra. De qualquer
forma, independentemente da possibilidade ou não de existir uma
possível objetividade estética [...] o sentido estético é uma experiência
de ordem subjetiva (PINO, 2007, p. 103).
Compreendemos que toda essa indagação e problematização conceitual é devido
à dificuldade e desconforto que nós, leitores e estudiosos de Vigotski, temos em assumir
o conceito de reação estética nos dias de hoje, tendo em vista as influências teóricas que
marcaram os trabalhos iniciais do autor e por conhecer toda a sua produção posterior a
este período. Isto é, em meio a tantas incertezas que permeiam esta discussão, um ponto
é claro: ao ler Vigotski em Psicologia Pedagógica, não conseguimos ignorar tudo o que
o autor escreveu após este livro. Se à época predominava o termo reação, por conta da
28
Para saber mais sobre as elaborações vigotskianas em torno deste conceito, ver Toassa (2009). 29
Entendemos que a ideia de “sentido estético” representa um avanço significativo para as pesquisas
dentro da temática, trazendo grande contribuição para as discussões e análises que aqui serão levantadas.
Entretanto, foge aos limites deste trabalho aprofundar nas densas proposições que Pino (2006; 2007)
desvela e anuncia nestes textos. Essa questão incita novas investigações, a serem discutidas e
aprofundadas posteriormente, em outro trabalho.
31
ambiência intelectual na qual o autor se inseria, marcada pelos estudos da reflexologia e
reactologia, este conceito perde a força no decorrer de seus escritos e, por sua vez,
outros passam a ganhar relevância (como é o caso do conceito de vivência). Por isso,
apesar de tomarmos os textos de 1925 como referência nesta dissertação, na análise que
faremos sobre as crianças e os modos delas participarem e se envolverem com a
literatura, entendemos que não cabe nomear de “reação estética”, o que para nós sugere
uma simples resposta orgânica do indivíduo. No entanto, temos clareza de que tais
questões terminológicas demandariam um trabalho para além do que é possível neste
momento em uma dissertação de mestrado. Nesse sentido, destacamos que
investigações mais aprofundadas sobre estes conceitos são necessárias de serem
realizadas, as quais aqui nos limitamos apenas em anunciá-las.
Contudo, antecipando possíveis questionamentos que possam ser feitos quanto
ao problema de tradução da obra no Brasil, como um primeiro exercício analítico,
dedicamo-nos a mapear em que momentos os diferentes termos destacados acima
aparecem no texto e, a partir disso, comparar as duas versões existentes no português,
para verificar possíveis diferenças conceituais presentes nelas (ANEXO 1).
Como podemos observar no quadro em anexo, de um total de 63 referências a
tais termos (reação, emoção, educação etc.), por 16 vezes a forma de enunciar é
diferente nas duas traduções do capítulo de Psicologia Pedagógica30
. Além disso, como
o quadro também nos indica, tais diferenças entre as traduções ocorrem, principalmente,
com os vocábulos “emoção” e “vivência”, sendo mais comum a tradução de Paulo
Bezerra se utilizar do primeiro, enquanto que Guillermo Blanck do segundo.
Para exemplificar a diferença que isso causa no entendimento do texto,
separamos e confrontamos abaixo um dos trechos em que isso ocorre:
Tradução Martins Fontes Tradução Artmed
“Aqui reside a chave para a tarefa mais
importante da educação estética:
introduzir a educação estética na própria
vida” (VIGOTSKI, 2010, p. 352).
“Aqui está a chave para a tarefa mais
importante da educação estética: inserir
as reações estéticas na própria vida”
(VIGOTSKI, 2003, p. 239).
30
Essas variações estão destacadas com preenchimento em cinza no quadro em anexo.
32
Com base nessas passagens, torna-se forçoso pesquisar os correspondentes
desses termos no texto original em língua russa, já que são conceitos importantes e
fundamentais no livro. Todavia, para o presente trabalho, nos limitamos apenas a
constatar essa necessidade. Empreenderemos nessa procura em outro momento.
Por ora, o que nos interessa é perceber que no contexto desta produção
vigotskiana, muitas vezes, os termos acabam por se sobreporem - apesar de
compreendermos e desconfiarmos de antemão que não são equivalentes. Mesmo em
Psicologia da Arte, Toassa (2014) afirma que
há uma coexistência de palavras inspiradas na ciência dos reflexos e
outros remanescentes da anterior crítica literária vigotskiana. É o que
vemos no caso dos termos “reação estética” (conceito principal do
livro) e “vivência estética”: a despeito de sua aparente oposição, os
termos tem significado idêntico no contexto da obra (TOASSA, 2014,
p. 18).
Devido a essa ambivalência e imprecisão de termos na obra de Vigotski, bem
como a amplidão deste tema no transcorrer da história, consideramos que o esforço por
realizar um melhor refinamento conceitual dos mesmos, pode se configurar em
significativas e importantes contribuições às leituras contemporâneas de Vigotski sobre
estética. Afora a necessidade de um estudo detalhado de caráter mais teórico a ser
realizado dos textos do autor - especialmente os produzidos no período de 1915 e 1925-,
acreditamos que o diálogo com as experiências e leituras proporcionadas pela imersão
no campo empírico, circunscrito no âmbito da psicologia infantil, podem contribuir para
a problematização e reflexão acerca dessas ideias e conceitos. É dentro deste panorama
que esta pesquisa de mestrado que articula literatura, criança e educação, se insere.
Se os argumentos de Vigotski sobre a “pedagogização” e “didatização” da arte
nos levaram a destacar e problematizar os conceitos reflexo/reação utilizados pelo autor
no capítulo “A educação estética”, suas considerações sobre a passividade na recepção
da obra de arte nos levam a problematizar os termos percepção, emoção, vivência e
educação estética, que também são por ele empregados.
Vigotski (2010) faz crítica à visão da psicologia de que a percepção estética é
uma “vivência absolutamente passiva” (VIGOTSKI, 2010, p. 331), como se o
desinteresse e a ausência de uma posição pessoal frente à obra de arte fossem condição
para a reação estética. Como argumenta o teórico, certa passividade e certo desinteresse
33
representam apenas um primeiro momento do ato estético. Num parágrafo em que
podemos acompanhar a elaboração vigotskiana, encontramos:
Não há dúvida de que certa passividade e certo desinteresse são
premissa psicológica obrigatória do ato estético [...] É evidente que
uma obra de arte não é percebida estando o organismo em completa
passividade e não só pelos ouvidos e os olhos mas através de uma
atividade interior sumamente complexa, na qual o contemplar e o
ouvir são apenas o primeiro momento, o primeiro impulso, o impulso
básico (VIGOTSKI, 2010, p. 332, grifo nosso).
Em que consiste, então, tal atividade interior complexa? Mais à frente do texto, o
próprio autor vai assumir que “ainda não sabemos em que consiste essa atividade”
(VIGOTSKI, 2010, p. 333). Sobre esse trecho, é importante evidenciar um aspecto.
Como já comentamos, além da dificuldade terminológica que atravessa a obra, o
problema de tradução tornar-se de fato, como dizem Prestes e Tunes (2012), relevante.
Isto porque, mais uma vez, ao cotejar a versão espanhol da argentina com a brasileira,
essa mesma passagem é traduzida da seguinte forma pela primeira: “ainda não podemos
dizer com exatidão em que consiste [a vivência estética], pois a análise psicológica
ainda não pronunciou a última palavra sobre sua composição” (VIGOTSKI, 2003, p.
230, grifo nosso). Perguntamos: É vivência? É reação? Ou emoção?31
Como o teórico
deixou registrado: essa atividade ainda não está definida.
Na sequência, Vigotski (2010) afirma e explica que a “emoção estética” (p. 333)
se baseia no modelo de uma “reação comum” (p. 333), constituído por três momentos:
uma estimulação, elaboração e resposta. A percepção sensorial, isto é, o trabalho
realizado pelos olhos e ouvidos na apreensão de uma obra de arte, corresponde apenas
ao primeiro momento dessa reação; o momento seguinte consiste na interpretação que o
espectador deve realizar do que está representado, por exemplo, em um quadro - de
atribuir sentido às linhas, formas e cores que lhe são apresentadas -; posteriormente,
realiza-se um trabalho de memorização e associação de pensamento, que segundo o
teórico poderia ser chamado de “síntese criadora secundária”, “porque requer de quem
percebe reunir em um todo e sintetizar os elementos dispersos da totalidade artística”
(VIGOTSKI, 2010, p. 334). Assim, diz Vigotski (2010), citando os psicólogos que
chamam esse processo de percepção de empatia (porém, sem nomeá-los), que os
31
Somente dentro desse subcapítulo “O passivo e o ativo na vivência estética”, na versão brasileira, e “A
passividade e a atividade na vivência estética”, na tradução do espanhol, encontramos uma variedade de
termos: percepção, reação, vivência, sentido, emoção, o que vem a reafirmar a necessidade de
aprofundamento conceitual.
34
sentimentos e o conteúdo que atribuímos a uma obra de arte não estão nela contidos,
mas que na verdade são por nós incorporados. Nota-se que, nesta passagem, podemos
encontrar ecos do diálogo de Vigotski com Theodor Lipps, presentes no texto de
Psicologia da Arte.
Mas o que nos chama atenção nessa parte do livro é uma passagem em que o
autor afirma que “a obra de arte é acessível nem de longe a qualquer um e a percepção
de tal obra é um trabalho difícil e cansativo do psiquismo” (VIGOTSKI, 2010, p. 332).
Diante do estranhamento, gerado sobretudo pela forma como está construída a frase,
recorremos, novamente, a versão traduzida do espanhol. Lá o trecho aparece da seguinte
maneira: “a obra de arte não é acessível, de forma alguma, à percepção de todos, e que a
percepção de uma obra artística representa um trabalho psíquico difícil e árduo”
(VIGOTSKI, 2003, p. 229). Como podemos entender essa afirmativa de Vigotski? Tal
trabalho árduo do psiquismo que envolve a percepção de uma obra de arte, não é
acessível a todos? Só que ele poderá vir a ser? Ou nem todos podem chegar a plena
realização da (re)ação estética?
A estranheza causada por essa afirmação de Vigotski32
, está na possível
interpretação de que, portanto, o fruir da arte seja apenas atributo de alguns. Mas por
que não seria acessível a qualquer um? Diante disso, indagamos: O que não é acessível:
a percepção estética ou a obra de arte em si? Qual a diferença entre esses dois modos de
perguntar? Partindo desses questionamentos, vemos que o problema se encontra, antes
de tudo, em como tornar a percepção estética acessível a todos. Seria, então, essa a
tarefa da educação estética: possibilitar e dar condições para que todos sejam
convidados a perceber/apreender/vivenciar uma obra de arte?
Mais ao final do capítulo, ao tratar das tarefas da educação estética, podemos
entender melhor essa colocação de Vigotski e reconhecer alguns indícios que sustentam
e clarificam tal afirmação. Sem avançar na discussão que será feita no momento
oportuno, gostaríamos apenas de já comentar alguns pontos que tais questões levantam.
Tendo em vista o processo, histórico e cultural, de humanização das funções orgânicas
do homem, podemos afirmar, portanto, que a percepção estética não é algo intuitivo,
que brota de súbito no ser humano; isto é, o trabalho difícil e laborioso do psiquismo na
32
Na sequência do texto, o autor ainda continua: “se o destino de um quadro consistisse apenas em afagar
o nosso olho e o da música em provocar emoções agradáveis ao nosso ouvido, a percepção dessas artes
não apresentaria nenhuma dificuldade e todos, com exceção dos cegos e surdos, estariam igualmente
chamados a perceber essas artes” (VIGOTSKI, 2010, p. 333).
35
percepção da obra de arte não é dado espontaneamente nos indivíduos. Conforme diz
Pino (2007),
o sentido estético e o sentimento do belo e do gosto não podem ser o
resultado de um instinto ou tendência natural que permite captar a
beleza das coisas (dos fenômenos naturais e das produções humanas)
de forma espontânea e natural, mas tem que ser o resultado da
sensibilização aos valores que os homens atribuem às coisas materiais
e imateriais (PINO, 2007, p. 115).
A partir dessa reflexão do autor, podemos entender que a acessibilidade dessa
atividade psíquica não é imediata, direta, instintiva no ser humano: ela é, na verdade,
construída histórica e coletivamente, quando a arte é socialmente compartilhada. Em
outras palavras: por isso educação estética na formação do homem! É preciso educar
esteticamente os sujeitos, o que implica conhecer, apreciar e se apropriar da produção
cultural humana.
Na seção em que busca compreender o “sentido biológico da atividade estética”
(VIGOTSKI, 2010, p. 334), Vigotski pontua que este deve ser procurado “na elucidação
da psicologia da criação do artista e na aproximação entre a percepção e o processo de
criação” (ibidem, p. 336). Temos, portanto, que na visão do autor, processo de
percepção e criação estão intimamente relacionados.
Ao tratar deste assunto, podemos perceber o impacto da teoria de Freud nos
escritos de Vigotski, uma certa alusão ao seu pensamento, quando diz ser a
sublimação33
o que sustenta os atos de criação e, portanto, também os processos de
percepção de uma obra de arte, pois estes, para o autor, nada mais são do que processos
de repetição e recriação do ato criador. Mas o que nos intriga nesta seção é o porquê da
não referência direta a Freud, uma vez que em Psicologia da Arte, obra contemporânea,
ela aparece de maneira explícita. É por que se trata de uma obra orientada para
professores?
Sobre tal referência em Psicologia Pedagógica, Van der Veer e Valsiner (2001),
importantes comentadores e conhecedores da obra vigotskiana, destacam que não há
nela nenhuma indicação de crítica às ideias freudianas - diferente do que irá aparecer
mais tarde em Psicologia da Arte. Os autores comentam que:
33
Isto é, a “transformação de modalidades inferiores de energia psíquica, que não foram utilizadas nem
encontraram vasão na atividade normal do organismo, em modalidades superiores” (VIGOTSKI, 2010, p.
337).
36
tem-se a impressão, portanto, de que Vygotsky, na época – por volta
de 1924 – aceitava de forma não crítica uma grande parte do
pensamento de Freud. Uma outra possibilidade é que ele
simplesmente desejasse apresentar a futuros professores uma visão
geral imparcial das correntes contemporâneas da psicologia e tenha
evitado deliberadamente expressar sua própria avaliação (VAN DER
VEER; VALSINER, 2001, p. 69).
Levando-se em consideração o que foi anteriormente apontado, a respeito do
ecletismo presente nesta obra, bem como o caráter, objetivos e interlocutores nela
circunscritos, fica difícil compreender e definir com precisão qual postura o autor
assume neste livro.
Após as análises até aqui apresentadas, Vigotski passa a discutir o conceito
central em suas elaborações sobre estética: a reação estética - conceito este, como já
mostramos, que nos causa particular interesse de aprofundamento teórico -, dedicando-
se em descrever e comentar sua característica psicológica. Posicionando-se contrário à
teoria do contágio defendida por Tolstoi, segundo a qual, na arte, os homens se
contagiariam pelos sentimentos dos outros homens, e da arte como socialização dos
sentimentos, de Bukhárin, Vigotski lança mão de duas passagens bíblicas para
esclarecer sua posição.
Primeiramente, para ilustrar para o leitor a teoria que contradiz, o autor tece uma
analogia com o milagre do Evangelho34
em que “cinco pães e dois peixes alimentaram
cinco mil pessoas, além de mulheres e crianças, e todos ficaram saciados; as sobras
ainda encheram doze cestos” (VIGOTSKI, 2010, p. 339). Nesse caso, diz Vigotski, o
“milagre” da arte seria apenas uma multiplicação dos sentimentos de um por milhares,
mas que “o sentimento continua sendo a mais comum das emoções de ordem
psicológica e a obra de arte não pode compreender nada que leve além dessa emoção
qualitativamente imensa” (ibidem, p. 339). Por este motivo, recorre à outra passagem da
Bíblia35
, da transformação da água em vinho, para explicar o que acredita ser o sentido
da estética: a arte se utilizar daquilo que está presente no mundo, de algum tema real
concreto, mas que a tarefa do artista - no uso da forma e do estilo - está em justamente
transformar tudo em algo absolutamente novo.
34
De acordo com Blanck (2003), “esse episódio, chamado de Primeira Multiplicação dos Pães, é narrado
em vários livros do Novo Testamento, mas aqui sem dúvida Vigotski se refere ao ‘Evangelho segundo
São Mateus’” (Ver nota 21, p. 246, da tradução e comentários da editora Artmed, feitos por Guillermo
Blanck). 35
Segundo Blanck (2003), agora Vigotski se refere ao episódio bíblico “Bodas de Canaã”, do Evangelho
segundo São João (Ver nota 22, p. 247, da tradução e comentários da editora Artmed, feitos por
Guillermo Blanck).
37
Depois de feitas essas analogias e explicações, Vigotski (2010) define o que
constitui a “reação estética” (p. 339). Para ele, é uma atividade interna complexa
causada pela percepção da obra de arte, que surge “[...] por via indireta e contraditória e
decorre forçosamente da superação de impressões imediatas causadas pelo objeto e pela
arte” (ibidem, p. 344). Na base dessa reação está a catarse, isto é, no caso da tragédia, a
“liberação das paixões despertadas” (ibidem, p. 345) - o que, segundo o autor, vem a ser
essencialmente o objetivo final da arte. Para exemplificar a “transformação” das
emoções, resultado da natureza dialética da emoção estética, no caso da comédia
Vigotski cita a peça O inspetor geral, de Gogol, em que suas personagens abomináveis
e em situações banais acabam por despertar o riso no espectador.
Neste capítulo, talvez em razão dos objetivos e interlocutores específicos do seu
trabalho, notamos que Vigotski não explora nem esclarece mais detidamente os
conceitos-chave que elabora sobre a questão estética (reação estética, catarse...), bem
como parece deixar de lado um conceito importantíssimo que será apresentado em
Psicologia da Arte, a “técnica social dos sentimentos”. No conceito de catarse, por
exemplo, sentimos que o autor não explicita claramente qual a diferença de sua
concepção com aquela formulada por Aristóteles, bem como por Freud, o que não irá
acontecer em Psicologia da Arte. Em virtude disto, reiteremos, faz-se importante e
necessário o diálogo de Psicologia Pedagógica com as demais produções de Vigotski,
até para verificarmos as continuidades e rupturas de uma obra para outra, e observar o
que (e se) muda quando o escrito de Vigotski se dirige a professores.
Na continuação do capítulo, agora sob o título “a educação da arte, do juízo
estético e das habilidades técnicas”, Vigotski dedica-se a escrever sobre a estética
quando transferida para a educação, que, para ele, tem como tarefa “educar a criação
infantil”, “ensinar profissionalmente as crianças as habilidades técnicas da arte” e
“educar nelas o juízo estético, habilidades para perceber e vivenciar obras de arte”
(VIGOTSKI, 2010, p. 346).
Com relação à criação infantil, Vigotski examina e argumenta sobre o desenho
da criança. Segundo o autor, em termos educativos “ele ensina a criança a dominar o
sistema de suas vivências, a vencê-las e superá-las”, ainda que “seu valor estético
autônomo esteja próximo de zero” (ibidem, p. 346). E, nesse sentido, defende a plena
liberdade de criação e expressão infantil, pois o que interessa é o aspecto psicológico do
desenho e não a avaliação e correção de sua forma e linhas.
38
Assim, mesmo que não negue que “na criação infantil encontramos protótipos
absolutamente espontâneos e puros de poesia” (VIGOTSKI, 2010, p. 348), Vigotski
diverge da opinião “exagerada” de Tolstoi, para quem nas composições literárias das
crianças encontrava-se mais verdade poética do que nos maiores nomes da literatura.
Para Vigotski, a criação infantil deve ser vista apenas a partir da sua utilidade
puramente psicológica, pois “embora seja capaz de criar protótipos da mais grandiosa
tensão, ainda assim está condenada definitivamente a permanecer no círculo estreito das
formas mais elementares, primitivas e, no fundo, pobres” (ibidem, p. 348, grifo nosso).
Concordamos com Vigotski em que “os impulsos imediatos e a criação na
infância são mais fortes e nítidos, mas a sua natureza é diferente daquela observada nos
adultos” (ibidem, p. 349, grifo nosso). Entretanto, o seu posicionamento anterior, de
tom qualificativo – são formas elementares, primitivas e pobres – pode e merece ser
questionado. Não vemos a questão numa ordem valorativa e comparativa, de uma forma
ser superior/inferior à outra. O ponto – e o próprio autor, como vimos, afirma isso - é
que a criação infantil difere da criação do adulto, mas apenas isso. Afinal, sabemos que
suas características, intenções e objetivos são outros. No dizer do próprio autor: “a
criança não escreve ou desenha porque nela se revela um futuro criador mas porque
nesse momento isso é necessário para ela e ainda porque em cada um de nós estão
radicadas certas possibilidades criadoras” (VIGOTSKI, 2010, p. 349, grifo nosso)36
.
Como a criação humana não é resultado de uma concepção de natureza mística
de inspiração e posse divina, Vigotski segue apresentando e definindo os outros
objetivos da educação estética, pois para ele tanto o sentimento estético quanto o ensino
profissionalizante dessa ou daquela arte também devem ser objeto de educação.
Sobre o ensino profissionalizante das técnicas de arte, o próprio Vigotski coloca
os perigos que marcam sua proposta, de acabarem por proporcionar apenas experiências
estéreis e maciças às crianças. Nesse sentido, destaca a importância desse ensino estar
ligado aos interesses das crianças e, igualmente, ser pensado na relação e diálogo com
as outras duas tarefas da educação estética, isto é, a própria criação da criança e a
cultura das suas percepções artísticas. Conforme ele diz, esse ensino “[...] deve ser
36
Em Imaginação e criação na infância, Vigotski (2009) retoma essa questão polêmica, quando afirma
que a imaginação da criança é mais pobre que a do adulto devido a maior pobreza de sua experiência,
pois para ele “quanto mais rica a experiência da pessoa, mais material disponível para a imaginação dela”
(VIGOTSKI, 2009, p. 22). Os comentários de Smolka neste trabalho nos ajudam a refletir e avaliar
melhor tanto este quanto o outro posicionamento do autor, pois como sugere “há que se entender esse
argumento, no entanto, com base no princípio da natureza social do desenvolvimento humano [...] A
experiência social faz a diferença”.
39
introduzido em certos limites, reduzido ao mínimo [...] Só é útil aquele ensino da
técnica que vai além dessa técnica e ministra um aprendizado criador: ou de criar ou de
perceber” (VIGOTSKI, 2010, p. 351).
No caso da percepção da obra de arte, temos uma declaração contundente do
teórico, ao julgar ser “impossível penetrar em uma obra de arte até o fim sendo
inteiramente alheio à técnica da sua linguagem” (ibidem, p. 350, grifo nosso). Isto
porque, para Vigotski, a possibilidade de ir até o fim (aqui estamos entendendo-o como
a plena realização da ação estética, ou seja, a catarse37
) no vivenciamento de uma obra
de arte decorre de um trabalho educativo, que dá ao sujeito o “mínimo de conhecimento
técnico da estrutura de qualquer obra” (ibidem, p. 350, grifo nosso) necessário para isso.
Temos, portanto, que na visão do teórico, o conhecimento faz diferença no processo de
percepção e recepção. Mas, poderíamos questionar: e quanto àqueles que não têm
acesso a este conhecimento? Um sujeito que não domina as técnicas, por exemplo, das
artes plásticas, quando em contato com um quadro, tal obra de arte não significaria
nada? E que mínimo de conhecimento é esse necessário? Como quantificá-lo e
qualificá-lo? Ficam, então, essas inquietações para pensarmos.
A explicação do autor para a questão vem na sequência, ao dizer que ao
contrário do que se possa pensar, de que observar, ouvir e sentir prazer seja um trabalho
psíquico simples, na verdade corresponde a algo complexo. Por isso, Vigotski assinala a
necessidade de uma aprendizagem especial na percepção artística, afirmando que é
justamente “aí que está o objetivo principal e o fim da educação geral” (VIGOTSKI,
2010, p. 351, grifo nosso). Baseado nos pressupostos da perspectiva histórico-cultural,
podemos depreender dessa colocação que interpretar e significar uma obra de arte não
se caracteriza por ser um processo natural, inato, biológico, dado no indivíduo desde o
seu nascimento. É, sim, fruto de um aprendizado, isto é, social, histórica e culturalmente
construído. É em razão disto que ser completamente alheio à linguagem de uma obra de
arte compromete o profundo sentido que ela pode causar/gerar/produzir no indivíduo.
Por isso a necessidade de imersão do sujeito nesse tipo de produção humana e o
compromisso firmado pela educação como um todo de se trabalhar na/com a cultura.
Portanto, nas palavras de Vigotski, os caminhos da educação estética, bem como
da educação de forma geral, está em oferecer à criança o contato com a experiência
histórica e socialmente acumulada, em ampliar o seu conhecimento pessoal, que nada
37
Contudo, consideramos que a problematização é válida: O que seria “o fim” de uma obra de arte? E é,
de fato, possível penetrar em uma obra de arte até o fim?
40
mais é do que a “incorporação da criança à experiência estética da sociedade humana:
incorporá-la inteiramente à arte monumental e através dela incluir o psiquismo da
criança naquele trabalho geral e universal que a sociedade humana desenvolveu ao
longo dos milênios” (VIGOTSKI, 2010, p. 351).
Ao encerrar esta importante seção do capítulo, Vigotski ainda nos adverte
quanto ao principal aspecto da educação estética: introduzi-la na própria vida. E, então,
nos presenteia com uma belíssima passagem, a qual não podemos deixar de citá-la na
íntegra:
De coisa rara e fútil a beleza deve transformar-se em uma exigência
do cotidiano. O esforço artístico deve impregnar cada movimento,
cada palavra, cada sorriso da criança. É de Potiebniá a bela afirmação
de que, assim como a eletricidade não existe só onde existe a
tempestade, a poesia também não existe só onde há grandes criações
da arte, mas em toda parte onde soa a palavra do homem. E é essa
poesia de “cada instante” que constitui quase que a tarefa mais
importante da educação estética [...] O que deve servir de regra não é
o adornamento da vida mas a elaboração criadora da realidade, dos
objetos e seus próprios movimentos, que aclara e promove as
vivências cotidianas ao nível das vivências criadoras (VIGOTSKI,
2010, p. 352).
Se pensarmos nas relações de ensino e práticas escolares, esse trecho da obra de
Vigotski é para nós inspirador, a sustentar e dar forças às iniciativas e ações que buscam
e lutam por tornar a beleza, o artístico e o estético, em elementos constitutivos e
integrantes das atividades da vida cotidiana. Podemos, inclusive, concordar com o fato
de que não necessariamente a educação estética se limita a um tempo/espaço específico
e fixo, uma vez que atravessa e perpassa o cotidiano das relações humanas e escolares....
Perto de terminar esse capítulo, Vigotski escreve sobre os contos de fadas e a
polêmica questão, digamos que até hoje não consensual, do talento nas artes. Sobre o
primeiro tópico, apesar de elencar e criticar dois enfoques psicológicos38
com relação
aos contos de fadas e descrever os problemas que tais concepções trazem ao psiquismo
da criança, Vigotski afirma que isto “[...] não significa que o valor estético de uma obra
fantástica esteja sob veto para a criança. Ao contrário, a lei básica da arte exige essa
livre combinação dos elementos da realidade” (VIGOTSKI, 2010, p. 358). Por isso, o
autor explica que para sentir satisfação com uma história infantil, não é preciso que a
38
Primeiramente, de que essas histórias seriam uma forma de explicação do mundo à criança que ainda
não domina a realidade e, também, da necessidade de superação de representações e crenças primitivas,
que outrora acompanharam a cultura humana, com a presença de bruxas, feiticeiros etc. (Ver VIGOTSKI,
2010, p. 353).
41
criança acredite em tudo o que é narrado, pois a realidade na arte encontra-se, apenas,
nas emoções que estão a ela relacionadas.
Assim, Vigotski apresenta a “lei da realidade emocional da fantasia”, também
chamada de “lei da dupla expressão dos sentimentos”, o que irá retomar em Psicologia
da Arte39
e, mais tarde, em Imaginação e Criação na Infância40
. Segundo essa lei,
“independentemente de ser real ou irreal a realidade que nos influencia, é sempre real a
nossa emoção vinculada a essa influência” (VIGOTSKI, 2010, p. 359).
Sem entrar em pormenores, podemos aqui, rapidamente, traçar um diálogo com
esta outra obra do teórico41
. De acordo com Vigotski (2009), é essa lei que esclarece os
efeitos que a obra de arte provoca em seus espectadores, pois mesmo que inventadas por
seus criadores, afeta e impacta seus apreciadores produzindo emoções verdadeiras. Na
obra de arte, a imaginação influencia em nossos sentimentos - sem nos esquecermos do
caráter dinâmico e recíproco desse processo42
-: mesmo que as paixões, alegrias,
tristezas das personagens de um livro sejam invenções da imaginação do seu autor, as
emoções que elas provocam são reais e vividas com intensidade.
