o tempo e o vento 50 anos

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O Tempoe o Vento

5 0 a n o s

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Projeto O TEMPO E O VENTO: 50 ANOS

Elaboração Flávio Loureiro ChavesCoordenação Robson Pereira Gonçalves

UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO

Reitora Ir. Jacinta Turolo GarciaVice-reitora Ir. Alice Garcia de Morais

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO SAGRADO CORAÇÃO

Coord. Editorial Ir. Jacinta Turolo GarciaAss. Administrativa Ir. Teresa Ana Sofiatti

Ass. Comercial Ir. Áurea de Almeida Nascimento

Ass. Editorial Luiz Eugênio VéscioCoord. Executiva Luzia Bianchi

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

Reitor Paulo Jorge SarkisVice-reitor Clovis Silva Lima

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

Diretor Vitor Otávio F. BiasoliAss. Editorial Luiz Eugênio Véscio

Conselho Editorial Andrey Rosenthal SchleeAguinaldo Médici SeverinoFabrício Frizzo PagnossimJosé Newton Cardoso MarchioriLeris Salete Bonfanti HaeffnerMaria Luiza Furtado KahlMarli HatjePedro Brum SantosValeska Maria Fortes de OliveiraValter Antonio Noal FilhoVitor Otávio F. Biasoli (Presidente)

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R o b s o n p e r e i r a g o n Ç A L V E S ( o r g . )

O Tempoe o Vento

5 0 a n o s

I l u s t r a ç Õ E S :

J o ã o L u i z R o t h

Page 5: O tempo e o vento 50 anos

Copyright © 2000 by Edusc

Ficha catalográfica

T288O Tempo e o Vento : 50 anos / organização Robson Pereira

Gonçalves ; ilustrações João Luiz Roth. - - Santa Maria, RS :UFSM ; Bauru, SP : EDUSC, 2000.320 p. : il. ; 23 cm

ISBN 85-7460-016-4 (Edusc)

“Edição comemorativa dos 50 anos de lançamento de OContinente, primeira parte da trilogia O tempo e o vento.”

1. Literatura brasileira - Romance - História. 2. Literaturabrasileira - Romance - Interpretação. I. Gonçalves, RobsonPereira. II. Título.

CDD B869.309

Edusc – Editora da Universidade do Sagrado CoraçãoRua Irmã Arminda, 10-5017044-160 – Jardim Brasil – Bauru – SPFax (0XX14) 235-7219 – Tel. (0XX14) 235-7111 e-mail: [email protected]

EditoraUFSM – Editora da Universidade Federal de Santa MariaPrédio da Biblioteca Central – Campus UniveersitárioCamobi – 97105-900 – Santa Maria – RSFax (0XX55) 220-8610 – Tel. (0XX55) 220-8126e-mail: [email protected]/editora

Direitos reservados à Editora da Universidade do Sagrado Coração

Printed in Brazil 2000

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S U M Á R I O

No Galope do Tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9Robson Pereira Gonçalves

Erico Verissimo, um escritor de vanguarda? . . . . . . . . . . 21Luiz Fernando Verissimo

Saga Familiar e História Política . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25Regina Zilberman

O Continente: um Romance de Formação?Pós-Colonialismo e Identidade Política . . . . . . . . . . . . . 45Maria da Glória Bordini

O Narrador como Testemunha da História . . . . . . . . . . 69Flávio Loureiro Chaves

Num Território de Figuras Femininas . . . . . . . . . . . . . . 75Lélia Almeida

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O Tempo e o Vento: Cinqüenta Anos Depois . . . . . . . . 85Paulo Hecker Filho

O Tempo e o Vento: “O Continente” como Obra Síntese . 91José Aderaldo Castello

O Tempo e o Vento: um Diálogo entreFicção e História . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97Marilene Weinhardt

O Tempo e o Vento como Romance Histórico . . . . . . 105Pedro Brum Santos

O Retrato e a Identidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117Orlando Fonseca

A Imigração Alemã em O Tempo e o Vento . . . . . . . . 149Lúcio Kreutz

Olhai o que o Tempo não Levou.A Literatura de Erico Verissimo . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181Maria Helena Camara Bastos & Maria Teresa Santos Cunha

O Ciclo de Vargas segundo Verissimo . . . . . . . . . . . . . 199René E. Gertz

A Identidade Sul-rio-grandense no Imaginário deErico Verissimo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207Heloisa Jochims Reichel

A Abolição da Escravatura a Serviço da República –Leitura Política do Episódio Ismália Caré . . . . . . . . . . 219Teófilo Otoni V. Torronteguy

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A Representação do Espaço na Obra de Erico Verissimo:O Tempo e o Vento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 231Celia Ferraz de Souza

Almanaque Municipal de Santa Fépara o Ano de 1899 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261Andrey Rosenthal Schlee

Breve Crônica duma Editora da Província . . . . . . . . . . 287Erico Verissimo

Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 315José Mindlin

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“Naquele mesmo dia, cerca de três da tarde, armou-se um desses rápidos mas violentos temporais deverão. O céu cobriu-se de nuvens cor de ardósia, a atmosfera se tornou opressiva e, sob o calor quea umidade agravara, não só as pessoas como também a cidade inteira parecia ter adquirido umaflacidez de papelão molhado.”

O Arquipélago - Encruzilhada

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No Galope do Tempo

R o b s o n P e r e i r a G o n ç a l v e s *

O vento batia-lhe na cara, revolvia-lhe oscabelos, fazia-lhe ondular a camisa comouma bandeira. “Amo, zaino velho!” – gri-tava ele acicatando o animal com esporasimaginárias. O zaino galopava e Rodrigoaspirava com força o ar, que cheirava a ca-pim e distância.

Erico Verissimo

Do vento

A presente edição comemorativa dos 50 anos de lançamen-to de O Continente, primeira parte da trilogia O Tempo e o Vento,representa mais do que uma homenagem ao grande escritorque foi Erico Verissimo. É, antes de tudo, uma reflexão de gaú-chos e brasileiros sobre o Rio Grande, principalmente o retra-tado na obra fundamental de Verissimo. Nessa medida, o que sebuscou, além dos fundamentos estéticos e literários, foi umadiscussão sobre a identidade do estado d’alma gaúcho e decomo a história vem reafirmando aqueles valores que contribuí-ram para estabelecer esse território tão denso e pleno de símbo-los e significações. Esse estatuto crítico, principalmente o dos

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autores deste livro, tem como missão filtrar o silvo das ventaniase, com certeza, apostar no galope das idéias. Vale dizer, a gesta ea saga que fundam a formação do povo rio-grandense ainda con-tinuam a fecundar a meditação sobre o vir-a-ser desta província.

O projeto deste livro também tem uma história. A virtualida-de dessa narrativa aponta para identificações, para nomes e paradesejos. Reza a lenda que a paternidade não seja jogada ao ven-to, sintoma do que não permanece, do que é levado ao léu. Essalembrança aponta para um poema de Alberto Caeiro, de restouma ficção de Fernando Pessoa, em seu livro O Guardador de Re-banhos, que indicava a mentira como sucedâneo do diálogo como vento. Caeiro, o poeta renovador do paganismo moderno, con-diciona a sensação da Natureza como de ordem sígnica de prazere de sentido. Nessa esteira, o vento, parte integrante da natureza,é colocado no mesmo patamar daquele que tem as sensações ver-dadeiras: o guardador de rebanhos. Assim, a sensação da nature-za é parte integrante e fundante de todo o ato poético. Na obrade arte pode-se perceber, com uma certa claridade, essa constru-ção de gozo, mas de um gozo de um saber insabido, por isso aconstrução de sentido, pela falsidade do diálogo com o vento,não aponta para a constituição de um sujeito. Trata-se do PoemaX daquela obra, onde citamos: O vento só fala do vento./O que lheouviste foi mentira,/E a mentira está em ti.1 Na condição de que é ne-cessário afirmar que a efemeridade ou mesmo o esvanecimentodas ventanias, ou ainda, de uma rêverie inconseqüente, não foi oplanejado, é que se toma a metáfora para superar as coisas não

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1. PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro, José Aguilar, 1974, p. 213. Para se ter uma no-ção exata do desassossego pessoano, transcrevemos o poema:

“Olá, guardador de rebanhos,Aí à beira da estrada,Que te diz o vento que passa?”“Que é vento, e que passa, E que já passou antes,E que passará depois.E a ti o que te diz?”

“Muita cousa mais do que isso,Fala-me de muitas outras cousas.De memórias e de saudadesE de cousas que nunca foram.”“Nunca ouviste passar o vento.O vento só fala do vento.O que lhe ouviste foi mentira,E a mentira está em ti.”

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ditas. Por isso, não se busca a mentira do vento pessoano, meta-físico e panteísta, nem mesmo os presságios e os silvos de dor eviração de Erico Verissimo, mas sim o vento ético que constróia responsabilidade.

