o trabalho com literatura no primeiro …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura...

160
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DANIELE PAMPANINI DIAS O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL: MODOS DE PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NA ELABORAÇÃO DO SENTIDO ESTÉTICO CAMPINAS 2017

Upload: ngothuy

Post on 25-Aug-2018

225 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DANIELE PAMPANINI DIAS

O TRABALHO COM LITERATURA NO

PRIMEIRO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL:

MODOS DE PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NA

ELABORAÇÃO DO SENTIDO ESTÉTICO

CAMPINAS

2017

Page 2: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

DANIELE PAMPANINI DIAS

O TRABALHO COM LITERATURA NO

PRIMEIRO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL:

MODOS DE PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NA

ELABORAÇÃO DO SENTIDO ESTÉTICO

Dissertação de Mestrado apresentada

ao Programa de Pós-Graduação em

Educação da Faculdade de Educação

da Universidade Estadual de Campinas

para obtenção do título de Mestra em

Educação, na área de concentração

Educação.

Orientador(a): Profa. Dra. Ana Luiza Bustamante Smolka

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO

FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO(A)

ALUNO(A) DANIELE PAMPANINI DIAS, E

ORIENTADA PELO(A) PROF.(A) DR.(A) ANA

LUIZA BUSTAMANTE SMOLKA

CAMPINAS

2017

Page 3: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na
Page 4: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

O TRABALHO COM LITERATURA NO

PRIMEIRO ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL:

MODOS DE PARTICIPAÇÃO DAS CRIANÇAS NA

ELABORAÇÃO DO SENTIDO ESTÉTICO

Autor: Daniele Pampanini Dias

COMISSÃO JULGADORA:

Dra. Ana Luiza Bustamante Smolka

Dra. Maria Nazaré da Cruz

Dra. Luciane Maria Schlindwein

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

2017

Page 5: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

AGRADECIMENTOS

Na conclusão deste intenso percurso de pesquisa, não há como não agradecer

imensamente àqueles que se fizeram presente durante toda a caminhada. Assim, registro

aqui os meus sinceros agradecimentos:

À querida Ana, orientadora e grande parceira deste trabalho. Muito obrigada por,

desde o trabalho de conclusão de curso, fomentar e instigar o olhar sensível e atento às

questões que se colocam à educação; por compartilhar conosco todo o seu saber e

paixão pelas elaborações vigotskianas. As suas provocações teóricas e analíticas, de

tantas conversas inspiradoras, continuarão me acompanhando por toda a vida.

Aos meus amados pais, Janete e Edson. É difícil estimar a importância que vocês

tiveram neste processo. Obrigada mãe, pela paciência e compreensão ao ver tantos

livros espalhados pela casa; e por respeitar minhas ausências. Obrigada pai, por também

entender a pressa em algumas visitas; e pela fé na vida e no amor que nos últimos anos

nos fizeram ainda mais fortes.

Às professoras Maria Nazaré Cruz e Luciane Maria Schlindwein, por terem

aceitado participar da banca de qualificação e defesa. Obrigada pelo cuidado e olhar

atento ao trabalho e por todas as contribuições sugeridas.

Ao meu amado Tiago, pelo apoio de sempre; e por não ter se cansado de ouvir e

ler as tantas páginas deste trabalho.

Aos amigos da época da graduação que, mesmo diante da correria da vida,

permanecem presentes: ao Anderson e à Flávia, pela amizade sincera e parceria; à

Valéria, pelo carinho; e ao Ricardo, por tudo o que me ensinou ao longo desses anos e

por sempre me apoiar e acreditar em mim.

Aos amigos do GPPL, pelas deliciosas quartas (ou quintas-feiras) ao longo

destes últimos dois anos.... E por também terem contribuído nas elaborações deste

trabalho. Em especial, deixo aqui o meu muito obrigada à Débora, companheira, amiga

e parceira em todas as horas que precisei; à Núbia, mineirinha querida, pela energia e

bondade; à Lívia, amiga desde a graduação, pelo ombro e ouvido amigo de sempre.

Page 6: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

Aos professores do programa de pós-graduação: Ana Lúcia Horta Nogueira,

Luci Banks Leite, Lavínia Magiolino, Márcia Strazacappa, Eliana Ayoub e Joaquim

Fontes Brasil. Todo o aprendizado das disciplinas cursadas ecoa aqui neste trabalho.

Aos funcionários da Faculdade de Educação da Unicamp, em especial à querida

Márcia e Marli, da biblioteca.

À professora Bete, por ter aberto sua sala e permitido que a pesquisa fosse

desenvolvida.

Às crianças da escola, por tudo o que partilhamos juntos! Obrigada, obrigada,

obrigada....

Por fim, à Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível

Superior), que mesmo em meio a tanto cortes anunciados, deu auxílio financeiro para

que a pesquisa fosse realizada.

Page 7: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

RESUMO

Esta pesquisa tem por objetivo investigar as possibilidades da vivência estética com

crianças do primeiro ano do ensino fundamental, em situações de leitura da literatura.

Ancorado na perspectiva histórico-cultural e movido pelas inquietações de Lev S.

Vigotski sobre o estatuto da arte no desenvolvimento humano, o estudo pretende

aprofundar as discussões sobre a possível emergência do sentido estético no processo

formal de escolarização das crianças. Assim sendo, concomitante à problematização

teórica, desenvolve-se um trabalho empírico em uma escola da rede pública municipal

de Campinas-SP. Assumindo as dificuldades conceituais que permeiam os textos de

Vigotski, mais particularmente na Psicologia Pedagógica, texto no qual se encontram

termos como percepção estética, reação estética, vivência estética, educação estética, o

estudo busca realçar e circunscrever os modos como as crianças reagem, percebem e se

envolvem com a narrativa do texto literário, na tentativa de compreender aspectos da

elaboração - social, individual - do sentido estético (Pino, 2006, 2007), conceito que

ainda demanda posterior aprofundamento teórico e refinamento conceitual. Nas análises

do material empírico, são destacadas quatro situações, duas que enfocam os modos de

recepção e escuta do texto literário, e duas que dizem respeito à produção das crianças,

sendo uma de caráter coletivo, orientada pela professora, e outra envolvendo a produção

escrita de uma criança. As análises de palavras e gestos, inspiradas na leitura de

indícios, mostram os modos de participação das crianças tanto na recepção da literatura

como obra de arte, quanto na autoria e na atividade criadora de produção de textos.

Palavras-chave: literatura, ensino fundamental, sentido estético, Vigotski, perspectiva

histórico-cultural

Page 8: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

ABSTRACT

This study aims to investigate the possibilities of aesthetic experience with 1st grade

children at a Brazilian public elementary school, involving the work with literary texts

in classroom situations. Anchored by the historical-cultural perspective and taking into

account Lev S. Vigotski’s inquiries concerning status of art in human development, the

research intends to deepen the discussions about the development of aesthetic sense in

the children’s formal school process. Assuming the conceptual difficulties that pervade

Vigotski’s texts – particularly in Pedagogical Psychology, book in which concepts such

as aesthetic perception, aesthetic reaction, aesthetic experience, aesthetic education can

be found, the study searches to highlight and circumscribe the ways by which children

react, perceive and get involved in narratives of literary texts. An attempt is made to

understand the social and individual elaboration of the aesthetic sense (Pino, 2006,

2007), concept that still demands posterior theoretical deepening and conceptual

refinement. The empirical analysis privileges four situations: two of them focus on the

children’s ways of receiving and listening to literary texts; the other two concern the

children’s text production, one of them having a collective character, guided by the

teacher, and the other approaching the written production of an individual child. The

analysis of words and gestures, inspired by the indiciary paradigm, gives visibility to the

children’s participation in the reception of literature as work of art as well as to their

participation as authors in the creative activity of text production.

Keywords: literature, elementary school, aesthetic sense, Vigotski, historical-cultural

perspective

Page 9: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

Sumário

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10

PRIMEIRA PARTE ....................................................................................................... 21

Capítulo 1 - A educação estética na obra de L. S. Vigotski ....................................... 21

SEGUNDA PARTE ....................................................................................................... 44

Capítulo 2 - A realização do trabalho empírico e as in(ter)venções na prática .......... 44

2.1. A pesquisa de campo: um breve panorama do seu percurso ............................ 45

2.2. Procedimentos de registro adotados ................................................................. 59

2.3. A construção dos dados da pesquisa ................................................................ 61

Capítulo 3 - Sobre os modos de participação das crianças nas rodas de leitura:

possibilidades analíticas .............................................................................................. 63

3.1. Palavras e gestos na incorporação do texto literário ........................................ 64

3.2. Ler, ouvir, sentir, significar .............................................................................. 87

Capítulo 4 - Sobre os modos de participação das crianças na autoria e na atividade

criadora de produção de textos ................................................................................. 108

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 128

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 135

ANEXO 1: Quadro “Correspondência dos termos nas duas traduções brasileiras de

Psicologia Pedagógica” ............................................................................................... 145

ANEXO 2: Texto do livro “A operação do Tio Onofre: uma história policial” .......... 147

ANEXO 3: Livro coletivo produzido pelas crianças .................................................... 149

Page 10: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

10

INTRODUÇÃO

São muitas as possibilidades de criação humana e suas produções. Englobam

desde as mais simples invenções cotidianas, do homem comum, como aquelas dos

grandes talentos das áreas científicas, técnicas e artísticas1. Para o que interessa a este

presente trabalho, concentremo-nos nestas últimas. Mais especificamente na literatura, a

arte da/na palavra. Podemos começar comentando sobre o processo criativo na

construção da obra de arte. Alguns poetas e escritores relatam as dificuldades que os

acometem ao querer transmitir e objetivar o pensamento/sentimento em palavras, o

chamado “suplícios da criação”2. O brasileiro Olavo Bilac, em um dos seus poemas, nos

mostra como essas criações, contrariamente a uma visão que as concebem quase como

resultado de uma “intervenção divina”, são fruto de um (in)tenso e incansável trabalho

do autor na composição dos versos e rimas, em que trabalha, e teima, e lima, e sofre, e

sua!3

Se de um lado temos o procedimento do escritor, as tensões, alegrias e dramas

por ele vivenciados, do outro temos os sentimentos e envolvimento dos sujeitos

apreciadores dessas criações. Sejam as palavras escritas, faladas, declamadas, recitadas,

de outrora ou de agora, afetam e emocionam adultos, jovens e crianças. Mas o que leva

o ser humano a se encantar e comover pelas palavras em um texto literário ou aquelas

que ganham vida num palco de teatro? Como isso se produz no homem? É algo que

irrompe de repente ou é resultado da constituição humana do homem4? Afinal, por que

vias isso se dá? Como é que se trabalha isso no sujeito? O que é essa dimensão estética

humana? Como isso se opera no sujeito?

Sem a pretensão de querer responder e esgotar questões tão complexas, o

presente trabalho de mestrado constitui-se tendo como guia mais amplo essa

problemática. Assim, cabe aqui delinear quais são as perguntas e os objetivos, em

1 Como nos diz Pino (2006), sustentado nos princípios da perspectiva histórico-cultural: “criar é uma

necessidade da existência humana [...] Contrariamente a uma ideia muito difundida em certos meios

educacionais, [...] a capacidade de criar estende-se a todas as esferas da vida social e cultural do ser

humano: a artística, a técnica, a científica e a social. Não apenas a alguma delas” (p. 56). 2 Em Imaginação e criação na infância, Vigotski (2009, p. 55) cita versos do poeta russo Semion Nadson,

em que diz: “não há no mundo suplício maior que o suplício da palavra; inutilmente um grito quer sair, às

vezes, da boca; inutilmente, o amor está pronto para queimar a alma: nossa língua pobre é fria e

deplorável”. 3 O trecho em itálico é o verso do poema de Bilac, chamado “A um poeta”, que a professora Dra. Marisa

Lajolo comentou em sua conferência no Congresso de Leitura do Brasil (COLE), do qual participei em

julho de 2016. 4 Pino, 2006.

Page 11: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

11

específico, que assumimos como foco de investigação. Para dizer em poucas palavras e

de maneira direta, poderíamos colocar que temos a intenção, nas linhas e capítulos que

se seguem, de discutir os modos pelos quais as crianças se envolvem e participam das

leituras literárias, fundamentando-se e dialogando com a perspectiva histórico-cultural

do desenvolvimento humano. Contudo, antes de mostrar os desdobramentos dessa

colocação e melhor detalhar pontos importantes que integram a pesquisa, julgo ser

fundamental apresentar de forma breve os caminhos que me trouxeram até ela.

Seja no domínio das ciências humanas, biológicas ou exatas, a pesquisa

configura-se como uma atividade que dificilmente encontra um “ponto final”. Se

perguntássemos àqueles que se ocupam desse métier, talvez diriam que é exatamente

esse aspecto que a torna tão interessante: no terminar de um trabalho, descortinam-se

outras possibilidades, perguntas e inquietações. Digo isto porque é justamente nesse

movimento que a presente dissertação se coloca.

Com a produção do trabalho de conclusão de curso (TCC) ao final da graduação

em Pedagogia, intitulado “O teatro na educação infantil: um estudo a partir da teoria

histórico-cultural”, algumas questões permaneceram em aberto, assim como o interesse

pelas obras de Lev S. Vigotski5 sobre estética começou a se firmar, o que incentivou a

continuidade do trabalho. O TCC foi fruto da minha intensa e apaixonada relação com o

teatro, de uma história como atriz que começa comigo ainda criança e que se estendeu

por toda minha formação humana e profissional e, principalmente, pela participação no

projeto “Teatro na Educação”, realizado em uma cidade do interior do estado de São

Paulo, que entre os anos de 2013 e 2014 levou espetáculos teatrais às crianças das

escolas públicas municipais. Essas experiências tornaram-se objeto de investigação e

análise, em que se problematizou o impacto do teatro no seu público infantil.

Ancorada pela perspectiva histórico-cultural, procurei entender, no referido

estudo, os possíveis modos de participação da criança no contexto teatral, bem como os

efeitos e afetos que o teatro produz no seu espectador. O problema de como as pessoas

recebem, percebem e se envolvem com a obra de arte foi um aspecto ressaltado por

Vigotski em sua monografia A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, escrita em

5 Nesta dissertação iremos empregar ao nome do teórico a grafia “Vigotski”, respeitando as outras grafias

presentes nas citações e referências bibliográficas que aqui utilizamos.

Page 12: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

12

1915, em que ele, partindo da concepção denominada “crítica de leitor”, procurou

entender a maneira pela qual os receptores interpretam os textos literários6.

Por meio da análise de alguns episódios registrados, foi possível perceber

diferentes maneiras da criança participar do teatro e o quanto a arte redimensiona os

processos mentais que o seu apreciar envolve, provocando uma ampliação das

experiências e uma transformação nas funções psicológicas superiores humanas: amplia

o “material” com o qual sua imaginação opera; oferece possibilidades de emoção e

novas condições de reflexão e elaboração da consciência; aumenta a compreensão sobre

si e sobre a vida do ser humano que a aprecia. Evidenciou-se, também, a (con)fusão

entre arte e vida, isto é, o entretecimento entre o imaginário e o real, pois a experiência

do palco mobiliza dramaticamente a experiência vivida, possibilitando meios de novas

formas de significação e elaboração (DIAS, 2014).

Ao debruçarmo-nos sobre a teoria elaborada por Vigotski e os trabalhos que

contam sua história pessoal e percurso intelectual7, percebemos a profunda relação do

autor com as artes e a intensa influência que exerceu na sua vida e escritos, pois suas

experiências com o teatro e como professor de literatura marcaram fortemente a forma

como ele concebe o psiquismo humano, a educação e a arte (SMOLKA, 2009). Barros

et al. (2011), por exemplo, contam que Vigotski dirigiu, produziu e atuou em

espetáculos teatrais, além de ter chefiado a seção de teatro do departamento de

Educação Popular de Gomel e editar a seção de teatro do jornal local, Polesskaja

Pravda (VAN DER VEER; VALSINER, 2001; BARROS et al., 2011).

Quase desconhecidas pelos leitores e estudiosos da perspectiva histórico-

cultural, Marques (2015) nos brinda com algumas traduções das críticas literárias e

teatrais de Vigotski, publicadas em jornais locais e até então inéditas para nós - ao que a

própria autora/tradutora vai chamar de “Vigotski incógnito” -, que foram produzidas

entre 1915 e 1926, período em que o teórico se dedicou mais intensamente as questões

relacionadas às artes. Entretanto, vale lembrar, como afirmam Van der Veer e Valsiner

(2001, p. 20), que desde o seu trabalho inicial, A tragédia de Hamlet, príncipe da

Dinamarca, resultado do seu antigo interesse pela obra shakespeariana, até um dos seus

6 Neste trabalho, Vigotski (1999a) analisou a relação do crítico com o autor e sua obra. Segundo ele, uma

vez criada, a obra de arte separa-se do seu criador e torna-se passível de múltiplas interpretações, uma vez

que, na visão do teórico, não existe um sentido único da obra, aquele que o seu autor quis oferecer, pois

cada leitor o apreende de uma forma. 7 Ver Veresov (1999) e Van der Veer e Valsiner (2001).

Page 13: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

13

últimos trabalhos sobre a psicologia do ator, são notáveis as referências de Vigotski às

artes.

Trabalhos como de Wedekin e Zanella (2016), ao discorrerem sobre as relações

entre o pensamento e os escritos de Vigotski sobre arte, e as manifestações artísticas na

Rússia de seu tempo, nos ajudam a compreender o contexto cultural da época e o

panorama do ensino das artes antes e após a Revolução de 1917, contribuindo para

conhecermos como se estruturavam algumas dessas instituições de ensino e quais eram

os princípios que as norteavam. Em outro artigo, as mesmas autoras também

apresentam como a questão da complexa relação entre arte e vida teve repercussão no

modernismo russo e descrevem a maneira variada com que foi respondida pelas

vertentes realistas e simbolistas, situando a obra de Vigotski neste contexto. Para tanto,

elas explicam para o leitor a estética do realismo russo e de Tolstoi, grande

representante desta tendência na literatura, bem como a estética simbolista, a qual

grande parte dos biógrafos de Vigotski afirmam tê-lo influenciado (WEDEKIN e

ZANELLA, 2013)8.

Sobre as produções iniciais do teórico, ou seja, aquelas mais ligadas à arte teatral

e literária, Del Río e Álvarez (2007) contrapõem-se aos estudiosos e comentadores que

veem certa periodização nos escritos de Vigotski e que, por isso, dão menos visibilidade

e importância a essas primeiras obras. Para estes autores, na verdade, há um processo de

crescimento em espiral, uma evolução de caráter dialético e circular nos trabalhos de

Vigotski e que, portanto,

esas tres inquietudes: de artista, de educador y de psicólogo expresan,

todas ellas, la personalidad científica e intelectual de Vygotski y su

intenso forcejeo por integrarlas se prolongará todas su vida. Más que

etapas preparatorias del Vigotski psicólogo, como muchos las han

considerado, parece que el Vygotski artista y el Vygotski educador

serán, junto al Vygotski psicólogo, personajes interiores permanentes

que dotarán de vitalidad al pensamiento científico que se manifestará a

lo largo de la siguiente y última década de su trayectoria vital - 1925-

1934 - (DEL RÍO; ÁLVAREZ, 2007, p. 9).9

8 Estas e outras questões são melhor exploradas na tese de doutorado (WEDEKIN, 2015) em que tais

artigos de baseiam. 9 “Estas três preocupações: de artista, educador e psicólogo expressam, todas elas, a personalidade

científica e intelectual de Vigotski e sua intensa luta por integrá-las se prolongará por toda a sua vida.

Mais que etapas preparatórias do Vigotski psicólogo, como muitos têm considerado, parece que o

Vigotski artista e o Vigotski educador serão, junto com o Vigotski psicólogo, personagens interiores

permanentes que dotarão de vitalidade o pensamento científico que se manifestará por toda a seguinte e

última década de sua história de vida – 1925 – 1934” (Tradução nossa).

Page 14: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

14

Foi nos estudos teóricos na época realizados das produções derivadas das

inquietações do Vigotski-artista e Vigotski-educador, que me deparei com um trecho da

obra Psicologia da Arte, o qual viria a se tornar ponto de ancoragem para a pesquisa de

mestrado:

[...] ao definir o papel vital e a influência da arte, é necessário levar

em conta as peculiaridades que o estudioso encontra ao se aproximar

da criança. Evidentemente, isto é assunto para um estudo especial,

porque tanto o campo da arte infantil quanto a reação da criança a

esse campo diferem substancialmente do adulto (VIGOTSKI, 1999b,

p. 326, grifo nosso).

Nessa passagem, percebe-se um assunto ao qual Vigotski não pôde se dedicar a

analisar. Partindo dessa questão deixada em aberto para estudos futuros, surgiram as

indagações para esta dissertação de mestrado: Como esse “papel vital” da arte pode ser

percebido na relação com as crianças? Em que consiste essa diferença entre adultos e

crianças, de que o autor nos fala? Quais os modos da criança responder à leitura de um

texto literário? Como a literatura atrai/afeta à criança?

Tendo em vista a pertinência e validez das elaborações teóricas de Vigotski na

compreensão da dinâmica educacional, bem como o inacabamento de algumas de suas

ideias, vimos no seu trabalho um instigante horizonte de pesquisa. A proposta central

deste estudo, portanto, orienta-se em torno de dois eixos, que se tangenciam:

pretendemos aprofundar o estudo da produção teórica de Vigotski, principalmente

aquelas em que se dedica à questão da arte e da estética, delineando-a no âmbito da

psicologia infantil e, junto a este movimento de aprofundamento e problematização

teórica, dialogar com o trabalho de campo realizado no segundo semestre de 2015 em

uma escola da rede pública municipal de Campinas-SP, em que foi acompanhada uma

turma de primeiro ano do Ensino Fundamental e desenvolvido com esse grupo rodas de

leitura.

É interessante colocar que a questão relacionada à estética tem sido trabalhada

por diferentes pesquisadores contemporâneos (DUARTE Jr., 2000, 2008; LEONTIEV,

2000; PINO et al., 2010; CAMARGO e BULGACOV, 2008; AMORIM e

CASTANHO, 2008). Estudos atuais, nacionais e estrangeiros, inspiram-se na teoria de

Vigotski para fundamentar o trabalho acerca da arte, emoção e imaginação, tanto no

âmbito da formação do professor quanto do aluno (PINO, 2006, 2007; MOLON, 2007;

BARROCO e SUPERTI, 2014; JAPIASSU, 2003; SCHLINDWEIN, 2015, 2012;

Page 15: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

15

SCHLINDWEIN e SOARES, 2007; MAHEIRIE et al., 2015; DA ROS et al., 2006;

DEL RÍO, 2004; LIMA, 2004, LIMA et al., 2004; MAGIOLINO, 2015). Dessa forma,

vê-se que as discussões aqui realizadas inscrevem-se em preocupações já

compartilhadas por outros trabalhos.

Com o fito de conhecer o que tem sido estudado sobre a questão estética a partir

do referencial teórico de Vigotski e, assim, situar o nosso trabalho dentro deste cenário,

realizamos um levantamento bibliográfico das produções acadêmicas brasileiras sobre

esta temática10

. Para tanto, fizemos uso dos seguintes bancos de dados virtuais: Banco

de Teses e Dissertações da Capes e Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações

(BDTD).

Ao utilizarmos das palavras-chave “educação estética”, “Vigotski” e “literatura”,

o portal da Capes indica um montante de mais de vinte mil (20.000) trabalhos realizados

desde 1987, quando o banco de dados foi criado. Isto significa que a produção

acadêmica envolvendo a perspectiva histórico-cultural, a literatura e a estética têm se

mostrado intensa no país, vindo num crescente com o passar dos anos. Contudo, como o

sistema não agrupa os três termos para uma busca mais precisa, a circunscrição do

objeto específico fica comprometida, uma vez que é nas mais diversas perspectivas

teóricas que aparecem os trabalhos com relação à estética e literatura.

Em vista disto, realizamos uma consulta na plataforma BDTD, que conta com a

opção de “busca avançada”, o que torna possível a pesquisa com todos os descritores

juntos. Assim, ao inserirmos os termos “educação estética”, “Vigotski” e “histórico-

cultural” (todos no campo todos os campos), foram encontradas duas dissertações, uma

da Universidade Federal do Espírito Santo e outra da Universidade Federal do Paraná.

São elas, respectivamente:

1) “A dimensão formativa do cinema e a catarse como categoria psicológica: um

diálogo com a psicologia histórico-cultural de Vigotski”, de Santiago Daniel Hernandez

Piloto Ramos, defendida em 2015;

2) “A dimensão formativa da arte no processo de constituição da individualidade para-

si: a catarse como categoria psicológica mediadora segundo Vigotski e Lukács”, de

Vitor Marcel Schühli, defendida em 2011.

10

Vale ressaltar que tal levantamento teve um teor mais quantitativo, no sentido de demarcar o número de

produções dentro desta temática.

Page 16: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

16

No mesmo site, mas com os descritores “educação estética”, “Vigotski” e

“literatura infantil”, apenas um trabalho de doutorado da Universidade Federal de Goiás

foi encontrado. No entanto, é importante destacar que, segundo consta no resumo, a

autora parte de outros referenciais teóricos para a fundamentação de sua tese:

1) “Literatura sem fronteira: por uma educação literária”, de Ebe Maria de Lima

Siqueira, defendida em 2013.

Se com tais descritores foi restrito o número de trabalhos encontrados, ao

utilizarmos das palavras “arte” e “Vigotski” um total de cento e vinte (120) trabalhos

foram localizados, os quais estão distribuídos da seguinte forma pelas universidades

brasileiras:

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (22);

Universidade Federal do Espírito Santo (14);

Universidade Federal de Goiás (11);

Universidade Estadual de Londrina (10);

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (8);

Universidade de São Paulo (6);

Universidade do Estado de Santa Catarina (5);

Universidade Federal do Paraná (5);

Universidade Presbiteriana Mackenzie (4);

Pontifícia Universidade Católica de Campinas (4);

Universidade do Vale do Rio dos Sinos (4);

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (3);

Universidade Federal de Santa Catarina (3);

Universidade de Brasília (3);

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2);

Universidade Federal de Juiz de Fora (2);

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2);

Universidade Federal de Sergipe (2);

Universidade Federal de Uberlândia (2);

Pontifícia Universidade Católica de Goiás (1);

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1);

Universidade de Caxias do Sul (1);

Universidade Federal da Bahia (1);

Universidade Federal do Ceará (1);

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (1);

Universidade Estadual de Campinas (1);

Universidade do Grande Rio (1).

Page 17: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

17

(Fonte: BDTD - http://bdtd.ibict.br/vufind/)

Por fim, com as palavras-chave “sentido estético” e “Vigotski”, foram

encontrados seis (6) trabalhos, dos quais, após a leitura dos respectivos resumos, filtrou-

se apenas quatro (4) 11

. Os resultados foram os seguintes:

1) “Crônicas pedagógicas: revivescências, arte e educação”, de José Francisco

Quaresma Soares da Silva, dissertação de mestrado defendida em 2012, pela

Universidade Estadual de Londrina;

2) “Diferentes olhares: um “tour” com crianças pelo centro histórico da cidade”, de

Rafaela Tzelikis Mund, dissertação de mestrado defendida em 2012, pela Universidade

Federal de Santa Catarina;

3) “O que pode a música do Arma-Zen?: relações entre o rap, o bairro e a cidade”, de

Tainá Wandelli Braga, dissertação de mestrado defendida em 2014, pela Universidade

Federal de Santa Catarina;

4) “Educação estética pela mediação de leitura de imagens de obra de arte”, de Michele

Pedroso do Amaral, dissertação de mestrado defendida em 2014, pela Universidade de

Caxias do Sul.

Circunscrito ao Grupo de Pesquisa Pensamento e Linguagem

(GPPL/UNICAMP), ao qual a presente dissertação está vinculada, podemos ainda citar

o capítulo de Magiolino (2015), que no diálogo com autores da perspectiva histórico-

cultural, tais como Wallon, Bakhtin e Vigotski, tematiza e problematiza as complexas

relações entre afetividade, imaginação e dramatização na educação infantil, tomando

como foco de análise o faz de conta que se explicita na leitura e dramatização de textos

literários em sala de aula.

Embora existam muitos trabalhos que tratem da dimensão estética na perspectiva

histórico-cultural, cada um com suas nuances, é no âmbito dessas pesquisas que este

11

Isto porque, como pudemos constatar ao fazer a leitura dos resumos e palavras-chave de tais pesquisas,

duas não estavam relacionadas às questões sobre estética e/ou arte. Por este motivo, optou-se por excluí-

las do levantamento.

Page 18: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

18

estudo pretende dar uma contribuição específica à temática. Portanto, é neste contexto

que o presente trabalho se insere: como mais um esforço teórico de (re)colocar os

conceitos, ideias e pensamentos de Vigotski na contemporaneidade. Entende-se que,

mesmo que a obra de Vigotski esteja situada em outro contexto histórico, social e

cultural, com as preocupações pontuais daquela época, as ideias e conceitos trazidos

pelo teórico são repletos de possibilidades e desdobramentos de análise.

Além disso, como já comentamos, os questionamentos que foram anteriormente

explicitados serão olhados no contexto da educação formal. Busca-se nesse movimento

elementos para entender as formas como as crianças recebem e reagem às histórias

infantis: Como a palavra, cunhada pelo autor nas páginas dos livros, pela voz/narrativa

do texto literário pelo leitor, afeta e emociona às crianças? Como elas reagem? Como

elas respondem e se envolvem? Ao observar os modos de participação das crianças e

procurar indicadores desse envolvimento, o diálogo com a teoria torna-se fundamental.

Podemos dizer, então, que este estudo se configura como mais um exercício de

análise que mostra a atenção que deve ser dada à vivência estética pela criança no seu

processo de educação, para, a partir dos modos como elas reagem, percebem e se

envolvem com a narrativa do texto literário, tentar entender e problematizar a possível

gênese desse sentimento e sentido estético no ser humano. Deste modo, articula-se

nessa pesquisa a leitura do empírico com a discussão conceitual.

Levando em consideração as preocupações que atravessam este trabalho,

podemos sistematizar os objetivos da seguinte forma: 1. Investigar os diferentes modos

da criança receber, perceber e se envolver com a literatura; 2. Observar as relações

existentes entre obra literária/leitor/criança, ou seja, de que forma a obra escolhida, a

partir da leitura do outro, impacta a criança; 3. Explorar as possibilidades de análise da

vivência estética pela criança, ao propor e viabilizar encontros com a literatura em uma

unidade escolar específica; 4. Problematizar e discutir os diferentes termos trazidos por

Vigotski sobre a questão estética, tais como reação, percepção, emoção, vivência etc.,

em diálogo com o conceito de sentido estético, tal como proposto por Pino (2006,

2007).

Nesse sentido, considerando os escritos de Vigotski inspiradores, como ponto de

partida para as análises a serem feitas, na primeira parte desse trabalho será realizado

um estudo do capítulo sobre a educação estética, que integra a obra Psicologia

Pedagógica. Salienta-se que empreender uma leitura de Vigotski acerca da arte e da

estética é assumir as dificuldades conceituais que permeiam sua obra com relação a esta

Page 19: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

19

temática, bem como a amplidão deste tema no transcorrer da história. Admitindo tal

complexidade conceitual, o presente trabalho pretende constituir-se numa singela

contribuição à temática em questão, a partir do estudo detalhado e atento a ser realizado

desta obra, buscando-se traçar o diálogo de Vigotski com os seus autores

contemporâneos e os possíveis sentidos dos termos utilizados pelo teórico, tais como

reação estética, educação estética, experiência estética, vivência estética, entre outros.

Como nesse mesmo período Vigotski escreveu Psicologia da Arte, este livro também

será foco de problematização teórica, bem como Imaginação e criação na infância, que

darão suporte à análise da dimensão empírica. Outrossim, trabalhos de interlocutores

contemporâneos também foram consultados e darão sustentação às discussões, os quais

deixo para serem apresentados no respectivo capítulo.

Já na segunda parte, cuidaremos do eixo empírico que integra este estudo,

começando por situar em qual metodologia apoiamo-nos para a realização da pesquisa,

seguida de uma breve apresentação do trabalho de campo, para dar ao leitor uma visão

geral de todo o percurso empírico. A partir daí, selecionamos algumas situações

registradas no campo por meio de vídeo-gravação e diário de campo para explorar as

possibilidades e as potencialidades da literatura, observando como as crianças são

capturadas, impactadas e afetadas pelas histórias narradas, a partir das reações,

expressões, comentários e emoções nelas provocadas, os quais serão analisados à luz

das discussões teóricas anteriormente encaminhadas. Entendemos que os escritos

deixados por Vigotski sobre esta temática, bem como os fundamentos da teoria

histórico-cultural, nos oferecem um excelente material para elaborações e análises

acerca da arte e dos efeitos, afetos e sentidos que ela produz/provoca no ser humano.

No fechamento das reflexões e análises da dissertação, no último capítulo iremos

versar sobre a proposta de produção coletiva de uma história que fora criada pela turma

acompanhada na pesquisa, momento em que as crianças, de “leitoras-ouvintes” dos

textos literários, tornam-se autoras. Com isso, temos a intenção de compreender a

possível repercussão do trabalho com leitura da literatura e produção literária na

formação e desenvolvimento do sentido estético na criança. Por fim, traçamos algumas

considerações finais acerca das discussões aqui empreendidas, apontando para a

necessidade de maiores investigações em torno desta temática.

Sem mais estender essa parte introdutória, para terminar gostaria apenas de

comentar um pensamento que me ocupou a mente no percurso de elaboração desse

trabalho, retomando a ideia que apresentei logo no início da minha escrita. Tendo em

Page 20: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

20

vista o que escreve Vigotski (2009), de que “tudo o que nos cerca e foi feito pelas mãos

do homem, todo o mundo da cultura [...] é produto da imaginação e criação humana que

nela se baseia” (VIGOTSKI, 2009, p. 14), gostaria de afirmar que entendemos a

construção da escrita acadêmica como um processo criativo. Nesse sentido, trago aqui

as palavras de Salles (2006), pois mesmo que a autora esteja se referindo a outro

contexto, o processo criador do artista, vemos nelas possíveis diálogos com o trabalho

acadêmico - como defendemos, esse também criativo. Por mais que a produção artística

e a acadêmica tenham suas especificidades, com estéticas e objetivos próprios, elas se

aproximam em alguns pontos, como na incompletude e constante inacabamento. Como

a autora coloca:

Estamos falando do inacabamento intrínseco a todos os processos, em

outras palavras, o inacabamento que olha para todos os objetos de

nosso interesse - seja um romance, uma peça publicitária, uma

escultura, um artigo científico ou jornalístico - como uma possível

versão daquilo que pode vir a ser ainda modificado (SALLES, 2006,

p. 20).

Portanto, mesmo o trabalho acadêmico é um projeto que sempre se renova, a ser

preenchido com novas perguntas e a descobrir outras respostas. É o quase infindável

trabalho de escrita (e pesquisa), que se faz recheados por contínuas idas e vindas,

retomadas, ponderações, dúvidas e escolhas.... Como a mesma autora diz, citando as

palavras de Carlyle, “publicamos para não passar a vida corrigindo” (ibidem, p. 21).

Assim, lanço a vocês, leitores, a forma como o texto e as ideias se apresentam neste

momento. Que o instante imediato que se instaura com o término da minha escritura e

suas decorrentes leituras, abra espaço para outras (re)criações.

Page 21: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

21

PRIMEIRA PARTE

Capítulo 1 - A educação estética na obra de L. S. Vigotski

Educação estética: Qual o seu papel na vida e no processo de formação humana?

Qual a função da arte na sociedade? Por que/para que educação estética? Quais são seus

objetivos? Em que consiste? Esses são apenas alguns exemplos de questões que o

grande teórico russo Lev Seminovich Vigotski nos convida a pensar, ao mergulharmos

na leitura de um dos seus escritos sobre arte e estética, o capítulo “A educação estética”

que integra a obra Psicologia Pedagógica.

Em termos históricos, os estudos sobre a estética remontam à Grécia Antiga,

desde a concepção de Platão, que suspeitava da arte contrapondo-a à filosofia e à

ciência, estas sim, consideradas obra da razão humana - inaugurando a oposição da

experiência sensível e da experiência racional -, como a visão de Aristóteles, da

imitação como fonte da produção artística e da arte como catarse, purificação das

emoções (PINO, 2007). No entanto, mesmo que a estética seja um tema clássico para a

filosofia, presente desde a época grega, a preocupação com a educação estética no

campo educacional é algo recente; apesar da presença da arte estar legalmente prevista

na educação básica brasileira, o interesse por essa temática é quase inexistente no plano

das administrações escolares (ibidem, 2007). Nas práticas pedagógicas, impera a

dicotomia entre razão e emoção, por ainda prevalecer a visão de que a aprendizagem só

acontece por meio da cognição, com a primazia de práticas que prezam por “conteúdos”

em detrimento de aspectos ligados ao sensível.

Considerando o escrito de Vigotski inspirador, fecundo e ainda profundamente

relevante para a compreensão da dimensão estética da educação, a intenção do presente

trabalho é fazer uma descrição do já referido capítulo da obra de Vigotski e, ao mesmo

tempo, realizar uma leitura crítica de suas ideias. Portanto, como será visto, dois

movimentos básicos constituem esse exercício: menções diretas ao texto do autor, as

quais irão entrecruzar-se com os nossos comentários e análises.

Um primeiro aspecto merece ser ressaltado. Compreendemos que para apreender

as teses centrais desenvolvidas por Vigotski, é preciso apropriar-se do texto levando em

consideração a época em que foi produzido. Nesse sentido, antes de avançar nas

discussões do capítulo em específico, é imprescindível contextualizar historicamente a

produção de Vigotski, ou seja, marcar em que período do desenvolvimento intelectual

Page 22: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

22

do autor ela se encontra e situar o momento histórico que a atravessa, com vistas a

entender as contribuições dos principais autores com os quais dialoga e quais são os

impactos no texto. Afinal, nos disse Vigotski, o homem e suas produções são “sempre

fruto de seu tempo e de seu meio”12

. Por isso, começaremos por apresentar, em linhas

gerais, as circunstâncias que acompanharam a elaboração deste trabalho.

“Este livro se propõe uma questão de natureza principalmente prática. Ele

gostaria de ajudar a nossa escola e o mestre [...]”: é assim que Vigotski (2010, p. XI)

apresenta Psicologia Pedagógica, logo nas primeiras linhas do prefácio. Como o

próprio autor anuncia, o principal interlocutor eram os professores13

, constituindo o

mais extenso escrito do teórico com questões relativas à educação (TOASSA, 2013b).

Escrita entre 1921 e 1923/início de 1924 (BLANCK, 2003, p. 15) e publicada

em 192614

, época em que a Rússia se recuperava da destruição ocasionada pela guerra

civil, de acordo com Vigodskaia e Lifanova15

(1996 apud PRESTES; TUNES, 2012, p.

334) a obra representa a tentativa de Vigotski em colocar a psicologia a serviço da

prática educacional na construção da nova sociedade socialista, dando formação à nova

geração de professores soviéticos.

Toassa (2013a) afirma que Vigotski

[...] após 1917 reorientou seus esforços na direção da constituição de

uma sociedade comunista. A ‘Psicologia Pedagógica’ é o retrato mais

eclético do esforço vigotskiano em contribuir com tal fundação,

procurando suprir importantes lacunas na formação de professores

(TOASSA, 2013a, p. 69).