Com relação aos contos de fadas, Vigotski (2010) afirma ser nessa lei da fantasia
que o fantástico encontra sua justificação, pois considera que “não desviamos as
crianças um mínimo da realidade quando narramos para elas uma história fantástica,
desde que os sentimentos que surgem nesse momento estejam voltados para a vida”
(VIGOTSKI, 2010, p. 359). Diante disto, conclui dizendo que os contos de fadas podem
ser considerados uma das formas de arte infantil e, com base nos estudos de Groos, um
dos estudiosos clássico do jogo, que é contemporâneo de Vigotski, ressalta ainda a
importância da brincadeira para a educação estética na criança.
Já em seu último ponto de discussão no capítulo, Vigotski escreve sobre a
educação estética e o talento, assunto que também irá retomar, brevemente, em
Imaginação e criação na infância43
. O argumento central que devemos destacar quanto
à questão é de que, para o autor, o talento é uma tarefa da educação, e não condição
anteriormente estabelecida para que ela ocorra. Em vista disto, Vigotski procura mostrar
as dificuldades das teorias e tendências da época com relação ao assunto, defendendo
que tal ideia tem que ser pensada em termos de diminuição ou aumento do potencial
39
Ver VIGOTSKI, L.S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999b, p. 249-272. 40
Ver VIGOTSKI, L.S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009, p. 26-29. 41
Ver nota anterior. 42
Isto é, da mesma forma que a imaginação influencia nos nossos sentimentos, nossos sentimentos
também influenciam na nossa imaginação. 43
Ver VIGOTSKI, L.S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009, p. 51.
42
criador do ser humano. Isto é, para o teórico, todos os indivíduos têm talento. Ele,
portanto, inverte a lógica: o talento não é natural e condição anteriormente estabelecida,
mas diz respeito a existência de potencialidades criadoras no ser humano. O problema
que surge daí, então, é o porquê de haver diminuição desse talento no homem. Esta
afirmação altera todo um modo de se pensar sobre o assunto, quando, principalmente no
senso comum, muitos ainda defendem ser a capacidade de criação reflexo de um dom
natural do indivíduo.
Como vimos até aqui, muitos são os temas que Vigotski aborda neste instigante
capítulo, a responder muitas das perguntas registradas no início deste trabalho, bem
como a abrir outras tantas ao seu leitor. Para concluir as discussões realizadas nesta
primeira parte da dissertação, sintetizo alguns aspectos que tomamos como essenciais
para a leitura e compreensão do capítulo sobre educação estética.
Primeiramente, é importante não perder de vista qual o público-alvo do texto
Psicologia Pedagógica. Como anunciamos logo no início, o livro dirigia-se a
professores em formação; isto posto, temos ainda que levar em conta que a obra estava
vinculada a um projeto mais amplo de transformação política e social, pautada nos
ideais revolucionários. Outro ponto importante que se coloca na leitura é o fato de a
fazermos levando em consideração toda a trajetória intelectual e conceitual do autor,
isto é, seguindo o percurso teórico por ele traçado desde a sua primeira produção até os
seus últimos trabalhos. Por isso, como já foi apontado, indagamo-nos quanto à
abrangência e pertinência do termo reação estética nos estudos contemporâneos sobre
educação estética. Por último, vale relembrar que esta obra é, por vezes, “eclética”
(TOASSA, 2013b, p. 503) e que, por este motivo, impera a necessidade de colocá-la em
diálogo com outros escritos de Vigotski, que possam nos ajudar esclarecer algumas
passagens.
Entretanto, queremos chamar atenção para as condições de vida do autor na
época de elaboração de Psicologia Pedagógica. Assim, ao invés de evidenciar a
imaturidade teórica de tal obra, queremos destacar o quanto Vigotski, ainda jovem, já
tinha leituras dos estudos sobre linguística, filosofia, psicologia, reflexologia, entre
outros. Nesse sentido, o que o livro mostra é justamente o trabalho de apropriação
desses escritos pelo teórico. Além disso, também devemos ressaltar que essa é a
produção de um jovem que se vê com tuberculose, na iminência da morte a cada passo,
vivendo uma revolução e, mesmo assim, lendo tudo o que podia.
43
Essas observações em nada diminuem o vigor e importância deste capítulo que
integra Psicologia Pedagógica, pois as reflexões, discussões e comentários aqui
realizados, na verdade, apontam para caminhos valiosos de análises, qualificando-o
como leitura obrigatória aos pesquisadores e estudiosos desta temática e, porque não,
aos que se interessam pela obra de Vigotski, de maneira geral.
44
SEGUNDA PARTE
Capítulo 2 - A realização do trabalho empírico e as in(ter)venções na prática
Não se nasce pesquisador; vem-se a sê-lo, a merecê-lo, a receber-lhe o selo, na
coerência teórico-metodológica, na consistência ética, na consciência estética, no
espelho da esfera em que ser pesquisador faz, e cria, sentido.
(SOBRAL, 2005, p. 118)
O presente estudo, de caráter qualitativo, insere-se no âmbito de pesquisas em
Psicologia e Educação, assumindo como ancoragem teórico-metodológica a abordagem
histórico-cultural. Entendemos que, também com relação ao método, os escritos de
Vigotski trazem importantes contribuições, sendo este teórico considerado por seus
estudiosos como, antes de tudo, um metodólogo (FREITAS, 2002; 2010): ele propôs o
método que denominou genético-experimental e desenvolveu o chamado método
funcional da estimulação dupla, interessado no surgimento e no desenvolvimento das
novas formas de atividades.
Como comenta Smolka (2012a), o modo de Vigotski conceber o método “escapa
da rigidez, não do rigor, e aponta para uma instigante flexibilidade” (p. 52). Assim,
assumir como fundamento metodológico a perspectiva histórico-cultural implicou
compreender a pesquisa em questão como um processo em movimento, ou seja, em que
objeto e método foram se configurando no percurso da pesquisa (VIGOTSKI, 1999c).
Por isso, este modo de fazer pesquisa foi marcado por contínuas retomadas e
questionamentos na dinâmica da própria investigação em andamento, pois
[...] se trata de um projeto de atuação na escola e o trabalho de
investigação, conceituação e teorização é feito na dinâmica das
relações, nas negociações cotidianas, nas avaliações do processo, nas
constantes retomadas e ponderações. É a realização da pesquisa “por
um fio”, num desdobrar-se contínuo de questões e elaborações que
vão emergindo no dia-a-dia (SMOLKA, 2012a, p. 52).
Além desses aspectos, como pontua Freitas (2010, p. 13), o fazer pesquisa na
perspectiva histórico-cultural consiste não apenas em descrever a realidade, mas
também em explica-la, realizando um movimento de intervenção. Entretanto, como a
autora coloca, ao contrário do que essa palavra pode sugerir e remeter - uma imposição,
interferência autoritária, unilateral –, ela compreende a mudança no processo, a
45
transformação, a ressignificação, ou seja, é dialógica e coletiva. Por este motivo, a
presente dissertação de mestrado prefere falar em in(ter)venções, isto é, por meio de um
jogo com a palavra, a intenção é pôr em evidência a dimensão criativa da proposta de
trabalho.
Tendo tudo isso em vista, este capítulo, que abre a segunda parte do trabalho, se
propõe a descrever as escolhas teóricas, éticas e estéticas que permearam a pesquisa
empírica. Nesse sentido, convém de antemão ressaltar que tal eixo empírico não tem a
intenção de ver uma “aplicabilidade” da teoria e conceitos de Vigotski, mas
compreender e problematizar os seus escritos a partir do material registrado. Assim,
trataremos aqui de apontar em quais bases metodológicas nos inspiramos e apoiamos
para o desenvolvimento do trabalho de campo, enfatizando: o percurso do trabalho de
investigação e in(ter)venção realizada no cotidiano da escola, os procedimentos de
registro adotados e o processo de construção dos dados da pesquisa.
2.1. A pesquisa de campo: um breve panorama do seu percurso
Quarenta e dois dias, organizados em quatro meses de trabalho. Trinta e sete
encontros vídeo-gravados, compondo um amplo acervo com mais de cinquenta horas de
filmagens. Vinte e três rodas de leitura. Páginas e mais páginas de um caderno de
campo, a contar as diferentes experiências construídas e compartilhadas com os sujeitos
da pesquisa e a condensar as primeiras reflexões, questionamentos e hipóteses daquilo
que foi observado.
Claro que apresentar o trabalho de campo desenvolvido em termos numéricos,
destacando meramente o seu aspecto quantitativo, não é suficiente para dar ao leitor a
dimensão e a intensidade de tudo o que foi vivido. Nesse sentido, cabe aqui, então,
rememorar algumas imagens e situações, revisitar os registros escritos e vídeo-gravados
para tentar encontrar as palavras que possam qualificar e significar toda a experiência
que esse período pesquisando na/a escola proporcionou.
Para isso, torna-se necessário certo distanciamento da pesquisadora.
Distanciamento que, como nos lembra André (1995), “não é sinônimo de neutralidade”
(p. 48). Pretende-se, neste movimento, colocar em perspectiva o que foi vivenciado,
lançar um olhar investigativo sobre os acontecimentos, escolhas e percursos traçados no
transcorrer da pesquisa. Portanto, busca-se colocar em evidência e descrever
analiticamente todo o processo que marcou a dimensão empírica do trabalho, para dar
46
vista ao cenário, atores e cenas que compuseram a pesquisa de campo e as formas pelas
quais ela se desenvolveu e concretizou, o que dará sustentação às questões que serão
abordadas e analisadas posteriormente - afinal todos os dados da realidade são
considerados importantes, pois um aspecto que supostamente num primeiro momento é
tido como trivial, pode ser essencial para a melhor compreensão do problema a ser
estudado (LUDKE; ANDRÉ, 1986, p. 12).
O trabalho empírico foi realizado em uma escola44
da Rede Municipal de
Campinas-SP, localizada na região norte do município, nos limites com a cidade de
Sumaré-SP, acompanhando o trabalho desenvolvido por uma professora em uma sala de
primeiro ano, que continha ao todo vinte e seis alunos matriculados, com idade entre 6 e
7 anos. De acordo com a descrição realizada por Faissal (2013) sobre o bairro e perfil
social das famílias residentes, temos que:
“Situado do lado da rodovia oposto ao centro da cidade, esse bairro é cercado por
indústrias, depósitos, pelo entreposto das Centrais de Abastecimento de Campinas S.A.
(Ceasa) e por pequenas áreas de cultivo agrícola. A população economicamente ativa da
região é composta, em sua maioria, por grupos sociais empobrecidos, mas ainda assim
divididos em duas categorias, segundo o PPP/2008. Essas categorias compreendem um
grupo com uma situação econômica mais confortável, composto por pequenos
comerciantes locais, policiais e secretárias, e outro menos favorecido, composto por
trabalhadores braçais: trabalhadores rurais, operários, serventes, entre outros. Nessa
comunidade, não distante de outras, encontramos ainda um número significativo de
famílias que vivem de benefícios sociais, como o Bolsa Família, o Bolsa Escola e o
Benefício de Prestação Continuada (BPC), e outras que vivem de atividades informais”
(FAISSAL, 2013, p. 139).
Através da ficha de matrícula das crianças45
, foi possível obter algumas
informações adicionais que ajudaram na caracterização do grupo. De acordo com os
dados fornecidos pelas famílias no ato de inscrição na escola, do total de vinte e seis
crianças matriculadas no primeiro ano: i) apenas uma nasceu em uma cidade fora do
estado de São Paulo (Maranhão); ii) oito participavam do programa social Bolsa
Família46
; iii) vinte e uma fizeram Educação Infantil, a maioria em instituições
44
Vale ressaltar que tal escolha se deu pela história de relações que o Grupo de Pesquisa Pensamento e
Linguagem (GPPL) tem com a instituição. De acordo com Smolka (2012a), desde 1985 diversas formas
de trabalho e investigação, a nível de mestrado e doutorado, são realizadas nessa escola. 45
Dos 26 alunos matriculados no primeiro ano, foram consultadas 25 fichas. Uma das fichas não foi
encontrada pela pesquisadora, tendo em vista a transferência de uma das crianças para outra escola. 46
Como foi reforçado pela secretária da escola, essas informações correspondem à situação destas
crianças e famílias no momento da matrícula na escola, a qual é realizada no início do ano letivo. Por
isso, como a funcionária ressalta, é possível que as informações tenham sido alteradas ao longo do ano.
47
localizadas no mesmo bairro que a escola atual; iv) onze foram declaradas como
pertencentes à etnia/cor branca, duas à preta e doze à parda.
Além disso, algumas falas das crianças no decorrer do campo deixaram
transparecer aspectos relativos às condições de vida desses alunos, no que diz respeito
às questões sociais e econômicas de suas famílias. Eram comuns comentários das
crianças sobre o pai que estava na prisão; a família que precisava de dinheiro, porque o
pai estava desempregado; o pai que bebia muito; a chuva forte que alagava as “cabanas”
47.
O primeiro movimento de imersão no campo empírico foi a apresentação da
proposta de trabalho à coordenação pedagógica da escola, alguns meses antes do início
da pesquisa. Nesse encontro, conversou-se sobre as possíveis formas de atuação da
pesquisadora na sala de aula para que, então, o próprio orientador pedagógico fizesse o
convite à professora. Somente após esse contato inicial é que marcamos uma conversa
com a professora da turma48
, para que os objetivos implicados no trabalho e as
decorrentes dúvidas pudessem ser esclarecidos. Nesse dia, a professora relatou que
quando o orientador comentou sobre o projeto, ela disse “É literatura? Pode mandar
vir!”, justificando que tais projetos ajudam no trabalho do professor por ser algo que
deve estar presente em sua prática pedagógica. Tal fala é interessante de ser analisada,
pois indica o reconhecimento da professora da importância da literatura na formação e
processo de escolarização das crianças - e já anunciava uma possível abertura para a
realização/acompanhamento desse trabalho.
A entrada da pesquisadora na sala de aula, portanto, se deu após esses trâmites e
contatos na escola. Foi em 31 de julho de 2015 que estive pela primeira vez na sala de
aula. Sem saber ao certo o que dizer, preocupada em explicar quem eu era e o porquê de
estar ali, logo fui surpreendida pelas crianças quando, assim que entrei na classe e a
professora começou a me apresentar, algumas rapidamente levantaram-se para me
acolher num caloroso abraço. E, depois disso, demonstrações de afeto se tornaram mais
frequentes e a nossa relação muito mais próxima. Enfim, estava de volta à escola, em
uma sala de primeiro ano.
47
“Cabana” era o modo como muitas crianças da sala chamavam suas casas, que ficava em uma área
ocupada pelas suas famílias, num bairro próximo à escola. 48
Um breve perfil da professora acompanhada na pesquisa: ela iniciou seu trabalho com educação na
função de recreacionista (monitora) em uma creche da Prefeitura Municipal de Sumaré, nos anos 2000.
Nesse período, conforme ela relata, cursou o magistério; em 2005 deu início ao seu trabalho como
professora em uma turma da antiga 1ª série, também na cidade de Sumaré. Formada em pedagogia desde
2009, ela chegou a começar uma pós-graduação em artes, porém, devido à demanda do trabalho na escola
da Prefeitura Municipal de Campinas, não conseguiu conclui-la.
48
Após carinhosa recepção, dirigi-me para o fundo da sala, acomodando-me em
uma das carteiras que estava vazia – que acabou se tornando o meu lugar durante toda a
pesquisa. Olhares curiosos direcionavam-se para mim. Meninas e meninos (tão
pequenos(as), que os pés mal alcançavam o chão quando sentados(as)) cheios de
perguntas. Perguntas, as quais, eu também me fazia. Embora já tenha sido aluna,
estagiária na época da graduação, agora ocupava esse espaço como pesquisadora: Mas,
então, o que muda? O que e para quem olhar? O que se torna relevante? Como capturar
as con(tra)dições do cotidiano escolar?
Inicialmente, a intenção era de nas primeiras semanas conhecer a ambiência na
qual estava me inserindo e me aproximar da professora e dos alunos. Por esse motivo,
durante quase um mês fiquei apenas acompanhando as atividades desenvolvidas pela
professora, auxiliando alguns alunos e realizando algumas tarefas, quando solicitadas.
Entretanto, nesse momento já orientava o meu olhar para observar como a literatura,
tomada como obra de arte, estava presente na sala do primeiro ano e como as crianças
respondiam à leitura. As primeiras impressões com relação à leitura de obras literárias
foram de que ela não estava sendo cotidianamente vivenciada pelas crianças. Nos dias
em que estava presente na escola, apenas acompanhando o trabalho em sala de aula, a
professora só fez a leitura de lendas do folclore, possivelmente com textos retirados da
internet, com as crianças sentadas em suas carteiras. Era essa uma situação isolada ou
constituía o modo de trabalho da professora? Tentava ser cuidadosa em tirar conclusões
precipitadas.
Convém compartilhar uma dificuldade que encontrei assim que comecei a
realizar o trabalho de campo - e que provavelmente outros pesquisadores tenham
enfrentado -: a confusão da figura do pesquisador com a do estagiário. No meu caso,
isso ficava evidente na fala da professora, que se referiu à minha pessoa como estagiária
por diversas vezes. Na medida em que isso acontecia, me via cada vez mais
desempenhando tal tarefa. Sem saber como lidar com o problema (será que era mesmo
um problema?), questionava: Afinal, o que é ser pesquisador na escola? Qual a
posição/lugar do pesquisador na dinâmica da sala de aula? Longe de querer responder à
tais perguntas, acredito que a reflexão seja válida.
Aquela imagem de pesquisador distante, apenas observador, sempre com o seu
caderno de campo em mãos, tomando nota de tudo o que acontece, registrando cada
movimento com a câmera filmadora, é insuficiente para o que de fato ocorre na
realidade escolar. Do que vivi, posso dizer que as imagens são outras. Para exemplificar
49
algumas: pesquisador, quase que na maior parte do tempo em pé, andando pela sala e
auxiliando os alunos; uma, duas, três (e, às vezes, até mais do que isso) crianças
rodeando a sua mesa, com caderno em mãos pedindo ajuda, pegando um lápis,
borracha, caneta, seja lá o que tenha dentro do estojo, emprestado; meninos e meninas
contando um pouco de suas vidas, sobre seus pais, suas famílias... Professora pedindo
para fazer isso, colar ou distribuir aquilo, pegar algo aqui, entregar algo ali,
compartilhando situações do cotidiano, conversando sobre sua prática e dificuldades
enfrentadas pela profissão. Portanto, não era só observar. Também registrar, participar,
integrar, ajudar, aprender, escutar e trocar. Isto é, assumir a postura do pesquisador
participante (EZPELETA; ROCKWELL, 1989).
Só que nesse modo de atuação, frequentemente, a câmera ficava esquecida,
gravando a rotina em um único enquadramento; o caderno de campo da pesquisadora
permanecia em branco, tentando, quando possível, anotar ao menos alguns tópicos, para
serem descritos assim que terminasse o dia na escola. Se no começo fiquei preocupada,
com medo de que tais atribuições prejudicassem os objetivos e foco da pesquisa, depois
vi que, na verdade, justamente o contrário acontecia: foram essas ações e modos de
participação que foram fundamentais para a realização e desenvolvimento da pesquisa.
Nesse sentido, podemos dizer que em termos metodológicos esta pesquisa se
aproxima daquilo que preferimos chamar de inspiração49
etnográfica. Como as leituras
dos escritos de Geertz (2008) instigaram o diálogo e contribuíram para sustentar
metodologicamente o trabalho, convém rapidamente suspender a descrição do campo
para ressaltar alguns aspectos que julgamos importantes nos estudos deste antropólogo
norte-americano.
Em A interpretação da cultura, o autor defende a perspectiva de uma
antropologia interpretativa, que - dentre outros aspectos - se caracteriza pela construção
de uma “descrição densa” (GEERTZ, 2008, p. 4) para apreender a realidade e cultura
em que o etnógrafo está imerso. Tal como ele observa, “fazer etnografia é como tentar
ler [...] um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos [...]” (GEERTZ, 2008, p. 7), cuja leitura de tais
“textos” é feita “por sobre os ombros daqueles a quem eles pertencem” (ibidem, p. 212).
Assim, se pensarmos no trabalho de investigação na escola, como vimos apontando até
49
Isto porque, como esclarece André (1995), enquanto que o interesse dos etnógrafos é a descrição da
cultura, a preocupação dos estudiosos da educação é com o processo educativo. Por isso, é feita uma
adaptação da etnografia, em que certos requisitos desse enfoque não são, e nem precisam ser, cumpridos
pelos investigadores das questões educacionais.
50
aqui, o livro de Geertz (2008) dá outra dimensão e significado às ações deste
pesquisador que vai a campo.
Ao descrever a pesquisa realizada em uma aldeia balinesa, Geertz (2008) nos
mostra como uma pequena atitude que ele e sua mulher tiveram durante uma briga de
galo foi o ponto de reviravolta na relação dos pesquisadores com a comunidade
pesquisada. Como o autor relata, nos primeiros dez dias da chegada dos antropólogos à
Bali, os moradores faziam como se os pesquisadores não estivessem entre eles, sendo
completamente ignorados. Contudo, depois de participar da rinha de galo que foi
organizada pela aldeia e fugir por puro instinto – ou “covardia”, conforme ele diz
(GEERTZ, 2008, p. 187) -, junto com os moradores, da polícia que havia chegado no
local, Geertz nos conta como ele e sua esposa deixaram de ser invisíveis e viraram o
centro das atenções, passando as pessoas a serem alegres e simpáticas com eles. Isto
porque, como o autor narra,
[...] todos eles estavam muito satisfeitos e até mesmo surpresos porque
nós simplesmente não “apresentamos nossos papéis” [...], não
afirmando nossa condição de Visitantes Distintos, e preferimos
demonstrar nossa solidariedade para com os que eram agora nossos
co-aldeões (GEERTZ, 2008, p. 187).
Diante deste trecho, podemos interpretar que a corrida dos pesquisadores,
assustados pela chegada dos policiais, foi significada pelos balineses como um sendo
gesto de pertencimento àquela realidade. Como o próprio Geertz (2008) afirma, foi
somente após tal situação que a pesquisa se tornou possível para os antropólogos. Mas,
então, o que esse relato do autor sobre a experiência na aldeia balinesa instiga em
termos de diálogos com o trabalho do pesquisador que está imerso na sala de aula?
Assim como em certas comunidades, também na escola, muitas vezes, para que
se estabeleça uma relação de confiança entre pesquisador e pesquisados
(professores/gestores/crianças), é preciso que esse “visitante distinto” mostre certos
gestos de pertencimento àquele contexto específico. Como foi descrito no início da
minha narrativa sobre o trabalho de campo, somente ao término da pesquisa pude
perceber que justamente as atitudes de querer participar e ajudar o grupo em atividades
que não estavam diretamente ligadas aos objetivos da investigação é que foram
essenciais para que ela fosse realizada. Portanto, tal como a fuga dos antropólogos, o
aceite por participar das propostas do dia a dia da escola tornou-se um gesto
51
significativo para os sujeitos desse grupo, o que permitiu o desenvolvimento do
trabalho.
Pelo o que foi ressaltado acima, concluímos que os estudos na área da etnografia
- e aqui ganham destaque as exposições de Geertz (2008) - contribuem para o fazer
investigativo nas escolas porque podem ajudar o pesquisador a entender o seu campo de
pesquisa, as formas de entrada na dimensão empírica, o modo dele participar, de como
estabelecer as relações com os sujeitos ali presentes (DAINEZ, 2014), bem como fazê-
lo perceber que o seu ofício envolve não apenas a descrição, mas também a
interpretação e compreensão de certa realidade. Feita essa breve fundamentação
metodológica, podemos retornar às descrições do percurso empírico.
Foi a convivência prolongada com o grupo, bem como as diferentes formas de
participação e integração que foram se construindo, o que permitiu uma aproximação e
parceria mais intensa. Tal afirmação se evidencia ao percorrer a trajetória da pesquisa,
ao analisar a forma como ela começou e se encerrou. Inicialmente, a proposta era a
realização de rodas de leitura uma vez por semana, sendo acordado com a professora da
turma que o melhor momento seria de sexta-feira, pois nesse dia, após o intervalo, as
crianças teriam boa parte do período livre para brincarem. Entretanto, como gradativa e
naturalmente a atuação da pesquisadora foi ganhando espaço, passando a integrar o
plano de trabalho da professora, aquilo que de início estava restrito a uma vez por
semana passou então a se intensificar. Assim, quase sem perceber, as idas à escola
passaram a ser duas, três e até mesmo quatro vezes em algumas semanas. Por isso, no
decorrer do semestre, seja no começo ou final da aula - de acordo com o que era
anteriormente combinado com a professora - pude organizar rodas de leitura mais de
uma vez por semana. Diferente do que havia sido planejado, as in(ter)venções não se
limitaram às sextas-feiras.
Acredito que essas mudanças, que aconteceram na medida em que o tempo de
convívio com o grupo ia aumentando, tiveram como mobilizador um “miniprojeto” que
desenvolvi com a professora em meados de setembro. Não chegamos a nomeá-lo, mas,
a princípio, a ideia era apenas a de apresentar às crianças diferentes versões do clássico
conto “Chapeuzinho Vermelho”, o que foi ganhando outros contornos, posteriormente.
O convite partiu da própria professora, que solicitou à pesquisadora que
procurasse alguns livros para serem lidos às crianças. Foram selecionados diferentes
livros: desde “Chapeuzinho Vermelho”, de Charles Perrault, passando pelos Irmãos
Grimm, a produções mais recentes, como “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico Buarque, e
52
“Chapeuzinho Redondo”, de Geoffray de Pennart – isso para citar apenas algumas
obras. Para tanto, tivemos uma inversão de papéis, ou uma ampliação de nossas formas
de participação na proposta: ao invés da pesquisadora realizar a leitura, como até então
vinha sendo feito, a professora da sala assumiu o papel de leitora em algumas rodas50
.
Os principais desdobramentos dessa proposta de trabalho foi uma contação de
história, feita pela pesquisadora de “Chapeuzinho Amarelo”, e a produção de uma
história coletiva pelas crianças. Primeiramente, irei comentar sobre a proposta de
contação de história.
Diferentemente das outras rodas, em que a pesquisadora fazia leitura em voz
alta, com o livro em mãos, no dia 25 de setembro a proposta foi de contar a história, se
utilizando de um grande fantoche de espuma em formato de lobo e outros objetos,
durante a narrativa. Para essa história procurou-se respeitar o texto original, por conta
da sua musicalidade e rimas. As formas de contar histórias são diversas51
, podendo o
contador se utilizar de diferentes técnicas, desde a simples narrativa, sem o uso de
adereços, apenas com a voz e expressões do contador, como o uso de fantoche,
flanelógrafo etc.
Com esse trabalho, pela primeira vez, a professora foi convidada a registrar o
momento com a câmera, o que passou a ser comum dali em diante, compondo as
diferentes formas de filmagens que constituíram a pesquisa: pesquisadora com a câmera
em mãos, professora narrando; pesquisadora narrando, professora filmando ou, então, a
câmera no tripé, registrando.
A expectativa era que a forma de participação das crianças fosse mais intensa na
roda de contação de história, por conta dos diferentes recursos que estavam sendo
apresentados. De fato, grande parte das crianças se envolveram com a narrativa, mas
ainda assim é inquietante assistir ao vídeo e notar que duas crianças estavam
completamente alheias ao que estava sendo falado. Não irei aqui problematizar tal
situação, já que esta questão será objeto de análise posteriormente.
Ao final da contação, a professora se mostrou tão encantada com o que foi
apresentado, que saiu compartilhando com as professoras das outras salas o que tinha
acontecido no dia. Diante disso, ficou combinado da pesquisadora realizar a mesma
contação de história para a outra turma do primeiro ano, bem como para as duas salas
50
Um trecho desse dia será transcrito e analisado posteriormente. 51
Para quem se interessar, Souza et al. (2015) organizaram um livro bem didático, apresentando
diferentes técnicas de contação de histórias.
53
do segundo ano. Foi interessante a repercussão desse trabalho na escola, ficando a
pesquisadora, por fim, conhecida como a “moça do baú”52
pelas outras crianças.
Com relação à produção coletiva do livro, vale a pena descrever o seu processo
de elaboração. Como foi destacado, o grande “disparador” para essa atividade foi as
diferentes versões do conto infantil apresentado às crianças. Logo depois desse trabalho,
pesquisadora e professora pensaram juntas formas de criar com os alunos uma nova
versão de Chapeuzinho Vermelho.
No total foram cinco dias (não consecutivos) destinados à produção: dois para a
construção do texto; um para que, em duplas, as crianças ilustrassem os trechos da
história; outro para que as crianças criassem opções de títulos e, em seguida, fizessem
votação para escolher o preferido da turma; por fim, mais um dia para que os alunos
ajudassem a criar o texto de apresentação dos autores/ilustradores que teria ao final do
livro. Todo esse processo foi registrado em vídeo.