Flávio Loureiro Chaves, professor visitante do Curso deMestrado em Letras da UFSM, me procurou, no segundo semes-tre de 1998, para falar de um seminário que envolvesse a obrade Erico Verissimo e, por conseguinte, que pudesse alavancaruma discussão sobre a questão da identidade no RGS. Num pri-meiro momento, a questão foi posta como uma discussão literá-ria, envolvendo a área de letras tão somente. Num segundo mo-mento, vislumbramos a idéia de estender a questão para outrasáreas – para um projeto institucional que privilegiasse as letrascomo centro de um debate cultural, histórico, ideológico. Pro-posta aceita pela Reitoria da UFSM, montamos o plano de umseminário com a participação das áreas de história, educação,arquitetura, comunicação social, ciências rurais, artes e letras.O seminário previa uma ampla discussão sobre a identidadegaúcha, suas origens e seus rumos, utilizando debatedores da-quelas áreas de renome nacional e internacional. Seria a pro-posta e intervenção da UFSM nos festejos do milênio que seaproxima e uma homenagem maiúscula ao escritor que melhorcontou a saga deste Estado.

As calhas do tempo e a conjuntura das instituições oficiaisnão ofereceram abrigo à idéia. A mal dita globalização econô-mica, assim como a escolha de ações culturais que não privile-giam o saber, o conhecimento, mas o efêmero e o descartável,sucumbiram com o projeto original. Mas a invenção é forte, e oque se podia fazer para desfazer o mal-estar seria a publicaçãode um livro: o testemunho de vários autores, convidados daque-le seminário inicial, para narrar a contribuição d’O Tempo e oVento na história e na estrutura da sociedade do Rio Grande. Aviabilização do projeto, edição deste livro, começou com o con-

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vênio de publicações entre a UFSM e a Universidade SagradoCoração de Bauru, principalmente com o apoio de Luiz Eugê-nio Véscio, nosso editor full time e de Vitor Otávio Biasoli, o re-visor de todas as narrativas que compõem a obra.

O resultado, como no provérbio latino scripta manent, verbavolent (a escrita permanece e as palavras voam), é a reunião dostextos que compõem este livro, como re-afirmação inicial dajunção de áreas que pudessem debater a identidade gaúcha. Naaposta e na riqueza destas contribuições, fica a tecelagem de mi-tos e de gestas da obra fundamental de Erico Verissimo, comoo ritual de passagem mais profícuo para a virada do milênio.

Das marcas e inscrições

A marca primeira é a escrita de Luiz Fernando Verissimoque, escritor-inventor como seu pai, introduz a tese de que Eri-co seria um “escritor de vanguarda”, usando como argumentosa feitura de uma literatura urbana, o despojamento anglo-sa-xão, a informalidade e a experiência com estilos e técnicas danarrativa, além de seu conhecimento sobre teorias do romance.Seu depoimento, deveras esclarecedor para todos nós estudan-tes da obra de Erico Verissimo, também aponta para Incidentesem Antares, como sendo o quarto volume d’O Tempo e o Vento.Esse depoimento-crônica, antes de ser uma constatação fami-liar, afirma-se como o olhar de um criador sobre outro, onde oestatuto poético toma efeito.

A estrutura deste livro tem como fio condutor imagens deJoão Luiz Roth. Tratam-se de pinturas e infogravuras que ates-tam a leitura e interpretação d’O Tempo e o Vento, feitas pelo ar-tista especialmente para esta edição. No primeiro caso, a pintu-ra da capa (Bibiana, o vento e a costura do tempo) traz à considera-

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ção o estatuto feminino como guardião-mor da saga familiar, naconstituição social. A postura do artista, na invocação de ele-mentos clássicos – figuras e composição pictórica – é a de sus-tentar pelas imagens o lado epopéico da narrativa. Nessa medi-da, surge Baco para ilustrar o legado de prazer daquela culturae como símbolo da subjetividade, aparecem as ninfas que po-voam os imaginários provinciais (A chegada do juiz Nepomuceno),a reunião dos intelectuais (O contador de histórias) e a construçãodo herói pampeano Capitão Rodrigo, numa re-leitura da pintu-ra imperial. Essa fusão de elementos conhecidos da história dapintura com signos tropicais (a lagartixa, o ovo frito, a banana)fundamentam o eixo da dramatização carnavalizada de Roth.No segundo caso, as ilustrações sugerem, pela sépia, a passagemdo tempo. A invocação aqui é de uma realidade dada, serzidana experiência fotográfica e que modela, exemplarmente, anarrativa de Erico e as referências ambientais.

Após o entreato, a ordem e o encadeamento dos textos se-gue a seguinte seqüência: autores da área de literatura, depoisos textos da área de educação, arquitetura e história e, por fim,o texto, inédito em livro, de Erico Verissimo.

Para iniciar a piéce-de-résistance desta edição, foi escolhido,por unanimidade dos editores, o texto de Regina Zilberman,Saga Familiar e História Política. A autora desenvolve, com maes-tria, a tese de que O Tempo e o Vento inclui-se na vertente do ro-mance histórico que, partindo do passado, atualiza o presentepara seus contemporâneos numa posição crítica que une mitoe realidade. Esse modelo de operacionalidade que trabalhatempo e cronologia, mito e entidades históricas, no posiciona-mento ético e moral do poder familiar, tem seu arquétipo naOrestéia, de Ésquilo. Mas como afirma a autora, a obra de EricoVerissimo não pode ser considerada um sucedâneo do mito tra-tado por Ésquilo, porém sua estrutura mantém traços comunscom aquela narrativa clássica. O legado da história familiar

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como estrutura de poder social, do chefe de família ao chefe deestado, invoca, ao mesmo tempo, o mundo dos acontecimentose a ficção, como tecelagem virtual para a narração do interdito.

A laboriosa contribuição de Maria da Glória Bordini, Dire-tora do Acervo Literário de Erico Verissimo, é centrada no cons-tructum da obra de Verissimo, com a tonificação dos anteceden-tes do projeto da narrativa, os modelos que serviram de referên-cia até a sedimentação ideológica do autor, sua visão literária eda história. Daí ser o seu O Continente: um Romance de Formação?– Pós-Colonialismo e Identidade Política um texto esclarecedorquanto ao posicionamento de Erico Verissimo frente às formasidentitárias do Rio Grande.

N’O Narrador como Testemunha da História, Flávio LoureiroChaves aponta para a obra de Erico Verissimo como modelo deromance histórico, onde a ficção se dobra si mesma, estabele-cendo espaços para a discussão política e ideológica na forma-ção da sociedade gaúcha. Ao advogar que O Tempo e o Vento nãose constitui numa “epopéia guasca”, o autor desenha a figura deErico como “testemunha da História” que visa menos a crono-logia dos acontecimentos e mais a representação de suas fic-ções, agentes da “tensão entre destruição e preservação”(sic).Seguindo a orientação de oposição, o texto de Lélia Almeida –Num Território de Figuras Femininas – intenta em sustentar que aoposição masculina versus feminina instaura no romance umadivisão de forças de poder. Nessa medida, sua linha de raciocí-nio é a de privilegiar a “força” feminina como guardiã da moralfamiliar e, de contraponto, a de sustentação da luta política. Oescritor Paulo Hecker Filho estabelece, em O Tempo e o Vento:Cinqüenta Anos Depois, a importância do veio crítico de Erico Ve-rissimo, notadamente quando destaca passagens ditas moraliza-doras da narrativa. Sua admiração pelo personagem dr. Winteradvém da revelação de que o mesmo seria e funcionaria como

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um alter-ego do autor. Já José Aderaldo Castello – O Tempo e oVento: “O Continente” como Obra Síntese – situa Verissimo como au-tor-síntese, juntamente com outros, do Modernismo. Sua tese sesustenta na contribuição profunda que o autor gaúcho deupara alargar a representação histórica e contemporânea do Bra-sil. Para Marilene Weinhardt – O Tempo e o Vento: um Diálogo en-tre Ficção e História – a obra de Verissimo está apoiada no estudode fatos e registros da crônica histórica, seus personagens dedestaque e o momento ficcional, onde a ação romanesca tendea revigorar a história tradicional. A opção de Pedro Brum San-tos – O Tempo e o Vento como Romance Histórico – é diferenciar a ca-racterização entre romance social e romance histórico, privile-giando este último como terreno fértil para a representação fic-cional. Nessa esteira, sua posição sobre O Tempo e o Vento desta-ca os acertos da estética ficcional em representar e dar sentidoaos rumos da História, realçando o humanismo liberal em de-trimento da ideologia fechada e panfletária. Orlando Fonseca,em seu O Retrato e a Identidade, propõe uma leitura dos eventosficcionais como matriz para a visualização e o julgamento daHistória brasileira recente. Seu ponto de partida é o retrato deRodrigo Cambará, peça turística em Santa Fé, e a alegoria mon-tada com o retrato de Getúlio Vargas. Nessa medida, o texto deFonseca, irônico e bem humorado, sugere pela ficção uma revi-são da História.

Na área da educação, o texto de Lúcio Kreutz – A ImigraçãoAlemã em O Tempo e o Vento – situa-se no terreno do diálogo quea ficção mantém com outros saberes. O ponto de partida do au-tor é explicitar a concepção de Erico Verissimo sobre a questãoda imigração alemã, sua estruturação no romance e o papelatribuído àquela etnia. Nesse sentido, o autor destaca a regiãode colonização alemã como precursora de uma nova ordem po-lítica e cultural, a partir da nacionalização em curso. Para Ma-

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ria Helena Câmara Bastos e Maria Teresa Santos Cunha – Olhaio que o Tempo não Levou. A Literatura de Erico Verissimo – a ênfaseé na ação pedagógica e cultural de toda a obra de Verissimo.Por esse viés, a história da educação elege Solo de Clarineta comoexemplar nessa confissão de memórias, autobiografia e dimen-são individual do sujeito Erico, local da fundação da discursivi-dade do autor.

