o texto publicitario como suporte pedagogico

10
Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Uerj – 5 a 9 de setembro de 2005 1 O Texto Publicitário Como Suporte Pedagógico Para A Construção De Um Sujeito Crítico 1 Tânia Márcia Cezar Hoff, professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM/SP 2 Resumo Atualmente, escola e mídia são experiências de todos: aprender as mídias no mais amplo sentido é uma competência fundamental para o exercício da cidadania. Este artigo enseja uma discussão de caráter teórico a respeito da utilização do texto publicitário como suporte pedagógico na construção de um sujeito crítico. Delimitamos nossa reflexão no ensino médio de escolas públicas, a etapa final da educação básica e último momento de formação geral, quando a maioria dos jovens brasileiros encerra a vida estudantil. Palavras-chave: Texto publicitário; educação; suporte pedagógico; sujeito crítico. * * * Os meios de comunicação de massa podem ser considerados nossa principal fonte diária de informação. Convivemos com tanta familiaridade com as idéias e imagens neles veiculadas que as aceitamos como verdade e as utilizamos para guiar nossas decisões e escolhas na vida. Como atinge a um contingente numeroso e variado de pessoas, a mídia tende a ser uma fonte hegemônica e homogeneizadora de informação. Daí ser considerada uma espécie de opinião pública: “o que” divulga e “como” divulga torna-se conhecido e aceito por grande parte de sua audiência. A mídia seleciona, organiza e propaga as informações: o que ela apresenta a respeito dos muitos temas e/ou fatos que aborda não é verdade absoluta, é apenas uma leitura possível, um dos muitos aspectos de um mesmo tema e/ou fato. Ou seja, a mídia divulga informação e não conhecimento. A partir de fragmentos ou recortes do mundo apresentados pela mídia, acreditamos ter acesso ao mundo todo: O mundo que nos é trazido, que conhecemos e a partir do qual refletimos é um mundo que nos chega editado, ou seja, ele é redesenhado num trajeto que passa por centenas, às vezes milhares de filtros até que ‘apareça’ no rádio, na televisão e no jornal. Ou na fala do vizinho, nas conversas dos alunos, nos diálogos do cotidiano. São esses filtros – 1 Trabalho apresentado ao NP 11 – Comunicação Educativa , no XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação da Intercom; sob a coordenação da Profa. Dra Maria Aparecida Baccega. 2 Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo -USP e professora do Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing – ESPM/SP. É co-autora dos livros Erotismo e Mídia, pela editora Expressão e Arte em 2002, e Redação Publicitária, pela editora Campus em 2004. E-mail: [email protected] .

Upload: velda-torres

Post on 09-Sep-2015

217 views

Category:

Documents


4 download

DESCRIPTION

artigo

TRANSCRIPT

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005

    1

    O Texto Publicitrio Como Suporte Pedaggico Para A Construo De Um Sujeito Crtico1 Tnia Mrcia Cezar Hoff, professora da Escola Superior de Propaganda e Marketing ESPM/SP2 Resumo Atualmente, escola e mdia so experincias de todos: aprender as mdias no mais amplo sentido uma competncia fundamental para o exerccio da cidadania. Este artigo enseja uma discusso de carter terico a respeito da utilizao do texto publicitrio como suporte pedaggico na construo de um sujeito crtico. Delimitamos nossa reflexo no ensino mdio de escolas pblicas, a etapa final da educao bsica e ltimo momento de formao geral, quando a maioria dos jovens brasileiros encerra a vida estudantil. Palavras-chave: Texto publicitrio; educao; suporte pedaggico; sujeito crtico. * * *

    Os meios de comunicao de massa podem ser considerados nossa principal

    fonte diria de informao. Convivemos com tanta familiaridade com as idias e

    imagens neles veiculadas que as aceitamos como verdade e as utilizamos para guiar

    nossas decises e escolhas na vida. Como atinge a um contingente numeroso e variado

    de pessoas, a mdia tende a ser uma fonte hegemnica e homogeneizadora de

    informao. Da ser considerada uma espcie de opinio pblica: o que divulga e

    como divulga torna-se conhecido e aceito por grande parte de sua audincia.