Antes de iniciar a construção coletiva do texto, a professora retomou com os
alunos o enredo de cada história que foi lida. Para minha surpresa, muitas crianças se
lembraram com detalhes das histórias, mesmo depois de várias semanas em que foi feita
a leitura. Após essa conversa, as crianças foram oralmente construindo o enredo da nova
versão que seria inventada por elas, com a professora sempre mediando o processo de
criação, seja com questionamentos, sugestões, como também tentando envolver todos os
alunos na proposta. Esse é um aspecto que merece relevância, pois durante toda
atividade a professora ouviu as ideias de cada um dos alunos, tentava articular uma com
a outra, evitando que alguma ficasse de fora; às vezes, quando a sugestão se destoava
um pouco do todo que já havia sido construído, a professora, junto com a criança,
pensava em outras possibilidades.
O produto final foi entregue em formato de livro, para cada uma das crianças no
dia da “Mostra Cultural”, evento organizado pela escola ao final do ano letivo, em que
professores e alunos apresentam aos pais e familiares os trabalhos e atividades
produzidas durante o ano. No entanto, na semana anterior à Mostra, a pesquisadora
levou o livro para a sala de aula, para observar qual seria a reação das crianças diante do
trabalho pronto. Foi lindo ver os olhares de encantamento das crianças, que apontavam
para os seus desenhos impressos nas folhas totalmente deslumbradas.
52
Isso porque, como irei descrever ao tratar da organização das rodas de leitura, os livros ou adereços que
seriam usados para a história eram sempre retirados de um baú construído pela pesquisadora. Um dia,
quando fui buscar algo na outra sala do primeiro ano, um menino disse: “Você que é a moça do baú? ”.
54
Além dessas pequenas in(ter)venções realizadas na rotina da turma, no mês de
novembro, depois de um tempo conversando e acertando os detalhes com a equipe
gestora, o pátio da escola deu lugar a uma apresentação de teatro com uma dupla
formada por uma atriz e um músico, que contaram e encantaram com a história “A festa
dos cães”. O que não estava previsto até o dia da peça e que felizmente aconteceu, foi
da atividade cultural não se limitar aos primeiros e segundos anos e envolver também as
outras turmas do período da manhã. Assim, nos outros dias da mesma semana, aos
terceiros foi contada a mesma história, enquanto que os quartos e quintos anos tiveram a
oportunidade de conhecer o tal do “Boi Bumba”.
Tanto a contação de história quanto a produção do livro e a peça de teatro não
foram decisões definidas antes da imersão no campo empírico. Na realidade, foram
construídas no fazer da pesquisa, no seu desenrolar, a partir das relações com os
envolvidos e das condições que se apresentavam na sala de aula. Isto é, apesar do
trabalho de campo exigir um preparo e antecipação de algumas ações, dada à
complexidade do cotidiano escolar, os passos da pesquisa e as formas de atuação do
pesquisador são decididas quando se está in loco, com os sujeitos da pesquisa.
Tendo em vista o que até aqui foi apresentado, a partir da visão panorâmica de
todo o percurso da pesquisa, passo agora a descrever mais detidamente como se
constituíram as rodas de leitura, visto que as diferentes formas de participação e
envolvimento com a obra literária e os modos pelos quais as crianças respondem à
literatura, serão foco desse trabalho.
Um primeiro aspecto a ser ressaltado diz respeito ao planejamento e preparo que
tais in(ter)venções implicaram. A realização de rodas de leitura pressupõe, a quem
quiser se empreender nessa tarefa, todo um estudo anterior. A começar pela própria
escolha do livro. Foi um trabalho que exigiu tempo e dedicação por parte da
pesquisadora. Não era simplesmente chegar na escola, ler e pronto. De acordo com
Silva (2015),
para cada história a ser contada é necessário um planejamento
anterior. É preciso que haja uma identificação do narrador com o texto
a ser narrado e isso só é possível a partir do estudo. O estudo prévio
do texto, bem como a elaboração de um detalhado planejamento
possibilitará a escolha acertada da técnica a ser utilizada, a seleção
correta dos acessórios que serão necessários, a definição das melhores
ênfases e entonações a serem dadas ao texto (SILVA, 2015, p. 22).
55
Feito esse preparo, com um baú posicionado, tudo começava assim: “1, 2, 3...
Qual a história dessa vez?” 53
, o que com o tempo era entoado e puxado, em alto e bom
tom, pelo coro das próprias crianças. Mas tal pergunta e decorrente convite para se
aventurar nas histórias infantis exigiam outro modo de se pensar aquele espaço. Por
esse motivo, antes de começar a leitura, afastavam-se as cadeiras, abria-se um grande
espaço no centro da sala e as crianças sentavam no chão, acomodadas em um tapete
produzido por elas. Reconfigurava-se toda a arquitetura da sala. Nessa pequena
mudança, rompia-se com um padrão escolar, possibilitando e promovendo uma
verdadeira entrega àquele momento.
Afinal, ouvir histórias com todas as crianças ao seu modo no chão, sejam
sentadas, deitadas ou encostadas no amigo, pressupõe um outro envolvimento se
comparado com as crianças permanecidas nas carteiras, com os amigos afastados e
cadernos e lápis em mãos. Isto porque, como era comum nas rodas de leitura, as
crianças gostam de ver e ouvir de pertinho, para poder mostrar e apontar para o livro,
para ver os detalhes das ilustrações, para agarrar o colega do lado em uma parte que dá
medo, para se (re)mexer todo e reagir com um suspiro, risada, olhar fixo e mãos
inquietas, ao que estava sendo narrado...
Certamente, se formos olhar bem, esse momento poderia ser ainda mais
agradável e confortável. Mas é preciso entender e ter sempre em vista as condições
concretas do contexto escolar, para se criar e trabalhar a partir disso. Só o simples fato
das crianças terem saído de suas carteiras, já foi um ganho enorme. Porém, nem sempre
esse formato foi possível. Como as rodas aconteceram em diferentes dias da semana,
por conta das atividades que ainda precisavam ser feitas pelas crianças no decorrer do
período, teve situações em que o espaço existente entre a lousa e as mesas foi
aproveitado, pois tornava a organização mais rápida, uma vez que apenas algumas
carteiras precisavam ser rearranjadas.
A questão do tempo a ser destinado às rodas de leitura também ganha destaque e
importância. Conforme foi se evidenciando, após o intervalo da turma, realizar a leitura,
mostrou-se inviável, pois quando o primeiro e segundo ano voltavam do recreio, as
demais turmas eram liberadas. O problema disso era que, como a localização da sala era
próxima do pátio, um barulho terrível avançava pelas janelas, o que deixava as crianças
53
Cada um tem uma forma de começar e/ou terminar a leitura da história. Na preparação para as rodas,
sem querer, conheci o “1, 2, 3...”, numa página criada nas redes sociais pela professora Dra. Márcia
Strazzacappa, da Faculdade de Educação da Unicamp.
56
e, também a pesquisadora, agitadas. Por isso, sempre que foi possível, ficou acordado
das rodas serem feitas no começo da manhã, evitando esses desconfortos.
Como foi comentado anteriormente, no início da pesquisa as rodas estavam
previstas para acontecerem às sextas-feiras, devido ao momento livre que as crianças
teriam após a leitura. Vale destacar que essa escolha se deu pela hipótese de que, não
tendo que voltar para as carteiras e dar continuidade às atividades escolares, as crianças
teriam maior liberdade para criarem e se expressarem a partir da leitura que foi
realizada. Para isso, a pesquisadora levava objetos que pudessem mobilizar algum tipo
de resposta criativa/poética ao que foi narrado. A realização dessa proposta, contudo,
com o tempo foi abandonada. Primeiro porque percebeu-se que esse não era um
processo tão imediato na criança; além disso, como as rodas se estenderam para outros
dias da semana, o espaço livre não era possível nesses outros encontros, o que fez com
que as rodas fossem ganhando outras configurações.
Assim, após a leitura, tornou-se mais comum fazermos uma breve conversa
sobre a história, para que as crianças comentassem sobre suas impressões, momento em
que, geralmente, elas já estavam de volta à mesa e a pesquisadora, intencionalmente,
deixava para que a professora puxasse e conduzisse a discussão. Quando a história
terminava, foi recorrente das crianças pedirem para desenhá-la, o que sempre foi
atendido pela professora. Elas também gostavam e tinham o costume de solicitar que o
livro do dia passasse pelas fileiras, para que pudessem manuseá-lo. Ao observar esse
momento, vi algumas empenhando-se em fazer (re)leituras com o livro em mãos,
principalmente aquelas que não sabiam ler.
Depois de um tempo acompanhando a turma e de algumas leituras realizadas,
perguntas como “Prô, hoje você vai ler história pra gente? ” ou “Prô, qual história você
vai ler hoje?”, feitas incontáveis vezes pelo Emerson e por outras crianças,
demonstravam a vontade e a curiosidade por aquele momento. Pedidos para que a
pesquisadora fizesse a leitura de algum livro trazido pela própria criança aos demais
colegas da sala, também foi outro movimento marcante no decorrer do trabalho, o que
de certa forma demonstra o reconhecimento da figura da pesquisadora como aquela que
dá vida às palavras do autor e que convida a criança a surpreender-se e encantar-se com
a obra literária. Por se tratar de crianças em processo de alfabetização, a importância do
papel do adulto ganha destaque, uma vez que é pela mão do outro que abre o livro e o lê
com emoção, que a criança é conduzida a essa grande aventura que a literatura - bem
como outras formas de arte - é capaz de nos levar.
57
Não há como falar de literatura, educação estética e do acesso à obra de arte,
sem evidenciar o papel que a biblioteca desempenha nesse sentido. Na escola em
questão, a biblioteca é um diferencial: organizada, com um rico acervo de livros e,
principalmente, ativa54
. Semanalmente, professoras e crianças iam à biblioteca, onde
encontravam um número de livros já dispostos na mesa para serem escolhidos e
retirados para levar para a casa e, aqueles que quisessem, ainda eram convidados a ler
para a turma nesse espaço. Contudo, percebia que os livros retirados pelas crianças,
muitas vezes, voltavam de casa sem ao menos terem sido abertos, o que vem reforçar a
importância de a professora assumir esse compromisso e fazer as leituras em sala de
aula.
Ao encerrar o projeto na escola e perceber tudo o que foi desenvolvido com o
grupo, conforme recuperava as imagens na memória e nos registros, indagações,
hipóteses e descobertas em torno da temática desse trabalho foram se evidenciando. E,
tangenciando essas questões, também foram muitas as compreensões que se apresentam
sobre o fazer pesquisa na escola.
Acompanhando e fazendo parte do seu dia-a-dia, vi que, muitas vezes, os
sujeitos ficam imersos num cotidiano tão (in)tenso, que não conseguem enxergar ou
viabilizar outras formas de agir. Talvez o meu papel ali, como pesquisadora, tenha sido
para somar forças e buscar - em conjunto - formas de reinventar o seu cotidiano. O
pedido da professora que acompanhei, no meu último dia na escola, bem como a da
outra turma, para que no ano seguinte fosse feito algum trabalho em parceria com a
universidade, e que envolvesse, por exemplo, a literatura, indica o interesse em projetos
desse tipo e a busca por outras formas de atuação.
Além disso, incontáveis vezes a professora declarou o seu desejo de
continuidade do trabalho de investigação, compartilhando até ideias que pudessem ser
desenvolvidas no ano seguinte. Inclusive, com o tempo, teve momentos em que ela se
referia à pesquisa com um “para isso que nós queremos ver....”. Ao dizer dessa forma,
mencionando o trabalho com o uso da primeira pessoa do plural, a professora indicava
um movimento de apropriação do projeto. Não era meu ou dela. Ao fazer parte do
cotidiano da escola, colocando em prática uma pesquisa em parceria, o trabalho passa,
54
Infelizmente, essa não é uma realidade alcançada por outras instituições. De acordo com matéria
divulgada em 2015, os dados do último Censo Escolar realizado no país são assustadores e
desanimadores: apenas 23% das escolas públicas e privadas da Região Metropolitana de Campinas
(RMC) possuem bibliotecas (Portal G1 de Campinas e Região, 13/09/2015. Disponível em:
http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2015/09/apenas-23-das-escolas-da-regiao-de-campinas-
tem-bibliotecas-diz-censo.html).
58
então, naquele contexto, a ser nosso. Houve um dia em que, na ausência da
pesquisadora em sala de aula, a professora registrou em uma folha os comentários e
expressões das crianças diante da leitura realizada, tecendo várias hipóteses sobre a
temática de estudo. Vejo com isso que a pesquisa, de alguma forma, também a cativou.
Ao dizer em outro dia que “Depois da nossa conversa, fiquei pensando sobre isso em
casa, no fim de semana”, tal fala nos indica que as questões que conversávamos
repercutiam em outros momentos.
Diante do que até aqui foi exposto, vê-se o quanto o trabalho do pesquisador
exige uma atenção sensível aos movimentos, gestos, expressões e falas dos pesquisados
que possam evidenciar no(s) modo(s) de dizer e ser, no pequeno e no que há de mais
simples, questões muito mais amplas. Em outras palavras, percebe-se que no
desenvolvimento da pesquisa certos indícios, às vezes considerados insignificantes,
podem revelar aspectos muito mais abrangentes. Por isso, este estudo também mobiliza
o diálogo com Ginzburg (1989), com o que ele chamou de paradigma indiciário55
.
Mesmo que aqui se trate de aspectos singulares, individuais, indiciários e conjecturais,
sobre os modos próprios e particulares das crianças participarem e se envolverem com a
obra de arte, este autor nos mostra como certos indícios podem ser significativos e
reveladores de fenômenos mais gerais.
A partir do que este autor discorre em seu trabalho, entende-se que o paradigma
indiciário inspira e ensina o pesquisador a observar as minúcias e valorizar o detalhe na
pesquisa, a cuidar daqueles dados que podem inicialmente ser considerados marginais.
Por isso, se na presente pesquisa de mestrado o entendimento do que a criança está
sentindo e vivenciando internamente, com relação à obra de arte, não podem ser
diretamente compreensíveis, encontramos nos escritos de Ginzburg (1989)
fundamentação teórica à opção por investir e ir em busca daquilo que se torna visível ao
olhar interpretativo do pesquisador56
, ou seja, de tentar captar os indícios, uma vez que
55
Em Raízes de um paradigma indiciário, Ginzburg (1989) procura demonstrar que os métodos utilizados
pelo italiano Giovanni Morelli, de examinar pormenores negligenciáveis (como unhas e lóbulos de
orelhas) para distinguir pinturas originais das cópias; pelo investigador ficcional Sherlock Holmes, de
basear-se em indícios imperceptíveis para a maioria (como pegadas na lama e cinzas de cigarro) para
desvendar os crimes; pela técnica psicanalítica freudiana de penetrar em coisas concretas e ocultas através
de elementos que são poucos notados, apontam para o “paradigma indiciário”. Conforme ele afirma: “[...]
nos três casos, pistas, talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma
inatingível” (GINZBURG, 1989, p. 150). 56
Afinal, como afirma Pino (2005a): “[...] na qualidade de investigação semiótica, a análise de indícios é
constituída de atos de interpretação, não de mera descrição dos fatos em que tais indícios se concretizam.
Se interpretar é a função específica de toda análise de fenômenos não evidentes, ela é a única adequada
quando o objeto de investigação é indícios” (p. 187, grifo do autor).
59
“[...] se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que
permitem decifrá-la” (GINZBURG, 1989, p. 177).
Portanto, foram justamente aqueles gestos, palavras, olhares - indícios - que
aparentemente seriam negligenciáveis na pesquisa, que nos possibilitaram inferir e
compreender algo muito mais complexo e que não poderia ter sido percebido de forma
imediata, afinal “situações cujo conhecimento direto não é possível são compreensíveis,
semioticamente, pela interpretação dos sinais, dos indícios nelas inscritos” (FONTANA,
2011, p. 17).
Tendo como objetivo neste subcapítulo expor a fundamentação metodológica do
trabalho, apresentar o pano de fundo da pesquisa empírica e dar ao leitor uma visão
geral do campo, passaremos posteriormente às análises e discussões conceituais que
serão feitas a seguir acerca dos modos de envolvimento e participação das crianças com
a obra literária.
2.2. Procedimentos de registro adotados
Inspirado, portanto, nos estudos etnográficos e nos escritos a respeito do
paradigma indiciário, o trabalho utilizou-se da vídeo-gravação57
como
instrumento/procedimento de pesquisa, para possibilitar uma análise detalhada das
situações empíricas, empenhando-se em produzir um relato preocupado com os
pormenores dos acontecimentos registrados.
As palavras de Smolka (1997) evidenciam a relevância deste recurso no trabalho
de pesquisa:
Na forma de registro videogravado, as palavras e os gestos,
capturados, perduram na reprise e no repasse da fita. A fugaz
sucessão de momentos vividos, de imagens instantâneas, ganha
nova materialidade e lugar de fixidez. Cristalizam-se na
mobilidade. Nessa forma de registro, certos modos específicos
de lembrar tornam-se possíveis. Modos que mudam as formas
de olhar, de analisar, de ler, de transcrever, de interpretar. No
trabalho de olhar, a intenção de perscrutar as filigranas dos
movimentos, de estudar a coreografia além do cenário. No
trabalho de ouvir, a busca para captar e distinguir barulhos
burburinhos e vozes, ditos e não ditos, silêncios. O retorno
interminável da fita. Trabalho de (re)significar. O que não tinha
57
É importante dizer que, para isso, solicitamos a autorização (Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido) por escrito da professora, bem como dos responsáveis legais pelas crianças.
60
realce se destaca. O detalhe vira tema. O que está entranhado na
rotina pode tornar-se acontecimento. Transcrito, narrado,
comentado (SMOLKA, 1997, p. 106-107).
Como expresso pela autora, o uso da vídeo-gravação permite ao pesquisador
voltar intermináveis vezes à cena, ver e rever situações que possam ter escapado do seu
olhar no momento exato em que ocorreram. Tendo em vista o objeto e objetivos deste
estudo, o uso desse recurso foi fundamental para a realização da pesquisa, pois
possibilitou capturar olhares, gestos e falas que o dinamismo das interações em sala de
aula dificulta a perceber e registrar. Como também discorre Pino (2005a), esse tipo de
registro
[...] tem a vantagem de permitir que a observação, tal como foi feita
pelo pesquisador, possa perpetuar-se e ser reproduzida tantas vezes
quantas forem necessárias para realizar sua interpretação [...]
permitem fazer não só observações muito mais longas e detalhadas
que as feitas no ato do registro, como também observações “novas”,
pois novas são as situações em que cada exposição aos dados
registrados coloca o pesquisador (PINO, 2005a, p. 190).
Além do uso da vídeo-gravação como procedimento metodológico, este trabalho
também se utilizou de um instrumento característico do fazer etnográfico: o diário de
campo. As narrativas nas anotações em campo puderam complementar-se às cenas
gravadas em vídeo, proporcionando um rico material com descrições densas e
minuciosas, que contribuíram no processo de construção e análises dos dados. Muitas
vezes, aquilo que não foi percebido pela observação da sala de aula pela pesquisadora,
pôde ser gravado e retomado nas tomadas em câmera de vídeo. Contudo, é interessante
comentar que o contrário também aconteceu: houve situações em que, por coincidência,
quase que no momento exato em que a câmera era desligada, uma cena importante
acontecia, tornando-se o diário de campo um recurso fundamental para não deixar
escapar o ocorrido.
Vale comentar que na presente dissertação as elaborações teóricas aconteceram
junto com as investigações e problematizações do campo empírico, com a situação
vivida. Entendemos que teoria e empiria estão em tensão constante, num movimento
simultâneo, pois uma interfere na outra: a teoria nos permitiu orientar o nosso olhar no
campo, bem como a empiria nos possibilitou voltar à teoria para rever a proposta de
trabalho, os conceitos, métodos etc., durante o próprio fazer investigativo.
61
2.3. A construção dos dados da pesquisa
Tendo como inspiração a pesquisa etnográfica, é importante ressaltar que o
trabalho que aqui se apresenta consiste em uma interpretação da realidade estudada,
não sendo, portanto, isenta de juízos de valores (ANDRÉ, 1997). Por isso, desde o
fragmento das situações escolhidas aos procedimentos de análises realizados, tudo é
fruto do recorte de um olhar, que é impregnado por toda história de vida do sujeito
pesquisador. Além disso, levando em consideração o que Pino (2005a) afirma a respeito
do paradigma indicial, compreende-se que a análise dos indícios que aqui se pretende
realizar consiste em interpretá-los, em procurar a significação que eles têm para o olhar
interpretativo do pesquisador.
Partindo desses pressupostos, diante da imensidão do material empírico com o
qual nos deparamos ao final do trabalho de campo, começamos a nos indagar: O que e
como selecionar os registros? O que se torna prototípico para o nosso objeto de
investigação? Como definir o recorte das situações empíricas? Como proceder em
termos de análise? Assim, como a proposta deste estudo é explorar os indícios58
dos
modos pelos quais as crianças se envolvem, participam e respondem às leituras literárias
na sala de aula, o ponto de partida para tais análises foi fazer as (re)leituras dos relatos
dos diários de campo - que foram concomitantes aos estudos teóricos que vinham sendo
realizados. A partir desse registro do empírico, que já continha alguns olhares
interpretativos, selecionamos algumas situações para, novamente, assistir as filmagens -
uma vez que era comum, ao término de cada dia na escola, a pesquisadora ocupar-se em
contemplar as cenas registradas.
Somente depois de (re)ver as vídeo-gravações selecionadas é que algumas foram
escolhidas para trabalharmos na elaboração das transcrições. Como poderá ser visto no
capítulo de análise, após tentativas anteriores de disposição desse material, optamos por
fazê-la no formato de um quadro. Essa escolha justifica-se por dois motivos: tanto por
ter facilitado o próprio trabalho de transcrição, quanto por entendermos que ajuda o
leitor a visualizar melhor a cena em questão, visto que, muitas vezes, a leitura do adulto
e as respostas, expressões e falas das crianças eram simultâneas e entrecruzadas.
58
Como nos fala Pino (2005a, p. 178) “procurar indícios de um processo é muito diferente de procurar
relações causais entre fatos [...] procurar indícios implica em optar por um tipo de análise que siga pistas,
não evidências, sinais, não significações, inferências, não causas desse processo”.
62
A tarefa de transcrever as cenas exigiu que elas fossem assistidas incontáveis
vezes: em uma, para registrarmos as falas de todos os sujeitos que delas participavam -
isso sem contar os inúmeros retornos nas imagens, para tentar capturar uma voz mais
baixa ou uma palavra que não dava para entender; em outra, para prestarmos atenção
nos gestos e olhares da professora; em mais uma, dessa vez para orientarmos nosso
olhar para os modos de participação e formas de respostas das crianças na leitura
literária. Vale dizer que mesmo durante a composição desse material, já exercitávamos
nosso olhar analítico para as questões que norteiam este trabalho de mestrado.
Após todo esse movimento de construção dos dados da pesquisa, o foco das
análises pautou-se em quatro situações: duas que enfocam os modos de recepção e
escuta do texto literário, e duas que dizem respeito à produção das crianças, sendo uma
de caráter coletivo, orientada pela professora, e outra envolvendo a produção escrita de
uma criança, as quais serão apresentadas nos capítulos que se seguem. Tais recortes das
situações empíricas foram feitos a partir dos indícios que conseguimos enxergar nas
cenas, os quais vemos como fecundos para compreender e problematizar as questões
teóricas elaboradas.
63
Capítulo 3 - Sobre os modos de participação das crianças nas rodas de leitura:
possibilidades analíticas
Olhares curiosos, fixos, interessados, deslumbrados. No contraponto, alguns
olhares vagos, longínquos, desatentos.... Silêncio. Mas também vozes, gestos.
Envolvimento.
“Se fosse eu, saía correndo…”
“Se fosse eu, não me assustava…”
“Quebra esse castelo, ele não é feito de areia? ”
“Ai! Eu queria entrar nesse castelo! ”
“Não, senhor! Eu falava não senhor e saía correndo…”
“Percebo que algumas crianças abraçam o amigo do lado, como se estivessem com
medo”
(Condensado diário de campo e vídeo-gravação, 2015)
A criança é expressiva no modo como se apropria da obra literária. Não se trata
de um contemplar passivo, mecânico. Nesse processo, ela mobiliza suas experiências
anteriores, dá risadas ou demonstra abertamente aborrecimento com o desfecho da
história, faz antecipações das falas e/ou ações das personagens.... Ou seja, participa
ativamente do momento.
Do conjunto de todo o material empírico, algumas situações se apresentaram de
modo mais intenso para a discussão acerca dos modos de participação diante da obra
literária. Para evidenciar alguns desses comentários, expressões e emoções das crianças,
decidimos por transcrever duas situações de leitura, tecendo a análise a partir dos
estudos teóricos até aqui encaminhados. Portanto, é importante dizer que esta escolha
representa, evidentemente, um recorte do nosso olhar para a questão. Certamente outros
olhares, caminhos e problematizações seriam possíveis, mas nesse momento são estes
os que ficaram mais fortes e visíveis para nós.
Mas aqui já surge um desafio: Como conseguir dar visibilidade às expressões, às
gestualidades e aos olhares na recepção literária pela criança? Que palavras podem
traduzir, ou melhor dizendo, significar, os movimentos dos alunos, bem como o tom e
64
ritmo da voz durante a leitura do livro? Como exprimir tudo isso em palavras? Tendo
em vista esta dificuldade, optamos por, em alguns momentos, fazer uso de outra
linguagem. Por isso, algumas imagens (congeladas dos registros vídeo-gravados)
somam-se e dialogam com o texto transcrito, numa tentativa de aproximar e trazer o
leitor ainda mais para dentro da cena descrita. Além disso, como comentamos no
capítulo anterior, como a leitura do adulto e as respostas, expressões e comentários das
crianças são concomitantes e entrecruzados, consideramos mais adequado transcrever
tais situações de leitura na forma de um quadro, justamente para dar uma visão melhor
da dinâmica interlocutiva do momento.
3.1. Palavras e gestos na incorporação do texto literário
Quarta-feira, início da manhã. Crianças chegam na sala, vão aos poucos se
acomodando nas carteiras, abrindo as mochilas e retirando o material. Seguindo
com a proposta de apresentar as diferentes versões do clássico Chapeuzinho
Vermelho iniciada no dia anterior, em que foi feita a leitura da história de
Charles Perrault, nesse dia seria a vez dos Irmãos Grimm. Hoje a professora
assume novamente o lugar de leitora. A leitura segue, em alguns momentos com
as crianças um pouco agitadas. Depois elas começam a se envolver com a
história e com as inusitadas ilustrações do livro. Enquanto a professora lia, eu
registrava o momento com a câmera nas mãos, tentando captar os comentários e
expressões faciais das crianças. Nesse movimento, uma cena chama a atenção:
Emerson “dramatiza” a leitura que a professora realizava.
(Diário de Campo, 16 de setembro de 2015)
***
A intensidade do envolvimento de uma das crianças diante da leitura revela-se
para a pesquisadora já no momento em que ocorre. O modo de participação de um dos
meninos chama imediatamente atenção porque os seus gestos ecoam a história,
sustentando-se na leitura que a professora realizava. E no laborioso processo de
transcrição das cenas, na possibilidade de pausar a gravação e observar quadro a quadro,
esta cena é a que, mais uma vez, se destaca: enquanto que algumas crianças, por meio
de indagações, exclamações e complementações ao que era enunciado, vão nos
mostrando movimentos de compreensão e apropriação do texto literário, neste menino é
também o corpo que fala.
65
CENA59
I
(Duração: 02m36s – 04m06s)
Professora Falas das Crianças Gestos das Crianças Emerson
1. (Depois de mostrar a
ilustração às crianças, retoma a
leitura): Então vamos! “O Lobo
pensou com os seus botões: ‘esta
coisinha fofa vai ser um bom
prato, ainda mais saboroso que a
velhota. O negócio é ser esperto
e apanhar as duas’. Foi andando
ao lado da Chapeuzinho até que
disse ‘Chapeuzinho Vermelho,
não está vendo as lindas flores ao
redor? ’”
2. Ana e Heloísa conversam
entre elas, enquanto se ajeitam
no tapete. Maria deita na perna
de Heloísa.
3. Ralley passa a mão embaixo
da lousa, sujando-se de giz.
Então, bate uma mão na outra
para limpar.
4. Douglas fica balançando a
mão.
5. Ana, Heloísa e Mayana
conversam entre elas.
6. Ralley fica olhando para o
chão.
7. Maria troca de posição, agora
deita na perna da Ana.
8. Enquanto a professora lia “o
lobo pensou com os seus
botões”, Emerson estica a
coluna e faz um movimento como
se estivesse abrindo botões de
uma camisa. Depois, quando a
professora lê “esta coisinha
fofa”, o menino leva as mãos nas
bochechas, apertando-as.
9. Emerson (assim que termina
de representar, fala em voz alta,
entrecruzando com a leitura da
professora): Se eu fosse o lobo...
(enquanto falava, empolgado,
levou a cabeça para trás,
apertando uma mão na outra)
10. (Continuando a leitura): “....
‘Por que nem olha para elas?