Para Célia Ferraz de Souza, em A Representação do Espaço naObra de Erico Verissimo: O Tempo e o Vento, pela perspectiva doolhar de arquiteta, sublinha o espaço como o objeto princeps daobra de Erico Verissimo. A dimensão do espaço, para a autora,norteia o percurso do tempo, dos personagens e da arquiteturano romance. Nessa medida, o espaço torna-se o ponto simbóli-co na harmonização da ficção e uma dada realidade, principal-mente na construção de um imaginário urbano.

N’O Ciclo de Vargas segundo Verissimo, René E. Gertz destacao nível da política como a mais contundente pesquisa históricafeita por Erico. Porém, o autor assinala uma lacuna naquelas re-ferências ao insistir que, talvez por decepção, Erico Verissimotenha dado pouca ênfase aos anos 30 da história gaúcha. A con-tribuição de Gertz é a análise daquele período, onde no RioGrande há poucas referências sobre o ambiente gaúcho no Es-tado Novo. Para Heloisa Jochims Reichel, A Identidade Sul-rio-grandense no Imaginário de Erico Verissimo, a ênfase é trabalhar oimaginário do autor em busca dos elementos fundantes de umaidentidade. No destaque da autora, a linha que perpassa o livroé a “formação e delimitação de fronteira”, na busca de um espa-ço para o eu e para o outro, como sucedâneo dos que perten-cem ao continente e os “diferentes”, os de fora. Nessa esteira, aautora descreve os diferentes tipos que, no congraçamento danarrativa, concorrem para delimitar uma identidade gaúcha.N’A Abolição da Escravatura a Serviço da República – Leitura Políti-

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ca no Episódio Ismália Caré, Teófilo Torronteguy assinala que aabolição da escravatura serviu como programa político em de-trimento de uma ação social. Seu texto é uma descrição decomo a obra de Erico Verissimo, a partir das falas e da ação dospersonagens, reflete a ideologia social em relação à etnia negra.

A envergadura d’O Tempo e o Vento propicia, como inscri-ção, a criação de um almanaque fictício para Santa Fé, datadode 1899. Esta proposta de Andrey Schlee, sugere uma atualiza-ção do texto original do Almanaque Municipal de Santa Fé,mandado publicar pelo juiz de direito, Dr. Nepomuceno Garciade Mascarenhas, em 1853, conforme a narrativa de Verissimo.Essa proposição tem o fito de, pelo romance, instalar uma linhade convergência entre uma realidade inventada e as hiânciasque a História não conta. O humor, a pesquisa histórica de do-cumentos e outras publicações que remetem para a época, ins-piram no texto de Schlee a condição da invenção sobre a inven-ção, numa clara ironia das vicissitudes da realidade e pelas quaiso homem insiste em formatar o mundo.

Luiz Eugênio Véscio, no garimpo de uma edição que mar-casse os 50 anos d’O Tempo e o Vento, aproveita sua amizade como bibliófilo José Mindlin, para descobrir que Erico Verissimoainda tinha um texto inédito em livro – Breve Crônica duma Edi-tora da Província. Graças à grandeza de espírito e à generosida-de de Mindlin, que cedeu os originais, podemos ter acesso ago-ra a esta narrativa onde o autor gaúcho se reporta ao início decarreira como escritor: Muitas coisas aconteceram naquele ano de1931 (...) e um boticário falido, desempregado, sem dinheiro e comgrandes sonhos literários (mas sonhos controlados com os pés na terra,em suma, sonhos de serrano) chegou a Porto Alegre. O sujeito tinha vin-te e cinco anos e chamava-se Erico Verissimo e já havia batido em vá-rias portas, pedindo emprego, mas sem resultado. O texto, escritoquando Erico tinha 60 anos, trata do percurso do escritor, seusvários empregos até a chegada na Livraria do Globo. Narra a

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transformação da Editora e os vários papéis que desempenhou:tradutor, revisor, editor. Sua ascensão como romancista é conta-da através de suas publicações, até O Incidente em Antares.

Do tempo

Ao se tomar a categoria de sujeito, com o apoio da filosofiae da psicanálise, nos dias de hoje, poder-se-ia afirmar que n’OTempo e o Vento eclode um novo sujeito. Esse sujeito seria aqueleque se fixa num evento, situação ainda indecidível mas quemarca o risco e a responsabilidade da decisão. É o sujeito doevento. Sujeito marcado por um processo de verdade, não a dosaber instaurado, mas pela verdade do evento.

No caso do romance de Erico Verissimo, o que está narra-do como verdade não é a História oficial, pedagógica e centra-da num processo de repetição, mas aquela ficcionada e levadaà potência do sublime que é o evento marcado pela invenção.O processo literário, criador dessas invenções, é o que tornapossível superar a luta de história e fato histórico, acontecimen-to e verossimilhança, ideologia e verdade, pois carrega consigoa tensão entre o saber e verdade, o que resulta na dissociaçãoentre sentido e verdade. Melhor dizendo, a obra de arte, comoé o caso de O Tempo e o Vento, é o acontecimento que supera aHistória, pois que é mais elevada na acepção aristotélica, parapoder discerni-la pelo progresso dos eventos de seus aspectosvazios e negativos.

A superação do tempo, no romance maior de Erico Verissi-mo, é o comparecimento da verdade da arte, da ficção. Pois énessa narrativa que inventa a eclosão de uma saga, de uma vir-tualidade histórica, que os sentidos e os significados para todos

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nós leitores toma tento. A pulsão da narrativa, imperativo sim-bólico que remete as faltas e as falhas para uma construção desentido, é o que doma aquele tempo na esperança de que oevento nos forneça a grande representação.

* Doutor em Letras, Diretor do Centro de Artes e Letras, UFSM.

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“Era uma noite fria de lua cheia. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quietae deserta parecia um cemitério abandonado.”

O Continente – O Sobrado

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Erico Verissimo,um Escritor de Vanguarda?

L u i z F e r n a n d o V e r i s s i m o *

Dá para construir um bom argumento para a tese que nun-ca é no centro que aparecem as vanguardas culturais, que a me-trópole pode ser onde a cultura respira melhor mas é das mar-gens que vêm as novidades. “Nunca” talvez seja um exagero,mas no caso do modernismo europeu foi assim. Se você concor-dar que França, Inglaterra, Alemanha e, vá lá, Itália eram o“centro” cultural do mundo no começo deste século, a vanguar-da vinha da Irlanda de Joyce, Yeats e Beckett, da Checoslováquiade Kafka, da Viena de Musil, Wittgenstein, Schönberg e Freud,da Espanha de Picasso e da Escandinávia de Strindberg - numadefinição algo arbitrária de vanguarda. Isso sem falar nos Esta-dos Unidos de Dos Passos, Pound, Eliot, etc, e na Rússia deStravinski. No Brasil aconteceu coisa parecida e, descontada aSemana de Arte Moderna e suas consequências, foi de fora dametrópole Rio-São Paulo que chegou o novo. Do Nordeste, deMinas e do Rio Grande do Sul, mesmo que em muitos casos anovidade viesse disfarçada pelo regionalismo.

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Erico Verissimo um escritor de vanguarda? Acho que sim.Foi um dos primeiros a fazer literatura urbana no Brasil, a pre-ferir o despojamento anglo-saxão à empolação ibérica e france-sa e a escrever com uma informalidade que não excluía a expe-riência com estilos e técnicas de narrativa. Talvez nenhum ou-tro escritor brasileiro do seu tempo fosse tão bem informado so-bre a teoria do romance, embora se definisse como apenas umcontador de histórias. Foi ingênuo e lírico na sua primeira fase,até O Tempo e o Vento, mas mesmo nos primeiros romances, queconquistaram um público inédito e fizeram sua reputação deautor popular, há uma constante nem sempre reconhecida deaguda observação social e construção de tipos aliada a um con-trole de técnica pouco comum, na metrópole ou fora dela. EmO Tempo e o Vento não se sabe o que é mais espantoso, a ambiçãodo autor ou o fato de que conseguiu realizá-la. É o único exem-plo que eu conheço na literatura mundial de uma obra que sedobra sobre si mesma, se olha e se desmistifica enquanto estásendo feita. O terceiro volume da trilogia é uma repetição doprimeiro, com o épico sendo substituído pelo introspectivo, e oadmirável é que nem o épico é falso nem a introspecção que odesmente é menos, bem, épica. Acho que nunca se deu a devi-da atenção à carpintaria revolucionária de O Tempo e o Vento. OGabriel Garcia Marquez, lá de outra margem, a reconheceu, ediz que foi um dos livros que o influenciaram na construção doCem Anos de Solidão. Nos livros que escreveu depois de O Tempoe o Vento meu pai aprimorou seu domínio da narrativa. Na úni-ca vez em que o ouvi se queixar de uma desatenção dos críticos,comentou que ninguém notara o jogo com cores que fizera emO Prisioneiro. Incidente em Antares, claro, é o quarto volume de OTempo e o Vento, a história agora contada com amargura.

