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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES CURSO DE FILOSOFIA T H I A G O M O T A F O N T E N E L E E S I L V A Orientadora: Profa. Dra. Tereza de Castro Callado Fortaleza, agosto de 2005. O Trágico em Nietzsche e a Leitura Benjaminiana da Tragédia

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

CURSO DE FILOSOFIA

T H I A G O M O T A F O N T E N E L E E S I L V A

Orientadora: Profa. Dra. Tereza de Castro Callado

Fortaleza, agosto de 2005.

O Trágico em Nietzsche e a Leitura Benjaminiana da Tragédia

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2

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

CURSO DE FILOSOFIA

Thiago Mota Fontenele e Silva

O Trágico em Nietzsche e a Leitura Benjaminiana da Tragédia

Monografia apresentada ao Curso de Filosofia

do Centro de Humanidades da Universidade

Estadual do Ceará como pré-requisito parcial

para a obtenção do título de Licenciado em

Filosofia.

Orientadora: Profa. Dra. Maria Terezinha de

Castro Callado

Fortaleza, agosto de 2005.

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3

Thiago Mota Fontenele e Silva

O Trágico em Nietzsche e a leitura Benjaminiana da Tragédia

Monografia apresentada ao Curso de Filosofia

do Centro de Humanidades da Universidade

Estadual do Ceará como pré-requisito parcial

para a obtenção do título de Licenciado em

Filosofia.

Data da Aprovação: 19/08/200517 / 08 / 2005

Menção “Com Louvor”

Recomendada para Publicação

BANCA EXAMINADORA:

____________________________________________________

Profa. Dra. Maria Terezinha de Castro Callado

____________________________________________________

Prof. Dr. Eduardo Jorge Oliveira Triandópolis

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4

Para Fillipa.

Sempre.

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5

AGRADECIMENTOS

À Profa. Tereza Callado, pela orientação e pela amizade;

Ao Prof. Eduardo Triandópolis, pela interlocução e pela participação em minha banca

examinadora;

Ao Prof. Ruy de Carvalho, à Profa. Maria Aparecida Montenegro, ao Prof. Dilmar Miranda

e ao Prof. Daniel Lins pela interlocução;

Ao CNPq e à FUNCAP, pelo financiamento da pesquisa em que se baseou esta monografia;

Ao Curso de Filosofia e ao Centro de Humanidades da UECE, pela formação;

Muito obrigado.

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6

RESUMO

Este trabalho consiste em uma interpretação da noção de trágico nos pensamentos de

Friedrich Nietzsche (1844–1900) e de Walter Benjamin (1892–1940). A temática do trágico,

objeto comum de consideração de obras como O nascimento da tragédia (1872) e Origem do

drama barroco alemão (1925), favorece a compreensão dos pontos de contato entre os

pensadores, bem como de suas discrepâncias. O fio condutor que possibilita esta investigação

é a crítica proposta tanto por Nietzsche quanto por Benjamin do que se poderia chamar de

abordagens moralizantes da tragédia, influenciadas principalmente pela Poética de

Aristóteles. A crítica de Nietzsche ao aristotelismo moralizante da tragédia pode ser entendida

no âmbito de sua reflexão extra-moral acerca do mundo, que revela o caráter agonístico do

trágico, pensando-o como fenômeno estético fundamental. Por sua vez, Benjamin, partindo de

sua peculiar concepção de filosofia da história, realiza uma crítica às abordagens moralizantes

do trágico, que acaba por desembocar em uma crítica ao que ele chama de “esteticismo”

nietzschiano, para radicalizar um aspecto do caráter agonístico do trágico. Assim, este

trabalho tem a pretensão de pensar, em Nietzsche, as relações entre tragédia e consideração de

mundo extra-moral e, em Benjamin, as relações entre tragédia e filosofia da história. Em

conclusão, pode-se afirmar que, apesar de suas discordâncias, o trágico, tanto em Nietzsche

quanto em Benjamin, é agonístico.

Palavras-chave: Estética, Nietzsche, Benjamin, Tragédia, Agón.

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7

ABSTRACT

This text concerns to an interpretation of the notion of tragic in the philosophy of

Friedrich Nietzsche (1844–1900) and Walter Benjamin (1892–1940). The tragic, thematic of

consideration in works as Die Geburt der Tragödie (1872) and Ursprung des deutschen

Trauerspiels (1925), provides the possibility of comprehension of the contact points between

the thinkers, as well as their differences. The Leitmotiv that makes possible this investigation

is the critique developed by Nietzsche and Benjamin to which could be denominated as

moralizing approach of tragedy, influenced especially for the Poetics by Aristotle. The

Nietzsche’s critique to the moralizing aristotlelism of the tragic could be understand in the

ambience of his extra-moral reflection about the world, which reveals the agonistic feature of

the tragic, thought as a basic aesthetic phenomenon. On the other hand, Benjamin, in the basis

of his peculiar conception of philosophy of history, elaborates a critique to the moralizing

approach of tragedy, which becomes a critique to which he denominates as nietzscheanistic

“aestheticism”, in order to radicalize the agonistic feature of the tragic. Thus, this text tries to

think, in Nietzsche, the relations between tragedy and extra-moral consideration of world and,

in Benjamin, the relations between tragedy and philosophy of history. As conclusion we can

state that, although certain divergences, the tragic not only in Nietzsche but also in Benjamin

is agonistic.

Keywords: Aesthetics, Nietzsche, Benjamin, Tragic, Agón.

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8

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO: AS ABORDAGENS “MORALIZANTES” DA TRAGÉDIA ...................10

2. TRAGÉDIA E CONSIDERAÇÃO DE MUNDO EXTRA-MORAL EM NIETZSCHE ......14

2.1. A CRÍTICA DE NIETZSCHE ÀS ABORDAGENS “MORALIZANTES” DO TRÁGICO .............14

2.2. CONSIDERAÇÃO DE MUNDO MORAL E CONSIDERAÇÃO DE MUNDO EXTRA-MORAL ....18

2.3. A GUERRA DE APOLO E DIONÍSIO ..................................................................................26

2.4. O TRÁGICO E A METAFÍSICA DE ARTISTA ......................................................................33

3. TRAGÉDIA E FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM BENJAMIN ............................................38

3.1. DRAMA BARROCO E TRAGÉDIA. DRAMA BARROCO OU TRAGÉDIA ...............................38

3.2. A CRÍTICA DE BENJAMIN ÀS ABORDAGENS “MORALIZANTES” DA TRAGÉDIA .............41

3.3. A CRÍTICA DE BENJAMIN AO “ESTETICISMO” DE NIETZSCHE .......................................47

3.4. O TRÁGICO E A FILOSOFIA DA HISTÓRIA .......................................................................51

4. CONCLUSÃO: O TRÁGICO E O AGÓN .............................................................................58

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................................61

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9

I.

INTRODUÇÃO:

AS ABORDAGENS “MORALIZANTES” DA TRAGÉDIA

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10

1. INTRODUÇÃO: AS ABORDAGENS “MORALIZANTES”

DA TRAGÉDIA

Este trabalho consiste em uma investigação acerca do sentido do trágico a partir dos

pensamentos de Friedrich Nietzsche (1844-1900) e de Walter Benjamin (1892-1940). Se a

tragédia é efetivamente tema de consideração de ambos os autores, em obras fundamentais

como O nascimento da tragédia – Die Geburt der Tragödie (1872) e Origem do drama

barroco alemão – Ursprung des deutschen Trauerspiels (1925), o que permite uma

aproximação entre eles, isto não significa que os dois caminhem em direção a um mesmo

resultado. É inegável a existência de pontos de contatos entre Nietzsche e Benjamin,

sobretudo, no que diz respeito ao comum interesse pela arte, todavia, é igualmente inegável a

existência de discrepâncias entre eles. A leitura rigorosa do tema do trágico nesses dois

autores favorece a compreensão dessas aproximações e discrepâncias. Essa leitura, entretanto,

somente pode ser realizada seguindo um fio condutor que forneça a orientação da

investigação. O Leitmotiv da investigação que ora se propõe é a desconstrução realizada tanto

por Nietzsche quanto por Benjamin do que se poderia chamar de abordagens moralizantes da

tragédia, que encontram seu fundamento, de um modo ou de outro, na Poética de Aristóteles e

que se tornaram, de alguma forma, hegemônicas na estética moderna.

A compreensão da desconstrução realizada por Nietzsche e Benjamin do

aristotelismo moralizante da tragédia exige uma leitura preliminar da concepção aristotélica

de tragédia, que se apresenta na Poética. Em uma passagem célebre desta obra, Aristóteles

define tragédia da seguinte maneira: “É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter

elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies

de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por

narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o ‘terror e a piedade, tem por efeito a

purificação dessas emoções’”.1 Por que esta definição tem um sentido moral? Esta questão

pode ser esclarecida ressaltando dois de seus aspectos: o “caráter elevado” das ações

1 ARISTÓTELES. Poética. Trad. E. Souza. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, 1449b.

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11

representadas na tragédia; e a “purificação” das emoções “terror” e “piedade”, isto é, a

kátharsis (κάθαρσις), que é o efeito principal da tragédia segundo Aristóteles.

Não é qualquer ação que pode ser objeto de imitação na tragédia, mas somente as

que possam ser consideradas de “caráter elevado”. Aristóteles esclarece que entende “por

‘caráter’ o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade”2, para, em

seguida, concebê-lo como uma das partes constitutivas da tragédia. Nesse contexto, as

qualidades possíveis do caráter seriam a elevação e a baixeza, facilmente compreensíveis por

meio de uma analogia com virtude e vício. As ações de caráter elevado são ações virtuosas,

enquanto as ações de caráter rebaixado são viciosas. Virtude e vício, elevação e baixeza

somente podem ser pensadas aqui sobre o pano de fundo da moral aristotélica.

As ações representadas na tragédia têm como função, não a mera imitação de ações

elevadas, mas a elevação do caráter daquele que assiste à representação, no caso, o espectador

da tragédia. O caráter elevado do trágico, que se manifesta na conduta do herói, funciona

como um modelo, a ser incutido e seguido pelo espectador. O herói não é um homem

qualquer, mas somente aquele que possui o caráter elevado, isto é, aquele que suporta o

insuportável e que, por isto, é capaz do impossível. O que faz do herói um herói é,

precisamente, o fato de que ele enfrenta honrosamente dores das quais o comum dos mortais

fugiria com desespero. Por esta razão, o herói surge como um exemplo a ser seguido, seu

modo de proceder, como um modelo para a ação moral. Aristóteles concebe, por conseguinte,

na tragédia, uma função moral, o que faz dela uma espécie de lição. Em uma palavra, o herói

trágico seria um modelo e a tragédia, uma lição.

Porém, além desta função moral, a tragédia tem um efeito, que de certo modo faz

repercutir aquela função, o efeito trágico, a kátharsis. Trata-se de uma espécie de purificação,

de purgação ou de descarga de duas emoções, o terror (phóbos, φόβος) e a piedade (éleos,

’έλεος). Uma indagação surge neste momento: por que razão certas emoções demandam uma

“descarga”? Ou seja, em que sentido tais emoções podem ser entendidas como “cargas”, que

precisariam ser “descarregadas”? Certamente, não se pode dizer do terror e da piedade que

estes sejam emoções ou afetos elevados. É na medida em que terror e piedade são emoções

baixas ou viciosas que eles necessitam ser purgados. A tragédia atua em dois movimentos:

num primeiro, ela excita o espectador, suscitando suas emoções, num segundo, a tragédia os

descarrega durante o próprio espetáculo. Assistindo à tragédia, o espectador se põe diante de

situações que o acometem de terror e piedade – emoções que jazem como que adormecidas

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12

em sua alma – sem que, no entanto, danos reais lhe advenham, uma vez que o ocorre na

tragédia não passa de ficção, de mera imitação. Se a representação de ações de “caráter

elevado” na tragédia tinha uma função moral, servindo de modelo de conduta para o

espectador, a kátharsis a complementa, pois a purgação dos afetos baixos do terror e da

piedade atua de modo profilático, contribuindo para o “aperfeiçoamento moral” do

espectador.3

Independentemente de ser esta ou não a interpretação mais autêntica da Poética, o

fato é que tal leitura acabou por se constituir como uma espécie de aristotelismo erigido em

cânone pela estética renascentista e moderna e que chega ao século XX ainda como

hegemônica, sobretudo, no que diz respeito à idéia de que a tragédia forneceria um modelo de

postura moral, isto é, ela seria uma espécie de lição de moral. Exemplo disso é a interpretação

da tragédia, evidentemente fundada em Aristóteles, elaborada por Lessing e que viria

influenciar fortemente a tradição estética do Ocidente.4 Precisamente aqui se encontra o cerne

das abordagens moralizantes da tragédia.

Ora, tanto Nietzsche quanto Benjamin procurarão se distanciar criticamente dessa

perspectiva. Esse distanciamento tem motivos e objetivos distintos, ainda que concordem no

que diz respeito à impossibilidade de considerar o trágico como fenômeno moral, ou

exclusivamente moral. Além de possibilitar uma comparação entre os dois pensadores, a

compreensão das críticas nietzschiana e benjaminiana das abordagens moralizantes da

tragédia funciona como ponto de partida para a compreensão do sentido do trágico em

Nietzsche e Benjamin, que é o objeto desta investigação. Pode-se dizer que é se distanciando

da leitura moralizante do trágico que, de um lado, Nietzsche pensará as relações entre a

tragédia e sua consideração de mundo extra-moral, e que Benjamin, de outro lado, pensará

como se relacionam tragédia e filosofia da história. A interpretação dessas duas perspectivas é

o motivo dos dois movimentos de que se compõe este trabalho.

2 Idem (1978), 1450a. 3 Cf. CHAVES, Ernani. Katharsis versus ouvinte estético: sobre a tragédia em Nietzsche e Walter Benjamin. In: No limiar do moderno: estudos sobre Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin. Belém: Paka-Tatu, 2003b, p. 197. 4 Cf. CHAVES, Ernani. O “silêncio trágico”: Walter Benjamin entre Franz Rosenzweig e Friedrich Nietzsche.

In: No limiar do moderno: estudos sobre Friedrich Nietzsche e Walter Benjamin. Belém: Paka-Tatu, 2003a, pp.

65-6.

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13

II.

TRAGÉDIA E CONSIDERAÇÃO DE MUNDO EXTRA-

MORAL EM NIETZSCHE

O verdadeiro é um triunfo báquico, onde não

há ninguém que não esteja ébrio...

(Georg W. F. Hegel, Fenomenologia do

espírito)

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14

2. TRAGÉDIA E CONSIDERAÇÃO DE MUNDO EXTRA-

MORAL EM NIETZSCHE

2.1. A CRÍTICA DE NIETZSCHE ÀS ABORDAGENS “MORALIZANTES” DO

TRÁGICO

Na seção final do Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche pontua sua definição do trágico

se contrapondo a Aristóteles. Para Nietzsche, o conceito do trágico, incompreendido por

Aristóteles, consiste no

dizer-sim à vida mesma ainda em seus problemas mais estranhos e mais duros; a vontade de vida, tornando-se alegre de sua própria inesgotabilidade

em meio ao sacrifício de seus tipos mais elevados (...). Não para se livrar de

pavores e compaixões, não para se purificar de um afeto perigoso através de

sua descarga veemente – assim o compreendeu Aristóteles –: mas a fim de, para além de pavor e compaixão, ser por si mesmo o eterno prazer do vir-a-

ser.5

Claramente importa a Nietzsche nesta passagem se distanciar criticamente de Aristóteles,

especialmente da idéia da kátharsis (κάθαρσις) como efeito primordial do trágico. O efeito da

tragédia não é a descarga dos afetos perigosos do terror e da piedade, mas, para além dessa

descarga, a afirmação da vida mesma, sobretudo, naquilo que ela tem de mais problemática.

Aristóteles não foi capaz, segundo Nietzsche, de compreender que a tragédia é esta afirmação

radical da vida em seu vir-a-ser eternamente contraditório.