11. Ralley começa a mexer na
cordinha que tem embaixo da
14. Emerson se espreguiça.
Depois fica olhando atento para
59
Diferente das outras transcrições realizadas, que levam o nome de “momento”, neste capítulo optamos por apresenta-las como “cena”, justamente para evidenciar que,
durante a leitura, o menino encena a história.
66
Acho até que você nem ouve o
canto... (se corrigindo) os
passarinhos cantando. Vai tão
séria, como se fosse à escola.
Mas o bosque é tão divertido...’
Chapeuzinho Vermelho levantou
os olhos, e quando viu como os
raios de sol dançavam entre as
árvores...”
lousa.
12. Carlos parece achar graça
quando a professora diz “vai tão
séria, como se fosse à escola”.
13. Mayana aponta o dedo para
Maria, mostrando algo para Ana
e Heloísa. Depois cochicham
algo baixinho entre elas.
a professora.
15. Eros (estranhando): Raio de
sol dança??
16. (Lendo): “... E como tudo
estava repleto de lindas flores...
pensou... ‘A vovozinha vai ficar
tão contente se eu levar um
ramalhete de flores... Ainda é tão
cedo que nem vou me atrasar’.
Saiu... (repetindo) Saiu do
caminho, colhendo flores pelo
bosque”
17. Mayana: Raio de sol? É
lógico que dança!
18. Eros balança as mãos, como
se estivesse imitando os raios de
sol.
19. Ralley e Gustavo disputam
um pedaço de corda.
20. Vitória começa a mexer no
cabelo de Mayana.
21. Algum aluno (baixinho):
Flores e flores...
22. (Lendo): “Mal arrancava uma
e já havia outra mais bonita logo
adiante. Ela ia atrás dessa. E
23. Nesse momento, Emerson faz
de conta que está puxando uma
flor no bosque, como a
67
assim, penetrava mais e mais
fundo no bosque”
Chapeuzinho Vermelho na
história. Então, juntando as
mãos como se estivesse
segurando uma flor, ele
direciona a cabeça para trás,
com os olhos fechados e leva as
mãos até o nariz para cheirá-las.
CENA II
(Duração: 05m45s – 07m02s)
Professora Falas das crianças Gestos das crianças Emerson
24. (Depois de mostrar as
ilustrações às crianças, pede
silêncio para continuar a
leitura): Um, dois... Três!
(Espera as crianças fazerem
silêncio e, então, volta a ler) “O
Lobo, por sua vez, foi direto à
casa da velhinha e bateu na porta
(bate em uma cadeira ao lado,
para fazer o barulho de “tóc, tóc,
tóc”). ‘Quem é? ’”
25. Douglas olhando para o
chão.
26. Wellington, como se estivesse
batendo na porta, com uma mão
fechada e a outra aberta, bate
uma na outra.
27. Carlos, rapidamente, também
faz de conta que está batendo na
porta.
28. Emerson, junto com a
professora, como se estivesse
batendo na porta, também faz o
mesmo movimento no ar.
29. Emerson (com uma voz
baixinha, respondendo à
pergunta do livro, como se fosse
a vovó): Sou eu, a vovozinha...
30. (Lendo): “ ... ‘Abra a porta, é
Chapeuzinho Vermelho. Trago
bolo e vinho’. ‘Basta girar a
maçaneta’, gritou a avó” (pausa)
“ ‘Estou tão fraca que não posso
31. Heloísa está mexendo no
cabelo. Mayana cochicha algo
no ouvido dela.
32. Emerson, com o olhar fixo no
horizonte, como se visualizasse
uma porta, faz um movimento
com a mão de girar a maçaneta.
Ao terminar de fazer o gesto, o
68
nem me levantar’. O Lobo girou
a maçaneta, a porta…? ”
menino continua com o olhar
fixo, parecendo esperar a
professora prosseguir com a
narrativa para dar continuidade
à sua encenação.
33. Algumas crianças
(complementando): .... Se abriu...
34. (Lendo): “.... Se abriu. Ele
avançou para a cama sem
dizer…”?
35. Emerson ainda com o olhar
fixo. Quando a professora lê “ele
avançou para a cama...”, ele
abre a boca, como se fosse
devorar alguém, mas depois
espera.
36. Eros: Olá!
37. (Lendo): “Ele avançou para a
cama sem dizer palavra”.... Olha,
é bem assim mesmo.... “Ele
avançou para a cama sem dizer
palavra. E engoliu a velhinha
inteira”.
38. Emerson, com a boca bem
aberta, leva sua mão até ela,
como se fosse comer a
vovozinha. O menino, então, se
curva todo para trás e, com as
mãos na barriga, faz movimentos
como se estivesse lentamente
devorando e engolindo a
vovozinha, acompanhado de um
barulho de deglutição.
39. Carlos: Ainda bem que não
69
mordeu!
40. (Continuando a leitura,
rindo): “Então vestiu as roupas e
a touca da vovó. Deitou-se na
cama e fechou as cortinas”.
(Retomando o comentário da
criança): Por que ainda bem que
não mordeu, Carlos?
41. Douglas mexe na cordinha
que fica embaixo da lousa.
42. Emerson continua a
dramatizar a cena. Agora, como
se pegasse a touca da vovó,
coloca-a na cabeça. Depois,
devagar vai ajeitando-a, fazendo
um barulho – algo como um “puf
puf puf” - como se estivesse
arrumando a touca na cabeça.
Então, com os olhos fechados e
curvando-se para trás, ele faz de
conta que está deitado em uma
cama, dormindo. Em seguida,
leva as mãos à frente do queixo,
como se segurasse um cobertor.
Por fim, vira o rosto de lado e,
imaginando ter uma cortina do
outro lado, estica e puxa o braço
rapidamente, fazendo um
barulho, como se estivesse
fechando-a.
43. Eros: Porque daí a vovó já
estaria morta!
CENA III
(Duração: 12m19s – 12m46s)
Professora Fala das crianças Gestos das crianças Emerson
44. (Depois de mostrar a 45. Carlos boceja 46. Assim que a professora
70
ilustração às crianças, pede
silêncio para continuar a leitura)
Não... tem gente que não ouviu!
Psiu... (esperando o silêncio):
Posso falar?? (retoma a leitura)
“Depois de saciar seu apetite o
Lobo deitou-se novamente na
cama e caiu no sono e começou a
roncar alto demais” ...
começa a ler essa parte,
Emerson faz-de-conta que
encosta a cabeça num
travesseiro e abre a boca,
colocando a língua para fora,
como se estivesse dormindo. Até
diz “Aiii.... Que delícia!!!”.
Então, começa a fazer um
barulho de ronco. Depois, outras
crianças entram na brincadeira e
também fazem barulho.
47. Emerson (fingindo que está
roncando bem alto): Róoooonc,
róooonc...
48. Outras crianças: Róooonc,
róooonc...
49. Carlos (depois de bocejar):
Acabei pegando sono também...
50. Algumas crianças continuam
fingindo que estão roncando,
enquanto outras dão risadas.
51. (Lendo): “Um caçador!!”...
Agora apareceu o caçador...
52. Emerson junto com Everton,
que estava sentado ao seu lado,
começam a se mexer, fazendo
como se fosse uma dancinha em
71
comemoração à entrada do
caçador na história.
53. Eros: Obaaaa!
54. Carlos (para Eros): Eu sabia
que era o caçador!!
CENA IV
(Duração: 13m18s – 15m18s)
Professora Fala das crianças Gestos das crianças Emerson
55. (Retomando a leitura): Então
vamos lá! .... “Um caçador vinha
justamente passando por perto e
pensou ‘Como ronca a velhinha.
É melhor ver se está tudo bem’.
Entrou na casa, chegando perto
da cama, viu o Lobo refestelado”
... Nossa, refestelado?
56. Emerson, lentamente,
posiciona as mãos como se
segurasse a espingarda do
caçador. E, em câmera lenta,
coloca a arma imaginária em
frente ao rosto, com os olhos
cerrados. Então, estica bem as
mãos como se apontasse a arma
para um Lobo. Heloísa,
percebendo a brincadeira do
amigo, também faz-de-conta que
está segurando uma arma.
57. Mayana (tentando
pronunciar a palavra): O que é
resfeste... ?
72
58. Carlos (tentando explicar):
Que tá barrigudo...
59. Pois é..... Depois a gente vai
pesquisar o que é refestelado.
60. Emerson (ainda
“imaginando” que está
segurando uma arma): Eu mato
o lobo!
61. (Lendo): “ ‘Vejam só onde
encontro esse velho pecador. Eu
que há tempos o persigo’. Já
estava armado (se corrigindo) ....
já estava armando sua
espingarda, quando lembrou que
o lobo podia...” ?
62. Alguma criança: Comer....
63. Emerson: Comer a....
64. (Lendo): “Podia ter comido a
velhinha....”
65. Carlos (sem conseguir
concluir): Mas comeu...
66. (Continuando a leitura): “....
Quem sabe ainda não poderia
salvá-la. Não disparou, pegou
uma tesoura...” (Professora, com
uma das mãos, imita uma tesoura
cortando)
73
67. Carlos: Abriu...
68. Everton: Abriu a barriga do
Lobo...
69. Emerson, no ar, faz
movimentos com a mão como se
cortasse a barriga do lobo,
vocalizando o som “crec crec”
70. (Continuando a leitura): ....
“E começou a cortar a barriga do
lobo adormecido”
71. Emerson, depois que acaba
de “cortar a barriga do lobo”,
faz uma pequena pausa. Então,
colocando força para abrir, ele
puxa com as duas mãos a
barriga do Lobo imaginário,
fazendo sons com a boca, como
se estivesse rasgando a pele dele.
Everton, ao ver o amigo, também
imita rapidamente essa cena
72. Alguma criança (baixinho):
Eca! Que nojo!
73. (Continuando a leitura): “ ....
Com dois ou três cortes, entreviu
um Chapeuzinho de veludo
vermelho. Com mais três ou
quatro cortes (professora faz o
movimento da tesoura cortando)
apareceu a menina inteira,
gritando ‘Ai que susto! Como
estava escuro lá dentro da barriga
do lobo’ ”
74. Douglas fica puxando a
cordinha que fica embaixo da
lousa.
75. Ana se deita no chão.
76. Victória está com a sandália
nas mãos e fica olhando para
ela.
74
77. Emerson: É cheio de baba...
78. (Lendo): “ .... E logo mais
surgiu a vovó, ainda viva, mas
toda ofegante”. Ela já estava sem
fôlego, né? (virando o livro para
as crianças) Olha o caçador!
79. Ana se levanta e olha a
ilustração do livro.
80. Mayana: Ai, credo!! Olha o
tamanho do nariz!
81. Alguma criança: Credo!
82. Everton (dando um pulo, de
susto): Aiiii!
83. Alguma criança: Bem
grande...
84. Carlos: Olha o tamanho do
nariz... Prô, meu nariz é muito
grande?
85. Crianças seguem
comentando sobre as ilustrações.
Algumas levam a mão no nariz
para notar seu tamanho
86. Emerson: Tá cheio de baba...
75
No conjunto das cenas apresentadas, podemos notar diferentes formas de
participação das crianças na leitura de uma história já tão conhecida. As expressões, os
movimentos, os gestos das crianças no desenrolar da leitura da professora, vão nos
indicando formas de escuta, respostas e réplicas à narrativa literária. Mas como
interpretar essas respostas? O que elas podem nos dizer sobre os modos de recepção
literária pela criança? Como a palavra emociona, afeta a criança, produz nela um
sentido estético? Estas são apenas algumas das principais questões que tais cenas nos
abrem em termos de análise e que nos conduzem à sua realização.
Para tanto, o foco analítico é aqui colocado na participação de um aluno cujos
gestos tornam-se indicativos da atividade de dramatização como um modo possível de
elaboração da vivência com a literatura. Mas, para isso, é indispensável inicialmente
observar alguns aspectos mais abrangentes, como: i) a preparação, organização e
acomodação dos alunos no momento da leitura; ii) as estratégias da professora nos
modos de condução da atividade, isto é, a maneira como convoca os alunos a
participarem e se envolverem com a leitura; iii) as especificidades da obra literária em
questão; iv) os diferentes modos de participação que integram estas mesmas cenas. Para
dizer de outro modo, talvez pudéssemos ter como imagem o movimento de uma câmera
fotográfica que com um foco definido vai, pouco a pouco com o efeito de zoom,
aproximando e passando sucessivamente pelos diferentes planos que compõem o
enquadramento ajustado. Portanto, são estes os “planos” de que iremos nos ocupar
agora.
Para começar, devemos falar sobre como esta atividade de leitura, inserida no
contexto escolar, traz consigo algumas particularidades na forma como é orientada e
conduzida. Os alunos, todos juntos (e um pouco apertados), lado a lado no chão sobre o
tapete, cada um no seu modo de querer estar – deitado, encostado, sentado etc. –
evidenciam as condições e as (im)possibilidades de realização desse trabalho na escola.
Nesse modo de acomodar as crianças, foi recorrente, ao longo da leitura, a preocupação
da professora em garantir que todas estivessem atentas ao momento: ela parava,
esperava a turma se acalmar; interrompia a leitura e conversava com o aluno disperso,
dentre outras intervenções. No trecho apresentado, por exemplo, no turno 24 aparece
um modo do qual ela faz uso para solicitar silêncio aos alunos.
Na verdade, antes mesmo de dar início à atividade, a professora já se preocupa
em organizar, explicar e orientar a atenção das crianças para o momento:
76
“Bom pessoal, vamos fazer uns combinados aqui. Todo dia, na hora da leitura, a gente
tem que saber se comportar. Porque a gente fala sempre a mesma coisa. A gente vai
sentar aqui para ouvir história. A gente conversa com o colega em outro momento,
certo? [...] Tem hora de ouvir, tem horas que vocês podem falar. Tem hora de brincar.
Tem hora pra tudo [...] Eu espero que hoje todo mundo participe da leitura, sem
atrapalhar. Sem atrapalhar quem está ouvindo e sem atrapalhar eu que estou lendo. Se
acontecer de ficar muita conversa eu vou parar e esperar. Combinado? ”
A fala da professora nos faz pensar em como essas ações vão marcando as
práticas de ensino; evidencia modos de ensinar, que implicam “incansáveis gestos
indicativos nas orientações dos olhares [...]” (SMOLKA, 2010a, p. 18, grifo da autora);
revela um certo disciplinamento do comportamento dos alunos; aponta para a intenção,
tão manifesta e própria ao trabalho pedagógico, de que as crianças aprendam a escutar,
seja a chamada para a lousa, a leitura de um livro.... Assim, vemos que no trecho acima
a preocupação com a aprendizagem da escuta e a atenção orientada (SMOLKA et. al.,
2007, p. 7) são colocadas em foco e mostram “práticas que se estabelecem na e pela
linguagem e que, como instrumentos de (inter)regulação, vão sendo incorporadas pelos
sujeitos, marcando seus modos de ação individual” (ibidem, p. 7).
Nesse sentido, podemos dizer que o aprender a escutar faz parte do ser aluno.
Com relação à atividade de leitura, isso nos leva a retomar a tese vigotskiana de que
observar, ouvir e sentir prazer não são processos simples, sendo que a percepção
estética decorre de uma “aprendizagem especial”, de um trabalho educativo. Partindo
desta afirmação e das contribuições de Vigotski de que o desenvolvimento humano é
um processo histórico e a natureza do psiquismo é cultural (PINO, 2005b), concluímos
que a escuta interessada pelo texto literário, o envolvimento por esse tipo de criação
humana, não é algo natural, inato e que está dado a priori nos sujeitos, mas é adquirido
nas práticas sociais, isto é, é culturalmente desenvolvido. Isto quer dizer que os modos
como se organizam estas práticas culturais estão relacionadas à emergência do
funcionamento mental, da consciência do ser humano; o desenvolvimento cultural do
indivíduo relaciona-se com as condições concretas de sua vida, que influenciam na
formação de suas funções psicológicas superiores, as tipicamente humanas. Ou seja, se
podemos assumir que existe na natureza humana uma contingência biológica para
criação e recepção estética, é somente pela imersão e participação do sujeito na cultura
que essa possibilidade vem a se concretizar. Como conclui Smolka (2010b), “não
podemos dizer que existe uma determinação genética das ações humanas. [...] É
77
precisamente essa indeterminação genética que abre a enorme possibilidade de
realização das atividades especificamente humanas” (p. 49).
Deste modo, fundamentado na perspectiva histórico-cultural, podemos afirmar
que o interesse por uma obra de arte se constrói na relação com o outro – e aqui ganham
importância as relações de ensino60
- que apresenta às crianças a experiência histórica e
socialmente desenvolvida e que as mobilizam para esse tipo de produção humana.
Nesse aspecto, evidencia-se a importância do papel do adulto e da escola: por se
tratar de crianças em processo de alfabetização, é o adulto quem dá vida às palavras do
autor e quem convida a criança a surpreender-se e encantar-se com a obra literária;
como a escola é a instituição social comprometida com a produção do conhecimento e,
ao longo da história, se firmou como a responsável por viabilizar e tornar acessível os
saberes historicamente produzidos, ela representa o principal lugar em que a criança irá
ampliar sua participação na produção cultural da humanidade.
Assim, podemos aqui situar quais os recursos, as estratégias e os modos de
narrar de que a professora lança mão para envolver e convidar as crianças a
participarem da narrativa literária. Durante a realização da leitura, ainda que com
poucas variações entonacionais, em que não se ressaltam ênfases ou uma variedade de
aspectos prosódicos por parte da professora, vemos nos diferentes modos de
participação das crianças o envolvimento com a história lida. Mesmo que professora
tenha um ritmo e expressão mais contida e em certos momentos evidencie que não foi
uma leitura anteriormente realizada e preparada (como observamos nos turnos 37 e 55,
em que ela estranha a forma como está escrito o texto), o uso que ela faz de prompting61
sustenta a participação dos alunos no processo de interlocução. Por exemplo, nos turnos
30, 34, 61 e 66, a professora faz a leitura da passagem do livro, mas ao final deixa para
que os alunos complementem a frase, o que nem sempre corresponde ao que está no
texto – como no turno 36, quando a criança responde com um “olá”. E os próprios
alunos, participando da atividade de leitura da história, se apropriam e fazem uso dessa
mesma estratégia discursiva (como mostra a resposta no turno 67).
Pensar nos modos de participação e envolvimento da criança com a literatura,
também implica considerar a obra literária em si. Isto porque, poderíamos indagar sobre
as relações existentes entre obra literária/leitor/criança, ou seja: será que (e de que
60
Sobre isso, ver Smolka (2007, 2010a, 2012b). 61
“Prompting”, segundo dicionário online de inglês, é a ação de “incentivar alguém a falar ou continuar
falando”. Na sua narrativa, a professora faz uso do recurso de elevar a voz, isto é, de conduzir a
enunciação até certo ponto do texto e numa entoação crescente, para que as crianças completem a frase.
78
forma) a obra escolhida, a partir da leitura do outro, interfere/influencia no processo de
recepção estética pela criança?
A história em questão é o já velho conhecido conto infantil Chapeuzinho
Vermelho. Entretanto, a edição62
apresentada às crianças chama atenção pela sua
qualidade, tanto com relação à linguagem quanto por sua impressão gráfica. Apesar de
mais uma vez contar sobre a menina do capuz vermelho, que desobedeceu a sua mãe e
acabou nas garras de um lobo faminto e, por fim, salva pelo caçador, a maneira como a
história é construída e enredada acaba por deixá-la muito original. Desde as palavras
que são empregadas às belíssimas – e assustadoras – ilustrações, que impressionam pelo
inusitado e diferente, a composição da obra mostra-se para o leitor como sendo muito
rica. Os recursos linguísticos utilizados, que diferem daqueles usados no cotidiano, dão
maior expressividade e um teor poético à trama, como vemos nas seguintes passagens:
“Chapeuzinho Vermelho levantou os olhos, e quando viu como os raios de sol
dançavam entre as árvores [...]”; “Mal arrancava uma e já havia outra mais bonita logo
adiante. Ela ia atrás dessa. E assim, penetrava mais e mais fundo no bosque”; “Entrou
na casa, chegando perto da cama, viu o Lobo refestelado [...]”. Já com relação aos
aspectos visuais, a artista63
que assina a ilustração nos convida a lançar um outro olhar
para as personagens, este nada convencional, o que acaba por surpreender a todos.
No decorrer da leitura, as crianças vão reagindo às ações das personagens e as
imagens que, de certa forma, causam estranhamento por desconstruir todo um
imaginário por trás da história conhecida. Comentários como nos turnos 80, 81 e 82 e
outros que aparecem durante a narrativa - “Parece filme de terror! ”, “Dá até medo! ”,
“Parece um lobo de verdade”, “Parece mais um lobisomem”, “Que feio! ”, “Credo! ” -
indicam o diálogo que se instaura entre o texto imagético e o verbal, o que amplia os
processos de significação da obra literária. Se pensarmos na arquitetônica do texto, de
que nos fala Bakhtin, isto é, “[...] a construção ou estruturação da obra, que une e
integra o material, a forma e o conteúdo” (SOBRAL, 2005, p. 111), podemos entender
como a composição artística, a maneira como os elementos são nela estruturados, estão
implicados no complexo processo de recepção estética. Vigotski (1999b) também
62
GRIMM, I. Chapeuzinho Vermelho. Ilustrações: Susanne Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
Como consta na sinopse do livro: “O clássico conto recolhido pelos Irmãos Grimm ganhou roupagem
moderna. O texto manteve-se inalterado, mas as ilustrações penetram camadas ocultas do imaginário
infantil, reafirmando o universo assustador e original da história. Dotada de uma sensibilidade
expressionista, a ilustradora alemã Susanne Janssen carrega nas tintas do Lobo. Para não falar das cores
fortes, dos ângulos inusitados e da agudeza com que retrata Chapeuzinho Vermelho”. 63
Quem quiser conhecer mais sobre a artista e suas produções, em seu site pessoal ela divulga seus
trabalhos: http://susannejanssenart.eu/
79
discute sobre como a disposição e composição na obra literária é amplamente
relacionada e fundamental à reação estética, pois não é qualquer história disposta e
arranjada de qualquer forma que irá suscitar prazer estético.
Considerando tais nuances na construção literária, que integram e interferem no
movimento de apropriação da história e na produção de sentido pelas crianças, antes de
chegarmos, enfim, a nos deter em um modo específico de participação, gostaríamos de
comentar sobre outros dois modos (enunciados nos turnos 15/17 e 57/58) que também
se destacam nas cenas transcritas. Entendemos que esse exercício de análise nos
possibilita ampliar a forma de conceber e de tentar compreender os modos de
participação das crianças na leitura literária.
Na dinâmica dialógica entre autor, texto, leitor e criança, que compreende a
leitura mediada pela professora, os gestos e comentários das crianças configuram-se
como respostas à linguagem literária, e expressam os movimentos de incorporação e
significação da obra de arte. Observemos, primeiramente, o turno 15. Essa fala é
interessante para percebermos como a criança é “capturada” pela palavra na obra
literária.
A composição literária explora, alarga e altera o sentido das palavras, o que
desperta a curiosidade e intriga o menino que, por meio da sua indagação “raio de sol
dança? ”, parece querer entender, compreender, dar sentido à leitura que se realizava e
às imagens que tais palavras provocavam nesse processo. Ao compartilhar em voz alta
essa busca por desvendar a dimensão metafórica e poética das palavras, outra criança,
sem titubear e convicta da sua colocação, responde ao questionamento com um “raio de
sol? É lógico que dança! ” (turno 17). Por fim, o menino ainda balança as mãos, como
se fossem os tais raios de sol dançantes, parecendo “brincar” com o sentido da frase.
Em outro momento da leitura (turno 57), também notamos essa procura do
“leitor-ouvinte” por compreender os sentidos das palavras no texto literário. Diante do
estranhamento da própria professora com o termo “refestelado”, uma das alunas se
interessa por saber qual o seu significado, sem ainda nem saber ao certo como
pronunciá-lo. E, mais uma vez, é outra criança que tenta ajudar, buscando um sentido
para a palavra a partir do contexto em que ela se encontrava – como o lobo tinha
acabado de comer a Vovó e a Chapeuzinho, o menino supõe que refestelado quer dizer
que ele “tá barrigudo...” (turno 58) - mas que não corresponde ao seu significado de
80
fato64
. Então, para resolver o “problema”, a professora propõe que depois eles
pesquisem a definição - o que, infelizmente, talvez por esquecimento, não acontece ao
término da leitura.
Sobre esses modos, lembramo-nos de Bakhtin (2014), quando afirma que
compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação
a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A
cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender,
fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma
réplica [...] A compreensão é uma forma de diálogo [...] Compreender
é opor à palavra do locutor uma contrapalavra (BAKHTIN, 2014, p.
137, grifo do autor).
Palavras e contrapalavras, como vimos, carregadas, repletas de significação.
Sobre isso, também é oportuno pensar em como o contato e aproximação das crianças
com as produções literárias acabam por incorporá-las à experiência estética da
humanidade e a ampliar seus conhecimentos pessoais (VIGOTSKI, 2010), dando a
perceber e apreciar outros modos de dizer, escrever, significar e interpretar a realidade.
Passemos, agora, a nos concentrar em um modo de participação: aquele em que
a repercussão da palavra literária é transformada em gestos. Se, como já dissemos no
início, essa vivência com a literatura nos parece tão intensa, o que podemos
problematizar sobre a experiência e educação estética a partir desse recorte? Podemos
conceber os movimentos desse aluno como um indicativo da reação/vivência estética?
Se a vivência estética, como vimos no capítulo teórico, envolve e implica um trabalho
psíquico e este, por sua vez, é árduo e íntimo, como, então, sabemos o que está
acontecendo? Já que não se pode ter acesso direto ao que uma pessoa pensa ou vivencia
internamente, a não ser pelos gestos ou palavras enunciadas.... O que podemos tomar
como indicadores ou indícios interpretáveis das elaborações pessoais, subjetivas? Como
é que esse menino nos mostra o modo de recepção/compreensão ativa e participação na
história?
É por isso que vamos, então, em busca daquilo que se torna visível por meio do
trabalho analítico.... Nesse sentido, vemos uma possibilidade de inferir e atribuir sentido
aos gestos que esta criança realiza. Isto posto, ainda surgem outras questões: E como é
que se constitui essa escuta, atenção, esse deixar-se afetar pela leitura literária, que se
64
De acordo com dicionário Houaiss (online), o adjetivo refestelado vem do verbo refestelar-se, que quer
dizer: 1- (pron.) [prep.: em] atirar-se a algo prazeroso; comprazer-se, deleitar-se; 2- (pron.) [prep.: em]
sentar-se ou estender-se sobre algo, para descansar, para acomodar-se bem; estirar-se, recostar-se.
81
mostram nos gestos tão expressivos que o menino realiza? Memória... Imaginação...
Emoção.... Que complexos processos psíquicos se encontram envolvidos na percepção
da obra pelo aluno? Tentaremos explorar essas e outras questões que emergem nas
linhas que se seguem.
É interessante inicialmente observar que, enquanto nas análises anteriores é por
meio da palavra enunciada que as crianças indicam e expressam o envolvimento e
participação com o que estava sendo narrado, nessa criança tal indicativo se dá,
sobretudo, através dos gestos. A quase pantomima que acompanha a leitura da
professora começa com “o lobo pensou com os seus botões”, em que o menino, talvez
por desconhecer o sentido conotativo da frase, replica à história gesticulando e imitando
literalmente o que era narrado, o que depois vai ganhando força e se intensificando no
decorrer da narrativa. O curioso é perceber que esse crescente dos gestos do menino
“contagia” algumas outras crianças, que por alguns instantes compõem movimentos
junto com ele (turnos 48, 56, e 71).
Antes de seguir com a discussão, vale pontuar que, depois de assistir várias
vezes à cena, pudemos perceber que nesse primeiro flash de participação do aluno, antes
de iniciar sua dramatização, ele dá uma rápida olhada para a pesquisadora com a
câmera. O mesmo acontece no início da cena II. Como interpretar esse movimento do
olhar? Intencionalidade na ação? O menino estaria representando para a câmera? Para
a pesquisadora? Ou para ele mesmo? Qual o significado dessa olhadela? Era apenas a
segunda vez que a professora lia para as crianças na roda e que a pesquisadora gravava
em pé e com a câmera nas mãos, em frente às crianças (nas vezes anteriores, a câmera
ficava no tripé). Então, foi a câmera que motivou o desenrolar dos gestos? Foi a câmera
ou a pesquisadora que provocou a dramatização? Será que foi a situação diferenciada
como um todo?
Se relevarmos esse rápido olhar para câmera como objeto de análise,
poderíamos, então, interpretar a presença do outro na convocação dos gestos da
criança.... Entretanto, mesmo se considerarmos a câmera e a pesquisadora como
disparadores do apresentar-se para o outro, a história, em si, continua sendo a principal
mobilizadora, pois sem sua leitura, tal dramatizar não aconteceria.
Na sequência das cenas, depois de enunciar em voz alta “Se eu fosse o lobo...”,
o menino passa a dar vida às ações das diferentes personagens que pertencem à história.