Ao contrário dos seus co-“vanguardistas”, que convergirampara o centro, Erico Verissimo ficou na margem. Não sei se istocriou algum tipo de ressentimento. Ele nunca se sentiu excluí-

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do, que eu saiba, por qualquer tipo de “panelinha” literária e ti-nha um ótimo relacionamento com escritores do centro dopaís. Mas não participava da vida literária da metrópole e suacondição de autor de boa venda, um dos dois únicos escritoresbrasileiros da época que podiam viver só dos seus livros, tam-bém o colocou numa espécie de periferia, vista do centro comalguma desconfiança. Sei que o Graciliano Ramos detestava omeu pai, embora nunca, acho eu, tenham se encontrado. Quan-do conheci o Ricardo Ramos nos rimos muito desta implicân-cia, à qual meu pai nunca deu maior importância. Se a distân-cia do centro, além da popularidade, explica a falta de uma ava-liação crítica mais perspicaz, digamos assim, da obra de EricoVerissimo, não sei. Mas foi uma distância que ele preferiu, e quenunca significou mais do que um apego ao seu chão e à suacasa.

* Escritor, jornalista.

2 3E r i c o V e r i s s i m o , u m e s c r i t o r d e v a n g u a r g a

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“Sentou-se no banco debaixo dum dos pessegueiros. O sol se havia escondido por trás da torre daMatriz, e uma sombra morna e trigueira cobria o quintal. Temperava o ar a fragrância veludosa dospêssegos maduros, mesclada com a das madressilvas e dos jasmineiros.”

O Arquipélago - Encruzilhada

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SAGA FAMILIAR E HISTÓRIA POLÍTICA

R e g i n a Z i l b e r m a n *

A estória não quer ser história. A estória,em rigor, deve ser contra a História.

Guimarães Rosa1

Desde os gregos

As epopéias constituíram, para os gregos, as primeiras for-mas de narrar. Reuniram histórias de guerras - a de Tróia é ma-téria, pelo menos, da Ilíada, da Pequena Ilíada e do Saque de Tróia[Iliupersis] - e de famílias - como nas desaparecidas Edipodia e Te-baida, que passaram a responder pelo passado helênico, repre-sentado por seus heróis, oriundos da aristocracia e capazes deexecutar ações elevadas, conforme a expressão de Aristóteles,na Poética.2

De todas as guerras, a mais famosa foi a de Tróia; de todasas narrações da guerra de Tróia, a mais célebre foi a de Home-ro, nome que pode encobrir um poeta assim denominado queteria vivido no século VIII a. C., uma corporação de aedos pro-

1. ROSA, João Guimarães. Tutaméia. Terceiras estórias. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968. p. 3.2. Cf. ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966.

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fissionais ou uma pessoa de talento excepcional, mas de identi-dade ignorada. Mas nem a Ilíada, nem a Odisséia dão conta detoda a guerra. Episódios esporádicos dela compõem o primeiropoema, centrado na cólera de Aquiles, motivada pelo arbítriode Agamêmnon, que lhe roubou a escrava Briseida, e pela va-lentia de Heitor, que roubou a vida de seu amigo e parceiro, obravo Pátroclo. Superados os motivos que desencadearam a irado primeiro dos mirmidões, a epopéia se fecha, até de modomelancólico, apresentando os funerais de Heitor, cujo cadáveré resgatado por seu pai Príamo, cedido por Aquiles, num raromomento de piedade. A Odisséia aborda o day after, a partida deTróia após a destruição da fortaleza pelas tropas aquéias, a dis-persão da frota vencedora, a diáspora de Ulisses até a chegadadesse, no final do canto XII, à sua ilha natal, cuja reconquistaocupa os demais doze cantos, vale dizer, a metade do poema.

Os dois poemas centram-se nas proezas dos heróis, homenssuperiores3 que se defrontam com iguais, outros nobres, ou entãocom seres fantásticos e deuses que vão plantando dificuldadesao longo da trajetória do protagonista, vencidas todas, mas aospoucos, o que estende e protela a ação por 24 cantos, até che-gar a um determinado ponto, nem sempre conclusivo, mas su-ficientemente terminal para encerrar o relato.

A guerra de Tróia de Homero não tem princípio, nem cau-sas. A ação da Ilíada começa in media res e não chega a acabar,interrompida pelo narrador que, se retorna ao assunto na Odis-séia, não é para contar o fechamento do conflito, e sim a aber-tura do outro. A tomada e destruição de Tróia não é apresenta-da nesse poema para concluir o primeiro, e sim para explicar ocomeço da aventura de Ulisses na direção de casa. Portanto, aguerra, que não teve início, também não finda, sendo apenastransferida de lugar, já que uma das razões para o périplo de

3. Id. ibid.

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Ulisses pelos mares e para seus infortúnios é a vingança de Po-seidon, protetor de Tróia e desafeto do rei da Ítaca, responsáveldireto pela queda da cidade onde o soberano dos mares deti-nha seus templos.

É Ésquilo que, na Orestéia, vai narrar a história da guerra deTróia, articulando suas causas e conseqüências e apresentando-a do começo até o final. Agamêmnon, a primeira tragédia da tri-logia, é, por intermédio dos cantos corais e de alguns dos episó-dios, quase toda dedicada a recuperar os principais aconteci-mentos do conflito entre os aqueus e os troianos. O párodo, porexemplo, centra-se na reunião da frota dos aqueus em Áulide eno sacrifício de Ifigênia, a primogênita de Agamêmnon, que,chefe do exército helênico, precisou imolar a filha para obter agraça dos deuses e encaminhar seus aliados às praias de Tróia.4

No primeiro episódio, por sua vez, Clitemnestra, sabedorada derrota da cidade inimiga, lamenta o destino dos vencidos,imaginando a reação das mulheres após a perda de seus ho-mens e da tranqülidade doméstica:5

Neste momento os Aqueus dominam Tróia.Na praça capturada certamente ouve-seo borborinho de mil vozes bem distintas,.........................................................................Mulheres desvairadas tentam descobriros corpos dos irmãos e dos esposos mortos;sobre os cadáveres dos pais crianças choram(são lábios antes livres lamentando males).6

O primeiro estásimo refere-se ao crime de Páris, que des-respeitou o lar de Menelau, seduzindo e raptando Helena, es-

4. Esse tema é desenvolvido mais tarde por Eurípedes, em Ifigênia em Áulide.5. Tema igualmente desenvolvido por Eurípedes, em Hécuba e As troianas.6. ÉSQUILO. Agamêmnon. Trad. de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1964. p. 13 - 14.

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posa daquele. O segundo episódio, quando Clitemnestra rece-be notícias atualizadas da tropa aquéia, apresenta a partida deTróia e a dispersão dos gregos, matéria tratada na Odisséia e naepopéia, hoje desaparecida, os Regressos [Nostoi]. O segundo es-tásimo completa o retrospecto, quando volta ao tema da des-truição de Tróia, atribuindo a Páris a causa do destino funestoda cidade.

Mais do que Homero, é Ésquilo que faz a crônica da guer-ra de Tróia, atribuindo-lhe uma causa - a atitude de Páris, des-respeitando o lar de Menelau, quando tinha sido recebido con-forme as normas da hospitalidade - e conseqüências, quais se-jam: a destruição da cidade e a dispersão dos gregos, já que nemtodos têm oportunidade de, como Agamêmnon, chegar sãos esalvos a seu reino, providos de escravos, amantes (Cassandra, nocaso desse general grego) e despojos.

Essa crônica de guerra e de dois povos é, por seu turno,uma crônica familiar. Histórias de família já tinham sido maté-ria de epopéias, mas Ésquilo procede à articulação fundamen-tal: a história dos Átridas fica embricada à história da própriaGrécia, pois, se o conflito entre Atreu e Tiestes têm causas inter-nas - a rivalidade dos irmãos, o adultério e o crime -, os atritosvivenciados entre seus respectivos descendentes - Menelau eAgamêmnon, de um lado; Agamêmnon e Egisto, de outro - nãopodem ser dissociados de um plano mais geral, de natureza po-lítica e militar. Afinal, Agamêmnon vai à guerra, para defendera honra de Menelau, maculada por Páris, tendo mesmo de imo-lar a própria filha para dirigir os favores divinos no sentido dossoldados aqueus, o que depois custa sua vida. É esse ato, de sig-nificado religioso, militar e político (estava em questão a lide-rança de Agamêmnon) que Clitemnestra entende como crime,justificando, uma década depois, o assassinato do marido. Omesmo acontece com Egisto: ele quer vingar a morte do pai,Tiestes, apunhalando Agamêmnon enquanto este se banhava;

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ao mesmo tempo, é cúmplice da amante, Clitemnestra. Mas ocrime e o adultério colocam-no no comando de Micenas, deque se torna tirano até ser morto por Orestes, filho de Agamêm-non que, vingando o pai, recupera o poder a que teria direitoenquanto herdeiro do rei.

A tragédia de Ésquilo ata a saga familiar à história políticade uma cidade-Estado, unidade administrativa fundamentalconforme o modelo de governo adotado pelos gregos no sécu-lo V a. C., quando a Orestéia foi apresentada ao público atenien-se pela primeira vez. A história política conta a passagem da ti-rania à democracia, pois Orestes é inocentado pelo areópagoreunido sob a égide de Palas Atena, a deusa protetora da cida-de de Atenas, que assim comemorava coletivamente a adoçãode um sistema que a diferenciava perante as outras pólis da Gré-cia. Outra narração é a da instalação da justiça civil, exercida eexecutada por um tribunal que ouve o réu, em vez de eliminá-lo, e julga a partir dos argumentos favoráveis e contrários à suaação. Esse mundo é o do público e do coletivo, em vez do pri-vado e individual, que moveu as atitudes de Egisto e Clitemnes-tra, tendo se reproduzido na ação de Orestes e sua irmã, Elec-tra, mas superado ao final da tragédia, quando os juízes de Ate-nas submetem até as Fúrias, que querem beber o sangue do cri-minoso, em vez de entender seus motivos.