Por este motivo, entendemos que para compreender os argumentos, propostas e

conceitos que envolvem a leitura desta obra, não podemos perder de vista o contexto

histórico na qual se inscreveu. Além disso, dado que é uma das primeiras obras do

jovem Vigotski, consideramos ser necessária a busca por relacioná-la e situá-la no curso

12

VIGOTSKI, L.S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009, p. 42. 13

Segundo Blanck (2003, p. 15) o livro se dirigia a estudantes que pretendiam lecionar para crianças de

10 a 15 anos. 14

Segundo Van der Veer e Valsiner (2001, p. 62), é possível acreditar que esse livro tenha sido escrito

antes da publicação de 1926 por dois motivos: “Primeiro, a maneira como Vygotsky analisou várias

questões e pensadores não está de acordo com as visões defendidas em seus artigos e palestras que

sabemos terem sido escrito por volta de 1926. Segundo, quando Vygotsky começou a trabalhar no

Comissariado de Educação Pública do Povo em julho de 1924, ele preencheu uma ficha e colocou sob o

item publicações ‘uma breve descrição da psicologia pedagógica [...]’ ”, o que sugere para os autores de

que ele estava se referindo à Psicologia Pedagógica, possivelmente já completa à época. 15

VIGODSKAIA, G. L.; LIFANOVA, T. M. Lev Semionovitch Vigotski: jizn, deiatelnost, chtrirri k

portretu. Moskva: Smisl i Smisl, 1996.

Page 23: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

23

de todo o pensamento e produção teórica do autor. Embora Psicologia Pedagógica seja

anterior à elaboração dos fundamentos da perspectiva histórico-cultural, nela já é

possível observar alguns pontos que seriam posteriormente abordados e aprofundados

por Vigotski, tais como: i) a abordagem dialética sobre o desenvolvimento humano; ii) a

reflexão sobre o papel do ambiente social; iii) a relação entre educação e

desenvolvimento (PRESTES e TUNES, 2012, p. 334).

Entretanto, neste mesmo movimento, também notamos aspectos que mais tarde

serão repensados e até mesmo abandonados pelo autor, como, por exemplo, a própria

concepção de educação e desenvolvimento, pois entre essa produção e as posteriores “é

evidente que [...] apresentam diferenças de ênfases. O Vigotski dos anos 30 parece dar

mais importância à cooperação que o dos anos 20” (VAN DER VEER, 2003, p. V).

Nesse sentido, concordamos com Toassa (2013a) quando afirma que o

importante é apreender este trabalho de Vigotski em perspectiva, isto é, “considerando

que traz capítulos mais e menos próximos dos conceitos posteriores do autor [...]

buscando, ainda, extrair contribuições para o debate em psicologia educacional na

atualidade” (ibidem, p. 70). Por isso, não defendemos que se deva negar radicalmente as

ideias e contribuições presentes na obra, confirmando certo menosprezo que ela teve

pelos seus primeiros divulgadores16

. Acreditamos, na verdade, que sua leitura deve ser

encaminhada considerando que é marcada pela “imaturidade teórica, ecletismo e

problemas de composição – decorrentes tanto do seu caráter de compêndio quanto de

sua rápida elaboração” (TOASSA, 2013b, p. 498), para evitar, assim, incorrer em erros

e considerações incoerentes ao pensamento vigotskiano.

Ao longo de mais de duzentas páginas, Vigotski (2010) trata dos mais diversos

assuntos - a educação moral e estética, a personalidade, os instintos, a educação pelo

trabalho, dentre outros - no diálogo com diferentes autores de sua época, dos quais

destacamos Pavlov17

, Kornilov18

e Blonski19

- fato que nos indica que já nesse período,

16

Como destacam Del Río e Álvarez (2007): “los dos principales libros de la primera década de

producción vygotskiana tuvieron un destino editorial distinto, una menor visibilidad que las situadas en el

escaparate de las citas (…) Así, Psicología pedagógica fue publicada por primera y única vez en ruso en

1926, permaneciendo agotada desde entonces, y la Psicología del arte, escrita (…) en 1925, no aparecería

por primera vez en ruso hasta la década de los sesenta” (p. 10). 17

Ivan Pavlov (1849-1936) foi um fisiologista e médico soviético, tendo sido laureado em 1904 com o

Prêmio Nobel de Medicina, por seus estudos sobre os sistemas digestivos. Ao estudar as atividades das

glândulas digestivas nos cães, Pavlov notou o fenômeno de “secreção psíquica”, o que o levou a

desenvolver a chamada ‘teoria do reflexo condicionado’ (ver Van der Veer, 2007). 18

Konstantin Kornilov (1879-1957) foi um psicológico soviético. Para saber mais sobre a trajetória do

teórico, ver capítulo 6 de Van der Veer e Valsiner (2001) e Van der Veer (2007).

Page 24: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

24

anterior à sua entrada na psicologia, o autor demonstrava ter conhecimentos das

questões e perspectivas psicológicas daquele momento.

É importante dizer que a influência da ciência dos reflexos de Pavlov e a

reactologia de Kornilov, que se mostram evidentes neste livro, vão ser mais tarde

reelaboradas, isto é, vão ganhar outro estatuto nas futuras elaborações teóricas de

Vigotski. Já no prefácio, o teórico observa e assinala as limitações da teoria dos

reflexos, ao afirmar que

a teoria dos reflexos condicionados é a base sobre a qual deve ser

construída a nova psicologia [...] Entretanto seria incorreto ver nesse

princípio um meio que tudo abrangesse e tudo salvasse [...] Ocorre

que a psicologia pedagógica [...] opera com fatos e categorias

psicológicas de natureza e ordem mais complexas do que algumas

respostas isoladas ou reflexo [...] (VIGOTSKI, 2010, p. XI-XII).

Além disso, em suas palavras iniciais ao leitor, Vigotski (2010) já indicava

visualizar a “crise” pela qual a psicologia do seu tempo passava. Deixaremos para tratar

essas influências e suas consequentes marcas no texto de Vigotski, um pouco mais

adiante.

Cabe aqui comentar sobre a chegada dessa obra em terras brasileiras, o que

aconteceu pela primeira vez em 2001, publicada pela Martins Fontes, com tradução de

Paulo Bezerra. Diferindo do original em russo que conta com dezenove capítulos, na

edição brasileira foram acrescentados mais dois capítulos, além de outros dois textos

avulsos, ao final do livro20

(PRESTES e TUNES, 2012). Com relação a essa mudança,

Prestes e Tunes (2012) são categóricas ao tecerem suas críticas, defendendo que a

alteração sem nenhum comentário prévio que alerte ao leitor, o induz a acreditar que

Psicologia Pedagógica foi escrita da forma como é apresentada - o que representa um

erro de ordem cronológica, pois esses escritos datam de outro período nas elaborações

vigotskianas. Há ainda outra edição no país, feita pela Artmed em 2003, a versão em

português da tradução e comentários feitos pelo argentino Guillermo Blanck – a qual

respeita a estrutura e organização do original em russo21

.

19

Pavel Blonski (1884-1941) foi um psicólogo e educador soviético. Para saber mais sobre a trajetória do

teórico, ver Van der Veer (2007) e Danilchenko (1993). 20

São eles “O problema do ensino e do desenvolvimento mental na idade escolar” e “A dinâmica do

desenvolvimento mental do aluno escolar em função da aprendizagem”, respectivamente capítulos XX e

XXI, além dos textos “Desenvolvimento dos conceitos cotidianos e científicos na idade escolar” e “A

análise pedológica do processo pedagógico”. 21

Apesar das críticas feitas por Prestes e Tunes (2012), neste trabalho optamos por fazer as citações com

a tradução realizada por Paulo Bezerra, uma vez que foi feita diretamente do russo.

Page 25: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

25

Não nos interessa aqui entrar nos meandros destas discussões - problemáticas e

polêmicas - em torno das traduções das obras de Vigotski no Brasil. O objetivo já

anunciado do presente trabalho, é levantar as contribuições de Vigotski sobre a

educação estética e compreender os principais aspectos teóricos e conceituais que nos

ajudem a pensá-la e entendê-la na perspectiva histórico-cultural. Contudo, como durante

o trabalho de investigação empreendemos um estudo das duas versões existentes em

português e notamos algumas diferenças entre as traduções, em certos momentos do

texto, como o leitor verá mais adiante, traremos ambas as citações para apontar alguns

aspectos importantes.

Após essa breve exposição inicial, seguiremos analisando o capítulo treze, da

referida obra, que trata sobre a estética, direcionando o nosso olhar na tentativa de

capturar as sutilezas do texto, em que o teórico apresenta e elabora suas concepções a

respeito dessa temática. Nesse exercício, destacamos que vemos como importante a

necessidade de se apurar conceitualmente as proposições vigotskianas acerca da estética

e de sua relação com a educação, pois este foi um assunto que Vigotski não pôde voltar

a estudar. Como destaca Leontiev22

(1991 apud TOASSA, 2009, p. 84), o autor

propunha-se a fazer um estudo sobre as emoções que a reação estética desencadeava,

para analisar os mecanismos da criação artística e as funções específicas da arte, mas,

infelizmente, este trabalho nunca foi concluído. Assim, nos parágrafos que se seguem,

entrelaçados à apresentação dos principais pontos do capítulo, teceremos nossos

comentários, questionamentos e percepções sobre os mesmos.

Dividido em dez pequenas seções23

, Vigotski (2010) abre o capítulo sob o título

de “A estética a serviço da pedagogia”, em que discorre sobre as diferentes concepções

acerca do papel da estética na vida das crianças e as funções alheias que lhe são

designadas, posicionando-se contrário a três objetivos erroneamente impostos a ela pela

pedagogia tradicional: o conhecimento, o sentimento e a moral.

Primeiramente, o autor defende ser um equívoco impor objetivos sociais e

cognitivos à estética, como se a arte fosse um meio do aluno ampliar seu conhecimento,

substituindo valores estéticos por valores sociais, até porque, como ele adverte, a

realidade nunca se apresenta de forma plena e verdadeira na obra de arte: apesar de

22

LEONTIEV, A. N. Artículo de introducción sobre el labor creador de L. S. Vygotski. In: VYGOTSKI,

L. S. Obras escogidas I. Madrid: Visor Distribuiciones, 1991, p. 419-450. 23

São elas: “a estética a serviço da pedagogia”; “moral e arte”; “a arte e o estudo da realidade”; “a arte

como objetivo em si”; “o passivo e o ativo na vivência estética”; “o sentido biológico da atividade

estética”; “característica psicológica da reação estética”; “a educação da arte, do juízo estético e das

habilidades técnicas”; “o conto de fadas” e “a educação estética e o talento”.

Page 26: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

26

constituir-se a partir de elementos tomados da realidade, o autor nos lembra que estes

são reelaborados criativamente e que, portanto, não refletem diretamente a realidade

concreta. Apesar disto, tanto nesta como em outras obras de Vigotski, são notáveis as

constantes referências e usos que o autor faz da literatura para ilustrar e esclarecer as

discussões teóricas que levanta.... O que não deixa de tornar sua escrita ainda mais

envolvente, fato também que nos indica o profundo conhecimento literário de Vigotski,

que recorre a Tolstoi, Puchkin, Tchekhov, dentre muitos outros.

Outro objetivo erroneamente atribuído à estética é o de restringi-la ao sentimento

do agradável, como se todas as emoções suscitadas pela obra de arte se reduzissem ao

sentimento imediato de prazer e alegria. Por fim, o teórico afirma ser um equívoco

enquadrar qualquer vivência estética a um conhecimento moralista, uma vez que numa

história é possível uma diversidade de interpretações e conclusões morais, não só aquela

esperada pelo adulto. Tomando como exemplo textos literários – “A cigarra e a

formiga” e “A cabana do Pai Tomás” -, o autor demonstra o quanto não podemos estar

certos do tipo de efeito moral que a vivência estética provocará na criança, criticando

que ao se enfatizar apenas os preceitos morais de uma obra, perde-se de vista o que ela

tem de artístico.

Vemos que nessa primeira parte do livro, a ênfase de Vigotski é posta, ao

pensarmos a arte na educação, no perigo de tendê-la à certa “pedagogização” ou

“didatização”, que nada mais é do que a instrumentalização da arte para fins outros que

não estéticos. Sobre essas colocações de Vigotski, o mais interessante é perceber e

reconhecer que, por mais que tenham sido escritas há mais de 90 anos, tais

interpretações atribuídas à estética quando à serviço da educação permanecem atuais –

isso para falar quando, de fato, a estética se faz presente na escola.

Contudo, como o teórico explora mais à frente do capítulo, tais objetivos - que

não são inerentes e constitutivos da estética -, se podem existir, teriam sempre um

caráter secundário ou derivado da primordial realização da “ação estética” (VIGOTSKI,

2010, p. 340), que ele apresenta como sendo a “reação estética” (ibidem, p. 339).

Portanto, na concepção do autor, os três fins atribuídos erroneamente à estética na

verdade podem ocorrer de forma indireta, por não haver uma transposição direta de tais

objetivos para a arte, sendo por ele considerado um processo íntimo e interior do

sujeito.

Antes de seguir com as considerações sobre as discussões apresentadas pelo

teórico no capítulo, gostaríamos de nos deter e discutir um pouco mais o termo “reação

Page 27: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

27

estética”, usado por Vigotski para se referir à resposta do sujeito diante de algum objeto

estético. Julgamos como importante a necessidade de um aprofundamento teórico e

novas investigações em torno deste conceito, por se tratar de uma terminologia que

circulava na época de Vigotski que, como já dissemos, era marcado pelas influências do

campo da reflexologia e reactologia.

Para entender a extensão dessas influências, vale citar um relato de Alexander

Luria24

(apud VAN DER VEER; VALSINER, 2001), companheiro de Vigotski no

Instituto Psicológico de Moscou, sobre os efeitos da nomeação de Kornilov25

na direção

do Instituto. Luria afirma que

a reforma da psicologia estava acontecendo de duas formas: primeiro,

dando-se novos nomes às coisas, e segundo, mudando a mobília de

lugar. Se a memória não me falha, a percepção era chamada de

recepção de um sinal para reação; memória era retenção com

reprodução de reação; [...] em resumo, inseríamos a palavra “reação”

onde podíamos, acreditando sinceramente que estávamos fazendo algo

importante e sério (LEVITIN, 1982, apud VAN DER VEER;

VALSINER, 2001, p. 142, grifo nosso).

Vê-se, portanto, o quanto as ideias da reactologia e reflexologia eram influentes

naquele momento e como Vigotski, inicialmente, acabou afetado por elas. O profundo

impacto das produções de Kornilov nos escritos do teórico é notável ao observarmos,

por exemplo, sua menção ao termo “reação estética” na obra Psicologia Pedagógica.

No entanto, como comenta Toassa (2013b), o termo “reação” também está presente no

Tomo III das Obras Completas, contendo o espantoso número de 492 ocorrências e no

Tomo II, com 79 ocorrências. A autora argumenta que, diferentemente de outras notas

que são feitas pelos estudiosos da teoria com relação aos conceitos que Vigotski

emprega em seus escritos, “outras [notas] – e reação talvez seja a principal –

desenvolveram-se com a psicologia histórico-cultural e não vem recebendo devida

análise por parte dos comentadores” (TOASSA, 2013b, p. 499). Diante dessa fala,

evidencia-se a relevância de novos estudos que avaliem os usos e qual a abrangência

dessa terminologia na obra de Vigotski.

24

Ver LEVITIN, K. One is not born a personality. Moscou: Progress Publishers, 1982. 25

Em 1907, Kornilov era assistente do então diretor do Instituto de Psicologia Experimental da

Universidade de Moscou, Georgi Chelpanov, até que em 1923 passa a assumir a direção. Ele propôs o

que chamou de “reactologia”, tendo sido um dos pesquisadores que lideraram a busca por uma

“psicologia marxista”. Para saber mais sobre o psicólogo e a reactologia, ver Van der Veer e Valsiner

(2001), capítulo 6.

Page 28: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

28

Mas aqui surge a questão basilar: Qual a diferença entre “reflexo” e “reação”?

Ambos os termos se constituem e têm como base o mesmo processo? Segundo Toassa

(2013b), o termo “reação” proporcionou a Vigotski uma “saída estratégica com relação

à estreiteza do conceito de reflexo” (TOASSA, 2013b, p. 499). Na tentativa de

compreender estes conceitos e suas possíveis particularidades e diferenças, consultamos

as referências e informações presentes em um dicionário de psicologia. De acordo com

um deles:

[a noção de reação] é, no entanto, infinitamente menos restritiva que a

noção de reflexo, uma vez que é aplicada a modificações de estados

ou de atividades que podem não estar inscritas na organização

fisiológica pré-instalada, que decorrem da história particular do

sujeito, e cuja complexidade e persistência podem não ter termos de

comparação com a dos reflexos (DORON; PAROT, 2006, p. 645).

Complementa-se esta explicação com uma citação do próprio Vigotski, presente

em outro capítulo de Psicologia Pedagógica, em que diz que

o reflexo, como é fácil de entender a partir de sua descrição, é apenas

um caso particular de reação: resposta do sistema nervoso. Assim, o

reflexo é um conceito estritamente fisiológico, sendo a reação um

conceito amplamente biológico. Não existe reflexo nem nos vegetais,

nem nos animas, nem nos seres dotados de sistema nervoso, mas aqui

temos pleno direito de falar reação [...] O conceito de reflexo nos

enclausura na fisiologia do sistema nervoso e restringe o círculo dos

fenômenos observáveis (VIGOTSKI, 2010, p. 19).

Como coloca Toassa (2013b), mencionando essa diferenciação no texto do

teórico, o conceito de reação marca o caráter de “resposta a estímulo” de certo

movimento (TOASSA, 2013b, p. 499). Outros autores também explicitam este assunto,

como é o caso de Van der Veer e Valsiner (2001), ao afirmarem que

Todo comportamento humano encontra sua origem em reações a

estímulos vindos do mundo exterior [...] essas reações apresentam três

partes: (1) recepção ao estímulo, (2) processamento do estímulo, e (3)

resposta ao estímulo. Embora este esquema fosse semelhante ao

esquema dos reflexos, Vygotsky, seguindo Kornilov, preferia falar em

“reações”. Em sua opinião, reação era o termo mais geral, aplicável

também a animais sem sistema nervoso e a plantas, e devia ser usado

preferencialmente para enfatizar o fato de que seres humanos

partilham a natureza reativa de seu comportamento com formas

primitivas de vida. Na prática, porém, Vygotsky frequentemente

referia-se a “reflexos” e fazia amplo uso da teoria de reflexos

Page 29: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

29

condicionados de Pavlov (VAN DER VEER; VALSINER, 2001, p.

63).

Entretanto, tais ideias reactológicas e reflexológicas serão mais tarde

questionadas por Vigotski e “isto se reflete de maneira muito interessante em seu

manuscrito sobre a crise na psicologia” (ibidem, p. 152), que data de 1927. Mas o mais

interessante e curioso é ver que ainda em 1925, Vigotski, recém-convidado a integrar o

Instituto de Psicologia de Moscou, na conferência que deu origem ao texto A

Consciência como problema da psicologia do comportamento26

, já dá indícios de um

rompimento com as ideias de Kornilov. Cole e Scribner (2007) comentam e nos ajudam

a entender este contexto:

Pode-se imaginar, assim, a sensação causada, um ano mais tarde, no

segundo encontro de neuropsicologia, pela palestra de Vigotski [...]

principalmente porque, qualquer que seja o aspecto pelo qual se veja a

abordagem reatológica de Kornilov, não se conseguirá caracterizar de

uma forma clara o papel da consciência na atividade humana, assim

como não se conseguirá atribuir ao conceito de consciência um papel

na ciência psicológica. Vigotski começava, assim, a divergir da

autoridade recentemente estabelecida. Ele não propunha, entretanto,

um retorno à posição advogada por Chelpanov (COLE; SCRIBNER,

2007, p. XXII, grifo nosso).

Em vista destes aspectos e circunstâncias acima ressaltados, para adensar o

debate, poderíamos indagar: Sabemos que Vigotski não voltou a estudar questões

relacionadas à estética; mas se o fizesse, seria o termo “reação estética” aceito da forma

como foi incialmente elaborado e explicitado, uma vez que é fruto dessas marcas e

influências anteriormente comentadas? Evidentemente, trata-se aqui apenas de uma

elucubração sobre o assunto. Contudo, vemos nos próprios escritos de Vigotski pistas

para tal questão.

Mesmo que reação estética seja o conceito central nas obras do teórico sobre

estética, notamos uma coexistência de outros termos no interior dos seus escritos. No

decorrer do capítulo aqui estudado27

, a questão aparece de distintas maneiras: vivência

estética (p. 323; p. 328; p. 335; p. 343), educação estética (p. 323; p. 331; p. 349; p.

352), reação estética (p. 332; p. 339), impressões estéticas (p. 324; p. 342), emoções

estéticas (p. 323; p. 328; p. 333; p. 345), percepção estética (p. 331), percepção artística

26

Ver VIGOTSKI, L.S. La conciencia como problema de la psicología del comportamiento. In:

VIGOTSKI, L.S. Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la Psicología, 2013, p. 39-60. 27

Como dissemos, neste trabalho utilizamos como referência a tradução de Paulo Bezerra, que foi feita

diretamente do russo.

Page 30: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

30

(p. 328; p. 338; p. 351) e experiência estética (p. 351). Quais são os sentidos e

significados destes termos? Em que diferem? Em que se aproximam? E, dada toda essa

gama de nomeações, qual que exprime melhor os efeitos e afetos causados pela obra de

arte? Seria, de fato, uma reação? Seria uma experiência? Uma emoção? Em se tratando

de crianças, quais destes termos melhor caracterizaria o impacto e o modo como a obra

de arte nelas repercutem? Se se trata de uma reação, de que natureza ela seria?

Sabemos, por exemplo, a enorme importância que o conceito de “vivência”,

posteriormente elaborado por Vigotski, assume em seus escritos28

. Seria, então,

“vivência” um conceito consistente e profícuo para abordar a estética? É em meio a

estas tantas questões que o presente trabalho se desenvolve, buscando contribuir para o

diálogo e elaborações em torno destes conceitos.

Vale destacar, ainda, que estudos mais recentes na perspectiva histórico-cultural,

como os de Pino (2006; 2007), também trazem para o debate a noção de “sentido

estético”29

que, segundo o autor,

[...] constituiria assim uma experiência tanto do autor da obra de arte

ou artista quanto do receptor ou espectador dessa obra, embora em

níveis diferentes. No primeiro caso, a obra de arte é a projeção externa

ou objetiva da experiência estética subjetiva do artista. Isso quer dizer

que o sentido estético faria parte da própria atividade artística. No

segundo caso, porém, é a experiência vivida na contemplação da obra

de arte que produz o sentimento estético subjetivo, o qual pode se

traduzir na experiência de fruição, acompanhada ou não, de uma

experiência cognitiva da natureza artística dessa obra. De qualquer

forma, independentemente da possibilidade ou não de existir uma

possível objetividade estética [...] o sentido estético é uma experiência

de ordem subjetiva (PINO, 2007, p. 103).

Compreendemos que toda essa indagação e problematização conceitual é devido

à dificuldade e desconforto que nós, leitores e estudiosos de Vigotski, temos em assumir

o conceito de reação estética nos dias de hoje, tendo em vista as influências teóricas que

marcaram os trabalhos iniciais do autor e por conhecer toda a sua produção posterior a

este período. Isto é, em meio a tantas incertezas que permeiam esta discussão, um ponto

é claro: ao ler Vigotski em Psicologia Pedagógica, não conseguimos ignorar tudo o que

o autor escreveu após este livro. Se à época predominava o termo reação, por conta da

28

Para saber mais sobre as elaborações vigotskianas em torno deste conceito, ver Toassa (2009). 29

Entendemos que a ideia de “sentido estético” representa um avanço significativo para as pesquisas

dentro da temática, trazendo grande contribuição para as discussões e análises que aqui serão levantadas.

Entretanto, foge aos limites deste trabalho aprofundar nas densas proposições que Pino (2006; 2007)

desvela e anuncia nestes textos. Essa questão incita novas investigações, a serem discutidas e

aprofundadas posteriormente, em outro trabalho.

Page 31: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

31

ambiência intelectual na qual o autor se inseria, marcada pelos estudos da reflexologia e

reactologia, este conceito perde a força no decorrer de seus escritos e, por sua vez,

outros passam a ganhar relevância (como é o caso do conceito de vivência). Por isso,

apesar de tomarmos os textos de 1925 como referência nesta dissertação, na análise que

faremos sobre as crianças e os modos delas participarem e se envolverem com a

literatura, entendemos que não cabe nomear de “reação estética”, o que para nós sugere

uma simples resposta orgânica do indivíduo. No entanto, temos clareza de que tais

questões terminológicas demandariam um trabalho para além do que é possível neste

momento em uma dissertação de mestrado. Nesse sentido, destacamos que

investigações mais aprofundadas sobre estes conceitos são necessárias de serem

realizadas, as quais aqui nos limitamos apenas em anunciá-las.

Contudo, antecipando possíveis questionamentos que possam ser feitos quanto

ao problema de tradução da obra no Brasil, como um primeiro exercício analítico,

dedicamo-nos a mapear em que momentos os diferentes termos destacados acima

aparecem no texto e, a partir disso, comparar as duas versões existentes no português,

para verificar possíveis diferenças conceituais presentes nelas (ANEXO 1).

Como podemos observar no quadro em anexo, de um total de 63 referências a

tais termos (reação, emoção, educação etc.), por 16 vezes a forma de enunciar é

diferente nas duas traduções do capítulo de Psicologia Pedagógica30

. Além disso, como

o quadro também nos indica, tais diferenças entre as traduções ocorrem, principalmente,

com os vocábulos “emoção” e “vivência”, sendo mais comum a tradução de Paulo

Bezerra se utilizar do primeiro, enquanto que Guillermo Blanck do segundo.

Para exemplificar a diferença que isso causa no entendimento do texto,

separamos e confrontamos abaixo um dos trechos em que isso ocorre:

Tradução Martins Fontes Tradução Artmed

“Aqui reside a chave para a tarefa mais

importante da educação estética:

introduzir a educação estética na própria

vida” (VIGOTSKI, 2010, p. 352).

“Aqui está a chave para a tarefa mais

importante da educação estética: inserir

as reações estéticas na própria vida”

(VIGOTSKI, 2003, p. 239).

30

Essas variações estão destacadas com preenchimento em cinza no quadro em anexo.

Page 32: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

32

Com base nessas passagens, torna-se forçoso pesquisar os correspondentes

desses termos no texto original em língua russa, já que são conceitos importantes e

fundamentais no livro. Todavia, para o presente trabalho, nos limitamos apenas a

constatar essa necessidade. Empreenderemos nessa procura em outro momento.

Por ora, o que nos interessa é perceber que no contexto desta produção

vigotskiana, muitas vezes, os termos acabam por se sobreporem - apesar de

compreendermos e desconfiarmos de antemão que não são equivalentes. Mesmo em

Psicologia da Arte, Toassa (2014) afirma que

há uma coexistência de palavras inspiradas na ciência dos reflexos e

outros remanescentes da anterior crítica literária vigotskiana. É o que

vemos no caso dos termos “reação estética” (conceito principal do

livro) e “vivência estética”: a despeito de sua aparente oposição, os

termos tem significado idêntico no contexto da obra (TOASSA, 2014,

p. 18).

Devido a essa ambivalência e imprecisão de termos na obra de Vigotski, bem

como a amplidão deste tema no transcorrer da história, consideramos que o esforço por

realizar um melhor refinamento conceitual dos mesmos, pode se configurar em

significativas e importantes contribuições às leituras contemporâneas de Vigotski sobre

estética. Afora a necessidade de um estudo detalhado de caráter mais teórico a ser

realizado dos textos do autor - especialmente os produzidos no período de 1915 e 1925-,

acreditamos que o diálogo com as experiências e leituras proporcionadas pela imersão

no campo empírico, circunscrito no âmbito da psicologia infantil, podem contribuir para

a problematização e reflexão acerca dessas ideias e conceitos. É dentro deste panorama

que esta pesquisa de mestrado que articula literatura, criança e educação, se insere.

Se os argumentos de Vigotski sobre a “pedagogização” e “didatização” da arte

nos levaram a destacar e problematizar os conceitos reflexo/reação utilizados pelo autor

no capítulo “A educação estética”, suas considerações sobre a passividade na recepção

da obra de arte nos levam a problematizar os termos percepção, emoção, vivência e

educação estética, que também são por ele empregados.

Vigotski (2010) faz crítica à visão da psicologia de que a percepção estética é

uma “vivência absolutamente passiva” (VIGOTSKI, 2010, p. 331), como se o

desinteresse e a ausência de uma posição pessoal frente à obra de arte fossem condição

para a reação estética. Como argumenta o teórico, certa passividade e certo desinteresse

Page 33: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

33

representam apenas um primeiro momento do ato estético. Num parágrafo em que

podemos acompanhar a elaboração vigotskiana, encontramos:

Não há dúvida de que certa passividade e certo desinteresse são

premissa psicológica obrigatória do ato estético [...] É evidente que

uma obra de arte não é percebida estando o organismo em completa

passividade e não só pelos ouvidos e os olhos mas através de uma

atividade interior sumamente complexa, na qual o contemplar e o

ouvir são apenas o primeiro momento, o primeiro impulso, o impulso

básico (VIGOTSKI, 2010, p. 332, grifo nosso).

Em que consiste, então, tal atividade interior complexa? Mais à frente do texto, o

próprio autor vai assumir que “ainda não sabemos em que consiste essa atividade”

(VIGOTSKI, 2010, p. 333). Sobre esse trecho, é importante evidenciar um aspecto.

Como já comentamos, além da dificuldade terminológica que atravessa a obra, o

problema de tradução tornar-se de fato, como dizem Prestes e Tunes (2012), relevante.

Isto porque, mais uma vez, ao cotejar a versão espanhol da argentina com a brasileira,

essa mesma passagem é traduzida da seguinte forma pela primeira: “ainda não podemos

dizer com exatidão em que consiste [a vivência estética], pois a análise psicológica

ainda não pronunciou a última palavra sobre sua composição” (VIGOTSKI, 2003, p.

230, grifo nosso). Perguntamos: É vivência? É reação? Ou emoção?31

Como o teórico

deixou registrado: essa atividade ainda não está definida.

Na sequência, Vigotski (2010) afirma e explica que a “emoção estética” (p. 333)

se baseia no modelo de uma “reação comum” (p. 333), constituído por três momentos:

uma estimulação, elaboração e resposta. A percepção sensorial, isto é, o trabalho

realizado pelos olhos e ouvidos na apreensão de uma obra de arte, corresponde apenas

ao primeiro momento dessa reação; o momento seguinte consiste na interpretação que o

espectador deve realizar do que está representado, por exemplo, em um quadro - de

atribuir sentido às linhas, formas e cores que lhe são apresentadas -; posteriormente,

realiza-se um trabalho de memorização e associação de pensamento, que segundo o

teórico poderia ser chamado de “síntese criadora secundária”, “porque requer de quem

percebe reunir em um todo e sintetizar os elementos dispersos da totalidade artística”

(VIGOTSKI, 2010, p. 334). Assim, diz Vigotski (2010), citando os psicólogos que

chamam esse processo de percepção de empatia (porém, sem nomeá-los), que os

31

Somente dentro desse subcapítulo “O passivo e o ativo na vivência estética”, na versão brasileira, e “A

passividade e a atividade na vivência estética”, na tradução do espanhol, encontramos uma variedade de

termos: percepção, reação, vivência, sentido, emoção, o que vem a reafirmar a necessidade de

aprofundamento conceitual.

Page 34: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

34

sentimentos e o conteúdo que atribuímos a uma obra de arte não estão nela contidos,

mas que na verdade são por nós incorporados. Nota-se que, nesta passagem, podemos

encontrar ecos do diálogo de Vigotski com Theodor Lipps, presentes no texto de

Psicologia da Arte.

Mas o que nos chama atenção nessa parte do livro é uma passagem em que o

autor afirma que “a obra de arte é acessível nem de longe a qualquer um e a percepção

de tal obra é um trabalho difícil e cansativo do psiquismo” (VIGOTSKI, 2010, p. 332).

Diante do estranhamento, gerado sobretudo pela forma como está construída a frase,

recorremos, novamente, a versão traduzida do espanhol. Lá o trecho aparece da seguinte

maneira: “a obra de arte não é acessível, de forma alguma, à percepção de todos, e que a

percepção de uma obra artística representa um trabalho psíquico difícil e árduo”

(VIGOTSKI, 2003, p. 229). Como podemos entender essa afirmativa de Vigotski? Tal

trabalho árduo do psiquismo que envolve a percepção de uma obra de arte, não é

acessível a todos? Só que ele poderá vir a ser? Ou nem todos podem chegar a plena

realização da (re)ação estética?

A estranheza causada por essa afirmação de Vigotski32

, está na possível

interpretação de que, portanto, o fruir da arte seja apenas atributo de alguns. Mas por

que não seria acessível a qualquer um? Diante disso, indagamos: O que não é acessível:

a percepção estética ou a obra de arte em si? Qual a diferença entre esses dois modos de

perguntar? Partindo desses questionamentos, vemos que o problema se encontra, antes

de tudo, em como tornar a percepção estética acessível a todos. Seria, então, essa a

tarefa da educação estética: possibilitar e dar condições para que todos sejam

convidados a perceber/apreender/vivenciar uma obra de arte?

Mais ao final do capítulo, ao tratar das tarefas da educação estética, podemos

entender melhor essa colocação de Vigotski e reconhecer alguns indícios que sustentam

e clarificam tal afirmação. Sem avançar na discussão que será feita no momento

oportuno, gostaríamos apenas de já comentar alguns pontos que tais questões levantam.

Tendo em vista o processo, histórico e cultural, de humanização das funções orgânicas

do homem, podemos afirmar, portanto, que a percepção estética não é algo intuitivo,

que brota de súbito no ser humano; isto é, o trabalho difícil e laborioso do psiquismo na

32

Na sequência do texto, o autor ainda continua: “se o destino de um quadro consistisse apenas em afagar

o nosso olho e o da música em provocar emoções agradáveis ao nosso ouvido, a percepção dessas artes

não apresentaria nenhuma dificuldade e todos, com exceção dos cegos e surdos, estariam igualmente

chamados a perceber essas artes” (VIGOTSKI, 2010, p. 333).

Page 35: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

35

percepção da obra de arte não é dado espontaneamente nos indivíduos. Conforme diz

Pino (2007),

o sentido estético e o sentimento do belo e do gosto não podem ser o

resultado de um instinto ou tendência natural que permite captar a

beleza das coisas (dos fenômenos naturais e das produções humanas)

de forma espontânea e natural, mas tem que ser o resultado da

sensibilização aos valores que os homens atribuem às coisas materiais

e imateriais (PINO, 2007, p. 115).

A partir dessa reflexão do autor, podemos entender que a acessibilidade dessa

atividade psíquica não é imediata, direta, instintiva no ser humano: ela é, na verdade,

construída histórica e coletivamente, quando a arte é socialmente compartilhada. Em

outras palavras: por isso educação estética na formação do homem! É preciso educar

esteticamente os sujeitos, o que implica conhecer, apreciar e se apropriar da produção

cultural humana.

Na seção em que busca compreender o “sentido biológico da atividade estética”

(VIGOTSKI, 2010, p. 334), Vigotski pontua que este deve ser procurado “na elucidação

da psicologia da criação do artista e na aproximação entre a percepção e o processo de

criação” (ibidem, p. 336). Temos, portanto, que na visão do autor, processo de

percepção e criação estão intimamente relacionados.

Ao tratar deste assunto, podemos perceber o impacto da teoria de Freud nos

escritos de Vigotski, uma certa alusão ao seu pensamento, quando diz ser a

sublimação33

o que sustenta os atos de criação e, portanto, também os processos de

percepção de uma obra de arte, pois estes, para o autor, nada mais são do que processos

de repetição e recriação do ato criador. Mas o que nos intriga nesta seção é o porquê da

não referência direta a Freud, uma vez que em Psicologia da Arte, obra contemporânea,

ela aparece de maneira explícita. É por que se trata de uma obra orientada para

professores?

Sobre tal referência em Psicologia Pedagógica, Van der Veer e Valsiner (2001),

importantes comentadores e conhecedores da obra vigotskiana, destacam que não há

nela nenhuma indicação de crítica às ideias freudianas - diferente do que irá aparecer

mais tarde em Psicologia da Arte. Os autores comentam que:

33

Isto é, a “transformação de modalidades inferiores de energia psíquica, que não foram utilizadas nem

encontraram vasão na atividade normal do organismo, em modalidades superiores” (VIGOTSKI, 2010, p.

337).

Page 36: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

36

tem-se a impressão, portanto, de que Vygotsky, na época – por volta

de 1924 – aceitava de forma não crítica uma grande parte do

pensamento de Freud. Uma outra possibilidade é que ele

simplesmente desejasse apresentar a futuros professores uma visão

geral imparcial das correntes contemporâneas da psicologia e tenha

evitado deliberadamente expressar sua própria avaliação (VAN DER

VEER; VALSINER, 2001, p. 69).

Levando-se em consideração o que foi anteriormente apontado, a respeito do

ecletismo presente nesta obra, bem como o caráter, objetivos e interlocutores nela

circunscritos, fica difícil compreender e definir com precisão qual postura o autor

assume neste livro.

Após as análises até aqui apresentadas, Vigotski passa a discutir o conceito

central em suas elaborações sobre estética: a reação estética - conceito este, como já

mostramos, que nos causa particular interesse de aprofundamento teórico -, dedicando-

se em descrever e comentar sua característica psicológica. Posicionando-se contrário à

teoria do contágio defendida por Tolstoi, segundo a qual, na arte, os homens se

contagiariam pelos sentimentos dos outros homens, e da arte como socialização dos

sentimentos, de Bukhárin, Vigotski lança mão de duas passagens bíblicas para

esclarecer sua posição.

Primeiramente, para ilustrar para o leitor a teoria que contradiz, o autor tece uma

analogia com o milagre do Evangelho34

em que “cinco pães e dois peixes alimentaram

cinco mil pessoas, além de mulheres e crianças, e todos ficaram saciados; as sobras

ainda encheram doze cestos” (VIGOTSKI, 2010, p. 339). Nesse caso, diz Vigotski, o

“milagre” da arte seria apenas uma multiplicação dos sentimentos de um por milhares,

mas que “o sentimento continua sendo a mais comum das emoções de ordem

psicológica e a obra de arte não pode compreender nada que leve além dessa emoção

qualitativamente imensa” (ibidem, p. 339). Por este motivo, recorre à outra passagem da

Bíblia35

, da transformação da água em vinho, para explicar o que acredita ser o sentido

da estética: a arte se utilizar daquilo que está presente no mundo, de algum tema real

concreto, mas que a tarefa do artista - no uso da forma e do estilo - está em justamente

transformar tudo em algo absolutamente novo.

34

De acordo com Blanck (2003), “esse episódio, chamado de Primeira Multiplicação dos Pães, é narrado

em vários livros do Novo Testamento, mas aqui sem dúvida Vigotski se refere ao ‘Evangelho segundo

São Mateus’” (Ver nota 21, p. 246, da tradução e comentários da editora Artmed, feitos por Guillermo

Blanck). 35

Segundo Blanck (2003), agora Vigotski se refere ao episódio bíblico “Bodas de Canaã”, do Evangelho

segundo São João (Ver nota 22, p. 247, da tradução e comentários da editora Artmed, feitos por

Guillermo Blanck).

Page 37: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

37

Depois de feitas essas analogias e explicações, Vigotski (2010) define o que

constitui a “reação estética” (p. 339). Para ele, é uma atividade interna complexa

causada pela percepção da obra de arte, que surge “[...] por via indireta e contraditória e

decorre forçosamente da superação de impressões imediatas causadas pelo objeto e pela

arte” (ibidem, p. 344). Na base dessa reação está a catarse, isto é, no caso da tragédia, a

“liberação das paixões despertadas” (ibidem, p. 345) - o que, segundo o autor, vem a ser

essencialmente o objetivo final da arte. Para exemplificar a “transformação” das

emoções, resultado da natureza dialética da emoção estética, no caso da comédia

Vigotski cita a peça O inspetor geral, de Gogol, em que suas personagens abomináveis

e em situações banais acabam por despertar o riso no espectador.