Entre o seu dizer entusiasmado e os seus gestos de acompanhar, interpretar, representar
82
e replicar o narrar da professora, vemos que nesse faz-de-conta despertado pela leitura
ele assume alguns papeis: é o Lobo, a Chapeuzinho Vermelho, a Vovó e o Caçador....
Imagem 1 - Cena I e II (à esquerda e à direita, respectivamente)
Imagem 2 - Cena IV
Imagem 3 - Cena IV
Perante esse modo de se envolver, o que é possível levantar de questões e
análises? Podemos chamar esse modo de participação da criança, que é pelo gestual e a
cada passo da história, de dramatização? O que está em jogo quando ele ocupa o lugar
das personagens, elaborando e objetivando suas ações? Talvez o que está em pauta
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nesse modo de se apropriar da história, sejam os sentidos do dramatizar pela criança:
essa dramatização implica, necessariamente, a vivência do drama – em termos
vigotskianos?
Um primeiro aspecto que a análise das cenas nos permite pensar é sobre como a
palavra da professora, na leitura do livro, vai evocando na criança algumas imagens…
Isto é, pela linguagem, o “leitor-ouvinte” vai mentalmente elaborando, formando e
imaginando as situações das personagens do conto infantil e, no e com o seu corpo,
(re)cria e representa a história. Tomemos, como exemplo, a Imagem 3. Quando o
menino abre a barriga do lobo imaginário, o gesto que realiza é intenso.... Tem a
duração da ação solicitada, que é incentivada pela leitura do outro. Por isso, neste ato
criador e expressivo da criança, temos a possibilidade de ver como o funcionamento
imaginativo está nele implicado, que se (re)constrói e é orientado pela enunciação da
professora.
Por meio da teoria enunciativa de Bakhtin (2014), podemos conjecturar sobre o
poder da palavra no texto literário, no qual se entretecem linguagem e vida. Assim,
temos elementos para indagar sobre como a palavra afeta e se articula ao pensamento
imagético e verbal do indivíduo, como linguagem e imaginação se inter-relacionam na
vivência individual e coletiva, no processo de criação. Como nos fala Vigotski (2014), o
domínio da linguagem pela criança a libera das impressões imediatas, dando a
possibilidade de representar mentalmente e pensar sobre algo mesmo que não o tenha
visto. A análise do episódio em questão nos mostra justamente que, por meio do signo
linguístico, o menino passa a imaginar aquilo que não tem diante dos olhos, permitindo-
o vivenciar as cenas, personagens e cenários da história, o que, por sua vez, amplia sua
vivência criadora e experiência pessoal65
. Isto é, graças à palavra o homem pôde
libertar-se da realidade concreta, constituindo um forte impulso para sua imaginação.
Além disso, sendo a história infantil produto da imaginação do seu autor66
, que
recombina os elementos da realidade na construção de algo novo, tal como em um
instrumento técnico, também descreve o “círculo completo da atividade criativa da
imaginação” (VIGOTSKI, 2009, p. 30), pois enquanto aquele influencia na realidade
65
“[...] a imaginação adquire uma função muito importante no comportamento e no desenvolvimento
humano. Ela transforma-se em meio de ampliação da experiência de um indivíduo porque, tendo por base
a narração ou a descrição de outrem, ele pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente
em sua experiência pessoal. A pessoa não se restringe ao círculo e a limites estreitos de sua própria
experiência, mas pode aventurar-se para além deles [...]” (VIGOTSKI, 2009, p. 25). 66
Diz Vigotski (2009): “as criações mais fantásticas nada mais são do que uma nova combinação de
elementos que, em última instância, foram hauridos da realidade e submetidos à modificação ou
reelaboração da nossa imaginação” (p. 20).
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externa, a obra artística passa a influir na realidade interna, no nosso mundo interior,
nas ideias e sentimentos dos seres humanos (ibidem, p. 31). Nesse sentido, pelos gestos
do menino, vemos o quanto a literatura potencializa a imaginação humana e, também,
como possibilita ao seu “leitor-ouvinte” uma vivência emocional real.
Ao discutir sobre a capacidade criadora da criança e sua valorização nas relações
de ensino, Vigotski (2009) discorre sobre a dramatização como atividade humana,
impregnada de sentidos, na qual encontram-se envolvidos complexos processos
referentes aos afetos, à sensibilidade, à memória, à imaginação, ao conhecimento, à
criação. É pertinente ressaltarmos que assumimos essa cena como uma dramatização
porque entre os dizeres “Se eu fosse o lobo...” e “Sou eu, a vovozinha…” e suas
composições corporais, o menino (re)vive as cenas, assume vários papéis, experimenta
ser outro, um personagem imaginário. Nesse jogo simbólico e fantasioso de ser o Lobo,
por exemplo, ele ainda vai além do que é narrado quando diz por conta própria “Ai...
que delícia” (turno 46). Assim, se pensarmos na forma dramática com que o menino
elabora suas impressões acerca da obra literária, podemos dizer que ele compreendeu,
entendeu e imaginou a história a partir da narrativa de outrem, como também a
vivenciou, encarnando-a externamente em movimentos corporais.
A partir dos escritos vigotskianos (VIGOTSKI, 2000), podemos ainda afirmar
que o dramatizar possibilita, pela vivência das mais diversas relações sociais e posições
assumidas, tanto a objetivação quanto a elaboração - na esfera subjetiva - de
experiências alheias contraditoriamente vivenciadas.
Levando-se em consideração o princípio de interfuncionalidade proposto por
Vigotski, compreendemos o quanto percepção, abstração, memória, imaginação,
emoção, são funções psíquicas que se entrelaçam no processo de escuta e recepção da
obra literária. Nas palavras do próprio autor,
La imaginación debe ser considerada como una forma más
complicada de actividad psíquica, como la unión real de varias
funciones en sus peculiares relaciones. Para tan complejas formas de
actividad, que superan los límites de los procesos que acostumbramos
a llamar funciones, sería correcto utilizar la denominación de sistema
psicológico, teniendo en cuenta su complicada estructura funcional.
Son características de ese sistema las conexiones y relaciones
interfuncionales que predominan dentro de él (VIGOTSKI, 2014, p.
436, grifo do autor)67
.
67
“A imaginação deve ser considerada como uma forma mais complicada de atividade psíquica, como a
união real de várias funções em suas peculiares relações. Para tais complexas formas de atividade, que
ultrapassam os limites dos processos que costumamos chamar funções, seria correto utilizar a
85
Ao dedicar-se ao estudo da obra de Vigotski, Toassa (2009) também escreve
sobre este assunto, ao dizer que o mergulhar na obra de arte deflagra o funcionamento
de uma rede de funções: percepção, linguagem, pensamento, memória, sentimento (p.
94). Portanto, a partir desse princípio explicativo vigotskiano e do trabalho analítico até
aqui realizado, podemos afirmar que a apropriação da obra de arte, a apreensão e
produção de sentido no texto literário, a elaboração da vivência com a literatura pelas
crianças, seja por gestos ou enunciações, concretiza-se, organiza-se e constitui-se em
conjunto com diferentes funções mentais, fruto da interconexão e relação existentes
entre elas.
Tendo até aqui descrito e analisado sobretudo e mais detidamente o modo de
participação e envolvimento com a literatura de uma criança, o que nos permitiu pensar
e estudar sobre esse complexo processo de recepção estética, vimos também que estas
mesmas quatro cenas condensam outros modos, dos quais nos ocupamos brevemente:
aqueles que por meio de palavras, indagações, exclamações, também nos dão pistas
sobre os modos pelos quais as crianças se apropriam do texto literário. Cuidaremos de
explorar melhor esses aspectos na próxima seção deste trabalho, a partir de um outro
recorte de cena a ser apresentado.
Contudo, entre esses diferentes modos de estar e participar aqui comentados,
aparecem e intriga-nos outros que, em um primeiro momento, não são tão prontamente
visíveis e que, na verdade, parecem ser o contraponto ou até mesmo a negação de tudo o
que aqui foi dito. Estamos nos referindo àquelas crianças que, durante a leitura,
mostram-se não se envolver, não querer participar da atividade. É esperado e
compreensível que as mais de vinte e cinco crianças não fiquem todas, ao mesmo tempo
e durante toda a leitura, completamente deslumbradas e envolvidas da mesma forma.
Cada uma vai responder do seu jeito, do seu modo. Porém, notamos que algumas delas
demonstram estar totalmente alheias à narrativa. E, de início, podemos perguntar: Como
interpretar esse não (não?) envolvimento? Se partimos do pressuposto de Vigotski da
natureza social do desenvolvimento humano, ou seja, a sociogênese das funções
psicológicas superiores, e se concebemos a educação estética sustentada neste princípio
- de que criança não nasce pronta e naturalmente disposta/interessada a este tipo de
produção humana; de que o sujeito vai se constituindo nas relações - então, do que se
denominação de sistema psicológico, tendo em conta sua complicada estrutura funcional. São
características desse sistema as conexões e relações interfuncionais que predominam dentro dele”
(Tradução nossa).
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trata nesses casos? Como entendê-los e explicá-los? O que nós (não) conseguimos
enxergar?
Dados os limites deste trabalho, não há lugar aqui para o aprofundamento destas
complexas questões envolvidas no processo de educação estética. Entretanto,
compreendemos que não se deve perdê-las de vista, buscando dar visibilidade a estes
outros modos de participação – os quais são, muitas vezes, ignorados e esquecidos pela
escola. No esteio dos apontamentos de Vigotski (2010) a respeito da educação estética,
é preciso reforçar que este trabalho com leitura de literatura é um processo lento de
sensibilização da criança para a dimensão estética da vida humana e que, portanto,
como já pontuamos, decorre de uma “aprendizagem especial” (ibidem, 2010) que
demanda um intenso trabalho educativo de formação do sentido estético.
Dito isto, seguiremos o capítulo examinando um outro modo que se apresentou
no campo empírico: quando a palavra anuncia e enuncia o envolvimento e
encantamento das crianças com as histórias literárias.
87
3.2. Ler, ouvir, sentir, significar
Ao narrar detalhadamente as lembranças de sua infância, a relação com a mãe e
os avós maternos, Sartre (1995) relata a história de sua formação como escritor, como
foram suas primeiras experiências com a leitura - mesmo aquelas em que não sabia ler -,
as aventuras na biblioteca do seu avô escritor e suas primeiras invenções escritas,
quando ainda criança. Em uma das passagens d’As Palavras68
, depois de fracassada sua
tentativa de conseguir ler sozinho o livro que havia ganhado do avô, Sartre descreve a
sensação de vê-lo ganhar vida pela voz de sua mãe:
“[...] Anne-Marie fez-me sentar à sua frente, em minha cadeirinha; inclinou-se, baixou
as pálpebras e adormeceu. Daquele rosto de estátua saiu uma voz de gesso. Perdi a
cabeça: quem estava contando? o quê? e a quem? Minha mãe ausentara-se: nenhum
sorriso, nenhum sinal de conivência, eu estava no exílio. Além disso, eu não reconhecia
sua linguagem. Onde é que arranjava aquela segurança? Ao cabo de um instante,
compreendi: era o livro que falava. Dele saíam frases que me causavam medo: eram
verdadeiras centopeias, formigavam de sílabas e letras, estiravam seus ditongos, faziam
vibrar as consoantes duplas: cantantes, nasais, entrecortadas de pausas e suspiros, ricas
em palavras desconhecidas, encantavam-se por si próprias e com seus meandros, sem se
preocupar comigo: às vezes desapareciam antes que eu pudesse compreendê-las, outras
vezes eu compreendia de antemão e elas continuavam a rolar nobremente para o seu fim
sem me conceder a graça de uma vírgula. Seguramente, o discurso não me era
destinado. Quanto à história, endomingara-se: o lenhador, a lenhadora e suas filhas, a
fada, todas essas criaturinhas, nossos semelhantes, tinham adquirido majestade, falava-
se de seus farrapos com magnificência; as palavras largavam a sua cor sobre as coisas,
transformando as ações em ritos e os acontecimentos em cerimônias” (SARTRE, 1995,
p. 35).
O estranhamento e encantamento do então menino Sartre pela leitura da história,
que já lhe era familiar por outrora ter sido contada pela mãe na hora do banho, são no
trecho muito bem expressos e nos dão a perceber os movimentos de apropriação e
significação do texto literário pelo ouvinte-criança, àquela busca por apreender os
sentidos das palavras cravadas pelo autor nas páginas do livro, que na dinamicidade da
leitura do outro às vezes nos escapam.
68
O leitor pode estar se perguntando quanto ao porquê da inserção do escrito de Sartre nesta dissertação.
Nesse sentido, é importante assinalar que para compor este trabalho também procuramos “resgatar” as
vivências estéticas da própria autora, como a leitura de livros não acadêmicos oportunizada pela
disciplina do programa de pós-graduação ministrada pelo professor Dr. Joaquim Fontes Brasil. Assim,
fica aqui registrado o encantamento e agradecimento pela realização do curso “Leitura e Ensino”, sob
orientação do professor Joaquim, no segundo semestre de 2015.
88
Podemos dizer que ouvir uma história pela voz de outra pessoa não é um
exercício simples, imediato, pois demanda por parte de quem ouve todo um esforço de,
no acompanhar da narrativa, ir elaborando na mente as imagens e os sentidos
correspondentes e, ainda, se permitir emocionar com ela. Não raro presenciamos um
adulto que, diante da leitura feita por um outro sujeito, posteriormente solicita o suporte
em questão para poder ler por si próprio.
Nesse sentido, é comum o adulto que se coloca na posição de leitor lançar mão
de certas estratégias discursivas para fisgar a atenção da criança para o momento de
leitura e possibilitar, a cada palavra e frase enunciada, que ela vá produzindo sentidos e
se envolvendo com a história. Assim, por exemplo, em certas passagens, pode ora
diminuir ora aumentar o tom da voz; por vezes, falar p-a-u-s-a-d-a-m-e-n-t-e algumas
palavras; em outras, reiterar o que foi lido com suas próprias expressões para salientar
alguns pontos que podem ser importantes para a compreensão; fazer silêncio, seja ele
longo ou curto, entre uma frase e outra - o que gera, muitas vezes, expectativa e tensão
do que está por ser dito.... Enfim, fazer uso de acentuação, entoação, retomada, ênfase e
ritmo.
Situação: Retorno do intervalo. As carteiras das crianças foram afastadas e, no centro
da sala, foi colocado o tapete usado para as rodas de leitura. Nesse dia, dois tapetes
retangulares foram postos no chão, o que deixou o espaço maior para as crianças se
sentarem. A pesquisadora convida as crianças a se sentarem no chão e sugere, para
quem quisesse, tirar os sapatos. A leitura foi feita pela pesquisadora, que ficou sentada
em uma cadeira em frente às crianças. Já a professora se sentou perto das crianças,
também em uma cadeira. O registro foi feito com a câmera no tripé. A história do dia
era “A operação do Tio Onofre – uma história policial”, de Tatiana Belinky69
.
69
Como selecionamos e transcrevemos apenas alguns trechos da história narrada, disponibilizamos, por
sugestão dos membros da banca de qualificação, a transcrição do texto completo da história para facilitar
o acompanhamento das análises (ANEXO 2).
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Momento I
(Duração: 08m02s – 08m52s)
Pesquisadora Professora Fala das crianças Gestos das crianças
1. (Lendo, com a voz um pouco
mais baixa, tentando fazer
suspense): Ihhhh, gente.... “Mas
uma tarde, Talita estava com a
mamãe assistindo televisão,
quando tocou a campainha…”
2. Professora pede para a
Mayana se sentar ao lado dela.
3. Carlos com o olhar fixo para a
pesquisadora.
4. Isabelly, com a boneca nas
mãos, com o olhar fixo para a
pesquisadora.
5. Carlos (fazendo um gesto de
arma com a mão): Será que é o
de arma??
6. Mayana se senta perto da
professora.
7. (Lendo): “Talita correu e foi
logo abrindo a porta, sem antes
verificar quem era...” (faz uma
pequena pausa e, então, continua
a leitura fazendo uma voz de
assustada) “E não é que era dois
ladrões armados!!?”
8. Mateus (olhar fixo, falando
baixinho): Era quem?
9. Heloísa, enquanto mexe no
cabelo, com o olhar fixo na
pesquisadora.
10. Ana, se rastejando no chão,
começa a ir para um lugar livre
que tinha mais ao fundo da sala.
Quando a pesquisadora lê “dois
ladrões armados”, olha
rapidamente para frente.
11. Isabelly, que está com uma
boneca no colo, fica com os
olhos fixos na pesquisadora e
quase sem se mexer....
90
12. Renan e Wellington olham de
canto de olho para a
pesquisadora...
13. Mateus (comemorando): Que
da hora!!
14. Carlos, então, olha para o
amigo Mateus com os olhos bem
abertos, com um sorriso no
rosto, como se estivesse
gostando…
15. Ai! (Lendo) “Os mal-
encarados sujeitos empurraram a
Talita e foram entrando (pequena
pausa, diminuindo o tom da voz)
de armas apontadas...”
16. Everton, deitado mais ao
fundo, olha fixo para a
pesquisadora.
17. Heloísa continua mexendo no
cabelo e olhando fixamente para
a pesquisadora.
18. Mateus (olhando para o
Carlos): Que da hora!!
19. Carlos dá um baita sorriso
20. (Lendo): “ ‘Isso é um
assalto’, gritou um dos bandidos!
‘Entregue o dinheiro, as joias,
madames, e nem um piu....
Ouviu?’” (virando o livro para
as crianças) Olha só esses dois
ladrões mal-encarados...
21. Eros (bravo com a
comemoração do Mateus,
empurra o colega): Da hora
nada!!!
22. Emerson olha fixo para a
pesquisadora.
23. Crianças espicham o pescoço
91
para ver a ilustração.
24. Carlos, olhando para as
imagens, com a mão faz como se
estivesse segurando uma arma,
apontando em direção ao livro.
25. Heloísa, depois de ouvir a
pesquisadora ler, vai
engatinhando até a amiga Ana e
senta ao lado dela.
Momento II
(Duração: 09m52s – 13m15s)
Pesquisadora Professora Fala das crianças Gestos das crianças
26. (Continuando a leitura, em
tom de suspense): “O telefone
tocou (pausa) uma, duas... três
vezes...” (virando o livro) Olha
lá...
27. Alguma criança: Três...
28. Brenda (imitando o barulho
do telefone): Trimm, trimmm,
trimm...
29. Crianças com o olhar fixo na
ilustração.
30. (Conversando com as
crianças, conforme mostrava a
ilustração): O cofre, crianças,
olha, fica atrás desse quadro. O
31. Brenda: Não estou vendo...
92
que que tem dentro do cofre?
32. Eros: Dinheiro!!!
33. Brenda: Dinheiro!!
34. Dinheiro! E os ladrões
queriam levar todo o dinheiro
deles.... Mas para abrir o cofre
tem um segredo, igual contou
aqui no livro. E o que é esse
segredo? É uma senha! E só
quem sabe essa senha é que
consegue abrir o cofre....
35. Vitor (sem conseguir
concluir, apontando para o
livro): Elas são muito...
36. Carlos: Só o pai!!!
37. E os ladrões, olha só,
pediram para a mamãe da Talita
abrir o cofre... (para Carlos) E o
pai??? O telefone tocou...
(falando pausado e contando
com a mão) Uma, duas... três
vezes...
38. Mateus (fazendo o número
com a mão): Duas....
39. Brenda (imitando o barulho
do telefone tocando): Trimm,
trimm, trimm.... Deve ser o pai!!
40. Será que é o pai??? Vamos
ver....
41. Carlos (sem conseguir
concluir): Só o pai, é que...
93
42. (Colocando a mão na
cintura): “ ‘Só faltava isso!!’
Resmungou um dos ladrões.
‘Deve ser o pai!’, murmurou a
Talita, mas crianças....
(Diminuindo o tom da voz) ela
estava quase chorando...
(tentando fazer voz de choro)
‘Ele sempre telefona a tarde pra
saber da gente...’ ” Olha lá,
Brenda. Era o pai mesmo que
estava ligando.... Olha só o que o
ladrão falou “ ‘Droga, se
ninguém responder e atender o
telefone, o pai vai estranhar!
Então, atenda logo!’, gritou um
dos bandidos... ‘A senhora não,
madame. A senhora cuide do
cofre. Você, menina. Atenda
logo! E cuidado com o que vai
dizer…’ (movimenta a mão,
como se estivesse pegando um
telefone) Então a Talita foi e
pegou o telefone....
43. Mateus (com as duas mãos
juntas, apertando bem forte e
balançando, como se estivesse
torcendo, fala baixinho):
“Atende!! Fala que tem
ladrões.... Fala que tem
ladrões!!”
44. Carlos faz algum comentário
para a pesquisadora, mas não dá
para compreender.
45. Crianças com os olhos fixos
na pesquisadora.
46. Mateus (apertando bem as
mãos, levando-as em frente ao
rosto e com um sorriso de
tensão): Aiiiiiiiii....
94
47. (Lendo): “ ‘Não deixa
perceber nada…. (arrastando a
voz) Senãoooo....’”
48. Carlos (fazendo uma arma
com a mão): Atira!!
49. Eros (fazendo uma arma com
a mão): Pummmmm! Pum, pum,
pum, pum....
50. Wellington, bem
rapidamente, faz o mesmo gesto
que Eros.
51. Levi dá uma risada tímida
52. Olha lá... 53. Eros leva as mãos na cabeça
54. (Bem baixinho): Quero ver o
que ela vai falar....
55. (Mostrando a ilustração):
Olha a Talita morrendo de medo.
Olha a cara de assustada dela!
Ai, até eu estou com medo!
56. Brenda (fazendo barulho do
telefone tocando): Trim, trim,
trim....
57. Crianças com o olhar fixo na
ilustração.
58. E olha o telefone tocando...
(Mostrando a ilustração) Olha a
cara de bravo desses dois
ladrões! Vamos ver o que que
aconteceu nessa conversa com o
pai da Talita...
59. Brenda (fazendo barulho do
telefone tocando): Trim, trim,
trim....
60. Mateus (ainda com as mãos
apertadas, como se estivesse
torcendo): Por favor, por favor...
(levando as mãos em frente ao
61. Eros leva as mãos na cabeça,
e fica balançando os braços,
para lá e para cá, como se
estivesse ansioso por saber o que
iria acontecer na história.
95
rosto e abrindo bem a boca)
Ahhhh!!! (depois, bate uma mão
na outra, como se estivesse na
expectativa com o desenrolar da
história)
62. “A Talita atendeu o
telefone…”
63. Olha lá...
64. (Lendo): “ ‘Alô?’ E a Talita,
crianças, ela estava toda
trêmula....” assim, ó
(pesquisadora estica o braço
para frente e começa a tremer as
mãos). Quando a gente fica com
medo a gente não fica tremendo
assim, de medo? (Lendo):
“Enquanto o ladrão, ele pegava
outro telefone que tinha lá no
vestíbulo para ouvir a conversa.
‘Talita?’, era a voz do papai.
‘Tudo bem aí, filhota?’. A Talita
respondeu assim (pesquisadora
fala gaguejando)
‘Tu....tu...tudo... tá…tá... tudo
bem, papai!’ ”. Ela ficou
gaguejando, coitada da Talita...
65. Emerson e Wellington olham
bem para as mãos e tentam fazê-
las tremer como a pesquisadora
tinha mostrado.
66. Wellington acha graça
quando a pesquisadora imita a
personagem gaguejando.
96
67. Brenda: Fala que está com
ladrão...
68. (Lendo): “E o ladrão, olhou
feio assim para ela (pesquisadora
faz cara de brava) Aí a Talita
disse… (se corrigindo) o papai
da Talita disse assim ‘Talita,
avisa a mamãe que eu vou chegar
atrasado para o jantar, mais ou
menos uma hora. Você está me
ouvindo, filha?’ (gaguejando)
‘Estou, papai.... Sim... você, você
vai chegar... ééé... atrasado! ’ ”.
Coitada, a Talita ficava
gaguejando de medo! “Aí o papai
desconfiou... Ele falou assim ‘A
sua voz está diferente, Talita.
Vocês estão bem mesmo? ’. O
ladrão apontou a arma pra
menina e falou assim ‘Vê lá o
que você fala, hein! E vê se não
gagueja...’ ”
69. Isabelly, com a boneca nas
mãos, quase nem se mexe e olha
fixo para a pesquisadora.
70. Carlos, boquiaberto, com os
olhos fixos na pesquisadora.
71. Wellington dá risadas
quando a pesquisadora gagueja.
72. Crianças com o olhar fixo
para a pesquisadora.
73. Mateus (com as mãos bem
apertadas, levando-as na altura
do queixo, como se estivesse
tenso): Fala que tem dois
ladrões!!
97
Momento III
(Duração: 14m49s – 15m49s)
Pesquisadora Professora Fala das crianças Gestos das crianças
74. (Lendo): “O ladrão, crianças,
ficou satisfeito com a resposta da
menina, fazia sinais para ela
terminar logo a conversa ‘Acabe
logo com esse papo furado,
menina’. E a Talita, apressou-se
em obedecer.... Ela não ia
desobedecer o bandido!
75. Eros, depois que termina de
falar, leva as mãos à cabeça e
fica balançando, inquieto.
76. Heloísa deita no tapete.
77. Mateus (baixinho, para ele
mesmo): Ahhhh! Desobedece,
vai!!!
78. (Lendo): Aí a Talita falou
assim “ ‘Eu falo para a mamãe
que você vai chegar atrasado
para o jantar (dizendo de maneira
demorada) Até loooooogo,
papai. Até logo’. E Talita
desligou o telefone” Olha lá
(mostrando o livro) Ela pôs o
telefone no gancho, o ladrão
ficou ali, bem pertinho dela,
ameaçando.... E o papai, lá no
trabalho, ficou se perguntando
assim ‘Tio Onofre????’. Tio
Onofre??
79. Mateus, parecendo estar
bravo, bate a mão na perna e faz
um barulho, como se estivesse
chateado com a resposta da
menina na história.
80. Crianças com o olhar fixo
para as ilustrações.
98
81. Eros: É o cofre!!
Momento IV
(Duração: 17m09s – 18m04s)
Pesquisadora Professora Fala das crianças Gestos das crianças
82. (Lendo) “Os minutos
passavam... (diminuindo o
volume da voz, em tom de
suspense) na sala só se ouviam as
vozes estridentes do desenho
animado na televisão, abafando
os outros ruídos…” A TV estava
ligada, só se escutava o desenho
que estava passando. “E só a
Talita, muito atenta, ela ouviu
um estalinho na porta...”
(pequena pausa)
83. Wellington olha de canto de
olho para a pesquisadora.
84. Crianças com o olhar fixo
para a pesquisadora.
85. Mateus (imitando o som do
estalo com a boca): Pá!
86. “E então.... Enquanto a
mamãe abria o cofre.... (falando
bem devagar e baixo) bem no
momento em que os ladrões se
precipitavam para ver o que tinha
lá dentro do cofre, a porta de
entrada abriu de repente!”
87. Mateus (baixinho): Era o
papai?!
88. Wellington continua olhando
de canto de olho para a
pesquisadora.
89. Mateus (diz bem baixinho,
apertando e esfregando as duas
99
mãos, como se estivesse
torcendo): Era o papai!!
90. (lendo): “E então....
Silenciosamente... (pequena
pausa) dois policiais irromperam
na sala, apontando as armas nas
costas dos bandidos! ‘Polícia!!!
Larguem as armas... Mãos aos
altos!!’ ”
91. Mateus comemora a entrada
dos dois policiais na história,
fazendo um gesto de
comemoração e dizendo baixinho
“Yes!!”
Momento V
(Duração: 18m27s – 20m06s)
Pesquisadora Professora Fala das crianças Gestos das crianças
92. (Lendo) “Atrás dos policiais,
entrou correndo...” Vocês não
imaginam quem entrou
correndo...
93. Carlos: O pai!!!!
94. (Lendo): “O pai da Talita! De
braços bem abertos!” Olha só o
que o papai da Talita falou “
‘Graças a Deus, vocês estão
bem!’. E ele então, crianças,
abriu os braços assim
(pesquisadora abre um braço) e
envolveu a mãe e a Talita num
95. Vitor vira para o Mateus e dá
um abraço no amigo. Depois,
Eros também abre bem os braços
e abraça o Mateus e Levi.
Wellington, Carlos e Vitor, ao
verem os amigos, também
abriram os braços para
participar do abraço coletivo.
100
graaande abraço”.
96. Everton bate palmas.
97. (Lendo): As duas crianças,
olha só, “a mamãe de Talita e
ela, até choravam de emoção e
alívio. E depois que terminou a
agitação e os dois policiais
levaram os assaltantes presos…”
Olha lá, os ladrões foram presos!
“A mamãe perguntou para o
papai...” Vamos descobrir esse
mistério... Olha o que a mamãe
perguntou....
98. Douglas se levanta e fica
olhando para as ilustrações.
99. Olha lá, gente...
100. Wellington (rindo): O Tio
Onofre! Tio Onofre!
101. (Lendo): “ ‘Mas querido....