    A mdia seleciona, organiza e propaga as informaes: o que ela apresenta a

    respeito dos muitos temas e/ou fatos que aborda no verdade absoluta, apenas uma

    leitura possvel, um dos muitos aspectos de um mesmo tema e/ou fato. Ou seja, a mdia

    divulga informao e no conhecimento. A partir de fragmentos ou recortes do mundo

    apresentados pela mdia, acreditamos ter acesso ao mundo todo:

    O mundo que nos trazido, que conhecemos e a partir do qual refletimos um mundo que nos chega editado, ou seja, ele redesenhado num trajeto que passa por centenas, s vezes milhares de filtros at que aparea no rdio, na televiso e no jornal. Ou na fala do vizinho, nas conversas dos alunos, nos dilogos do cotidiano. So esses filtros

    1 Trabalho apresentado ao NP 11 Comunicao Educativa , no XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao da Intercom; sob a coordenao da Profa. Dra Maria Aparecida Baccega. 2 Doutora em Letras pela Universidade de So Paulo -USP e professora do Ncleo de Pesquisa em Comunicao e Prticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing ESPM/SP. co-autora dos livros Erotismo e Mdia, pela editora Expresso e Arte em 2002, e Redao Publicitria, pela editora Campus em 2004. E-mail: [email protected].

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005

    2

    instituies e pessoas que selecionam o que vamos ouvir, ver ou ler; que fazem a montagem do mundo que conhecemos3 .

    O fato de os meios de comunicao veicularem um nmero elevado de

    informaes, ampliando as possibilidades de acesso e de propagao da informao, no

    garante a produo de conhecimento, pois h uma diferena entre consumo de

    informao e construo de conhecimento.

    A mera assimilao de informao no nos modifica, no nos transforma e nem

    sempre nos liberta para a reflexo e a ao. Ter acesso informao o primeiro passo

    para a construo do conhecimento que implica a realizao de operaes mentais como

    a comparao, a anlise, a hierarquizao etc, de modo que seja possvel estabelecer

    relaes entre as muitas informaes e chegar a snteses ou, em outros termos, a

    opinies, reflexes e tomadas de deciso.

    O conhecimento pressupe conscincia -- uso das potencialidades mentais para

    alm da memorizao e do mero registro de informao. O acesso e a assimilao de

    informaes possibilitam apenas acmulo ou soma de dados. Eis por que conhecer:

    quanto maior o conhecimento, maior a capacidade de estabelecer relaes e de definir

    aes, ou seja, interferir na realidade, quer seja externa ou interna no plano

    psicolgico.

    Por exemplo: uma pessoa extremamente informada e, ao mesmo tempo, incapaz

    de agir e de interferir na realidade que a cerca, encontra-se no nvel de mero acmulo de

    informao, sem produo de conhecimento, o que a inviabiliza de tomar decises

    significativas para colocar a vida em movimento -- ao modificadora da realidade. Em

    outros termos, o que a inviabiliza de atuar como cidad.

    No mundo contemporneo, que se caracteriza pela divulgao e circulao de

    informaes, o saber impe-se como uma necessidade, posto ser uma das principais

    talvez a nica -- vias de desvendamento do mundo. preciso conhecer: classificar,

    tipificar e dissecar o objeto, de modo que seja possvel organiz-lo, isto , compreender

    sua natureza e dominar suas manifestaes. O saber ou o conhecimento de algo implica

    o seu controle. Saber que algo existe e ter conhecimento a seu respeito nos revela o grau

    de dominao ao qual estamos submetidos. , pois, o saber que nos ala condio de

    cidados.