Neste capítulo, talvez em razão dos objetivos e interlocutores específicos do seu

trabalho, notamos que Vigotski não explora nem esclarece mais detidamente os

conceitos-chave que elabora sobre a questão estética (reação estética, catarse...), bem

como parece deixar de lado um conceito importantíssimo que será apresentado em

Psicologia da Arte, a “técnica social dos sentimentos”. No conceito de catarse, por

exemplo, sentimos que o autor não explicita claramente qual a diferença de sua

concepção com aquela formulada por Aristóteles, bem como por Freud, o que não irá

acontecer em Psicologia da Arte. Em virtude disto, reiteremos, faz-se importante e

necessário o diálogo de Psicologia Pedagógica com as demais produções de Vigotski,

até para verificarmos as continuidades e rupturas de uma obra para outra, e observar o

que (e se) muda quando o escrito de Vigotski se dirige a professores.

Na continuação do capítulo, agora sob o título “a educação da arte, do juízo

estético e das habilidades técnicas”, Vigotski dedica-se a escrever sobre a estética

quando transferida para a educação, que, para ele, tem como tarefa “educar a criação

infantil”, “ensinar profissionalmente as crianças as habilidades técnicas da arte” e

“educar nelas o juízo estético, habilidades para perceber e vivenciar obras de arte”

(VIGOTSKI, 2010, p. 346).

Com relação à criação infantil, Vigotski examina e argumenta sobre o desenho

da criança. Segundo o autor, em termos educativos “ele ensina a criança a dominar o

sistema de suas vivências, a vencê-las e superá-las”, ainda que “seu valor estético

autônomo esteja próximo de zero” (ibidem, p. 346). E, nesse sentido, defende a plena

liberdade de criação e expressão infantil, pois o que interessa é o aspecto psicológico do

desenho e não a avaliação e correção de sua forma e linhas.

Page 38: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

38

Assim, mesmo que não negue que “na criação infantil encontramos protótipos

absolutamente espontâneos e puros de poesia” (VIGOTSKI, 2010, p. 348), Vigotski

diverge da opinião “exagerada” de Tolstoi, para quem nas composições literárias das

crianças encontrava-se mais verdade poética do que nos maiores nomes da literatura.

Para Vigotski, a criação infantil deve ser vista apenas a partir da sua utilidade

puramente psicológica, pois “embora seja capaz de criar protótipos da mais grandiosa

tensão, ainda assim está condenada definitivamente a permanecer no círculo estreito das

formas mais elementares, primitivas e, no fundo, pobres” (ibidem, p. 348, grifo nosso).

Concordamos com Vigotski em que “os impulsos imediatos e a criação na

infância são mais fortes e nítidos, mas a sua natureza é diferente daquela observada nos

adultos” (ibidem, p. 349, grifo nosso). Entretanto, o seu posicionamento anterior, de

tom qualificativo – são formas elementares, primitivas e pobres – pode e merece ser

questionado. Não vemos a questão numa ordem valorativa e comparativa, de uma forma

ser superior/inferior à outra. O ponto – e o próprio autor, como vimos, afirma isso - é

que a criação infantil difere da criação do adulto, mas apenas isso. Afinal, sabemos que

suas características, intenções e objetivos são outros. No dizer do próprio autor: “a

criança não escreve ou desenha porque nela se revela um futuro criador mas porque

nesse momento isso é necessário para ela e ainda porque em cada um de nós estão

radicadas certas possibilidades criadoras” (VIGOTSKI, 2010, p. 349, grifo nosso)36

.

Como a criação humana não é resultado de uma concepção de natureza mística

de inspiração e posse divina, Vigotski segue apresentando e definindo os outros

objetivos da educação estética, pois para ele tanto o sentimento estético quanto o ensino

profissionalizante dessa ou daquela arte também devem ser objeto de educação.

Sobre o ensino profissionalizante das técnicas de arte, o próprio Vigotski coloca

os perigos que marcam sua proposta, de acabarem por proporcionar apenas experiências

estéreis e maciças às crianças. Nesse sentido, destaca a importância desse ensino estar

ligado aos interesses das crianças e, igualmente, ser pensado na relação e diálogo com

as outras duas tarefas da educação estética, isto é, a própria criação da criança e a

cultura das suas percepções artísticas. Conforme ele diz, esse ensino “[...] deve ser

36

Em Imaginação e criação na infância, Vigotski (2009) retoma essa questão polêmica, quando afirma

que a imaginação da criança é mais pobre que a do adulto devido a maior pobreza de sua experiência,

pois para ele “quanto mais rica a experiência da pessoa, mais material disponível para a imaginação dela”

(VIGOTSKI, 2009, p. 22). Os comentários de Smolka neste trabalho nos ajudam a refletir e avaliar

melhor tanto este quanto o outro posicionamento do autor, pois como sugere “há que se entender esse

argumento, no entanto, com base no princípio da natureza social do desenvolvimento humano [...] A

experiência social faz a diferença”.

Page 39: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

39

introduzido em certos limites, reduzido ao mínimo [...] Só é útil aquele ensino da

técnica que vai além dessa técnica e ministra um aprendizado criador: ou de criar ou de

perceber” (VIGOTSKI, 2010, p. 351).

No caso da percepção da obra de arte, temos uma declaração contundente do

teórico, ao julgar ser “impossível penetrar em uma obra de arte até o fim sendo

inteiramente alheio à técnica da sua linguagem” (ibidem, p. 350, grifo nosso). Isto

porque, para Vigotski, a possibilidade de ir até o fim (aqui estamos entendendo-o como

a plena realização da ação estética, ou seja, a catarse37

) no vivenciamento de uma obra

de arte decorre de um trabalho educativo, que dá ao sujeito o “mínimo de conhecimento

técnico da estrutura de qualquer obra” (ibidem, p. 350, grifo nosso) necessário para isso.

Temos, portanto, que na visão do teórico, o conhecimento faz diferença no processo de

percepção e recepção. Mas, poderíamos questionar: e quanto àqueles que não têm

acesso a este conhecimento? Um sujeito que não domina as técnicas, por exemplo, das

artes plásticas, quando em contato com um quadro, tal obra de arte não significaria

nada? E que mínimo de conhecimento é esse necessário? Como quantificá-lo e

qualificá-lo? Ficam, então, essas inquietações para pensarmos.

A explicação do autor para a questão vem na sequência, ao dizer que ao

contrário do que se possa pensar, de que observar, ouvir e sentir prazer seja um trabalho

psíquico simples, na verdade corresponde a algo complexo. Por isso, Vigotski assinala a

necessidade de uma aprendizagem especial na percepção artística, afirmando que é

justamente “aí que está o objetivo principal e o fim da educação geral” (VIGOTSKI,

2010, p. 351, grifo nosso). Baseado nos pressupostos da perspectiva histórico-cultural,

podemos depreender dessa colocação que interpretar e significar uma obra de arte não

se caracteriza por ser um processo natural, inato, biológico, dado no indivíduo desde o

seu nascimento. É, sim, fruto de um aprendizado, isto é, social, histórica e culturalmente

construído. É em razão disto que ser completamente alheio à linguagem de uma obra de

arte compromete o profundo sentido que ela pode causar/gerar/produzir no indivíduo.

Por isso a necessidade de imersão do sujeito nesse tipo de produção humana e o

compromisso firmado pela educação como um todo de se trabalhar na/com a cultura.

Portanto, nas palavras de Vigotski, os caminhos da educação estética, bem como

da educação de forma geral, está em oferecer à criança o contato com a experiência

histórica e socialmente acumulada, em ampliar o seu conhecimento pessoal, que nada

37

Contudo, consideramos que a problematização é válida: O que seria “o fim” de uma obra de arte? E é,

de fato, possível penetrar em uma obra de arte até o fim?

Page 40: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

40

mais é do que a “incorporação da criança à experiência estética da sociedade humana:

incorporá-la inteiramente à arte monumental e através dela incluir o psiquismo da

criança naquele trabalho geral e universal que a sociedade humana desenvolveu ao

longo dos milênios” (VIGOTSKI, 2010, p. 351).

Ao encerrar esta importante seção do capítulo, Vigotski ainda nos adverte

quanto ao principal aspecto da educação estética: introduzi-la na própria vida. E, então,

nos presenteia com uma belíssima passagem, a qual não podemos deixar de citá-la na

íntegra:

De coisa rara e fútil a beleza deve transformar-se em uma exigência

do cotidiano. O esforço artístico deve impregnar cada movimento,

cada palavra, cada sorriso da criança. É de Potiebniá a bela afirmação

de que, assim como a eletricidade não existe só onde existe a

tempestade, a poesia também não existe só onde há grandes criações

da arte, mas em toda parte onde soa a palavra do homem. E é essa

poesia de “cada instante” que constitui quase que a tarefa mais

importante da educação estética [...] O que deve servir de regra não é

o adornamento da vida mas a elaboração criadora da realidade, dos

objetos e seus próprios movimentos, que aclara e promove as

vivências cotidianas ao nível das vivências criadoras (VIGOTSKI,

2010, p. 352).

Se pensarmos nas relações de ensino e práticas escolares, esse trecho da obra de

Vigotski é para nós inspirador, a sustentar e dar forças às iniciativas e ações que buscam

e lutam por tornar a beleza, o artístico e o estético, em elementos constitutivos e

integrantes das atividades da vida cotidiana. Podemos, inclusive, concordar com o fato

de que não necessariamente a educação estética se limita a um tempo/espaço específico

e fixo, uma vez que atravessa e perpassa o cotidiano das relações humanas e escolares....

Perto de terminar esse capítulo, Vigotski escreve sobre os contos de fadas e a

polêmica questão, digamos que até hoje não consensual, do talento nas artes. Sobre o

primeiro tópico, apesar de elencar e criticar dois enfoques psicológicos38

com relação

aos contos de fadas e descrever os problemas que tais concepções trazem ao psiquismo

da criança, Vigotski afirma que isto “[...] não significa que o valor estético de uma obra

fantástica esteja sob veto para a criança. Ao contrário, a lei básica da arte exige essa

livre combinação dos elementos da realidade” (VIGOTSKI, 2010, p. 358). Por isso, o

autor explica que para sentir satisfação com uma história infantil, não é preciso que a

38

Primeiramente, de que essas histórias seriam uma forma de explicação do mundo à criança que ainda

não domina a realidade e, também, da necessidade de superação de representações e crenças primitivas,

que outrora acompanharam a cultura humana, com a presença de bruxas, feiticeiros etc. (Ver VIGOTSKI,

2010, p. 353).

Page 41: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

41

criança acredite em tudo o que é narrado, pois a realidade na arte encontra-se, apenas,

nas emoções que estão a ela relacionadas.

Assim, Vigotski apresenta a “lei da realidade emocional da fantasia”, também

chamada de “lei da dupla expressão dos sentimentos”, o que irá retomar em Psicologia

da Arte39

e, mais tarde, em Imaginação e Criação na Infância40

. Segundo essa lei,

“independentemente de ser real ou irreal a realidade que nos influencia, é sempre real a

nossa emoção vinculada a essa influência” (VIGOTSKI, 2010, p. 359).

Sem entrar em pormenores, podemos aqui, rapidamente, traçar um diálogo com

esta outra obra do teórico41

. De acordo com Vigotski (2009), é essa lei que esclarece os

efeitos que a obra de arte provoca em seus espectadores, pois mesmo que inventadas por

seus criadores, afeta e impacta seus apreciadores produzindo emoções verdadeiras. Na

obra de arte, a imaginação influencia em nossos sentimentos - sem nos esquecermos do

caráter dinâmico e recíproco desse processo42

-: mesmo que as paixões, alegrias,

tristezas das personagens de um livro sejam invenções da imaginação do seu autor, as

emoções que elas provocam são reais e vividas com intensidade.

Com relação aos contos de fadas, Vigotski (2010) afirma ser nessa lei da fantasia

que o fantástico encontra sua justificação, pois considera que “não desviamos as

crianças um mínimo da realidade quando narramos para elas uma história fantástica,

desde que os sentimentos que surgem nesse momento estejam voltados para a vida”

(VIGOTSKI, 2010, p. 359). Diante disto, conclui dizendo que os contos de fadas podem

ser considerados uma das formas de arte infantil e, com base nos estudos de Groos, um

dos estudiosos clássico do jogo, que é contemporâneo de Vigotski, ressalta ainda a

importância da brincadeira para a educação estética na criança.

Já em seu último ponto de discussão no capítulo, Vigotski escreve sobre a

educação estética e o talento, assunto que também irá retomar, brevemente, em

Imaginação e criação na infância43

. O argumento central que devemos destacar quanto

à questão é de que, para o autor, o talento é uma tarefa da educação, e não condição

anteriormente estabelecida para que ela ocorra. Em vista disto, Vigotski procura mostrar

as dificuldades das teorias e tendências da época com relação ao assunto, defendendo

que tal ideia tem que ser pensada em termos de diminuição ou aumento do potencial

39

Ver VIGOTSKI, L.S. Psicologia da arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999b, p. 249-272. 40

Ver VIGOTSKI, L.S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009, p. 26-29. 41

Ver nota anterior. 42

Isto é, da mesma forma que a imaginação influencia nos nossos sentimentos, nossos sentimentos

também influenciam na nossa imaginação. 43

Ver VIGOTSKI, L.S. Imaginação e criação na infância. São Paulo: Ática, 2009, p. 51.

Page 42: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

42

criador do ser humano. Isto é, para o teórico, todos os indivíduos têm talento. Ele,

portanto, inverte a lógica: o talento não é natural e condição anteriormente estabelecida,

mas diz respeito a existência de potencialidades criadoras no ser humano. O problema

que surge daí, então, é o porquê de haver diminuição desse talento no homem. Esta

afirmação altera todo um modo de se pensar sobre o assunto, quando, principalmente no

senso comum, muitos ainda defendem ser a capacidade de criação reflexo de um dom

natural do indivíduo.

Como vimos até aqui, muitos são os temas que Vigotski aborda neste instigante

capítulo, a responder muitas das perguntas registradas no início deste trabalho, bem

como a abrir outras tantas ao seu leitor. Para concluir as discussões realizadas nesta

primeira parte da dissertação, sintetizo alguns aspectos que tomamos como essenciais

para a leitura e compreensão do capítulo sobre educação estética.

Primeiramente, é importante não perder de vista qual o público-alvo do texto

Psicologia Pedagógica. Como anunciamos logo no início, o livro dirigia-se a

professores em formação; isto posto, temos ainda que levar em conta que a obra estava

vinculada a um projeto mais amplo de transformação política e social, pautada nos

ideais revolucionários. Outro ponto importante que se coloca na leitura é o fato de a

fazermos levando em consideração toda a trajetória intelectual e conceitual do autor,

isto é, seguindo o percurso teórico por ele traçado desde a sua primeira produção até os

seus últimos trabalhos. Por isso, como já foi apontado, indagamo-nos quanto à

abrangência e pertinência do termo reação estética nos estudos contemporâneos sobre

educação estética. Por último, vale relembrar que esta obra é, por vezes, “eclética”

(TOASSA, 2013b, p. 503) e que, por este motivo, impera a necessidade de colocá-la em

diálogo com outros escritos de Vigotski, que possam nos ajudar esclarecer algumas

passagens.

Entretanto, queremos chamar atenção para as condições de vida do autor na

época de elaboração de Psicologia Pedagógica. Assim, ao invés de evidenciar a

imaturidade teórica de tal obra, queremos destacar o quanto Vigotski, ainda jovem, já

tinha leituras dos estudos sobre linguística, filosofia, psicologia, reflexologia, entre

outros. Nesse sentido, o que o livro mostra é justamente o trabalho de apropriação

desses escritos pelo teórico. Além disso, também devemos ressaltar que essa é a

produção de um jovem que se vê com tuberculose, na iminência da morte a cada passo,

vivendo uma revolução e, mesmo assim, lendo tudo o que podia.

Page 43: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

43

Essas observações em nada diminuem o vigor e importância deste capítulo que

integra Psicologia Pedagógica, pois as reflexões, discussões e comentários aqui

realizados, na verdade, apontam para caminhos valiosos de análises, qualificando-o

como leitura obrigatória aos pesquisadores e estudiosos desta temática e, porque não,

aos que se interessam pela obra de Vigotski, de maneira geral.

Page 44: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

44

SEGUNDA PARTE

Capítulo 2 - A realização do trabalho empírico e as in(ter)venções na prática

Não se nasce pesquisador; vem-se a sê-lo, a merecê-lo, a receber-lhe o selo, na

coerência teórico-metodológica, na consistência ética, na consciência estética, no

espelho da esfera em que ser pesquisador faz, e cria, sentido.

(SOBRAL, 2005, p. 118)

O presente estudo, de caráter qualitativo, insere-se no âmbito de pesquisas em

Psicologia e Educação, assumindo como ancoragem teórico-metodológica a abordagem

histórico-cultural. Entendemos que, também com relação ao método, os escritos de

Vigotski trazem importantes contribuições, sendo este teórico considerado por seus

estudiosos como, antes de tudo, um metodólogo (FREITAS, 2002; 2010): ele propôs o

método que denominou genético-experimental e desenvolveu o chamado método

funcional da estimulação dupla, interessado no surgimento e no desenvolvimento das

novas formas de atividades.

Como comenta Smolka (2012a), o modo de Vigotski conceber o método “escapa

da rigidez, não do rigor, e aponta para uma instigante flexibilidade” (p. 52). Assim,

assumir como fundamento metodológico a perspectiva histórico-cultural implicou

compreender a pesquisa em questão como um processo em movimento, ou seja, em que

objeto e método foram se configurando no percurso da pesquisa (VIGOTSKI, 1999c).

Por isso, este modo de fazer pesquisa foi marcado por contínuas retomadas e

questionamentos na dinâmica da própria investigação em andamento, pois

[...] se trata de um projeto de atuação na escola e o trabalho de

investigação, conceituação e teorização é feito na dinâmica das

relações, nas negociações cotidianas, nas avaliações do processo, nas

constantes retomadas e ponderações. É a realização da pesquisa “por

um fio”, num desdobrar-se contínuo de questões e elaborações que

vão emergindo no dia-a-dia (SMOLKA, 2012a, p. 52).

Além desses aspectos, como pontua Freitas (2010, p. 13), o fazer pesquisa na

perspectiva histórico-cultural consiste não apenas em descrever a realidade, mas

também em explica-la, realizando um movimento de intervenção. Entretanto, como a

autora coloca, ao contrário do que essa palavra pode sugerir e remeter - uma imposição,

interferência autoritária, unilateral –, ela compreende a mudança no processo, a

Page 45: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

45

transformação, a ressignificação, ou seja, é dialógica e coletiva. Por este motivo, a

presente dissertação de mestrado prefere falar em in(ter)venções, isto é, por meio de um

jogo com a palavra, a intenção é pôr em evidência a dimensão criativa da proposta de

trabalho.

Tendo tudo isso em vista, este capítulo, que abre a segunda parte do trabalho, se

propõe a descrever as escolhas teóricas, éticas e estéticas que permearam a pesquisa

empírica. Nesse sentido, convém de antemão ressaltar que tal eixo empírico não tem a

intenção de ver uma “aplicabilidade” da teoria e conceitos de Vigotski, mas

compreender e problematizar os seus escritos a partir do material registrado. Assim,

trataremos aqui de apontar em quais bases metodológicas nos inspiramos e apoiamos

para o desenvolvimento do trabalho de campo, enfatizando: o percurso do trabalho de

investigação e in(ter)venção realizada no cotidiano da escola, os procedimentos de

registro adotados e o processo de construção dos dados da pesquisa.

2.1. A pesquisa de campo: um breve panorama do seu percurso

Quarenta e dois dias, organizados em quatro meses de trabalho. Trinta e sete

encontros vídeo-gravados, compondo um amplo acervo com mais de cinquenta horas de

filmagens. Vinte e três rodas de leitura. Páginas e mais páginas de um caderno de

campo, a contar as diferentes experiências construídas e compartilhadas com os sujeitos

da pesquisa e a condensar as primeiras reflexões, questionamentos e hipóteses daquilo

que foi observado.

Claro que apresentar o trabalho de campo desenvolvido em termos numéricos,

destacando meramente o seu aspecto quantitativo, não é suficiente para dar ao leitor a

dimensão e a intensidade de tudo o que foi vivido. Nesse sentido, cabe aqui, então,

rememorar algumas imagens e situações, revisitar os registros escritos e vídeo-gravados

para tentar encontrar as palavras que possam qualificar e significar toda a experiência

que esse período pesquisando na/a escola proporcionou.

Para isso, torna-se necessário certo distanciamento da pesquisadora.

Distanciamento que, como nos lembra André (1995), “não é sinônimo de neutralidade”

(p. 48). Pretende-se, neste movimento, colocar em perspectiva o que foi vivenciado,

lançar um olhar investigativo sobre os acontecimentos, escolhas e percursos traçados no

transcorrer da pesquisa. Portanto, busca-se colocar em evidência e descrever

analiticamente todo o processo que marcou a dimensão empírica do trabalho, para dar

Page 46: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

46

vista ao cenário, atores e cenas que compuseram a pesquisa de campo e as formas pelas

quais ela se desenvolveu e concretizou, o que dará sustentação às questões que serão

abordadas e analisadas posteriormente - afinal todos os dados da realidade são

considerados importantes, pois um aspecto que supostamente num primeiro momento é

tido como trivial, pode ser essencial para a melhor compreensão do problema a ser

estudado (LUDKE; ANDRÉ, 1986, p. 12).

O trabalho empírico foi realizado em uma escola44

da Rede Municipal de

Campinas-SP, localizada na região norte do município, nos limites com a cidade de

Sumaré-SP, acompanhando o trabalho desenvolvido por uma professora em uma sala de

primeiro ano, que continha ao todo vinte e seis alunos matriculados, com idade entre 6 e

7 anos. De acordo com a descrição realizada por Faissal (2013) sobre o bairro e perfil

social das famílias residentes, temos que:

“Situado do lado da rodovia oposto ao centro da cidade, esse bairro é cercado por

indústrias, depósitos, pelo entreposto das Centrais de Abastecimento de Campinas S.A.

(Ceasa) e por pequenas áreas de cultivo agrícola. A população economicamente ativa da

região é composta, em sua maioria, por grupos sociais empobrecidos, mas ainda assim

divididos em duas categorias, segundo o PPP/2008. Essas categorias compreendem um

grupo com uma situação econômica mais confortável, composto por pequenos

comerciantes locais, policiais e secretárias, e outro menos favorecido, composto por

trabalhadores braçais: trabalhadores rurais, operários, serventes, entre outros. Nessa

comunidade, não distante de outras, encontramos ainda um número significativo de

famílias que vivem de benefícios sociais, como o Bolsa Família, o Bolsa Escola e o

Benefício de Prestação Continuada (BPC), e outras que vivem de atividades informais”

(FAISSAL, 2013, p. 139).

Através da ficha de matrícula das crianças45

, foi possível obter algumas

informações adicionais que ajudaram na caracterização do grupo. De acordo com os

dados fornecidos pelas famílias no ato de inscrição na escola, do total de vinte e seis

crianças matriculadas no primeiro ano: i) apenas uma nasceu em uma cidade fora do

estado de São Paulo (Maranhão); ii) oito participavam do programa social Bolsa

Família46

; iii) vinte e uma fizeram Educação Infantil, a maioria em instituições

44

Vale ressaltar que tal escolha se deu pela história de relações que o Grupo de Pesquisa Pensamento e

Linguagem (GPPL) tem com a instituição. De acordo com Smolka (2012a), desde 1985 diversas formas

de trabalho e investigação, a nível de mestrado e doutorado, são realizadas nessa escola. 45

Dos 26 alunos matriculados no primeiro ano, foram consultadas 25 fichas. Uma das fichas não foi

encontrada pela pesquisadora, tendo em vista a transferência de uma das crianças para outra escola. 46

Como foi reforçado pela secretária da escola, essas informações correspondem à situação destas

crianças e famílias no momento da matrícula na escola, a qual é realizada no início do ano letivo. Por

isso, como a funcionária ressalta, é possível que as informações tenham sido alteradas ao longo do ano.

Page 47: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

47

localizadas no mesmo bairro que a escola atual; iv) onze foram declaradas como

pertencentes à etnia/cor branca, duas à preta e doze à parda.

Além disso, algumas falas das crianças no decorrer do campo deixaram

transparecer aspectos relativos às condições de vida desses alunos, no que diz respeito

às questões sociais e econômicas de suas famílias. Eram comuns comentários das

crianças sobre o pai que estava na prisão; a família que precisava de dinheiro, porque o

pai estava desempregado; o pai que bebia muito; a chuva forte que alagava as “cabanas”

47.

O primeiro movimento de imersão no campo empírico foi a apresentação da

proposta de trabalho à coordenação pedagógica da escola, alguns meses antes do início

da pesquisa. Nesse encontro, conversou-se sobre as possíveis formas de atuação da

pesquisadora na sala de aula para que, então, o próprio orientador pedagógico fizesse o

convite à professora. Somente após esse contato inicial é que marcamos uma conversa

com a professora da turma48

, para que os objetivos implicados no trabalho e as

decorrentes dúvidas pudessem ser esclarecidos. Nesse dia, a professora relatou que

quando o orientador comentou sobre o projeto, ela disse “É literatura? Pode mandar

vir!”, justificando que tais projetos ajudam no trabalho do professor por ser algo que

deve estar presente em sua prática pedagógica. Tal fala é interessante de ser analisada,

pois indica o reconhecimento da professora da importância da literatura na formação e

processo de escolarização das crianças - e já anunciava uma possível abertura para a

realização/acompanhamento desse trabalho.

A entrada da pesquisadora na sala de aula, portanto, se deu após esses trâmites e

contatos na escola. Foi em 31 de julho de 2015 que estive pela primeira vez na sala de

aula. Sem saber ao certo o que dizer, preocupada em explicar quem eu era e o porquê de

estar ali, logo fui surpreendida pelas crianças quando, assim que entrei na classe e a

professora começou a me apresentar, algumas rapidamente levantaram-se para me

acolher num caloroso abraço. E, depois disso, demonstrações de afeto se tornaram mais

frequentes e a nossa relação muito mais próxima. Enfim, estava de volta à escola, em

uma sala de primeiro ano.

47

“Cabana” era o modo como muitas crianças da sala chamavam suas casas, que ficava em uma área

ocupada pelas suas famílias, num bairro próximo à escola. 48

Um breve perfil da professora acompanhada na pesquisa: ela iniciou seu trabalho com educação na

função de recreacionista (monitora) em uma creche da Prefeitura Municipal de Sumaré, nos anos 2000.

Nesse período, conforme ela relata, cursou o magistério; em 2005 deu início ao seu trabalho como

professora em uma turma da antiga 1ª série, também na cidade de Sumaré. Formada em pedagogia desde

2009, ela chegou a começar uma pós-graduação em artes, porém, devido à demanda do trabalho na escola

da Prefeitura Municipal de Campinas, não conseguiu conclui-la.

Page 48: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

48

Após carinhosa recepção, dirigi-me para o fundo da sala, acomodando-me em

uma das carteiras que estava vazia – que acabou se tornando o meu lugar durante toda a

pesquisa. Olhares curiosos direcionavam-se para mim. Meninas e meninos (tão

pequenos(as), que os pés mal alcançavam o chão quando sentados(as)) cheios de

perguntas. Perguntas, as quais, eu também me fazia. Embora já tenha sido aluna,

estagiária na época da graduação, agora ocupava esse espaço como pesquisadora: Mas,

então, o que muda? O que e para quem olhar? O que se torna relevante? Como capturar

as con(tra)dições do cotidiano escolar?

Inicialmente, a intenção era de nas primeiras semanas conhecer a ambiência na

qual estava me inserindo e me aproximar da professora e dos alunos. Por esse motivo,

durante quase um mês fiquei apenas acompanhando as atividades desenvolvidas pela

professora, auxiliando alguns alunos e realizando algumas tarefas, quando solicitadas.

Entretanto, nesse momento já orientava o meu olhar para observar como a literatura,

tomada como obra de arte, estava presente na sala do primeiro ano e como as crianças

respondiam à leitura. As primeiras impressões com relação à leitura de obras literárias

foram de que ela não estava sendo cotidianamente vivenciada pelas crianças. Nos dias

em que estava presente na escola, apenas acompanhando o trabalho em sala de aula, a

professora só fez a leitura de lendas do folclore, possivelmente com textos retirados da

internet, com as crianças sentadas em suas carteiras. Era essa uma situação isolada ou

constituía o modo de trabalho da professora? Tentava ser cuidadosa em tirar conclusões

precipitadas.

Convém compartilhar uma dificuldade que encontrei assim que comecei a

realizar o trabalho de campo - e que provavelmente outros pesquisadores tenham

enfrentado -: a confusão da figura do pesquisador com a do estagiário. No meu caso,

isso ficava evidente na fala da professora, que se referiu à minha pessoa como estagiária

por diversas vezes. Na medida em que isso acontecia, me via cada vez mais

desempenhando tal tarefa. Sem saber como lidar com o problema (será que era mesmo

um problema?), questionava: Afinal, o que é ser pesquisador na escola? Qual a

posição/lugar do pesquisador na dinâmica da sala de aula? Longe de querer responder à

tais perguntas, acredito que a reflexão seja válida.

Aquela imagem de pesquisador distante, apenas observador, sempre com o seu

caderno de campo em mãos, tomando nota de tudo o que acontece, registrando cada

movimento com a câmera filmadora, é insuficiente para o que de fato ocorre na

realidade escolar. Do que vivi, posso dizer que as imagens são outras. Para exemplificar

Page 49: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

49

algumas: pesquisador, quase que na maior parte do tempo em pé, andando pela sala e

auxiliando os alunos; uma, duas, três (e, às vezes, até mais do que isso) crianças

rodeando a sua mesa, com caderno em mãos pedindo ajuda, pegando um lápis,

borracha, caneta, seja lá o que tenha dentro do estojo, emprestado; meninos e meninas

contando um pouco de suas vidas, sobre seus pais, suas famílias... Professora pedindo

para fazer isso, colar ou distribuir aquilo, pegar algo aqui, entregar algo ali,

compartilhando situações do cotidiano, conversando sobre sua prática e dificuldades

enfrentadas pela profissão. Portanto, não era só observar. Também registrar, participar,

integrar, ajudar, aprender, escutar e trocar. Isto é, assumir a postura do pesquisador

participante (EZPELETA; ROCKWELL, 1989).

Só que nesse modo de atuação, frequentemente, a câmera ficava esquecida,

gravando a rotina em um único enquadramento; o caderno de campo da pesquisadora

permanecia em branco, tentando, quando possível, anotar ao menos alguns tópicos, para

serem descritos assim que terminasse o dia na escola. Se no começo fiquei preocupada,

com medo de que tais atribuições prejudicassem os objetivos e foco da pesquisa, depois

vi que, na verdade, justamente o contrário acontecia: foram essas ações e modos de

participação que foram fundamentais para a realização e desenvolvimento da pesquisa.

Nesse sentido, podemos dizer que em termos metodológicos esta pesquisa se

aproxima daquilo que preferimos chamar de inspiração49

etnográfica. Como as leituras

dos escritos de Geertz (2008) instigaram o diálogo e contribuíram para sustentar

metodologicamente o trabalho, convém rapidamente suspender a descrição do campo

para ressaltar alguns aspectos que julgamos importantes nos estudos deste antropólogo

norte-americano.

Em A interpretação da cultura, o autor defende a perspectiva de uma

antropologia interpretativa, que - dentre outros aspectos - se caracteriza pela construção

de uma “descrição densa” (GEERTZ, 2008, p. 4) para apreender a realidade e cultura

em que o etnógrafo está imerso. Tal como ele observa, “fazer etnografia é como tentar

ler [...] um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas

suspeitas e comentários tendenciosos [...]” (GEERTZ, 2008, p. 7), cuja leitura de tais

“textos” é feita “por sobre os ombros daqueles a quem eles pertencem” (ibidem, p. 212).

Assim, se pensarmos no trabalho de investigação na escola, como vimos apontando até

49

Isto porque, como esclarece André (1995), enquanto que o interesse dos etnógrafos é a descrição da

cultura, a preocupação dos estudiosos da educação é com o processo educativo. Por isso, é feita uma

adaptação da etnografia, em que certos requisitos desse enfoque não são, e nem precisam ser, cumpridos

pelos investigadores das questões educacionais.

Page 50: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

50

aqui, o livro de Geertz (2008) dá outra dimensão e significado às ações deste

pesquisador que vai a campo.

Ao descrever a pesquisa realizada em uma aldeia balinesa, Geertz (2008) nos

mostra como uma pequena atitude que ele e sua mulher tiveram durante uma briga de

galo foi o ponto de reviravolta na relação dos pesquisadores com a comunidade

pesquisada. Como o autor relata, nos primeiros dez dias da chegada dos antropólogos à

Bali, os moradores faziam como se os pesquisadores não estivessem entre eles, sendo

completamente ignorados. Contudo, depois de participar da rinha de galo que foi

organizada pela aldeia e fugir por puro instinto – ou “covardia”, conforme ele diz

(GEERTZ, 2008, p. 187) -, junto com os moradores, da polícia que havia chegado no

local, Geertz nos conta como ele e sua esposa deixaram de ser invisíveis e viraram o

centro das atenções, passando as pessoas a serem alegres e simpáticas com eles. Isto

porque, como o autor narra,

[...] todos eles estavam muito satisfeitos e até mesmo surpresos porque

nós simplesmente não “apresentamos nossos papéis” [...], não

afirmando nossa condição de Visitantes Distintos, e preferimos

demonstrar nossa solidariedade para com os que eram agora nossos

co-aldeões (GEERTZ, 2008, p. 187).

Diante deste trecho, podemos interpretar que a corrida dos pesquisadores,

assustados pela chegada dos policiais, foi significada pelos balineses como um sendo

gesto de pertencimento àquela realidade. Como o próprio Geertz (2008) afirma, foi

somente após tal situação que a pesquisa se tornou possível para os antropólogos. Mas,

então, o que esse relato do autor sobre a experiência na aldeia balinesa instiga em

termos de diálogos com o trabalho do pesquisador que está imerso na sala de aula?

Assim como em certas comunidades, também na escola, muitas vezes, para que

se estabeleça uma relação de confiança entre pesquisador e pesquisados

(professores/gestores/crianças), é preciso que esse “visitante distinto” mostre certos

gestos de pertencimento àquele contexto específico. Como foi descrito no início da

minha narrativa sobre o trabalho de campo, somente ao término da pesquisa pude

perceber que justamente as atitudes de querer participar e ajudar o grupo em atividades

que não estavam diretamente ligadas aos objetivos da investigação é que foram

essenciais para que ela fosse realizada. Portanto, tal como a fuga dos antropólogos, o

aceite por participar das propostas do dia a dia da escola tornou-se um gesto

Page 51: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

51

significativo para os sujeitos desse grupo, o que permitiu o desenvolvimento do

trabalho.

Pelo o que foi ressaltado acima, concluímos que os estudos na área da etnografia

- e aqui ganham destaque as exposições de Geertz (2008) - contribuem para o fazer

investigativo nas escolas porque podem ajudar o pesquisador a entender o seu campo de

pesquisa, as formas de entrada na dimensão empírica, o modo dele participar, de como

estabelecer as relações com os sujeitos ali presentes (DAINEZ, 2014), bem como fazê-

lo perceber que o seu ofício envolve não apenas a descrição, mas também a

interpretação e compreensão de certa realidade. Feita essa breve fundamentação

metodológica, podemos retornar às descrições do percurso empírico.

Foi a convivência prolongada com o grupo, bem como as diferentes formas de

participação e integração que foram se construindo, o que permitiu uma aproximação e

parceria mais intensa. Tal afirmação se evidencia ao percorrer a trajetória da pesquisa,

ao analisar a forma como ela começou e se encerrou. Inicialmente, a proposta era a

realização de rodas de leitura uma vez por semana, sendo acordado com a professora da

turma que o melhor momento seria de sexta-feira, pois nesse dia, após o intervalo, as

crianças teriam boa parte do período livre para brincarem. Entretanto, como gradativa e

naturalmente a atuação da pesquisadora foi ganhando espaço, passando a integrar o

plano de trabalho da professora, aquilo que de início estava restrito a uma vez por

semana passou então a se intensificar. Assim, quase sem perceber, as idas à escola

passaram a ser duas, três e até mesmo quatro vezes em algumas semanas. Por isso, no

decorrer do semestre, seja no começo ou final da aula - de acordo com o que era

anteriormente combinado com a professora - pude organizar rodas de leitura mais de

uma vez por semana. Diferente do que havia sido planejado, as in(ter)venções não se

limitaram às sextas-feiras.

Acredito que essas mudanças, que aconteceram na medida em que o tempo de

convívio com o grupo ia aumentando, tiveram como mobilizador um “miniprojeto” que

desenvolvi com a professora em meados de setembro. Não chegamos a nomeá-lo, mas,

a princípio, a ideia era apenas a de apresentar às crianças diferentes versões do clássico

conto “Chapeuzinho Vermelho”, o que foi ganhando outros contornos, posteriormente.

O convite partiu da própria professora, que solicitou à pesquisadora que

procurasse alguns livros para serem lidos às crianças. Foram selecionados diferentes

livros: desde “Chapeuzinho Vermelho”, de Charles Perrault, passando pelos Irmãos

Grimm, a produções mais recentes, como “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico Buarque, e

Page 52: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

52

“Chapeuzinho Redondo”, de Geoffray de Pennart – isso para citar apenas algumas

obras. Para tanto, tivemos uma inversão de papéis, ou uma ampliação de nossas formas

de participação na proposta: ao invés da pesquisadora realizar a leitura, como até então

vinha sendo feito, a professora da sala assumiu o papel de leitora em algumas rodas50

.

Os principais desdobramentos dessa proposta de trabalho foi uma contação de

história, feita pela pesquisadora de “Chapeuzinho Amarelo”, e a produção de uma

história coletiva pelas crianças. Primeiramente, irei comentar sobre a proposta de

contação de história.

Diferentemente das outras rodas, em que a pesquisadora fazia leitura em voz

alta, com o livro em mãos, no dia 25 de setembro a proposta foi de contar a história, se

utilizando de um grande fantoche de espuma em formato de lobo e outros objetos,

durante a narrativa. Para essa história procurou-se respeitar o texto original, por conta

da sua musicalidade e rimas. As formas de contar histórias são diversas51

, podendo o

contador se utilizar de diferentes técnicas, desde a simples narrativa, sem o uso de

adereços, apenas com a voz e expressões do contador, como o uso de fantoche,

flanelógrafo etc.

Com esse trabalho, pela primeira vez, a professora foi convidada a registrar o

momento com a câmera, o que passou a ser comum dali em diante, compondo as

diferentes formas de filmagens que constituíram a pesquisa: pesquisadora com a câmera

em mãos, professora narrando; pesquisadora narrando, professora filmando ou, então, a

câmera no tripé, registrando.

A expectativa era que a forma de participação das crianças fosse mais intensa na

roda de contação de história, por conta dos diferentes recursos que estavam sendo

apresentados. De fato, grande parte das crianças se envolveram com a narrativa, mas

ainda assim é inquietante assistir ao vídeo e notar que duas crianças estavam

completamente alheias ao que estava sendo falado. Não irei aqui problematizar tal

situação, já que esta questão será objeto de análise posteriormente.