Num fragmento póstumo de seu último período de produção, Nietzsche escreve:

reiteradas vezes coloquei o dedo no grande engano de Aristóteles por ele ter

acreditado reconhecer os afetos trágicos em dois afetos deprimentes, no

terror e na compaixão. Estivesse ele certo, então a tragédia seria uma arte

5 NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos, ou, como filosofar com o martelo. Trad. M. A. Casa Nova. Rio

de Janeiro: Relume Dumará, 2000, O que devo aos antigos, § 5, p. 118.

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15

perigosa à vida: seria preciso alertar contra ela como algo suspeito e

prejudicial a todos. A arte, normalmente a grande estimuladora da vida, um

êxtase vital, uma vontade de viver, seria então prejudicial à saúde, estaria a serviço de algo decadente, como se fosse uma serviçal do pessimismo.

6

De saída, a idéia de que a tragédia seria uma espécie de purgativo não tem a simpatia de

Nietzsche. Enquanto purgativo, enquanto descarga, a tragédia seria uma espécie de reação a

afetos deprimentes, prejudiciais à saúde. A ação ou o efeito7 do trágico seria, portanto, uma

reação, uma contra-ação, uma ação de segunda ordem e, assim, uma negação. Com isso,

Aristóteles põe em perspectiva o caráter negativo do trágico. Ora, o que Nietzsche pretende é

propor a idéia de que a tragédia é uma radical afirmação da vida. Interessa a Nietzsche expor

o caráter afirmativo do trágico, logo, a posição de Aristóteles é encarada como decadente,

pessimista ou mesmo niilista.

Todavia, a interpretação que Nietzsche faz de Aristóteles acerca da tragédia não se

esgota neste ataque. No mesmo fragmento póstumo, lê-se:

Aristóteles queria que a tragédia fosse encarada como um purgativo da compaixão e do terror, – como uma útil descarga de dois afetos doentios

acumulados de modo excessivo... Os outros afetos atuariam tonicamente:

mas apenas dois afetos depressivos – e esses são, portanto, especialmente prejudiciais e insanos –, a compaixão e o terror deveriam ser, como que por

meio de um purgante, eliminados para fora do ser humano: a tragédia, na

medida em que desperta em excesso esses estados perigosos, livra deles o ser

humano – torna-o melhor. A tragédia como cura contra compaixão.8

O que interessa ressaltar nesta passagem é a capacidade de Nietzsche de subverter a idéia de

Aristóteles com a finalidade de a por a serviço de seu pensamento. A idéia com que ele

conclui este fragmento, de que a tragédia é uma “cura” contra a compaixão, dificilmente seria

aceita pelo aristotelismo. Tradicionalmente, a compaixão é tida como uma virtude.

Compassivo é aquele que possui um caráter elevado e, portanto, jamais demandaria uma

“cura”. A compreensão de Nietzsche, todavia, é de que a compaixão é uma espécie de doença.

Nesse sentido, Nietzsche ressignifica a kátharsis aristotélica para pensá-la como um

“remédio” contra a doença da compaixão. O que ele faz aqui é atribuir um sentido novo e

distinto daquele que, supostamente, Aristóteles teria pensado, como que pondo seu adversário

para jogar a seu favor. O que está em jogo, para Nietzsche, de modo geral, é transvalorar os

valores, dando, por exemplo, à compaixão um sentido negativo e, ao mesmo tempo, dando um

6 NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos finais. Trad. F. R. Kothe. Brasília: EdUnB, São Paulo: Imprensa Oficial

do Estado, 2002, § 15(10), p. 152. 7 Vale lembrar que a palavra alemã Wirkung pode significar tanto “efeito” quanto “ação”. 8 Idem (2002), § 15(10), p. 153.

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sentido positivo aos afetos. E nesse jogo é válido, inclusive, usar Aristóteles contra o próprio

Aristóteles, pois do que se trata é de uma reabilitação dos afetos e, por que não dizer, do

corpo, em detrimento do racionalismo da tradição.

De todo modo, o que está fora de questão para Nietzsche é a compreensão do trágico

a partir de uma chave moralizante. Nesse sentido, Aristóteles pode até ser um aliado, desde

que se rompa com a abordagem moralizante do trágico, pois “pode-se refutar essa teoria com

o maior sangue frio: ou seja, ao medir o efeito de uma emoção trágica por meio de um

dinamômetro. E obtém-se como resultado aquilo que (...) somente a absoluta hipocrisia de um

sistemático pode ignorar: que a tragédia é um tonicum”.9 Neste ponto, Nietzsche chega de

modo totalmente positivo a uma definição de tragédia, que não consta, a não ser de forma

germinal, em sua obra publicada. A tragédia surge, então, como um tonicum, um estimulante,

um excitante da vida. E tonificar a vida é, precisamente, afirmá-la radicalmente.

A idéia do trágico como um tonicum, elemento afirmativo da vida, a afirmação

ampla da vida, que é a significação do trágico para Nietzsche, e a conseqüente crítica das

leituras moralizantes não só da tragédia, mas dos gregos em geral e, inclusive, de Aristóteles,

esse conjunto de idéias nietzschianas somente pode ser compreendido sobre o pano de fundo

daquilo que se poderia denominar, com Nietzsche, de consideração de mundo extra-moral

(aussermoralische Weltbetrachtung).

A experiência estética particular da tragédia grega, isto é, a leitura de uma peça

trágica não define a totalidade da reflexão de Nietzsche acerca do trágico. Este não é pensado

como gênero meramente estético, o que suscitaria uma investigação restrita ao âmbito da

teoria literária. O trágico, em Nietzsche, é um fenômeno fundamental que abre a possibilidade

de uma perspectiva ontológica, isto é, de uma consideração do mundo.10

Portanto, o trágico

deve ser pensado numa perspectiva propriamente filosófica11

, isto é, num âmbito de reflexão

9 Idem (2002), § 15(10), p. 153. 10 A concepção de ontologia com que se trabalha aqui, e que parece adequada ao pensamento nietzschiano, a

despeito da querela acerca da “metafísica de Nietzsche”, procura pensar a ontologia como uma teoria do real em

geral, como uma interpretação global do mundo. Não se trata nem de uma teoria do ser (onto-logia), nem de uma

teoria da transcendência (meta-física). Nesta acepção, a ontologia não só não parece ser objeto das críticas de

Nietzsche, como num certo sentido ele teria mesmo formulado uma ontologia, que entre outros, teria como

conceitos centrais a vontade de poder (Wille zur Macht) e também o trágico. Nesse sentido, ontologia se

aproxima da noção de consideração do mundo (Weltbetrachtung). 11 Em Verdade e método, Gadamer escreve sobre o trágico na perspectiva da filosofia existencial: “o trágico é um fenômeno fundamental, uma figura de sentido, que não ocorre somente na tragédia, a obra de arte trágica no

sentido estrito da palavra, mas que tem seu lugar também noutros gêneros de arte, principalmente nas obras

épicas. Na verdade, nem se trata de um fenômeno especificamente artístico, na medida em que se encontra

também na vida. Por esse motivo, os mais recentes pesquisadores (...) estão vendo o trágico simplesmente como

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17

estética – se por estética se compreende não uma filosofia da arte ou uma teoria do belo, mas

uma espécie de filosofia primeira. Pode-se dizer que o filósofo parte da experiência estética

concreta do teatro trágico, mas não se restringe a ela, dirigindo-se a uma reflexão ontológica

que tem o trágico, num sentido determinado, como conceito fundamental. E trágico é, para

ele, precisamente o que se opõe à visão moral, ou ainda, à moralização do mundo. Nesse

sentido é que se pode falar de uma consideração de mundo trágica em contraposição à

consideração de mundo moral, e isto indica que o entendimento do trágico em Nietzsche

somente é possível caso se compreenda seu ponto de vista, sua perspectiva extra-moral. O

trágico é para Nietzsche, em primeiro lugar, um problema e, em seguida, um conceito

filosófico. Isso implica que a reflexão acerca do trágico, numa perspectiva nietzschiana, tem

de ser feita no âmbito da filosofia ou, mais precisamente, da estética. Partindo para esta

análise, pode-se ver que o ataque de Nietzsche ao aristotelismo moralizante do trágico não é

um ponto de partida para sua concepção do trágico, mas uma conseqüência natural do

desenvolvimento da consideração de mundo extra-moral.

um momento extra-estético”. [GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Trad. F. P. Meurer. Petrópolis: Rio

de Janeiro: Vozes, 1997., p. 212.].

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18

2.2. CONSIDERAÇÃO DE MUNDO MORAL E CONSIDERAÇÃO DE MUNDO

EXTRA-MORAL

No momento de auto-avaliação de O nascimento da tragédia em Ecce Homo,

Nietzsche se define como o primeiro filósofo trágico, isto é, o primeiro a desenvolver, a partir

da tragédia, uma sabedoria trágica. E ao buscar na tradição uma ascendência para esta

condição, ele aponta para Heráclito, “em cuja vizinhança sinto-me mais cálido e bem-disposto

do que em qualquer outro lugar”.12

Esta vizinhança em relação a Heráclito se justifica, porque

este representa, na interpretação de Nietzsche, “a afirmação do fluir e do destruir, o dizer Sim

à oposição e à guerra, o vir a ser, com radical rejeição até mesmo da noção de “Ser” – nisto

devo reconhecer, em toda circunstância, o que me é mais aparentado entre o que até agora foi

pensado”.13

Nietzsche, portanto, concebe Heráclito como um filósofo trágico, talvez o único

antes dele, grande precursor de sua filosofia trágica.

Chama a atenção o fato de que ao buscar uma ascendência para sua concepção do

trágico, Nietzsche recorra não a um poeta trágico, antigo ou moderno, nem a um teórico da

tragédia, mas a um filósofo, Heráclito. Isto já confirma a sugestão feita anteriormente de que

Nietzsche pretende levar a frente sua reflexão acerca do trágico num âmbito propriamente

filosófico. Heráclito é seu parceiro porque é o autor de uma filosofia afirmativa da tragicidade

do mundo, isto é, sua filosofia é a afirmação do devir, ela pensa o mundo como eterno vir-a-

ser, como movimento perene, chegando mesmo a negar o ser. Heráclito é mobilizado por

Nietzsche como o precursor de sua filosofia trágica porque representa uma alternativa ao

modo como a tradição pensou o problema do devir. Em lugar de uma negação do devir que,

para Nietzsche, marca o conjunto da tradição filosófica ocidental, Heráclito surge como sua

afirmação.

A negação do devir, noção sob a qual Nietzsche reúne parte considerável de sua

crítica à tradição, na medida em que esta noção está na base da elaboração da ontologia

enquanto teoria do ser, é entrevista por ele já na sentença de Anaximandro, a certidão de

12 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como cheguei a ser o que sou. Trad. P. C. L. Souza. São Paulo:

Companhia das Letras, 1995, O nascimento da tragédia, § 3, p. 64. 13 Idem (1995), O nascimento da tragédia, § 3, p. 64.

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19

nascimento da filosofia, que na versão de Nietzsche, tem o seguinte teor: “de onde as coisas

têm seu nascimento, ali também devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois têm de pagar

penitência e de ser julgadas por suas injustiças, conforme a ordem do tempo”.14

Como os

demais filósofos da época trágica15

, Anaximandro estava em busca da arché (’αρχή), o

princípio ou fundamento do mundo, que ele denominou como ápeiron (’άπειρον), o

indeterminado. Este é para ele o ser eterno e originário donde provém, enquanto determinação

particularizada, cada ente. No entanto, o ente que se determina não perdura, não é eterno, tem

um ciclo de vida limitado e em seguida sucumbe, volta a se indeterminar, retorna ao

indeterminado. Somente este é eterno. A transitoriedade do determinado se opõe à eternidade

do indeterminado, que faz deste a arché. Aquilo que vem a ser, isto é, que se determina,

também tem de deixar de ser, de modo que somente permanece o ser em sua indeterminação.

Ocorre que a descrição de Anaximandro do processo ontológico só encontra

justificativa e inteligibilidade através da introdução de noções morais. O vir-a-ser é entendido

aí como hýbris (‘ύβρις), como desmesura, como a ruptura de uma ordem harmônica

subjacente, como crime, como injustiça. A hýbris do devir é necessariamente punida com o

deixar-de-ser, pelo qual essa injustiça é penitenciada no retorno à indeterminação do ser

eterno, que equivale à restauração da harmonia, a uma “rearmonização”. Anaximandro

procede, portanto, já no nascimento da filosofia, à introdução de categorias morais no

processo ontológico. Nietzsche escreve que “se ele preferiu ver, na pluralidade das coisas

nascidas, uma soma de injustiças, foi o primeiro grego que ousou tomar nas mãos o novelo

mais profundo dos problemas éticos”.16

Em Anaximandro, tudo se passa aos moldes de um

processo judicial no qual o devir é não só julgado, mas condenado em nome do ser eterno.

Com isso, Anaximandro lançou, já ao lavrar a certidão de nascimento da filosofia, o impulso

inicial de uma consideração de mundo moral, isto é, de um pensamento que quanto tenta

pensar ontologicamente o mundo já o moraliza. Esta consideração de mundo moral viria a

14 NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na época trágica dos gregos. Trad. R. R. Torres Fº. § 4. In: OS PRÉ-

SOCRÁTICOS. Vol. I. Trad. J. C. Souza et al. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1989. (Os pensadores), p. 17. 15 Nietzsche denomina os pré-socráticos filósofos da época trágica, ou simplesmente, filósofos trágicos, na

medida em que rejeita a periodização tradicional da história da filosofia grega, pois esta toma Sócrates como

apogeu da cultura helênica e, logo, como o divisor de águas. Ora, para Nietzsche, Sócrates não representa o

apogeu, mas o princípio da decadência dos gregos, de acordo com a polêmica que ele inicia em O nascimento da

tragédia. [Cf. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J.

Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, §13, pp. 84 e ss., e também NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como cheguei a ser o que sou. Trad. P. C. L. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, O

nascimento da tragédia, § 2, pp. 62 e ss.]. Assim, não tem cabimento a definição dos filósofos da época trágica

como “pré-socráticos”. 16 NIETZSCHE, Friedrich (1989), § 4, p. 18.

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20

atingir seu ápice na filosofia de Platão para, daí, determinar o movimento da vertente

hegemônica do pensamento ocidental.

Porém, se entre os gregos da época trágica surgem os elementos germinais decisivos

da tradição moralizante, também entre eles surge seu contraponto: Heráclito, que se contrapõe

radicalmente a Anaximandro: “não vejo nada além do vir-a-ser, afirma Heráclito na versão de

Nietzsche. Não vos deixeis enganar! É vossa curta vista, e não a essência das coisas, que vos

faz acreditar ver terra firme em alguma parte do mar do vir-a-ser e do perecer. Usais nomes

como se estes tivessem uma duração rígida: mas nem mesmo o rio em que entrais pela

segunda vez é o mesmo que da primeira vez”.17

Partindo desta afirmação do devir, Heráclito

nega, em primeiro lugar, o dualismo a que Anaximandro se vira forçado, isto é, a disjunção do

real entre o mundo físico da determinação e o mundo metafísico do indeterminado, e, em

segundo lugar, nega o próprio ser, uma vez que não há nada a ser visto além do eterno fluir do

rio do vir-a-ser. Em termos modernos, pode-se afirmar que Heráclito propõe um monismo

imanente contra o dualismo transcendente de Anaximandro. Mas como Heráclito realiza tal

projeto?

Segundo Nietzsche, Heráclito concebeu todo vir-a-ser

sob a forma da polaridade, como o desdobramento de uma força em duas

atividades qualitativamente diferentes, opostas, e que lutam pela

reunificação. Constantemente uma qualidade entra em discórdia consigo mesma e separa-se em seus contrários; constantemente esses contrários

lutam outra vez um em direção ao outro. (...) Da guerra dos opostos nasce

todo vir-a-ser: as qualidades determinadas, que nos aparecem como duradouras, exprimem apenas a preponderância momentânea de um dos

combatentes, mas com isso a guerra ainda não chegou ao fim, a contenda

perdura pela eternidade. Tudo ocorre conforme a esse conflito, e é

exatamente esse conflito que manifesta a eterna justiça. (...) Só um grego estava em condições de descobrir essa representação como fundamento de

uma cosmodicéia; é a boa Éris de Hesíodo transfigurada em princípio do

mundo: é o pensamento de competição dos gregos individuais e dos Estados gregos, transferido, dos ginásios e palestras, dos agonos artísticos, das

contendas dos partidos políticos e das cidades entre si, à máxima

universalidade, a tal ponto que agora a engrenagem do cosmo gira nele.