    3 BACCEGA, M. Aparecida. Comunicao, educao e tecnologia: interao. Comunicao e Educao. So Paulo, 2005, p.07.

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005

    3

    Se a construo de conhecimento implica reflexo e o espao privilegiado para

    a reflexo sempre, e continuar sendo, a escola4, entendemos que o processo ensino-

    aprendizagem deva buscar a humanizao, ou seja, a construo de um sujeito

    humanizado, consciente de si e do mundo que o cerca (Paulo Freire)5. Tambm para o

    Estado, a escola deve desenvolver habilidades e capacidades que possibilitem ao

    educando pensar e interpretar o mundo. Destaquemos, dentre outras, duas finalidades

    para o ensino mdio, expressas na Lei 9.394, De Diretrizes e Bases da Educao, seo

    IV6:

    I- a preparao bsica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condies de ocupao ou aperfeioamento posteriores;

    II- o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formao tica e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crtico.

    Consideramos que a utilizao do discurso publicitrio como suporte pedaggico

    pode auxiliar a escola na construo de cidados crticos, pois preciso mais que

    consumir informaes; preciso process-las para tomar decises e agir, entendendo as

    implicaes de uma deciso e/ou ao. Ou ainda, conforme Ernani Fiori7 que, ao

    prefaciar Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, afirma ser o processo de ensino-

    aprendizagem um processo de construo do cidado, que desenvolver condies para

    dizer a sua palavra, pois, com ela, constitui a si mesmo e a comunho humana em que

    se constitui; instaura o mundo em que se humaniza, humanizando-o.

    O Texto publicitrio na sala de aula

    Atualmente, escola e mdia so experincias de todos, pois toda a populao

    ou quase toda passa pela escola e submetida difuso da mdia. Neste contexto, a

    educao para a mdia torna-se uma preocupao bastante razovel: trata-se de uma

    escolarizao de um saber ainda no institucionalizado.

    Len Masterman8 aponta algumas razes que justificam a crescente preocupao

    de se abordar a mdia nos projetos pedaggicos como contedo das disciplinas:

    4 BACCEGA, M. Aparecida. Op.cit. p.09. 5 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 1983. 6 MINISTRIO DA EDUCAO. Disponvel em: . Acesso em: 05/06/2005. 7 FIORI, Ernani. Aprender a dizer a sua palavra. In FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 07. 8 LEN MASTERMAN. Apud GONNET, Jacques . Educao e Mdias. So Paulo: Loyola, 2004, p. 24.

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005

    4

    o consumo elevado das mdias (...); a importncia ideolgica das mdias, notadamente a publicidade; o aparecimento de uma gesto da informao nas empresas (...); a penetrao crescente das mdias nos processos democrticos (...); a importncia crescente da comunicao visual e da informao em todos os campos (...); a expectativa dos jovens de ser formados para compreender sua poca (...); o crescimento nacional e internacional das privatizaes de todas as tecnologias.

    Note-se uma ntida relao entre educao e democracia. Estudar os meios de

    comunicao significa atualizar a escola, visando a favorecer a tomada de conscincia

    de que todos ns somos alvo da mdia. Parece consenso que o primeiro argumento de

    defesa para esta educao reside na constatao do lugar das mdias na vida cotidiana.

    No entanto, para pensarmos a possibilidade de trazer o texto publicitrio para a sala de

    aula, vale considerar dois perigos9: a adeso acrtica tecnologia e, de outro, o

    repdio apocalptico aos efeitos alienantes da mdia.

    A adeso acrtica tecnologia desloca o problema para outra esfera que no a

    humana, sugerindo que o desenvolvimento cientfico e tecnolgico so condio

    suficiente para resolver questes de democracia e de cidadania porque possibilitam o

    acesso informao.