Você não disse que ia chegar
atrasado? Como foi que você
adivinhou o que estava
acontecendo e chegou assim, em
cima da hora?’ ” Agora a gente
descobre o mistério... de como
esse papai descobriu...
102. Olha lá...
103. Wellington (bem baixinho,
para ele mesmo): O Tio Onofre...
101
104. Brenda: Eu acho que ele viu
que estava tremendo a boca
dela...
105. (Para Brenda): Oi?
106. Brenda: Acho que era por
causa que estava tremendo a voz
dela...
107. Ah, é? Ah... ele percebeu
que ela estava com medo pela
voz? Será que foi isso?
108. Emerson: Fooooi!
109. Olha só o que ele
respondeu. “O papai, piscou um
olho assim para a Talita, olha
(pesquisadora dá uma piscadela)
e disse... ‘E desde quando a
nossa filha tem um tio chamado
Onofre?? Onofre aqui em casa só
rima com uma coisa…’ ”
110. Eros mexe na boneca das
meninas.
111. Mateus também pisca o
olho.
112. Eros: Cofre!!
102
Diz Vigotski (2010) que “as mesmas palavras, porém pronunciadas com
sentimento, agem sobre nós de modo diferente daquelas pronunciadas sem vida” (p.
135). Mesmo que neste caso o teórico não estivesse se referindo diretamente à questão
da leitura literária, tal colocação nos ajuda a pensar a respeito do papel que a
intencionalidade na voz e o empenho do leitor em tentar transmitir a dimensão afetiva
das palavras, isto é, o que está por trás do simples registro do signo linguístico, gera no
comportamento de quem ouve as histórias.
O que importa, portanto, não é só a história em si, mas também o modo como é
contada. Sobre esse aspecto, como já dissemos no início deste capítulo, o leitor pode,
para dar vida e vivacidade ao texto literário, fazer uso de certas estratégias discursivas.
Na situação que destacamos, por exemplo, observamos que a narrativa é encaminhada
com constantes mudanças no tom da voz, de forma a engendrar certa tensão com o
desenrolar da história (turnos 1, 15, 26, 42, 64, 82, entre outros). De um lado temos a
inflexão da voz do leitor, as variações de altura e intensidade no dizer; do outro temos o
efeito que isso causa nos sujeitos que participam como ouvintes do momento, que tanto
se mostram por meio de palavras carregadas de entoação (turnos 8, 13, 87, entre outros)
como por certa imobilidade de alguns de seus espectadores, com o “congelamento” dos
seus gestos, sons/palavras e expressões (turnos 11 e 69).
O modo como se lê, como o adulto se expressa na leitura, o que oferece um
colorido e tonalidade à história, vai tornando e transformando a criança espectadora em
expectadora (FERES, 2012), ao criar nela expectativas e entusiasmos com o desenlace
da narração - o que acaba sendo um recurso de chamada à participação. Nesse sentido,
podemos dizer que aquele que realiza a leitura do livro colabora e auxilia na produção
de sentidos pelas crianças. Ressalta-se, portanto, o caráter mediador da atividade: o
leitor - permanecendo entre o livro, objeto estético e de conhecimento, e a criança, a
quem ele se dirige - pode orientar/facilitar a interpretação e compreensão do texto
literário.
Nesse encontro (texto/leitor/criança), notamos, por parte do leitor, algumas falas
que não seguem estritamente a forma como está escrita no livro, bem como certas
explicações que interrompem a leitura, possivelmente numa tentativa de reforçar e
explicitar alguns aspectos que julga importante (turnos 30 e 34). Durante a narrativa,
também podemos observar que o “leitor-ouvinte” vai sempre em busca de possíveis
significações/interpretações dos acontecimentos, compartilhando em voz alta os
sentidos que vão sendo atribuídos e (re)construídos, os quais são inerentes ao processo
103
de escuta e recepção literária/estética. É assim, por exemplo, que alguns fazem
antecipações da história, como quando perguntam “será que é o de arma? ” (turno 5) ou
quando afirmam “deve ser o pai...” (turno 39) e tentam adivinhar, convencidos, de que
era “o pai!!!” (turno 93); já no final da história, temos o comentário da menina que tem
como hipótese para descoberta do assalto pelo pai o fato de que “ele viu que estava
tremendo a boca dela...” (turno 104), enquanto outras crianças já encontram na rima de
Onofre-cofre tal resolução do problema (turnos 81 e 100).
Na “história policial”, escrita por Tatiana Belinky (2004), um suspense é criado
para o “leitor-ouvinte”: a menina conseguiria ajudar seus pais a saírem daquela situação
de perigo? Por isso, o desenrolar dos acontecimentos são aguardados com grande
expectativa e tensão pelas crianças. Curiosidade, espanto, inquietação e ansiedade
fazem parte desse movimento....
Imagem 4 – Momento I
104
Imagem 5 – Momento II
Imagem 6 – Momento II
A inquietude frente à continuação, explicação e desfecho da história é percebida
pelos gestos e olhares das crianças, bem como pelas indagações (turnos 5, 8, 87),
exclamações (turnos 13, 18, 46), complementações (turnos 33, 48, 49, 85), sugestões
(turnos 43, 67, 73, 77) e inferências (turnos 39, 81, 93, 100, 104) ao que era narrado,
isto é, pelas palavras enunciadas e anunciadas, que vão nos indicando os diferentes
modos de participação na narrativa literária, como também os modos pelos quais o
leitor-ouvinte se apropria da literatura.
Mas, nesta participação coletiva, queremos chamar atenção para a singularidade
de um envolvimento. Um dos meninos, por meio de gestos e falas, demonstra para nós o
quanto estava enlevado e contagiado com o acontecer da história. Ele torce, angustia-se,
pede baixinho “Atende!! Fala que tem ladrões…” (turno 43), enquanto esfrega e aperta
uma mão na outra; emite um longo e forte suspiro de tensão “Aiiiii! ” (turno 46);
suplica a si mesmo para que a personagem fizesse o que ele queria, pedindo para que ela
desobedecesse o ladrão (o que talvez, na sua visão, poderia acabar com a situação de
105
perigo tão iminente), chateando-se quando a situação não sai como pretendia (turno 79);
por fim, comemora o desfecho da história (turno 91).
O modo como o menino se envolve com as desventuras das personagens da
narrativa, nos faz relembrar as considerações de Vigotski (2009) quando comenta sobre
a lei da realidade emocional da imaginação, da qual já tratamos no capítulo teórico, em
que se baseia para explicar os efeitos que as obras de arte causam em nós. Conforme
explicita o teórico:
As paixões e os destinos dos heróis inventados, sua alegria e desgraça
perturbam-nos, inquieta-nos e contagiam-nos, apesar de estarmos
diante de acontecimentos inverídicos, de invenções da fantasia. Isso
ocorre porque as emoções provocadas pelas imagens artísticas
fantásticas das páginas de um livro ou do palco de teatro são
completamente reais e vividas por nós de verdade, franca e
profundamente (VIGOTSKI, 2009, p. 28).
É evidente que ninguém está, de fato, correndo algum tipo de risco. Contudo, a
maneira como a autora constrói a história, o tom de suspense que dá à narrativa, atrai o
“leitor-ouvinte”, intriga-o, preocupa-o, atormenta-o - de verdade. Sabemos que a arte,
por meio da sua linguagem imaginativa e emocional, seja ela teatral, plástica, literária,
musical etc., exprime a experiência humana, o(s) drama(s) da existência e relações
humanas.... E é assim que podemos, em uma só vida, viver outras tantas, ser muitos
outros em um só eu70
. Na finitude da vida, própria da condição do ser humano, a arte
expande, enriquece, desdobra outras (im)possíveis. Nas palavras de Pino (2006), “a
função criadora do imaginário pode fazer surgir entes novos, experiências nunca
experienciadas, sentimentos nunca sentidos, mundos nunca vistos” (p. 59).
Sobre o prazer estético proporcionado pelas obras de arte, Vigotski (1999b),
endossando os comentários de Rank e Sachs, ressalta:
O prazer propiciado pela criação artística atinge o ponto culminante
quando ficamos quase sufocados de tensão, com o cabelo em pé de
medo, quando as lágrimas rolam involuntariamente de compaixão e
simpatia. Tudo isso são relações que evitamos na vida e
estranhamente procuramos na arte (VIGOTSKI, 1999b, p. 83).
70
Para falar nos termos de Bakhtin (2011), “a arte me dá a possibilidade de vivenciar, em vez de uma,
várias vidas, e assim enriquecer a experiência de minha vida real, comungar de dentro com outra vida em
prol desta, em prol de sua significação vital” (p. 73-74).
106
Arte e vida, portanto, entretecidas. E, entre elas, complexas relações
(VIGOTSKI, 1999b). Ladrões armados, ameaçando a família, o medo por isso
provocado, tal como no enredo do livro em questão, é uma situação dramática real que a
criança não gostaria de ter que enfrentar. Entretanto, aquilo que não experimentamos na
vida, que às vezes nem mesmo gostaríamos de passar na realidade, sentimos, sofremos,
vivenciamos, buscamos.... Na arte. Caberia perguntar: Como e por que isso se dá? A
palavra, no texto literário, atinge/afeta o outro diretamente? Por que vias esse
envolvimento da criança se realiza?
Na sucessão de acontecimentos que constituem a trama da história infantil,
sensações e sentimentos são atribuídos à narrativa e às personagens com base naquilo
que as crianças imaginam. O menino, por exemplo, que se preocupa com o destino da
família em perigo é o mesmo que no início da leitura, sem nenhum pudor, por meio de
uma gíria (turnos 13 e 18) comemora a entrada dos “vilões” na história - até que o
colega detrás, irritado, fica bravo com alegria tão escancarada (turno 21). Podemos
interpretar essa curiosa comemoração como sendo uma resposta à estrutura do suspense:
o menino compreende que uma história com fortes emoções se seguiria, isto é, que ele
poderia ter pelo o que torcer na sequência. Portanto, tal comemoração não se traduz
diretamente no plano da realidade concreta, ou seja, como se o garoto estivesse
realmente feliz por ter ladrões na história, mas sim pelo o que promete essa chegada em
termos de desdobramentos narrativos. Além disso, nessa estrutura de suspense que
encadeia o livro, também percebemos que as risadas causadas pelas rimas que a
personagem inventa no começo da história, contrastam-se com a posterior tensão criada
pela ameaça dos ladrões.
Sobre tais rimas com os nomes dos objetos da casa, elemento que ajuda a
desvendar o mistério da história, é interessante compartilhar uma situação que ocorreu
quase um mês após essa leitura. Um dos alunos (o mesmo que, durante a leitura, já
percebe a relação entre Tio Onofre e cofre - turno 81), enquanto a pesquisadora
organizava a turma para uma nova roda, interrompe-a para sugerir algo: “não podemos,
igual àquela menina da história do ‘Tio Onofre’, mudar o nome do baú de histórias71
? ”
(Trecho Diário de Campo, 02 de outubro de 2015). E foi assim, então, com a
pesquisadora e professora “entrando” na brincadeira do menino, que o baú se
transformou em “Tio Raul”. Essa situação é apenas para comentar sobre o quanto uma
71
Como já dissemos em outro momento, nas rodas de leitura que realizava com as crianças, a
pesquisadora levava um baú produzido por ela, de onde tirava o livro que seria lido no dia.
107
história e o que ela nos traz de novo, diferente e envolvente, pode reverberar e ecoar
para além do momento imediato em que é apresentada. Nesse caso relatado, vemos que
o menino, ao se apropriar das rimas com as palavras, também recria, faz sua própria
composição a partir dos elementos trazidos pela história.
Assim, do pouco que até aqui pontuamos, percebemos como os efeitos e afetos
produzidos na leitura do texto literário ressoam em todo o corpo daquele que participa
do momento, faz-se ver no mais simples gesto humano que é realizado, ganham
materialidade nas falas das crianças, em seus olhares singelos registrados, em que os
sentidos - estético? - vão sendo por elas construídos, elaborados, vivenciados e
experimentados.
108
Capítulo 4 - Sobre os modos de participação das crianças na autoria e na atividade
criadora de produção de textos
No capítulo anterior analisamos os modos de participação das crianças nas rodas
de leitura, elegendo duas situações vivenciadas, que nos permitiram refletir sobre os
efeitos e afetos produzidos durante a leitura, a partir das expressões, falas,
questionamentos, gestos e olhares durante a narrativa e a escuta do texto literário.
Dando continuidade aos nossos estudos, outras duas situações empíricas serão
objeto de análise neste último capítulo. Acompanhando uma proposta de produção
literária desenvolvida com as crianças72
, a qual já foi brevemente comentada ao
relatarmos o percurso do trabalho de campo, buscamos compreender o processo de
criação coletiva de uma história, bem como a escrita individual de uma das crianças.
Como já descrevemos no capítulo 2, a pedido da professora da turma, foram
selecionadas diferentes versões do conto Chapeuzinho Vermelho para que cada uma
delas fosse lida para as crianças (não foram dias seguidos, houve intervalos entre a
leitura de uma história e outra). Ao todo, foram cinco histórias apresentadas:
Chapeuzinho Vermelho, uma de Charles Perrault e outra dos Irmãos Grimm; A
verdadeira história da Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini;
Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque; Chapeuzinho Redondo, Geoffray de Pennart.
Findas tais leituras, após algumas semanas foi proposto às crianças que de leitoras de
tais textos, então pudessem ser autoras de outra versão.
O foco de nossas análises será, portanto, o movimento de apropriação/produção
coletiva das crianças, o que implica “[...] uma participação ativa da criança na cultura,
ao tornar próprios, dela mesma, os modos sociais de perceber, sentir, falar, pensar e se
relacionar com os outros [...]” (SMOLKA, 2009, p. 8, grifo nosso).
Para orientar as reflexões que aqui serão encaminhadas, levantamos a seguinte
questão: como a leitura da literatura e a produção literária fazem parte de/podem
integrar o sentido estético, isto é, a “ [...] experiência tanto do autor da obra de arte ou
artista quanto do receptor ou espectador desta obra” (PINO, 2007, p. 103), em
desenvolvimento na criança?
Nossa atenção se volta para alguns aspectos específicos, tais como: i) o modo
como a professora participa de e conduz a atividade, isto é, como a professora retoma,
72
O produto final desta proposta de elaboração coletiva encontra-se no Anexo 3.
109
relembra, convoca a participação das crianças, escuta atentamente à narrativa dos alunos
e como provoca e orienta a criação coletiva; ii) a participação dos alunos na atividade,
ou seja, como as elaborações das crianças individualmente integram a escrita coletiva;
iii) os sentidos do trabalho com literatura na formação de sujeitos que se tornam autores
e produtores de novas criações. Mais do que olhar para o texto final, produto acabado e
pronto, produzido pelo grupo e por uma criança individualmente, interessa-nos, neste
momento, realizar a leitura do processo e da dinâmica de tais produções. Afinal, tão
bem alertou-nos Vigotski (2009),
não se deve esquecer que a lei principal da criação infantil consiste em
ver seu valor não no resultado, não no produto da criação, mas no
processo. O importante não é o que as crianças criam, o importante é
que criam, compõem, exercitam-se na imaginação criativa [...]
(VIGOTSKI, 2009, p. 100).
Para tanto, encontramos no escrito vigotskiano Imaginação e criação na
infância, livro que evidencia a preocupação do autor com um trabalho pedagógico que
fosse orientado para a experiência estética da criança (destacando a criação teatral,
literária e os desenhos infantis), fecundos diálogos e fonte de muitas inspirações ao que
pretendemos investigar. Assim, com base neste referencial teórico, destacamos o modo
como a professora dá início à atividade e a forma como esta foi realizada.
Com as crianças em suas carteiras e um computador conectado ao projetor,
durante a atividade coletiva a professora permaneceu a maior parte do tempo em pé,
passando pelas fileiras para ouvir as sugestões e conversar com as crianças, enquanto a
pesquisadora ficou responsável por digitar e registrar a história conforme ia sendo
criada pelos alunos. A maneira como foi organizada a produção escrita aponta para
significativas contribuições que a inserção das novas tecnologias73
pode proporcionar às
relações de ensino. Vemos, por exemplo, que nesse modo de produção que se utiliza de
novos instrumentos técnicos-semióticos74
, tais como os recursos tecnológicos, a criação
das crianças ganha materialidade e pode ser objetivada durante o próprio fazer criativo,
73
Lembrando, contudo, que “[...] o acesso às novas tecnologias não elimina, mas pode redimensionar ou
transformar a utilização de tantos outros recursos historicamente produzidos [...]” e que, portanto, “se, por
um lado, eles são fundamentais como conteúdo da educação das novas gerações, por outro, não descartam
as muitas outras formas de produção humana” (SMOLKA, 2012a, p. 56-57). 74
Estudos contemporâneos na perspectiva histórico-cultural apontam para o uso do termo “instrumento
técnico-semiótico”, uma vez que o técnico é semiótico e o semiótico é técnico (PINO, 2003; SMOLKA,
2012a).
110
permitindo que elas possam acompanhar a complexa transformação de um intenso
borbulhar de ideias em um texto escrito.
Porém, antes de dar início ao processo criativo, o começo da produção da escrita
coletiva foi marcado por uma breve retomada que a professora fez, junto com a turma,
do enredo das diferentes histórias narradas, o que durou cerca de uns vinte minutos.
Nesse momento, com todos os livros lidos expostos na lousa, a professora pegou um por
um para poder recordar o nome dos seus autores, para rapidamente folheá-los e mostrar
suas ilustrações, bem como fazer uma síntese do conteúdo de cada uma das histórias.
Dessa ação da professora de recapitular cada livro, queremos realçar a importância que
esse outro, professor-interlocutor no processo de elaboração conjunta, pode ter em
auxiliar na rememoração de todo o conteúdo apresentado. Nesse sentido, os dizeres da
professora, sua preocupação em recuperar os detalhes e contexto de cada história,
enfim, o seu gesto de ensinar (SMOLKA, 2012b), tornam-se para nós significativos,
uma vez que revelam o quanto a mediação deste outro – professor/a - constitui um
elemento fundamental nas relações de ensino.
Foi interessante notar como as crianças participaram da recordação conjunta,
lembrando detalhes da trama de cada uma das histórias lidas. Sobre isso, podemos
pensar em Merleau Ponty, que ao falar da memória, vai dizer que fica o que significa
(apud SMOLKA, 2006, p. 106). Mas como as crianças significaram as experiências
com leitura de textos literários? Uma análise dos enunciados no processo de produção
do livro pode ajudar a compreender alguns aspectos.
Um dos meninos, por exemplo, nessa conversa inicial com a professora de
rememorar o enredo das histórias, fez uma associação da obra Chapeuzinho Amarelo
com uma outra que foi lida, cuja roda de leitura foi material de análise neste trabalho.
1. Professora: Depois da “Verdadeira história da Chapeuzinho Vermelho”, o livro que a gente
leu foi esse. Que a gente leu não, que Daniele fez aquela contação de história, trouxe aqueles
personagens, né? E foi bem legal! Foi esse aqui (pegando o livro) “Chapeuzinho Amarelo”. É
do Chico Buarque esse.... Até esqueci de falar o nome dos outros... Então a Chapeuzinho
Amarelo, que na verdade tinha muito medo, não é? Tinha medo de...? Tudo!! Mas do que ela
tinha mais medo?
2. Eros: De escuro!!
3. Renan: Do lobo!!
4. Professora: Do lobo, né gente?
5. Eros: E de escuro?
6. Professora: E aí ela inventou aquela brincadeira de trocar as sílabas!
7. Wellington: Que nem na... (pausa) a.... é.... o.... é.... “A operação do Tio Onofre”
8. Professora: É!! Olha aí que legal.... Na operação do Tio Onofre a menina trocava o nome dos
objetos da casa, colocava nomes...
111
(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)
O elo que o garoto consegue estabelecer entre uma história e outra mostra sua
percepção dos elementos que constituem cada uma delas, coloca em foco aspectos da
oralidade, da dimensão linguística: enquanto que em uma sua personagem inverte as
sílabas das palavras, criando novos nomes ao que tinha medo, na outra inventava-se
nomes de pessoas que rimassem com os objetos da casa. Atento às brincadeiras com as
palavras presentes nas duas histórias, percebemos o esforço do aluno em relembrar o
nome do livro que havia sido lido há mais de um mês pela pesquisadora (turno 7). A
enunciação do menino evidencia sua atenção à dimensão sonora da língua, bem como às
possibilidades de jogos de linguagem, consideradas tão importantes no processo de
aquisição da escrita pelas crianças.
É somente depois de comentar brevemente cada obra que a professora convida
as crianças a criarem, “do jeito delas”, uma nova história da Chapeuzinho Vermelho:
9. Professora: Então gente, todos esses autores, cada um fez do seu jeitinho, não foi Daniele?
Cada um escreveu de um jeitinho diferente as histórias... [...] Todos esses autores, cada um fez
do jeitinho que achava que ficava mais legal. Uns quiseram fazer só do lobo, uns quiseram fazer
que o lobo era muito mal, outros quiseram fazer que o lobo não era tão mal assim, que o lobo
era bonzinho; outros acharam que a Chapeuzinho Vermelho que tinha sido mal porque tinha
feito coisa errada... Então cada um escreveu do seu jeitinho. Hoje a gente vai fazer a nossa
história da Chapeuzinho Vermelho, do nosso jeito.
10. Wellington: Legal!!
[...]
11. Professora: Ó, vamos combinar algumas coisas, deixa eu ver. Pra começar a gente tem que
se ouvir. Pra começar a gente tem que se ouvir!! Vamos ver.... [...] Mas deixa eu só explicar, a
gente vai ter que decidir como que vai ser essa história. Vai ter a Chapeuzinho Vermelho na
história?
12. Alunos: Vai...
13. Professora: Temos outras opções, tem a Chapeuzinho Amarelo ou outro Chapeuzinho que
vocês quiserem...
(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)
Mesmo que a professora tenha dito que a história da Chapeuzinho Vermelho da
turma seria “do nosso jeito” (turno 9), que nessa criação os alunos poderiam ter a
Chapeuzinho que quisessem (turno 13), as primeiras crianças a levantarem a mão para
participar da atividade repetiam, com suas próprias palavras, os mesmos acontecimentos
de cada uma das versões originais apresentadas. Diante disso, a professora falou:
112
14. Professora: [...] Quem quer inventar alguma coisa bem diferente que aconteceu com a
Chapeuzinho Vermelho? Olha, eu acho que aquela “Verdadeira história da Chapeuzinho
Vermelho”, a pessoa pensou, pensou, pensou e falou “será que o lobo sempre foi mal? ”. E aí
inventou uma coisa.... [...] Então, todos os autores aqui inventaram coisas bem diferentes. O
Chico Buarque quis que a Chapeuzinho Vermelho não fosse Chapeuzinho Vermelho, fosse
Chapeuzinho Amarelo... Hmmm.... O Geoffray, né, quis que não fosse Chapeuzinho Vermelho,
fosse Chapeuzinho Redondo e que nessa história ela confundiu o lobo com um cachorro. O que
que a gente pode inventar na nossa história pra ela ficar bem legal e bem diferente?
(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)
Destacando alguns aspectos que diferenciam as histórias contemporâneas que
foram lidas do conto original, a professora provocou as crianças a tentarem fazer algo
diferente, tal como os autores por elas conhecidos também se empenharam. Foi a partir
dessa fala que um dos alunos, numa segunda tentativa, se arriscou a criar algo novo,
fazendo com que a história, por fim nomeada A encantada Chapeuzinho Vermelho,
começasse a ganhar corpo e forma:
15. Eros: Ô prô, ô prô, tive outra ideia pra fazer...
16. Professora: Escuta o colega...
17. Eros: O lobo.... O lobo.... O lobo é um feiticeiro super malvado. E aí a Chapeuzinho
Vermelho, o caçador e a mamãe.... O caçador e a mamãe são casados...
18. Professora: Douglas, você está escutando o que o colega está falando? Vira pra frente
Isabelly e é pra você ouvir o que que o coleguinha está falando! A gente não combinou isso?
(para Eros) Fala!
19. Eros: E aí ele faz assim.... Aí o lobo transforma e faz a mamãe e o papai que é o caçador, se
separarem, que nem aconteceu com minha família, aquele dia....
20. Professora: Entendi, mas por que o lobo faz isso? Tira o pé da cadeira, Eros. Põe o
bumbum!!
21. Eros: Por que ele faz isso? Porque não convidaram ele pro aniversário de um aninho da
Chapeuzinho Vermelho...
22. Professora: Interessante, gostei.... Então, ó....
23. Eros: Eu estou tirando isso da Malévola...
24. Professora: É?
25. Eros: Ahammm!!!
26. Professora: Então você misturou, então tudo bem!! Ó, o lobo é feiti.... Então vamos fazer
uma síntese...
27. Eros: Mas eu ainda não terminei, não terminei...
[...]
28. Eros: E aí a vovozinha é uma feiticeira, só que invés de ser malvada, é bonzinha, aí ela faz a
Chapeuzinho, com vários feitiços, faz a Chapeuzinho virar uma princesa, com poderes de fogo e
gelo...
29. Maria Clara: Ah, sempre pede fogo...
30. Professora: Nossa...
31. Eros: E aí ela.... Aí ela destrói...
32. Professora (interrompendo): Quem tem poder de fogo e gelo? A Frozen tem?
33. Eros: Não... A Elza tem poder de gelo e a Ana... E aí eu também tirei o poder de fogo do
Raio de Fogo, é raio de fogo? Lá do super jogos!
34. Professora: Tá, então aí entendi essa parte!
113
35. Eros: Aí ela.... Ela tem também outro poder também de desfazer o feitiço.... Aí ela também
desfez o feitiço do lobo mau....
36. Professora: Então, mas aí vai ser no final isso, que ela vai conseguir desfazer...
37. Eros: É!
38. Professora: Porque no final assim que acaba, que desfaz o feitiço. Mas, espera aí, vamos
começar então a história. Carlos, o nosso conto de fadas vai começar com “Era uma vez”?
(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)
Com o convite da professora para criarem algo diferente, um dos meninos
começa a contar para a classe a história que havia imaginado - cuja ideias percebemos
que, na verdade, se realizavam à medida em que iam sendo enunciadas. Frente a essa
narrativa do aluno, recheada de feitiços, poderes, personagens bons versus os malvados,
podemos trazer para a discussão possíveis relações entre o real e o imaginário no
contexto de produção literária e, além disso, levantar alguns aspectos importantes acerca
da imaginação na criança.
Assim, um primeiro ponto que chama a atenção no narrar criativo do menino é a
sua fala ao explicar uma das sugestões para a história, quando ele diz “que nem
aconteceu com minha família, aquele dia....” (turno 19). Este comentário nos indica que
no processo de criação literária o imaginário mobiliza o real: o menino busca na própria
vida, naquilo que foi vivido, elementos para a história a ser construída, isto é, traz um
dado da realidade como um modo de contribuição e efetiva participação na criação.
Nesse sentido, entendemos aqui que a oportunidade de experienciar a criação literária
pode mobilizar a experiência vivida pela criança, dando possibilidade dela ser
(re)significada e reelaborada pelo sujeito, produzindo novos modos de compreensão
sobre certa situação vivenciada.
Na criação artística não existem fronteiras entre aquilo que é real e imaginário.
Na arte, estas duas instâncias se misturam, se entretecem, se (con)fundem.... Sofrem
influência recíproca uma da outra. E são essas as complexas relações entre arte e vida
que, de certa forma, também se revelam no fazer criativo das próprias crianças. Se a
arte, portanto, é uma produção humana voltada para a expressão dos sentimentos e
subjetividade do homem, se a literatura é uma das linguagens artísticas em que a vida
pode ser falada, colocada em palavras e, com isso, as nossas experiências e existência
(trans)formadas, os dizeres do menino no turno 19 mostram que sua própria vida
“entra” em cena e se (con)funde com a construção literária.
114
Para sua criação, além de fazer referência a fatos da própria vida, como a
experiência de ter os pais separados, percebemos que o menino recombina estes
elementos com outros que foram retirados de filmes infantis. Portanto, afora os aspectos
de suas próprias vivências, na fala do aluno também observamos a presença marcante
das produções cinematográficas norte-americanas, muito conhecidas no universo
infantil, como quando diz, sem receio e preocupação, “Estou tirando isso da Malévola”
(turno 23) e ao incluir poderes de gelo à personagem, assim como a princesa de Frozen:
uma aventura congelante, cinema de sucesso entre a criançada. Nesse sentido, se nos
atentarmos para a história que foi inventada em voz alta pelo aluno, vemos que ele
reproduz muito daquilo que viveu, viu e ouviu, sendo sua narrativa oral eco dessas
experiências anteriores (VIGOTSKI, 2009).
De acordo com os pressupostos da perspectiva histórico-cultural, sabemos que
não se cria algo do nada, nem a imaginação emerge naturalmente na criança. Segundo
Vigotski (2009), os processos imaginativos e criativos são, na verdade, resultados da
participação ativa do ser humano na cultura. Desta forma, seguindo o caminho
apontado pelo teórico, entendemos que tais enunciados do menino transcritos
anteriormente revelam e indicam o repertório cultural dessa criança, remetendo ao
contexto sociocultural no qual ela está imersa.