Assim como cada grego combate, como se somente ele estivesse no direito, e uma medida infinitamente segura do julgamento determina, a cada

instante, para onde inclina a vitória, assim combatem as qualidades entre si,

segundo leis e medidas inflexíveis, imanentes ao combate. (...) Esse combate (...) é o próprio vir-a-ser.

18

17 Idem (1989), § 5, p. 75. 18 Idem (1989), § 5, pp. 76-77.

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21

Ao fazer essa interpretação, Nietzsche parece ter diante dos olhos fragmentos de Heráclito

que se pode antecipadamente qualificar como trágicos, a saber, “o combate (pólemos) é de

todas as coisas o pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros, homens; de uns fez

escravos, de outros livres” e “é preciso saber que o combate (pólemos) é o o-que-é-com, e

justiça (é) discórdia, e que todas (as coisas) vêm a ser segundo discórdia e necessidade”.19

A arché, em Heráclito, é o fogo. A imagem metafórica do fogo, como aquilo que se

consome a si mesmo, que está em contradição consigo mesmo e que perdura nessa e por essa

contradição, simboliza o devir. Sob o devir único e eterno já não há mais nenhum ser.

Somente é o devir, o ser é enquanto vem a ser, o ser é um tornar-se, o ser é o devir, cujo

caráter básico é a contradição. Todo vir-a-ser, todo ente, provém de um outro vir-a-ser, de um

outro ente. Com efeito, um ente torna-se sempre um outro ente, de modo que não há um vir-a-

ser absoluto proveniente do ser, nem um deixar-de-ser absoluto, isto é, um esvaziamento

completo do ente no nada. O que deixa de ser não deixa de ser de modo absoluto, mas

somente enquanto deixa de ser um ente para tornar-se num outro. O movimento eterno é, para

Heráclito, de ente a ente, de modo que ele pode, de acordo com Nietzsche, prescindir da

noção de ser. O movimento dá-se porque a todo tempo um ente entra em contradição consigo

mesmo e desenrola-se o processo do devir, isto é, do deixar de ser este ente para vir a ser um

outro ente. A contradição é imanente ao ente e é o motor do movimento.

Com isso, Heráclito deixa de considerar o devir como hýbris, ou ainda, modifica a

própria noção de hýbris para assimilá-la ao devir. Não se trata mais aqui da ruptura da ordem

harmônica do ser, ou de uma desmesura em relação a esta harmonia. A ordem mesma é

concebida como discordante de si mesma, como contraditória consigo mesma, por isto a

“justiça é discórdia”. O devir é hýbris somente enquanto a esta desmedida não subjaz

propriamente uma medida. O devir é, nesse sentido desarmônico, porque o existente, o

efetivo, o real mesmo é desarmônico. Assim, Heráclito não precisa nem julgar nem tampouco

condenar o devir. Ele não necessita introduzir noções morais na descrição do processo do vir-

a-ser, ou quando o faz, desmoraliza essas mesmas noções morais, como no caso da hýbris.

Desse modo torna-se possível para ele, invés de negar o devir, afirmá-lo. E ele o faz com toda

a radicalidade, lançando a pedra de toque da consideração de mundo que se opõe à moral,

qual seja, a consideração de mundo extra-moral.

19 HERÁCLITO. Fragmentos. In: OS PRÉ-SOCRÁTICOS. Trad. J. C. Souza et al. 4.ed. São Paulo: Nova

Cultural, 1989. (Os pensadores), §§ 54, 80, pp. 56, 59.

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22

A única medida possível é, assim, concebida por Heráclito, como pólemos (πόλεμος),

como combate, como guerra. Pólemos é aí a imagem da contradição inerente ao real. Por isso,

a guerra é o “pai de todas as coisas” e, portanto, não pode ser compreendida como uma

situação extraordinária, mas como “o-que-é-com” (xynós, χυνός; koinós, κοινός), isto é, como

aquilo que é comum, condição normal das coisas. A guerra é, como o fogo, uma metáfora

para o devir, uma imagem da arché, uma vez que é o princípio não só da destruição, como da

criação, pois não pode haver uma sem a outra.20

Mas por que Heráclito chega à idéia de que a

guerra é uma metáfora adequada ao devir? Neste ponto, pode-se sugerir que Nietzsche

articula a hipótese de que o pólemos de Heráclito tem de ser compreendido a partir do agón

(’αγών).

O agón grego, segundo Johan Huizinga21

, designa um domínio fundamental da vida

dos gregos, qual seja o das competições e dos concursos. “O agón na vida dos gregos, ou a

competição em qualquer outra parte do mundo, possui todas as características formais do jogo

e, quanto à sua função, pertence quase inteiramente ao domínio da festa, isto é, ao domínio do

lúdico”.22

O agón é, portanto, uma espécie de jogo, que se define por sua função lúdica,

elemento essencial do jogo, e pela competição, elemento próprio do jogo agonístico.

Enquanto jogos, as competições, as disputas, as lutas, os combates são, para os gregos,

agonísticos. O agón está entranhado no éthos (’έθος) grego e perpassa de formas variegadas

sua existência. A cultura grega é peculiarmente competitiva, isto é, agonística. As

competições de atletismo, realizadas nos ginásios são as imagens mais evidentes desse agón,

porém, também nos teatros os gregos faziam seus concursos de poesia, também na ágora

(’άγορά)23

os políticos travavam disputas com a palavra – a retórica e a erística24

– para

decidir os rumos da democracia, e as cidades-Estados em constantes contendas bélicas

estabeleciam entre si relações agonísticas.25

20 Cf. BENJAMIN, Walter. O caráter destrutivo. In: documentos de cultura, documentos de barbárie: escritos

escolhidos. Trad. C. H. M. Sousa et al. São Paulo: Cultrix, EdUSP, 1986, pp. 187-8. 21 Johan Huizinga, antropólogo holandês do início do século XX, tornou-se célebre com a publicação de Homo

ludens: o jogo como elemento da cultura, no qual elabora, entre muitas outras idéias interessantes, um parecer

acerca de Nietzsche, no qual afirma que se este, de fato, fomentou uma atitude polêmica e agonística na filosofia,

somente fez restaurar nela algo que estaria presente desde as suas origens. [Cf. HUIZINGA, Johan. Homo

ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. J. P. Monteiro. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.]. 22 HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. J. P. Monteiro. 4.ed. São Paulo:

Perspectiva, 1993, p. 36. 23 Huizinga chama atenção para a relação entre agón (’αγών) e ágora (’άγορά). [Cf. Idem (1993, p. 56.]. 24 Platão define a erística como o combate em que se opõem argumentos, isto é, a contestação conduzida com arte e relativa ao justo em si, que tem como finalidade uma remuneração em dinheiro. [Cf. PLATÃO. Sofista. In:

Diálogos. Trad. J. Peleikat e J. C. Costa. São Paulo: Abril Cultura, 1972, pp. 148-9.]. 25 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. A disputa homérica. In: Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. P.

Süssekind. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.

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23

Conforme Huizinga, “os jogos possuem um caráter fundamentalmente antitético”.26

Isso não significa que o caráter antitético do jogo seja sinônimo de seu caráter agonístico. Mas

nos jogos agonísticos a antítese é posta em revelo, isto é, o agonístico é expressão da

contradição entre os jogadores no agón. A contradição é fundamental ao agón porque é a

partir dela e nela que o agón se realiza. O agón pode ser entendido como uma luta que tem

dois princípios: a inexistência de trégua e a inexistência de termo. Para que a luta perdure,

impõe-se, de um lado, que os lutadores não cheguem a um acordo de paz, o que seria uma

trégua, e, de outro lado, que nenhum deles seja aniquilado pelo outro, o que significaria um

termo. “O combate todavia não se confunde com extermínio nem a precedência com

hegemonia. Para que ocorra a luta, é preciso que existam antagonistas; como ela é inevitável e

sem trégua ou termo, não pode implicar a destruição dos beligerantes – e nisso se revela o seu

caráter agonístico”.27

O agón é, portanto, sem trégua nem termo.

O que Heráclito faz, segundo Nietzsche, é, vendo-o manifestar-se nos diferentes

âmbitos do éthos grego, erigir o agón em princípio do mundo, em arché. O pólemos de

Heráclito deve ser entendido como agón, em primeiro lugar, porque como esclarece Huizinga,

Chamar “jogo” à guerra é um hábito tão antigo como a própria existência

dessas duas palavras. (...) O mais provável é que em toda parte a linguagem tenha definido as coisas dessa maneira, a partir do momento em que

surgiram palavras para designar o jogo e o combate. (...) E não há dúvida

que toda luta submetida a regras, devido precisamente a essa limitação,

apresenta as características formais do jogo. Podemos considerar a luta como a forma de jogo mais intensa e enérgica, e ao mesmo tempo mais óbvia e

primitiva.28

Com rigor, não cabe aproximar tanto as idéias de pólemos e de agón, guerra e jogo, de modo a

fazê-las coincidirem completamente, uma vez que há certos tipos de guerra que não evolvem

o elemento agonístico, precisamente na medida em que não se submetem a regras, perdendo

por completo o caráter lúdico, de modo que o mais certo seria considerar uma determinada

espécie de guerra como “um subproduto do agon”.29

Esta seria a guerra agonística, aquela que

mais se aproxima da definição do pólemos heraclitiano e que, portanto, dá a segunda

justificativa da hipótese nietzschiana.

Pólemos, agón, ou ainda, a guerra agonística é, então, para Nietzsche, a arché de

Heráclito. O fogo seria a metáfora viva dessa guerra que o mundo trava consigo mesmo, isto

26 HUIZINGA, Johan (1993), p. 54-5. 27 MARTON, Scarlett. Nietzsche e Hegel, leitores de Heráclito. In: Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de

Nietzsche. 2.ed. São Paulo: Discurso Editorial, EdUNIJUÍ, 2001, pp. 139-40. 28HUIZINGA, Johan (1993), p. 101.

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é, do devir. Pensar o mundo como devir implica conceber uma polaridade perpassando cada

momento e a totalidade do real. Estabelece-se o real como uma luta entre opostos, como

contradição. Cada um dos contrários é um beligerante e somente se define na medida do agón,

do pólemos que é um nome para a contradição essencial do mundo. O devir, que é o mundo

mesmo, é, para Heráclito, de acordo com Nietzsche, agón, guerra.

O elemento lúdico do pólemos heraclitiano surge em sua concepção do mundo como

jogo. Esse jogo do mundo está na base da consideração do mundo, que não mais o moraliza,

mas que, na medida em que reconhece o caráter lúdico como algo ontológico, passa a estetizá-

lo. Trata-se da consideração de mundo extra-moral. Escreve Nietzsche,

um vir-a-ser e perecer, um construir e destruir, sem nenhuma prestação de contas de ordem moral, só tem neste mundo o jogo do artista e da criança. E

assim como joga a criança e o artista, joga o fogo eternamente vivo, constrói

em inocência – esse jogo joga o Aion consigo mesmo. Transformando-se em água e terra, faz, como uma criança, montes de areia à borda do mar, faz e

desmantela: de tempo em tempo começa o jogo de novo. Um instante de

saciedade: depois a necessidade o assalta de novo, chama á vida outros mundos. Às vezes a criança atira fora seu brinquedo: mas logo recomeça, em

humor inocente.30

Nietzsche mobiliza aqui uma outra imagem heraclitiana do devir: ele é agora a criança

inocente que brinca com as esferas do universo. O lúdico da visão de Heráclito vem à tona na

inocência da brincadeira da criança, na paidía (παιδία), que é outra palavra grega para jogo.31

Inocente como a criança, o jogo do mundo não pode ser julgado nem condenado, isto é, com a

metáfora da criança, Heráclito veda a interpretação moralizante do mundo. O devir é inocente

e na criança ele não é negado, mas afirmado. O jogo inocente do devir é, assim, extra-moral.

Mas esse jogo é também o do artista, que cria mundos e os destrói tendo em vista o

prazer estético. A visão de Heráclito, portanto, não moraliza, mas estetiza o mundo. Ao se

propor uma investigação acerca do real em geral, Heráclito, não se serve de um olhar moral,

como fizera Anaximandro e como fariam muitos depois dele, mas lança sobre o mundo um

olhar estético, isto é, percebe o mundo como um fenômeno estético. O devir é o jogo do

artista e se põe além dos limites da moral. Heráclito estrutura sua visão de mundo não

partindo da moral, mas da estética. O mundo é pensado como obra de arte e assim está desde

sempre justificado. Este é um dos elementos mais centrais de uma visão de mundo extra-

29 Idem (1993), p. 102. 30 NIETZSCHE, Friedrich (1989), § 7, p. 79. 31 Cf. HUIZINGA, Johan (1993), p. 35.

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25

moral, isto é, a tese enunciada em O nascimento da tragédia da justificação do mundo como

fenômeno estético.32

Heráclito é, assim, o precursor de uma estética da existência.

Com base nessa leitura de Heráclito, pode-se agora compreender a razão de

Nietzsche apontá-lo, na passagem do Ecce homo citada no início desta seção, como o grande

precursor de sua filosofia trágica. Naquele trecho, Nietzsche afirma que o mais decisivo em

uma filosofia trágica é a afirmação do devir, da contradição e da guerra.33

Esta guerra deve ser

entendida como o pólemos heraclitiano, em seu caráter agonístico. A guerra é uma metáfora

para a contradição do cerne do mundo, para o devir, é criadora e destruidora, é estética. A

guerra somente surge como algo exclusivamente destrutivo caso seja pensada de modo moral.

Estetizada, a guerra se torna o pólemos heraclitiano.34

Em seu caráter, ao mesmo tempo,

agonístico e estético, a guerra, a contradição se revela como a essência do trágico. O trágico é,

precisamente, esta contradição estetizada, que não se resolve; como o agón, ela é uma guerra

sem trégua e sem termo. Estetizada no trágico, a contradição não precisa se dissolver em

síntese alguma, pelo contrário, tem de ser afirmada em sua problematicidade, em sua

contraditoriedade, que é o elemento do mundo, do devir que não deixa nunca de fluir, que

nunca deságua no ser.

Heráclito, filósofo trágico, está na base, portanto, da consideração de mundo extra-

moral. Sua filosofia é o eterno propulsor desta concepção, que em Nietzsche encontra sua

forma mais acabada. O ponto de vista extra-moral é a perspectiva trágica, é a afirmação da

contradição sem resolução, é a guerra agonística. Numa palavra, o trágico é a guerra. Mas não

uma guerra qualquer, senão aquela que se trava entre Apolo e Dionísio.

32 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad. J. Guinsburg. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, § 5, p. 47. 33 CF. NIETZSCHE, Friedrich (1995), § 3, p. 64. 34 Para uma outra leitura da “estética da guerra” cf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua

reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.

Trad. S. P. Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994a, pp 194-6.