    No repdio apocalptico reside um temor aos efeitos nocivos da mdia que

    afeta tanto o jovem despreparado quanto a escola com sua misso quase impossvel de

    salv-lo. Eis aqui dois preconceitos fortemente enraizados no imaginrio escolar: a idia

    de que o jovem neste artigo abordamos o ensino mdio encontra-se em perigo,

    indefeso e despreparado diante da mdia insidiosa que tudo pode. E tambm a idia de

    que a escola deve denunciar os malefcios por ela promovidos.

    Trazer a mdia, mais especificamente o texto publicitrio, para a sala de aula

    implica algo mais que o repdio, o medo e a negao da mdia. dever da escola

    preparar o educando para ser leitor crtico das mensagens miditicas, posto que elas j

    fazem parte do seu cotidiano.

    Em Aprender e ensinar com textos no escolares10, obra que apresenta as

    primeiras concluses de uma pesquisa A circulao dos textos na escola realizada

    em quatorze escolas da rede estadual e municipal de So Paulo e em uma particular,

    revela que raramente a mdia articulada aos tpicos das matrias desenvolvidas, ou

    seja, embora presente na vida dos educando encontra-se fora da escola, enquanto objeto

    de estudo. Entretanto, a mesma pesquisa constata haver um discurso subterrneo, ou 9 CITELLI, Adilson. Escola e os meios de comunicao. In CHIAPPINI, Lgia (coord. geral). Aprender e ensinar com textos no escolares. So Paulo: Cortez, 2002, p.17-18. 10 CHIAPPINI, Lgia. Op. Cit. p.07.

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005

    5

    seja, os educandos vivem uma intensa relao com as linguagens e os conhecimentos

    no sistematizados pelo discurso didtico-pedaggico11.

    No sistema educacional brasileiro, ainda no se nota o cuidado com uma

    educao para a mdia, traduzida em disciplinas ou em matrias de contedos

    programticos. Embora existam iniciativas de algumas instituies e tambm de

    professores pesquisadores e/ou interessados em trazer para a escola a experincia dos

    educandos com a mdia, elas limitam-se prtica isolada. De modo geral, a escola

    parece viver um descompasso entre o estrito discurso didtico pedaggico e o miditico:

    o primeiro formaliza as aes na sala de aula, constituindo a natureza nica e

    diferenciada do discurso escolar e a segunda pressionando de fora, existindo na fala

    dos alunos (...), circulando de forma subterrnea12.

    Se se considerar que as mensagens miditicas no so neutras alis, as mdias

    no o so -- e que elas apresentam maneiras de perceber e de compreender o mundo,

    devemos revisar a opinio segundo a qual a nica funo da mdia informar ou

    divertir. Nessa perspectiva, a mdia como fenmeno geral e as mensagens dos diferentes

    meios podem constituir objeto de estudo previsto nos projetos pedaggicos ou como

    tpico de disciplinas.

    Duas caractersticas do texto publicitrio sugerem que sua utilizao como

    suporte pedaggico pode ser muito fecunda junto aos educandos: em primeiro lugar, o

    carter de crnica social; e, em segundo, a sintonia com a viso de mundo dos mais

    diversos grupos da sociedade.

    A publicidade pode ser considerada uma espcie de crnica social, uma vez que

    estabelece um dilogo com os acontecimentos do presente e com as tendncias de

    comportamento, expectativas, desejos e percepes do pblico, o que torna possvel

    considerar o discurso publicitrio como um tradutor da concepo econmico-

    mercadolgica da sociedade.

    Sintonizado com a viso de mundo dos grupos sociais aos quais se destina, esse

    tipo de texto extrapola a finalidade comercial: produo cultural na medida em que

    interpenetra todas as instncias da vida em sociedade. Uma campanha publicitria -- ou

    mesmo uma pea publicitria isolada construda a partir das representaes do

    consumo e dos valores dos grupos sociais aos quais se destina.