Ao final da contação, a professora se mostrou tão encantada com o que foi

apresentado, que saiu compartilhando com as professoras das outras salas o que tinha

acontecido no dia. Diante disso, ficou combinado da pesquisadora realizar a mesma

contação de história para a outra turma do primeiro ano, bem como para as duas salas

50

Um trecho desse dia será transcrito e analisado posteriormente. 51

Para quem se interessar, Souza et al. (2015) organizaram um livro bem didático, apresentando

diferentes técnicas de contação de histórias.

Page 53: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

53

do segundo ano. Foi interessante a repercussão desse trabalho na escola, ficando a

pesquisadora, por fim, conhecida como a “moça do baú”52

pelas outras crianças.

Com relação à produção coletiva do livro, vale a pena descrever o seu processo

de elaboração. Como foi destacado, o grande “disparador” para essa atividade foi as

diferentes versões do conto infantil apresentado às crianças. Logo depois desse trabalho,

pesquisadora e professora pensaram juntas formas de criar com os alunos uma nova

versão de Chapeuzinho Vermelho.

No total foram cinco dias (não consecutivos) destinados à produção: dois para a

construção do texto; um para que, em duplas, as crianças ilustrassem os trechos da

história; outro para que as crianças criassem opções de títulos e, em seguida, fizessem

votação para escolher o preferido da turma; por fim, mais um dia para que os alunos

ajudassem a criar o texto de apresentação dos autores/ilustradores que teria ao final do

livro. Todo esse processo foi registrado em vídeo.

Antes de iniciar a construção coletiva do texto, a professora retomou com os

alunos o enredo de cada história que foi lida. Para minha surpresa, muitas crianças se

lembraram com detalhes das histórias, mesmo depois de várias semanas em que foi feita

a leitura. Após essa conversa, as crianças foram oralmente construindo o enredo da nova

versão que seria inventada por elas, com a professora sempre mediando o processo de

criação, seja com questionamentos, sugestões, como também tentando envolver todos os

alunos na proposta. Esse é um aspecto que merece relevância, pois durante toda

atividade a professora ouviu as ideias de cada um dos alunos, tentava articular uma com

a outra, evitando que alguma ficasse de fora; às vezes, quando a sugestão se destoava

um pouco do todo que já havia sido construído, a professora, junto com a criança,

pensava em outras possibilidades.

O produto final foi entregue em formato de livro, para cada uma das crianças no

dia da “Mostra Cultural”, evento organizado pela escola ao final do ano letivo, em que

professores e alunos apresentam aos pais e familiares os trabalhos e atividades

produzidas durante o ano. No entanto, na semana anterior à Mostra, a pesquisadora

levou o livro para a sala de aula, para observar qual seria a reação das crianças diante do

trabalho pronto. Foi lindo ver os olhares de encantamento das crianças, que apontavam

para os seus desenhos impressos nas folhas totalmente deslumbradas.

52

Isso porque, como irei descrever ao tratar da organização das rodas de leitura, os livros ou adereços que

seriam usados para a história eram sempre retirados de um baú construído pela pesquisadora. Um dia,

quando fui buscar algo na outra sala do primeiro ano, um menino disse: “Você que é a moça do baú? ”.

Page 54: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

54

Além dessas pequenas in(ter)venções realizadas na rotina da turma, no mês de

novembro, depois de um tempo conversando e acertando os detalhes com a equipe

gestora, o pátio da escola deu lugar a uma apresentação de teatro com uma dupla

formada por uma atriz e um músico, que contaram e encantaram com a história “A festa

dos cães”. O que não estava previsto até o dia da peça e que felizmente aconteceu, foi

da atividade cultural não se limitar aos primeiros e segundos anos e envolver também as

outras turmas do período da manhã. Assim, nos outros dias da mesma semana, aos

terceiros foi contada a mesma história, enquanto que os quartos e quintos anos tiveram a

oportunidade de conhecer o tal do “Boi Bumba”.

Tanto a contação de história quanto a produção do livro e a peça de teatro não

foram decisões definidas antes da imersão no campo empírico. Na realidade, foram

construídas no fazer da pesquisa, no seu desenrolar, a partir das relações com os

envolvidos e das condições que se apresentavam na sala de aula. Isto é, apesar do

trabalho de campo exigir um preparo e antecipação de algumas ações, dada à

complexidade do cotidiano escolar, os passos da pesquisa e as formas de atuação do

pesquisador são decididas quando se está in loco, com os sujeitos da pesquisa.

Tendo em vista o que até aqui foi apresentado, a partir da visão panorâmica de

todo o percurso da pesquisa, passo agora a descrever mais detidamente como se

constituíram as rodas de leitura, visto que as diferentes formas de participação e

envolvimento com a obra literária e os modos pelos quais as crianças respondem à

literatura, serão foco desse trabalho.

Um primeiro aspecto a ser ressaltado diz respeito ao planejamento e preparo que

tais in(ter)venções implicaram. A realização de rodas de leitura pressupõe, a quem

quiser se empreender nessa tarefa, todo um estudo anterior. A começar pela própria

escolha do livro. Foi um trabalho que exigiu tempo e dedicação por parte da

pesquisadora. Não era simplesmente chegar na escola, ler e pronto. De acordo com

Silva (2015),

para cada história a ser contada é necessário um planejamento

anterior. É preciso que haja uma identificação do narrador com o texto

a ser narrado e isso só é possível a partir do estudo. O estudo prévio

do texto, bem como a elaboração de um detalhado planejamento

possibilitará a escolha acertada da técnica a ser utilizada, a seleção

correta dos acessórios que serão necessários, a definição das melhores

ênfases e entonações a serem dadas ao texto (SILVA, 2015, p. 22).

Page 55: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

55

Feito esse preparo, com um baú posicionado, tudo começava assim: “1, 2, 3...

Qual a história dessa vez?” 53

, o que com o tempo era entoado e puxado, em alto e bom

tom, pelo coro das próprias crianças. Mas tal pergunta e decorrente convite para se

aventurar nas histórias infantis exigiam outro modo de se pensar aquele espaço. Por

esse motivo, antes de começar a leitura, afastavam-se as cadeiras, abria-se um grande

espaço no centro da sala e as crianças sentavam no chão, acomodadas em um tapete

produzido por elas. Reconfigurava-se toda a arquitetura da sala. Nessa pequena

mudança, rompia-se com um padrão escolar, possibilitando e promovendo uma

verdadeira entrega àquele momento.

Afinal, ouvir histórias com todas as crianças ao seu modo no chão, sejam

sentadas, deitadas ou encostadas no amigo, pressupõe um outro envolvimento se

comparado com as crianças permanecidas nas carteiras, com os amigos afastados e

cadernos e lápis em mãos. Isto porque, como era comum nas rodas de leitura, as

crianças gostam de ver e ouvir de pertinho, para poder mostrar e apontar para o livro,

para ver os detalhes das ilustrações, para agarrar o colega do lado em uma parte que dá

medo, para se (re)mexer todo e reagir com um suspiro, risada, olhar fixo e mãos

inquietas, ao que estava sendo narrado...

Certamente, se formos olhar bem, esse momento poderia ser ainda mais

agradável e confortável. Mas é preciso entender e ter sempre em vista as condições

concretas do contexto escolar, para se criar e trabalhar a partir disso. Só o simples fato

das crianças terem saído de suas carteiras, já foi um ganho enorme. Porém, nem sempre

esse formato foi possível. Como as rodas aconteceram em diferentes dias da semana,

por conta das atividades que ainda precisavam ser feitas pelas crianças no decorrer do

período, teve situações em que o espaço existente entre a lousa e as mesas foi

aproveitado, pois tornava a organização mais rápida, uma vez que apenas algumas

carteiras precisavam ser rearranjadas.

A questão do tempo a ser destinado às rodas de leitura também ganha destaque e

importância. Conforme foi se evidenciando, após o intervalo da turma, realizar a leitura,

mostrou-se inviável, pois quando o primeiro e segundo ano voltavam do recreio, as

demais turmas eram liberadas. O problema disso era que, como a localização da sala era

próxima do pátio, um barulho terrível avançava pelas janelas, o que deixava as crianças

53

Cada um tem uma forma de começar e/ou terminar a leitura da história. Na preparação para as rodas,

sem querer, conheci o “1, 2, 3...”, numa página criada nas redes sociais pela professora Dra. Márcia

Strazzacappa, da Faculdade de Educação da Unicamp.

Page 56: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

56

e, também a pesquisadora, agitadas. Por isso, sempre que foi possível, ficou acordado

das rodas serem feitas no começo da manhã, evitando esses desconfortos.

Como foi comentado anteriormente, no início da pesquisa as rodas estavam

previstas para acontecerem às sextas-feiras, devido ao momento livre que as crianças

teriam após a leitura. Vale destacar que essa escolha se deu pela hipótese de que, não

tendo que voltar para as carteiras e dar continuidade às atividades escolares, as crianças

teriam maior liberdade para criarem e se expressarem a partir da leitura que foi

realizada. Para isso, a pesquisadora levava objetos que pudessem mobilizar algum tipo

de resposta criativa/poética ao que foi narrado. A realização dessa proposta, contudo,

com o tempo foi abandonada. Primeiro porque percebeu-se que esse não era um

processo tão imediato na criança; além disso, como as rodas se estenderam para outros

dias da semana, o espaço livre não era possível nesses outros encontros, o que fez com

que as rodas fossem ganhando outras configurações.

Assim, após a leitura, tornou-se mais comum fazermos uma breve conversa

sobre a história, para que as crianças comentassem sobre suas impressões, momento em

que, geralmente, elas já estavam de volta à mesa e a pesquisadora, intencionalmente,

deixava para que a professora puxasse e conduzisse a discussão. Quando a história

terminava, foi recorrente das crianças pedirem para desenhá-la, o que sempre foi

atendido pela professora. Elas também gostavam e tinham o costume de solicitar que o

livro do dia passasse pelas fileiras, para que pudessem manuseá-lo. Ao observar esse

momento, vi algumas empenhando-se em fazer (re)leituras com o livro em mãos,

principalmente aquelas que não sabiam ler.

Depois de um tempo acompanhando a turma e de algumas leituras realizadas,

perguntas como “Prô, hoje você vai ler história pra gente? ” ou “Prô, qual história você

vai ler hoje?”, feitas incontáveis vezes pelo Emerson e por outras crianças,

demonstravam a vontade e a curiosidade por aquele momento. Pedidos para que a

pesquisadora fizesse a leitura de algum livro trazido pela própria criança aos demais

colegas da sala, também foi outro movimento marcante no decorrer do trabalho, o que

de certa forma demonstra o reconhecimento da figura da pesquisadora como aquela que

dá vida às palavras do autor e que convida a criança a surpreender-se e encantar-se com

a obra literária. Por se tratar de crianças em processo de alfabetização, a importância do

papel do adulto ganha destaque, uma vez que é pela mão do outro que abre o livro e o lê

com emoção, que a criança é conduzida a essa grande aventura que a literatura - bem

como outras formas de arte - é capaz de nos levar.

Page 57: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

57

Não há como falar de literatura, educação estética e do acesso à obra de arte,

sem evidenciar o papel que a biblioteca desempenha nesse sentido. Na escola em

questão, a biblioteca é um diferencial: organizada, com um rico acervo de livros e,

principalmente, ativa54

. Semanalmente, professoras e crianças iam à biblioteca, onde

encontravam um número de livros já dispostos na mesa para serem escolhidos e

retirados para levar para a casa e, aqueles que quisessem, ainda eram convidados a ler

para a turma nesse espaço. Contudo, percebia que os livros retirados pelas crianças,

muitas vezes, voltavam de casa sem ao menos terem sido abertos, o que vem reforçar a

importância de a professora assumir esse compromisso e fazer as leituras em sala de

aula.

Ao encerrar o projeto na escola e perceber tudo o que foi desenvolvido com o

grupo, conforme recuperava as imagens na memória e nos registros, indagações,

hipóteses e descobertas em torno da temática desse trabalho foram se evidenciando. E,

tangenciando essas questões, também foram muitas as compreensões que se apresentam

sobre o fazer pesquisa na escola.

Acompanhando e fazendo parte do seu dia-a-dia, vi que, muitas vezes, os

sujeitos ficam imersos num cotidiano tão (in)tenso, que não conseguem enxergar ou

viabilizar outras formas de agir. Talvez o meu papel ali, como pesquisadora, tenha sido

para somar forças e buscar - em conjunto - formas de reinventar o seu cotidiano. O

pedido da professora que acompanhei, no meu último dia na escola, bem como a da

outra turma, para que no ano seguinte fosse feito algum trabalho em parceria com a

universidade, e que envolvesse, por exemplo, a literatura, indica o interesse em projetos

desse tipo e a busca por outras formas de atuação.

Além disso, incontáveis vezes a professora declarou o seu desejo de

continuidade do trabalho de investigação, compartilhando até ideias que pudessem ser

desenvolvidas no ano seguinte. Inclusive, com o tempo, teve momentos em que ela se

referia à pesquisa com um “para isso que nós queremos ver....”. Ao dizer dessa forma,

mencionando o trabalho com o uso da primeira pessoa do plural, a professora indicava

um movimento de apropriação do projeto. Não era meu ou dela. Ao fazer parte do

cotidiano da escola, colocando em prática uma pesquisa em parceria, o trabalho passa,

54

Infelizmente, essa não é uma realidade alcançada por outras instituições. De acordo com matéria

divulgada em 2015, os dados do último Censo Escolar realizado no país são assustadores e

desanimadores: apenas 23% das escolas públicas e privadas da Região Metropolitana de Campinas

(RMC) possuem bibliotecas (Portal G1 de Campinas e Região, 13/09/2015. Disponível em:

http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2015/09/apenas-23-das-escolas-da-regiao-de-campinas-

tem-bibliotecas-diz-censo.html).

Page 58: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

58

então, naquele contexto, a ser nosso. Houve um dia em que, na ausência da

pesquisadora em sala de aula, a professora registrou em uma folha os comentários e

expressões das crianças diante da leitura realizada, tecendo várias hipóteses sobre a

temática de estudo. Vejo com isso que a pesquisa, de alguma forma, também a cativou.

Ao dizer em outro dia que “Depois da nossa conversa, fiquei pensando sobre isso em

casa, no fim de semana”, tal fala nos indica que as questões que conversávamos

repercutiam em outros momentos.

Diante do que até aqui foi exposto, vê-se o quanto o trabalho do pesquisador

exige uma atenção sensível aos movimentos, gestos, expressões e falas dos pesquisados

que possam evidenciar no(s) modo(s) de dizer e ser, no pequeno e no que há de mais

simples, questões muito mais amplas. Em outras palavras, percebe-se que no

desenvolvimento da pesquisa certos indícios, às vezes considerados insignificantes,

podem revelar aspectos muito mais abrangentes. Por isso, este estudo também mobiliza

o diálogo com Ginzburg (1989), com o que ele chamou de paradigma indiciário55

.

Mesmo que aqui se trate de aspectos singulares, individuais, indiciários e conjecturais,

sobre os modos próprios e particulares das crianças participarem e se envolverem com a

obra de arte, este autor nos mostra como certos indícios podem ser significativos e

reveladores de fenômenos mais gerais.

A partir do que este autor discorre em seu trabalho, entende-se que o paradigma

indiciário inspira e ensina o pesquisador a observar as minúcias e valorizar o detalhe na

pesquisa, a cuidar daqueles dados que podem inicialmente ser considerados marginais.

Por isso, se na presente pesquisa de mestrado o entendimento do que a criança está

sentindo e vivenciando internamente, com relação à obra de arte, não podem ser

diretamente compreensíveis, encontramos nos escritos de Ginzburg (1989)

fundamentação teórica à opção por investir e ir em busca daquilo que se torna visível ao

olhar interpretativo do pesquisador56

, ou seja, de tentar captar os indícios, uma vez que

55

Em Raízes de um paradigma indiciário, Ginzburg (1989) procura demonstrar que os métodos utilizados

pelo italiano Giovanni Morelli, de examinar pormenores negligenciáveis (como unhas e lóbulos de

orelhas) para distinguir pinturas originais das cópias; pelo investigador ficcional Sherlock Holmes, de

basear-se em indícios imperceptíveis para a maioria (como pegadas na lama e cinzas de cigarro) para

desvendar os crimes; pela técnica psicanalítica freudiana de penetrar em coisas concretas e ocultas através

de elementos que são poucos notados, apontam para o “paradigma indiciário”. Conforme ele afirma: “[...]

nos três casos, pistas, talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma

inatingível” (GINZBURG, 1989, p. 150). 56

Afinal, como afirma Pino (2005a): “[...] na qualidade de investigação semiótica, a análise de indícios é

constituída de atos de interpretação, não de mera descrição dos fatos em que tais indícios se concretizam.

Se interpretar é a função específica de toda análise de fenômenos não evidentes, ela é a única adequada

quando o objeto de investigação é indícios” (p. 187, grifo do autor).

Page 59: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

59

“[...] se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que

permitem decifrá-la” (GINZBURG, 1989, p. 177).

Portanto, foram justamente aqueles gestos, palavras, olhares - indícios - que

aparentemente seriam negligenciáveis na pesquisa, que nos possibilitaram inferir e

compreender algo muito mais complexo e que não poderia ter sido percebido de forma

imediata, afinal “situações cujo conhecimento direto não é possível são compreensíveis,

semioticamente, pela interpretação dos sinais, dos indícios nelas inscritos” (FONTANA,

2011, p. 17).

Tendo como objetivo neste subcapítulo expor a fundamentação metodológica do

trabalho, apresentar o pano de fundo da pesquisa empírica e dar ao leitor uma visão

geral do campo, passaremos posteriormente às análises e discussões conceituais que

serão feitas a seguir acerca dos modos de envolvimento e participação das crianças com

a obra literária.

2.2. Procedimentos de registro adotados

Inspirado, portanto, nos estudos etnográficos e nos escritos a respeito do

paradigma indiciário, o trabalho utilizou-se da vídeo-gravação57

como

instrumento/procedimento de pesquisa, para possibilitar uma análise detalhada das

situações empíricas, empenhando-se em produzir um relato preocupado com os

pormenores dos acontecimentos registrados.

As palavras de Smolka (1997) evidenciam a relevância deste recurso no trabalho

de pesquisa:

Na forma de registro videogravado, as palavras e os gestos,

capturados, perduram na reprise e no repasse da fita. A fugaz

sucessão de momentos vividos, de imagens instantâneas, ganha

nova materialidade e lugar de fixidez. Cristalizam-se na

mobilidade. Nessa forma de registro, certos modos específicos

de lembrar tornam-se possíveis. Modos que mudam as formas

de olhar, de analisar, de ler, de transcrever, de interpretar. No

trabalho de olhar, a intenção de perscrutar as filigranas dos

movimentos, de estudar a coreografia além do cenário. No

trabalho de ouvir, a busca para captar e distinguir barulhos

burburinhos e vozes, ditos e não ditos, silêncios. O retorno

interminável da fita. Trabalho de (re)significar. O que não tinha

57

É importante dizer que, para isso, solicitamos a autorização (Termo de Consentimento Livre e

Esclarecido) por escrito da professora, bem como dos responsáveis legais pelas crianças.

Page 60: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

60

realce se destaca. O detalhe vira tema. O que está entranhado na

rotina pode tornar-se acontecimento. Transcrito, narrado,

comentado (SMOLKA, 1997, p. 106-107).

Como expresso pela autora, o uso da vídeo-gravação permite ao pesquisador

voltar intermináveis vezes à cena, ver e rever situações que possam ter escapado do seu

olhar no momento exato em que ocorreram. Tendo em vista o objeto e objetivos deste

estudo, o uso desse recurso foi fundamental para a realização da pesquisa, pois

possibilitou capturar olhares, gestos e falas que o dinamismo das interações em sala de

aula dificulta a perceber e registrar. Como também discorre Pino (2005a), esse tipo de

registro

[...] tem a vantagem de permitir que a observação, tal como foi feita

pelo pesquisador, possa perpetuar-se e ser reproduzida tantas vezes

quantas forem necessárias para realizar sua interpretação [...]

permitem fazer não só observações muito mais longas e detalhadas

que as feitas no ato do registro, como também observações “novas”,

pois novas são as situações em que cada exposição aos dados

registrados coloca o pesquisador (PINO, 2005a, p. 190).

Além do uso da vídeo-gravação como procedimento metodológico, este trabalho

também se utilizou de um instrumento característico do fazer etnográfico: o diário de

campo. As narrativas nas anotações em campo puderam complementar-se às cenas

gravadas em vídeo, proporcionando um rico material com descrições densas e

minuciosas, que contribuíram no processo de construção e análises dos dados. Muitas

vezes, aquilo que não foi percebido pela observação da sala de aula pela pesquisadora,

pôde ser gravado e retomado nas tomadas em câmera de vídeo. Contudo, é interessante

comentar que o contrário também aconteceu: houve situações em que, por coincidência,

quase que no momento exato em que a câmera era desligada, uma cena importante

acontecia, tornando-se o diário de campo um recurso fundamental para não deixar

escapar o ocorrido.

Vale comentar que na presente dissertação as elaborações teóricas aconteceram

junto com as investigações e problematizações do campo empírico, com a situação

vivida. Entendemos que teoria e empiria estão em tensão constante, num movimento

simultâneo, pois uma interfere na outra: a teoria nos permitiu orientar o nosso olhar no

campo, bem como a empiria nos possibilitou voltar à teoria para rever a proposta de

trabalho, os conceitos, métodos etc., durante o próprio fazer investigativo.

Page 61: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

61

2.3. A construção dos dados da pesquisa

Tendo como inspiração a pesquisa etnográfica, é importante ressaltar que o

trabalho que aqui se apresenta consiste em uma interpretação da realidade estudada,

não sendo, portanto, isenta de juízos de valores (ANDRÉ, 1997). Por isso, desde o

fragmento das situações escolhidas aos procedimentos de análises realizados, tudo é

fruto do recorte de um olhar, que é impregnado por toda história de vida do sujeito

pesquisador. Além disso, levando em consideração o que Pino (2005a) afirma a respeito

do paradigma indicial, compreende-se que a análise dos indícios que aqui se pretende

realizar consiste em interpretá-los, em procurar a significação que eles têm para o olhar

interpretativo do pesquisador.

Partindo desses pressupostos, diante da imensidão do material empírico com o

qual nos deparamos ao final do trabalho de campo, começamos a nos indagar: O que e

como selecionar os registros? O que se torna prototípico para o nosso objeto de

investigação? Como definir o recorte das situações empíricas? Como proceder em

termos de análise? Assim, como a proposta deste estudo é explorar os indícios58

dos

modos pelos quais as crianças se envolvem, participam e respondem às leituras literárias

na sala de aula, o ponto de partida para tais análises foi fazer as (re)leituras dos relatos

dos diários de campo - que foram concomitantes aos estudos teóricos que vinham sendo

realizados. A partir desse registro do empírico, que já continha alguns olhares

interpretativos, selecionamos algumas situações para, novamente, assistir as filmagens -

uma vez que era comum, ao término de cada dia na escola, a pesquisadora ocupar-se em

contemplar as cenas registradas.

Somente depois de (re)ver as vídeo-gravações selecionadas é que algumas foram

escolhidas para trabalharmos na elaboração das transcrições. Como poderá ser visto no

capítulo de análise, após tentativas anteriores de disposição desse material, optamos por

fazê-la no formato de um quadro. Essa escolha justifica-se por dois motivos: tanto por

ter facilitado o próprio trabalho de transcrição, quanto por entendermos que ajuda o

leitor a visualizar melhor a cena em questão, visto que, muitas vezes, a leitura do adulto

e as respostas, expressões e falas das crianças eram simultâneas e entrecruzadas.

58

Como nos fala Pino (2005a, p. 178) “procurar indícios de um processo é muito diferente de procurar

relações causais entre fatos [...] procurar indícios implica em optar por um tipo de análise que siga pistas,

não evidências, sinais, não significações, inferências, não causas desse processo”.

Page 62: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

62

A tarefa de transcrever as cenas exigiu que elas fossem assistidas incontáveis

vezes: em uma, para registrarmos as falas de todos os sujeitos que delas participavam -

isso sem contar os inúmeros retornos nas imagens, para tentar capturar uma voz mais

baixa ou uma palavra que não dava para entender; em outra, para prestarmos atenção

nos gestos e olhares da professora; em mais uma, dessa vez para orientarmos nosso

olhar para os modos de participação e formas de respostas das crianças na leitura

literária. Vale dizer que mesmo durante a composição desse material, já exercitávamos

nosso olhar analítico para as questões que norteiam este trabalho de mestrado.

Após todo esse movimento de construção dos dados da pesquisa, o foco das

análises pautou-se em quatro situações: duas que enfocam os modos de recepção e

escuta do texto literário, e duas que dizem respeito à produção das crianças, sendo uma

de caráter coletivo, orientada pela professora, e outra envolvendo a produção escrita de

uma criança, as quais serão apresentadas nos capítulos que se seguem. Tais recortes das

situações empíricas foram feitos a partir dos indícios que conseguimos enxergar nas

cenas, os quais vemos como fecundos para compreender e problematizar as questões

teóricas elaboradas.

Page 63: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

63

Capítulo 3 - Sobre os modos de participação das crianças nas rodas de leitura:

possibilidades analíticas

Olhares curiosos, fixos, interessados, deslumbrados. No contraponto, alguns

olhares vagos, longínquos, desatentos.... Silêncio. Mas também vozes, gestos.

Envolvimento.

“Se fosse eu, saía correndo…”

“Se fosse eu, não me assustava…”

“Quebra esse castelo, ele não é feito de areia? ”

“Ai! Eu queria entrar nesse castelo! ”

“Não, senhor! Eu falava não senhor e saía correndo…”

“Percebo que algumas crianças abraçam o amigo do lado, como se estivessem com

medo”

(Condensado diário de campo e vídeo-gravação, 2015)

A criança é expressiva no modo como se apropria da obra literária. Não se trata

de um contemplar passivo, mecânico. Nesse processo, ela mobiliza suas experiências

anteriores, dá risadas ou demonstra abertamente aborrecimento com o desfecho da

história, faz antecipações das falas e/ou ações das personagens.... Ou seja, participa

ativamente do momento.

Do conjunto de todo o material empírico, algumas situações se apresentaram de

modo mais intenso para a discussão acerca dos modos de participação diante da obra

literária. Para evidenciar alguns desses comentários, expressões e emoções das crianças,

decidimos por transcrever duas situações de leitura, tecendo a análise a partir dos

estudos teóricos até aqui encaminhados. Portanto, é importante dizer que esta escolha

representa, evidentemente, um recorte do nosso olhar para a questão. Certamente outros

olhares, caminhos e problematizações seriam possíveis, mas nesse momento são estes

os que ficaram mais fortes e visíveis para nós.

Mas aqui já surge um desafio: Como conseguir dar visibilidade às expressões, às

gestualidades e aos olhares na recepção literária pela criança? Que palavras podem

traduzir, ou melhor dizendo, significar, os movimentos dos alunos, bem como o tom e

Page 64: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

64

ritmo da voz durante a leitura do livro? Como exprimir tudo isso em palavras? Tendo

em vista esta dificuldade, optamos por, em alguns momentos, fazer uso de outra

linguagem. Por isso, algumas imagens (congeladas dos registros vídeo-gravados)

somam-se e dialogam com o texto transcrito, numa tentativa de aproximar e trazer o

leitor ainda mais para dentro da cena descrita. Além disso, como comentamos no

capítulo anterior, como a leitura do adulto e as respostas, expressões e comentários das

crianças são concomitantes e entrecruzados, consideramos mais adequado transcrever

tais situações de leitura na forma de um quadro, justamente para dar uma visão melhor

da dinâmica interlocutiva do momento.

3.1. Palavras e gestos na incorporação do texto literário

Quarta-feira, início da manhã. Crianças chegam na sala, vão aos poucos se

acomodando nas carteiras, abrindo as mochilas e retirando o material. Seguindo

com a proposta de apresentar as diferentes versões do clássico Chapeuzinho

Vermelho iniciada no dia anterior, em que foi feita a leitura da história de

Charles Perrault, nesse dia seria a vez dos Irmãos Grimm. Hoje a professora

assume novamente o lugar de leitora. A leitura segue, em alguns momentos com

as crianças um pouco agitadas. Depois elas começam a se envolver com a

história e com as inusitadas ilustrações do livro. Enquanto a professora lia, eu

registrava o momento com a câmera nas mãos, tentando captar os comentários e

expressões faciais das crianças. Nesse movimento, uma cena chama a atenção:

Emerson “dramatiza” a leitura que a professora realizava.

(Diário de Campo, 16 de setembro de 2015)

***

A intensidade do envolvimento de uma das crianças diante da leitura revela-se

para a pesquisadora já no momento em que ocorre. O modo de participação de um dos

meninos chama imediatamente atenção porque os seus gestos ecoam a história,

sustentando-se na leitura que a professora realizava. E no laborioso processo de

transcrição das cenas, na possibilidade de pausar a gravação e observar quadro a quadro,

esta cena é a que, mais uma vez, se destaca: enquanto que algumas crianças, por meio

de indagações, exclamações e complementações ao que era enunciado, vão nos

mostrando movimentos de compreensão e apropriação do texto literário, neste menino é

também o corpo que fala.

Page 65: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

65

CENA59

I

(Duração: 02m36s – 04m06s)

Professora Falas das Crianças Gestos das Crianças Emerson

1. (Depois de mostrar a

ilustração às crianças, retoma a

leitura): Então vamos! “O Lobo

pensou com os seus botões: ‘esta

coisinha fofa vai ser um bom

prato, ainda mais saboroso que a

velhota. O negócio é ser esperto

e apanhar as duas’. Foi andando

ao lado da Chapeuzinho até que

disse ‘Chapeuzinho Vermelho,

não está vendo as lindas flores ao

redor? ’”

2. Ana e Heloísa conversam

entre elas, enquanto se ajeitam

no tapete. Maria deita na perna

de Heloísa.

3. Ralley passa a mão embaixo

da lousa, sujando-se de giz.

Então, bate uma mão na outra

para limpar.

4. Douglas fica balançando a

mão.

5. Ana, Heloísa e Mayana

conversam entre elas.

6. Ralley fica olhando para o

chão.

7. Maria troca de posição, agora

deita na perna da Ana.

8. Enquanto a professora lia “o

lobo pensou com os seus

botões”, Emerson estica a

coluna e faz um movimento como

se estivesse abrindo botões de

uma camisa. Depois, quando a

professora lê “esta coisinha

fofa”, o menino leva as mãos nas

bochechas, apertando-as.

9. Emerson (assim que termina

de representar, fala em voz alta,

entrecruzando com a leitura da

professora): Se eu fosse o lobo...

(enquanto falava, empolgado,

levou a cabeça para trás,

apertando uma mão na outra)

10. (Continuando a leitura): “....

‘Por que nem olha para elas?

11. Ralley começa a mexer na

cordinha que tem embaixo da

14. Emerson se espreguiça.

Depois fica olhando atento para

59

Diferente das outras transcrições realizadas, que levam o nome de “momento”, neste capítulo optamos por apresenta-las como “cena”, justamente para evidenciar que,

durante a leitura, o menino encena a história.

Page 66: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

66

Acho até que você nem ouve o

canto... (se corrigindo) os

passarinhos cantando. Vai tão

séria, como se fosse à escola.

Mas o bosque é tão divertido...’

Chapeuzinho Vermelho levantou

os olhos, e quando viu como os

raios de sol dançavam entre as

árvores...”

lousa.

12. Carlos parece achar graça

quando a professora diz “vai tão

séria, como se fosse à escola”.

13. Mayana aponta o dedo para

Maria, mostrando algo para Ana

e Heloísa. Depois cochicham

algo baixinho entre elas.

a professora.

15. Eros (estranhando): Raio de

sol dança??

16. (Lendo): “... E como tudo

estava repleto de lindas flores...

pensou... ‘A vovozinha vai ficar

tão contente se eu levar um

ramalhete de flores... Ainda é tão

cedo que nem vou me atrasar’.

Saiu... (repetindo) Saiu do

caminho, colhendo flores pelo

bosque”

17. Mayana: Raio de sol? É

lógico que dança!

18. Eros balança as mãos, como

se estivesse imitando os raios de

sol.

19. Ralley e Gustavo disputam

um pedaço de corda.

20. Vitória começa a mexer no

cabelo de Mayana.

21. Algum aluno (baixinho):

Flores e flores...

22. (Lendo): “Mal arrancava uma

e já havia outra mais bonita logo

adiante. Ela ia atrás dessa. E

23. Nesse momento, Emerson faz

de conta que está puxando uma

flor no bosque, como a

Page 67: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

67

assim, penetrava mais e mais

fundo no bosque”

Chapeuzinho Vermelho na

história. Então, juntando as

mãos como se estivesse

segurando uma flor, ele

direciona a cabeça para trás,

com os olhos fechados e leva as

mãos até o nariz para cheirá-las.

CENA II

(Duração: 05m45s – 07m02s)

Professora Falas das crianças Gestos das crianças Emerson

24. (Depois de mostrar as

ilustrações às crianças, pede

silêncio para continuar a

leitura): Um, dois... Três!

(Espera as crianças fazerem

silêncio e, então, volta a ler) “O

Lobo, por sua vez, foi direto à

casa da velhinha e bateu na porta

(bate em uma cadeira ao lado,

para fazer o barulho de “tóc, tóc,

tóc”). ‘Quem é? ’”

25. Douglas olhando para o

chão.

26. Wellington, como se estivesse

batendo na porta, com uma mão

fechada e a outra aberta, bate

uma na outra.

27. Carlos, rapidamente, também

faz de conta que está batendo na

porta.

28. Emerson, junto com a

professora, como se estivesse

batendo na porta, também faz o

mesmo movimento no ar.

29. Emerson (com uma voz

baixinha, respondendo à

pergunta do livro, como se fosse

a vovó): Sou eu, a vovozinha...

30. (Lendo): “ ... ‘Abra a porta, é

Chapeuzinho Vermelho. Trago

bolo e vinho’. ‘Basta girar a

maçaneta’, gritou a avó” (pausa)

“ ‘Estou tão fraca que não posso

31. Heloísa está mexendo no

cabelo. Mayana cochicha algo

no ouvido dela.

32. Emerson, com o olhar fixo no

horizonte, como se visualizasse

uma porta, faz um movimento

com a mão de girar a maçaneta.

Ao terminar de fazer o gesto, o

Page 68: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

68

nem me levantar’. O Lobo girou

a maçaneta, a porta…? ”

menino continua com o olhar

fixo, parecendo esperar a

professora prosseguir com a

narrativa para dar continuidade

à sua encenação.

33. Algumas crianças

(complementando): .... Se abriu...

34. (Lendo): “.... Se abriu. Ele

avançou para a cama sem

dizer…”?

35. Emerson ainda com o olhar

fixo. Quando a professora lê “ele

avançou para a cama...”, ele

abre a boca, como se fosse

devorar alguém, mas depois

espera.

36. Eros: Olá!

37. (Lendo): “Ele avançou para a

cama sem dizer palavra”.... Olha,

é bem assim mesmo.... “Ele

avançou para a cama sem dizer

palavra. E engoliu a velhinha

inteira”.

38. Emerson, com a boca bem

aberta, leva sua mão até ela,

como se fosse comer a

vovozinha. O menino, então, se

curva todo para trás e, com as

mãos na barriga, faz movimentos

como se estivesse lentamente

devorando e engolindo a

vovozinha, acompanhado de um

barulho de deglutição.

39. Carlos: Ainda bem que não

Page 69: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

69

mordeu!

40. (Continuando a leitura,

rindo): “Então vestiu as roupas e

a touca da vovó. Deitou-se na

cama e fechou as cortinas”.

(Retomando o comentário da

criança): Por que ainda bem que

não mordeu, Carlos?

41. Douglas mexe na cordinha

que fica embaixo da lousa.

42. Emerson continua a

dramatizar a cena. Agora, como

se pegasse a touca da vovó,

coloca-a na cabeça. Depois,

devagar vai ajeitando-a, fazendo

um barulho – algo como um “puf

puf puf” - como se estivesse

arrumando a touca na cabeça.

Então, com os olhos fechados e

curvando-se para trás, ele faz de

conta que está deitado em uma

cama, dormindo. Em seguida,

leva as mãos à frente do queixo,

como se segurasse um cobertor.

Por fim, vira o rosto de lado e,

imaginando ter uma cortina do

outro lado, estica e puxa o braço

rapidamente, fazendo um

barulho, como se estivesse

fechando-a.

43. Eros: Porque daí a vovó já

estaria morta!

CENA III

(Duração: 12m19s – 12m46s)

Professora Fala das crianças Gestos das crianças Emerson

44. (Depois de mostrar a 45. Carlos boceja 46. Assim que a professora

Page 70: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

70

ilustração às crianças, pede

silêncio para continuar a leitura)

Não... tem gente que não ouviu!

Psiu... (esperando o silêncio):

Posso falar?? (retoma a leitura)

“Depois de saciar seu apetite o

Lobo deitou-se novamente na

cama e caiu no sono e começou a

roncar alto demais” ...

começa a ler essa parte,

Emerson faz-de-conta que

encosta a cabeça num

travesseiro e abre a boca,

colocando a língua para fora,

como se estivesse dormindo. Até

diz “Aiii.... Que delícia!!!”.

Então, começa a fazer um

barulho de ronco. Depois, outras

crianças entram na brincadeira e

também fazem barulho.

47. Emerson (fingindo que está

roncando bem alto): Róoooonc,

róooonc...

48. Outras crianças: Róooonc,

róooonc...

49. Carlos (depois de bocejar):

Acabei pegando sono também...

50. Algumas crianças continuam

fingindo que estão roncando,

enquanto outras dão risadas.

51. (Lendo): “Um caçador!!”...

Agora apareceu o caçador...

52. Emerson junto com Everton,

que estava sentado ao seu lado,

começam a se mexer, fazendo

como se fosse uma dancinha em

Page 71: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

71

comemoração à entrada do

caçador na história.

53. Eros: Obaaaa!

54. Carlos (para Eros): Eu sabia

que era o caçador!!

CENA IV

(Duração: 13m18s – 15m18s)

Professora Fala das crianças Gestos das crianças Emerson

55. (Retomando a leitura): Então

vamos lá! .... “Um caçador vinha

justamente passando por perto e

pensou ‘Como ronca a velhinha.

É melhor ver se está tudo bem’.

Entrou na casa, chegando perto

da cama, viu o Lobo refestelado”

... Nossa, refestelado?

56. Emerson, lentamente,

posiciona as mãos como se

segurasse a espingarda do

caçador. E, em câmera lenta,

coloca a arma imaginária em

frente ao rosto, com os olhos

cerrados. Então, estica bem as

mãos como se apontasse a arma

para um Lobo. Heloísa,

percebendo a brincadeira do

amigo, também faz-de-conta que

está segurando uma arma.

57. Mayana (tentando

pronunciar a palavra): O que é

resfeste... ?

Page 72: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

72

58. Carlos (tentando explicar):

Que tá barrigudo...

59. Pois é..... Depois a gente vai

pesquisar o que é refestelado.

60. Emerson (ainda

“imaginando” que está

segurando uma arma): Eu mato

o lobo!

61. (Lendo): “ ‘Vejam só onde

encontro esse velho pecador. Eu

que há tempos o persigo’. Já

estava armado (se corrigindo) ....

já estava armando sua

espingarda, quando lembrou que

o lobo podia...” ?

62. Alguma criança: Comer....

63. Emerson: Comer a....

64. (Lendo): “Podia ter comido a

velhinha....”

65. Carlos (sem conseguir

concluir): Mas comeu...

66. (Continuando a leitura): “....