Com esse nome, a trilogia confere o principal papel a Ores-tes, o último descendente da família dos Átridas. Ésquilo con-centra a ação na morte de Agamêmnon, matéria da primeiratragédia, e na vingança armada por seus filhos, Orestes e Elec-tra, que punem a mãe e seu amante, Egisto, com a morte, sen-do depois o rapaz julgado pelo tribunal de Atenas. Nos diálogose cantos corais, a ação retrocede, voltando ao conflito entre osirmãos Atreu e Tiestes, quando o primeiro atraiu o segundo, eseus filhos, para uma armadilha mortal, sobrevivendo apenasEgisto, que depois responderá na mesma moeda: tornar-se-á

2 9s a g a f a m i l i a r e h i s t Ó r i a p o l í t i c a

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amante da mulher de Agamêmnon, Clitemnestra, e juntos osdois levarão o general à morte.

Entre esse evento passado e as ações contemporâneas apre-sentadas em cena, outro acontecimento merece destaque porÉsquilo: é a guerra contra Tróia, motivada pelo rapto de Hele-na, sendo atingido Menelau, irmão de Agamêmnon. Assim, omito não ultrapassa o percurso de três gerações, formadas todaselas pelos pares de irmãos: Atreu - Tiestes; Menelau - Agamêm-non; Orestes - Electra. Ésquilo deixa de fora outros crimes ante-riores da família: o do ancestral Tântalo, que tentou enganar osdeuses, oferecendo-lhes para comer a carne de seu filho Pélops,e foi punido com a sede eterna que, no Hades, não consegue sa-ciar (é assim que Homero o mostra, quando Ulisses, na Odisséia,desce aos Infernos); e o de Pélops, que, para conquistar Hipo-dâmia, engana o pai da moça numa corrida fatal.

Três gerações bastam para traçar uma rota de dissimula-ções e enganos. Além disso, entre os pares Atreu/Tiestes, Aga-mêmnon/Menelau e Agamêmnon/Egisto, predomina um temacomum: o adultério, punido com a morte. A esse tema, soma-seuma associação: as mulheres podem ter sido vítimas da sedução,como Helena em relação a Páris, mas convertem-se em cúmpli-ces, quando optam pelo amante em detrimento da família, piorainda quando ameaçam com o sacrifício dos filhos. Clitemnes-tra exemplifica melhor que ninguém - e nem mesmo a Medéiade Eurípedes faz sombra a essa sinistra rainha - o cinismo femi-nino, que fascina para enganar, atrai para matar.

A saga familiar é feita de sangue e morte, legando aos des-cendentes a tarefa de punir os culpados, vivendo à margem dajustiça. São Orestes e Electra que rompem o ciclo, porque separticularizam em vários aspectos:

- constituem um par diferenciado pelo sexo; logo, nãocompetem pelo(a) mesmo(a) amante, como nos casos citadosantes;

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- mantêm-se sexualmente castos, sendo de supor que per-maneçam virgens;

- sua tarefa é vingar o pai, matando a mãe, logo o objeto desua ação pertence à geração anterior, e não contemporânea.

O que mais se salienta na composição dos dois príncipes éa assexualidade de ambos, como se, para interromper o ciclo demortes e desforras, fosse preciso eliminar a causa principal: a li-bido. Orestes é inocentado, e Electra deixa a cena ao final de Ascoéforas, segunda peça da trilogia. Ambos são substituídos poroutra forma de governo, a democracia, e não se supõe que pu-desse ser diferente: eles não têm descendentes, nem parece quepossam vir a ter. A saga familiar se encerra com a eliminação dafamília, e sua substituição pelo Estado.

Na Orestéia, Ésquilo lida com algumas questões que podemiluminar as relações entre poesia e história:

- a proximidade desse drama com a história advém do fatode Ésquilo estar fazendo a crônica da Grécia, com seu berço naguerra de Tróia e conseqüências que se estenderão até a insta-lação do tribunal de Atenas; para tanto, ele se vale de uma for-ma poética, exposta por meio do drama e da narrativa, estiloesse adotado pelos cantos corais, que recuperam e resumem opassado helênico, bem como articulam-no às ações presencia-das pelos espectadores naquele momento na encenação;

- a articulação entre o passado e o presente pode ser reali-zada porque o gênero literário escolhido é o dramático, quemanipula com a atualidade: o que está sendo visto está aconte-cendo. Graças à fusão entre narrativa e drama, Ésquilo pode ex-plicar aos atenienses sua própria história, iniciada quando doconflito entre generais troianos e aqueus e concluída quando,após as quizílias familiares que se arrastaram por gerações, oareópago assumiu seu papel ordenador e pôs fim, em definiti-vo, às rixas e desavenças;

- mas o encerramento das questões domésticas também sedeveu a um fator interno: a própria família se dissolveu enquan-

3 1s a g a f a m i l i a r e h i s t Ó r i a p o l í t i c a

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to entidade ordenadora. A incapacidade de controlar seus ins-tintos sexuais, as rivalidades internas, a esterilidade de seusmembros mais moços levam-na ao desaparecimento enquantocélula mater da sociedade, cabendo ser trocada por outra institui-ção, no caso, o Estado, mais competente porque coletivo e anô-nimo, independente das vontades particulares e idiossincrasiasindividuais.

Com a Orestéia, Ésquilo dá uma lição de poética histórica:mostra como operar com a temporalidade e a cronologia ecomo, partindo do passado, chegar ao presente, interpretando aatualidade para os sujeitos que fazem parte dela. Mais importan-te: Ésquilo mostra como tratar, simultaneamente, de figuras mi-tológicas e entidades históricas, como acontece ao final de As Eu-mênides. Ali colocam-se frente à frente os austeros juízes atenien-ses e as divindades olímpicas, Apolo e Palas Atena, bem como asoutrora rebeldes Erínias, convertidas ao final em pacíficas Eu-mênides, deusas protetoras da poderosa cidade de Atenas.

Ninguém, antes de Ésquilo, ousara com tanta naturalidadepassar do mítico para o histórico e voltar, sem desfigurar ne-nhum dos dois. Só o próprio Ésquilo, em Os Persas, drama isola-do em que narra a vitória ateniense sobre os invasores coman-dados por Xerxes. Mas, nessa obra, Ésquilo não recorre à mito-logia, como que resguardando a esfera divina e mitológica dopanteão grego. A Orestéia revela que ele decidira ir mais adian-te, reunindo tempos diversos e entidades de natureza distinta.O resultado foi único, porque os gregos não tentaram de novo,nem mesmo Aristófanes, que deixa o mítico, para se dedicar aohistórico. Competiu à atualidade tentar renovar esse pacto, sen-do Friedrich Nietzsche um de seus arautos, quando, em O Nas-cimento da Tragédia, coloca a trilogia de Ésquilo no papel de mo-delo da Gesamtkunstwerk, a obra de arte total. Cabe verificar aque chegou a saga familiar, quando Erico Verissimo a retoma,em O Continente.

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Até os gaúchos

O romance histórico constitui provavelmente o projetomais antigo e contínuo da ficção brasileira. Os românticos ado-taram-no porque correspondia a um gênero de vanguarda naprimeira metade do século XIX, criação exclusiva do período,que cabia transplantar para o Brasil, pois o país em formação,logo após se separar de Portugal, precisava de narradores deseu passado. Tanto melhor que fossem romancistas, que pode-riam recorrer à imaginação para conferir heroicidade aos epi-sódios da conquista do território, nem sempre conhecidos, nemsempre dignos de tratamento épico.

Num ensaio de de 1843, publicado na Revista do InstitutoHistórico e Geográfico Brasileiro em janeiro de 1845, o botânicoalemão Karl Friedrich Philipp von Martius, conhecido pelo tra-balho de que se originou a obra Viagem pelo Brasil, publicada emparceria com Johann Baptist von Spix entre 1817 e 1820, expli-ca “Como se deve escrever a História do Brasil”. Depois de ana-lisar o processo de formação do povo brasileiro, elege um mo-delo para a redação da história que coincide com o projeto doromance histórico, como se esse fosse o mais adequado para ofortalecimento do sentimento nacional e de identidade entre oshabitantes de um país:

Como qualquer história que este nome merece, deve parecer-secom um Epos! 7

Os romancistas, a começar por José de Alencar, acataram asugestão de Martius: procuraram no passado episódios que ti-vessem conotação épica e estabeleceram os padrões nativistas

7. MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Como se deve escrever a História do Brasil. Revista do Ins-tituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro 6 (24) : 389 - 411. Janeiro de 1845.

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de escrita da história. De lá para cá, o projeto tomou vários ru-mos, sendo rejeitado pelos naturalistas, que preferiam a críticaà atualidade, e retomado pelos modernistas, de modo ufanistaou paródico, mas dificilmente alcançando o efeito destacado apropósito de Ésquilo: a capacidade de articular passado e pre-sente, unindo figuras míticas e históricas, para refletir sobre aatualidade e tomar posição diante dela.