    11 CITELLI, Adilson. Op. Cit. p. 19. 12 CITELLI, Adilson. Op. Cit. p.21.

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005

    6

    Acessvel a todos os grupos sociais, podemos afirmar que a publicidade alcana

    todos os rinces do Brasil. At mesmo onde a escola ainda no chegou, a publicidade

    cartazes, folhetos, anncios etc j o fez. Parece razovel considerar sua funo

    colonizadora nas situaes de misria ou de distncia que impede a instalao de

    instituies representativas do poder poltico.

    O lugar do texto publicitrio na cultura parece no suscitar dvidas; no entanto,

    sua finalidade comercial e sua natureza persuasiva parecem desqualific-lo para funes

    pedaggicas. As crticas mais comuns mdia, conforme discorremos, esto atreladas s

    crticas ao discurso publicitrio que, segundo seus detratores, seduz para dominar, para

    estimular o consumo. Ou seja, trata-se de um discurso perigoso e ameaador porque

    identificado com a noo de alienao, conforme as crticas da Escola de Frankfurt.

    Focamos nossa discusso no ensino mdio de escolas pblicas por se tratar da

    etapa final da educao bsica, ltimo momento de formao geral. Os Parmetros

    Curriculares Nacionais para o ensino mdio (PCNEM), elaborados para orientar

    professores na busca de novas abordagens e metodologias de ensino, prope: a

    formao geral, em oposio formao especfica, o desenvolvimento da capacidade

    de pesquisar, buscar informaes, analis-las e selecion-las; a capacidade de aprender,

    criar, formular ao invs de simples exerccio de memorizao13.

    Ressalte-se ainda que, segundo pesquisa realizada em 2001 pelo Sistema

    Nacional de Avaliao da Educao bsica (SAEB), educandos saem do ensino mdio

    sem saber portugus e matemtica. Dos 287.719 educandos pesquisados, apenas 5,34 %

    deles tinha nvel adequado de conhecimento em lngua portuguesa e 5,99% em

    matemtica. A julgar por esses dados, h uma distncia considervel entre os objetivos

    propostos na Lei de Diretrizes e Bases da Educao e pelos Parmetros Curriculares

    Nacionais para o Ensino e a efetiva formao que as escolas promovem.

    A atual situao da educao no Brasil grave e complexa. Para enfrent-la so

    necessrias medidas articuladas em mbito nacional. Consideramos, entretanto, que as

    atitudes isoladas carecem de auxlio e de incentivo: elas podem fomentar as discusses a

    respeito da mdia e possibilitar uma ampliao de seu uso efetivo em sala de aula.

    Acreditamos que as possibilidades de utilizao do texto publicitrio como suporte

    pedaggico so ricas e podem constituir um primeiro passo para que o ensino das

    mdias faa parte das prticas pedaggicas em nosso pas.

    13 MINISTRIO DA EDUCAO. Disponvel em . Acesso em: 06/06/2005.

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005

    7

    Dialogismo e construo de conhecimento

    Os estudos de Bakhtin sobre a linguagem desenvolveram-se a partir do conceito

    de dialogismo princpio constitutivo da linguagem e do discurso. Para ele, o discurso

    se constri a partir de muitas vozes, isto , a partir do outro/auteridade, posto que

    nenhuma palavra nossa, mas traz em si a perspectiva de outra voz14. Concebendo

    dialogismo como o espao interacional entre o eu e o tu ou entre o eu e o outro, no

    texto, Bakhtin entende linguagem como algo que se constitui no e do social. O texto

    publicitrio comporta muitas vozes: estud-lo sob tal pressuposto terico pode auxiliar o

    professor a construir um procedimento de leitura capaz de possibilitar ao educando

    reconhecer suas caractersticas preponderantes e tambm as formas argumentativas e

    persuasivas que imperam nas mensagens comerciais.