Quem sabe ainda não poderia

salvá-la. Não disparou, pegou

uma tesoura...” (Professora, com

uma das mãos, imita uma tesoura

cortando)

Page 73: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

73

67. Carlos: Abriu...

68. Everton: Abriu a barriga do

Lobo...

69. Emerson, no ar, faz

movimentos com a mão como se

cortasse a barriga do lobo,

vocalizando o som “crec crec”

70. (Continuando a leitura): ....

“E começou a cortar a barriga do

lobo adormecido”

71. Emerson, depois que acaba

de “cortar a barriga do lobo”,

faz uma pequena pausa. Então,

colocando força para abrir, ele

puxa com as duas mãos a

barriga do Lobo imaginário,

fazendo sons com a boca, como

se estivesse rasgando a pele dele.

Everton, ao ver o amigo, também

imita rapidamente essa cena

72. Alguma criança (baixinho):

Eca! Que nojo!

73. (Continuando a leitura): “ ....

Com dois ou três cortes, entreviu

um Chapeuzinho de veludo

vermelho. Com mais três ou

quatro cortes (professora faz o

movimento da tesoura cortando)

apareceu a menina inteira,

gritando ‘Ai que susto! Como

estava escuro lá dentro da barriga

do lobo’ ”

74. Douglas fica puxando a

cordinha que fica embaixo da

lousa.

75. Ana se deita no chão.

76. Victória está com a sandália

nas mãos e fica olhando para

ela.

Page 74: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

74

77. Emerson: É cheio de baba...

78. (Lendo): “ .... E logo mais

surgiu a vovó, ainda viva, mas

toda ofegante”. Ela já estava sem

fôlego, né? (virando o livro para

as crianças) Olha o caçador!

79. Ana se levanta e olha a

ilustração do livro.

80. Mayana: Ai, credo!! Olha o

tamanho do nariz!

81. Alguma criança: Credo!

82. Everton (dando um pulo, de

susto): Aiiii!

83. Alguma criança: Bem

grande...

84. Carlos: Olha o tamanho do

nariz... Prô, meu nariz é muito

grande?

85. Crianças seguem

comentando sobre as ilustrações.

Algumas levam a mão no nariz

para notar seu tamanho

86. Emerson: Tá cheio de baba...

Page 75: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

75

No conjunto das cenas apresentadas, podemos notar diferentes formas de

participação das crianças na leitura de uma história já tão conhecida. As expressões, os

movimentos, os gestos das crianças no desenrolar da leitura da professora, vão nos

indicando formas de escuta, respostas e réplicas à narrativa literária. Mas como

interpretar essas respostas? O que elas podem nos dizer sobre os modos de recepção

literária pela criança? Como a palavra emociona, afeta a criança, produz nela um

sentido estético? Estas são apenas algumas das principais questões que tais cenas nos

abrem em termos de análise e que nos conduzem à sua realização.

Para tanto, o foco analítico é aqui colocado na participação de um aluno cujos

gestos tornam-se indicativos da atividade de dramatização como um modo possível de

elaboração da vivência com a literatura. Mas, para isso, é indispensável inicialmente

observar alguns aspectos mais abrangentes, como: i) a preparação, organização e

acomodação dos alunos no momento da leitura; ii) as estratégias da professora nos

modos de condução da atividade, isto é, a maneira como convoca os alunos a

participarem e se envolverem com a leitura; iii) as especificidades da obra literária em

questão; iv) os diferentes modos de participação que integram estas mesmas cenas. Para

dizer de outro modo, talvez pudéssemos ter como imagem o movimento de uma câmera

fotográfica que com um foco definido vai, pouco a pouco com o efeito de zoom,

aproximando e passando sucessivamente pelos diferentes planos que compõem o

enquadramento ajustado. Portanto, são estes os “planos” de que iremos nos ocupar

agora.

Para começar, devemos falar sobre como esta atividade de leitura, inserida no

contexto escolar, traz consigo algumas particularidades na forma como é orientada e

conduzida. Os alunos, todos juntos (e um pouco apertados), lado a lado no chão sobre o

tapete, cada um no seu modo de querer estar – deitado, encostado, sentado etc. –

evidenciam as condições e as (im)possibilidades de realização desse trabalho na escola.

Nesse modo de acomodar as crianças, foi recorrente, ao longo da leitura, a preocupação

da professora em garantir que todas estivessem atentas ao momento: ela parava,

esperava a turma se acalmar; interrompia a leitura e conversava com o aluno disperso,

dentre outras intervenções. No trecho apresentado, por exemplo, no turno 24 aparece

um modo do qual ela faz uso para solicitar silêncio aos alunos.

Na verdade, antes mesmo de dar início à atividade, a professora já se preocupa

em organizar, explicar e orientar a atenção das crianças para o momento:

Page 76: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

76

“Bom pessoal, vamos fazer uns combinados aqui. Todo dia, na hora da leitura, a gente

tem que saber se comportar. Porque a gente fala sempre a mesma coisa. A gente vai

sentar aqui para ouvir história. A gente conversa com o colega em outro momento,

certo? [...] Tem hora de ouvir, tem horas que vocês podem falar. Tem hora de brincar.

Tem hora pra tudo [...] Eu espero que hoje todo mundo participe da leitura, sem

atrapalhar. Sem atrapalhar quem está ouvindo e sem atrapalhar eu que estou lendo. Se

acontecer de ficar muita conversa eu vou parar e esperar. Combinado? ”

A fala da professora nos faz pensar em como essas ações vão marcando as

práticas de ensino; evidencia modos de ensinar, que implicam “incansáveis gestos

indicativos nas orientações dos olhares [...]” (SMOLKA, 2010a, p. 18, grifo da autora);

revela um certo disciplinamento do comportamento dos alunos; aponta para a intenção,

tão manifesta e própria ao trabalho pedagógico, de que as crianças aprendam a escutar,

seja a chamada para a lousa, a leitura de um livro.... Assim, vemos que no trecho acima

a preocupação com a aprendizagem da escuta e a atenção orientada (SMOLKA et. al.,

2007, p. 7) são colocadas em foco e mostram “práticas que se estabelecem na e pela

linguagem e que, como instrumentos de (inter)regulação, vão sendo incorporadas pelos

sujeitos, marcando seus modos de ação individual” (ibidem, p. 7).

Nesse sentido, podemos dizer que o aprender a escutar faz parte do ser aluno.

Com relação à atividade de leitura, isso nos leva a retomar a tese vigotskiana de que

observar, ouvir e sentir prazer não são processos simples, sendo que a percepção

estética decorre de uma “aprendizagem especial”, de um trabalho educativo. Partindo

desta afirmação e das contribuições de Vigotski de que o desenvolvimento humano é

um processo histórico e a natureza do psiquismo é cultural (PINO, 2005b), concluímos

que a escuta interessada pelo texto literário, o envolvimento por esse tipo de criação

humana, não é algo natural, inato e que está dado a priori nos sujeitos, mas é adquirido

nas práticas sociais, isto é, é culturalmente desenvolvido. Isto quer dizer que os modos

como se organizam estas práticas culturais estão relacionadas à emergência do

funcionamento mental, da consciência do ser humano; o desenvolvimento cultural do

indivíduo relaciona-se com as condições concretas de sua vida, que influenciam na

formação de suas funções psicológicas superiores, as tipicamente humanas. Ou seja, se

podemos assumir que existe na natureza humana uma contingência biológica para

criação e recepção estética, é somente pela imersão e participação do sujeito na cultura

que essa possibilidade vem a se concretizar. Como conclui Smolka (2010b), “não

podemos dizer que existe uma determinação genética das ações humanas. [...] É

Page 77: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

77

precisamente essa indeterminação genética que abre a enorme possibilidade de

realização das atividades especificamente humanas” (p. 49).

Deste modo, fundamentado na perspectiva histórico-cultural, podemos afirmar

que o interesse por uma obra de arte se constrói na relação com o outro – e aqui ganham

importância as relações de ensino60

- que apresenta às crianças a experiência histórica e

socialmente desenvolvida e que as mobilizam para esse tipo de produção humana.

Nesse aspecto, evidencia-se a importância do papel do adulto e da escola: por se

tratar de crianças em processo de alfabetização, é o adulto quem dá vida às palavras do

autor e quem convida a criança a surpreender-se e encantar-se com a obra literária;

como a escola é a instituição social comprometida com a produção do conhecimento e,

ao longo da história, se firmou como a responsável por viabilizar e tornar acessível os

saberes historicamente produzidos, ela representa o principal lugar em que a criança irá

ampliar sua participação na produção cultural da humanidade.

Assim, podemos aqui situar quais os recursos, as estratégias e os modos de

narrar de que a professora lança mão para envolver e convidar as crianças a

participarem da narrativa literária. Durante a realização da leitura, ainda que com

poucas variações entonacionais, em que não se ressaltam ênfases ou uma variedade de

aspectos prosódicos por parte da professora, vemos nos diferentes modos de

participação das crianças o envolvimento com a história lida. Mesmo que professora

tenha um ritmo e expressão mais contida e em certos momentos evidencie que não foi

uma leitura anteriormente realizada e preparada (como observamos nos turnos 37 e 55,

em que ela estranha a forma como está escrito o texto), o uso que ela faz de prompting61

sustenta a participação dos alunos no processo de interlocução. Por exemplo, nos turnos

30, 34, 61 e 66, a professora faz a leitura da passagem do livro, mas ao final deixa para

que os alunos complementem a frase, o que nem sempre corresponde ao que está no

texto – como no turno 36, quando a criança responde com um “olá”. E os próprios

alunos, participando da atividade de leitura da história, se apropriam e fazem uso dessa

mesma estratégia discursiva (como mostra a resposta no turno 67).

Pensar nos modos de participação e envolvimento da criança com a literatura,

também implica considerar a obra literária em si. Isto porque, poderíamos indagar sobre

as relações existentes entre obra literária/leitor/criança, ou seja: será que (e de que

60

Sobre isso, ver Smolka (2007, 2010a, 2012b). 61

“Prompting”, segundo dicionário online de inglês, é a ação de “incentivar alguém a falar ou continuar

falando”. Na sua narrativa, a professora faz uso do recurso de elevar a voz, isto é, de conduzir a

enunciação até certo ponto do texto e numa entoação crescente, para que as crianças completem a frase.

Page 78: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

78

forma) a obra escolhida, a partir da leitura do outro, interfere/influencia no processo de

recepção estética pela criança?

A história em questão é o já velho conhecido conto infantil Chapeuzinho

Vermelho. Entretanto, a edição62

apresentada às crianças chama atenção pela sua

qualidade, tanto com relação à linguagem quanto por sua impressão gráfica. Apesar de

mais uma vez contar sobre a menina do capuz vermelho, que desobedeceu a sua mãe e

acabou nas garras de um lobo faminto e, por fim, salva pelo caçador, a maneira como a

história é construída e enredada acaba por deixá-la muito original. Desde as palavras

que são empregadas às belíssimas – e assustadoras – ilustrações, que impressionam pelo

inusitado e diferente, a composição da obra mostra-se para o leitor como sendo muito

rica. Os recursos linguísticos utilizados, que diferem daqueles usados no cotidiano, dão

maior expressividade e um teor poético à trama, como vemos nas seguintes passagens:

“Chapeuzinho Vermelho levantou os olhos, e quando viu como os raios de sol

dançavam entre as árvores [...]”; “Mal arrancava uma e já havia outra mais bonita logo

adiante. Ela ia atrás dessa. E assim, penetrava mais e mais fundo no bosque”; “Entrou

na casa, chegando perto da cama, viu o Lobo refestelado [...]”. Já com relação aos

aspectos visuais, a artista63

que assina a ilustração nos convida a lançar um outro olhar

para as personagens, este nada convencional, o que acaba por surpreender a todos.

No decorrer da leitura, as crianças vão reagindo às ações das personagens e as

imagens que, de certa forma, causam estranhamento por desconstruir todo um

imaginário por trás da história conhecida. Comentários como nos turnos 80, 81 e 82 e

outros que aparecem durante a narrativa - “Parece filme de terror! ”, “Dá até medo! ”,

“Parece um lobo de verdade”, “Parece mais um lobisomem”, “Que feio! ”, “Credo! ” -

indicam o diálogo que se instaura entre o texto imagético e o verbal, o que amplia os

processos de significação da obra literária. Se pensarmos na arquitetônica do texto, de

que nos fala Bakhtin, isto é, “[...] a construção ou estruturação da obra, que une e

integra o material, a forma e o conteúdo” (SOBRAL, 2005, p. 111), podemos entender

como a composição artística, a maneira como os elementos são nela estruturados, estão

implicados no complexo processo de recepção estética. Vigotski (1999b) também

62

GRIMM, I. Chapeuzinho Vermelho. Ilustrações: Susanne Janssen. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

Como consta na sinopse do livro: “O clássico conto recolhido pelos Irmãos Grimm ganhou roupagem

moderna. O texto manteve-se inalterado, mas as ilustrações penetram camadas ocultas do imaginário

infantil, reafirmando o universo assustador e original da história. Dotada de uma sensibilidade

expressionista, a ilustradora alemã Susanne Janssen carrega nas tintas do Lobo. Para não falar das cores

fortes, dos ângulos inusitados e da agudeza com que retrata Chapeuzinho Vermelho”. 63

Quem quiser conhecer mais sobre a artista e suas produções, em seu site pessoal ela divulga seus

trabalhos: http://susannejanssenart.eu/

Page 79: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

79

discute sobre como a disposição e composição na obra literária é amplamente

relacionada e fundamental à reação estética, pois não é qualquer história disposta e

arranjada de qualquer forma que irá suscitar prazer estético.

Considerando tais nuances na construção literária, que integram e interferem no

movimento de apropriação da história e na produção de sentido pelas crianças, antes de

chegarmos, enfim, a nos deter em um modo específico de participação, gostaríamos de

comentar sobre outros dois modos (enunciados nos turnos 15/17 e 57/58) que também

se destacam nas cenas transcritas. Entendemos que esse exercício de análise nos

possibilita ampliar a forma de conceber e de tentar compreender os modos de

participação das crianças na leitura literária.

Na dinâmica dialógica entre autor, texto, leitor e criança, que compreende a

leitura mediada pela professora, os gestos e comentários das crianças configuram-se

como respostas à linguagem literária, e expressam os movimentos de incorporação e

significação da obra de arte. Observemos, primeiramente, o turno 15. Essa fala é

interessante para percebermos como a criança é “capturada” pela palavra na obra

literária.

A composição literária explora, alarga e altera o sentido das palavras, o que

desperta a curiosidade e intriga o menino que, por meio da sua indagação “raio de sol

dança? ”, parece querer entender, compreender, dar sentido à leitura que se realizava e

às imagens que tais palavras provocavam nesse processo. Ao compartilhar em voz alta

essa busca por desvendar a dimensão metafórica e poética das palavras, outra criança,

sem titubear e convicta da sua colocação, responde ao questionamento com um “raio de

sol? É lógico que dança! ” (turno 17). Por fim, o menino ainda balança as mãos, como

se fossem os tais raios de sol dançantes, parecendo “brincar” com o sentido da frase.

Em outro momento da leitura (turno 57), também notamos essa procura do

“leitor-ouvinte” por compreender os sentidos das palavras no texto literário. Diante do

estranhamento da própria professora com o termo “refestelado”, uma das alunas se

interessa por saber qual o seu significado, sem ainda nem saber ao certo como

pronunciá-lo. E, mais uma vez, é outra criança que tenta ajudar, buscando um sentido

para a palavra a partir do contexto em que ela se encontrava – como o lobo tinha

acabado de comer a Vovó e a Chapeuzinho, o menino supõe que refestelado quer dizer

que ele “tá barrigudo...” (turno 58) - mas que não corresponde ao seu significado de

Page 80: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

80

fato64

. Então, para resolver o “problema”, a professora propõe que depois eles

pesquisem a definição - o que, infelizmente, talvez por esquecimento, não acontece ao

término da leitura.

Sobre esses modos, lembramo-nos de Bakhtin (2014), quando afirma que

compreender a enunciação de outrem significa orientar-se em relação

a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A

cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender,

fazemos corresponder uma série de palavras nossas, formando uma

réplica [...] A compreensão é uma forma de diálogo [...] Compreender

é opor à palavra do locutor uma contrapalavra (BAKHTIN, 2014, p.

137, grifo do autor).

Palavras e contrapalavras, como vimos, carregadas, repletas de significação.

Sobre isso, também é oportuno pensar em como o contato e aproximação das crianças

com as produções literárias acabam por incorporá-las à experiência estética da

humanidade e a ampliar seus conhecimentos pessoais (VIGOTSKI, 2010), dando a

perceber e apreciar outros modos de dizer, escrever, significar e interpretar a realidade.

Passemos, agora, a nos concentrar em um modo de participação: aquele em que

a repercussão da palavra literária é transformada em gestos. Se, como já dissemos no

início, essa vivência com a literatura nos parece tão intensa, o que podemos

problematizar sobre a experiência e educação estética a partir desse recorte? Podemos

conceber os movimentos desse aluno como um indicativo da reação/vivência estética?

Se a vivência estética, como vimos no capítulo teórico, envolve e implica um trabalho

psíquico e este, por sua vez, é árduo e íntimo, como, então, sabemos o que está

acontecendo? Já que não se pode ter acesso direto ao que uma pessoa pensa ou vivencia

internamente, a não ser pelos gestos ou palavras enunciadas.... O que podemos tomar

como indicadores ou indícios interpretáveis das elaborações pessoais, subjetivas? Como

é que esse menino nos mostra o modo de recepção/compreensão ativa e participação na

história?

É por isso que vamos, então, em busca daquilo que se torna visível por meio do

trabalho analítico.... Nesse sentido, vemos uma possibilidade de inferir e atribuir sentido

aos gestos que esta criança realiza. Isto posto, ainda surgem outras questões: E como é

que se constitui essa escuta, atenção, esse deixar-se afetar pela leitura literária, que se

64

De acordo com dicionário Houaiss (online), o adjetivo refestelado vem do verbo refestelar-se, que quer

dizer: 1- (pron.) [prep.: em] atirar-se a algo prazeroso; comprazer-se, deleitar-se; 2- (pron.) [prep.: em]

sentar-se ou estender-se sobre algo, para descansar, para acomodar-se bem; estirar-se, recostar-se.

Page 81: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

81

mostram nos gestos tão expressivos que o menino realiza? Memória... Imaginação...

Emoção.... Que complexos processos psíquicos se encontram envolvidos na percepção

da obra pelo aluno? Tentaremos explorar essas e outras questões que emergem nas

linhas que se seguem.

É interessante inicialmente observar que, enquanto nas análises anteriores é por

meio da palavra enunciada que as crianças indicam e expressam o envolvimento e

participação com o que estava sendo narrado, nessa criança tal indicativo se dá,

sobretudo, através dos gestos. A quase pantomima que acompanha a leitura da

professora começa com “o lobo pensou com os seus botões”, em que o menino, talvez

por desconhecer o sentido conotativo da frase, replica à história gesticulando e imitando

literalmente o que era narrado, o que depois vai ganhando força e se intensificando no

decorrer da narrativa. O curioso é perceber que esse crescente dos gestos do menino

“contagia” algumas outras crianças, que por alguns instantes compõem movimentos

junto com ele (turnos 48, 56, e 71).

Antes de seguir com a discussão, vale pontuar que, depois de assistir várias

vezes à cena, pudemos perceber que nesse primeiro flash de participação do aluno, antes

de iniciar sua dramatização, ele dá uma rápida olhada para a pesquisadora com a

câmera. O mesmo acontece no início da cena II. Como interpretar esse movimento do

olhar? Intencionalidade na ação? O menino estaria representando para a câmera? Para

a pesquisadora? Ou para ele mesmo? Qual o significado dessa olhadela? Era apenas a

segunda vez que a professora lia para as crianças na roda e que a pesquisadora gravava

em pé e com a câmera nas mãos, em frente às crianças (nas vezes anteriores, a câmera

ficava no tripé). Então, foi a câmera que motivou o desenrolar dos gestos? Foi a câmera

ou a pesquisadora que provocou a dramatização? Será que foi a situação diferenciada

como um todo?

Se relevarmos esse rápido olhar para câmera como objeto de análise,

poderíamos, então, interpretar a presença do outro na convocação dos gestos da

criança.... Entretanto, mesmo se considerarmos a câmera e a pesquisadora como

disparadores do apresentar-se para o outro, a história, em si, continua sendo a principal

mobilizadora, pois sem sua leitura, tal dramatizar não aconteceria.

Na sequência das cenas, depois de enunciar em voz alta “Se eu fosse o lobo...”,

o menino passa a dar vida às ações das diferentes personagens que pertencem à história.

Entre o seu dizer entusiasmado e os seus gestos de acompanhar, interpretar, representar

Page 82: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

82

e replicar o narrar da professora, vemos que nesse faz-de-conta despertado pela leitura

ele assume alguns papeis: é o Lobo, a Chapeuzinho Vermelho, a Vovó e o Caçador....

Imagem 1 - Cena I e II (à esquerda e à direita, respectivamente)

Imagem 2 - Cena IV

Imagem 3 - Cena IV

Perante esse modo de se envolver, o que é possível levantar de questões e

análises? Podemos chamar esse modo de participação da criança, que é pelo gestual e a

cada passo da história, de dramatização? O que está em jogo quando ele ocupa o lugar

das personagens, elaborando e objetivando suas ações? Talvez o que está em pauta

Page 83: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

83

nesse modo de se apropriar da história, sejam os sentidos do dramatizar pela criança:

essa dramatização implica, necessariamente, a vivência do drama – em termos

vigotskianos?

Um primeiro aspecto que a análise das cenas nos permite pensar é sobre como a

palavra da professora, na leitura do livro, vai evocando na criança algumas imagens…

Isto é, pela linguagem, o “leitor-ouvinte” vai mentalmente elaborando, formando e

imaginando as situações das personagens do conto infantil e, no e com o seu corpo,

(re)cria e representa a história. Tomemos, como exemplo, a Imagem 3. Quando o

menino abre a barriga do lobo imaginário, o gesto que realiza é intenso.... Tem a

duração da ação solicitada, que é incentivada pela leitura do outro. Por isso, neste ato

criador e expressivo da criança, temos a possibilidade de ver como o funcionamento

imaginativo está nele implicado, que se (re)constrói e é orientado pela enunciação da

professora.

Por meio da teoria enunciativa de Bakhtin (2014), podemos conjecturar sobre o

poder da palavra no texto literário, no qual se entretecem linguagem e vida. Assim,

temos elementos para indagar sobre como a palavra afeta e se articula ao pensamento

imagético e verbal do indivíduo, como linguagem e imaginação se inter-relacionam na

vivência individual e coletiva, no processo de criação. Como nos fala Vigotski (2014), o

domínio da linguagem pela criança a libera das impressões imediatas, dando a

possibilidade de representar mentalmente e pensar sobre algo mesmo que não o tenha

visto. A análise do episódio em questão nos mostra justamente que, por meio do signo

linguístico, o menino passa a imaginar aquilo que não tem diante dos olhos, permitindo-

o vivenciar as cenas, personagens e cenários da história, o que, por sua vez, amplia sua

vivência criadora e experiência pessoal65

. Isto é, graças à palavra o homem pôde

libertar-se da realidade concreta, constituindo um forte impulso para sua imaginação.

Além disso, sendo a história infantil produto da imaginação do seu autor66

, que

recombina os elementos da realidade na construção de algo novo, tal como em um

instrumento técnico, também descreve o “círculo completo da atividade criativa da

imaginação” (VIGOTSKI, 2009, p. 30), pois enquanto aquele influencia na realidade

65

“[...] a imaginação adquire uma função muito importante no comportamento e no desenvolvimento

humano. Ela transforma-se em meio de ampliação da experiência de um indivíduo porque, tendo por base

a narração ou a descrição de outrem, ele pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente

em sua experiência pessoal. A pessoa não se restringe ao círculo e a limites estreitos de sua própria

experiência, mas pode aventurar-se para além deles [...]” (VIGOTSKI, 2009, p. 25). 66

Diz Vigotski (2009): “as criações mais fantásticas nada mais são do que uma nova combinação de

elementos que, em última instância, foram hauridos da realidade e submetidos à modificação ou

reelaboração da nossa imaginação” (p. 20).

Page 84: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

84

externa, a obra artística passa a influir na realidade interna, no nosso mundo interior,

nas ideias e sentimentos dos seres humanos (ibidem, p. 31). Nesse sentido, pelos gestos

do menino, vemos o quanto a literatura potencializa a imaginação humana e, também,

como possibilita ao seu “leitor-ouvinte” uma vivência emocional real.

Ao discutir sobre a capacidade criadora da criança e sua valorização nas relações

de ensino, Vigotski (2009) discorre sobre a dramatização como atividade humana,

impregnada de sentidos, na qual encontram-se envolvidos complexos processos

referentes aos afetos, à sensibilidade, à memória, à imaginação, ao conhecimento, à

criação. É pertinente ressaltarmos que assumimos essa cena como uma dramatização

porque entre os dizeres “Se eu fosse o lobo...” e “Sou eu, a vovozinha…” e suas

composições corporais, o menino (re)vive as cenas, assume vários papéis, experimenta

ser outro, um personagem imaginário. Nesse jogo simbólico e fantasioso de ser o Lobo,

por exemplo, ele ainda vai além do que é narrado quando diz por conta própria “Ai...

que delícia” (turno 46). Assim, se pensarmos na forma dramática com que o menino

elabora suas impressões acerca da obra literária, podemos dizer que ele compreendeu,

entendeu e imaginou a história a partir da narrativa de outrem, como também a

vivenciou, encarnando-a externamente em movimentos corporais.

A partir dos escritos vigotskianos (VIGOTSKI, 2000), podemos ainda afirmar

que o dramatizar possibilita, pela vivência das mais diversas relações sociais e posições

assumidas, tanto a objetivação quanto a elaboração - na esfera subjetiva - de

experiências alheias contraditoriamente vivenciadas.

Levando-se em consideração o princípio de interfuncionalidade proposto por

Vigotski, compreendemos o quanto percepção, abstração, memória, imaginação,

emoção, são funções psíquicas que se entrelaçam no processo de escuta e recepção da

obra literária. Nas palavras do próprio autor,

La imaginación debe ser considerada como una forma más

complicada de actividad psíquica, como la unión real de varias

funciones en sus peculiares relaciones. Para tan complejas formas de

actividad, que superan los límites de los procesos que acostumbramos

a llamar funciones, sería correcto utilizar la denominación de sistema

psicológico, teniendo en cuenta su complicada estructura funcional.

Son características de ese sistema las conexiones y relaciones

interfuncionales que predominan dentro de él (VIGOTSKI, 2014, p.

436, grifo do autor)67

.

67

“A imaginação deve ser considerada como uma forma mais complicada de atividade psíquica, como a

união real de várias funções em suas peculiares relações. Para tais complexas formas de atividade, que

ultrapassam os limites dos processos que costumamos chamar funções, seria correto utilizar a

Page 85: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

85

Ao dedicar-se ao estudo da obra de Vigotski, Toassa (2009) também escreve

sobre este assunto, ao dizer que o mergulhar na obra de arte deflagra o funcionamento

de uma rede de funções: percepção, linguagem, pensamento, memória, sentimento (p.

94). Portanto, a partir desse princípio explicativo vigotskiano e do trabalho analítico até

aqui realizado, podemos afirmar que a apropriação da obra de arte, a apreensão e

produção de sentido no texto literário, a elaboração da vivência com a literatura pelas

crianças, seja por gestos ou enunciações, concretiza-se, organiza-se e constitui-se em

conjunto com diferentes funções mentais, fruto da interconexão e relação existentes

entre elas.

Tendo até aqui descrito e analisado sobretudo e mais detidamente o modo de

participação e envolvimento com a literatura de uma criança, o que nos permitiu pensar

e estudar sobre esse complexo processo de recepção estética, vimos também que estas

mesmas quatro cenas condensam outros modos, dos quais nos ocupamos brevemente:

aqueles que por meio de palavras, indagações, exclamações, também nos dão pistas

sobre os modos pelos quais as crianças se apropriam do texto literário. Cuidaremos de

explorar melhor esses aspectos na próxima seção deste trabalho, a partir de um outro

recorte de cena a ser apresentado.

Contudo, entre esses diferentes modos de estar e participar aqui comentados,

aparecem e intriga-nos outros que, em um primeiro momento, não são tão prontamente

visíveis e que, na verdade, parecem ser o contraponto ou até mesmo a negação de tudo o

que aqui foi dito. Estamos nos referindo àquelas crianças que, durante a leitura,

mostram-se não se envolver, não querer participar da atividade. É esperado e

compreensível que as mais de vinte e cinco crianças não fiquem todas, ao mesmo tempo

e durante toda a leitura, completamente deslumbradas e envolvidas da mesma forma.

Cada uma vai responder do seu jeito, do seu modo. Porém, notamos que algumas delas

demonstram estar totalmente alheias à narrativa. E, de início, podemos perguntar: Como

interpretar esse não (não?) envolvimento? Se partimos do pressuposto de Vigotski da

natureza social do desenvolvimento humano, ou seja, a sociogênese das funções

psicológicas superiores, e se concebemos a educação estética sustentada neste princípio

- de que criança não nasce pronta e naturalmente disposta/interessada a este tipo de

produção humana; de que o sujeito vai se constituindo nas relações - então, do que se

denominação de sistema psicológico, tendo em conta sua complicada estrutura funcional. São

características desse sistema as conexões e relações interfuncionais que predominam dentro dele”

(Tradução nossa).

Page 86: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

86

trata nesses casos? Como entendê-los e explicá-los? O que nós (não) conseguimos

enxergar?

Dados os limites deste trabalho, não há lugar aqui para o aprofundamento destas

complexas questões envolvidas no processo de educação estética. Entretanto,

compreendemos que não se deve perdê-las de vista, buscando dar visibilidade a estes

outros modos de participação – os quais são, muitas vezes, ignorados e esquecidos pela

escola. No esteio dos apontamentos de Vigotski (2010) a respeito da educação estética,

é preciso reforçar que este trabalho com leitura de literatura é um processo lento de

sensibilização da criança para a dimensão estética da vida humana e que, portanto,

como já pontuamos, decorre de uma “aprendizagem especial” (ibidem, 2010) que

demanda um intenso trabalho educativo de formação do sentido estético.

Dito isto, seguiremos o capítulo examinando um outro modo que se apresentou

no campo empírico: quando a palavra anuncia e enuncia o envolvimento e

encantamento das crianças com as histórias literárias.

Page 87: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

87

3.2. Ler, ouvir, sentir, significar

Ao narrar detalhadamente as lembranças de sua infância, a relação com a mãe e

os avós maternos, Sartre (1995) relata a história de sua formação como escritor, como

foram suas primeiras experiências com a leitura - mesmo aquelas em que não sabia ler -,

as aventuras na biblioteca do seu avô escritor e suas primeiras invenções escritas,

quando ainda criança. Em uma das passagens d’As Palavras68

, depois de fracassada sua

tentativa de conseguir ler sozinho o livro que havia ganhado do avô, Sartre descreve a

sensação de vê-lo ganhar vida pela voz de sua mãe:

“[...] Anne-Marie fez-me sentar à sua frente, em minha cadeirinha; inclinou-se, baixou

as pálpebras e adormeceu. Daquele rosto de estátua saiu uma voz de gesso. Perdi a

cabeça: quem estava contando? o quê? e a quem? Minha mãe ausentara-se: nenhum

sorriso, nenhum sinal de conivência, eu estava no exílio. Além disso, eu não reconhecia

sua linguagem. Onde é que arranjava aquela segurança? Ao cabo de um instante,

compreendi: era o livro que falava. Dele saíam frases que me causavam medo: eram

verdadeiras centopeias, formigavam de sílabas e letras, estiravam seus ditongos, faziam

vibrar as consoantes duplas: cantantes, nasais, entrecortadas de pausas e suspiros, ricas

em palavras desconhecidas, encantavam-se por si próprias e com seus meandros, sem se

preocupar comigo: às vezes desapareciam antes que eu pudesse compreendê-las, outras

vezes eu compreendia de antemão e elas continuavam a rolar nobremente para o seu fim

sem me conceder a graça de uma vírgula. Seguramente, o discurso não me era

destinado. Quanto à história, endomingara-se: o lenhador, a lenhadora e suas filhas, a

fada, todas essas criaturinhas, nossos semelhantes, tinham adquirido majestade, falava-

se de seus farrapos com magnificência; as palavras largavam a sua cor sobre as coisas,

transformando as ações em ritos e os acontecimentos em cerimônias” (SARTRE, 1995,

p. 35).

O estranhamento e encantamento do então menino Sartre pela leitura da história,

que já lhe era familiar por outrora ter sido contada pela mãe na hora do banho, são no

trecho muito bem expressos e nos dão a perceber os movimentos de apropriação e

significação do texto literário pelo ouvinte-criança, àquela busca por apreender os

sentidos das palavras cravadas pelo autor nas páginas do livro, que na dinamicidade da

leitura do outro às vezes nos escapam.

68

O leitor pode estar se perguntando quanto ao porquê da inserção do escrito de Sartre nesta dissertação.

Nesse sentido, é importante assinalar que para compor este trabalho também procuramos “resgatar” as

vivências estéticas da própria autora, como a leitura de livros não acadêmicos oportunizada pela

disciplina do programa de pós-graduação ministrada pelo professor Dr. Joaquim Fontes Brasil. Assim,

fica aqui registrado o encantamento e agradecimento pela realização do curso “Leitura e Ensino”, sob

orientação do professor Joaquim, no segundo semestre de 2015.

Page 88: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

88

Podemos dizer que ouvir uma história pela voz de outra pessoa não é um

exercício simples, imediato, pois demanda por parte de quem ouve todo um esforço de,

no acompanhar da narrativa, ir elaborando na mente as imagens e os sentidos

correspondentes e, ainda, se permitir emocionar com ela. Não raro presenciamos um

adulto que, diante da leitura feita por um outro sujeito, posteriormente solicita o suporte

em questão para poder ler por si próprio.

Nesse sentido, é comum o adulto que se coloca na posição de leitor lançar mão

de certas estratégias discursivas para fisgar a atenção da criança para o momento de

leitura e possibilitar, a cada palavra e frase enunciada, que ela vá produzindo sentidos e

se envolvendo com a história. Assim, por exemplo, em certas passagens, pode ora

diminuir ora aumentar o tom da voz; por vezes, falar p-a-u-s-a-d-a-m-e-n-t-e algumas

palavras; em outras, reiterar o que foi lido com suas próprias expressões para salientar

alguns pontos que podem ser importantes para a compreensão; fazer silêncio, seja ele

longo ou curto, entre uma frase e outra - o que gera, muitas vezes, expectativa e tensão

do que está por ser dito.... Enfim, fazer uso de acentuação, entoação, retomada, ênfase e

ritmo.

Situação: Retorno do intervalo. As carteiras das crianças foram afastadas e, no centro

da sala, foi colocado o tapete usado para as rodas de leitura. Nesse dia, dois tapetes

retangulares foram postos no chão, o que deixou o espaço maior para as crianças se

sentarem. A pesquisadora convida as crianças a se sentarem no chão e sugere, para

quem quisesse, tirar os sapatos. A leitura foi feita pela pesquisadora, que ficou sentada

em uma cadeira em frente às crianças. Já a professora se sentou perto das crianças,

também em uma cadeira. O registro foi feito com a câmera no tripé. A história do dia

era “A operação do Tio Onofre – uma história policial”, de Tatiana Belinky69

.

69

Como selecionamos e transcrevemos apenas alguns trechos da história narrada, disponibilizamos, por

sugestão dos membros da banca de qualificação, a transcrição do texto completo da história para facilitar

o acompanhamento das análises (ANEXO 2).

Page 89: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

89

Momento I

(Duração: 08m02s – 08m52s)

Pesquisadora Professora Fala das crianças Gestos das crianças

1. (Lendo, com a voz um pouco

mais baixa, tentando fazer

suspense): Ihhhh, gente.... “Mas

uma tarde, Talita estava com a

mamãe assistindo televisão,

quando tocou a campainha…”

2. Professora pede para a

Mayana se sentar ao lado dela.

3. Carlos com o olhar fixo para a

pesquisadora.

4. Isabelly, com a boneca nas

mãos, com o olhar fixo para a

pesquisadora.

5. Carlos (fazendo um gesto de

arma com a mão): Será que é o

de arma??

6. Mayana se senta perto da

professora.

7. (Lendo): “Talita correu e foi

logo abrindo a porta, sem antes

verificar quem era...” (faz uma

pequena pausa e, então, continua

a leitura fazendo uma voz de

assustada) “E não é que era dois

ladrões armados!!?”

8. Mateus (olhar fixo, falando

baixinho): Era quem?

9. Heloísa, enquanto mexe no

cabelo, com o olhar fixo na

pesquisadora.

10. Ana, se rastejando no chão,

começa a ir para um lugar livre

que tinha mais ao fundo da sala.

Quando a pesquisadora lê “dois

ladrões armados”, olha

rapidamente para frente.

11. Isabelly, que está com uma

boneca no colo, fica com os

olhos fixos na pesquisadora e

quase sem se mexer....

Page 90: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

90

12. Renan e Wellington olham de

canto de olho para a

pesquisadora...

13. Mateus (comemorando): Que

da hora!!

14. Carlos, então, olha para o

amigo Mateus com os olhos bem

abertos, com um sorriso no

rosto, como se estivesse

gostando…

15. Ai! (Lendo) “Os mal-

encarados sujeitos empurraram a

Talita e foram entrando (pequena

pausa, diminuindo o tom da voz)

de armas apontadas...”

16. Everton, deitado mais ao

fundo, olha fixo para a

pesquisadora.

17. Heloísa continua mexendo no

cabelo e olhando fixamente para

a pesquisadora.

18. Mateus (olhando para o

Carlos): Que da hora!!

19. Carlos dá um baita sorriso

20. (Lendo): “ ‘Isso é um

assalto’, gritou um dos bandidos!

‘Entregue o dinheiro, as joias,

madames, e nem um piu....

Ouviu?’” (virando o livro para

as crianças) Olha só esses dois

ladrões mal-encarados...

21. Eros (bravo com a

comemoração do Mateus,

empurra o colega): Da hora

nada!!!

22. Emerson olha fixo para a

pesquisadora.

23. Crianças espicham o pescoço

Page 91: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

91

para ver a ilustração.

24. Carlos, olhando para as

imagens, com a mão faz como se

estivesse segurando uma arma,

apontando em direção ao livro.

25. Heloísa, depois de ouvir a

pesquisadora ler, vai

engatinhando até a amiga Ana e

senta ao lado dela.

Momento II

(Duração: 09m52s – 13m15s)

Pesquisadora Professora Fala das crianças Gestos das crianças

26. (Continuando a leitura, em

tom de suspense): “O telefone

tocou (pausa) uma, duas... três

vezes...” (virando o livro) Olha

lá...

27. Alguma criança: Três...

28. Brenda (imitando o barulho

do telefone): Trimm, trimmm,

trimm...

29. Crianças com o olhar fixo na

ilustração.

30. (Conversando com as

crianças, conforme mostrava a

ilustração): O cofre, crianças,

olha, fica atrás desse quadro. O

31. Brenda: Não estou vendo...

Page 92: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

92

que que tem dentro do cofre?

32. Eros: Dinheiro!!!

33. Brenda: Dinheiro!!

34. Dinheiro! E os ladrões

queriam levar todo o dinheiro

deles.... Mas para abrir o cofre

tem um segredo, igual contou

aqui no livro. E o que é esse

segredo? É uma senha! E só

quem sabe essa senha é que

consegue abrir o cofre....

35. Vitor (sem conseguir

concluir, apontando para o

livro): Elas são muito...