Com O Continente, Erico Verissimo habilitou-se à realizaçãode tarefa similar e, como foi capaz, com esse romance e com otodo da trilogia O Tempo e o Vento, de chegar a um resultado po-sitivo, deu novo sentido ao romance histórico brasileiro, colo-cando-o num patamar diante do qual outros aspirantes a efeitoparecido precisam se posicionar e eventualmente superar.

Nem O Continente, em particular, nem O Tempo e o Vento, noconjunto, podem ser considerados reapropriações do mito tra-tado por Ésquilo na Orestéia. De todo modo, alguns traços co-muns são verificáveis:

- o romance narra a tomada do poder pelos Cambarás, e osepisódios dispersos nas várias cenas de O Sobrado mostram comoLicurgo chega ao governo de sua cidade, Santa Fé, por força daluta e do morticínio;8

- a ascensão dos Cambarás consome três gerações, desdesua associação aos Terras: Rodrigo Cambará disputa Bibianacom Bento Amaral; seu filho Bolívar Cambará é assassinado pe-los Amarais, ainda senhores da cidade; Licurgo Cambará, de-pois de resistir dentro de sua casa ao cerco dos Amarais, sai vi-torioso e Intendente da cidade, durante a revolução federalistade 1893.

8. Em outro estudo, examinamos como a tomada de Santa Fé implica o sacrifício da própria des-cendência de Licurgo, com a morte da filha, Aurora. V. ZILBERMAN, Regina. Do mito ao roman-ce. Tipologia da ficção brasileira contemporânea. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul;Porto Alegre: Escola Superior de Teologia, 1977. V. também ZILBERMAN, Regina. “O tempo e ovento: história, mito, literatura”. Nova Renascença. Porto: Fundação Eng. Antônio de Almeida, XV: 341 - 363. Primavera/Verão de 1995.

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O aspecto em comum mais importante, contudo, situa-seem outro lugar: também Erico Verissimo reflete sobre as rela-ções entre família e Estado. O Continente narra em princípio ahistória de um clã, os Cambarás, formados na confluência de vá-rios ramos:

a) o primeiro Cambará é, na realidade, Chico Rodrigues,aventureiro e, entre outros crimes, ladrão de gado, que tomaaquele sobrenome quando resolve constituir família e virar pro-prietário. Como quer criar raízes, adota o nome de uma árvore:

Resolvi mudar de vida, requerer sesmarias, fazer casa, pararquieto, ser um senhor estancieiro, ter mulher, gado, cavalos e fi-lhos com a minha marca...(...)Olhou para uma árvore forte, que havia à beira da estrada.De hoje em diante vou me chamar Francisco Nunes Cambará.9

b) seu descendente, Rodrigo Cambará, casa-se com Bibia-na Terra, cujos avós tinham origem étnica distinta: Ana Terradescendia de paulistas transferidos para o Sul, pequenos pro-prietários rurais assolados pelos ladrões, de um lado, e, de ou-tro, pela prepotência dos grandes latifundiários, como os Ama-rais; Pedro Missioneiro, da sua parte, era mestiço, filho de umbandeirante e uma índia, educado pelos jesuítas nas Missõesguaranis, até a derrocada dessas, com a vitória de Gomes Freirede Andrade sobre as tropas nativas de Sepé Tiaraju;

c) ao mesmo tempo, cresce e se desenvolve a família dosmiseráveis Carés, representantes dos gaúchos pobres e desterra-dos que vêm a se fixar no Angico, propriedade dos Cambarás,até o surgimento de Ismália Caré, amante que Licurgo mantémantes e depois do casamento.

A miscigenação e a diversidade étnicas são fatores podero-sos na constituição do romance, pois estão ainda presentes

9. VERISSIMO, Erico. O Continente. Porto Alegre: Globo, 1949. p. 65. As demais citações provêmdessa edição.

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membros dos grupos de imigrantes alemães - como os colonosque se localizam nas proximidades de Santa Fé ou o DoutorWinter, o médico estrangeiro que atua como fino analista doscomportamentos humanos no universo das personagens ficcio-nais - e dos pretos, como Severino, o companheiro de infânciade Bolívar, enforcado por decorrência do depoimento do jovemCambará, na véspera do dia do noivado desse.

Também o recorte social é minucioso, estando representa-das as diferentes camadas, desde os grandes proprietários - gru-po a que os Cambarás se integram após o casamento de Bolívare Luzia Silva, herdeira do Sobrado e do Angico - até os miserá-veis sem-terra, como os Carés, os escravos e os peões, exemplifi-cados por Fandango.

A história da família concentra, portanto, os vários ângulosde uma história social, revelando-se paradigmática. O Continen-te sintetiza a história do Rio Grande do Sul, escolhendo um iní-cio para ela - a guerra missioneira, com a integração do Conti-nente de São Pedro ao território português depois da destrui-ção dos Sete Povos pelo exército de Gomes Freire de Andrade -e um elemento de agregação - a miscigenação étnica, que unePedro Missioneiro e Ana Terra, depois Bibiana Terra e RodrigoCambará. Concluído o processo de miscigenação, o elementode agregação passa a ser a própria família, de onde sairão os sol-dados para as guerras - Rodrigo, Bolívar, Florêncio, Licurgo - eas mulheres para a sustentação do lar. A história narrada porErico não elege heróis individuais, sejam militares ou civis en-volvidos em conflitos bélicos, como o romance histórico do Ro-mantismo, e sim o grupo; também não destaca uma camada so-cial, e sim o núcleo doméstico, responsável pelo aparecimentoe manutenção das gerações, num processo sem fim de que de-pende o funcionamento da sociedade.

A família escolhida para paradigma, contudo, não é “mé-dia” ou “exemplar”: ela vai, aos poucos, se elevando socialmen-

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te. Dos marginais Pedro Missioneiro e Chico Rodrigues provêmo acomodado Pedro Terra e o inquieto Rodrigo Cambará, estesainda despossuídos; mas o neto de um e filho de outro, Bolívar,casa com a rica herdeira Luzia Silva, o que garante o futurotranqüilo de Licurgo, figura que, ao contrário de seus ances-trais, não precisa ter preocupações financeiras ou profissionais.A elevação social tem seu preço: os Cambarás chegam ao poder,quando o Intendente Licurgo, parceiro dos republicanos e deJúlio de Castilhos, suplanta os maragatos por ocasião da dispu-ta de Santa Fé.

Licurgo, que tem nome de chefe de Estado,10 e Estado compropensões guerreiras, chega ao comando de Santa Fé por tersido eleito Intendente e por ter sabido conservar a posse da cida-de, diante do assédio dos rebeldes liderados por Gaspar SilveiraMartins. Quando o romance conclui, ele é o chefe vitorioso e res-peitado, que certamente ocupará papel influente no processo derepartição dos negócios públicos no Rio Grande do Sul. Assim,ele muda de condição: o chefe de família torna-se chefe do Esta-do, e o romance de família, narrativa do exercício do poder. Asdemais etapas da trilogia desenvolverão essa idéia, quando aquestão familiar se transfere para um segundo plano, deslocadapela discussão das relações entre o indivíduo e o governo.

Essa passagem, que Ésquilo narrara por meio dos Átridas,é a matéria virtual de O Continente. Como na tragédia, o dramadoméstico toma a maior parte do texto, para contar a mudançaessencial: como o Estado se constitui, desde o mundo familiaraté sua substituição por outra entidade, mais distante e anôni-ma, a democracia no caso do drama grego, a tirania no caso doromance gaúcho. Eis por que, em Ésquilo, quando a transiçãoocorre, Orestes sai de cena, cedendo o lugar para os deuses e osjuízes, estes colocados no mesmo plano daqueles, enquanto

10. Licurgo foi o lendário legislador de Esparta, tendo vivido supostamente no século IX a. C. Cre-dita-se a ele o fato de ter organizado a cidade como uma nação de soldados. Plutarco, em Vidasparalelas, conta sua biografia.

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que, na saga de Erico Verissimo, Licurgo muda de um plano aoutro, sem desaparecer. Ao final, ele passa a se confundir como poder, e esse não é democrático. Portanto, sua vitória pessoalé a imposição de um modelo administrativo personalista, comoo Rio Grande do Sul e o Brasil testemunharão por várias déca-das no século XX.

O estabelecimento do Estado como entidade responsávelpelo funcionamento da sociedade corresponde ao enfraqueci-mento do poder e influência da família, que abre mão da facul-dade de arbitrar sobre os problemas tanto internos - domésticos- como externos ao alcance de sua órbita de atuação. Essa pas-sagem vai corresponder, na tragédia de Ésquilo, à transferênciado mundo mítico para o mundo histórico: Orestes, o herdeiroque descendia longínquamente dos deuses e proximamente dogeneral que comandou os aqueus na guerra de Tróia, dá lugaraos juízes anônimos, e Palas Atena gerencia a mudança. O Con-tinente lida com essa transformação de modo peculiar.