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26

2.3. A GUERRA DE APOLO E DIONÍSIO

Nietzsche inicia O nascimento da tragédia com as seguintes palavras: “teremos

ganho muito a favor da ciência estética se chegarmos não apenas à intelecção lógica mas à

certeza imediata da introvisão [Anschauung] de que o contínuo desenvolvimento da arte está

ligado à duplicidade do apolíneo e do dionisíaco, da mesma maneira como a procriação

depende da dualidade dos sexos, em que a luta é incessante e onde intervêm periódicas

reconciliações”.35

A idéia de luta, Kampf36

, é mobilizada por Nietzsche desde o primeiro

momento para a definição da relação entre o apolíneo e o dionisíaco. A presente hipótese é de

que essa luta entre os dois impulsos básicos da natureza que dá à luz a obra de arte trágica

deve ser compreendida como agón. Escreve Nietzsche:

A seus dois deuses da arte, Apolo e Dionísio, vincula-se a nossa cognição de

que no mundo helênico existe uma enorme contraposição, quanto a origens e objetivos, entre a arte do figurador plástico [Bildner], a apolínea, e a arte

não-figurada [unbildlichen] da música, a de Dionísio: ambos os impulsos,

tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar

a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava

apenas aparentemente a ponte; até que por fim, através de um miraculoso ato

metafísico da “vontade” helênica, apareceram emparelhados um com o outro, e nesse emparelhamento tanto a obra de arte dionisíaca quanto a

apolínea geraram a tragédia ática.37

Desde o início, importa ao autor de O nascimento da tragédia apontar a duplicidade

do apolíneo e do dionisíaco como princípios estético-metafísicos, forças da natureza, donde

provêm as diversas manifestações da arte grega. Apolo surge, então, como o princípio das

artes figurativas, das artes plásticas, enquanto Dionísio surge como o deus da arte não-

figurativa, sobretudo a música. O apolíneo e o dionisíaco caminham lado a lado como que

num duelo, numa relação de contraposição (Gegenstand). Essa contraposição pode ser

definida, com base no que foi exposto, como uma relação agonística, como uma espécie de

guerra. O emparelhamento de Apolo e Dionísio é, no fundo, agonístico, é uma guerra.

35 Idem (1992), § 1, p. 27. 36 Além de Kampf, termo que claramente tem um caráter agonístico, Nietzsche utiliza, por exemplo, em A

disputa homérica (Homer’s Wettkampf), o termo Wettkampf. Segundo Huizinga, “esta palavra encerra a idéia do

campo de jogo (campus, em latim) e a da aposta (Wette). [Cf. HUIZINGA, Johan (1993), p. 56.]. 37 Idem (1992), § 1, p. 27.

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Contudo, o que é essencial nesta guerra, mais que seu caráter destrutivo, é seu aspecto criador,

pois é da guerra entre Apolo e Dionísio que nasce a arte trágica, a tragédia ática. A tragédia,

desse modo, não é nem dionisíaca nem apolínea, ela é a um tempo apolínea e dionisíaca, na

medida em que é gerada e expressa pela contraposição essencial entre Apolo e Dionísio. A

obra de arte trágica é expressão dessa contradição que se passa no cerne do mundo sem se

resolver jamais e que é o próprio trágico. O trágico é a contradição. O trágico é o agón. O

trágico é a guerra.

Através do esclarecimento de que sejam o apolíneo e o dionisíaco, Nietzsche

procede ao aprofundamento do caráter agonístico do trágico. “Para nos aproximarmos mais

desses dois impulsos, escreve Nietzsche, pensemo-los primeiro como os universos artísticos,

separados entre si, do sonho e da embriaguez, entre cujas manifestações fisiológicas cabe

observar uma contraposição correspondente à que se apresenta entre o apolíneo e

dionisíaco”.38

Apolo é caraterizado como deus do sonho, deus onírico, que se contrapõe à

embriaguez de dionisíaca. Apolo é o sonho, Dionísio, a embriaguez. Sonho e embriaguez são,

assim, contrapostos e a relação que se estabelece entre esses dois universos artísticos é

agonística, é uma guerra. A guerra de Apolo e Dionísio assume, então, figura da

contraposição entre o sonho e a embriaguez.

Mas Apolo não é somente o sonho, ou ainda, o caráter onírico do apolíneo não pode

se fazer presente se não se tem em mente que ele, enquanto deus da luz, representa também a

sobriedade, a medida e, num certo sentido, a razão, o lógos (λόγος). Antes de Nietzsche,

Schopenhauer pensou a razão como o princípio que revela ao homem o mundo enquanto

representação. Através da razão, isto é, das formas puras do espaço e do tempo e da

causalidade, o homem percebe o mundo como uma vastidão de fenômenos singulares e

isolados, como individualizações da vontade subjacente que, no entanto, é una, indivisa, é o

Uno-primordial (Ur-Einen). O princípio da razão é, portanto, para Schopenhauer, o

principium individuationis, isto é, o princípio pelo qual o mundo aparece individualizado,

como uma série de individualizações.39

“E poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo, escreve

Nietzsche, com a esplêndida imagem divina do principium individuationis, a partir de cujos

gestos e olhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da ‘aparência’, juntamente com a

sua beleza”.40

Nietzsche aplica a concepção schopenhaueriana do principium individuationis

38 Idem (1992), § 1, pp. 27-8. 39 Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Trad. M. F. S. Correia. Rio de

Janeiro: Contraponto, 2001. 40 NIETZSCHE, Friedrich (1992), § 1, p. 30.

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28

na definição do apolíneo. Apolo é o deus do principium individuationis, ou seja, é a imagem

divina desse princípio. Por isso, Apolo é o deus da aparência, das belas formas, da bela arte.

Apolo é o deus da proporção, da medida, da harmonia.

Dionísio, por sua vez, vai se definir em contraposição a Apolo, como a ruptura do

principium individuationis, como um rasgo no véu de Maia. Essa imagem sânscrita é utilizada

por Schopenhauer como metáfora do mundo enquanto representação que se sobrepõe como

um véu à vontade. O homem necessita lançar este véu, esta ilusão, esta aparência sobre a

vontade, a essência do mundo, pois não pode olhar diretamente para ela. A visão da vontade é

dilacerante, fatal, terrificante. Dionísio é o deus do essencial, mas a essência aí é o fundo das

coisas autocontraditório, problemático, difícil. É o Uno primordial, no sentido da vontade

schopenhaueriana, é o verdadeiramente existente, a dor primordial do ser, o eterno

contraditório, eterno-padecente.41

Para Schopenhauer, “alles Leben Leiden ist”42

, a essência

do mundo é o sofrimento. Porém, se a essa visão aterradora da essência do mundo se

adicionam o êxtase e o entusiasmo, o fundo das coisas surge como o dionisíaco. Escreve

Nietzsche, “se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium

individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado

lançar um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela

analogia da embriaguez”.43

A ruptura do principium individuationis, isto é, a negação do

princípio da razão, revela o páthos (πάθος) do dionisíaco, enseja a visão ao mesmo tempo

terrificante e extática do fundo das coisas. A embriaguez do dionisíaco é terrível, mas é

também um êxtase que possibilita a afirmação trágica da existência, com o que Nietzsche se

distancia de Schopenhauer.

Apolo é o deus da sobriedade, da razão, do lógos, da medida. Dionísio, o deus da

embriaguez, da paixão, do páthos, da desmesura, da hýbris. O espírito apolíneo proclama:

“‘Nada em demasia’, ao passo que a auto-exaltação e o desmedido eram como os demônios

propriamente hostis da esfera não-apolínea, portanto como propriedade da época, pré-

apolínea, da era dos Titãs e do mundo extra-apolíneo, ou seja, do mundo dos bárbaros”.44

A

guerra entre Apolo e Dionísio assume, assim, uma nova figura. Ela surge como a

contraposição entre a civilização apolínea e a barbárie dionisíaca. Enquanto trágica,

agonística, esta contraposição não se dissolve. O dionisíaco é pré-apolíneo, contudo, com o

41 Idem (1992), § 4, p. 39. 42 Cf. SCHOPENHAUER, Arthur (2001). 43 NIETZSCHE, Friedrich (1992), § 1, p. 30. 44 Idem (1992), § 4, pp. 40-1.

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29

advento do apolíneo, o dionisíaco não vem a sucumbir. “Apolo não podia viver sem Dionísio!

O ‘titânico’ e o ‘bárbaro’ eram, no fim de contas, precisamente uma necessidade tal como o

apolíneo”.45

Desse modo, é possível, com Nietzsche, afirmar que o advento da civilização não

significa o fim da barbárie, mas que há uma forma de barbárie em cada forma de civilização.46

Civilização e barbárie contrapõem-se agonisticamente. Daí Nietzsche afirmar mais uma vez a

guerra entre Apolo e Dionísio: “só consigo pois explicar o Estado dórico e a arte dórica como

um contínuo acampamento de guerra da força apolínea”.47

A guerra que se trava nas

trincheiras do Estado dórico, é precisamente aquela entre o apolíneo e o dionisíaco.

A guerra entre o lógos, civilizado e apolíneo, e o páthos, bárbaro e dionisíaco, é

agonística. No trágico se trava essa guerra, sem que haja possibilidade de termo ou trégua,

pois uma paz, quer decorrente da aniquilação de um dos beligerantes pelo outro, o que

equivaleria a um termo, quer proveniente de um acordo, de um abandono à luta, o que

equivaleria a uma trégua, implicaria a dissolução do próprio agón, isto é, acarretaria o fim do

trágico. Na tragédia, todavia, o trágico não se dissolve, a contradição não encontra uma

síntese, a dissonância não se resolve em consonância alguma, pois isto implicaria a morte do

trágico no seio da tragédia. Pelo contrário, a tragédia é a afirmação do trágico, é o trágico na e

pela arte afirmado. A tragédia é a afirmação da contradição, afirmação do mundo naquilo que

ele tem de mais complicado e problemático, é a problematicidade mesma afirmada. A tragédia

é a afirmação do agón e da guerra.

A tentativa da metafísica racionalista de racionalizar o trágico, o otimismo romântico

de um Hegel, que já estava em Sócrates e Eurípides, isto é, a tentativa de dar a toda tragédia

um “final feliz”, dissolvendo a contradição numa síntese absoluta, sob o signo da razão, ou

seja, subsumindo o páthos no lógos, representa a morte do trágico.48

Mas se Hegel, Sócrates e

Eurípides desfiguram a tragédia, este último ocasionando o seu suicídio, isso se deve a sua

incompreensão acerca do trágico. Ao dissolver a contradição, a dialética elimina o caráter

agonístico do trágico. A verdadeira contraposição não é, portanto, entre o apolíneo e o

dionisíaco, pois esta é geradora do trágico, ou seja, é a contradição afirmada na tragédia, mas

entre a sabedoria trágica e o racionalismo socrático. Nietzsche se encarrega, então, de

ressaltar o páthos, passando a pensar o dionisíaco como o trágico mesmo, isto é, como a

45 Idem (1992), § 4, p. 41. 46 Conforme a VII tese Sobre o conceito de história, “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie”. [BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica,

arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. S. P. Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense,

1994c.] 47 NIETZSCHE, Friedrich (1992), § 4, p. 42.

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30

afirmação da contradição agonística do trágico numa consideração de mundo dionisíaca, que

subsume o lógos no páthos e, nessa medida, contrapõe-se à negação da contradição por sua

dissolução na dialética socrática. A verdadeira contraposição não é entre o apolíneo e o

dionisíaco, mas entre Dionísio e Sócrates49

, entre a afirmação da contradição e sua dissolução.

Daí Nietzsche desenvolver, em seu primeiro período de produção, uma metafísica de artista,

afirmativa do trágico, em contraposição, à metafísica racional dialética.50

Schopenhauer, apesar de ter dado conta do caráter agonístico do trágico, o

dissentimento essencial do mundo consigo mesmo, o conflito indissolúvel, a contradição

ontológica trágica, ao pensar a tragédia como doutrina da resignação51

, acaba também

dissolvendo a contraditoriedade essencial do trágico. Na medida em que, para ele, a tragédia

ensina a resignação, ela é a negação da vontade, da contradição, do mundo, do próprio

trágico. A contrapartida nietzschiana dessa concepção é a tragédia pensada como afirmação

do trágico. O pessimismo de Schopenhauer é niilista, pois o conduz à negação da vontade, no

fundo, para Nietzsche, à paradoxal vontade de negação da vontade, a vontade de nada. Contra

o niilismo de Schopenhauer, Nietzsche propõe um pessimismo da fortitude, para além do bem

e do mal.52

O trágico se contrapõe ao niilismo. No trágico se encontra, para Nietzsche, a

despeito de sua problematicidade, o fundamento da afirmação do mundo, a afirmação trágica.

O trágico é a guerra feita arte, é a vontade em seu caráter agonístico estetizada, afirmada na

tragédia, como elemento da consideração de mundo extra-moral.

Dionísio é o deus do informal ou do amorfo53

, daquilo que não se encontra

individualizado, proporcionado, medido e comedido. Dionísio é a hýbris, é o deus do

desarmônico. Entretanto, a hýbris dionisíaca não tem de ser punida. Partindo de Heráclito,

Nietzsche entende a hýbris de modo estetizado. Ela não é a ruptura da ordem harmônica

profunda da realidade. As profundezas do real, na medida em que são dionisíacas, são

desarmônicas. Sobre o cerne dionisíaco se sobrepõe a medida, a ordem, a harmonia apolínea,

a aparência que como um filtro transfigurador e estetizante possibilita a visão do dionisíaco na

arte. Dionísio emerge com toda força na representação da hýbris no palco trágico. A hýbris

48 Idem (1992), § 11, p. 72. 49 Idem (1992), § 17, p. 102. 50 Cf. MACHADO, Roberto (1999), p. 29. 51 Cf. SCHOPENHAUER, Arthur (2001). 52 NIETZSCHE, Friedrich (1992), TA, § 1, p. 14, § 5, p. 19. 53 Num certo sentido, Dionísio poderia ser dito barroco. A imagem do barroco, de acordo com uma das possíveis

origens da palavra, é uma pérola disforme, em que se reúnem, tragicamente, o belo e feio. [Cf. MASSAUD,

Moisés (1999), p. 57.

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31

trágica é a desarmonia profunda que vem à tona e, mais que isso, é afirmada na arte. O trágico

é o desarmônico; a tragédia é a afirmação do desarmônico.

Nesse contexto, Nietzsche mobiliza a noção de dissonância, tendo em vista dar conta

de um problema crucial da estética: o do feio. Donde vem o impulso ao trágico? Por que a

tragédia, enquanto arte, atrai? O mito trágico nos apresenta uma visão do mundo que não é

plácida, bela e harmônica, mas contraditória, horrível, desarmônica. O mito trágico suscita o

feio e o desarmônico, mas estes podem ser objeto de prazer estético? Para responder a esta

questão não se pode introduzir noções morais, pois “quem pretendesse, todavia, defluir o

efeito trágico unicamente dessas fontes, como era na verdade costume na estética há muito

tempo, não poderá crer que haja feito com isso algo pela arte: a qual, em seu domínio, deve

antes de tudo exigir pureza”.54

Ou seja, a estética somente pode passar a tematizar, além do

belo, o feio, quando parte de uma perspectiva extra-moral. Assim, a questão retorna de outro

modo e pode encontrar uma resposta:

como é que o feio e o desarmônico, isto é, o conteúdo do mito trágico, podem suscitar um prazer estético? Aqui se faz agora necessário, com uma

audaz arremetida, saltar para dentro de uma metafísica da arte (...) de que a

existência e o mundo aparecem justificados somente como fenômeno estético: nesse sentido precisamente o mito trágico nos deve convencer de

que mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que a vontade, na

perene plenitude de seu prazer, joga consigo própria. Difícil como é de se apreender, esse fenômeno primordial da arte dionisíaca só por um caminho

direto torna-se singularmente inteligível e é imediatamente captado: no

maravilho significado da dissonância musical; do mesmo modo que somente

a música, colocada junto ao mundo, pode dar uma noção do que se há de entender por justificação do mundo como fenômeno estético. O prazer que o

mito trágico gera tem uma pátria idêntica à sensação prazerosa da

dissonância na música. O dionisíaco, com o seu prazer primordial percebido inclusive na dor, é a matriz comum da música e do mito trágico.

55

O feio e o desarmônico surgem de modo lúdico, estético, na tragédia, pois eles são elementos

constitutivos do jogo trágico da vontade, do agón que o mundo joga consigo mesmo. O prazer

estético do feio e do desarmônico no mito trágico pode ser experimentado na dissonância

musical.