36. Carlos: Só o pai!!!

37. E os ladrões, olha só,

pediram para a mamãe da Talita

abrir o cofre... (para Carlos) E o

pai??? O telefone tocou...

(falando pausado e contando

com a mão) Uma, duas... três

vezes...

38. Mateus (fazendo o número

com a mão): Duas....

39. Brenda (imitando o barulho

do telefone tocando): Trimm,

trimm, trimm.... Deve ser o pai!!

40. Será que é o pai??? Vamos

ver....

41. Carlos (sem conseguir

concluir): Só o pai, é que...

Page 93: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

93

42. (Colocando a mão na

cintura): “ ‘Só faltava isso!!’

Resmungou um dos ladrões.

‘Deve ser o pai!’, murmurou a

Talita, mas crianças....

(Diminuindo o tom da voz) ela

estava quase chorando...

(tentando fazer voz de choro)

‘Ele sempre telefona a tarde pra

saber da gente...’ ” Olha lá,

Brenda. Era o pai mesmo que

estava ligando.... Olha só o que o

ladrão falou “ ‘Droga, se

ninguém responder e atender o

telefone, o pai vai estranhar!

Então, atenda logo!’, gritou um

dos bandidos... ‘A senhora não,

madame. A senhora cuide do

cofre. Você, menina. Atenda

logo! E cuidado com o que vai

dizer…’ (movimenta a mão,

como se estivesse pegando um

telefone) Então a Talita foi e

pegou o telefone....

43. Mateus (com as duas mãos

juntas, apertando bem forte e

balançando, como se estivesse

torcendo, fala baixinho):

“Atende!! Fala que tem

ladrões.... Fala que tem

ladrões!!”

44. Carlos faz algum comentário

para a pesquisadora, mas não dá

para compreender.

45. Crianças com os olhos fixos

na pesquisadora.

46. Mateus (apertando bem as

mãos, levando-as em frente ao

rosto e com um sorriso de

tensão): Aiiiiiiiii....

Page 94: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

94

47. (Lendo): “ ‘Não deixa

perceber nada…. (arrastando a

voz) Senãoooo....’”

48. Carlos (fazendo uma arma

com a mão): Atira!!

49. Eros (fazendo uma arma com

a mão): Pummmmm! Pum, pum,

pum, pum....

50. Wellington, bem

rapidamente, faz o mesmo gesto

que Eros.

51. Levi dá uma risada tímida

52. Olha lá... 53. Eros leva as mãos na cabeça

54. (Bem baixinho): Quero ver o

que ela vai falar....

55. (Mostrando a ilustração):

Olha a Talita morrendo de medo.

Olha a cara de assustada dela!

Ai, até eu estou com medo!

56. Brenda (fazendo barulho do

telefone tocando): Trim, trim,

trim....

57. Crianças com o olhar fixo na

ilustração.

58. E olha o telefone tocando...

(Mostrando a ilustração) Olha a

cara de bravo desses dois

ladrões! Vamos ver o que que

aconteceu nessa conversa com o

pai da Talita...

59. Brenda (fazendo barulho do

telefone tocando): Trim, trim,

trim....

60. Mateus (ainda com as mãos

apertadas, como se estivesse

torcendo): Por favor, por favor...

(levando as mãos em frente ao

61. Eros leva as mãos na cabeça,

e fica balançando os braços,

para lá e para cá, como se

estivesse ansioso por saber o que

iria acontecer na história.

Page 95: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

95

rosto e abrindo bem a boca)

Ahhhh!!! (depois, bate uma mão

na outra, como se estivesse na

expectativa com o desenrolar da

história)

62. “A Talita atendeu o

telefone…”

63. Olha lá...

64. (Lendo): “ ‘Alô?’ E a Talita,

crianças, ela estava toda

trêmula....” assim, ó

(pesquisadora estica o braço

para frente e começa a tremer as

mãos). Quando a gente fica com

medo a gente não fica tremendo

assim, de medo? (Lendo):

“Enquanto o ladrão, ele pegava

outro telefone que tinha lá no

vestíbulo para ouvir a conversa.

‘Talita?’, era a voz do papai.

‘Tudo bem aí, filhota?’. A Talita

respondeu assim (pesquisadora

fala gaguejando)

‘Tu....tu...tudo... tá…tá... tudo

bem, papai!’ ”. Ela ficou

gaguejando, coitada da Talita...

65. Emerson e Wellington olham

bem para as mãos e tentam fazê-

las tremer como a pesquisadora

tinha mostrado.

66. Wellington acha graça

quando a pesquisadora imita a

personagem gaguejando.

Page 96: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

96

67. Brenda: Fala que está com

ladrão...

68. (Lendo): “E o ladrão, olhou

feio assim para ela (pesquisadora

faz cara de brava) Aí a Talita

disse… (se corrigindo) o papai

da Talita disse assim ‘Talita,

avisa a mamãe que eu vou chegar

atrasado para o jantar, mais ou

menos uma hora. Você está me

ouvindo, filha?’ (gaguejando)

‘Estou, papai.... Sim... você, você

vai chegar... ééé... atrasado! ’ ”.

Coitada, a Talita ficava

gaguejando de medo! “Aí o papai

desconfiou... Ele falou assim ‘A

sua voz está diferente, Talita.

Vocês estão bem mesmo? ’. O

ladrão apontou a arma pra

menina e falou assim ‘Vê lá o

que você fala, hein! E vê se não

gagueja...’ ”

69. Isabelly, com a boneca nas

mãos, quase nem se mexe e olha

fixo para a pesquisadora.

70. Carlos, boquiaberto, com os

olhos fixos na pesquisadora.

71. Wellington dá risadas

quando a pesquisadora gagueja.

72. Crianças com o olhar fixo

para a pesquisadora.

73. Mateus (com as mãos bem

apertadas, levando-as na altura

do queixo, como se estivesse

tenso): Fala que tem dois

ladrões!!

Page 97: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

97

Momento III

(Duração: 14m49s – 15m49s)

Pesquisadora Professora Fala das crianças Gestos das crianças

74. (Lendo): “O ladrão, crianças,

ficou satisfeito com a resposta da

menina, fazia sinais para ela

terminar logo a conversa ‘Acabe

logo com esse papo furado,

menina’. E a Talita, apressou-se

em obedecer.... Ela não ia

desobedecer o bandido!

75. Eros, depois que termina de

falar, leva as mãos à cabeça e

fica balançando, inquieto.

76. Heloísa deita no tapete.

77. Mateus (baixinho, para ele

mesmo): Ahhhh! Desobedece,

vai!!!

78. (Lendo): Aí a Talita falou

assim “ ‘Eu falo para a mamãe

que você vai chegar atrasado

para o jantar (dizendo de maneira

demorada) Até loooooogo,

papai. Até logo’. E Talita

desligou o telefone” Olha lá

(mostrando o livro) Ela pôs o

telefone no gancho, o ladrão

ficou ali, bem pertinho dela,

ameaçando.... E o papai, lá no

trabalho, ficou se perguntando

assim ‘Tio Onofre????’. Tio

Onofre??

79. Mateus, parecendo estar

bravo, bate a mão na perna e faz

um barulho, como se estivesse

chateado com a resposta da

menina na história.

80. Crianças com o olhar fixo

para as ilustrações.

Page 98: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

98

81. Eros: É o cofre!!

Momento IV

(Duração: 17m09s – 18m04s)

Pesquisadora Professora Fala das crianças Gestos das crianças

82. (Lendo) “Os minutos

passavam... (diminuindo o

volume da voz, em tom de

suspense) na sala só se ouviam as

vozes estridentes do desenho

animado na televisão, abafando

os outros ruídos…” A TV estava

ligada, só se escutava o desenho

que estava passando. “E só a

Talita, muito atenta, ela ouviu

um estalinho na porta...”

(pequena pausa)

83. Wellington olha de canto de

olho para a pesquisadora.

84. Crianças com o olhar fixo

para a pesquisadora.

85. Mateus (imitando o som do

estalo com a boca): Pá!

86. “E então.... Enquanto a

mamãe abria o cofre.... (falando

bem devagar e baixo) bem no

momento em que os ladrões se

precipitavam para ver o que tinha

lá dentro do cofre, a porta de

entrada abriu de repente!”

87. Mateus (baixinho): Era o

papai?!

88. Wellington continua olhando

de canto de olho para a

pesquisadora.

89. Mateus (diz bem baixinho,

apertando e esfregando as duas

Page 99: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

99

mãos, como se estivesse

torcendo): Era o papai!!

90. (lendo): “E então....

Silenciosamente... (pequena

pausa) dois policiais irromperam

na sala, apontando as armas nas

costas dos bandidos! ‘Polícia!!!

Larguem as armas... Mãos aos

altos!!’ ”

91. Mateus comemora a entrada

dos dois policiais na história,

fazendo um gesto de

comemoração e dizendo baixinho

“Yes!!”

Momento V

(Duração: 18m27s – 20m06s)

Pesquisadora Professora Fala das crianças Gestos das crianças

92. (Lendo) “Atrás dos policiais,

entrou correndo...” Vocês não

imaginam quem entrou

correndo...

93. Carlos: O pai!!!!

94. (Lendo): “O pai da Talita! De

braços bem abertos!” Olha só o

que o papai da Talita falou “

‘Graças a Deus, vocês estão

bem!’. E ele então, crianças,

abriu os braços assim

(pesquisadora abre um braço) e

envolveu a mãe e a Talita num

95. Vitor vira para o Mateus e dá

um abraço no amigo. Depois,

Eros também abre bem os braços

e abraça o Mateus e Levi.

Wellington, Carlos e Vitor, ao

verem os amigos, também

abriram os braços para

participar do abraço coletivo.

Page 100: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

100

graaande abraço”.

96. Everton bate palmas.

97. (Lendo): As duas crianças,

olha só, “a mamãe de Talita e

ela, até choravam de emoção e

alívio. E depois que terminou a

agitação e os dois policiais

levaram os assaltantes presos…”

Olha lá, os ladrões foram presos!

“A mamãe perguntou para o

papai...” Vamos descobrir esse

mistério... Olha o que a mamãe

perguntou....

98. Douglas se levanta e fica

olhando para as ilustrações.

99. Olha lá, gente...

100. Wellington (rindo): O Tio

Onofre! Tio Onofre!

101. (Lendo): “ ‘Mas querido....

Você não disse que ia chegar

atrasado? Como foi que você

adivinhou o que estava

acontecendo e chegou assim, em

cima da hora?’ ” Agora a gente

descobre o mistério... de como

esse papai descobriu...

102. Olha lá...

103. Wellington (bem baixinho,

para ele mesmo): O Tio Onofre...

Page 101: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

101

104. Brenda: Eu acho que ele viu

que estava tremendo a boca

dela...

105. (Para Brenda): Oi?

106. Brenda: Acho que era por

causa que estava tremendo a voz

dela...

107. Ah, é? Ah... ele percebeu

que ela estava com medo pela

voz? Será que foi isso?

108. Emerson: Fooooi!

109. Olha só o que ele

respondeu. “O papai, piscou um

olho assim para a Talita, olha

(pesquisadora dá uma piscadela)

e disse... ‘E desde quando a

nossa filha tem um tio chamado

Onofre?? Onofre aqui em casa só

rima com uma coisa…’ ”

110. Eros mexe na boneca das

meninas.

111. Mateus também pisca o

olho.

112. Eros: Cofre!!

Page 102: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

102

Diz Vigotski (2010) que “as mesmas palavras, porém pronunciadas com

sentimento, agem sobre nós de modo diferente daquelas pronunciadas sem vida” (p.

135). Mesmo que neste caso o teórico não estivesse se referindo diretamente à questão

da leitura literária, tal colocação nos ajuda a pensar a respeito do papel que a

intencionalidade na voz e o empenho do leitor em tentar transmitir a dimensão afetiva

das palavras, isto é, o que está por trás do simples registro do signo linguístico, gera no

comportamento de quem ouve as histórias.

O que importa, portanto, não é só a história em si, mas também o modo como é

contada. Sobre esse aspecto, como já dissemos no início deste capítulo, o leitor pode,

para dar vida e vivacidade ao texto literário, fazer uso de certas estratégias discursivas.

Na situação que destacamos, por exemplo, observamos que a narrativa é encaminhada

com constantes mudanças no tom da voz, de forma a engendrar certa tensão com o

desenrolar da história (turnos 1, 15, 26, 42, 64, 82, entre outros). De um lado temos a

inflexão da voz do leitor, as variações de altura e intensidade no dizer; do outro temos o

efeito que isso causa nos sujeitos que participam como ouvintes do momento, que tanto

se mostram por meio de palavras carregadas de entoação (turnos 8, 13, 87, entre outros)

como por certa imobilidade de alguns de seus espectadores, com o “congelamento” dos

seus gestos, sons/palavras e expressões (turnos 11 e 69).

O modo como se lê, como o adulto se expressa na leitura, o que oferece um

colorido e tonalidade à história, vai tornando e transformando a criança espectadora em

expectadora (FERES, 2012), ao criar nela expectativas e entusiasmos com o desenlace

da narração - o que acaba sendo um recurso de chamada à participação. Nesse sentido,

podemos dizer que aquele que realiza a leitura do livro colabora e auxilia na produção

de sentidos pelas crianças. Ressalta-se, portanto, o caráter mediador da atividade: o

leitor - permanecendo entre o livro, objeto estético e de conhecimento, e a criança, a

quem ele se dirige - pode orientar/facilitar a interpretação e compreensão do texto

literário.

Nesse encontro (texto/leitor/criança), notamos, por parte do leitor, algumas falas

que não seguem estritamente a forma como está escrita no livro, bem como certas

explicações que interrompem a leitura, possivelmente numa tentativa de reforçar e

explicitar alguns aspectos que julga importante (turnos 30 e 34). Durante a narrativa,

também podemos observar que o “leitor-ouvinte” vai sempre em busca de possíveis

significações/interpretações dos acontecimentos, compartilhando em voz alta os

sentidos que vão sendo atribuídos e (re)construídos, os quais são inerentes ao processo

Page 103: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

103

de escuta e recepção literária/estética. É assim, por exemplo, que alguns fazem

antecipações da história, como quando perguntam “será que é o de arma? ” (turno 5) ou

quando afirmam “deve ser o pai...” (turno 39) e tentam adivinhar, convencidos, de que

era “o pai!!!” (turno 93); já no final da história, temos o comentário da menina que tem

como hipótese para descoberta do assalto pelo pai o fato de que “ele viu que estava

tremendo a boca dela...” (turno 104), enquanto outras crianças já encontram na rima de

Onofre-cofre tal resolução do problema (turnos 81 e 100).

Na “história policial”, escrita por Tatiana Belinky (2004), um suspense é criado

para o “leitor-ouvinte”: a menina conseguiria ajudar seus pais a saírem daquela situação

de perigo? Por isso, o desenrolar dos acontecimentos são aguardados com grande

expectativa e tensão pelas crianças. Curiosidade, espanto, inquietação e ansiedade

fazem parte desse movimento....

Imagem 4 – Momento I

Page 104: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

104

Imagem 5 – Momento II

Imagem 6 – Momento II

A inquietude frente à continuação, explicação e desfecho da história é percebida

pelos gestos e olhares das crianças, bem como pelas indagações (turnos 5, 8, 87),

exclamações (turnos 13, 18, 46), complementações (turnos 33, 48, 49, 85), sugestões

(turnos 43, 67, 73, 77) e inferências (turnos 39, 81, 93, 100, 104) ao que era narrado,

isto é, pelas palavras enunciadas e anunciadas, que vão nos indicando os diferentes

modos de participação na narrativa literária, como também os modos pelos quais o

leitor-ouvinte se apropria da literatura.

Mas, nesta participação coletiva, queremos chamar atenção para a singularidade

de um envolvimento. Um dos meninos, por meio de gestos e falas, demonstra para nós o

quanto estava enlevado e contagiado com o acontecer da história. Ele torce, angustia-se,

pede baixinho “Atende!! Fala que tem ladrões…” (turno 43), enquanto esfrega e aperta

uma mão na outra; emite um longo e forte suspiro de tensão “Aiiiii! ” (turno 46);

suplica a si mesmo para que a personagem fizesse o que ele queria, pedindo para que ela

desobedecesse o ladrão (o que talvez, na sua visão, poderia acabar com a situação de

Page 105: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

105

perigo tão iminente), chateando-se quando a situação não sai como pretendia (turno 79);

por fim, comemora o desfecho da história (turno 91).

O modo como o menino se envolve com as desventuras das personagens da

narrativa, nos faz relembrar as considerações de Vigotski (2009) quando comenta sobre

a lei da realidade emocional da imaginação, da qual já tratamos no capítulo teórico, em

que se baseia para explicar os efeitos que as obras de arte causam em nós. Conforme

explicita o teórico:

As paixões e os destinos dos heróis inventados, sua alegria e desgraça

perturbam-nos, inquieta-nos e contagiam-nos, apesar de estarmos

diante de acontecimentos inverídicos, de invenções da fantasia. Isso

ocorre porque as emoções provocadas pelas imagens artísticas

fantásticas das páginas de um livro ou do palco de teatro são

completamente reais e vividas por nós de verdade, franca e

profundamente (VIGOTSKI, 2009, p. 28).

É evidente que ninguém está, de fato, correndo algum tipo de risco. Contudo, a

maneira como a autora constrói a história, o tom de suspense que dá à narrativa, atrai o

“leitor-ouvinte”, intriga-o, preocupa-o, atormenta-o - de verdade. Sabemos que a arte,

por meio da sua linguagem imaginativa e emocional, seja ela teatral, plástica, literária,

musical etc., exprime a experiência humana, o(s) drama(s) da existência e relações

humanas.... E é assim que podemos, em uma só vida, viver outras tantas, ser muitos

outros em um só eu70

. Na finitude da vida, própria da condição do ser humano, a arte

expande, enriquece, desdobra outras (im)possíveis. Nas palavras de Pino (2006), “a

função criadora do imaginário pode fazer surgir entes novos, experiências nunca

experienciadas, sentimentos nunca sentidos, mundos nunca vistos” (p. 59).

Sobre o prazer estético proporcionado pelas obras de arte, Vigotski (1999b),

endossando os comentários de Rank e Sachs, ressalta:

O prazer propiciado pela criação artística atinge o ponto culminante

quando ficamos quase sufocados de tensão, com o cabelo em pé de

medo, quando as lágrimas rolam involuntariamente de compaixão e

simpatia. Tudo isso são relações que evitamos na vida e

estranhamente procuramos na arte (VIGOTSKI, 1999b, p. 83).

70

Para falar nos termos de Bakhtin (2011), “a arte me dá a possibilidade de vivenciar, em vez de uma,

várias vidas, e assim enriquecer a experiência de minha vida real, comungar de dentro com outra vida em

prol desta, em prol de sua significação vital” (p. 73-74).

Page 106: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

106

Arte e vida, portanto, entretecidas. E, entre elas, complexas relações

(VIGOTSKI, 1999b). Ladrões armados, ameaçando a família, o medo por isso

provocado, tal como no enredo do livro em questão, é uma situação dramática real que a

criança não gostaria de ter que enfrentar. Entretanto, aquilo que não experimentamos na

vida, que às vezes nem mesmo gostaríamos de passar na realidade, sentimos, sofremos,

vivenciamos, buscamos.... Na arte. Caberia perguntar: Como e por que isso se dá? A

palavra, no texto literário, atinge/afeta o outro diretamente? Por que vias esse

envolvimento da criança se realiza?

Na sucessão de acontecimentos que constituem a trama da história infantil,

sensações e sentimentos são atribuídos à narrativa e às personagens com base naquilo

que as crianças imaginam. O menino, por exemplo, que se preocupa com o destino da

família em perigo é o mesmo que no início da leitura, sem nenhum pudor, por meio de

uma gíria (turnos 13 e 18) comemora a entrada dos “vilões” na história - até que o

colega detrás, irritado, fica bravo com alegria tão escancarada (turno 21). Podemos

interpretar essa curiosa comemoração como sendo uma resposta à estrutura do suspense:

o menino compreende que uma história com fortes emoções se seguiria, isto é, que ele

poderia ter pelo o que torcer na sequência. Portanto, tal comemoração não se traduz

diretamente no plano da realidade concreta, ou seja, como se o garoto estivesse

realmente feliz por ter ladrões na história, mas sim pelo o que promete essa chegada em

termos de desdobramentos narrativos. Além disso, nessa estrutura de suspense que

encadeia o livro, também percebemos que as risadas causadas pelas rimas que a

personagem inventa no começo da história, contrastam-se com a posterior tensão criada

pela ameaça dos ladrões.

Sobre tais rimas com os nomes dos objetos da casa, elemento que ajuda a

desvendar o mistério da história, é interessante compartilhar uma situação que ocorreu

quase um mês após essa leitura. Um dos alunos (o mesmo que, durante a leitura, já

percebe a relação entre Tio Onofre e cofre - turno 81), enquanto a pesquisadora

organizava a turma para uma nova roda, interrompe-a para sugerir algo: “não podemos,

igual àquela menina da história do ‘Tio Onofre’, mudar o nome do baú de histórias71

? ”

(Trecho Diário de Campo, 02 de outubro de 2015). E foi assim, então, com a

pesquisadora e professora “entrando” na brincadeira do menino, que o baú se

transformou em “Tio Raul”. Essa situação é apenas para comentar sobre o quanto uma

71

Como já dissemos em outro momento, nas rodas de leitura que realizava com as crianças, a

pesquisadora levava um baú produzido por ela, de onde tirava o livro que seria lido no dia.

Page 107: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

107

história e o que ela nos traz de novo, diferente e envolvente, pode reverberar e ecoar

para além do momento imediato em que é apresentada. Nesse caso relatado, vemos que

o menino, ao se apropriar das rimas com as palavras, também recria, faz sua própria

composição a partir dos elementos trazidos pela história.

Assim, do pouco que até aqui pontuamos, percebemos como os efeitos e afetos

produzidos na leitura do texto literário ressoam em todo o corpo daquele que participa

do momento, faz-se ver no mais simples gesto humano que é realizado, ganham

materialidade nas falas das crianças, em seus olhares singelos registrados, em que os

sentidos - estético? - vão sendo por elas construídos, elaborados, vivenciados e

experimentados.

Page 108: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

108

Capítulo 4 - Sobre os modos de participação das crianças na autoria e na atividade

criadora de produção de textos

No capítulo anterior analisamos os modos de participação das crianças nas rodas

de leitura, elegendo duas situações vivenciadas, que nos permitiram refletir sobre os

efeitos e afetos produzidos durante a leitura, a partir das expressões, falas,

questionamentos, gestos e olhares durante a narrativa e a escuta do texto literário.

Dando continuidade aos nossos estudos, outras duas situações empíricas serão

objeto de análise neste último capítulo. Acompanhando uma proposta de produção

literária desenvolvida com as crianças72

, a qual já foi brevemente comentada ao

relatarmos o percurso do trabalho de campo, buscamos compreender o processo de

criação coletiva de uma história, bem como a escrita individual de uma das crianças.

Como já descrevemos no capítulo 2, a pedido da professora da turma, foram

selecionadas diferentes versões do conto Chapeuzinho Vermelho para que cada uma

delas fosse lida para as crianças (não foram dias seguidos, houve intervalos entre a

leitura de uma história e outra). Ao todo, foram cinco histórias apresentadas:

Chapeuzinho Vermelho, uma de Charles Perrault e outra dos Irmãos Grimm; A

verdadeira história da Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro Natalini;

Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque; Chapeuzinho Redondo, Geoffray de Pennart.

Findas tais leituras, após algumas semanas foi proposto às crianças que de leitoras de

tais textos, então pudessem ser autoras de outra versão.

O foco de nossas análises será, portanto, o movimento de apropriação/produção

coletiva das crianças, o que implica “[...] uma participação ativa da criança na cultura,

ao tornar próprios, dela mesma, os modos sociais de perceber, sentir, falar, pensar e se

relacionar com os outros [...]” (SMOLKA, 2009, p. 8, grifo nosso).

Para orientar as reflexões que aqui serão encaminhadas, levantamos a seguinte

questão: como a leitura da literatura e a produção literária fazem parte de/podem

integrar o sentido estético, isto é, a “ [...] experiência tanto do autor da obra de arte ou

artista quanto do receptor ou espectador desta obra” (PINO, 2007, p. 103), em

desenvolvimento na criança?

Nossa atenção se volta para alguns aspectos específicos, tais como: i) o modo

como a professora participa de e conduz a atividade, isto é, como a professora retoma,

72

O produto final desta proposta de elaboração coletiva encontra-se no Anexo 3.

Page 109: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

109

relembra, convoca a participação das crianças, escuta atentamente à narrativa dos alunos

e como provoca e orienta a criação coletiva; ii) a participação dos alunos na atividade,

ou seja, como as elaborações das crianças individualmente integram a escrita coletiva;

iii) os sentidos do trabalho com literatura na formação de sujeitos que se tornam autores

e produtores de novas criações. Mais do que olhar para o texto final, produto acabado e

pronto, produzido pelo grupo e por uma criança individualmente, interessa-nos, neste

momento, realizar a leitura do processo e da dinâmica de tais produções. Afinal, tão

bem alertou-nos Vigotski (2009),

não se deve esquecer que a lei principal da criação infantil consiste em

ver seu valor não no resultado, não no produto da criação, mas no

processo. O importante não é o que as crianças criam, o importante é

que criam, compõem, exercitam-se na imaginação criativa [...]

(VIGOTSKI, 2009, p. 100).

Para tanto, encontramos no escrito vigotskiano Imaginação e criação na

infância, livro que evidencia a preocupação do autor com um trabalho pedagógico que

fosse orientado para a experiência estética da criança (destacando a criação teatral,

literária e os desenhos infantis), fecundos diálogos e fonte de muitas inspirações ao que

pretendemos investigar. Assim, com base neste referencial teórico, destacamos o modo

como a professora dá início à atividade e a forma como esta foi realizada.

Com as crianças em suas carteiras e um computador conectado ao projetor,

durante a atividade coletiva a professora permaneceu a maior parte do tempo em pé,

passando pelas fileiras para ouvir as sugestões e conversar com as crianças, enquanto a

pesquisadora ficou responsável por digitar e registrar a história conforme ia sendo

criada pelos alunos. A maneira como foi organizada a produção escrita aponta para

significativas contribuições que a inserção das novas tecnologias73

pode proporcionar às

relações de ensino. Vemos, por exemplo, que nesse modo de produção que se utiliza de

novos instrumentos técnicos-semióticos74

, tais como os recursos tecnológicos, a criação

das crianças ganha materialidade e pode ser objetivada durante o próprio fazer criativo,

73

Lembrando, contudo, que “[...] o acesso às novas tecnologias não elimina, mas pode redimensionar ou

transformar a utilização de tantos outros recursos historicamente produzidos [...]” e que, portanto, “se, por

um lado, eles são fundamentais como conteúdo da educação das novas gerações, por outro, não descartam

as muitas outras formas de produção humana” (SMOLKA, 2012a, p. 56-57). 74

Estudos contemporâneos na perspectiva histórico-cultural apontam para o uso do termo “instrumento

técnico-semiótico”, uma vez que o técnico é semiótico e o semiótico é técnico (PINO, 2003; SMOLKA,

2012a).

Page 110: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

110

permitindo que elas possam acompanhar a complexa transformação de um intenso

borbulhar de ideias em um texto escrito.

Porém, antes de dar início ao processo criativo, o começo da produção da escrita

coletiva foi marcado por uma breve retomada que a professora fez, junto com a turma,

do enredo das diferentes histórias narradas, o que durou cerca de uns vinte minutos.

Nesse momento, com todos os livros lidos expostos na lousa, a professora pegou um por

um para poder recordar o nome dos seus autores, para rapidamente folheá-los e mostrar

suas ilustrações, bem como fazer uma síntese do conteúdo de cada uma das histórias.

Dessa ação da professora de recapitular cada livro, queremos realçar a importância que

esse outro, professor-interlocutor no processo de elaboração conjunta, pode ter em

auxiliar na rememoração de todo o conteúdo apresentado. Nesse sentido, os dizeres da

professora, sua preocupação em recuperar os detalhes e contexto de cada história,

enfim, o seu gesto de ensinar (SMOLKA, 2012b), tornam-se para nós significativos,

uma vez que revelam o quanto a mediação deste outro – professor/a - constitui um

elemento fundamental nas relações de ensino.

Foi interessante notar como as crianças participaram da recordação conjunta,

lembrando detalhes da trama de cada uma das histórias lidas. Sobre isso, podemos

pensar em Merleau Ponty, que ao falar da memória, vai dizer que fica o que significa

(apud SMOLKA, 2006, p. 106). Mas como as crianças significaram as experiências

com leitura de textos literários? Uma análise dos enunciados no processo de produção

do livro pode ajudar a compreender alguns aspectos.

Um dos meninos, por exemplo, nessa conversa inicial com a professora de

rememorar o enredo das histórias, fez uma associação da obra Chapeuzinho Amarelo

com uma outra que foi lida, cuja roda de leitura foi material de análise neste trabalho.

1. Professora: Depois da “Verdadeira história da Chapeuzinho Vermelho”, o livro que a gente

leu foi esse. Que a gente leu não, que Daniele fez aquela contação de história, trouxe aqueles

personagens, né? E foi bem legal! Foi esse aqui (pegando o livro) “Chapeuzinho Amarelo”. É

do Chico Buarque esse.... Até esqueci de falar o nome dos outros... Então a Chapeuzinho

Amarelo, que na verdade tinha muito medo, não é? Tinha medo de...? Tudo!! Mas do que ela

tinha mais medo?

2. Eros: De escuro!!

3. Renan: Do lobo!!

4. Professora: Do lobo, né gente?

5. Eros: E de escuro?

6. Professora: E aí ela inventou aquela brincadeira de trocar as sílabas!

7. Wellington: Que nem na... (pausa) a.... é.... o.... é.... “A operação do Tio Onofre”

8. Professora: É!! Olha aí que legal.... Na operação do Tio Onofre a menina trocava o nome dos

objetos da casa, colocava nomes...

Page 111: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

111

(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)

O elo que o garoto consegue estabelecer entre uma história e outra mostra sua

percepção dos elementos que constituem cada uma delas, coloca em foco aspectos da

oralidade, da dimensão linguística: enquanto que em uma sua personagem inverte as

sílabas das palavras, criando novos nomes ao que tinha medo, na outra inventava-se

nomes de pessoas que rimassem com os objetos da casa. Atento às brincadeiras com as

palavras presentes nas duas histórias, percebemos o esforço do aluno em relembrar o

nome do livro que havia sido lido há mais de um mês pela pesquisadora (turno 7). A

enunciação do menino evidencia sua atenção à dimensão sonora da língua, bem como às

possibilidades de jogos de linguagem, consideradas tão importantes no processo de

aquisição da escrita pelas crianças.

É somente depois de comentar brevemente cada obra que a professora convida

as crianças a criarem, “do jeito delas”, uma nova história da Chapeuzinho Vermelho:

9. Professora: Então gente, todos esses autores, cada um fez do seu jeitinho, não foi Daniele?

Cada um escreveu de um jeitinho diferente as histórias... [...] Todos esses autores, cada um fez

do jeitinho que achava que ficava mais legal. Uns quiseram fazer só do lobo, uns quiseram fazer

que o lobo era muito mal, outros quiseram fazer que o lobo não era tão mal assim, que o lobo

era bonzinho; outros acharam que a Chapeuzinho Vermelho que tinha sido mal porque tinha

feito coisa errada... Então cada um escreveu do seu jeitinho. Hoje a gente vai fazer a nossa

história da Chapeuzinho Vermelho, do nosso jeito.

10. Wellington: Legal!!

[...]

11. Professora: Ó, vamos combinar algumas coisas, deixa eu ver. Pra começar a gente tem que

se ouvir. Pra começar a gente tem que se ouvir!! Vamos ver.... [...] Mas deixa eu só explicar, a

gente vai ter que decidir como que vai ser essa história. Vai ter a Chapeuzinho Vermelho na

história?

12. Alunos: Vai...

13. Professora: Temos outras opções, tem a Chapeuzinho Amarelo ou outro Chapeuzinho que

vocês quiserem...

(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)

Mesmo que a professora tenha dito que a história da Chapeuzinho Vermelho da

turma seria “do nosso jeito” (turno 9), que nessa criação os alunos poderiam ter a

Chapeuzinho que quisessem (turno 13), as primeiras crianças a levantarem a mão para

participar da atividade repetiam, com suas próprias palavras, os mesmos acontecimentos

de cada uma das versões originais apresentadas. Diante disso, a professora falou:

Page 112: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

112

14. Professora: [...] Quem quer inventar alguma coisa bem diferente que aconteceu com a

Chapeuzinho Vermelho? Olha, eu acho que aquela “Verdadeira história da Chapeuzinho

Vermelho”, a pessoa pensou, pensou, pensou e falou “será que o lobo sempre foi mal? ”. E aí

inventou uma coisa.... [...] Então, todos os autores aqui inventaram coisas bem diferentes. O

Chico Buarque quis que a Chapeuzinho Vermelho não fosse Chapeuzinho Vermelho, fosse

Chapeuzinho Amarelo... Hmmm.... O Geoffray, né, quis que não fosse Chapeuzinho Vermelho,

fosse Chapeuzinho Redondo e que nessa história ela confundiu o lobo com um cachorro. O que

que a gente pode inventar na nossa história pra ela ficar bem legal e bem diferente?

(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)

Destacando alguns aspectos que diferenciam as histórias contemporâneas que

foram lidas do conto original, a professora provocou as crianças a tentarem fazer algo

diferente, tal como os autores por elas conhecidos também se empenharam. Foi a partir

dessa fala que um dos alunos, numa segunda tentativa, se arriscou a criar algo novo,

fazendo com que a história, por fim nomeada A encantada Chapeuzinho Vermelho,

começasse a ganhar corpo e forma:

15. Eros: Ô prô, ô prô, tive outra ideia pra fazer...

16. Professora: Escuta o colega...

17. Eros: O lobo.... O lobo.... O lobo é um feiticeiro super malvado. E aí a Chapeuzinho

Vermelho, o caçador e a mamãe.... O caçador e a mamãe são casados...

18. Professora: Douglas, você está escutando o que o colega está falando? Vira pra frente

Isabelly e é pra você ouvir o que que o coleguinha está falando! A gente não combinou isso?

(para Eros) Fala!

19. Eros: E aí ele faz assim.... Aí o lobo transforma e faz a mamãe e o papai que é o caçador, se

separarem, que nem aconteceu com minha família, aquele dia....

20. Professora: Entendi, mas por que o lobo faz isso? Tira o pé da cadeira, Eros. Põe o

bumbum!!

21. Eros: Por que ele faz isso? Porque não convidaram ele pro aniversário de um aninho da

Chapeuzinho Vermelho...

22. Professora: Interessante, gostei.... Então, ó....

23. Eros: Eu estou tirando isso da Malévola...

24. Professora: É?

25. Eros: Ahammm!!!

26. Professora: Então você misturou, então tudo bem!! Ó, o lobo é feiti.... Então vamos fazer

uma síntese...

27. Eros: Mas eu ainda não terminei, não terminei...

[...]

28. Eros: E aí a vovozinha é uma feiticeira, só que invés de ser malvada, é bonzinha, aí ela faz a

Chapeuzinho, com vários feitiços, faz a Chapeuzinho virar uma princesa, com poderes de fogo e

gelo...

29. Maria Clara: Ah, sempre pede fogo...

30. Professora: Nossa...

31. Eros: E aí ela.... Aí ela destrói...

32. Professora (interrompendo): Quem tem poder de fogo e gelo? A Frozen tem?

33. Eros: Não... A Elza tem poder de gelo e a Ana... E aí eu também tirei o poder de fogo do

Raio de Fogo, é raio de fogo? Lá do super jogos!

34. Professora: Tá, então aí entendi essa parte!

Page 113: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

113

35. Eros: Aí ela.... Ela tem também outro poder também de desfazer o feitiço.... Aí ela também

desfez o feitiço do lobo mau....

36. Professora: Então, mas aí vai ser no final isso, que ela vai conseguir desfazer...

37. Eros: É!

38. Professora: Porque no final assim que acaba, que desfaz o feitiço. Mas, espera aí, vamos

começar então a história. Carlos, o nosso conto de fadas vai começar com “Era uma vez”?

(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)

Com o convite da professora para criarem algo diferente, um dos meninos

começa a contar para a classe a história que havia imaginado - cuja ideias percebemos

que, na verdade, se realizavam à medida em que iam sendo enunciadas. Frente a essa

narrativa do aluno, recheada de feitiços, poderes, personagens bons versus os malvados,

podemos trazer para a discussão possíveis relações entre o real e o imaginário no

contexto de produção literária e, além disso, levantar alguns aspectos importantes acerca

da imaginação na criança.

Assim, um primeiro ponto que chama a atenção no narrar criativo do menino é a

sua fala ao explicar uma das sugestões para a história, quando ele diz “que nem

aconteceu com minha família, aquele dia....” (turno 19). Este comentário nos indica que

no processo de criação literária o imaginário mobiliza o real: o menino busca na própria

vida, naquilo que foi vivido, elementos para a história a ser construída, isto é, traz um

dado da realidade como um modo de contribuição e efetiva participação na criação.

Nesse sentido, entendemos aqui que a oportunidade de experienciar a criação literária

pode mobilizar a experiência vivida pela criança, dando possibilidade dela ser

(re)significada e reelaborada pelo sujeito, produzindo novos modos de compreensão

sobre certa situação vivenciada.

Na criação artística não existem fronteiras entre aquilo que é real e imaginário.

Na arte, estas duas instâncias se misturam, se entretecem, se (con)fundem.... Sofrem

influência recíproca uma da outra. E são essas as complexas relações entre arte e vida

que, de certa forma, também se revelam no fazer criativo das próprias crianças. Se a

arte, portanto, é uma produção humana voltada para a expressão dos sentimentos e

subjetividade do homem, se a literatura é uma das linguagens artísticas em que a vida

pode ser falada, colocada em palavras e, com isso, as nossas experiências e existência

(trans)formadas, os dizeres do menino no turno 19 mostram que sua própria vida

“entra” em cena e se (con)funde com a construção literária.

Page 114: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

114

Para sua criação, além de fazer referência a fatos da própria vida, como a

experiência de ter os pais separados, percebemos que o menino recombina estes

elementos com outros que foram retirados de filmes infantis. Portanto, afora os aspectos

de suas próprias vivências, na fala do aluno também observamos a presença marcante

das produções cinematográficas norte-americanas, muito conhecidas no universo

infantil, como quando diz, sem receio e preocupação, “Estou tirando isso da Malévola”

(turno 23) e ao incluir poderes de gelo à personagem, assim como a princesa de Frozen:

uma aventura congelante, cinema de sucesso entre a criançada. Nesse sentido, se nos

atentarmos para a história que foi inventada em voz alta pelo aluno, vemos que ele

reproduz muito daquilo que viveu, viu e ouviu, sendo sua narrativa oral eco dessas

experiências anteriores (VIGOTSKI, 2009).

De acordo com os pressupostos da perspectiva histórico-cultural, sabemos que

não se cria algo do nada, nem a imaginação emerge naturalmente na criança. Segundo

Vigotski (2009), os processos imaginativos e criativos são, na verdade, resultados da

participação ativa do ser humano na cultura. Desta forma, seguindo o caminho

apontado pelo teórico, entendemos que tais enunciados do menino transcritos

anteriormente revelam e indicam o repertório cultural dessa criança, remetendo ao

contexto sociocultural no qual ela está imersa.