Para se ocupar dela, cabia introduzir o mito na narrativa,apesar do compromisso original com o romance histórico. Eri-co resolve a questão, recuperando a cosmovisão mítica que pes-soas vivendo num contexto tão primitivo e bárbaro, como o RioGrande no século XVIII, quando o relato inicia, e ainda no sé-culo XIX, antes da influência dos positivistas (experimentada,no plano ficcional, tão-somente por Licurgo e sua geração),provavelmente compartilhariam.11 Assim, Pedro Missioneirotem visões premonitórias e acredita-se filho de Nossa Senhora,constituindo-se o exemplo mais flagrante de um modo de ver oreal que sacraliza o espaço e anula a transformação do tempo.12

Mas igualmente o universo de Ana Terra é marcado pela ausên-cia de cronologia e pela repetição, apontando para uma primi-tividade que é a da criação do mundo:

11. Em O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Laura de Mello e Souza indica como as condições em que sedeu a colonização no Brasil dos primeiros séculos favoreceram o fortalecimento de uma visãomágica do mundo e da natureza. Cf. SOUZA, Laura de Mello. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. 5.reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

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Mas na estância onde Ana vivia com os pais e os dois irmãos,ninguém sabia ler, e mesmo naquele fim-de-mundo não existiacalendário nem relógio. Eles guardavam de memória os dias dasemana; viam as horas pela posição do sol; calculavam a passa-gem dos meses pelas fases da lua; e era o cheiro do ar, o aspectodas árvores e a temperatura que lhes diziam das estações do ano.(p. 72)

Além disso, Erico transplantou o modo de entender a rea-lidade peculiar ao pensamento mágico para a composição daestrutura narrativa, pois as seqüências de que se compõem o ro-mance repetem, ritualisticamente, dois modelos de ação:

- os episódios protagonizados pelos homens (Pedro Missio-neiro, em Ana Terra; Rodrigo Cambará, em Um certo capitão Ro-drigo; Bolívar Cambará, em A Teiniaguá) se caracterizam porapresentar a história de um homem jovem que é morto apósconquistar a mulher e gerar nela seu herdeiro, conforme umprocesso de substituição, próprio aos ritos rurais, de um sermais velho pelo mais moço, capaz de fertilizar a terra com maisvigor e robustez;

- os episódios protagonizados por mulheres (Ana Terra, emAna Terra; Bibiana Cambará, em Um certo capitão Rodrigo, A Tei-niaguá e A guerra) se caracterizam pelo esforço delas de pereni-zar a família e a sucessão, garantida à custa da castração sexual(Ana e Bibiana não voltam a ter parceiros masculinos) e da de-dicação obsessiva aos filhos.

A repetição das principais ações vivenciadas pelos protago-nistas, sutilmente camuflada pela caracterização variada daspersonalidades e pela diversidade de seres que povoam os acon-tecimentos, indica a prevalência do modelo narrativo próprioao mito: como no ritual, reproduzem-se os processos, sugerindoque, sob a capa da mudança, esconde-se o eterno retorno. A

12. Relativamente ao conceito de mito, v. ELIADE, Mircea. Mito y realidad. Madrid: Guadarrama,1968. ___. El mito del eterno retorno. Madrid: Alianza, 1972. ___. Tratado de história das religiões.Lisboa: Cosmos, 1977. ___. O sagrado e o profano. Lisboa: Livros do Brasil, s.d..

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ruptura, contudo, é protagonizada num dado momento, sendoLicurgo, o homem de Estado, responsável por ela: é ele quemsobrevive ao cerco do Sobrado, quando seu pai morrera tentan-do deixá-lo. Assim, o filho reitera o ato paterno, para suplantá-lo, instaurando uma nova ordem.

Impõe-se outra situação, que rompe com o mundo do mitoe depara-se com o acontecimento, sempre diverso, impossívelde ser interpretado pelo padrão das igualdades e das repeti-ções. Este é o mundo da história, cuja instalação Erico, comoantes dele Ésquilo, narra. Por isso, o encerramento da narrati-va, em O Continente, coincide com o final de O Sobrado, e nãocom a interpolação das vozes coletivas que faziam a passagemde um episódio a outro.

Com efeito, O Continente, constituído de sete episódios,quais sejam, A fonte, Ana Terra, Um certo capitão Rodrigo, A Teinia-guá, A guerra, Ismália Caré e O Sobrado, apresenta uma grande di-ferença entre este último e os outros seis:

- O Sobrado é apresentado em partes que se fragmentam aolongo de todo o romance, enquanto que os demais correm deforma ininterrupta;

- após cada um dos seis episódios, segue-se uma narrativaem itálico, enquanto que, mesmo depois de concluido O Sobra-do, não aparece o trecho com tais marcas gráficas. A narrativaem itálico desempenha dupla função:

a) faz a colagem cronológica entre os episódios, preen-chendo as lacunas entre cada período histórico narrado peloficcionista e o seguinte; assim, após A fonte, que mostra a forma-ção do Rio Grande em meio às guerras missioneiras, são relata-dos outros eventos da ocupação do território; após Ana Terra, ainstalação dos imigrantes alemães; após Um certo capitão Rodrigo,a Guerra Farroupilha; e assim sucessivamente;

b) apresenta a perspectiva popular, que igualmente carregadupla face: o narrador expressa a vox populi, quando avalia os ma-lefícios causados pela guerra e as perdas sofridas pelas familias:

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Dei tudo que tinha pros Farrapos. Meus sete filhos. Meus sete ca-valos. Minhas sete vacas. Fiquei sozinha nesta casa com umgato e um pintassilgo. E Deus, naturalmente. (p. 299)

além disso, conta a história das classes populares, sumariadas nafamília Caré, que ocupa a linha inferior da composição socialsul-rio-grandense:

João Caré anda sozinho, de pés no chão, quase nu, mal tapan-do as vergonhas com um chiripá esfarrado. No inverno, quandoo minuano sopra, ele cava na terra uma cova e se deita dentrodela. Quando a fome aperta e não há nada para comer, JoãoCaré mastiga raízes, para enganar o estômago. E quando o de-sejo de mulher é muito, ele se estende de bruços no chão e refoci-la na terra. (p. 149)

Já se vê que os trechos intercalados exercem, no romance, opapel que os cantos corais desempenham na tragédia grega, es-pecialmente no Agamêmnon, de Ésquilo: completam a crônica his-tórica, empregando a voz coletiva e recuperando a ótica popular.

Mas esse sujeito plural desaparece ao final de O Sobrado.Quando a família é suplantada pelo Estado, e este toma a formapersonalista representada pelo vitorioso e onipotente Licurgo,o narrador que falava em nome do cronista popular se cala. Aose instaurar o mundo da história e do acontecimento, suplan-tando o do mito, o que significa anunciar a realidade do pro-gresso e da modernidade, não há lugar mais para o coletivo.

Tal qual o dramaturgo grego, o romancista sul-rio-granden-se ensina uma lição sobre o presente. Pouco eufórica, ao con-trário daquele, razão por que suas palavras finais são de desa-lento, sob a égide da figura esclerosada de Bibiana:

A porta torna a fechar-se. Fandango suspira, aliviado. De re-pente o sino cessa de badalar e ele fica com uma zoada nos ouvi-dos, como se sua cabeça fosse um ninho de marimbondos.Sem saber ao certo por quê, dirige-se para o quarto de Bibiana,

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bate na porta e, como não obtém nenhuma resposta, abre-a deva-garinho e entra. Lá está a velha sentada em sua cadeira de ba-lanço, com o chale nas costas, mascando fumo, remexendo aboca como uma vaca a ruminar. (p. 638 - 639)

Saga de uma ascensão política, O Continente elege o modode narrar do cronista grego, sugerindo que, nos intervalos daHistória, coloca-se a ficção para enunciar, pela outra mão, o queprecisa ser contado.

* Doutora em Letras. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras

da PUC-RS.

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“Junho entrou com fortes geadas. Um velho morador de Santa Fé garantiu: Vamos ter um invernobrabo.”

O Retrato - Chantecler

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O Continente: um Romance deFormação? Pós-Colonialismo e

Identidade Política

M a r i a d a G l ó r i a B o r d i n i *

O Continente, volume inaugural de O Tempo e o Vento, cujolançamento na edição completa ocorreu em 1949, chamou-seassim depois de muitas hesitações do autor. Desde 1939 vinhapensando num “massudo romance cíclico” a respeito da forma-ção do Rio Grande do Sul, que retrataria o período de 1740 a1940, com andamento “repousado, lento e denso” (VERISSI-MO, 1944, p.126-127). O título inicial foi Caravana e o primei-ro esboço deu-se em 1941, como consta no primeiro caderno denotas do escritor dedicado ao plano geral da obra. Nesse cader-no, há um roteiro das partes previstas: “A fonte” (20 p.), “O pu-nhal”(20 p.), “O tempo e o vento”(50 p.), “O caudilho”(120 p.)“Teiniaguá”(50 p.) “A guerra” (60p.) e “O sobrado”(200 p.). Aidéia era tratar cada seção como um conto ou novela, dando-lheum fechamento individual, de modo que a obra, mais lírica,concentrada e panorâmica nos três primeiros episódios, maisdramática e também idílica no quarto, no quinto e no sexto, seencerraria elegiacamente no sétimo. O conteúdo deste ultra-

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passaria a dimensão pessoal, para investir com maior intensida-de na situação política1 (cf. ALEV 04a0033-41, p.ii).2

Entre esse nascedouro e o romance acabado, que realizaessas propostas seminais, houve pelo menos um segundo rotei-ro, de 1943, bem mais extenso, preocupado com a consulta afontes do folclore e da historiografia sulina, procurando especi-ficar os eventos e cenários e coordenando vidas e fatos políticos.Nesse esboço, salientam-se a importância das Missões, o papelfundacional de Pedro Missioneiro, os confrontos entre liberaise terratenentes, envolvendo Rodrigo Cambará, e a sabedoria deMaria Valéria ante a guerra. Prefiguram-se os símbolos fortes doromance, o vento e o punhal, e há a fixação das cronologias, afim de garantir a coerência da história, bem como a criação deconflitos nas relações pessoais, para evitar a monotonia no rit-mo da narrativa (cf. ALEV 04b0059-43).