    Em seu Marxismo e Filosofia da Linguagem, no captulo intitulado O Discurso

    de outrem , o autor russo comenta o aspecto dialgico ou polifnico da linguagem:

    ... a unidade real da lngua que realizada na fala (Sprache als Rede) no a enunciao monolgica individual e isolada, mas a interao de pelo menos duas enunciaes, isto , o dilogo. O estudo do dilogo pressupe, entretanto, uma investigao mais profunda das formas usadas na citao do discurso, uma vez que essas formas refletem tendncias bsicas e constantes da recepo ativa do discurso de outrem, e essa recepo, afinal, que fundamental tambm para o dilogo15.

    A enunciao, isto , o texto resultado de muitas vozes que constituem o

    emissor e o receptor: a recepo ativa fundamenta o conceito de dialogismo, j que os

    contextualiza no grupo social, considerando as muitas vozes abrigadas no grupo social

    em que se inserem. Muito tempo antes da Teoria da recepo trazer luz o papel ativo

    do receptor na leitura do texto/no processo de decodificao, o conceito de discurso

    dialgico ou polifnico, proposto por Bakhtin, pressupe a interao entre emissor e

    receptor num contexto, isto , numa sociedade, pois nenhuma atividade lingstica pode

    realizar-se fora das relaes sociais.

    A rede social e o tecido discursivo so dinmicos e se alimentam mutuamente:

    ....aquele que apreende a enunciao de outrem no um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrrio um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar o fundo perceptivo, mediatizado para ele pelo

    14 BARROS, Diana & FIORIN, Jos (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. So Paulo:EDUSP, 1994, p.03. 15 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da linguagem. p.145-146.

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005

    8

    discurso interior e por ai que se opera a juno com o discurso apreendido exterior. A palavra vai palavra16.

    Tais aspectos podem ser considerados no estudo do texto publicitrio, cujo

    objetivo atingir de forma eficiente um receptor/coletivo com um nmero definido de

    inseres. Note-se, desta forma, que o texto publicitrio acompanha as modificaes de

    uso de uma determinada Lngua em tempo real, isto , acompanha as transformaes

    conforme elas vo se disseminando entre os seus usurios/falantes e, registra as

    formaes discursivas de diferentes grupos dentro da sociedade, dada a necessria

    atualizao imposta pelos imperativos de mercado.

    Para Bakhtin, a vida comea apenas no momento em que uma enunciao

    encontra outra, isto , quando comea a interao verbal, mesmo que no seja direta, de

    pessoa para pessoa, mas mediatizada pela literatura17 e acrescente-se, aqui, pelos

    meios de comunicao de massa. Da o interesse em estudar o dialogismo ou a polifonia

    no discurso publicitrio, em especial as relaes interdiscursivas nele existentes.

    Segundo Bakhtin, a linguagem compreende uma dimenso social e todo

    enunciado constitui-se a partir da interao interdiscursiva, pois no existe uma fala

    pura, isto , nica, original, sem influncia de outras. O enunciado sempre plural,

    resultado de outros, tambm fruto da interao discursiva. Da a concepo da

    dialogismo, das muitas vozes que se instauram num discurso.

    Para ele, os indivduos no recebem a lngua pronta; em vez disso, ingressam

    numa corrente mvel de comunicao verbal. As pessoas no aceitam uma lngua; em

    vez disso, atravs da linguagem que elas se tornam conscientes e comeam a agir

    sobre o mundo, com e contra os outros18. Considerada a partir de uma dimenso social,

    a linguagem pressupe interao e tambm troca; nesse sentido, a manifestao

    individual resultado do discurso de muitos eus.

    A lngua e a vida encontram-se no mesmo plano; no existe uma linha divisria

    que as separe: a lngua penetra na vida atravs dos enunciados concretos que a

    realizam e tambm atravs dos enunciados concretos que a vida penetra a lngua19. O

    conceito bakhtiniano possibilitaria ao educando distanciar-se do texto publicitrio para

    compreender as vrias instncias de poder que ali se articulam.