Mesmo que diferentes histórias infantis tenham sido apresentadas e lidas para as

crianças, no momento de compor a produção literária, vemos que não somente elas

serviram de inspiração, mas toda a bagagem de vida do menino. Assim, diferente de

uma mera cópia do que já existe ou experimentou na realidade, na sua história o menino

reelabora criativamente as impressões vivenciadas, o que, para Vigotski (2009),

corresponde à atividade combinatória da imaginação. Conforme ele afirma:

Diante de nós, há uma situação criada pela criança. Todos os

elementos dessa situação, é claro, são conhecidos por ela de sua

experiência anterior, pois, do contrário, ela nem poderia criá-la. No

entanto, a combinação desses elementos já representa algo novo,

criado, próprio daquela criança, e não simplesmente alguma coisa que

reproduz o que ela teve a oportunidade de observar ou ver. É essa

capacidade de fazer uma construção de elementos, de combinar o

velho de novas maneiras, que constitui a base da criação (VIGOTSKI,

2009, p. 17).

Combinar, portanto, o velho e o já conhecido de outras maneiras: a história

original de Chapeuzinho Vermelho com as versões contemporâneas; misturar certos

acontecimentos da vida com enredos de filmes, animações e jogos infantis. Sabendo que

Page 115: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

115

a imaginação se constrói de materiais hauridos da realidade (VIGOTSKI, 2009), vemos

com isso a própria experiência de vida da criança tornar-se matéria-prima do seu texto

oralmente criado. Ou seja, o encontro com diferentes obras, aquilo que foi vivido e

sentido, configura a criação do menino e propicia a ele um novo modo de dizer sobre

elas.

Ainda dentro dos apontamentos de Vigotski (2009) a respeito da imaginação e

criação na infância, outro ponto que podemos destacar a partir da participação dessa

criança é o quanto diferentes processos psíquicos encontram-se integrados e articulados

no seu fazer criativo, tais como memória, imaginação, linguagem e emoção: o menino

toma como referência experiências anteriores, modificando-as e associando-as de um

modo diferente; graças ao domínio da linguagem, ele pode organizar e dar voz a essas

novas associações; e há, também, um enlace emocional/afetivo que orienta sua “volta”

às vivências, situações e leituras anteriores ao momento de produção do texto coletivo.

A experiência de despertar a criação literária na criança e promover situações

para que ela aconteça, além de possibilitar e ensinar um novo modo de se expressar

imaginativa e criativamente, também abre espaço para o diálogo em sala de aula. Ainda

que aqui o destaque tenha sido a participação de um aluno em específico, nos demais

momentos da atividade de produção coletiva podemos observar que há uma intensa

interação verbal entre os sujeitos que participam; diferentes vozes se colocavam no

movimento discursivo e criativo. Não há ali, portanto, um silenciar dos dizeres do outro:

a professora dá a palavra às crianças, que juntas, então, (re)criam, se expressam, se

empolgam, conversam e ocupam o lugar de escritoras75

.

Neste momento, queremos ressaltar o papel orientador da professora na

atividade. Participar de uma produção coletiva, independentemente do nível de ensino e

idade dos participantes, é um exercício que exige que cada um dos envolvidos se apoie

nas ideias do outro para, a partir daí, dar sua contribuição; ou seja, envolve (des)acordos

e negociações. Nesse sentido, a mediação do professor torna-se fundamental no

desenvolvimento do trabalho, seja para guiar, encorajar e sustentar a participação dos

alunos, como para mostrar os possíveis caminhos e modos de narrar e registrar as ideias.

Como vimos defendendo neste trabalho, ao se assumir a perspectiva vigotskiana

temos que a criação e a possibilidade de comover-se diante de um objeto estético, se

podem ser considerados como algo próprio do ser humano, como uma de suas marcas, é

75

Sobre isso, lembramo-nos dos escritos de Smolka (2012b), em que a autora defende a literatura e

escritura na sala de aula como processos discursivos.

Page 116: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

116

por sua vez também certo que não correspondem àquilo que está dado a priori, inato,

biologicamente garantido no homem ou, então, que sejam produzidos de maneira tão

instantânea e imediata. Afinal, como os escritos de Pino (2006) nos ajudam a refletir, o

sentido estético em desenvolvimento no sujeito

se trata de um “sentido” que tem que ser constituído no indivíduo

humano porque, embora esteja prenunciado na biogenética humana,

ele não acontece nem pela ação de qualquer mecanismo inato, nem

por obra da hereditariedade. Ele, como tudo o que é especificamente

humano, tem que ser objeto de formação, daí a sua relação com a

educação (PINO, 2006, p. 60, grifo nosso).

Por este motivo, gostaríamos de dar destaque ao modo de atuação da professora

na atividade. Durante todo o processo de criação coletiva ela buscava meio de insistir,

convocar e sustentar a participação das crianças. No trecho transcrito anteriormente, por

exemplo, no turno 18 ela chama a atenção de duas crianças para participarem da

produção. Porém, neste caso, percebemos que o seu “chamar a atenção” não é

simplesmente no sentido de repreensão, mas de reiteração do chamado à participação.

Isto é, trata-se de um “chamar a atenção” em duplo sentido: é um modo de convocar as

crianças para a atividade e, simultaneamente, fazer com que elas deixem de conversar e

se atentem às colocações do amigo. Assim, ao mesmo tempo que a professora vai

sustentando a criação literária de um dos meninos, ela procura manter a participação dos

outros alunos da sala – o que, vale lembrar, não é fácil de ser realizado no trabalho

pedagógico –, pois mesmo que os demais não falem, a escuta também é uma forma de

participação.

Os comentários de Vigotski (2009) sobre as experiências de Tolstoi (2013) com

crianças camponesas, narradas por este último em Quem deve aprender com quem, as

crianças camponesas conosco ou nós com as crianças camponesas?76

, nos ajudam a

refletir sobre a importância do adulto no processo de produção literária infantil. Para

tanto, cabe inicialmente apresentar um trecho da descrição do próprio Tolstoi (2013)

sobre o trabalho com a escrita e literatura que fora realizado com tais crianças.

Conforme ele narra,

[...] no começo, eu assumia alguns destes aspectos do trabalho, pouco

a pouco transferia-os todos para os alunos. Primeiro, eu escolhia para

76

TOLSTOI, L. Quem deve aprender a escrever com quem, as crianças camponesas conosco ou nós com

as crianças camponesas? In: GOMIDE, B. B. Antologia do pensamento crítico russo (1802-1901). 1 ed.

Tradução: Cecília Rosas e outros. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 337-364.

Page 117: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

117

eles, entre as ideias e imagens surgidas, aquelas que pareciam-me

melhores, recordava-as e indicava o lugar onde estavam, corrigia o

texto, impedindo que se repetissem, escrevia eu mesmo, deixando

apenas que expressassem as imagens e as ideias em palavras; depois,

deixava que eles mesmos escolhessem; então, deixava que eles

próprios lidassem com o texto e, finalmente, como ocorreu com a

criação de “A vida da mulher do soldado”, eles assumiam também o

processo de escrita (TOLSTOI, 2013, p. 364).

Ao comentar a experiência desse grande escritor russo, compartilhando outros

trechos de seu relato, Vigotski (2009) posiciona-se contrário às considerações e

conclusões a que este autor chegou, por ele ter colocado ênfase na criação espontânea

das crianças e apresentar uma visão idealizadora da infância. Seguindo as colocações de

Vigotski (2009), vemos que os apontamentos de Tolstoi (2013) não ressaltam o papel

fundamental que ele assumiu como professor-mediador ao se colocar como leitor e

escriba na atividade coletiva, orientando a produção das crianças e ensinando-as o

laborioso processo de criação literária - como a descrição do próprio escritor, destacada

anteriormente, nos indica.

Para Vigotski (2009),

[...] o que Tolstoi fez com as crianças camponesas não pode ser

denominado de outra maneira que não educação da criação literária.

Ele despertou nelas uma forma de expressão de sua experiência e de

sua relação com o mundo que lhes era completamente desconhecida.

Junto com as crianças, ele construiu, compôs, combinou, contagiou-

as com sua preocupação, forneceu-lhes um tema, ou seja, guiou, de

um modo geral, todo o processo de criação das crianças, mostrou-

lhes procedimentos de criação etc. E é isso que é educação, no sentido

preciso dessa palavra (VIGOTSKI, 2009, p. 72, grifo nosso).

Portanto, o que Vigotski evidencia no processo de criação literária das crianças é

justamente aquilo que Tolstoi (2013) deixa de lado em seu artigo, isto é, “o delicado

movimento do professor, que apresenta, expõe, sugere e sustenta formas de produção e

elaboração conjunta das crianças, provocando-as e orientando-as”77

, o que deve integrar

todo e qualquer trabalho pedagógico.

A leitura dos escritos e ponderações de Vigotski (2009) sobre o trabalho de

Tolstoi contribuíram para que pudéssemos esclarecer o modo de participação da

professora que acompanhamos na atividade, uma vez que, no desenvolvimento do

trabalho, foi motivo de questionamentos pela pesquisadora. Durante a produção

conjunta das crianças houve vários momentos em que a professora propunha algo para

77

Esta citação refere-se ao comentário de Ana Luiza Smolka na página 71 do livro de Vigotski (2009).

Page 118: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

118

elas, seja reformulando a ideia inicial de algum aluno, como também dando ela mesma a

sugestão para a história. Entretanto, se à época do registro dessa situação em sala de

aula considerávamos que esta intervenção atrapalhava e até mesmo impedia a livre

criação das crianças, hoje interpretamos este modo de atuação de uma outra forma. Na

transcrição abaixo podemos ver um desses momentos:

39. Professora: Ô, pessoal. Eu vou ouvir o Douglas agora e para isso, Wellington, todos têm

que estar em silêncio para ouvi-lo também!! Um, dois, três!! Pode falar!

40. Douglas: Aí a Chapeuzinho Vermelho convida o lobo pra dormir na casa dela...

41. Professora: Ah, a Chapeuzinho Vermelho convidou o lobo pra dormir na casa dela? Só se a

Chapeuzinho Vermelho, então... Como ela ia chamar o lobo? Ela tinha que ser grande, né? Não

pode ser bebê. Pode?

42. Crianças (em coro): Não!!!

43. Wellington: Se não o lobo ia devorar ela!

44. Professora: Só que tem uma coisa: se ela soubesse que o lobo era mau, ela ia convidar ele

pra dormir na casa dela?

45. Crianças: Não!

46. Professora: Então, só se ela não soubesse que ele era mau! Né, Daniele?

47. Eros: Que nem na Malévola!!

48. Professora: E outra: e só se ela fizesse escondido da mamãe.... Porque a mamãe parece que

não gostava muito do lobo! Porque ela não convidou ele pra festa! Então a gente pode dizer que

“sem que a mamãe soubesse, a Chapeuzinho convidou o lobo para a festa ou para dormir na

casa dela”? O que que vocês acham, pessoal??

49. Wellington: Sim!

50. Professora: Pessoal, o Douglas sugeriu que a Chapeuzinho Vermelho... (chamando

atenção) Ana Clara... (retomando) Convidasse o lobo para ir na casa dela dormir.... Só que ela

só pode fazer isso se ela não souber que ele é mau.... Né? Ela não pode saber que o lobo é mau!

Só que eu acho que a mamãe sabe, então ela tem que chamar escondido da mamãe... O que que

vocês acham?

51. Wellington: Sim!!

52. Eros: Sim!!

53. Professora: Mas fica legal a história, o que que vocês acham da ideia do Douglas?

54. Emerson: Sim!!

55. Wellington: Sim!!

56. Professora: Acho que fica bom, né Dani?

57. Eros: Sim!! Porque fica igual da Malévola!! Fica igual da Malévola!

58. Professora: Fica parecido?

59. Eros: É! Aham! Porque a Aurora não sabia que a Malévola, que era malvada. Não sabia que

a Malévola que fez o feitiço.... Não sabia que a Malévola era malvada, então vai encaixar

certinho na minha história!

60. Professora: Olha aí que bom! Então, Douglas, sua ideia encaixou certinho na história!

(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)

Neste trecho notamos que a professora, a partir do que o menino sugeriu para a

história, complementa e reformula a contribuição que foi dada, numa tentativa de

manter a coesão entre os acontecimentos que vinham sendo criados pelas crianças.

Contudo, ao contrário de uma interferência que limita e anula a participação, vemos que

Page 119: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

119

a professora, ao lançar a ideia para a classe, procurava conversar, indagar e ficar aberta

para ouvir as sugestões dos alunos, mostrando e explicando para eles a necessidade de

dar uniformidade e harmonia aos fatos da história - tendo em vista que isto é algo que

precisa ser explicitado e apontado, uma vez que não é óbvio para a criança.

Por isso, partindo das afirmativas de Vigotski (2009) sobre as ações do Tolstoi

educador, interpretamos que tal atitude da professora consiste naquilo que levantamos

anteriormente: na preocupação de guiar a atividade, fazer junto com as crianças, de

mostrar a elas como se faz e se constrói uma história, em ser o adulto que provoca,

encoraja e instiga o processo criativo. Nesse sentido, podemos dizer que a professora

atua na zona de desenvolvimento proximal78

, uma vez que é pela mediação e

colaboração da professora (e também entre os próprios alunos) que o trabalho tornou

possível de ser realizado pelas crianças.

Dito de outro modo, podemos resumir o que até aqui analisamos e comentamos

evidenciando “o papel fundamental da educação e das relações de ensino na apropriação

e produção de novas formas de vida e atividade” (SMOLKA, 2009, p. 7), isto é,

indicando como um trabalho pedagógico preocupado e orientado para o

desenvolvimento do sentido estético e para as possibilidades de criação humana pode

ensinar e inspirar a criança a colocar a vida, os pensamentos e os sentimentos em

palavras, e a dar a ela a oportunidade de inventar, por meio da escrita, outras realidades.

Como tão bem esclarece Vigotski (2009),

a criação infantil está para a criação dos adultos assim como a

brincadeira para a vida [...] Isso, é claro, não significa que a criação

infantil apenas surja, espontaneamente, dos impulsos internos das

próprias crianças [...] A criação literária infantil pode ser estimulada

e direcionada externamente e deve ser avaliada do ponto de vista do

significado objetivo que tem para o desenvolvimento e educação da

criança. Da mesma forma que ajudamos as crianças a organizar suas

brincadeiras, que escolhemos e orientamos sua atividade de brincar,

podemos também estimular e direcionar sua reação criadora [...] O

melhor estímulo para a criação infantil é uma organização da vida e

do ambiente das crianças que permita gerar necessidades e

possibilidades para tal (VIGOTSKI, 2009, p. 90-92, grifo nosso).

78

Sem entrar aqui nas discussões sobre a tradução deste conceito realizadas por Prestes (2012), que

considera que o correto é “zona de desenvolvimento iminente”. Independente das questões

terminológicas, temos que este conceito “é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se

costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento

potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração

com companheiros mais capazes” (VIGOTSKI, 2007, p. 97).

Page 120: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

120

Diante desta afirmação do autor, compreendemos que a questão está em dar

condições, possibilidades e espaços para que tais “reações criadoras” – dizemos hoje:

participação criadora - das crianças aconteçam em sala de aula, de modo que elas se

sintam convidadas a se expressarem por meio da palavra, seja escrita, falada ou

encenada. Outrossim, vale ressaltar que outra instância de criação e participação na

produção do livro proporcionada às crianças foi a proposta de ilustração desta narrativa,

que foi desenvolvida posteriormente com os alunos.

Organizadas em duplas, após a criação do texto escrito as crianças puderam

representar por meio do desenho os trechos da história. Para isso a professora fazia a

leitura da parte que cada um seria responsável por desenhar e os alunos ficavam

completamente livres para criarem (os resultados podem ser vistos no ANEXO 3).

Como neste dia a pesquisadora auxiliou a professora e os grupos de crianças na

atividade e a câmera filmadora acabou ficando esquecida em um posicionamento ruim,

não foi possível recuperar os diálogos e as movimentações durante o processo de

ilustração. Apesar disto, julgamos importante realçar a proposta de ilustrar o enredo

porque entendemos que ela representa um outro modo de participação no processo

criativo, tornando-se uma possibilidade de “entrada” das crianças no texto,

principalmente para aquelas que durante o processo de construção da história ficaram

mais em silêncio.

Se até aqui tratamos da produção feita em conjunto com a classe, com a

professora mediando as interações, agora passaremos a analisar a elaboração feita por

um dos meninos que decidiu criar e escrever, sozinho, sua própria história, em momento

posterior. Assumindo a abordagem vigotskiana, vemos na criação deste menino o

ressoar de muitas vozes e discursos. Sua produção individual evidencia, mais uma vez,

como a criança vai se apropriando, incorporando, tornando seus, os modos sociais de

conhecer, pensar, agir, sentir, elaborar conhecimento. Para tal afirmativa, encontramos

sustentação e inspiração em um trecho de Vigotski (1999b), quando o autor afirma que

a arte é o social em nós, e, se o seu efeito processa em um indivíduo

isolado, isto não significa, de maneira nenhuma, que as suas raízes e

essência sejam individuais. É muito ingênuo interpretar o social

apenas como coletivo, como existência de uma multiplicidade de

pessoas. O social existe até onde há apenas um homem e suas

emoções pessoais (VIGOTSKI, 1999b, p. 315, grifo nosso).

Dito isto, nos ocuparemos, ainda, do modo como o trabalho com a literatura

repercute e ressoa nessa criança. Para tanto, o foco analítico é colocado no menino

Page 121: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

121

Wellington que, quase como o Fiedka79

de Tolstoi (2013), durante a produção coletiva

queria ser o único a falar. A participação dele era tão intensa que, em um dos momentos

da atividade, a professora teve até que pedir e explicar ao menino que as outras crianças

também precisavam ser ouvidas.

Foi diante da impossibilidade de poder compartilhar o desfecho que havia

pensado para a história, ao final do primeiro dia da produção coletiva, que Wellington

decide escrever a sua própria versão. Como nesse dia após o intervalo as crianças

tinham o período livre para se divertirem com os brinquedos que haviam trazido de

casa, o menino aproveitou esse momento para criar uma nova história. Essa informação

torna-se para nós um detalhe interessante, porque poderíamos indagar sobre o

significado desse gesto do menino que escolhe escrever ao invés de brincar, tendo em

vista que esta era uma hora tão esperada na semana pelos alunos.

Assim, enquanto os colegas conversavam entre eles e corriam pela sala com os

seus brinquedos, Wellington colocou-se em sua carteira e, sobre um papel branco de um

caderno de desenhos, dedicou-se à escrita do texto. Concentrado na tarefa, em pouco

tempo80

o menino levantou e entregou à pesquisadora sua produção que,

posteriormente, ganhou o título de “Chapeuzinho Rosa e a floresta encantada”.

79

Fiedka é um dos meninos citados por Tolstoi (2013) que, junto com Siomka, se destacou entre as outras

crianças que participaram do processo de criação. 80

Isso nos faz lembrar da seguinte passagem de Vigotski (2009): “a criança raramente trabalha em sua

obra por longo tempo; na maioria das vezes, ela cria a obra numa sentada. Sua criação lembra, nesse caso,

a brincadeira que surge de uma forte necessidade e permite, quase sempre, uma descarga rápida e

completa dos sentimentos que dominam a criança (VIGOTSKI, 2009, p. 93).

Page 122: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

122

Imagem 7 - Produção textual do aluno81

Não cabe aqui fazer avaliações do texto do menino, nem mesmo adjetivar sua

produção, pois entendemos que o valor dessa criação está no processo de sua realização,

compreendendo como Góes e Smolka (1992) que

o processo de produzir o texto não começa e termina com as primeiras

e últimas palavras registradas. A situação que desencadeia a atividade

já começa a prefigurar o texto, pois caracteriza seus propósitos e

destinação e antecipa as possibilidades de repercussão (GÓES e

SMOLKA, 1992, p. 62).

Em outras palavras, aqui importa bem mais os caminhos que levaram o menino a

sentir o desejo de concretizar sua criação, bem como o que ela pode significar em

termos de formação e desenvolvimento do sentido estético, como também com relação à

elaboração do conhecimento, em que vemos emergir a dimensão artística, imaginária,

lúdica e simbólica da linguagem. Tendo isto em vista, é a partir desta perspectiva que

gostaríamos de fazer alguns comentários analíticos sobre o trabalho deste aluno.

81

“Era uma vez uma menina que se chamava Chapeuzinho Rosa. Ela era muito alegre e muito animada.

Um dia a mamãe dela pediu para ela levar um xarope e um suco e um bolo porque a vovó estava doente.

A Chapeuzinho respondeu: “Claro mamãe, eu vou”; “Mas cuidado pelo caminho”; “Tudo bem”. Pelo

caminho Chapeuzinho Vermelho viu uma floresta encantada. Ela achou uma casa feita com doces e balas

e chocolate. Quando o Lobo ouviu três batidas, ele se disfarçou de fada e abriu a porta e pediu para entrar.

Tirou a fantasia de fada e falou para a Chapeuzinho Rosa “Eu vou te comer”. A Chapeuzinho Rosa sem

demora pulou pela janela e correu para a casa da avó e chegou e trancou tudo. E falou “Vovó, o Lobo está

aqui”. Quando o Lobo arrombou a porta, uma fada entrou e jogou o lobo no rio”.

Page 123: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

123

A começar pela situação desencadeadora do texto (GÓES e SMOLKA, 1992, p.

62), destacamos que ela se configura a partir das experiências com leituras literárias que

foram compartilhadas com os alunos das diferentes versões do conto infantil. Todavia,

poderíamos supor que caso não houvesse o convite da professora e pesquisadora para as

crianças se aventurarem na criação da história conjunta, isto é, sem uma proposta

provocadora do trabalho de escritura e autoria coletiva, talvez este ímpeto criativo do

menino não teria se manifestado, ou se evidenciado neste momento.

Sobre o conteúdo dessa produção, notamos que recria e reformula a trama do

Chapeuzinho Vermelho e ainda mistura com elementos de outro conto infantil, o João e

Maria. Percebemos, assim, que é na interação com diferentes livros e suas narrativas

que as crianças vão pouco a pouco aprendendo e se apropriando de novos modos de

dizer, escrever, sentir e pensar o mundo, servindo de material para suas novas

(re)criações. Como Góes e Smolka (1992) esclarecem, mesmo aquela produção que é

feita de forma espontânea pela criança não é inteiramente autônoma, pois

o como e o que a criança enuncia de modo espontâneo podem estar

apoiados no dizer de outros. Ao escrever histórias de medo, a criança

evoca cenários, características e ações típicas de dráculas, fantasmas,

bruxas ou sacis, incorporando outros discursos. Trata-se, porém, de

uma incorporação que implica iniciativa do sujeito e re-criação

(GÓES e SMOLKA, 1992, p. 62, grifo nosso).

Ao incorporar os discursos de outros contextos e enredos, o menino vai

compondo a sua própria história. Assim, vemos que em seu texto ele evoca fadas, a casa

de balas e doces, o Lobo, a Vovó e Chapeuzinho Vermelho, recombinando estas

personagens e cenários na sua produção. Nesse sentido, é preciso destacar que o

exercício da escrita pela criança não deve ser visto como algo puramente mecânico,

dependente apenas de uma habilidade motora para ser realizado, pois trata-se na

verdade de uma atividade cultural complexa (VIGOTSKI, 2007) que implica não

somente o domínio da técnica, mas apropriação daquelas funções psíquicas humanas

que caracterizam a criação pela palavra.

Levando em consideração toda essa complexidade, é comum que apareça a

incompletude de enunciados nas primeiras produções infantis, que “é uma decorrência

típica das exigências de coordenação do fluxo de pensamento, enquanto discurso

interior, com a organização de discurso comunicativo e com as operações de registro

deste” (GÓES e SMOLKA, 1992, p. 58). Como exemplo dessa incompletude, no texto

que apresentamos anteriormente temos um trecho em que a criança escreve “um dia a

Page 124: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

124

mamãe dela pediu para ela levar um charope [sic] e um suco e um bolo porque a vovó | |

Chapeuzinho respondel [sic] claro mamãe”. Nesta passagem, nota-se que o menino

omitiu a frase |estava doente|, algo que depois de passar todo o texto à caneta, ele

mesmo percebe e comenta o esquecimento com a pesquisadora. Destas conversas

durante sua produção escrita, Wellington demonstra estar completamente envolvido

com a atividade e faz algumas colocações interessantes, que merecem destaque e

análises especiais.

Em certo momento de sua escrita, por exemplo, com um tom sério o menino diz

à pesquisadora “Agora eu já sei como que é a vida de um escritor!!” (Trecho vídeo-

gravação em 23/10/2015). Apesar de breve no seu comentário, a fala do garoto

condensa questões importantes. Primeiramente, leva-nos a indagar sobre o possível

significado que as atividades e vivências literárias tiveram para estas crianças. Quando o

menino enuncia saber sobre a vida do escritor, o que se abre para análise? Pelos seus

dizeres, vemos que ele se coloca, se assume como um deles. Portanto, vê-se que a

participação na produção literária o permitiu viver, sentir(-se), ser.... (como) um

escritor!

Ademais, sua fala também mobiliza questionamentos importantes sobre o

sentido que a escrita adquire para este aluno e o que significa em termos do seu ensino

às crianças, indicando a relevância destes espaços de elaboração coletiva e individual no

processo de alfabetização, pois permitem que os alunos possam incorporar e vivenciar o

papel social de escritor (SMOLKA, 2012b).

Nos dois momentos que foram aqui discutidos e apresentados, isto é, da

produção coletiva, em que as personagens de diferentes histórias acabam formando um

todo sincrético, e da produção individual, que caracteriza um modo de singularização

dessa prática, as crianças são convocadas a se tornarem escritoras. Ou seja, a partir de

uma proposta de atividade que não surgiu de um tema que foi imposto ou colocado de

modo artificial e mecânico aos alunos, tanto em uma como na outra situação de

produção, as crianças assumem a autoria do texto escrito.

61. Wellington: Prô! Eu vou ser um escritor bem famoso!

62. Pesquisadora: Ah, é?

63. Wellington: Às vezes eu não vou nem fazer a história da Chapeuzinho Vermelho! Vou

inventar uma!!

64. Pesquisadora: Vai inventar uma nova história?

65. Wellington: É! Sem ser da Chapeuzinho Vermelho!

66. Pesquisadora: É! Podem ser outras!

[...]

Page 125: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

125

67. Wellington: Meu caderno de desenho vai ser um livro!!

68. Pesquisadora: Ah! Que legal, boa ideia! Aí você sempre escreve uma história diferente!

69. Wellington (empolgado): Toda vez! Toda vez! Aí quando acabar o meu caderno, eu vou

comprar outro!

70. Pesquisadora: Isso! Aí vai ficar um caderno cheio de histórias diferentes!

71. Wellington: É! Aí eu vou ser famoso mesmo! Eu posso até contar.... Eu posso até ser um....

Éééé.... Eu vou.... Posso até ser um professor que lê histórias!

72. Pesquisadora: É verdade!! Aí você vai ler suas histórias?? Você vai ser um professor que lê

histórias??

73. Wellington: É! Que nem você!!!

(Trecho vídeo-gravação, 23/10/2015)

Colocar-se no lugar de escritor; experimentar ser autor de sua própria história;

empolgar-se com tal ideia e empreitada (e ainda imaginar-se famoso com isso) …. Ao

se estimular, promover e proporcionar as condições em sala de aula para que a criança

possa se expressar pela palavra escrita, dando voz, visibilidade e protagonismo às suas

criações, vemos o quanto ela se sente encantada e envolvida com tal possibilidade.

Toda a fala do menino na transcrição anterior é para nós indício da construção,

da possibilidade de desenvolvimento do sentido estético na criança, que se abre e se

projeta para o futuro. Desta forma, podemos argumentar que foi a leitura dos diferentes

livros, a proposta de produção coletiva e a convocação e mediação da professora na

atividade que possibilitaram ao aluno tornar-se autor de sua própria história e dizer tudo

o que diz. Pensemos, então, nos possíveis efeitos e repercussões que a criação literária

pode ter na elaboração do sentido estético, sobre o modo como essas propostas

reverberam na dimensão subjetiva, assim como no processo inicial de aquisição da

linguagem escrita.

Se nos detivermos nas duas produções das crianças (coletiva e individual),

vemos que ambas representam a materialização da imaginação – ou, para dizer nas

palavras de Vigotski (2009), a imaginação cristalizada -, que foram sendo possíveis

pelas leituras a elas propiciadas. Assim, vemos que tais criações literárias expressam o

olhar das crianças ao que foi experienciado e significado das rodas de leitura, como

também se mostram mediadas por outros elementos, como o cinema, os jogos etc.,

afinal “ [...] criar não é algo acidental mas demarcado historicamente. Toda atividade

criadora parte da experiência, ou melhor, da forma como se percebe internamente e

externamente o mundo, a partir dos processos de significação” (SAWAIA e SILVA,

2015, p. 253).

Page 126: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

126

Partindo do princípio social vigotskiano, temos o pressuposto de que sem o

outro que indique, explicite, provoque, aponte e encoraje a leitura e escritura literária

das crianças, sozinhas elas não podem participar desse conhecimento. Por isso, é

preciso educar a criação infantil e a percepção da obra de arte (VIGOTSKI, 2010, p.

346), propiciando vivências e experiências - estéticas - diversas para que os sujeitos

participem e se apropriem desse saber cultural. Nesse sentido, reiteremos aqui a

importância da mediação do adulto: a via de acesso à literatura, leitura e escritura passa

por esse outro - neste caso, pela professora e pesquisadora - que se coloca no lugar de

leitor e escriba no fazer criativo.

Se, como descreve Pino (2006), o sentido estético deve ser objeto da educação,

podemos interpretar todo esse trabalho com leitura da literatura e produção literária

como sendo lócus de formação e desenvolvimento deste sentido, ao sensibilizar e

despertar nas crianças a percepção para a dimensão estética da vida humana, e ensiná-

las os procedimentos, recursos e instrumentos necessários para isto82

. Assim, a partir

das situações que foram analisadas neste e nos demais capítulos, compreendemos que a

literatura viabiliza a criação do sentido estético na criança.

Na perspectiva histórico-cultural em que se situa a presente dissertação, a

questão da elaboração do sentido estético por meio da literatura ainda remete e revela a

centralidade que a escola tem nesse processo. Entendemos que tal instituição deve ser

lugar de vivência estética pela criança e, consequentemente, de formação do sentido

estético. Como já tivemos oportunidade de afirmar, ninguém nasce pronto e

biologicamente disposto à criação, nem mesmo capaz de se emocionar com ela.

Portanto, tais capacidades humanas não são, evidentemente, obras do acaso, mas

resultado de um trabalho intencional e educativo de “constituição humana de Homem”

(PINO, 2006, p. 49).

Pensando desta forma, para finalizar, devemos ressaltar que um trabalho

pedagógico preocupado com um fazer diferente, pode fazer diferença no processo de

ensino e aprendizagem da linguagem escrita pelas crianças, bem como no seu

desenvolvimento como um todo. É possível (e, até mesmo, desejável) articular e

orientar o trabalho educativo para a experiência estética da criança, seja enquanto autora

da obra como quanto espectadora, incentivando “ [...] a capacidade humana criativa e,

82

Vale relembrar que ao final de todo esse percurso de produção, a história que fora inventada ganhou

materialidade em um livro organizado pela pesquisadora, o qual foi impresso e entregue para cada uma

das crianças.

Page 127: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

127

também, transgressora das crianças” (SAWAIA e NUNES, 2015, p. 356). Entretanto,

práticas escolares que levem em conta tais experiências pressupõem outra dinâmica na

sala de aula, a qual o professor e todos os envolvidos devem estar abertos.

Se quando inserida na escola a literatura é considerada, muitas vezes, como um

dos conteúdos escolares – modo de aquisição de certo tipo de conhecimento –

arriscamos, nestas linhas finais, propor a inversão desta concepção. Assim, ao contrário,

esperamos que os conteúdos escolares possam ser vividos como obra de arte83

. Talvez,

desta forma, viveríamos aquilo que Vigotski anuncia em seu trabalho sobre educação

estética, ao indicar aos seus leitores que o esforço artístico deve estar presente em cada

movimento e palavra da criança, realizando uma elaboração criadora da realidade,

que consiste em promover simples vivências cotidianas ao nível das vivências criadoras

(VIGOTSKI, 2010).

83

Contribuição da professora Ana Luiza Smolka durante a banca de qualificação.

Page 128: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

128

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O certo é que é preciso disseminar não apenas o que seja ‘racional, bom,

eterno’, mas também cuidar de algum modo do que é divertido, semanal, fascinante.

Salgue para a criança a fatia, que está insossa e seca, com o sal do riso e da lágrima,

com o sal do teatro.

Sobre o teatro infantil84

, Lev S. Vigotski

A passagem acima, retirada de uma das críticas publicadas por Vigotski em

jornais russos da época - até então inéditas por não estarem traduzidas para o português

- evidencia a paixão deste teórico pelo teatro, pela arte, o que vem a marcar toda a sua

obra, e indica a preocupação do autor em tornar as experiências artísticas presentes na

vida da criança85

. Parafraseando tal trecho, aproximando-o do que aqui neste trabalho

foi objeto de investigação, poderíamos sair em defesa do “gosto/sabor” que a literatura

dá à existência humana cotidiana e, dessa forma, as infinitas possibilidades que a leitura

e produção literária abre na vida da criança.

Foi partindo das inquietações do Vigotski artista e educador, sobretudo aquelas

elaboradas no capítulo “A educação estética”, que ao longo desta dissertação

procuramos compreender e discutir como o trabalho com a leitura da literatura e criação

literária são importantes no processo de educação das crianças e quais são suas

implicações na formação humana. Por isso, em tempo, é preciso destacar: nesta escrita

assumimos a literatura como obra de arte.

Analisar a dimensão estética na obra de Vigotski, no diálogo com as

experiências de leitura proporcionadas às crianças de um primeiro ano do Ensino

Fundamental, nos colocou diante de questões difíceis. Talvez, em razão disto, mais do

que respostas, tantas outras perguntas foram suscitadas no desenrolar deste trabalho.

Tentaremos aqui reunir alguns pontos e argumentos que durante a dissertação foram

sendo levantados, para traçar, ao menos nos limites destas folhas, algumas

considerações finais em torno destes assuntos.

84

In: MARQUES, P. N. O Vygótski incógnito: escritos sobre arte (1915 – 1926). Tese (Doutorado em

Literatura) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo,

2015, p. 279. 85

Ao interpretar o excerto, Marques (2015) comenta que “[...] Vigotski, ao encerrar o artigo, se opõe à

imagem da arte infantil como algo ‘açucarado’ e convida o adulto a ‘salgar’ a experiência da criança [...]

Ao experienciar o teatro, a criança deve rir e chorar, deve ter a chance de vestir ambas as máscaras do

drama” (p. 132).

Page 129: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

129

Com o objetivo de problematizar e apurar conceitualmente os diferentes termos

trazidos por Vigotski sobre a questão estética, na análise do capítulo que trata deste

tema em Psicologia Pedagógica, uma leitura crítica de suas ideias foi realizada no

sentido de colocar em perspectiva o que está anunciado neste que é um dos seus

primeiros trabalhos.

Assim, com o propósito de mostrar a dificuldade conceitual que perpassa “A

educação estética”, na primeira parte da dissertação situamos tal texto no contexto

teórico da época em que foi produzido, momento em que Vigotski tem um diálogo mais

próximo dos autores da reflexologia, reactologia, entre outros. Este foi o ponto de

partida do presente estudo por entendermos que para compreender os argumentos,

propostas e conceitos que envolvem tal obra, não se deve perder de vista o período

histórico no qual ela se encontra circunscrita.

A complexa questão entre arte e vida, a busca pelo entendimento do que a

literatura, e outras linguagens artísticas, provoca no homem, bem como o que é e do que

se trata a educação estética para a criança, são aspectos enfrentados pelo autor a partir

das discussões teóricas que circulavam na época, os quais não foram retomados em

outros trabalhos a posteriori. Nesse sentido, diante do cenário científico no campo da

psicologia no período em que Psicologia Pedagógica foi escrita, nos questionamos

quanto à pertinência do termo reação estética (conceito principal em seus trabalhos

sobre esta temática) nas discussões atuais que tratam da dimensão estética humana. Isto

porque, como salientamos, empreendemos a leitura dos textos de 1925 tendo em vista

tudo o que o autor produziu depois, quando outros conceitos passam a ganhar relevância

em sua obra.

Portanto, como procuramos demonstrar neste trabalho, a “suspeita” quanto ao

uso do conceito de reação se dá por ele ser tão marcado historicamente. O termo, hoje,

carrega um sentido muito amarrado à noção de mera resposta orgânica do indivíduo, em

que pode se esvair o processo interno de elaboração e significação do próprio sujeito,

fato que desloca todo o fio argumentativo do princípio histórico-cultural, desenvolvido

por Vigotski posteriormente.

Contudo, como sinalizamos, mesmo que reação estética seja o conceito principal

do livro, no interior de seu escrito há uma coexistência de outros termos: vivência

estética, experiência estética, emoção estética... E aqui se abriu para nós um novo

campo investigativo, que ultrapassou os limites desta pesquisa: Quais destes conceitos

exprimem melhor os efeitos e afetos causados pela arte, sobretudo quando se trata de

Page 130: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

130

crianças? Como nomear o impacto e o modo como a obra de arte nelas repercutem?

Quais destes termos é consistente e profícuo para abordar a questão estética?

Como se vê, esboçou-se neste trabalho a teia de uma investigação futura. Há

ainda muitas questões que se colocam para a continuidade. Mas, neste momento, por

exemplo, uma sugestão que já vemos como uma possibilidade a ser perseguida é o

mapeamento dos momentos em que aparecem o conceito de reação nos trabalhos de

Vigotski e, também, o conceito de vivência, para tentar observar e compreender as

possíveis mudanças terminológicas e conceituais em seus escritos. Além disso,

compreendemos que as contribuições de Pino (2006; 2007), ao propor a noção de

“sentido estético”, as quais também foram aqui apresentadas, podem ser um caminho

fértil a ser percorrido nestas elaborações futuras.

Se o presente trabalho teve uma ênfase teórica, com o objetivo de tecer um

refinamento conceitual do texto de Vigotski (lembrando, é claro, que foram apenas os

primeiros passos deste percurso), vale ressaltar que a análise do material empírico que

fora desenvolvido à luz desse referencial não buscou se constituir numa mera

“aplicabilidade” dos conceitos trazidos pelo teórico, muito menos tinha pretensão de

responder a todas as questões terminológicas encaminhadas. Sobre este último ponto,

entendemos que demandaria um aprofundamento teórico muito além do que poderíamos

neste momento. Mas, estando no fechamento da dissertação, vale a pena levantar e

registrar algumas das indagações que atravessaram o trabalho: como o material

empírico reunido pode ajudar a entender e problematizar as diferentes terminologias a

respeito da dimensão estética? Ao olharmos para o registro da situação de leitura

literária para as crianças, é possível interpretar e nomear o que está acontecendo? Trata-

se, de fato, de uma reação? Experiência? Vivência? Produção de sentido estético? Como

denominar e conceituar? O que a dramatização do menino, a inquietude dos outros

alunos frente à narrativa e a produção literária individual de uma criança podem dizer

sobre estes aspectos? É em vista disso que, em estudos futuros, vemos a necessidade de

se colocar o teórico e o empírico em movimento, numa tentativa de avançar

conceitualmente nestes assuntos complexos.

Entretanto, ousamos aqui já indicar alguns aspectos que conseguimos enxergar

como indícios dessas questões – mas, evidentemente, relevando de antemão a

provisoriedade desta tentativa. Entendemos que os diferentes modos de participação das

crianças na leitura literária constituem-se em elementos que podem ser tomados como

indicativos desse trabalho de educação estética e formação do sentido estético: o menino

Page 131: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

131

que de “leitor-ouvinte” passa a representar e interpretar as personagens, e o outro que se

coloca como escritor de uma nova história, mostram que este exercício de se deslocar de

lugar, isto é, daquele que lê/ouve histórias para aquele que encena e escreve sua própria

história, faz da participação destas crianças uma participação criadora e criativa.