Na abordagem tradicional da música a dissonância, quando admitida, é

compreendida como a antecipação de uma consonância. Toda dissonância pressupõe, assim,

sua resolução, ocorre sempre como uma tensão que tem necessariamente de se resolver numa

consonância. A dissonância foi interpretada tradicionalmente como uma tendência à

54 NIETZSCHE, Friedrich (1992), § 24, p. 141. 55 Idem (1992), § 24, p. 141.

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32

resolução, ou seja, ela seria, na música, uma contradição dialética que se resolve

necessariamente, porque desde sempre antecipa a síntese, a consonância. Na concepção

trágica, em contrapartida, a dissonância não antecipa inevitavelmente a resolução, mas pode

ser mantida agonisticamente, no limite da tensão. Essa tensão irresolúvel da dissonância é o

que se tornou concreto no prelúdio de Tristão e Isolda, quando Wagner cria uma seqüência de

dissonâncias que não se resolvem. Cada dissonância desemboca em uma nova dissonância,

elevando a tensão ao limite, sem encontrar, por muito tempo, uma resolução. O efeito dessa

radicalização da dissonância é a intensa experiência estética de uma música desarmônica, é o

desarmônico como um prazer estético radical.

O que está na base da música dissonante da tragédia, segundo Nietzsche, é o mesmo

que está na base do mito trágico: o dionisíaco. O trágico, enquanto dionisíaco, é desarmônico,

é dissonância mantida sem possibilidade de consonância, é a tensão no limite radical, é o

agón, radicalmente contraditório, a contradição afirmada na arte trágica.

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33

2.4. O TRÁGICO E A METAFÍSICA DE ARTISTA

O agón apolíneo-dionisíaco, a guerra trágica tem um caráter ontológico fundamental,

que só pode ser compreendido na ambiência de uma articulação presente em O nascimento da

tragédia a que Nietzsche chama de metafísica de artista.56

Seus termos básicos são o apolíneo

e o dionisíaco, enquanto aparência e essência. Fortemente influenciada por Kant

Schopenhauer e Wagner, a metafísica de artista concebe o apolíneo como representação e o

dionisíaco como vontade. O dionisíaco, enquanto barbárie pré-apolínea, tem assim não só

uma anterioridade cronológica em relação ao apolíneo, mas também ontológica. O dionisíaco

é o fundo das coisas, a coisa em si, o abismo terrível da vontade cega, a contradição trágica

que exclui de seu âmbito a razão. A visão do dionisíaco é dilacerante, é insuportável, de modo

que somente através do filtro, da transfiguração apolínea, isto é, na arte, o dionisíaco pode ser

vislumbrado sem sucumbimento. O apolíneo é, na medida em que realça o aspecto extasiante

da visão terrificante do dionisíaco, o que possibilita que em Nietzsche, diferentemente de

Schopenhauer, o contraditório inerente ao mundo, o mundo como vontade seja não negado,

mas afirmado na e pela arte.

A metafísica de artista é uma tentativa de interpretação global, uma teoria do real em

geral que estetiza o mundo, sendo, portanto, no horizonte da filosofia nietzschiana, um

corolário da consideração de mundo extra-moral. Ao pensar esteticamente, a metafísica de

artista concebe a relação entre aparência e essência, isto é, entre o apolíneo e o dionisíaco

como uma relação mimética. Escreve Nietzsche,

com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles onipotentes impulsos

artísticos e neles um poderoso anelo pela aparência [Schein], pela redenção

através da aparência, tanto mais me sinto impelido à suposição metafísica de que o verdadeiramente-existente [Wahrhaft-Seiende] e Uno–primordial,

enquanto o eterno-padecente e pleno de contradição necessita, para sua

constante redenção, também da visão extasiante, da aparência prazerosa.57

O dionisíaco é a essência do mundo, a vontade, o Uno-primordial. O apolíneo é uma espécie

de cópia do dionisíaco, primeiro enquanto mundo, depois enquanto sonho, arte. O apolíneo é

56 Idem (1992), Prefácio para Richard Wagner, p. 26. 57 Idem (1992), § 4, p. 39.

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34

a aparência da essência dionisíaca. Mas “o sonho deve agora valer para nós como a aparência

da aparência; por conseguinte, como uma satisfação mais elevada do apetite primevo pela

aparência”.58

Enquanto aparência da essência dionisíaca, o apolíneo agrega valor, isto é,

afirma o mundo, reconhecendo sua problematicidade inerente. A metafísica de artista,

portanto, se articula de modo semelhante ao da dialética básica da metafísica platônica, porém

com sentido inverso. Enquanto em Platão, cada mímesis (μίμεσις) significa um decréscimo de

valor, primeiro no mundo sensível, que surge como cópia do mundo inteligível, e depois na

arte, que surge como cópia da cópia59

, na metafísica de artista nietzschiana, cada mímesis

agrega valor, de modo que a arte surge como a esfera mais valorosa. Por esta razão, “a grande

singularidade do pensamento filosófico de Nietzsche nesta época é fazer uma apologia da

aparência como necessária à vida e a única via de acesso à essência: uma apologia, portanto,

da arte”.60

Partindo desta apologia da arte, a metafísica de artista se articula como uma revisão

da distinção entre essência e aparência e da atribuição de valor a cada um desses termos. Na

medida em que a metafísica de artista atribui mais valor à aparência que à essência, ela

poderia ser dita uma metafísica da aparência.

Porém, além dessa revisão da distinção entre essência e aparência através das noções

do dionisíaco e do apolíneo, a metafísica de artista tem uma tese central: “só como fenômeno

estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente”.61

Essa tese, que ao

contrário do conjunto da metafísica de artista não viria a ser rechaçada na filosofia madura de

Nietzsche, como comprova sua confirmação no prefácio autocrítico a O nascimento da

tragédia62

, é um elemento central da consideração de mundo extra-moral. Nesta se trata de

articular uma estética da existência, na qual o homem e a vida surgem como obra. Na estética

da existência, “o homem não é mais artista, tornou-se obra de arte”.63

O mundo, trágico em

seu cerne, essencialmente contraditório, problemático, cheio de dor e de sofrimento, mas

também de alegria e prazer, somente pode ser justificado esteticamente, isto é, da perspectiva

extra-moral. A metafísica de artista e, sobretudo, a tese da justificação estética do mundo, o

desiderato da estetização da existência, são aprofundamentos, ou mesmo, radicalizações da

perspectiva extra-moral e vêm complementá-la enquanto consideração do mundo.

58 Idem (1992), § 4, p. 39. 59 Cf. PLATÃO. A república. Trad. M. H. Rocha. 8.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, X. 60 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro: Graal, Paz e Terra, 1999, p. 10. 61 NIETZSCHE, Friedrich (1992), § 5, p. 47. 62 Cf. Idem (1992), Tentativa de autocrítica, § 5, p. 18. 63 NIETZSCHE, Friedrich (1992), § 1, p. 31.

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35

Num fragmento póstumo de maturidade, Nietzsche escreve que “a profundidade do

artista trágico consiste em perceber por meio do instinto estético as conseqüências

longínquas, e em não se encerrar, por miopia, na contemplação das coisas próximas, em

afirmar a economia em grande escala, a economia que justifica o terrível, o mau, o

problemático, e não só justifica”.64

Essa “economia em grande escala” surge na arte trágica,

como justificação da problematicidade trágica do mundo. Trata-se de uma justificação estética

do mundo que não desconhece o caráter dionisíaco do fundo das coisas, pelo contrário,

justifica-o. Bem entendido, uma justificação estética não é uma justificação última. Em última

instância, a existência enquanto fenômeno estético permanece sem justificação. Justificar

esteticamente é manter o espaço do não justificado, do injustificado e injustificável. A arte

como a vida não carece de justificação, mas de afirmação, a afirmação trágica, que só é

possível em uma consideração de mundo extra-moral. Acerca de questões de justificação,

Nietzsche responderia como, segundo ele, respondeu Heráclito: “‘É um jogo, não o tomeis tão

pateticamente e, antes de tudo, não o tomeis moralmente!’”.65

O pensamento de Nietzsche posterior a O nascimento da tragédia, entretanto, viria a

rechaçar a idéia da metafísica da aparência.

A filosofia da arte que Nietzsche realiza na primeira etapa de sua reflexão –

como aspecto positivo e normativo de sua crítica à racionalidade – se

estrutura através das categorias metafísicas de essência e aparência. Isto é, diferentemente de textos posteriores em que pensa a vida como aparência ou

em que pretende eliminar a oposição essência-aparência, nesta época, sob a

influência de Kant e Schopenhauer, sua filosofia parte das dicotomias entre aparência e essência, fenômeno e coisa em si, representação e vontade para

tematizar a relação entre beleza e verdade e, por conseguinte, entre apolíneo

e dionisíaco.66

Tanto na tentativa de autocrítica do prefácio que se torna parte integrante de O nascimento da

tragédia a partir de sua segunda edição de 188667

, quanto no Ecce homo68

, Nietzsche critica

impiedosamente sua concepção juvenil de metafísica, fortemente contaminada pelas

influências de Kant, Schopenhauer, Wagner e mesmo de Hegel. Porém, o que há de mais

vigoroso na autocrítica de Nietzsche à metafísica de artista diz respeito ainda à tendência

moralizante oculta mesmo nesta metafísica estetizante. Enquanto radicalização da perspectiva

da consideração de mundo extra-moral, a metafísica de artista teria acabado por se mostrar

64 NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Trad. M. D. F. Santos. São Paulo: Ediouro, s/d, § 374, p. 284. 65 NIETZSCHE, Friedrich (1989), § 7, p. 80. 66 MACHADO, Roberto (1999), p. 10. 67 Cf. NIETZSCHE, Friedrich (1992), § 5, p. 18.

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36

uma estratégia infeliz, pois ainda recaía, de algum modo, naquilo que pretendia negar, isto é,

na moral. A metafísica de artista teria sido uma desesperada tentativa de justificação estética

do mundo que, na precisa medida em que se mantinha como uma tentativa de justificação,

ainda que estética, acabava por ser moralizante.

Isso leva à conclusão de que a objeção mais forte de Nietzsche à metafísica não se

dirige propriamente a esta, enquanto teoria globalizante, mas à sua contaminação pela moral.

O combate à moral na metafísica acarreta, sem dúvida, em Nietzsche, uma crítica demolidora

desta, todavia, pode-se dizer que a crítica nietzschiana à metafísica é uma crítica à moral. A

crítica de Nietzsche à metafísica seria, portanto, uma crítica à moral na metafísica. Isto já

invalida de antemão toda e qualquer pretensão de metafísica? Seria possível ainda uma

metafísica, após o processo de desmoralização, após a radical transvaloração de todos os

valores? Esta é uma questão que Nietzsche perseguiu em toda a sua obra. A hipótese que se

lançaria aqui, mesmo que este não seja o lugar nem a hora, é de que Nietzsche concebeu sim

uma metafísica do trágico69

, uma consideração de mundo radicalmente trágica; e seu conceito

mais central seria precisamente a vontade de poder...70

68 Cf. NIETZSCHE, Friedrich (1995), O nascimento da tragédia, § 1, p. 62, onde Nietzsche se refere ao

repugnante cheiro de hegelianismo que impregna sua primeira obra. 69 Deleuze chega a sugerir que Dionísio é um nome para a vontade de poder. [Cf. DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Trad. A. Campos. Lisboa: Edições 70, 1994.]. 70 “O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente

‘vontade de poder’, e nada mais. – ”. [NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia

do futuro. Trad. P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, § 36, p. 43.]

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37

III.

TRAGÉDIA E FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM BENJAMIN

... trágica é a palavra e trágico é o silêncio dos

tempos arcaicos...

(Walter Benjamin, Origem do drama barroco

alemão)

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38

3. TRAGÉDIA E FILOSOFIA DA HISTÓRIA EM BENJAMIN

3.1. DRAMA BARROCO E TRAGÉDIA. DRAMA BARROCO OU TRAGÉDIA

Benjamin conclui a primeira parte do capítulo de Origem do drama barroco alemão

que trata de drama barroco e tragédia com a seguinte afirmação: “a tragédia antiga é uma

escrava acorrentada ao carro triunfal do Barroco”.71

Se o tom dessa passagem soar um tanto

agressivo a ouvidos desabituados com a linguagem e o pensamento de Benjamin, pode-se

adverti-los de que tal agressividade é, de fato, a intenção do autor. Trata-se, com efeito, de

uma “sonora bofetada” na tradição estética e crítica literária que concebeu com descaso o

drama barroco como uma tragédia deturpada. Invertendo a ordem dos valores e pondo o

drama barroco em uma posição privilegiada frente à tragédia, Benjamin pretende

precisamente os contrapor dando cabo à antiga confusão entre Tragödie e Trauerspiel.

Interessa a Benjamin definir o drama barroco como uma forma ou idéia autônoma em relação

à tragédia, concebendo-o em sua identidade e especificidade, e o primeiro passo para isso é

pensar as duas noções como antitéticas.72

Portanto, há que ser dito logo de início que o

interesse que Benjamin alimenta pela tragédia é de segunda ordem, no sentido de que deriva

de sua intenção de definir rigorosamente o drama barroco. Na contraposição entre tragédia e

drama barroco é que se pode compreender a concepção benjaminiana do trágico.73

A mencionada confusão entre tragédia e drama barroco não deve, no entanto, ser

inteiramente tributada à tradição estética e crítica literária. Os autores barrocos não tinham

71 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. S. P. Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.

122. 72 Bem entendido, a antítese entre drama barroco e tragédia é dialética, uma vez que esta, a exemplo de outros gêneros, como o drama de martírio, o drama de destino etc, estão na origem do drama barroco, que os supera

dialeticamente, isto é, conservando em si algo deles. Portanto, a rigor, o barroco não se constitui como forma

autônoma antitética à tragédia, pois esta já se encontra, num certo sentido, em sua origem. 73 Cf. ROUANET, Sérgio P. Apresentação. In: BENJAMIN, Walter. (1984), p. 28.

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39

clareza dessa distinção, como se pode perceber na definição de Opitz do drama barroco citada

por Benjamin: “‘A tragédia é igual em majestade à poesia heróica, com a diferença de que ela

realmente tolera a introdução de personagens de baixa extração e de episódios medíocres:

seus temas são a vontade dos reis, assassínios, desesperos, infanticídios e parricídios,

incêndios, incestos, guerras e insurreições, lamentações, gemidos e outros semelhantes’”.74

Dispondo-se a definir o que, para Benjamin, seria o drama barroco, Opitz se refere à tragédia.

A definição que ele apresenta, entretanto, não se adequa tão bem a esta quanto ao drama

barroco. A influência de Opitz sobre a produção literária do século XVII, por sua vez,

comprova a falta de clareza que mesmo os autores barrocos tinham sobre o que criavam.

Pensavam eles fazer tragédias quando concebiam dramas barrocos. Eis o drama do drama

barroco.

Porém, a definição citada, em sua linguagem barroca, não fomenta apenas a

confusão. Para Benjamin, ela tem o mérito de precisar o conteúdo próprio do drama barroco

em sua distinção face à tragédia. “Seu conteúdo, seu objeto mais autêntico é a própria vida

histórica, como aquela época a concebia. Nisso ele se distingue da tragédia, cujo objeto não é

a história, mas o mito, e na qual a estatura trágica das dramatis personae não resulta de sua

condição atual, radicada na monarquia absoluta, e sim de uma condição pré-histórica,

radicada no heroísmo do passado”.75

O objeto do drama barroco é a história, em

contraposição à tragédia cujo objeto é o mito. Eis a distinção fundamental; as demais derivam

de uma forma ou de outra desta distinção.

O drama barroco se enraíza profundamente em seu tempo histórico, é expressão

deste. O tempo do drama barroco é o seu presente histórico, isto é, o século XVII e seu

contexto sócio-político. Somente a partir desse horizonte histórico preciso o drama barroco

pode ser compreendido. Não há transcendência possível deste horizonte. Isso é representativo

da imanência na história não só do drama barroco, mas de toda obra de arte. Toda obra de arte

é imanente a seu tempo e é expressão dele, de modo que não pode ser compreendida se o

horizonte histórico em que se insere é suprimido. Assim, a tragédia grega se enraíza na

antigüidade clássica tal como o drama barroco se enraíza no século XVII. A interpretação da

obra de arte remete, portanto, a uma filosofia da história. Pode-se dizer que é este o resultado

a que chega Benjamin partindo da experiência estética concreta do drama barroco, assim

como Nietzsche partindo da experiência estética da tragédia chegara, como foi visto, num

74 BENJAMIN, Walter (1984), p. 86. 75 Idem (1984), p. 86.

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40

certo sentido, a uma metafísica. Mas se a interpretação estética depende de uma filosofia da

história, também a tragédia será pensada por Benjamin com base nessa premissa.