Mesmo que diferentes histórias infantis tenham sido apresentadas e lidas para as
crianças, no momento de compor a produção literária, vemos que não somente elas
serviram de inspiração, mas toda a bagagem de vida do menino. Assim, diferente de
uma mera cópia do que já existe ou experimentou na realidade, na sua história o menino
reelabora criativamente as impressões vivenciadas, o que, para Vigotski (2009),
corresponde à atividade combinatória da imaginação. Conforme ele afirma:
Diante de nós, há uma situação criada pela criança. Todos os
elementos dessa situação, é claro, são conhecidos por ela de sua
experiência anterior, pois, do contrário, ela nem poderia criá-la. No
entanto, a combinação desses elementos já representa algo novo,
criado, próprio daquela criança, e não simplesmente alguma coisa que
reproduz o que ela teve a oportunidade de observar ou ver. É essa
capacidade de fazer uma construção de elementos, de combinar o
velho de novas maneiras, que constitui a base da criação (VIGOTSKI,
2009, p. 17).
Combinar, portanto, o velho e o já conhecido de outras maneiras: a história
original de Chapeuzinho Vermelho com as versões contemporâneas; misturar certos
acontecimentos da vida com enredos de filmes, animações e jogos infantis. Sabendo que
115
a imaginação se constrói de materiais hauridos da realidade (VIGOTSKI, 2009), vemos
com isso a própria experiência de vida da criança tornar-se matéria-prima do seu texto
oralmente criado. Ou seja, o encontro com diferentes obras, aquilo que foi vivido e
sentido, configura a criação do menino e propicia a ele um novo modo de dizer sobre
elas.
Ainda dentro dos apontamentos de Vigotski (2009) a respeito da imaginação e
criação na infância, outro ponto que podemos destacar a partir da participação dessa
criança é o quanto diferentes processos psíquicos encontram-se integrados e articulados
no seu fazer criativo, tais como memória, imaginação, linguagem e emoção: o menino
toma como referência experiências anteriores, modificando-as e associando-as de um
modo diferente; graças ao domínio da linguagem, ele pode organizar e dar voz a essas
novas associações; e há, também, um enlace emocional/afetivo que orienta sua “volta”
às vivências, situações e leituras anteriores ao momento de produção do texto coletivo.
A experiência de despertar a criação literária na criança e promover situações
para que ela aconteça, além de possibilitar e ensinar um novo modo de se expressar
imaginativa e criativamente, também abre espaço para o diálogo em sala de aula. Ainda
que aqui o destaque tenha sido a participação de um aluno em específico, nos demais
momentos da atividade de produção coletiva podemos observar que há uma intensa
interação verbal entre os sujeitos que participam; diferentes vozes se colocavam no
movimento discursivo e criativo. Não há ali, portanto, um silenciar dos dizeres do outro:
a professora dá a palavra às crianças, que juntas, então, (re)criam, se expressam, se
empolgam, conversam e ocupam o lugar de escritoras75
.
Neste momento, queremos ressaltar o papel orientador da professora na
atividade. Participar de uma produção coletiva, independentemente do nível de ensino e
idade dos participantes, é um exercício que exige que cada um dos envolvidos se apoie
nas ideias do outro para, a partir daí, dar sua contribuição; ou seja, envolve (des)acordos
e negociações. Nesse sentido, a mediação do professor torna-se fundamental no
desenvolvimento do trabalho, seja para guiar, encorajar e sustentar a participação dos
alunos, como para mostrar os possíveis caminhos e modos de narrar e registrar as ideias.
Como vimos defendendo neste trabalho, ao se assumir a perspectiva vigotskiana
temos que a criação e a possibilidade de comover-se diante de um objeto estético, se
podem ser considerados como algo próprio do ser humano, como uma de suas marcas, é
75
Sobre isso, lembramo-nos dos escritos de Smolka (2012b), em que a autora defende a literatura e
escritura na sala de aula como processos discursivos.
116
por sua vez também certo que não correspondem àquilo que está dado a priori, inato,
biologicamente garantido no homem ou, então, que sejam produzidos de maneira tão
instantânea e imediata. Afinal, como os escritos de Pino (2006) nos ajudam a refletir, o
sentido estético em desenvolvimento no sujeito
se trata de um “sentido” que tem que ser constituído no indivíduo
humano porque, embora esteja prenunciado na biogenética humana,
ele não acontece nem pela ação de qualquer mecanismo inato, nem
por obra da hereditariedade. Ele, como tudo o que é especificamente
humano, tem que ser objeto de formação, daí a sua relação com a
educação (PINO, 2006, p. 60, grifo nosso).
Por este motivo, gostaríamos de dar destaque ao modo de atuação da professora
na atividade. Durante todo o processo de criação coletiva ela buscava meio de insistir,
convocar e sustentar a participação das crianças. No trecho transcrito anteriormente, por
exemplo, no turno 18 ela chama a atenção de duas crianças para participarem da
produção. Porém, neste caso, percebemos que o seu “chamar a atenção” não é
simplesmente no sentido de repreensão, mas de reiteração do chamado à participação.
Isto é, trata-se de um “chamar a atenção” em duplo sentido: é um modo de convocar as
crianças para a atividade e, simultaneamente, fazer com que elas deixem de conversar e
se atentem às colocações do amigo. Assim, ao mesmo tempo que a professora vai
sustentando a criação literária de um dos meninos, ela procura manter a participação dos
outros alunos da sala – o que, vale lembrar, não é fácil de ser realizado no trabalho
pedagógico –, pois mesmo que os demais não falem, a escuta também é uma forma de
participação.
Os comentários de Vigotski (2009) sobre as experiências de Tolstoi (2013) com
crianças camponesas, narradas por este último em Quem deve aprender com quem, as
crianças camponesas conosco ou nós com as crianças camponesas?76
, nos ajudam a
refletir sobre a importância do adulto no processo de produção literária infantil. Para
tanto, cabe inicialmente apresentar um trecho da descrição do próprio Tolstoi (2013)
sobre o trabalho com a escrita e literatura que fora realizado com tais crianças.
Conforme ele narra,
[...] no começo, eu assumia alguns destes aspectos do trabalho, pouco
a pouco transferia-os todos para os alunos. Primeiro, eu escolhia para
76
TOLSTOI, L. Quem deve aprender a escrever com quem, as crianças camponesas conosco ou nós com
as crianças camponesas? In: GOMIDE, B. B. Antologia do pensamento crítico russo (1802-1901). 1 ed.
Tradução: Cecília Rosas e outros. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 337-364.
117
eles, entre as ideias e imagens surgidas, aquelas que pareciam-me
melhores, recordava-as e indicava o lugar onde estavam, corrigia o
texto, impedindo que se repetissem, escrevia eu mesmo, deixando
apenas que expressassem as imagens e as ideias em palavras; depois,
deixava que eles mesmos escolhessem; então, deixava que eles
próprios lidassem com o texto e, finalmente, como ocorreu com a
criação de “A vida da mulher do soldado”, eles assumiam também o
processo de escrita (TOLSTOI, 2013, p. 364).
Ao comentar a experiência desse grande escritor russo, compartilhando outros
trechos de seu relato, Vigotski (2009) posiciona-se contrário às considerações e
conclusões a que este autor chegou, por ele ter colocado ênfase na criação espontânea
das crianças e apresentar uma visão idealizadora da infância. Seguindo as colocações de
Vigotski (2009), vemos que os apontamentos de Tolstoi (2013) não ressaltam o papel
fundamental que ele assumiu como professor-mediador ao se colocar como leitor e
escriba na atividade coletiva, orientando a produção das crianças e ensinando-as o
laborioso processo de criação literária - como a descrição do próprio escritor, destacada
anteriormente, nos indica.
Para Vigotski (2009),
[...] o que Tolstoi fez com as crianças camponesas não pode ser
denominado de outra maneira que não educação da criação literária.
Ele despertou nelas uma forma de expressão de sua experiência e de
sua relação com o mundo que lhes era completamente desconhecida.
Junto com as crianças, ele construiu, compôs, combinou, contagiou-
as com sua preocupação, forneceu-lhes um tema, ou seja, guiou, de
um modo geral, todo o processo de criação das crianças, mostrou-
lhes procedimentos de criação etc. E é isso que é educação, no sentido
preciso dessa palavra (VIGOTSKI, 2009, p. 72, grifo nosso).
Portanto, o que Vigotski evidencia no processo de criação literária das crianças é
justamente aquilo que Tolstoi (2013) deixa de lado em seu artigo, isto é, “o delicado
movimento do professor, que apresenta, expõe, sugere e sustenta formas de produção e
elaboração conjunta das crianças, provocando-as e orientando-as”77
, o que deve integrar
todo e qualquer trabalho pedagógico.
A leitura dos escritos e ponderações de Vigotski (2009) sobre o trabalho de
Tolstoi contribuíram para que pudéssemos esclarecer o modo de participação da
professora que acompanhamos na atividade, uma vez que, no desenvolvimento do
trabalho, foi motivo de questionamentos pela pesquisadora. Durante a produção
conjunta das crianças houve vários momentos em que a professora propunha algo para
77
Esta citação refere-se ao comentário de Ana Luiza Smolka na página 71 do livro de Vigotski (2009).
118
elas, seja reformulando a ideia inicial de algum aluno, como também dando ela mesma a
sugestão para a história. Entretanto, se à época do registro dessa situação em sala de
aula considerávamos que esta intervenção atrapalhava e até mesmo impedia a livre
criação das crianças, hoje interpretamos este modo de atuação de uma outra forma. Na
transcrição abaixo podemos ver um desses momentos:
39. Professora: Ô, pessoal. Eu vou ouvir o Douglas agora e para isso, Wellington, todos têm
que estar em silêncio para ouvi-lo também!! Um, dois, três!! Pode falar!
40. Douglas: Aí a Chapeuzinho Vermelho convida o lobo pra dormir na casa dela...
41. Professora: Ah, a Chapeuzinho Vermelho convidou o lobo pra dormir na casa dela? Só se a
Chapeuzinho Vermelho, então... Como ela ia chamar o lobo? Ela tinha que ser grande, né? Não
pode ser bebê. Pode?
42. Crianças (em coro): Não!!!
43. Wellington: Se não o lobo ia devorar ela!
44. Professora: Só que tem uma coisa: se ela soubesse que o lobo era mau, ela ia convidar ele
pra dormir na casa dela?
45. Crianças: Não!
46. Professora: Então, só se ela não soubesse que ele era mau! Né, Daniele?
47. Eros: Que nem na Malévola!!
48. Professora: E outra: e só se ela fizesse escondido da mamãe.... Porque a mamãe parece que
não gostava muito do lobo! Porque ela não convidou ele pra festa! Então a gente pode dizer que
“sem que a mamãe soubesse, a Chapeuzinho convidou o lobo para a festa ou para dormir na
casa dela”? O que que vocês acham, pessoal??
49. Wellington: Sim!
50. Professora: Pessoal, o Douglas sugeriu que a Chapeuzinho Vermelho... (chamando
atenção) Ana Clara... (retomando) Convidasse o lobo para ir na casa dela dormir.... Só que ela
só pode fazer isso se ela não souber que ele é mau.... Né? Ela não pode saber que o lobo é mau!
Só que eu acho que a mamãe sabe, então ela tem que chamar escondido da mamãe... O que que
vocês acham?
51. Wellington: Sim!!
52. Eros: Sim!!
53. Professora: Mas fica legal a história, o que que vocês acham da ideia do Douglas?
54. Emerson: Sim!!
55. Wellington: Sim!!
56. Professora: Acho que fica bom, né Dani?
57. Eros: Sim!! Porque fica igual da Malévola!! Fica igual da Malévola!
58. Professora: Fica parecido?
59. Eros: É! Aham! Porque a Aurora não sabia que a Malévola, que era malvada. Não sabia que
a Malévola que fez o feitiço.... Não sabia que a Malévola era malvada, então vai encaixar
certinho na minha história!
60. Professora: Olha aí que bom! Então, Douglas, sua ideia encaixou certinho na história!
(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)
Neste trecho notamos que a professora, a partir do que o menino sugeriu para a
história, complementa e reformula a contribuição que foi dada, numa tentativa de
manter a coesão entre os acontecimentos que vinham sendo criados pelas crianças.
Contudo, ao contrário de uma interferência que limita e anula a participação, vemos que
119
a professora, ao lançar a ideia para a classe, procurava conversar, indagar e ficar aberta
para ouvir as sugestões dos alunos, mostrando e explicando para eles a necessidade de
dar uniformidade e harmonia aos fatos da história - tendo em vista que isto é algo que
precisa ser explicitado e apontado, uma vez que não é óbvio para a criança.
Por isso, partindo das afirmativas de Vigotski (2009) sobre as ações do Tolstoi
educador, interpretamos que tal atitude da professora consiste naquilo que levantamos
anteriormente: na preocupação de guiar a atividade, fazer junto com as crianças, de
mostrar a elas como se faz e se constrói uma história, em ser o adulto que provoca,
encoraja e instiga o processo criativo. Nesse sentido, podemos dizer que a professora
atua na zona de desenvolvimento proximal78
, uma vez que é pela mediação e
colaboração da professora (e também entre os próprios alunos) que o trabalho tornou
possível de ser realizado pelas crianças.
Dito de outro modo, podemos resumir o que até aqui analisamos e comentamos
evidenciando “o papel fundamental da educação e das relações de ensino na apropriação
e produção de novas formas de vida e atividade” (SMOLKA, 2009, p. 7), isto é,
indicando como um trabalho pedagógico preocupado e orientado para o
desenvolvimento do sentido estético e para as possibilidades de criação humana pode
ensinar e inspirar a criança a colocar a vida, os pensamentos e os sentimentos em
palavras, e a dar a ela a oportunidade de inventar, por meio da escrita, outras realidades.
Como tão bem esclarece Vigotski (2009),
a criação infantil está para a criação dos adultos assim como a
brincadeira para a vida [...] Isso, é claro, não significa que a criação
infantil apenas surja, espontaneamente, dos impulsos internos das
próprias crianças [...] A criação literária infantil pode ser estimulada
e direcionada externamente e deve ser avaliada do ponto de vista do
significado objetivo que tem para o desenvolvimento e educação da
criança. Da mesma forma que ajudamos as crianças a organizar suas
brincadeiras, que escolhemos e orientamos sua atividade de brincar,
podemos também estimular e direcionar sua reação criadora [...] O
melhor estímulo para a criação infantil é uma organização da vida e
do ambiente das crianças que permita gerar necessidades e
possibilidades para tal (VIGOTSKI, 2009, p. 90-92, grifo nosso).
78
Sem entrar aqui nas discussões sobre a tradução deste conceito realizadas por Prestes (2012), que
considera que o correto é “zona de desenvolvimento iminente”. Independente das questões
terminológicas, temos que este conceito “é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se
costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento
potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração
com companheiros mais capazes” (VIGOTSKI, 2007, p. 97).
120
Diante desta afirmação do autor, compreendemos que a questão está em dar
condições, possibilidades e espaços para que tais “reações criadoras” – dizemos hoje:
participação criadora - das crianças aconteçam em sala de aula, de modo que elas se
sintam convidadas a se expressarem por meio da palavra, seja escrita, falada ou
encenada. Outrossim, vale ressaltar que outra instância de criação e participação na
produção do livro proporcionada às crianças foi a proposta de ilustração desta narrativa,
que foi desenvolvida posteriormente com os alunos.
Organizadas em duplas, após a criação do texto escrito as crianças puderam
representar por meio do desenho os trechos da história. Para isso a professora fazia a
leitura da parte que cada um seria responsável por desenhar e os alunos ficavam
completamente livres para criarem (os resultados podem ser vistos no ANEXO 3).
Como neste dia a pesquisadora auxiliou a professora e os grupos de crianças na
atividade e a câmera filmadora acabou ficando esquecida em um posicionamento ruim,
não foi possível recuperar os diálogos e as movimentações durante o processo de
ilustração. Apesar disto, julgamos importante realçar a proposta de ilustrar o enredo
porque entendemos que ela representa um outro modo de participação no processo
criativo, tornando-se uma possibilidade de “entrada” das crianças no texto,
principalmente para aquelas que durante o processo de construção da história ficaram
mais em silêncio.
Se até aqui tratamos da produção feita em conjunto com a classe, com a
professora mediando as interações, agora passaremos a analisar a elaboração feita por
um dos meninos que decidiu criar e escrever, sozinho, sua própria história, em momento
posterior. Assumindo a abordagem vigotskiana, vemos na criação deste menino o
ressoar de muitas vozes e discursos. Sua produção individual evidencia, mais uma vez,
como a criança vai se apropriando, incorporando, tornando seus, os modos sociais de
conhecer, pensar, agir, sentir, elaborar conhecimento. Para tal afirmativa, encontramos
sustentação e inspiração em um trecho de Vigotski (1999b), quando o autor afirma que
a arte é o social em nós, e, se o seu efeito processa em um indivíduo
isolado, isto não significa, de maneira nenhuma, que as suas raízes e
essência sejam individuais. É muito ingênuo interpretar o social
apenas como coletivo, como existência de uma multiplicidade de
pessoas. O social existe até onde há apenas um homem e suas
emoções pessoais (VIGOTSKI, 1999b, p. 315, grifo nosso).
Dito isto, nos ocuparemos, ainda, do modo como o trabalho com a literatura
repercute e ressoa nessa criança. Para tanto, o foco analítico é colocado no menino
121
Wellington que, quase como o Fiedka79
de Tolstoi (2013), durante a produção coletiva
queria ser o único a falar. A participação dele era tão intensa que, em um dos momentos
da atividade, a professora teve até que pedir e explicar ao menino que as outras crianças
também precisavam ser ouvidas.
Foi diante da impossibilidade de poder compartilhar o desfecho que havia
pensado para a história, ao final do primeiro dia da produção coletiva, que Wellington
decide escrever a sua própria versão. Como nesse dia após o intervalo as crianças
tinham o período livre para se divertirem com os brinquedos que haviam trazido de
casa, o menino aproveitou esse momento para criar uma nova história. Essa informação
torna-se para nós um detalhe interessante, porque poderíamos indagar sobre o
significado desse gesto do menino que escolhe escrever ao invés de brincar, tendo em
vista que esta era uma hora tão esperada na semana pelos alunos.
Assim, enquanto os colegas conversavam entre eles e corriam pela sala com os
seus brinquedos, Wellington colocou-se em sua carteira e, sobre um papel branco de um
caderno de desenhos, dedicou-se à escrita do texto. Concentrado na tarefa, em pouco
tempo80
o menino levantou e entregou à pesquisadora sua produção que,
posteriormente, ganhou o título de “Chapeuzinho Rosa e a floresta encantada”.
79
Fiedka é um dos meninos citados por Tolstoi (2013) que, junto com Siomka, se destacou entre as outras
crianças que participaram do processo de criação. 80
Isso nos faz lembrar da seguinte passagem de Vigotski (2009): “a criança raramente trabalha em sua
obra por longo tempo; na maioria das vezes, ela cria a obra numa sentada. Sua criação lembra, nesse caso,
a brincadeira que surge de uma forte necessidade e permite, quase sempre, uma descarga rápida e
completa dos sentimentos que dominam a criança (VIGOTSKI, 2009, p. 93).
122
Imagem 7 - Produção textual do aluno81
Não cabe aqui fazer avaliações do texto do menino, nem mesmo adjetivar sua
produção, pois entendemos que o valor dessa criação está no processo de sua realização,
compreendendo como Góes e Smolka (1992) que
o processo de produzir o texto não começa e termina com as primeiras
e últimas palavras registradas. A situação que desencadeia a atividade
já começa a prefigurar o texto, pois caracteriza seus propósitos e
destinação e antecipa as possibilidades de repercussão (GÓES e
SMOLKA, 1992, p. 62).
Em outras palavras, aqui importa bem mais os caminhos que levaram o menino a
sentir o desejo de concretizar sua criação, bem como o que ela pode significar em
termos de formação e desenvolvimento do sentido estético, como também com relação à
elaboração do conhecimento, em que vemos emergir a dimensão artística, imaginária,
lúdica e simbólica da linguagem. Tendo isto em vista, é a partir desta perspectiva que
gostaríamos de fazer alguns comentários analíticos sobre o trabalho deste aluno.
81
“Era uma vez uma menina que se chamava Chapeuzinho Rosa. Ela era muito alegre e muito animada.
Um dia a mamãe dela pediu para ela levar um xarope e um suco e um bolo porque a vovó estava doente.
A Chapeuzinho respondeu: “Claro mamãe, eu vou”; “Mas cuidado pelo caminho”; “Tudo bem”. Pelo
caminho Chapeuzinho Vermelho viu uma floresta encantada. Ela achou uma casa feita com doces e balas
e chocolate. Quando o Lobo ouviu três batidas, ele se disfarçou de fada e abriu a porta e pediu para entrar.
Tirou a fantasia de fada e falou para a Chapeuzinho Rosa “Eu vou te comer”. A Chapeuzinho Rosa sem
demora pulou pela janela e correu para a casa da avó e chegou e trancou tudo. E falou “Vovó, o Lobo está
aqui”. Quando o Lobo arrombou a porta, uma fada entrou e jogou o lobo no rio”.
123
A começar pela situação desencadeadora do texto (GÓES e SMOLKA, 1992, p.
62), destacamos que ela se configura a partir das experiências com leituras literárias que
foram compartilhadas com os alunos das diferentes versões do conto infantil. Todavia,
poderíamos supor que caso não houvesse o convite da professora e pesquisadora para as
crianças se aventurarem na criação da história conjunta, isto é, sem uma proposta
provocadora do trabalho de escritura e autoria coletiva, talvez este ímpeto criativo do
menino não teria se manifestado, ou se evidenciado neste momento.
Sobre o conteúdo dessa produção, notamos que recria e reformula a trama do
Chapeuzinho Vermelho e ainda mistura com elementos de outro conto infantil, o João e
Maria. Percebemos, assim, que é na interação com diferentes livros e suas narrativas
que as crianças vão pouco a pouco aprendendo e se apropriando de novos modos de
dizer, escrever, sentir e pensar o mundo, servindo de material para suas novas
(re)criações. Como Góes e Smolka (1992) esclarecem, mesmo aquela produção que é
feita de forma espontânea pela criança não é inteiramente autônoma, pois
o como e o que a criança enuncia de modo espontâneo podem estar
apoiados no dizer de outros. Ao escrever histórias de medo, a criança
evoca cenários, características e ações típicas de dráculas, fantasmas,
bruxas ou sacis, incorporando outros discursos. Trata-se, porém, de
uma incorporação que implica iniciativa do sujeito e re-criação
(GÓES e SMOLKA, 1992, p. 62, grifo nosso).
Ao incorporar os discursos de outros contextos e enredos, o menino vai
compondo a sua própria história. Assim, vemos que em seu texto ele evoca fadas, a casa
de balas e doces, o Lobo, a Vovó e Chapeuzinho Vermelho, recombinando estas
personagens e cenários na sua produção. Nesse sentido, é preciso destacar que o
exercício da escrita pela criança não deve ser visto como algo puramente mecânico,
dependente apenas de uma habilidade motora para ser realizado, pois trata-se na
verdade de uma atividade cultural complexa (VIGOTSKI, 2007) que implica não
somente o domínio da técnica, mas apropriação daquelas funções psíquicas humanas
que caracterizam a criação pela palavra.
Levando em consideração toda essa complexidade, é comum que apareça a
incompletude de enunciados nas primeiras produções infantis, que “é uma decorrência
típica das exigências de coordenação do fluxo de pensamento, enquanto discurso
interior, com a organização de discurso comunicativo e com as operações de registro
deste” (GÓES e SMOLKA, 1992, p. 58). Como exemplo dessa incompletude, no texto
que apresentamos anteriormente temos um trecho em que a criança escreve “um dia a
124
mamãe dela pediu para ela levar um charope [sic] e um suco e um bolo porque a vovó | |
Chapeuzinho respondel [sic] claro mamãe”. Nesta passagem, nota-se que o menino
omitiu a frase |estava doente|, algo que depois de passar todo o texto à caneta, ele
mesmo percebe e comenta o esquecimento com a pesquisadora. Destas conversas
durante sua produção escrita, Wellington demonstra estar completamente envolvido
com a atividade e faz algumas colocações interessantes, que merecem destaque e
análises especiais.
Em certo momento de sua escrita, por exemplo, com um tom sério o menino diz
à pesquisadora “Agora eu já sei como que é a vida de um escritor!!” (Trecho vídeo-
gravação em 23/10/2015). Apesar de breve no seu comentário, a fala do garoto
condensa questões importantes. Primeiramente, leva-nos a indagar sobre o possível
significado que as atividades e vivências literárias tiveram para estas crianças. Quando o
menino enuncia saber sobre a vida do escritor, o que se abre para análise? Pelos seus
dizeres, vemos que ele se coloca, se assume como um deles. Portanto, vê-se que a
participação na produção literária o permitiu viver, sentir(-se), ser.... (como) um
escritor!
Ademais, sua fala também mobiliza questionamentos importantes sobre o
sentido que a escrita adquire para este aluno e o que significa em termos do seu ensino
às crianças, indicando a relevância destes espaços de elaboração coletiva e individual no
processo de alfabetização, pois permitem que os alunos possam incorporar e vivenciar o
papel social de escritor (SMOLKA, 2012b).
Nos dois momentos que foram aqui discutidos e apresentados, isto é, da
produção coletiva, em que as personagens de diferentes histórias acabam formando um
todo sincrético, e da produção individual, que caracteriza um modo de singularização
dessa prática, as crianças são convocadas a se tornarem escritoras. Ou seja, a partir de
uma proposta de atividade que não surgiu de um tema que foi imposto ou colocado de
modo artificial e mecânico aos alunos, tanto em uma como na outra situação de
produção, as crianças assumem a autoria do texto escrito.
61. Wellington: Prô! Eu vou ser um escritor bem famoso!
62. Pesquisadora: Ah, é?
63. Wellington: Às vezes eu não vou nem fazer a história da Chapeuzinho Vermelho! Vou
inventar uma!!
64. Pesquisadora: Vai inventar uma nova história?
65. Wellington: É! Sem ser da Chapeuzinho Vermelho!
66. Pesquisadora: É! Podem ser outras!
[...]
125
67. Wellington: Meu caderno de desenho vai ser um livro!!
68. Pesquisadora: Ah! Que legal, boa ideia! Aí você sempre escreve uma história diferente!
69. Wellington (empolgado): Toda vez! Toda vez! Aí quando acabar o meu caderno, eu vou
comprar outro!
70. Pesquisadora: Isso! Aí vai ficar um caderno cheio de histórias diferentes!
71. Wellington: É! Aí eu vou ser famoso mesmo! Eu posso até contar.... Eu posso até ser um....
Éééé.... Eu vou.... Posso até ser um professor que lê histórias!
72. Pesquisadora: É verdade!! Aí você vai ler suas histórias?? Você vai ser um professor que lê
histórias??
73. Wellington: É! Que nem você!!!
(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)
Colocar-se no lugar de escritor; experimentar ser autor de sua própria história;
empolgar-se com tal ideia e empreitada (e ainda imaginar-se famoso com isso) …. Ao
se estimular, promover e proporcionar as condições em sala de aula para que a criança
possa se expressar pela palavra escrita, dando voz, visibilidade e protagonismo às suas
criações, vemos o quanto ela se sente encantada e envolvida com tal possibilidade.
Toda a fala do menino na transcrição anterior é para nós indício da construção,
da possibilidade de desenvolvimento do sentido estético na criança, que se abre e se
projeta para o futuro. Desta forma, podemos argumentar que foi a leitura dos diferentes
livros, a proposta de produção coletiva e a convocação e mediação da professora na
atividade que possibilitaram ao aluno tornar-se autor de sua própria história e dizer tudo
o que diz. Pensemos, então, nos possíveis efeitos e repercussões que a criação literária
pode ter na elaboração do sentido estético, sobre o modo como essas propostas
reverberam na dimensão subjetiva, assim como no processo inicial de aquisição da
linguagem escrita.
Se nos detivermos nas duas produções das crianças (coletiva e individual),
vemos que ambas representam a materialização da imaginação – ou, para dizer nas
palavras de Vigotski (2009), a imaginação cristalizada -, que foram sendo possíveis
pelas leituras a elas propiciadas. Assim, vemos que tais criações literárias expressam o
olhar das crianças ao que foi experienciado e significado das rodas de leitura, como
também se mostram mediadas por outros elementos, como o cinema, os jogos etc.,
afinal “ [...] criar não é algo acidental mas demarcado historicamente. Toda atividade
criadora parte da experiência, ou melhor, da forma como se percebe internamente e
externamente o mundo, a partir dos processos de significação” (SAWAIA e SILVA,
2015, p. 253).
126
Partindo do princípio social vigotskiano, temos o pressuposto de que sem o
outro que indique, explicite, provoque, aponte e encoraje a leitura e escritura literária
das crianças, sozinhas elas não podem participar desse conhecimento. Por isso, é
preciso educar a criação infantil e a percepção da obra de arte (VIGOTSKI, 2010, p.