Vemos, portanto, que o trabalho com a literatura mobiliza novas criações e emoções nas

crianças.

No mais, é importante ressaltar que compreendemos que a análise do trabalho de

Vigotski sobre educação estética deve se respaldar nos princípios da natureza social do

desenvolvimento humano, por sustentar os argumentos que o autor apresenta a respeito

da temática. Como destaquei, ao longo da dissertação, a possibilidade de o ser humano

criar um objeto estético e se emocionar diante de uma obra de arte é resultado da

constituição humana do homem (PINO, 2006), fruto da imersão do sujeito na cultura.

Por isso, pensar em tais questões implica considerar o protagonismo da escola no

processo de educação estética: a sensibilização das crianças para o que é estético na vida

humana, releva e revela a importância do insistente, incansável e infindável trabalho

educativo.... Que é intencional, compromisso social de uma geração com a outra, e

forjado a cada instante, gesto, palavra e olhar. Desta forma, deve-se ter clareza de que

não se trata aqui de propostas grandiosas e distintas, que fujam e escapem do que pode

ser realizável no cotidiano escolar. Na verdade, como vimos, são simples atitudes e

ações educativas que nos levam em direção à educação estética.

Tendo isto em vista, defendemos que a escola deve se tornar lugar de vivência

estética e formação do sentido estético pela criança, afinal, como escreve Vigotski

(2010),

[...] uma obra de arte vivenciada pode efetivamente ampliar nossa

concepção de algum campo de fenômenos, levar-nos a ver esse campo

com novos olhos, a generalizar e unificar fatos amiúde inteiramente

dispersos. É que, como qualquer vivência intensa, a vivência estética

cria uma atitude muito sensível para atos posteriores e, evidentemente,

nunca passa sem deixar vestígios para o nosso comportamento

(VIGOTSKI, 2010, p. 342).

Ademais, por tudo que desenvolvemos em termos analíticos, também

entendemos que o professor pode contribuir para a elaboração do sentido estético e para

manifestação do ato criador da criança. Torna-se fundamental, portanto, criar as

condições, abrir espaços e ampliar as possibilidades para a criação. Seguindo os

apontamentos de Pino (2007), compreendemos que o sentido estético apenas surge

Page 132: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

132

quando a arte encontra quem a contemple, pois este “[...] só emerge no encontro de

alguém (sujeito) com alguém (outro sujeito) ou com algo (objeto) ” (PINO, 2007, p.

115).

Na análise do material empírico, dividida em dois capítulos na segunda parte

deste trabalho, ao procurarmos indícios do envolvimento da criança com a literatura e

da possível elaboração do sentido estético, deparamo-nos com modos diferenciados de

participação na narrativa literária. Assim, o dramatizar, os gestos, as expressões, os

movimentos, as palavras e os olhares, bem como a produção literária coletiva e a

criação individual, indicaram diferentes modos de apropriação da história e os sentidos

que foram sendo produzidos pelas crianças – apesar da dificuldade de se falar quais são

os sentidos produzidos na leitura da literatura, por estes serem sempre múltiplos,

assumimos que o contato e vivência com a obra arte faz sentido, de alguma forma, para

as crianças, mesmo que não possamos traça-los.

Deste modo, pudemos observar o quanto a literatura potencializa a imaginação

humana e como a percepção, a memória, a abstração, a imaginação e a emoção são

funções psíquicas que se entrelaçam no processo de recepção estética. Ao tratarmos, por

exemplo, da produção textual coletiva, vimos que esta representa/expressa a

materialização e objetivação da imaginação das crianças; já na criação individual de um

dos alunos, percebemos o quanto a criação literária proporciona prazer à criança: há ali

um encantamento pelo aprender, pela descoberta, pelo diferente.

Diante de todo esse quadro, concluímos que o trabalho com a literatura viabiliza

e participa da elaboração do sentido estético na criança, que se projeta para o futuro e

que está sempre em continuidade - pois não acaba ao término da leitura -,

potencializando, mobilizando e movimentando as possibilidades criativas humanas.

Tendo chegado até aqui, antes de finalizar a presente dissertação, um comentário ainda

precisa ser compartilhado.

Na medida em que narrávamos e analisámos os objetivos a que nos propomos

neste estudo, as emoções, preocupações, dúvidas e ansiedades que permearam a

pesquisa de campo foram sendo revividas. Só que neste exercício de contar e traduzir

mais de quarenta dias de trabalho, fez-se apenas um recorte do que foi intensamente

vivido. Por isso, no percurso desta escrita emergiu a seguinte pergunta: se foi intenso e

significativo para a pesquisadora, como será que foi para os outros? Tomando essa

indagação, descreveremos duas situações do campo que, talvez, respondam a este

Page 133: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

133

questionamento e ilustrem tudo o que aqui, neste momento, se tentou colocar em

palavras. São gestos sutis, daquelas surpresas agradáveis e inesperadas da pesquisa.

Com a chegada do fim do ano, foi produzido pela pesquisadora um vídeo de 18

minutos com diferentes recortes das leituras que foram feitas em sala, de cenas singelas

das crianças interagindo com a câmera, com a história e com o colega ao lado, numa

retomada de tudo que foi realizado com o grupo - talvez fosse uma tentativa de dizer

obrigada. Para isso, 27 cópias do filme foram entregues para cada uma das crianças e

professora no dia da reunião de pais.

Antes da entrega, porém, as crianças puderam assisti-lo junto com outro vídeo

com fotos, feito pela professora, em sala de aula. Assim que terminou de passar pela

primeira vez, as crianças, empolgadas, pediram para assistir novamente. Com o aceite

do pedido pela professora, no replay das imagens uma menina se aproximou da

pesquisadora, com os olhos em lágrimas e falou:

“Gabriela: Prô, posso sentar aqui do seu lado?

Pesquisadora: Pode sim, claro. Mas por que você está chorando?

Gabriela (achegando-se da pesquisadora, num abraço): É que faz tempo tudo isso, né?

Pesquisadora: Ah, é.... E dá saudade, né?

Gabriela concorda e continua com os braços envoltos na pesquisadora, assistindo ao

filme. Não consegui marcar o tempo, mas por uns bons minutos a menina ficou ali,

parada na mesma posição de abraço”.

(Trecho Diário de Campo – 02/12/2015)

Choro, abraço, saudade... Emoção. Afetar e deixar-se ser afetado. O que este

fragmento deixa visível? Às vezes queremos respostas já prontas para muitas perguntas,

nos esquecendo que nos movimentos mínimos e delicados, como no descrito acima,

muito se diz sobre o que nos toca e significa.

E eis que no último dia da pesquisadora na escola surge outro gesto, tal como o

primeiro, repleto de afeto. Em tom de despedidas e agradecimentos, a professora

entregou, a pedido de uma mãe, um presente: uma foto da pesquisadora e das duas

professoras do primeiro ano, junto com a criança da turma, no dia da Mostra Cultural.

Foto colocada em um porta-retratos, escolhida, segundo relato da professora, quando a

mãe questiona a filha “Você quer algo que dure ou para comer? ”. Fotografia que

Page 134: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

134

eterniza quatro meses de pesquisa realizados. Uma simples imagem que carrega consigo

uma história e envolve um grande significado.

Detalhes como esses, singelos, mas profundamente significativos, mostram que

a pesquisadora fez parte, pertenceu àquele grupo. Ao mesmo tempo, podem revelar que

as pequenas in(ter)venções que rechearam a convivência - quase que diária -, de alguma

forma, encantou e emocionou. Permanecem os registros de muitos momentos dessa

história vivida, de afetos compartilhados, de narrativas e imagens que possibilitam e

demandam (re)interpretação, que constituem matéria-prima para a criação literária, para

a dramatização e o teatro, para a (trans)formação da experiência em obra de arte, para a

elaboração do sentido estético.

Page 135: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

135

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMARAL, M. P. Educação estética pela mediação de leitura de imagens de obra de

arte. 2014. 175 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Filosofia e

Educação, Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, RS, 2014.

AMORIM, V. M.; CASTANHO, M. E. Por uma educação estética na formação

universitária de docentes. Educação & Sociedade, Campinas, v. 29, n. 105, p. 1167-

1184, Dec. 2008.

Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-

73302008000400011&lng=en&nrm=iso>.

ANDRÉ, M. E. D. A. Etnografia da prática escolar. 12. ed. Campinas-SP: Papirus,

1995. 128 p.

ANDRÉ, M. E. D. A. Tendências atuais da pesquisa na escola. Cadernos Cedes,

Campinas, v. 18, n. 43, p. 46-57, dez. 1997

Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-

32621997000200005&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 06 Ago. 2016.

http://dx.doi.org/10.1590/S0101-32621997000200005

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo:

Editora WMF Martins Fontes, 2011. 476 p.

BAKHTIN, M. M. (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. 16. ed.

Tradução: Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2014. 203 p.

BARROCO, S. M. S.; SUPERTI, T. Vigotski e o estudo da psicologia da arte:

contribuições para o desenvolvimento humano. Psicologia & Sociedade, Belo

Horizonte, v. 26, n. 1, p. 22-31, abr. 2014.

Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-

71822014000100004&script=sci_arttext > acessado em 06 Ago. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822014000100004.

BARROS, E. R. O.; CAMARGO, R. C.; ROSA, M. M. Vigotski e o teatro: descobertas,

relações e revelações. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 16, n. 2, p. 229-240, Jun.

2011.

Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-

73722011000200006 > acessado em 06 Ago. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722011000200006.

Page 136: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

136

BELINKY, T. A operação do Tio Onofre: uma história policial. 13. ed. Ilustrações:

Alcy. São Paulo: Ática, 2004. 24 p.

BLANCK, G. Prefácio. In: VIGOTSKI, L.S. Psicologia Pedagógica. Tradução:

Claudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2003, p. 15-32.

BRAGA, T. W. O que pode a música do Arma-Zen?: relações entre o rap, o bairro

e a cidade. 2014. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Centro de Filosofia e Ciências

Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2014.

CAMARGO, D.; BULGACOV, Y. L. M. A perspectiva estética e expressiva na escola:

articulando conceitos da psicologia sócio-histórica. Psicologia em Estudo, Maringá, v.

13, n. 3, p. 467-475, set. 2008.

Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-

73722008000300007&lng=en&nrm=iso.

COLE, M.; SCRIBNER, S. Introdução. In: VIGOTSKI, L.S. A formação social da

mente. 7. ed. Tradução: José Cipolla Neto, Luís Silveira Menna Barreto e Solange

Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. XVII-XXXVI.

DAINEZ, D. Constituição humana, deficiência e educação: problematizando o

conceito de compensação na perspectiva histórico-cultural. 2014. 125 f. Tese

(Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de

Campinas, Campinas, SP, 2014.

DANILCHENKO, M. G. Pavel Petrovich Blonsky (1884-1941). In: Prospects: the

quarterly review of comparative education, v. XXIII, n. 1/2, p. 113-124, 1993.

DA ROS, S. Z.; MAHEIRIE, K.; ZANELLA, A.V. (Org.) Relações estéticas,

atividade criadora e imaginação: sujeitos e (em) experiência. Florianópolis:

NUP/CED/UFSC, 2006. 254 p.

DEL RÍO, P. “El arte es a la vida lo que el vino es a la uva”: la aproximación

sociocultural a la educación artística. Cultura y Educación: Revista de teoría,

investigación y práctica, v. 16, n. 1-2, 2004, p. 43-66, mar. 2004.

DEL RÍO, P.; ÁLVAREZ, A. La psicología del arte en la psicología de Vygotski. In:

VIGOTSKI, L. S. La tragedia de Hamlet & Psicología del arte. Madrid: Fundación

Infancia e Aprendizaje, 2007, p. 7-38.

Page 137: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

137

DIAS, D. P. O teatro na educação infantil: um estudo a partir da teoria histórico-

cultural. Campinas, SP, 2014. 61 f. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso) -

Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.

DORON, R.; PAROT, F. Dicionário de psicologia. 1. ed. Tradução: Odilon Soares

Leme. São Paulo: Ática, 2006. Verbete reação, p. 645.

DUARTE Jr., J. F. O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível. 2000. 234 f. Tese

(Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de

Campinas, Campinas, SP, 2000.

DUARTE Jr., J. F. Fundamentos estéticos da educação. 10. ed. Campinas, SP:

Papirus, 2008. 150 p.

EZPELETA, J.; ROCKWELL, E. Pesquisa participante. 2. ed. São Paulo: Cortez:

Autores Associados, 1989. 93 p.

FAISSAL, F. S. Políticas de educação inclusiva: análise das condições de

desenvolvimento dos alunos com deficiência na instituição escolar. 2013. 277 f. Tese

(Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de

Campinas, Campinas, SP, 2013.

FERES, B. S. Leitura, fruição e ensino: do espectador ao expectador. In: III Congresso

Internacional de Leitura e Literatura Infantil e juvenil. Porto Alegre: Edpucrs, v.1,

p. 1-15, 2012. Disponível em:

http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/IIICILLIJ/Trabalhos/Trabalhos/S9/beatrizferez.pdf

FONTANA, R. A. C. O corpo também ensina – mediações da linguagem não verbal no

trabalho docente. Espaço Pedagógico, v. 18, n. 1, Passo Fundo, p. 9-22, jan./jun. 2011.

FREITAS, M. T. A. A abordagem sócio-histórica como orientadora da pesquisa

qualitativa. Cad. Pesquisa, São Paulo, n. 116, p. 21-39, Jul. 2002 . Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-

15742002000200002&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 06 Ago. 2016. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742002000200002

FREITAS, M. T. A. Discutindo sentidos da palavra intervenção na pesquisa de

abordagem histórico-cultural. In: FREITAS, M. T. A.; RAMOS, B. S. (Orgs.) Fazer

pesquisa na abordagem histórico-cultural: metodologias em construção. Juiz de

Fora: Ed. UFJF, 2010. 196 p.

Page 138: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

138

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: Morfologia e história. São Paulo:

Companhia das Letras, 1989.

GÓES, M.C.R.; SMOLKA, A. L. A criança e a linguagem escrita: considerações sobre

a produção de textos. In: ALENCAR, E.S. (org.). Novas contribuições da psicologia

aos processos de ensino e aprendizagem. São Paulo: Cortez, 1992, p. 51-70.

GRIMM, I. Chapeuzinho Vermelho. Ilustrações: Susanne Janssen. São Paulo: Cosac

Naify, 2008. (não paginado)

JAPIASSU, R. O. V. Jogos teatrais na pré-escola: o desenvolvimento da capacidade

estética na educação infantil. 2003. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de

Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.

LEONTIEV, D. A. Funções da Arte e Educação Estética. In: FRÓIS, J. P. (coord.)

Educação estética e artística: abordagens transdisciplinares. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 2000, p. 127-145.

LIMA, M. G. La psicología del arte y los fundamentos de la teoría histórico-cultural del

desarrollo humano. Cultura y Educación: Revista de teoría, investigación y práctica, v.

16, n. 1-2, p. 107-113, mar. 2004.

LIMA, M. G.; ÁLVAREZ, A.; LÓPEZ, Z.; SILVESTRI, A.; DEL RÍO, P. Sobre el arte

y todo lo demás. Cultura y Educación: Revista de teoría, investigación y práctica, v.

16, n. 1-2, p. 127-146, mar. 2004.

LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas.

São Paulo: EPU, 1986. 99 p.

MAGIOLINO, L. L. S. Afetividade, imaginação e dramatização na escola:

apontamentos para uma educação (est)ética. In: SILVA, D. N. H.; ABREU, F. S. D.

(orgs.) Vamos brincar de quê? Cuidado e educação no desenvolvimento infantil.

São Paulo: Summus, 2015. p. 133-153.

MAHEIRIE, K.; SMOLKA, A. L. B.; STRAPPAZZON, A. L.; CARVALHO, C. S.;

MASSARO, F. K. Imaginação e processos de criação na perspectiva histórico-cultural:

análise de uma experiência. Estudos de psicologia (Campinas), Campinas, v. 32, n.

1, p. 49-61, mar. 2015. Disponível em:

Page 139: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

139

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-

166X2015000100049&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 06 Ago. 2016.

http://dx.doi.org/10.1590/0103-166X2015000100005.

MARQUES, P. N. O Vygótski incógnito: escritos sobre arte (1915 – 1926). 2015. 307

f. Tese (Doutorado em Literatura) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015.

MOLON, S. I. Constituição do sujeito volitivo e criativo: educação estética em

Vygotsky. In: ZANELLA, A.V.; COSTA, F. C. B; MAHEIRIE, K.; SANDER, L.; DA

ROS, S. Z. (Org.). Educação estética e constituição do sujeito: reflexões em curso.

1.ed. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2007, p. 101-120.

MUND, R. T. Diferentes olhares: um “tour” com crianças pelo centro histórico da

cidade. 2012. 127 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Centro de Filosofia e

Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2012.

PRESTES, Z.; TUNES, E. A trajetória de obras de Vigotski: um longo percurso até os

originais. Estudos de Psicologia (Campinas), Campinas, v. 29, n. 3, p. 327-340, set.

2012

Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-

166X2012000300003&lng=en&nrm=iso > acessado em 06 Ago. 2016.

http://dx.doi.org/10.1590/S0103-166X2012000300003.

PINO, A. Técnica e semiótica na era da informática. Contrapontos, Itajaí, v. 3, n. 2, p.

283-296, maio/ago. 2003.

PINO, A. As marcas do humano: às origens da constituição cultural da criança na

perspectiva de Lev S. Vigotski. São Paulo, 2005a.

PINO, A. A psicologia concreta de Vigotski: implicações para a educação. In: SOUZA,

V. M. N. Psicologia e Educação: revendo contribuições. São Paulo: EDUC, 2005b, p.

34-61.

PINO, A. A produção imaginária e a formação do sentido estético: Reflexões úteis para

uma educação humana. Pro-Posições, v. 17, n. 2 (50), p. 47-69, maio/ago. 2006.

Disponível em: http://mail.fae.unicamp.br/~proposicoes/textos/50_dossie_pino_a.pdf

PINO, A. Educação estética do sentimento e processo civilizador: ensaio sobre

estética/semiótica. In: ZANELLA, A.V.; COSTA, F. C. B; MAHEIRIE, K.; SANDER,

Page 140: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

140

L.; DA ROS, S. Z. (Org.). Educação estética e constituição do sujeito: reflexões em

curso. 1. ed. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2007, p. 101-120.

PINO, A.; SCHLINDWEIN, L. M.; NEITZEL, A. A. (Org.). Cultura, escola e

educação criadora: formação estética do ser humano. Curitiba: Editora CRV, 2010.

185 p.

RAMOS, S. D. H. P. A dimensão formativa do cinema e a catarse como categoria

psicológica: um diálogo com a psicologia histórico-cultural de Vigotski. 2015. 190 f.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Educação, Universidade Federal do

Espírito Santo, Vitória, ES, 2015.

SALLES, C. A. Redes da criação. Vinhedo: Editora Horizonte, 2006. 176 p.

SARTRE, J. P. As palavras. Tradução: J. Guinsburg. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

1995. 183 p.

SAWAIA, B. B.; SILVA, D. N. H. Pelo reencantamento da psicologia: em busca da

positividade epistemológica da imaginação e da emoção no desenvolvimento humano.

Cad. Cedes, Campinas, v. 35, n. Especial, p. 343-360, out., 2015. Disponível em:

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-

32622015000400343&script=sci_abstract&tlng=pt > acessado em 25 Fev. 2017.

http://dx.doi.org/10.1590/CC0101-32622015V35ESPECIAL154115.

SCHLINDWEIN, L. M. Pesquisa na formação continuada dos professores:

possibilidades para uma educação estética. Diálogo Educacional (PUC-PR. Impresso),

Curitiba, v. 12, n. 37, p. 823-841, set./dez. 2012. Disponível em:

www2.pucpr.br/reol/index.php/dialogo?dd99=pdf&dd1=7205 > acessado em 06 Ago.

2016.

SCHLINDWEIN, L. M. As marcas da arte e da imaginação para uma formação humana

sensível. Cadernos CEDES (Impresso), Campinas, v. 35, n. spe., p. 419-433, dez. 2015

Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-

32622015000400419&lng=pt&nrm=iso>. acesso em 06 ago. 2016.

http://dx.doi.org/10.1590/CC0101-32622015V35ESPECIAL154120.

SCHLINDWEIN, L. M.; SOARES, M. L. P. Estética e educação: construindo

significados e sentidos a partir de vivências. In: II Colóquio de Psicologia da Arte: a

correspondência das artes e a unidade de sentidos, São Paulo, 2007. Anais do II

Colóquio de Psicologia da Arte. São Paulo: Editora da USP, v. 1, p. 1-10, 2007.

Disponível em: http://www.ip.usp.br/laboratorios/lapa/versaoportugues/2c55a.pdf >

acessado em 06 de Ago. 2016.

Page 141: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

141

SCHÜHLI, V. M. A dimensão formativa da arte no processo de constituição da

individualidade para-si: a catarse como categoria psicológica mediadora segundo

Vigotski e Lukács. 2011. 170 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Setor de

Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, 2011.

SILVA, J. F. Q. S. Crônicas pedagógicas: revivescências, arte e educação. 2012. 106

f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Centro de Educação, Comunicação e Artes,

Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, 2012.

SILVA, V. S. Foi assim que me contaram, foi assim que te contei: diálogos e reflexões

sobre a narração de histórias. In: SOUZA, R. J; MOTOYAMA, J. F. M.; SILVA, V. S.;

VAGULA, V. K. B. (Org.). A arte narrativa na infância: práticas para o teatro da

leitura e a contação de histórias. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2015, p. 17-26.

SIQUEIRA, E. M. L. Literatura sem fronteira: por uma educação literária. 2013.

321 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade

Federal de Goiás, Goiana, GO, 2013.

SOBRAL, A. Ético e estético na vida, na arte e na pesquisa em Ciências Humanas. In:

BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2005, p. 103-

121.

SOUZA, R. J; MOTOYAMA, J. F. M.; SILVA, V. S.; VAGULA, V. K. B. (Org.). A

arte narrativa na infância: práticas para o teatro da leitura e a contação de histórias.

Campinas-SP: Mercado de Letras, 2015. 91 p.

SMOLKA, A. L. B. Linguagem e conhecimento na sala de aula: modos de inscrição das

práticas cotidianas na memória coletiva e individual. IN: MORTIMER, E. F.;

SMOLKA, A. L. B (Orgs.). Anais do encontro sobre teoria e pesquisa em ensino de

ciências: linguagem, cultura e cognição. Belo Horizonte: UFMG-FE; UNICAMP-FE,

1997, p. 97-113.

SMOLKA, A. L. B. Experiência e discurso como lugares de memória: a escola e a

produção de lugares comuns. Pró-Posições (UNICAMP. Impresso), v. 17, p. 99-118,

2006.

SMOLKA, A. L. B. Vigotski: arte e vida. In: VIGOTSKI, L. S. Imaginação e Criação

na Infância. Tradução: Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009, p. 7-10.

Page 142: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

142

SMOLKA, A. L. B. Ensinar e significar: as relações de ensino em questão ou das

(não)coincidências nas relações de ensino. In: SMOLKA, A. L. B.; NOGUEIRA, A. L.

H. (Org.). Questões de desenvolvimento humano: práticas e sentidos. Campinas:

Mercado de Letras, v. 1, 2010a, p. 107-128.

SMOLKA, A. L. B. A atividade de leitura e o desenvolvimento das crianças:

considerações sobre a constituição de sujeitos-leitores. In: SMOLKA, A. L. B.; SILVA,

E. T.; BORDINI, M. G.; ZILBERMAN, R. Leitura e desenvolvimento da linguagem.

2. ed. São Paulo: Global, 2010b, p. 23-41.

SMOLKA, A. L. B. Condições de desenvolvimento humano e realização do

trabalho na escola: relações de ensino e coletivo de trabalho. 2012. 181 f. Tese de

Livre Docência - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, São

Paulo, 2012a.

SMOLKA, A. L. B. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como

processo discursivo. 13. ed. São Paulo: Cortez, 2012b. 183 p.

SMOLKA, A. L. B.; LAPLANE, A. L. F.; NOGUEIRA, A. L. H.; BRAGA, E. S. As

relações de ensino na escola. In: DATRINO, L. C.; MOGRABI, S. (Org.). Temas em

debate - Multieducação. Rio de Janeiro: SMERJ, v. 1, 2007, p. 1-39.

TOASSA, G. Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva

histórico-cultural. 2009. 348 f. Tese (Doutorado em Psicologia), Instituto de Psicologia,

Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

TOASSA, G. A “Psicologia Pedagógica” de Vigotski - considerações introdutórias.

Nuances: estudos sobre Educação, Presidente Prudente, v. 24, n. 1, p. 64-72, jan./abr.,

2013a.

TOASSA, G. Certa unidade no sincrético: considerações sobre educação, reeducação e

formação de professores na “Psicologia Pedagógica” de L. S. Vigotski. Estudos de

Psicologia, Campinas-SP, v. 18, n. 3, p. 497-505, jul./set., 2013b. Disponível em: www.scielo.br/pdf/epsic/v18n3/10.pdf

TOASSA, G. Relações entre comunicação, vivência e discurso em Vigotski:

observações introdutórias. Psicologia da Educação, São Paulo, n. 39, p.15-22, dez.

2014. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-

69752014000200002&lng=pt&nrm=iso>. Acessado em 06 ago. 2016.

Page 143: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

143

TOLSTOI, L. Quem deve aprender a escrever com quem, as crianças camponesas

conosco ou nós com as crianças camponesas? In: GOMIDE, B. B. Antologia do

pensamento crítico russo (1802-1901). 1 ed. Tradução: Cecília Rosas e outros. São

Paulo: Editora 34, 2013, p. 337-364.

VAN DER VEER, R. Apresentação. In: VIGOTSKI, L. S. Psicologia Pedagógica.

Tradução: Claudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2003.

VAN DER VEER, R. Vygotsky in context: 1900-1935. In: DANIELS, H.; COLE, M.;

WERTSCH, J. V. The Cambridge companion to Vygotsky. New York: Cambridge

University Press, 2007, p. 21-50.

VAN DER VEER, R.; VALSINER, J. Vygotsky: uma síntese. 4. ed. Tradução: Cecília

C. Bartalotti. São Paulo: Edições Loyola, 2001. 479 p.

VERESOV, N. Undiscovered Vygotsky: Etudes on the Pre-History of Cultural-

Historical Psychology. New York: Peter Lang, 1999. 282 p.

VIGOTSKI, L. S. A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca. Tradução: Paulo

Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 1999a. 252 p.

VIGOTSKI, L. S. Psicologia da arte. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo: Martins

Fontes, 1999b. 377 p.

VIGOTSKI, L. S. Teoria e método em psicologia. 2. ed. Tradução: Claudia Berliner.

São Paulo: Martins Fontes, 1999c. 524 p.

VIGOTSKI, L. S. Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, ano XXI, n. 71, Jul.

2000. Disponível em: www.scielo.br/pdf/es/v21n71/a02v2171.pdf

VIGOTSKI, L. S. Psicologia Pedagógica. Tradução: Claudia Schilling. Porto Alegre:

Artmed, 2003. 311 p.

VIGOTSKI, L.S. A formação social da mente. 7. ed. Tradução: José Cipolla Neto,

Luís Silveira Menna Barreto e Solange Castro Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

182 p.

VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criação na infância. Tradução: Zoia Prestes. São

Paulo: Ática, 2009. 135 p.

Page 144: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

144

VIGOTSKI, L. S. Psicologia Pedagógica. 3. ed. Tradução: Paulo Bezerra. São Paulo:

Martins Fontes, 2010. 561 p.

VIGOTSKI, L. S. La conciencia como problema de la psicología del comportamiento.

In: VIGOTSKI, L. S. Obras Escogidas I: El significado histórico de la crisis de la

Psicología. Madrid: Antonio Machado, 2013, p. 39-60.

VIGOTSKI, L. S. Obras escogidas II: Problemas de Psicología Geral. Madrid:

Antonio Machado, 2014. 484 p.

WEDEKIN, L. M. Psicologia e arte: os diálogos de Vigotski com a arte russa de seu

tempo. 2015. 291 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Centro de Filosofia e Ciências

Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2015.

WEDEKIN, L. M; ZANELLA, A. V. Arte e vida em Vigotski e o modernismo russo.

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 18, n. 4, p. 689-699, out./dez. 2013.

Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v18n4/11.pdf

WEDEKIN, L. M.; ZANELLA, A. V. L. S. Vigotski e o ensino de arte: “A educação

estética” (1926) e as escolas de arte na Rússia 1917-1930. Pro-posições, Campinas, v.

27, n. 2 (80), p. 155-176, maio/ago. 2016.

Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pp/v27n2/1980-6248-pp-27-02-00155.pdf

Page 145: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

145

ANEXO 1: Quadro “Correspondência dos termos nas duas traduções brasileiras

de Psicologia Pedagógica”

Tradução Martins Fontes Tradução Artmed

1 Educação estética (p. 323) Educação estética (p. 225)

2 Vivência estética (p. 323) Vivência estética (p. 225)

3 Educação estética (p. 323) Educação estética (p. 225)

4 Emoções estéticas (p. 323) Vivências estéticas (p. 225)

5 Emoção estética (p. 324) Vivência estética (p. 225)

6 Educação estética (p. 324) Educação estética (p. 225)

7 Impressões estéticas (p. 324) Impressões estéticas (p. 225)

8 Emoções estéticas (p. 325) Vivências estéticas (p. 226)

9 Vivências estéticas (p. 325) Vivências estéticas (p. 226)

10 Vivência estética (p. 327) Vivência artística (p. 227)

11 Educação estética (p. 327) Educação estética (p. 227)

12 Educação estética (p. 327) Educação estética (p.227)

13 Emoção estética (p. 328) Vivência estética (p. 227)

14 Percepção artística (p. 328) Percepção estética (p. 227)

15 Vivência estética (p. 328) Vivência estética (p. 227)

16 Sentimento estético (p. 328) Sentimento estético (p. 227)

17 Educação estética (p. 328) Educação estética (p. 227)

18 Educação estética (p. 328) Educação estética (p. 227)

19 Educação estética (p. 329) Educação estética (p. 227)

20 Sentido estético (p. 331) Significado estético (p. 228)

21 Emoções estéticas (p. 331) Vivências estéticas (p. 228)

22 Educação estética (p. 331) Educação estética (p. 229)

23 Percepção estética (p. 331) Percepção estética (p. 229)

24 Reação estética (p. 332) Reação estética (p. 229)

25 Sentido estético (p. 333) Sentido estético (p. 229)

26 Emoção estética (p. 333) Vivência estética (p. 229)

27 Vivência estética (p. 333) Vivência estética (p. 229)

28 Vivência estética (p. 333) Vivência estética (p. 229)

29 Atividade estética (p. 334) Atividade estética (p. 230)

30 Atividade estética (p. 334) Atividade estética (p. 230)

31 Vivência artística (p. 335) Vivência artística (p. 230)

32 Prazer estético (p. 335) Prazer artístico (p. 230)

33 Vivência estética (p. 335) Vivência artística (p. 231)

34 Atividade estética (p. 336) Atividade estética (p. 231)

35 Percepção artística (p. 338) Apreensão estética (p. 232)

36 Educação artística (p. 338) Educação estética (p. 232)

37 Reação estética (p. 339) Reação estética (p. 232)

38 Atividade estética (p. 340) Atividade estética (p. 233)

39 Impressão estética (p. 342) Impressão estética (p. 234)

40 Vivência estética (p. 342) Vivência estética (p. 234)

Page 146: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

146

41 Vivência estética (p. 343) Vivência estética (p. 234)

42 Emoção estética (p. 345) Vivência estética (p. 235)

43 Educação estética (p. 348) Educação estética (p. 237)

44 Educação estética (p. 349) Educação estética (p. 237)

45 Sentimento estético (p. 350) Sentimento estético (p. 237)

46 Educação estética (p. 351) Educação estética (p. 238)

47 Percepções artísticas (p. 351) Percepções artísticas (p. 238)

48 Percepções artísticas (p. 351) Apreensão estética (p. 238)

49 Educação estética (p. 351) Educação estética (p. 238)

50 Educação estética (p. 351) Educação estética (p. 238)

51 Experiência estética (p. 351) Experiência estética (p. 238)

52 Educação estética (p. 352) Educação estética (p. 239)

53 Educação estética (p. 352) Educação estética (p. 239)

54 Educação estética (p. 352) Reações estéticas (p. 239)

55 Elaboração estética (p. 352) Elaboração estética (p. 239)

56 Educação estética (p. 352) Educação estética (p. 239)

57 Atividade estética (p. 359) Atividade estética (p. 242)

58 Sentido estético (p. 360) Significado estético (p. 243)

59 Educação estética (p. 361) Educação estética (p. 243)

60 Educação estética (p. 361) Educação estética (p. 243)

61 Educação estética (p. 361) Educação estética (p. 243)

62 Educação estética (p. 362) Educação estética (p. 244)

63 Educação artística (p. 363) Educação artística (p. 244)

Page 147: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

147

ANEXO 2: Texto do livro “A operação do Tio Onofre: uma história policial”

“Talita tinha a mania de dar nomes de gente aos objetos da casa, e tinham de ser nomes

que rimassem. Assim, por exemplo, a mesa, para Talita, era Dona Tereza, a poltrona era

Vó Gordona, o armário era o Doutor Mário. A escada era Dona Ada, a escrivaninha era

Tia Sinhazinha, a lavadora era Prima Dora, e assim por diante. Os pais de Talita

achavam graça e topavam a brincadeira. Então, podiam-se ouvir conversas tipo como

esta:

- Filhinha, quer trazer o jornal que está em cima da Tia Sinhazinha!

- É pra já, papai. Espere sentado na Vó Gordona, que eu vou num pé e volto noutro.

Ou então:

- Que amolação, Prima Dora está entupida, não lava nada! Precisa chamar o mecânico.

- Ainda bem que tem roupa limpa dentro do Doutor Mário, né mamãe?

E todos riam.

Mas uma tarde, Talita estava na sala com a mamãe, assistindo televisão, quando tocou a

campainha. Talita correu e foi logo abrindo a porta, sem antes verificar quem era. E não

é que eram dois ladrões?! Os mal-encarados sujeitos empurraram Talita e foram

entrando, de armas apontadas.

- Isso é um assalto! Entregue o dinheiro e as jóias, madame, e nem um pio, está

ouvindo?!

Talita agarrou-se à mamãe, as duas mudas de susto.

- O cofre, rápido! - repetiu o ladrão, bravo. - abra o cofre, rápido!

- É pra já, madame. Mexa-se, se não quer que aconteça nada com a menina - ameaçou o

outro.

A mamãe - que remédio! - foi logo tirando o quadro que escondia a porta do cofre

embutido na parede, e começou a mexer no segredo, nervosa, enquanto Talita olhava,

apavorada.

Nisso, o telefone tocou. Uma, duas, três vezes.

- Só faltava isto! - resmungou um dos ladrões.

- Deve ser o papai - murmurou Talita, quase chorando. - ele sempre telefona a tarde pra

saber da gente...

- Droga! - rosnou o outro. - se ninguém responder, o homem vai estranhar...

- Então atenda logo - gritou o outro. - a senhora não, madame, cuide do cofre! - você

menina, atenda logo! E cuidado com o que vai dizer! Não deixe perceber nada, senão...

- Alô - obedeceu Talita, trêmula enquanto o ladrão tirava o fone da extensão no

vestíbulo, para ouvir a conversa.

- Talita? - era a voz do papai. - tudo bem aí, filhota?

- Tu... Tudo... Be...bem... Papai... - gaguejou Talita. E o ladrão olhou feio para ela.

- Talita - disse o papai - , avise a mamãe que eu vou chegar atrasado para o jantar...

Mais ou menos uma hora. Você está me ouvindo, filha?

- Es...Estou ... Sim ... Vo..... Você .... Vai che... chegar .... atra…trasado....

- A sua voz está diferente, Talita. Vocês estão bem mesmo?

O ladrão apontou a arma para a menina:

- Vê lá o que fala, e não gagueje! - sussurrou ele, ameaçador.

Então Talita fez um esforço, firmou a voz e respondeu:

- Tudo bem, papai, eu e mamãe estamos bem. Só que um pouco preocupadas com o Tio

Onofre.

- Tio Onofre? - estranhou papai.

Page 148: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

148

- Pois é, papai. Telefonaram agora há pouco, dizendo que o Tio Onofre teve uma crise

de apendicite aguda e teve de ser operado de urgência. A esta hora já devem estar

abrindo a barriga dele...

- É mesmo? - disse o papai, após pequena pausa. - foi de repente, não é?

O ladrão, satisfeito com a resposta da menina, fazia sinais para ela terminar a conversa:

- Acabe logo com este papo furado - sussurrou ele. E Talita apressou-se a obedecer:

- Eu falo pra mamãe que você vai chegar atrasado para o jantar. Até logo, papai! - e

Talita desligou o telefone.

- Bem bom! - disse um ladrão para o outro - agora temos tempo de sobra para fazer o

serviço!

- Mesmo assim, quanto mais depressa, melhor. Mexa-se, madame! Vai demorar muito

pra abrir este cofre? - rosnou o ladrão.

As mãos da mamãe tremiam muito:

- O senhor me deixa nervosa, com esta arma apontada.... Assim eu não consigo acertar o

segredo...

- Pois não esquente, madame - falou o outro. - não ouviu que o seu marido vai chegar

atrasado? Temos tempo que chegue.

E, voltando-se para Talita, ordenou, apontando para a Vó Gordona:

- E você, menina, senta aí na poltrona e fica bem quietinha, enquanto meu colega e eu

revistamos as gavetas da escrivaninha.

Os minutos passaram. Na sala, só se ouviam as vozes estridentes do desenho animado

na televisão, abafando os outros ruídos.

E só Talita, porque estava muito atenta, ouviu o estalinho leve duma chave na fechadura

da porta, enquanto a mamãe abria o cofre. E, bem no momento em que os ladrões se

precipitavam para ver o conteúdo, a porta da entrada se abriu de repente,

silenciosamente, e dois policiais irromperam na sala, apontando as armas nas costas dos

bandidos:

- Polícia! Larguem as armas! Mãos ao alto!

Atrás dos policiais, entrou correndo o pai de Talita, de braços abertos:

- Graças a Deus, vocês estão bem! - e ele envolveu a mulher e a filha num só grande

abraço.

As duas até choraram de emoção e alívio.

E depois que acabou a agitação e os dois policiais levaram os assaltantes presos, a

mamãe perguntou ao papai:

- Mas, querido, você não disse que ia chegar atrasado? Como foi que adivinhou o que

estava acontecendo e chegou assim, em cima da hora?

O papai piscou um olho para a Talita.

- E desde quando a nossa filha tem um tio chamado Onofre? Onofre? Aqui em casa, só

rima com cofre. E se o cofre - Onofre estava sendo operado... Se estavam "abrindo a

barriga dele", bem...

E todos caíram na gargalhada. ”

In: BELINKY, T. A operação do Tio Onofre: uma história policial. 13 ed.

Ilustrações: Alcy. São Paulo: Ática, 2004, 24 p.

Page 149: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

149

ANEXO 3: Livro coletivo produzido pelas crianças

Page 150: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

150

Page 151: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

151

Page 152: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

152

Page 153: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

153

Page 154: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

154

Page 155: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

155

Page 156: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

156

Page 157: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

157

Page 158: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

158

Page 159: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

159

Page 160: O TRABALHO COM LITERATURA NO PRIMEIRO …€¦ · daniele pampanini dias o trabalho com literatura no primeiro ano do ensino fundamental: modos de participaÇÃo das crianÇas na

160