    16 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da linguagem. p. 147. 17 BAKHTIN,Mikhail. Marxismo e Filosofia da linguagem. p. 179. 18 STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literria Cultura de massa. P.32. 19 BAKHTIN. Mikhail. Esttica da Criao Verbal. P. 282.

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005

    9

    Se a competncia lingstica comporta a compreenso das idias explcitas e

    tambm as implcitas num enunciado, trabalhar com a noo de que o texto abarca

    muitos discursos e, com eles, as muitas vises de mundo que concorrem numa

    sociedade, ao nosso ver, auxiliaria o educando do ensino mdio a compreender-se como

    cidado ao perceber as articulaes que o texto publicitrio engendra.

    Consideraes finais:

    certo que no se pode atribuir educao para as mdias ou utilizao

    do texto publicitrio como suporte pedaggico o papel de resolver os problemas

    que sistema educacional brasileiro enfrenta. Mas certamente, para lembrar os

    objetivos do mtodo Paulo Freire, tais prticas pedaggicas poderiam auxiliar na

    construo do conhecimento e na formao de um educando capaz de posicionar-

    se criticamente diante das mensagens publicitrias, reconhecendo que elas no

    so neutras, j que marcadas por uma gama de interesse e atravessadas por

    diversas vozes.

    A partir do pressuposto de que a interao do educando com as linguagens

    da mdia e, em especial, com as estratgias do texto publicitrio produz modos

    diferenciados de compreenso do mundo, a escola incorre num anacronismo

    quando ignora as possibilidades de se estudar os valores ticos, estticos e

    ideolgicos presentes nesse tipo de mensagem. Ignorar o impacto da mdia no

    comportamento das pessoas tanto no meio urbano quanto no rural significa

    ignorar a atualidade da sociedade brasileira.

    Nesse sentido, a escola pode desempenhar sua funo: estudar as mdias

    para promover o desenvolvimento de educandos conscientes de seu lugar na

    sociedade e de seu papel de cidados. Se o texto publicitrio rico em

    mecanismo de persuaso e argumentao, pode a escola utilizar-se de tal riqueza

    para engendrar nos educandos a reflexo e o pensamento crtico. Talvez a escola

    seja hoje um dos ltimos redutos da sistematizao, dos procedimentos de anlise

    e do tempo laborioso e lento da construo do conhecimento.

    Referncias Bibliogrficas:

  • Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXVIII Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Uerj 5 a 9 de setembro de 2005

    10

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE EDITORES DE LIVROS. Edio 412; 10/10/2002. Disponvel em: . Acesso em: 06/06/2005. BACCEGA, M. Aparecida. Comunicao, educao e tecnologia: interao. Comunicao e Educao. So Paulo, 2005. BARROS, Clvis de. A publicidade como suporte pedaggico: a questo da discriminao por idade de Sukita. Famecos, Porto Alegre, n. 16, p.122-135, dezembro 2001. BARROS, Diana & FIORIN, Jos (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. So Paulo:EDUSP, 1994. BAKHTIN, Mikhail. Esttica da Criao verbal. So Paulo: Martins Fontes, 1992. ________________. Marxismo e Filosofia da linguagem. So Paulo: Hucitec, 1992. CHIAPPINI, Lgia (coord. geral). Aprender e ensinar com textos no escolares. So Paulo: Cortez, 2002. ESTADO DE SO PAULO. Disponvel em: . Acesso em 9/10/2005. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. GONNET, Jacques. Educao e Mdia . So Paulo: Loyola, 2004. MINISTRIO DA EDUCAO. Lei de Diretrizes e Bases da Educao. Disponvel em . Acesso em: 06/06/2005. SATO, Sanda. Estudantes saem do ensino mdio sem saber Portugus e Matemtica. O Estado de So Paulo, So Paulo, 5 nov. 2003. Disponvel em: . Acesso em: 09/06/2005. STAM, Robert. Bakhtin: da teoria literria cultura de massa. So Paulo: tica. 1992.