A imanência do drama barroco na história, isto é, a história como conteúdo do drama

barroco reflete-se no fato de que segundo Benjamin, “os autores acreditavam que a ‘tragédia’

(Trauerspiel) podia ser captada diretamente no processo histórico: bastava achar as palavras

certas”.76

É a história mesma que nesse sentido é trágica, de modo que o autor restringir-se-ia

a registrá-la literariamente. Escreve Benjamin que “no século XVII, o termo Trauerspiel se

aplicava tanto à obra como aos acontecimentos históricos, do mesmo modo que hoje, com

maior justificação, ocorre com o termo trágico”.77

A confusão entre Tragödie e Trauerspiel

estava presente mesmo na linguagem comum. Um evento histórico catastrófico podia ser dito

um Trauerspiel, numa formulação em que este Trauerspiel forçosamente teria de ser vertido

para o português como “tragédia”.78

Importa a Benjamin, como foi dito, desfazer esta

confusão, definindo rigorosamente Tragödie como tragédia grega antiga e Trauerspiel como

drama barroco alemão. Enquanto expressão de seu tempo histórico, a tragédia jamais poderia

ser atualizada, não existiria, portanto, uma tragédia moderna79

, ainda que esta fosse, em sua

ingenuidade, a intenção explícita dos autores barrocos. E o mesmo raciocínio valeria para o

drama barroco.

Tal análise implica repudiar o descaso da crítica, seja ela desfavorável ou não80

, em

relação ao drama barroco como gênero e como idéia. Benjamin pretende reabilitar o gênero

marginalizado do drama barroco, o que somente poderia ser feito, conforme as razões

expostas, a partir de um confronto com a tragédia. Trata-se, portanto, de, em consonância com

o desiderato da sétima tese Sobre o conceito de história, “escovar a história a contrapelo”81

,

recuperando para o presente a idéia do Barroco. Eis o motivo da bofetada alegórica,

apresentada de início, da tragédia como “uma escrava acorrentada ao carro triunfal do

Barroco”. Trata-se agora de compreender melhor quem é esta “escrava” para Benjamin.

76 Idem (1984), p. 87. 77 Idem (1984), p. 87. 78 A etimologia de Tragödie em alemão, “tragédia” em português, tragoidía (τραγοιδία) em grego, remete a

tragos (τράγος), bode, donde a tragédia seria um “canto de bode”. [Cf. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos

literários. 14.ed. São Paulo: Cultrix, 1999, pp. 495 e ss.]. Trauerspiel, por sua vez, é um composto de dois

substantivos: Trauer, luto, e Spiel, jogo, portanto, literalmente, “jogo de luto”, “jogo lutuoso”. 79 Cf. BENJAMIN, Walter (1984), pp. 124, 136. 80 No início do século XX, especialmente a partir do fim da I Guerra Mundial, a crítica literária vive um período de reabilitação do barroco, que resulta, em grande parte, do sentimento de afinidade entre a República de

Weimar e a época da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Do ponto de vista de Benjamin, porém, em seu

entusiasmo pelo barroco, os críticos literários vão dar continuidade à confusão entre tragédia e drama barroco, o

que lhes impede de conceber este como idéia. [Cf. ROUANET, Sérgio P. (1984), pp. 26-7].

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41

3.2. A CRÍTICA DE BENJAMIN ÀS ABORDAGENS “MORALIZANTES” DA

TRAGÉDIA

Benjamin, assim como Nietzsche, distancia-se das abordagens moralizantes do

trágico. “Poderíamos dizer que Benjamin se encontra em continuidade com esta tradição

iniciada por Schiller, que perpassa o próprio Nietzsche, e que consiste em procurar se

distanciar da idéia de que a tragédia se vinculava, essencialmente, a uma espécie de lição de

moral e de virtudes”.82

Moralizante é precisamente a abordagem que faz da essência da

tragédia uma lição de moral. O espetáculo trágico teria, assim, a função pedagógica de ensinar

ao espectador virtudes, bons costumes e uma atitude moralmente correta diante do mundo e

da vida. Esta leitura da tragédia, que se tornou hegemônica na tradição estética e crítica

literária desde o século XVIII, baseia-se numa interpretação da Poética de Aristóteles, de

modo que pode ser denominada de aristotelismo. O aristotelismo moralizante do trágico da

tradição é visto por Benjamin como fator determinante para a desqualificação do barroco

enquanto gênero. No plano do resgate do drama barroco, importa a Benjamin desconstruir

esse aristotelismo. Essa desconstrução terá conseqüências inevitáveis sobre a interpretação

benjaminiana da própria tragédia.

Em primeiro lugar, importa notar que, para Benjamin, a despeito do reconhecimento

da autoridade de Aristóteles pela tradição, a influência aristotélica concreta sobre o drama

barroco é totalmente irrelevante. A tradição leu o drama barroco a partir de Aristóteles,

todavia, “a história do drama alemão moderno não conhece nenhum período em que os temas

da tragédia antiga tenham sido menos influentes. Isso bastaria para refutar a tese da

predominância de Aristóteles. Faltava tudo para a compreensão de sua doutrina,

principalmente a vontade”.83

Por mais que buscassem se albergar na autoridade de Aristóteles,

os autores barrocos não dispunham senão de uma leitura subvertida, voluntariamente, da

Poética.84

Aquilo que surge como influência aristotélica seria mais justamente tributado a

81 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre

literatura e história da cultura. Trad. S. P. Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994c, p. 225. 82 CHAVES, Ernani. Idem (2003a), p. 66. 83 BENJAMIN, Walter (1984), p. 84. 84 Aristotelismo barroco seria, assim, uma leitura subversiva de Aristóteles, como Benjamin sugere na seguinte

passagem: “essa ‘teoria alheia a seu objeto’ impregnou a interpretação da época e permitiu que o novo, através

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42

outras fontes, como o classicismo holandês e o teatro jesuítico, verdadeiros precursores do

drama barroco. Isso de deve, de acordo com Benjamin, entre outros fatores, ao fato de que

“em meados do século XVII a poética aristotélica não era ainda a construção dogmática,

simples e imponente, com que se defrontou Lessing”.85

Ou seja, ao tempo do drama barroco,

o aristotelismo ainda não havia se constituído como dogmática, de modo, que se este foi

utilizado pela crítica literária posterior ao século XVII para ler o barroco, o foi

retroativamente.

Essa leitura “aristotélica” a posteriori do drama barroco acabou por fomentar a

confusão entre este e a tragédia. Daí a crítica que Benjamin objeta à interpretação psicologista

da kátharsis (κάθαρσις) aristotélica. Segundo algumas leituras modernas do barroco “o drama

desse período é uma verdadeira tragédia, porque evoca a ‘piedade e o terror’. Ora, essa

interpretação psicologista do conceito de catarsis é irrelevante mesmo para a tragédia grega, e

o é mais ainda para o drama barroco, que só pode ser explicado a partir da lei de sua forma, e

não pelos efeitos produzidos sobre o espectador”.86

De acordo com a teoria do conhecimento

de Benjamin, a obra de arte deve ser interpretada à luz da idéia ou da forma de que é

representação, e não com base nos supostos efeitos que ela suscitaria. Isto vale tanto para o

drama barroco quanto para a tragédia. Também a interpretação moralista da kátharsis seria

inviável. Segundo esta concepção, a kátharsis suscitada pela tragédia teria como função

essencial o “aperfeiçoamento moral” do espectador.87

Do ponto de vista benjaminiano, esta

“função essencial” também não diria nada acerca da idéia, seja do barroco, seja da tragédia,

não dando conta, portanto, daquilo que interessa na interpretação da obra de arte.

Isso, todavia, não deve levar a crer que Benjamin prescinda por inteiro da kátharsis

aristotélica. Com rigor, seria preciso dizer que a crítica de Benjamin se dirige muito mais ao

aristotelismo, isto é, a uma certa leitura moralizante da Poética, do que ao próprio Aristóteles.

Nesse sentido, “tanto Nietzsche quanto Benjamin, deixando de lado a Poética e apoiando-se

na Política de Aristóteles, consideram que a única possibilidade de kátharsis é aquela

proporcionada pelos ‘cantos dinâmicos’ e ‘entusiasmados’, que deixam a alma leve e,

principalmente, liberta das amarras moralizantes, proporcionando um ‘alívio misturado ao

prazer’ ou ainda uma ‘alegria inocente’”.88

Partindo de uma leitura do sétimo capítulo do

de um gesto aparente de submissão, assegurasse o patrocínio da mais incontestável das autoridades: a do mundo

antigo”. [BENJAMIN, Walter (1984), p. 122]. 85 Idem (1984), p. 84. 86 ROUANET, Sérgio P. (1984), p. 27. 87 Cf. CHAVES, Ernani. Idem (2003b), p. 197. 88 Idem (2003b), p. 202.

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43

oitavo livro da Política de Aristóteles, seria possível desvincular a kátharsis do

“aperfeiçoamento moral” e ligá-la a uma alegria inocente, isto é, desmoralizada, ou concebê-

la de uma perspectiva extra-moral.89

Essa ao menos parece ser a referência implícita na

seguinte passagem de Origem do drama barroco alemão: “o ’έλεος [éleos] aristotélico devia

ser compreendido apenas como um impulso ativo para aliviar as angústias e os sofrimentos do

próximo, e não como um colapso patológico diante do espetáculo de um destino terrível,

como misericórdia, e não como pusillanimitas”.90

A crítica de Benjamin se volta, portanto, à compreensão de Aristóteles articulada

pelos modernos. Esta teria procedido, em primeiro lugar, a uma moralização de Aristóteles e,

em seguida, a uma moralização do trágico. A este respeito, escreve Benjamin,

sem qualquer respeito pelos fatos históricos, a filosofia da tragédia foi

construída como uma teoria da ordem ética do mundo, resultando num sistema de sentimentos, solidamente apoiados, ao que se julgava, em

conceitos como os de “culpa” e “expiação”. (...) os epígonos literários e

filosóficos da segunda metade do século XIX assimilaram, com surpreendente ingenuidade, aquela ordem ética à ordem causal da natureza, e

em conseqüência o destino trágico foi visto como uma condição “que se

exprime pela interação do indivíduo com um universo regido por leis”.91

A leitura moderna da tragédia, concebe o trágico como hýbris (‘ύβρις), isto é, como a ruptura

efetuada pelo herói da harmonia da ordem universal regida pelas leis olímpicas, leis estas que

seriam ao mesmo tempo naturais e éticas. Daí decorre para o herói a “culpa”, que há de ser

“expiada”: este seria o destino trágico. Essa assimilação entre phýsis (φύσις) e éthos (έθος) é,

todavia, ingênua, pois não está baseada em uma compreensão dos gregos em seu tempo

histórico, isto é, falta aos modernos uma filosofia da história. “Na verdade, nada é mais

problemático que a competência do ‘homem moderno’ para julgar, sem qualquer orientação, à

luz de seus sentimentos, e mais ainda quando se trata de um julgamento sobre a tragédia”.92

A

moralização do trágico é tipicamente moderna, baseia-se no julgamento que os modernos, a

partir da modernidade, fazem do mundo e quando se dirige aos gregos e, em especial, à

tragédia comete inevitáveis anacronismos. Isso se deve, segundo Benjamin, ao fato de que “a

filosofia da história foi excluída”.93

Da negligência da tradição em relação à filosofia da história deriva o preconceito

inquestionado de que “as ações e atitudes dos personagens trágicos podem ser utilizadas para

89 Cf. Idem (2003b), p. 198. 90 BENJAMIN, Walter (1984), p. 85. 91 Idem (1984), pp. 123-4. 92 Idem (1984), p. 124.

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a exposição de problemas morais da mesma forma que um manequim para o ensino da

anatomia”.94

Nesse sentido, na tragédia o homem encontraria um modelo de conduta moral,

sobretudo na atitude do herói, no qual deveria pautar seu dia-a-dia. Esse preconceito é o que

habilita a interpretação moralizante do trágico a definir, como já foi mencionado, o

“aperfeiçoamento moral” como função essencial da tragédia. Escreve Benjamin, “enquanto

em outras dimensões os comentadores não se atrevem levianamente a considerar uma obra de

arte como uma reprodução exata da vida, na dimensão moral, os comentadores crêem que a

obra de arte é uma cópia exemplar, sem se colocarem, sequer, a questão de como fenômenos

morais podem ser representados”.95

O antigo problema estético da representação, o problema

da mímesis (μίμεσις) seria, assim, resolvido de antemão no que se trata dos fenômenos morais,

ao passo que em outros âmbitos a problemática permaneceria irresoluta. Isto é, existe uma

assimetria entre a realidade representada na obra e a realidade em si mesma, porém quanto

aos fenômenos morais, a tradição prefere desconhecer essa assimetria, sem fornecer,

entretanto, uma solução teórica para esse problema. De fato, para a tradição foi necessário que

se passasse por alto o problema, para chegar logo à conclusão de que a obra funciona como

uma lição de moral.

Todavia, é preciso que fique clara a sutileza da crítica de Benjamin às abordagens

moralizantes do trágico, pois para ele não se trata tanto de desqualificar a atribuição de algum

conteúdo moral à tragédia (como num certo sentido fizera Nietzsche), quanto de “abrir o

caminho para a necessidade de ver no conteúdo moral da poesia trágica, não sua última

palavra, mas um momento do seu conteúdo de verdade integral: vale dizer, por meio da

história da filosofia”.96

Desse modo, se Benjamin procede a uma “desmoralização” da

tragédia, isto não significa que ele a afaste totalmente da moral. A moral não é a essência do

trágico, mas é ainda um de seus momentos de verdade. Não se trata, na desconstrução das

abordagens moralizantes da tragédia, para Benjamin, de conceber o trágico de um ponto de

vista extra-moral, ou seja, excluindo por completo a moral (e este é um ponto central no

confronto de Benjamin com Nietzsche), mas de limpar o terreno para que o momento de

verdade moral do trágico venha à luz. E isto só é possível por meio de uma filosofia da

história, que é justamente o que falta aos modernos.

93 Idem (1984), p. 125. 94 Idem (1984), p. 127. 95 Idem (1984), p. 127. 96 Idem (1984), p. 128.

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45

Para definir a tragédia como uma lição de moral e o herói como um modelo de

conduta moral, a concepção moralizante se baseia no pressuposto infundado e de que ela

mesma não chega a ter consciência de que seria possível à arte representar fenômenos morais.

Para refutar esse pressuposto basta que se diga, com Benjamin, que “os personagens da ficção

só existem na ficção. Como personagens de uma tapeçaria, eles estão de tal forma integrados

na tessitura total da obra que não podem de forma alguma ser destacados dela. A figura

humana, na literatura, e na arte em geral, tem um estatuto diverso da figura humana real”.97

Isto é, o contexto em que se dá um fenômeno moral numa obra de arte jamais se confunde

com o contexto em que ocorrem os fenômenos morais na vida real. Isso não significa porém,

que a moral seja inteiramente desligada da arte. Fenômenos morais estão presentes na arte

enquanto representados, a arte representa, entre outros elementos, a moral dos homens tal

como eles a vivem, ela não veicula uma doutrina moral nem dá lições.