346), propiciando vivências e experiências - estéticas - diversas para que os sujeitos
participem e se apropriem desse saber cultural. Nesse sentido, reiteremos aqui a
importância da mediação do adulto: a via de acesso à literatura, leitura e escritura passa
por esse outro - neste caso, pela professora e pesquisadora - que se coloca no lugar de
leitor e escriba no fazer criativo.
Se, como descreve Pino (2006), o sentido estético deve ser objeto da educação,
podemos interpretar todo esse trabalho com leitura da literatura e produção literária
como sendo lócus de formação e desenvolvimento deste sentido, ao sensibilizar e
despertar nas crianças a percepção para a dimensão estética da vida humana, e ensiná-
las os procedimentos, recursos e instrumentos necessários para isto82
. Assim, a partir
das situações que foram analisadas neste e nos demais capítulos, compreendemos que a
literatura viabiliza a criação do sentido estético na criança.
Na perspectiva histórico-cultural em que se situa a presente dissertação, a
questão da elaboração do sentido estético por meio da literatura ainda remete e revela a
centralidade que a escola tem nesse processo. Entendemos que tal instituição deve ser
lugar de vivência estética pela criança e, consequentemente, de formação do sentido
estético. Como já tivemos oportunidade de afirmar, ninguém nasce pronto e
biologicamente disposto à criação, nem mesmo capaz de se emocionar com ela.
Portanto, tais capacidades humanas não são, evidentemente, obras do acaso, mas
resultado de um trabalho intencional e educativo de “constituição humana de Homem”
(PINO, 2006, p. 49).
Pensando desta forma, para finalizar, devemos ressaltar que um trabalho
pedagógico preocupado com um fazer diferente, pode fazer diferença no processo de
ensino e aprendizagem da linguagem escrita pelas crianças, bem como no seu
desenvolvimento como um todo. É possível (e, até mesmo, desejável) articular e
orientar o trabalho educativo para a experiência estética da criança, seja enquanto autora
da obra como quanto espectadora, incentivando “ [...] a capacidade humana criativa e,
82
Vale relembrar que ao final de todo esse percurso de produção, a história que fora inventada ganhou
materialidade em um livro organizado pela pesquisadora, o qual foi impresso e entregue para cada uma
das crianças.
127
também, transgressora das crianças” (SAWAIA e NUNES, 2015, p. 356). Entretanto,
práticas escolares que levem em conta tais experiências pressupõem outra dinâmica na
sala de aula, a qual o professor e todos os envolvidos devem estar abertos.
Se quando inserida na escola a literatura é considerada, muitas vezes, como um
dos conteúdos escolares – modo de aquisição de certo tipo de conhecimento –
arriscamos, nestas linhas finais, propor a inversão desta concepção. Assim, ao contrário,
esperamos que os conteúdos escolares possam ser vividos como obra de arte83
. Talvez,
desta forma, viveríamos aquilo que Vigotski anuncia em seu trabalho sobre educação
estética, ao indicar aos seus leitores que o esforço artístico deve estar presente em cada
movimento e palavra da criança, realizando uma elaboração criadora da realidade,
que consiste em promover simples vivências cotidianas ao nível das vivências criadoras
(VIGOTSKI, 2010).
83
Contribuição da professora Ana Luiza Smolka durante a banca de qualificação.
128
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O certo é que é preciso disseminar não apenas o que seja ‘racional, bom,
eterno’, mas também cuidar de algum modo do que é divertido, semanal, fascinante.
Salgue para a criança a fatia, que está insossa e seca, com o sal do riso e da lágrima,
com o sal do teatro.
Sobre o teatro infantil84
, Lev S. Vigotski
A passagem acima, retirada de uma das críticas publicadas por Vigotski em
jornais russos da época - até então inéditas por não estarem traduzidas para o português
- evidencia a paixão deste teórico pelo teatro, pela arte, o que vem a marcar toda a sua
obra, e indica a preocupação do autor em tornar as experiências artísticas presentes na
vida da criança85
. Parafraseando tal trecho, aproximando-o do que aqui neste trabalho
foi objeto de investigação, poderíamos sair em defesa do “gosto/sabor” que a literatura
dá à existência humana cotidiana e, dessa forma, as infinitas possibilidades que a leitura
e produção literária abre na vida da criança.
Foi partindo das inquietações do Vigotski artista e educador, sobretudo aquelas
elaboradas no capítulo “A educação estética”, que ao longo desta dissertação
procuramos compreender e discutir como o trabalho com a leitura da literatura e criação
literária são importantes no processo de educação das crianças e quais são suas
implicações na formação humana. Por isso, em tempo, é preciso destacar: nesta escrita
assumimos a literatura como obra de arte.
Analisar a dimensão estética na obra de Vigotski, no diálogo com as
experiências de leitura proporcionadas às crianças de um primeiro ano do Ensino
Fundamental, nos colocou diante de questões difíceis. Talvez, em razão disto, mais do
que respostas, tantas outras perguntas foram suscitadas no desenrolar deste trabalho.
Tentaremos aqui reunir alguns pontos e argumentos que durante a dissertação foram
sendo levantados, para traçar, ao menos nos limites destas folhas, algumas
considerações finais em torno destes assuntos.
84
In: MARQUES, P. N. O Vygótski incógnito: escritos sobre arte (1915 – 1926). Tese (Doutorado em
Literatura) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2015, p. 279. 85
Ao interpretar o excerto, Marques (2015) comenta que “[...] Vigotski, ao encerrar o artigo, se opõe à
imagem da arte infantil como algo ‘açucarado’ e convida o adulto a ‘salgar’ a experiência da criança [...]
Ao experienciar o teatro, a criança deve rir e chorar, deve ter a chance de vestir ambas as máscaras do
drama” (p. 132).
129
Com o objetivo de problematizar e apurar conceitualmente os diferentes termos
trazidos por Vigotski sobre a questão estética, na análise do capítulo que trata deste
tema em Psicologia Pedagógica, uma leitura crítica de suas ideias foi realizada no
sentido de colocar em perspectiva o que está anunciado neste que é um dos seus
primeiros trabalhos.
Assim, com o propósito de mostrar a dificuldade conceitual que perpassa “A
educação estética”, na primeira parte da dissertação situamos tal texto no contexto
teórico da época em que foi produzido, momento em que Vigotski tem um diálogo mais
próximo dos autores da reflexologia, reactologia, entre outros. Este foi o ponto de
partida do presente estudo por entendermos que para compreender os argumentos,
propostas e conceitos que envolvem tal obra, não se deve perder de vista o período
histórico no qual ela se encontra circunscrita.
A complexa questão entre arte e vida, a busca pelo entendimento do que a
literatura, e outras linguagens artísticas, provoca no homem, bem como o que é e do que
se trata a educação estética para a criança, são aspectos enfrentados pelo autor a partir
das discussões teóricas que circulavam na época, os quais não foram retomados em
outros trabalhos a posteriori. Nesse sentido, diante do cenário científico no campo da
psicologia no período em que Psicologia Pedagógica foi escrita, nos questionamos
quanto à pertinência do termo reação estética (conceito principal em seus trabalhos
sobre esta temática) nas discussões atuais que tratam da dimensão estética humana. Isto
porque, como salientamos, empreendemos a leitura dos textos de 1925 tendo em vista
tudo o que o autor produziu depois, quando outros conceitos passam a ganhar relevância
em sua obra.
Portanto, como procuramos demonstrar neste trabalho, a “suspeita” quanto ao
uso do conceito de reação se dá por ele ser tão marcado historicamente. O termo, hoje,
carrega um sentido muito amarrado à noção de mera resposta orgânica do indivíduo, em
que pode se esvair o processo interno de elaboração e significação do próprio sujeito,
fato que desloca todo o fio argumentativo do princípio histórico-cultural, desenvolvido
por Vigotski posteriormente.
Contudo, como sinalizamos, mesmo que reação estética seja o conceito principal
do livro, no interior de seu escrito há uma coexistência de outros termos: vivência
estética, experiência estética, emoção estética... E aqui se abriu para nós um novo
campo investigativo, que ultrapassou os limites desta pesquisa: Quais destes conceitos
exprimem melhor os efeitos e afetos causados pela arte, sobretudo quando se trata de
130
crianças? Como nomear o impacto e o modo como a obra de arte nelas repercutem?
Quais destes termos é consistente e profícuo para abordar a questão estética?
Como se vê, esboçou-se neste trabalho a teia de uma investigação futura. Há
ainda muitas questões que se colocam para a continuidade. Mas, neste momento, por
exemplo, uma sugestão que já vemos como uma possibilidade a ser perseguida é o
mapeamento dos momentos em que aparecem o conceito de reação nos trabalhos de
Vigotski e, também, o conceito de vivência, para tentar observar e compreender as
possíveis mudanças terminológicas e conceituais em seus escritos. Além disso,
compreendemos que as contribuições de Pino (2006; 2007), ao propor a noção de
“sentido estético”, as quais também foram aqui apresentadas, podem ser um caminho
fértil a ser percorrido nestas elaborações futuras.
Se o presente trabalho teve uma ênfase teórica, com o objetivo de tecer um
refinamento conceitual do texto de Vigotski (lembrando, é claro, que foram apenas os
primeiros passos deste percurso), vale ressaltar que a análise do material empírico que
fora desenvolvido à luz desse referencial não buscou se constituir numa mera
“aplicabilidade” dos conceitos trazidos pelo teórico, muito menos tinha pretensão de
responder a todas as questões terminológicas encaminhadas. Sobre este último ponto,
entendemos que demandaria um aprofundamento teórico muito além do que poderíamos
neste momento. Mas, estando no fechamento da dissertação, vale a pena levantar e
registrar algumas das indagações que atravessaram o trabalho: como o material
empírico reunido pode ajudar a entender e problematizar as diferentes terminologias a
respeito da dimensão estética? Ao olharmos para o registro da situação de leitura
literária para as crianças, é possível interpretar e nomear o que está acontecendo? Trata-
se, de fato, de uma reação? Experiência? Vivência? Produção de sentido estético? Como
denominar e conceituar? O que a dramatização do menino, a inquietude dos outros
alunos frente à narrativa e a produção literária individual de uma criança podem dizer
sobre estes aspectos? É em vista disso que, em estudos futuros, vemos a necessidade de
se colocar o teórico e o empírico em movimento, numa tentativa de avançar
conceitualmente nestes assuntos complexos.
Entretanto, ousamos aqui já indicar alguns aspectos que conseguimos enxergar
como indícios dessas questões – mas, evidentemente, relevando de antemão a
provisoriedade desta tentativa. Entendemos que os diferentes modos de participação das
crianças na leitura literária constituem-se em elementos que podem ser tomados como
indicativos desse trabalho de educação estética e formação do sentido estético: o menino
131
que de “leitor-ouvinte” passa a representar e interpretar as personagens, e o outro que se
coloca como escritor de uma nova história, mostram que este exercício de se deslocar de
lugar, isto é, daquele que lê/ouve histórias para aquele que encena e escreve sua própria
história, faz da participação destas crianças uma participação criadora e criativa.
Vemos, portanto, que o trabalho com a literatura mobiliza novas criações e emoções nas
crianças.
No mais, é importante ressaltar que compreendemos que a análise do trabalho de
Vigotski sobre educação estética deve se respaldar nos princípios da natureza social do
desenvolvimento humano, por sustentar os argumentos que o autor apresenta a respeito
da temática. Como destaquei, ao longo da dissertação, a possibilidade de o ser humano
criar um objeto estético e se emocionar diante de uma obra de arte é resultado da
constituição humana do homem (PINO, 2006), fruto da imersão do sujeito na cultura.
Por isso, pensar em tais questões implica considerar o protagonismo da escola no
processo de educação estética: a sensibilização das crianças para o que é estético na vida
humana, releva e revela a importância do insistente, incansável e infindável trabalho
educativo.... Que é intencional, compromisso social de uma geração com a outra, e
forjado a cada instante, gesto, palavra e olhar. Desta forma, deve-se ter clareza de que
não se trata aqui de propostas grandiosas e distintas, que fujam e escapem do que pode
ser realizável no cotidiano escolar. Na verdade, como vimos, são simples atitudes e
ações educativas que nos levam em direção à educação estética.
Tendo isto em vista, defendemos que a escola deve se tornar lugar de vivência
estética e formação do sentido estético pela criança, afinal, como escreve Vigotski
(2010),
[...] uma obra de arte vivenciada pode efetivamente ampliar nossa
concepção de algum campo de fenômenos, levar-nos a ver esse campo
com novos olhos, a generalizar e unificar fatos amiúde inteiramente
dispersos. É que, como qualquer vivência intensa, a vivência estética
cria uma atitude muito sensível para atos posteriores e, evidentemente,
nunca passa sem deixar vestígios para o nosso comportamento
(VIGOTSKI, 2010, p. 342).
Ademais, por tudo que desenvolvemos em termos analíticos, também
entendemos que o professor pode contribuir para a elaboração do sentido estético e para
manifestação do ato criador da criança. Torna-se fundamental, portanto, criar as
condições, abrir espaços e ampliar as possibilidades para a criação. Seguindo os
apontamentos de Pino (2007), compreendemos que o sentido estético apenas surge
132
quando a arte encontra quem a contemple, pois este “[...] só emerge no encontro de
alguém (sujeito) com alguém (outro sujeito) ou com algo (objeto) ” (PINO, 2007, p.
115).
Na análise do material empírico, dividida em dois capítulos na segunda parte
deste trabalho, ao procurarmos indícios do envolvimento da criança com a literatura e
da possível elaboração do sentido estético, deparamo-nos com modos diferenciados de
participação na narrativa literária. Assim, o dramatizar, os gestos, as expressões, os
movimentos, as palavras e os olhares, bem como a produção literária coletiva e a
criação individual, indicaram diferentes modos de apropriação da história e os sentidos
que foram sendo produzidos pelas crianças – apesar da dificuldade de se falar quais são
os sentidos produzidos na leitura da literatura, por estes serem sempre múltiplos,
assumimos que o contato e vivência com a obra arte faz sentido, de alguma forma, para
as crianças, mesmo que não possamos traça-los.
Deste modo, pudemos observar o quanto a literatura potencializa a imaginação
humana e como a percepção, a memória, a abstração, a imaginação e a emoção são
funções psíquicas que se entrelaçam no processo de recepção estética. Ao tratarmos, por
exemplo, da produção textual coletiva, vimos que esta representa/expressa a
materialização e objetivação da imaginação das crianças; já na criação individual de um
dos alunos, percebemos o quanto a criação literária proporciona prazer à criança: há ali
um encantamento pelo aprender, pela descoberta, pelo diferente.
Diante de todo esse quadro, concluímos que o trabalho com a literatura viabiliza
e participa da elaboração do sentido estético na criança, que se projeta para o futuro e
que está sempre em continuidade - pois não acaba ao término da leitura -,
potencializando, mobilizando e movimentando as possibilidades criativas humanas.
Tendo chegado até aqui, antes de finalizar a presente dissertação, um comentário ainda
precisa ser compartilhado.
Na medida em que narrávamos e analisámos os objetivos a que nos propomos
neste estudo, as emoções, preocupações, dúvidas e ansiedades que permearam a
pesquisa de campo foram sendo revividas. Só que neste exercício de contar e traduzir
mais de quarenta dias de trabalho, fez-se apenas um recorte do que foi intensamente
vivido. Por isso, no percurso desta escrita emergiu a seguinte pergunta: se foi intenso e
significativo para a pesquisadora, como será que foi para os outros? Tomando essa
indagação, descreveremos duas situações do campo que, talvez, respondam a este
133
questionamento e ilustrem tudo o que aqui, neste momento, se tentou colocar em
palavras. São gestos sutis, daquelas surpresas agradáveis e inesperadas da pesquisa.
Com a chegada do fim do ano, foi produzido pela pesquisadora um vídeo de 18
minutos com diferentes recortes das leituras que foram feitas em sala, de cenas singelas
das crianças interagindo com a câmera, com a história e com o colega ao lado, numa
retomada de tudo que foi realizado com o grupo - talvez fosse uma tentativa de dizer
obrigada. Para isso, 27 cópias do filme foram entregues para cada uma das crianças e
professora no dia da reunião de pais.
Antes da entrega, porém, as crianças puderam assisti-lo junto com outro vídeo
com fotos, feito pela professora, em sala de aula. Assim que terminou de passar pela
primeira vez, as crianças, empolgadas, pediram para assistir novamente. Com o aceite
do pedido pela professora, no replay das imagens uma menina se aproximou da
pesquisadora, com os olhos em lágrimas e falou:
“Gabriela: Prô, posso sentar aqui do seu lado?
Pesquisadora: Pode sim, claro. Mas por que você está chorando?
Gabriela (achegando-se da pesquisadora, num abraço): É que faz tempo tudo isso, né?
Pesquisadora: Ah, é.... E dá saudade, né?
Gabriela concorda e continua com os braços envoltos na pesquisadora, assistindo ao
filme. Não consegui marcar o tempo, mas por uns bons minutos a menina ficou ali,
parada na mesma posição de abraço”.
(Trecho Diário de Campo – 02/12/2015)
Choro, abraço, saudade... Emoção. Afetar e deixar-se ser afetado. O que este
fragmento deixa visível? Às vezes queremos respostas já prontas para muitas perguntas,
nos esquecendo que nos movimentos mínimos e delicados, como no descrito acima,
muito se diz sobre o que nos toca e significa.
E eis que no último dia da pesquisadora na escola surge outro gesto, tal como o
primeiro, repleto de afeto. Em tom de despedidas e agradecimentos, a professora
entregou, a pedido de uma mãe, um presente: uma foto da pesquisadora e das duas
professoras do primeiro ano, junto com a criança da turma, no dia da Mostra Cultural.
Foto colocada em um porta-retratos, escolhida, segundo relato da professora, quando a
mãe questiona a filha “Você quer algo que dure ou para comer? ”. Fotografia que
134
eterniza quatro meses de pesquisa realizados. Uma simples imagem que carrega consigo
uma história e envolve um grande significado.
Detalhes como esses, singelos, mas profundamente significativos, mostram que
a pesquisadora fez parte, pertenceu àquele grupo. Ao mesmo tempo, podem revelar que
as pequenas in(ter)venções que rechearam a convivência - quase que diária -, de alguma
forma, encantou e emocionou. Permanecem os registros de muitos momentos dessa
história vivida, de afetos compartilhados, de narrativas e imagens que possibilitam e
demandam (re)interpretação, que constituem matéria-prima para a criação literária, para
a dramatização e o teatro, para a (trans)formação da experiência em obra de arte, para a
elaboração do sentido estético.
135
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145
ANEXO 1: Quadro “Correspondência dos termos nas duas traduções brasileiras
de Psicologia Pedagógica”
Tradução Martins Fontes Tradução Artmed
1 Educação estética (p. 323) Educação estética (p. 225)
2 Vivência estética (p. 323) Vivência estética (p. 225)
3 Educação estética (p. 323) Educação estética (p. 225)
4 Emoções estéticas (p. 323) Vivências estéticas (p. 225)
5 Emoção estética (p. 324) Vivência estética (p. 225)
6 Educação estética (p. 324) Educação estética (p. 225)
7 Impressões estéticas (p. 324) Impressões estéticas (p. 225)
8 Emoções estéticas (p. 325) Vivências estéticas (p. 226)
9 Vivências estéticas (p. 325) Vivências estéticas (p. 226)
10 Vivência estética (p. 327) Vivência artística (p. 227)
11 Educação estética (p. 327) Educação estética (p. 227)
12 Educação estética (p. 327) Educação estética (p.227)
13 Emoção estética (p. 328) Vivência estética (p. 227)
14 Percepção artística (p. 328) Percepção estética (p. 227)
15 Vivência estética (p. 328) Vivência estética (p. 227)
16 Sentimento estético (p. 328) Sentimento estético (p. 227)
17 Educação estética (p. 328) Educação estética (p. 227)
18 Educação estética (p. 328) Educação estética (p. 227)
19 Educação estética (p. 329) Educação estética (p. 227)
20 Sentido estético (p. 331) Significado estético (p. 228)
21 Emoções estéticas (p. 331) Vivências estéticas (p. 228)
22 Educação estética (p. 331) Educação estética (p. 229)
23 Percepção estética (p. 331) Percepção estética (p. 229)
24 Reação estética (p. 332) Reação estética (p. 229)
25 Sentido estético (p. 333) Sentido estético (p. 229)
26 Emoção estética (p. 333) Vivência estética (p. 229)
27 Vivência estética (p. 333) Vivência estética (p. 229)
28 Vivência estética (p. 333) Vivência estética (p. 229)
29 Atividade estética (p. 334) Atividade estética (p. 230)
30 Atividade estética (p. 334) Atividade estética (p. 230)
31 Vivência artística (p. 335) Vivência artística (p. 230)
32 Prazer estético (p. 335) Prazer artístico (p. 230)
33 Vivência estética (p. 335) Vivência artística (p. 231)
34 Atividade estética (p. 336) Atividade estética (p. 231)
35 Percepção artística (p. 338) Apreensão estética (p. 232)
36 Educação artística (p. 338) Educação estética (p. 232)
37 Reação estética (p. 339) Reação estética (p. 232)
38 Atividade estética (p. 340) Atividade estética (p. 233)
39 Impressão estética (p. 342) Impressão estética (p. 234)
40 Vivência estética (p. 342) Vivência estética (p. 234)
146
41 Vivência estética (p. 343) Vivência estética (p. 234)
42 Emoção estética (p. 345) Vivência estética (p. 235)
43 Educação estética (p. 348) Educação estética (p. 237)
44 Educação estética (p. 349) Educação estética (p. 237)
45 Sentimento estético (p. 350) Sentimento estético (p. 237)
46 Educação estética (p. 351) Educação estética (p. 238)
47 Percepções artísticas (p. 351) Percepções artísticas (p. 238)
48 Percepções artísticas (p. 351) Apreensão estética (p. 238)
49 Educação estética (p. 351) Educação estética (p. 238)
50 Educação estética (p. 351) Educação estética (p. 238)
51 Experiência estética (p. 351) Experiência estética (p. 238)
52 Educação estética (p. 352) Educação estética (p. 239)
53 Educação estética (p. 352) Educação estética (p. 239)
54 Educação estética (p. 352) Reações estéticas (p. 239)
55 Elaboração estética (p. 352) Elaboração estética (p. 239)
56 Educação estética (p. 352) Educação estética (p. 239)
57 Atividade estética (p. 359) Atividade estética (p. 242)
58 Sentido estético (p. 360) Significado estético (p. 243)
59 Educação estética (p. 361) Educação estética (p. 243)
60 Educação estética (p. 361) Educação estética (p. 243)
61 Educação estética (p. 361) Educação estética (p. 243)
62 Educação estética (p. 362) Educação estética (p. 244)
63 Educação artística (p. 363) Educação artística (p. 244)
147
ANEXO 2: Texto do livro “A operação do Tio Onofre: uma história policial”
“Talita tinha a mania de dar nomes de gente aos objetos da casa, e tinham de ser nomes
que rimassem. Assim, por exemplo, a mesa, para Talita, era Dona Tereza, a poltrona era
Vó Gordona, o armário era o Doutor Mário. A escada era Dona Ada, a escrivaninha era
Tia Sinhazinha, a lavadora era Prima Dora, e assim por diante. Os pais de Talita
achavam graça e topavam a brincadeira. Então, podiam-se ouvir conversas tipo como
esta:
- Filhinha, quer trazer o jornal que está em cima da Tia Sinhazinha!
- É pra já, papai. Espere sentado na Vó Gordona, que eu vou num pé e volto noutro.
Ou então:
- Que amolação, Prima Dora está entupida, não lava nada! Precisa chamar o mecânico.
- Ainda bem que tem roupa limpa dentro do Doutor Mário, né mamãe?
E todos riam.
Mas uma tarde, Talita estava na sala com a mamãe, assistindo televisão, quando tocou a
campainha. Talita correu e foi logo abrindo a porta, sem antes verificar quem era. E não
é que eram dois ladrões?! Os mal-encarados sujeitos empurraram Talita e foram
entrando, de armas apontadas.
- Isso é um assalto! Entregue o dinheiro e as jóias, madame, e nem um pio, está
ouvindo?!
Talita agarrou-se à mamãe, as duas mudas de susto.
- O cofre, rápido! - repetiu o ladrão, bravo. - abra o cofre, rápido!
- É pra já, madame. Mexa-se, se não quer que aconteça nada com a menina - ameaçou o
outro.
A mamãe - que remédio! - foi logo tirando o quadro que escondia a porta do cofre
embutido na parede, e começou a mexer no segredo, nervosa, enquanto Talita olhava,
apavorada.
Nisso, o telefone tocou. Uma, duas, três vezes.
- Só faltava isto! - resmungou um dos ladrões.
- Deve ser o papai - murmurou Talita, quase chorando. - ele sempre telefona a tarde pra
saber da gente...
- Droga! - rosnou o outro. - se ninguém responder, o homem vai estranhar...
- Então atenda logo - gritou o outro. - a senhora não, madame, cuide do cofre! - você
menina, atenda logo! E cuidado com o que vai dizer! Não deixe perceber nada, senão...
- Alô - obedeceu Talita, trêmula enquanto o ladrão tirava o fone da extensão no
vestíbulo, para ouvir a conversa.
- Talita? - era a voz do papai. - tudo bem aí, filhota?
- Tu... Tudo... Be...bem... Papai... - gaguejou Talita. E o ladrão olhou feio para ela.
- Talita - disse o papai - , avise a mamãe que eu vou chegar atrasado para o jantar...
Mais ou menos uma hora. Você está me ouvindo, filha?
- Es...Estou ... Sim ... Vo..... Você .... Vai che... chegar .... atra…trasado....
- A sua voz está diferente, Talita. Vocês estão bem mesmo?
O ladrão apontou a arma para a menina:
- Vê lá o que fala, e não gagueje! - sussurrou ele, ameaçador.
Então Talita fez um esforço, firmou a voz e respondeu:
- Tudo bem, papai, eu e mamãe estamos bem. Só que um pouco preocupadas com o Tio
Onofre.
- Tio Onofre? - estranhou papai.
148
- Pois é, papai. Telefonaram agora há pouco, dizendo que o Tio Onofre teve uma crise
de apendicite aguda e teve de ser operado de urgência. A esta hora já devem estar
abrindo a barriga dele...
- É mesmo? - disse o papai, após pequena pausa. - foi de repente, não é?
O ladrão, satisfeito com a resposta da menina, fazia sinais para ela terminar a conversa:
- Acabe logo com este papo furado - sussurrou ele. E Talita apressou-se a obedecer:
- Eu falo pra mamãe que você vai chegar atrasado para o jantar. Até logo, papai! - e
Talita desligou o telefone.
- Bem bom! - disse um ladrão para o outro - agora temos tempo de sobra para fazer o
serviço!
- Mesmo assim, quanto mais depressa, melhor. Mexa-se, madame! Vai demorar muito
pra abrir este cofre? - rosnou o ladrão.
As mãos da mamãe tremiam muito:
- O senhor me deixa nervosa, com esta arma apontada.... Assim eu não consigo acertar o
segredo...
- Pois não esquente, madame - falou o outro. - não ouviu que o seu marido vai chegar
atrasado? Temos tempo que chegue.
E, voltando-se para Talita, ordenou, apontando para a Vó Gordona:
- E você, menina, senta aí na poltrona e fica bem quietinha, enquanto meu colega e eu
revistamos as gavetas da escrivaninha.
Os minutos passaram. Na sala, só se ouviam as vozes estridentes do desenho animado
na televisão, abafando os outros ruídos.
E só Talita, porque estava muito atenta, ouviu o estalinho leve duma chave na fechadura
da porta, enquanto a mamãe abria o cofre. E, bem no momento em que os ladrões se
precipitavam para ver o conteúdo, a porta da entrada se abriu de repente,
silenciosamente, e dois policiais irromperam na sala, apontando as armas nas costas dos
bandidos:
- Polícia! Larguem as armas! Mãos ao alto!
Atrás dos policiais, entrou correndo o pai de Talita, de braços abertos:
- Graças a Deus, vocês estão bem! - e ele envolveu a mulher e a filha num só grande
abraço.
As duas até choraram de emoção e alívio.
E depois que acabou a agitação e os dois policiais levaram os assaltantes presos, a
mamãe perguntou ao papai:
- Mas, querido, você não disse que ia chegar atrasado? Como foi que adivinhou o que
estava acontecendo e chegou assim, em cima da hora?
O papai piscou um olho para a Talita.
- E desde quando a nossa filha tem um tio chamado Onofre? Onofre? Aqui em casa, só
rima com cofre. E se o cofre - Onofre estava sendo operado... Se estavam "abrindo a
barriga dele", bem...
E todos caíram na gargalhada. ”
In: BELINKY, T. A operação do Tio Onofre: uma história policial. 13 ed.
Ilustrações: Alcy. São Paulo: Ática, 2004, 24 p.
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ANEXO 3: Livro coletivo produzido pelas crianças
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