Todo fenômeno moral está ligado à vida em seu sentido extremo, no ponto

em que ela se aloja na morte, sede do perigo absoluto. E essa vida, que nos

afeta moralmente, isto é, em nossa individualidade única, aparece, ou deveria aparecer, como algo de negativo, do ponto de vista da criação

artística. Pois a arte não pode de forma alguma admitir sua transformação em

conselheira da consciência moral, dando mais atenção ao sujeito

representado que à representação. O conteúdo de verdade desse todo, que não se encontra nunca na doutrina abstrata, e menos ainda na doutrina moral,

mas somente no desdobramento crítico e comentado da própria obra, só

inclui referências morais de uma forma altamente mediatizada.98

Não é porque a arte não dá conselhos à consciência moral que ela exclui de seu âmbito por

completo a moral. A arte representa a moral enquanto fenômeno vital, enquanto vida, na

medida em que a moral é um momento de verdade da vida. Nesse sentido, a moral é tema da

arte. A moral enquanto representada pela arte não se constitui em doutrina moral, como quis

fazer crer a interpretação moralizante. Por não ter uma base histórica, a qual só poderia ser

articulada a partir de uma filosofia da história que no entanto está ausente, é que as referências

morais acabam por vir à superfície como “objeto principal da investigação”. A mediação das

referências históricas somente pode ser feita por uma filosofia da história que, todavia, não se

encontra entre os modernos.

Da denúncia da exclusão da filosofia da história, elemento central para Benjamin,

das modernas abordagens moralizantes do trágico, decorre o imperativo de articular uma

investigação apta à compreensão dos gregos em seu próprio tempo, isto é, trata-se de articular

97 Idem (1984), p. 128. 98 Idem (1984), p. 128.

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a filosofia da história que falta aos modernos. O impulso inicial não só da crítica aos

modernos, mas também da necessidade dessa tentativa estaria registrado em O nascimento da

tragédia.99

“É este o ponto de Arquimedes que pensadores recentes como Franz Rosenzweig e

Georg Lukács encontraram na obra de juventude de Nietzsche”.100

A partir de um confronto

crítico com Nietzsche, Benjamin inicia esta tentativa de uma filosofia da história que serve de

aporte à compreensão da tragédia em seu caráter especificamente grego.

99 Cf. CHAVES, Ernani (2003a), p. 65. 100 BENJAMIN, Walter (1984), p. 125.

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3.3. A CRÍTICA DE BENJAMIN AO “ESTETICISMO” DE NIETZSCHE

Ao fazer a crítica da sensibilidade moderna no que diz respeito ao trágico, Nietzsche

teria sido capaz de compreender a tragédia a partir de sua própria época, isto é, ele teria um

sentido histórico mais apurado que o da maioria dos modernos. Isso já se reflete “nas

intuições de Nietzsche quanto à vinculação da tragédia com a saga, e quanto à independência

do trágico em relação ao ethos”.101

A compreensão do caráter especificamente grego do

trágico demanda uma crítica das concepções modernas e uma filosofia da história, cujo

primeiro passo seria o esclarecimento da relação entre tragédia e saga. O nascimento da

tragédia, de acordo com Benjamin, registra o impulso inicial nesse sentido.

Todavia, se ele parecia encaminhar a investigação num sentido interessante do ponto

de vista histórico-filosófico, “o melhor da obra de Nietzsche acabou sendo invalidado por sua

metafísica schopenhaueriana e wagneriana”.102

Isto é, Nietzsche não teria dado continuidade

às próprias intuições, devido à influência da metafísica de Schopenhauer e de Wagner em seu

pensamento de juventude. Paradoxalmente, “a crítica dirigida ao Nascimento da tragédia no

Origem do drama barroco alemão (...) poderia ser resumida com os mesmos termos pelos

quais Nietzsche endereçou em diversos textos suas críticas à filosofia ocidental como um

todo: ‘falta de sentido histórico’”.103

Falta-lhe o sentido histórico no tratamento da tragédia

porque, apesar de ter intuído a exigência de uma filosofia da história, a leitura de Nietzsche

acabou por degringolar em uma metafísica do trágico.

Entretanto, esta metafísica do trágico é uma metafísica incomum. Ela parte do

interesse de Nietzsche em afastar da tragédia qualquer expediente moralizante. Assim,

metafísica e moral foram, pelo primeiro Nietzsche, totalmente desvinculadas. Se existe a

proposição de uma metafísica em O nascimento da tragédia, esta é uma metafísica extra-

moral, é uma tentativa de dar conta da realidade profunda do mundo e, num certo sentido, de

seu fundamento, com base em um olhar que não é moral, mas estético. Pode-se dizer, assim,

101 Idem (1984), p. 125. 102 Idem (1984), p. 125. 103 CHAVES, Ernani (2003b), p. 191.

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que a metafísica do trágico é uma tentativa de estetização da metafísica e, por conseguinte, do

mundo é uma metafísica estetizante.

Essa tentativa, no entanto, implica perder de vista a filosofia da história. A

concepção nietzschiana do mito trágico já apresenta esse problema. Segundo Benjamin, “o

mito trágico é para Nietzsche uma construção puramente estética, e a interação de energias

apolíneas e dionisíacas, da aparência e da dissolução da aparência, permanece restrita à esfera

estética”.104

Na medida em que se restringe à esfera da estética, esfera de uma metafísica

estetizante, Nietzsche, por um lado, desconstrói a abordagem moralizante do trágico, mas por

outro, põe a perder suas intuições acerca da filosofia da história. A pureza estética

nietzschiana implica o esvaziamento dos aspectos histórico-filosóficos da investigação acerca

do trágico e, ao mesmo tempo, a assunção de uma metafísica. Por sua vez, a concepção de

filosofia da história que Benjamin tem em vista, inserida no processo de desconstrução que

domina o cenário filosófico do final do século XIX e início do século XX – sobre o qual, não

obstante, paira a imagem da “filosofia do martelo” – opõe-se conscientemente à metafísica,

em que o jovem Nietzsche acabou incorrendo. Apesar de tê-la intuído, ele renunciou à

filosofia da história e “tendo renunciado a um conhecimento histórico-filosófico do mito

trágico, Nietzsche pagou um preço alto por seu projeto de emancipar a tragédia dos lugares-

comuns morais com que os comentadores a desfiguravam”.105

O preço dessa desmoralização

do trágico foi a renúncia à filosofia da história em nome de uma metafísica estetizante.

Para Benjamin, o erro de Nietzsche teria sido incorrer em um esteticismo. Essa é, ao

menos, a leitura que se encontra em Origem do drama barroco alemão da tese nietzschiana da

justificação do mundo como fenômeno estético, elemento central da metafísica do trágico.

“Somente como fenômenos estéticos são o mundo e a existência justificados para sempre” (...). Abre-se o abismo do esteticismo, no qual esse intuitivo

genial acabou perdendo todos os conceitos, e assim os deuses e os heróis, o

desafio e o sofrimento, os pilares da construção clássica, evaporam-se num

puro nada. (...) Pois que importa se a obra de arte é inspirada pela vontade de viver ou pela vontade de destruir a vida, se a arte, como produto monstruoso

da vontade absoluta, se desvaloriza, desvalorizando o mundo? O niilismo

alojado no cerne da filosofia artística de Bayreuth anulou, e não podia deixar de anular, a sólida factualidade histórica da tragédia grega.

106

Assumindo uma pretensão que não diz respeito à filosofia da história, qual seja, a de justificar

o mundo em última instância, a metafísica do trágico, na medida de seu esteticismo, acaba por

104 Idem (1984), p. 125. 105 Idem (1984), pp. 125-6. 106 Idem (1984), p. 126.

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dissolver a arte no nada. O esteticismo conduz, assim, a um niilismo em que já não resta nada,

nem o mundo que inicialmente se pretendeu justificar. O esteticismo perde de vista, por

completo, os fatos, a história, únicos elementos a partir dos quais se poderia articular uma

compreensão da tragédia em sua especificidade grega.

Mas não é só isso. O ataque de Benjamin ao esteticismo, que no livro sobre o barroco

se articula através de uma leitura de Nietzsche, é um tema que retorna em obras posteriores.

Já sob influência do marxismo, Benjamin desenvolve uma crítica engajada do esteticismo. Em

O autor como produtor, acerca do problema da autonomia do autor, isto é, de sua liberdade de

criação, lê-se: “a situação contemporânea social o força a decidir a favor de que causa

colocará sua atividade. O escritor burguês, que produz obras destinadas à diversão, não

reconhece essa alternativa. (...) sem o admitir, ele trabalha a serviço de certos interesses de

classe”.107

Ao assumir um esteticismo qualquer, ao defender o lema l’art pour l’art, o artista

se crê autônomo e crê ser a sua arte independente, vinculada somente a exigências puramente

estéticas. Esse artista não percebe que seu não engajamento, seu caráter supostamente

“apolítico” é desde sempre já um posicionamento político. Em política, não há como não se

posicionar; o não posicionamento já é um posicionamento. Pensa ele fazer a arte pela arte,

enquanto faz arte em função de interesses que não reconhece como tais, mas que nem por isso

deixam de ser interesses de uma classe, que é a sua, ainda que ele não tenha propriamente

uma consciência de classe. E o interesse dessa classe para se fazer valer se desqualifica como

interesse, torna-se sub-reptício. É interesse da classe privilegiada, que se beneficia com a

manutenção do status quo, aparecer como “desinteressada” e despolitizar a arte, e não só a

arte. A arte pela arte é, assim, a arte em função dos interesses da classe dominante e jamais

em função dos interesses da própria arte. Portanto, partindo da pretensão legítima de

desconstruir as abordagens moralizantes do trágico, Nietzsche, como que chegando ao

extremo oposto, propõe um esteticismo que não deixa de ser burguês, ainda que não tenha

consciência disso.

Voltando a Origem do drama barroco alemão, dir-se-ia que o esteticismo de

Nietzsche é criticável não somente do ponto de vista político, mas também do ponto de vista

da filosofia da história.

A investigação de Nietzsche distanciou-se das teorias da tragédia formuladas

pelos epígonos, sem refutá-las. Ele não criticou sua noção central, a doutrina

da culpa trágica e da expiação trágica, porque abandonou voluntariamente a

107 BENJAMIN, Walter. O autor como produtor. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e

história da cultura. Trad. S. P. Rouanet. 7.ed. São Paulo: Brasiliense, 1994b, p. 121.

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tais teorias o campo do debate moral. Tendo negligenciado essa crítica, não

pôde ter acesso aos conceitos da filosofia da história e da religião, nos quais

tem de se exprimir em última análise qualquer tomada de posição sobre a essência da tragédia.

108

A crítica de Nietzsche não refuta a moralização do trágico porque perde de vista

completamente a moral. Sem ter uma filosofia da história que lhe abrisse esse caminho,

Nietzsche deixou de lado o campo de debate moral e acabou não concebendo a moral como

tema da tragédia, isto é, não enxergou que a moral está no presente no trágico enquanto

representada, ainda que não seja a sua essência. Por outro lado, com uma filosofia da história,

de acordo com Benjamin, seria possível ver como a moral se representa no trágico. Mas esta

filosofia da história faltou também a Nietzsche.

108 BENJAMIN, Walter (1984), p. 127.

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3.4. O TRÁGICO E A FILOSOFIA DA HISTÓRIA

O objetivo central de Origem do drama barroco alemão é a definição rigorosa do

que seja o drama barroco para recuperar a idéia do barroco. Um dos terrenos adequados à

realização dessa pretensão é o do confronto entre drama barroco e tragédia. A definição

rigorosa do drama barroco implica uma definição rigorosa da tragédia, com o que se elimina a

confusão entre essas duas idéias. A definição rigorosa da tragédia, como a compreensão da

arte de modo geral, pressupõe uma filosofia da história. É preciso compreender o caráter

especificamente grego da tragédia para esclarecer o sentido do trágico. Isso significa

compreender a tragédia a partir do horizonte histórico grego.

No âmbito desse plano, Benjamin chega a uma tese que rompe com toda uma

tradição, a saber, a tese de que não existe tragédia moderna. Aquilo que se convencionou

chamar de tragédia moderna é, na verdade, drama barroco: “o teatro moderno não conhece

nenhuma tragédia que se assemelhe à dos gregos. Desconhecendo esses fatos, tais teorias dão

a entender, presunçosamente, que ainda hoje é possível escrever tragédias”.109

As teorias que

propõem o conceito de tragédia moderna partem da premissa de que o trágico teria um

potencial de atualização inesgotável, o “pressuposto de que o trágico pode atualizar-se,

incondicionalmente, em qualquer configuração factual suscetível de ocorrer na vida

cotidiana”110

, de modo que além da tragédia que se realizou entre os gregos, teria havido

tragédias em diversos outros momentos da história e também hoje seria possível escrever

tragédias. Assim, no século XVII, teriam sido escritas tragédias, ainda que de segunda

categoria, tragédias deturpadas, sob o registro do drama barroco. Do ponto de vista

benjaminiano, esse é um pressuposto infundado, pois desconhece um dos aspectos

fundamentais da filosofia da história no que diz respeito à arte: o fato de que a obra de arte se

enraíza profundamente em seu tempo histórico e é dele expressão. A tragédia grega, enquanto

expressão da história grega, não pode ser compreendida fora desse horizonte, de modo que o

conceito de tragédia moderna é vazio de sentido.

109 Idem (1984), p. 124. 110 Idem (1984), p. 124.

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Só há tragédia antiga (Tragödie); a tragédia moderna é, na verdade, drama barroco

(Trauerspiel). Os autores que se referiram à tragédia moderna não tiveram clareza desta

distinção. Assim, por exemplo, Schopenhauer, que considerava mais valorosa a tragédia

moderna que a antiga. Benjamin escreve conclusivamente que “Schopenhauer percebeu a

tragédia como um drama barroco”.111

Aquilo que o levou a desvalorizar a tragédia dos antigos

é precisamente o fato de que os elementos “trágicos”, que estariam ausentes ou menos

desenvolvidos na tragédia antiga que na moderna, na realidade não pertencem à tragédia, mas

ao drama barroco. Franz Rosenzweig, de modo semelhante a Schopenhauer, também

percebeu o drama barroco como uma tragédia moderna. Após citar uma longa passagem de A

estrela da redenção, Benjamin escreve, “é quase supérfluo observar que a ‘tragédia moderna’,

que essa passagem procura deduzir da antiga, tem um nome significativo: o drama

barroco”.112

Se é feita com rigor a distinção entre drama barroco e tragédia, pode-se chegar

não só a uma reavaliação do drama barroco, que deixa de ser tratado como tragédia

vulgarizada, mas também a tragédia passa a ser observada a partir dos elementos que lhe são

próprios. A obtenção desses elementos se dá, segundo Benjamin, através de uma filosofia da

história.

Mas em que consiste o caráter especificamente grego do trágico descortinado pela

filosofia da história, isto é, quais são os elementos propriamente trágicos da tragédia? O

elemento do trágico é, pode-se dizer com Benjamin, o agón (’αγών). A essência da tragédia

está num conflito, cujo caráter é especificamente grego, agonístico.

Onde deve ser procurado esse caráter? Que tendência está contida no

trágico? Por que morre o herói? A poesia trágica se baseia na idéia do

sacrifício. (...) A morte trágica tem um sentido duplo: anular o velho direito dos deuses olímpicos, e sacrificar o herói, precursor de uma humanidade

futura, ao deus desconhecido. Mas esse caráter está presente também no

sofrimento trágico (...). Um dos primeiros exemplos é a substituição do sacrifício humano pela fuga da vítima, que escapa da faca ritual, corre em

torno do altar, e finalmente o toca (...). Essa profecia agonal distingue-se de

todas as obras épico-didáticas.113

O conflito que está na essência da tragédia é o que demonstra, portanto, seu caráter

agonístico.

Entretanto, em que consiste este conflito agonístico essencial ao trágico? Escreve

Benjamin,

111 Idem (1984), p. 134. 112 Idem (1984), p. 136. 113 Idem (1984), pp. 129-30.

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Mas com que direito falamos de representação “agonal”? Pois não é

suficiente, como justificativa, formular a hipótese de que o enredo trágico

deriva da corrida ritual em torno do thymele. É preciso mostrar, em primeiro lugar, que os espetáculos áticos transcorriam sob a forma de uma

competição. Não somente os poetas, mas também os protagonistas e os

choregas entravam em concorrência. Mas a justificação interna está na

angústia muda que cada representação trágica comunica aos espectadores, e se revela nos personagens. No espetáculo, reina a concorrência silenciosa do

agon.114

A base da poesia trágica é o sacrifício, a morte do herói, seu destino trágico. A morte do

herói, decorrente da hýbris, ou seja, de uma infração ao direito olímpico, não restaura

simplesmente este direito, mas também engendra um conflito. O direito olímpico é posto em

questão na cena trágica diante do público, no conflito que ora se instaura entre homens e

deuses. A corrida ritual em torno do altar de Dionísio, que é o esquema básico de muitas

tragédias115

, consiste simplesmente em a vítima do sacrifício não aceitar de modo

complacente seu destino e fugir da faca sacrificial. Estabelece-se, então, uma competição.

Esta competição é a característica fundamental dos espetáculos gregos em todos os seus

aspectos. Pois não só os poetas entravam em concorrência nos concursos de poesia, mas

também os personagens e os coreutas, e o enredo mesmo da tragédia desenrolava-se sob o

signo dessa concorrência. Aqui está uma das contribuições mais fundamentais de Benjamin à

investigação acerca da tragédia: a perspectiva do agón é por ele radicalizada de modo a se

pensar a própria narrativa trágica como agonística.

Para Benjamin, o caráter agonístico do trágico reflete-se de modo mais evidente no

silêncio do herói. Este silêncio trágico é a expressão mesma do agonístico na tragédia. Ao

mesmo tempo, a grandeza e a fragilidade do herói são expressas no silêncio. O silêncio é o

desafio que o herói lança às leis olímpicas, à ordem cósmica. Através do silêncio é que se

trava o agón entre o homem e os deuses, entre o homem e a ordem cósmica que o cerca: eis o

sentido do trágico. Todavia, “o silêncio trágico (...) não pode ter apenas o desafio como

elemento dominante. Esse desafio se constitui durante a experiência do silêncio, da mesma

forma que esta reforça aquele desafio”.116

O silêncio trágico é um silêncio desafiante, um

desafio que se expressa e se reforça pelo silêncio.

Segundo Benjamin, O nascimento da tragédia deu conta do silêncio trágico. “Uma

passagem de Nietzsche demonstra que o fato do silêncio trágico não lhe escapou. Embora ele

114 Idem (1984), p. 130. 115 Benjamin menciona, a esse respeito, a Oréstia, de Ésquilo. [Cf. Idem (1984), p. 130]. 116 Idem (1984), p. 131.

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não tenha se dado conta da significação do fenômeno agonístico na tragédia, esse fenômeno

transparece em sua comparação entre a imagem e a palavra”.117

Para Nietzsche, a imagem

supera a palavra, pois esta se aproxima mais do conceito, enquanto a imagem, como a música,

se desprende por completo do conceitual para ir ao fundo do real. O silêncio, na medida em

que é só imagem, ausência de palavra, é mais profundo.118

Não obstante, a crítica a Nietzsche contida nessa passagem, de que ele não teria dado

conta do agón na tragédia, tem de ser interpretada em sua sutileza. Não é verossímil que

Benjamin objete a Nietzsche que este não tenha percebido de modo geral o caráter agonístico

do trágico, pois tal caráter emerge de forma clara em textos do período de composição de O

nascimento da tragédia como A disputa homérica e A filosofia na época trágica dos gregos,

conforme foi exposto anteriormente. O que Benjamin alega é que Nietzsche não captou o

agón no interior da trama trágica, como elemento constitutivo da tragédia, nem percebeu o

caráter agonístico do silêncio trágico, mas o concebeu, por assim dizer, como um elemento

externo. Nesse sentido, Benjamin radicaliza a idéia que já estava em Nietzsche.

A filosofia da história possibilita a compreensão do agón como o caráter

especificamente grego da tragédia. Faz-se necessária uma filosofia da história para

compreender que, de um modo que escapa totalmente à sensibilidade moderna, na tragédia o

agón está imbricado com o silêncio. “Somente as épocas arcaicas podiam conhecer a hubris

trágica, que paga com a vida do herói seu direito de permanecer silenciosa”.119

A hýbris

trágica se manifesta no silêncio desafiante do herói ante os deuses. Esse silêncio em que a

hýbris se manifesta só faz sentido se for concebido a partir do horizonte da história grega.

Com base em uma filosofia da história é possível compreender “a afinidade profunda

entre o processo judicial e a tragédia ateniense. (...) A tragédia assimila a imagem do processo

judicial”.120

Na tragédia, tudo ocorre como se se tratasse de um julgamento em que o herói,

em razão de seus crimes, de sua desmesura, da hýbris, ocupa o banco dos réus, enquanto os

deuses cumprem o papel de juízes. Neste processo trágico “o pugilato, o direito e a tragédia, a

grande trindade agonal da vida grega (...) se integram”.121

O agón se estabelece entre o réu e

os juízes, na medida em que o herói lança, por meio de seu silêncio, um desafio à ordem

olímpica. O “silêncio do herói, que nem encontra justificação nem a procura, (...) coloca sob

117 Idem (1984), p. 131. 118 Que se pense, por exemplo, no silêncio de Cristo ante o questionamento de Pilatos. 119 Idem (1984), p. 138. 120 Idem (1984), p. 139. 121 Idem (1984), p. 138.

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suspeita os perseguidores. O sentido desse silêncio se inverte: o que aparece no tribunal não é

a culpa do acusado, mas seu sofrimento mudo, e a tragédia, que parece ser um julgamento do

herói, transforma-se num julgamento dos deuses”.122

Repentinamente, em razão do silêncio

trágico, os papéis se invertem: o herói deixa de ocupar o banco dos réus, que passa a ser

ocupado pelos deuses.123

O papel de juiz da contenda, entretanto, passa a ser exercido pelo

público da tragédia. Escreve Benjamin, “se no espírito do poeta o mito é um julgamento, sua

obra é ao mesmo tempo uma reprodução e uma revisão do processo. E esse processo

desenvolveu-se, na íntegra, na dimensão do anfiteatro. A comunidade comparece a essa

retomada do processo como uma instância que controla e que julga”.124

Essa revisão do

processo significa que agora a ordem olímpica, o direito antigo é colocado em questão. A

justiça eterna é confrontada com o caráter do destino do herói, que ainda encontra forças para,

em seu silêncio, confrontar a ordem demoníaca. Através do silêncio do herói, a tragédia

rompe o destino demoníaco. Por esta razão, toda poesia trágica contém uma profecia anti-

olímpica. Tal resultado somente é obtido através de uma filosofia da história que explicita

porque “o decisivo confronto dos gregos com a ordem demoníaca do mundo imprime também

na poesia trágica a sua assinatura histórico-filosófica”.125

A tragédia é, nesse sentido, o

registro do soçobrar de uma ordem decadente e o anúncio de uma nova ordem.

Finalmente, a partir dessa leitura do trágico baseada em uma filosofia da história,

esclarece-se também como a moral surge no seio do trágico. Numa citação de Destino e

caráter, texto de 1919, que se encontra em Origem do drama barroco alemão, Benjamin

afirma que “não se trata de restaurar a ordem moral do mundo, e sim de uma tentativa por

parte do homem moral, ainda mudo, ainda imaturo – por isso ele se chama herói – de se

reerguer entre as convulsões de um mundo torturado”.126

A tragédia, portanto, não deve ser

interpretada como o processo no qual se há de restaurar a ordem moral do mundo, isto é, não

se trata da redenção da desmesura pela “rearmonização” daquilo que foi tornado desarmônico.

Mas há, ainda, um motivo moral, qual seja o do homem moral que tenta se levantar ante a

desarmonia que é o modo pelo qual o mundo lhe aparece. A atitude do herói é, em última

instância, moral porque é humana. Nesse sentido, a tragédia não veicula nenhuma doutrina

moral, nem dá lições, nem é o triunfo de valores mais elevados sobre um homem esmagado.

122 Idem (1984), p. 132. 123 Esta mesma inversão, esta virada da situação em que acusadores e acusados alternam papéis, pode ser encontrada também no primeiro diálogo de Platão, Apologia de Sócrates, cuja estratégia de defesa se articula

dessa precisa maneira. [Cf. PLATÃO. Apologia de Sócrates. In: Diálogos. São Paulo: Nova Cultural, 2000.]. 124 Idem (1984), p. 139. 125 Idem (1984), p. 132.

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Ela é, ainda, moral porque representa o humano em sua atitude de reerguer-se e fitar de frente

a ordem, que já não pode ser mais mantida, do mundo desordenado.

126 Idem (1984), pp. 133-4.

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57

IV.

CONCLUSÃO:

O TRÁGICO E O AGÓN

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4. CONCLUSÃO: O TRÁGICO E O AGÓN

A presente investigação acerca do trágico em Nietzsche e Benjamin partiu do motivo

comum aos dois pensadores da desconstrução das abordagens moralizantes do trágico. A

análise realizada procurou evitar reducionismos, na medida em que compreendeu que a crítica

da moralização da tragédia ainda que tenha pontos de contato em ambos os autores, decorre

de pressupostos e objetivos distintos. Distanciando-se da leitura moralizante do trágico,

Nietzsche chegará uma consideração de mundo extra-moral que põe o trágico como questão

central, ao passo que Benjamin pensará a exigência de uma filosofia da história na base de

interpretação da tragédia.

Nietzsche insere sua crítica à leitura moralizante do trágico no âmbito mais amplo de

sua consideração de mundo extra-moral. A crítica nietzschiana ao aristotelismo não é um

ponto de partida, mas um desdobramento necessário dessa perspectiva extra-moral. Decorre

como que naturalmente de pressupostos admitidos em outros campos, que não os da reflexão

meramente estética. Desmoralizado, o trágico assume, em Nietzsche, um caráter ontológico,

ele surge como o elemento fundamental de sua metafísica de artista. Importa a Nietzsche

radicalizar ao máximo a crítica da moral, sobretudo, da moral na metafísica. O trágico e o

moral são assim diametralmente opostos. A metafísica que não é mais moralizante, mas

afirmativa do devir, é uma metafísica trágica. Nesse sentido, a perspectiva extra-moral é uma

consideração trágica, que se situa para além do bem e do mal. Na medida em que é uma

tentativa de interpretação radical do real em geral, a consideração de mundo extra-moral se

entrelaça com a paradoxal tentativa de uma metafísica do trágico, que o compreende como

caráter fundamental do mundo e que assume como tarefa primordial não a justificação, mas a

afirmação do trágico.

Não se pode dizer que a desconstrução de Benjamin das abordagens moralizantes da

tragédia seja nietzschiana. Desde o primeiro momento o diálogo que ele estabelece com

Nietzsche é crítico. Este tem, para Benjamin, o mérito de rejeitar a concepção da tragédia

como doutrina moral, entrevendo a necessidade de interpretar o trágico não a partir da

sensibilidade moderna, mas com base naquilo que seria especificamente grego, isto é, a partir

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de uma filosofia da história que compreende a tragédia como manifestação estética que se

enraíza profundamente no solo do éthos grego. Todavia, do ponto de vista benjaminiano,

Nietzsche põe tudo a perder quando articula sua metafísica do trágico. O pressuposto de

Benjamin é que a tragédia somente pode ser compreendida adequadamente a partir de uma

filosofia da história e não com base em uma metafísica subvertida. Para Benjamin, portanto,

importa radicalizar a crítica à metafísica, que paradoxalmente é tributária do próprio

Nietzsche, de modo que são a filosofia da história e a metafísica que surgem como opostos

pelo diâmetro. Por isso, o interesse que Benjamin nutre pelo trágico acaba sendo bem

diferente do de Nietzsche. Para este interessa pensar o trágico como instância metafísica,

enquanto Benjamin se dirige muito mais à tragédia como forma de arte. Nesse sentido, ele

pensa a tragédia a partir de um confronto com o drama barroco que tem a função de desfazer

as confusões entre os dois termos fomentadas pela tradição e liberar o terreno para a

abordagem do drama barroco por si mesmo, isto é, enquanto forma. O interesse de Benjamin

pela tragédia é, assim, de segunda ordem. Porém, o confronto que ele estabelece entre

tragédia e drama barroco não é uma mera oposição de gêneros literários, mas de idéias.

Recuperar a idéia do barroco implica, de certa forma, recuperar também a idéia do trágico.

Em poucas palavras, pode-se dizer que a experiência estética concreta da tragédia

conduz Nietzsche a uma metafísica. A mesma experiência leva Benjamin à história. Nietzsche

chega a formular uma metafísica do trágico; Benjamin, uma filosofia barroca da história.

Essa distinção faz-se sentir de modo mais evidente no que diz respeito à questão da

relação entre moral e arte nos dois pensadores. A crítica de Nietzsche é muito mais radical,

ela demole o ponto de vista da tradição moralizante, de modo a não restar mais nada de moral

no trágico. Nietzsche bane por completo a moral do trágico. Essa não é a posição de Benjamin

que, apesar de não entender a tragédia como uma lição de moral, não consegue pensar o

trágico completamente desligado da moral. Benjamin vê a moral como representada no palco

trágico, e não como uma doutrina. Com base nesse argumento, ele acusa Nietzsche de

esteticismo.127

Essa crítica, entretanto, não parece levar em conta a reflexão madura de

Nietzsche acerca da arte pela arte. Em um fragmento póstumo Nietzsche afirma que “l’art

pour l’art significa ‘que o diabo carregue a moral!’”.128

O esteticismo, para ele, é indefensável

pois é uma espécie de niilismo, uma vontade de nada. A arte pela arte não faz sentido, uma

vez que se trata de olhar o mundo com os olhos da arte, mas a arte, por sua vez, com os olhos

127 Idem (1984), pp. 126 e ss. 128 NIETZSCHE, Friedrich (2002), § 9 (119), p. 178.

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da vida, segundo a revisão do prefácio auto-crítico de O nascimento da tragédia.129

Não

interessa a Nietzsche propriamente o esteticismo, mas a autonomização da arte em relação à

moral, a “desmoralização” da arte, a arte vista desde a perspectiva extra-moral, que é a

perspectiva da vida. O esteticismo é mobilizado por ele, portanto, como uma estratégia de

desconstrução da moral e não pode ser defendido incondicionalmente. A crítica de Benjamin

seria, assim, um reducionismo, a conclusão inconsistente de uma leitura apressada. Um

nietzschiano ainda diria que tal crítica é falsa não só porque se baseia em uma exegese

descuidada, mas e sobretudo porque se deixa contaminar pelo moralismo na arte, que é o que

de fato e sem piedade deveria ser o alvo das críticas. A contrapartida benjaminiana disso seria

argumentar no sentido de que se não é possível desvincular inteiramente a moral do trágico,

como haveria de ser possível fazê-lo com relação à vida? Assim, para evitar o esteticismo,

Nietzsche teria cometido um erro ainda maior do que o de opor pelo diâmetro tragédia e

moral: o de tornar a separar absolutamente moral e vida. No fundo, o erro de Nietzsche teria

sido compreender a crítica legítima ao moralismo como destruição da moral. Todavia, essa

discussão não fica por aí.

Apesar das diferenças de posição, os resultados da metafísica de Nietzsche e da

filosofia da história de Benjamin mostram-se semelhantes, ou seja, em seguida a um

distanciamento crítico, os dois voltam a aproximar-se, uma vez que ambos deságuam em uma

reflexão acerca do agón (’αγών) grego. Nietzsche faz do agonístico a expressão fundamental

do dionisíaco enquanto Benjamin o concebe como o caráter especificamente grego da

tragédia. O agón em Nietzsche é o pólemos heraclitiano em sua potência criadora do devir

que se encarna em Dionísio no centro do palco da tragédia. Em Benjamin, o agón trágico

representa-se no silêncio desafiante do herói, é a concorrência silenciosa do agón, idéia que

consiste numa radicalização a perspectiva nietzschiana, pois dá-se conta do aspecto agonístico

no interior mesmo da tragédia.

Pode-se, assim, afirmar rigorosamente, com base na autoridade dos dois filósofos e

apesar de suas discordâncias, que o trágico, tanto em Nietzsche quanto em Benjamin, é

agonístico.

129 Cf. NIETZSCHE, Friedrich (1992), TA, § 2, p. 15.

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