O design da obra, em que ressoa a concepção goethiana desímbolo, uma vez que se deseja auto-encerrar cada segmento dotexto e o texto em si, sem incoerências, e ao mesmo tempo per-segue-se um sentido que extravase esses moldes limitativos, de-safia à consideração desse primeiro volume da trilogia sob a len-te dos estudos pós-coloniais. Pressupondo as noções derridianasde différance e de gramatologia, a atividade crítica do pós-colo-nialismo, ao lidar com as questões do nacionalismo, tem busca-do encontrar uma idéia de totalização alternativa à do marxis-mo, em que a instabilidade, a dispersão e as alteridades sejamas forças de coalizão de um conceito de nação – a colonizada –que se afirma a partir e contra outra nação – a colonizadora, emresposta à acusação de Edward Said de que o discurso culturalmoderno estaria vinculado “às estruturas de acumulação, nega-

1. Noutra parte do esboço, acrescenta-se um oitavo episódio, tambérm elegíaco, politizado e maisextenso, intitulado “A torre”.

2. A indicação se refere ao número de catálogo da Classe Esboços e Notas do Acervo Literário deErico Verissimo – ALEV), sediado no Centro de Pesquisas Literárias da PUCRS, endereço eletrô-nico: www.pucrs.br/letras/pos/acersul/ericoverissimo.

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ção, repressão e mediação que caracterizam a forma estética do-minante”, colaborando com a autojustificação dos excessos doEstado moderno (p.177).

Situando-se a partir do pensamento desenvolvido pelosteóricos pós-modernos, avessos a quaisquer centramentos e nar-rativas-mestre, cultores do regresso paródico ao passado, dojogo dos significantes e recusando a noção de subjetividades ho-mogêneas, o pós-colonialismo entretanto reage às idéias pós-modernas de fim da história e das utopias, bem como ao redu-cionismo da concretitude social ao plano meramente discursi-vo. Não poderia, contudo, ignorar as mudanças de paradigmaocorridas tanto na produção literária quanto na teorização pós-moderna, o que tem levado seus praticantes a um exercício ino-vador no estabelecimento de vínculos entre texto e extratexto,entre o mesmo e o outro, através de mediações discursivas, con-siderando os signos em sua intencionalidade social e política.

No seu fundamento, a teoria pós-colonial vem a existir apartir do momento em que os povos colonizados interagem coma cultura do colonizador e dela se apropriam criativamente. Se-gundo Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin, “assim queos povos colonizados têm motivos para refletir a respeito da ten-são que advém dessa mistura problemática e contestada de lin-guagem imperialista e experiência local, eventualmente vibran-te e poderosa e a expressam, nasce a `teoria’ pós-colonial” (p.1).Segundo os autores, essa teoria discute aspectos tão heterogê-neos como migração, escravatura, exclusão, culturas de resistên-cia, representação, diferença, raça, gênero e respostas às narra-tivas-mestras européias provenientes das culturas colonizadas,assim como às práticas discursivas que as manifestam. O diferen-cial reside no processo histórico de colonização – incluindo asformas contemporâneas de globalização e de obliteração das di-ferenças étnicas e culturais - e é isso que deve orientar a reflexãosobre os produtos culturais dos povos colonizados.

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No caso de O Continente, essa premissa se torna esclarece-dora em primeiro lugar das decisões composicionais expostasnos primeiros esboços do romance. Erico Verissimo não pode-ria compor seu trabalho no vácuo, sem nenhum modelo pré-existente. Quando fala em romance cíclico, já se inscreve numaordem arquitextual do Ocidente, a do romance que se caracte-riza por um tempo circular, mítico, em geral associado ao eter-no retorno, em que nada muda, apesar de haver peripécias naaventura destinadas a alterar a ordem inicial. Para tornar viávelesse paradoxo, admissível no mito das sociedades primitivas, oromance, arte burguesa e profana por excelência, se refugia noplano narracional, em que seleciona um determinado ponto dotempo, o qual se torna o núcleo do presente da narração e aoqual todas as circunvoluções acabam retornando, provendo, as-sim, a sensação de imobilidade.

Sendo o primeiro volume da trilogia aquele em que sobres-sai um tratamento mítico, mas ao redor de uma estirpe, comoassinala Regina Zilberman (cf. 1981, p. 193), a opção composi-tiva pelo romance cíclico em termos de gênero literário, anun-ciada por Verissimo, contém uma pista falsa. Ao mesmo tempoque remete sua obra a um fundo mítico, encaminha-a para umasaga familiar, subgênero romanesco em que o tempo se dividepela passagem de gerações, unidas a uma origem comum porlaços de sangue, cujo sistema circulatório lhes fornece a marcade identidade. O romance de família é uma tradição heteróge-na, que deságua, na modernidade, no Em Busca do Tempo Perdi-do, de Marcel Proust, o paradigmático roman-fleuve da memória.

Todavia, a matéria histórica com que Erico Verissimo lida-va – a formação do Rio Grande, com sua rudeza freqüentemen-te bárbara - não era suscetível a jogos reflexivos e rememorati-vos, exigindo outro tratamento, em que a memória das gera-ções pudesse ser alcançada de fora e de longe, num procedi-mento arqueológico, de coletar ruínas e remontá-las, como o

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faz Floriano, ao iniciar a pesquisa de fontes para seu novo ro-mance, aquele que seria “a saga duma família gaúcha e de suacidade através de muitos anos”, cujo tronco seria um meninobastardo, filho de uma índia violada por um aventureiro paulis-ta, romance no qual pretendia “traçar um ciclo que comece nes-se mestiço e venha a se encerrar duzentos anos mais tar-de”(ARQ3, p.747)3:

Depois de muitas hesitações e resmungos, a Dinda me confia achave do baú de lata em que traz guardadas suas lembranças erelíquias. Encontro nele, de mistura com incontáveis bugigangas(camafeus, medalhões com mechas de cabelo, frascos de perfumevazios, lencinhos de renda, leques), importantes peças do museuda família, como o dolmã militar do Cap. Rodrigo, um xale quepertenceu a D. Bibiana, e uma camisa de homem, de pano gros-seiro e encardido.(...) Todas essas coisas, naturalmente, me exci-tam a fantasia pelas suas possibilidades novelescas, mas concen-tro a atenção principalmente nas cartas, nos recortes de jornaise nos daguerreótipos que descubro dentro de uma caixa de sân-dalo, no fundo do baú.(ARQ3, p.748)

Se Floriano seleciona, do baú da madrinha Maria Valéria,apenas certos objetos-testemunho de uma genealogia a ser re-constituída, é, entretanto, por meio desse contato tátil com a ma-terialidade de seu passado que consegue vencer seu bloqueiocriativo, dispondo-se à tarefa difícil de contar a história familiarque surdamente o convoca e que sua educação e cultura cosmo-politas, de extração primeiro-mundista, são incapazes de enfren-tar. Figura das dificuldades de embocadura da escrita de O Tempoe o Vento, essa sondagem arqueológica, que restaura coisas e gen-tes soterradas pelo tempo, metaforiza igualmente a necessidadede radicar a ficção na concretude de vida, credo estético que sem-pre orientou a atividade criativa de Erico (cf. BORDINI, p. 32ss).

3. No Acervo Literário de Erico Verissimo, as obras do autor são mencionadas através de siglas.Na Bibliografia final deste ensaio, após a referência aos textos do escritor, aparecem as respec-tivas siglas.

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O primeiro título cogitado, Caravana, indicia as erráticastentativas iniciais do escritor de abordar seu tema num ambien-te colonizado pelo cinema norte-americano, filiando-se ao gê-nero do western, uma das estratégias mais eficazes de dominaçãoda juventude mundial na década de 20 e 30. Sabendo-se queErico foi um entusiasta do cinema quando garoto (e tambémdepois), primeiro dos filmes franceses e italianos e, no auge daadolescência, dos filmes norte-americanos, não admira que suaprimeira visão de O Continente evocasse as pradarias e os cavalei-ros em correrias contra os índios na conquista do território aoeste, um símile do que acontecera historicamente também noSul do Brasil. O modelo do épico de cavalaria medieval, quesubjaz a esse gênero cinematográfico, porém, não lhe daria es-paço para a introdução gradativa dos caudilhos terratenentes,cínicos e politiqueiros, em que o espírito de aventura e a noçãode honra se reduziam apenas à terra a conquistar ou a manter.Assim, a herança européia e norte-americana, em termos geno-lógicos, se interpunha às exigências da matéria a ser narrada, seé que se pode chamar matéria o significante vazio da Históriario-grandense que Erico deveria preencher.

Como sugere Ligia Chiappini, Verissimo, quando escreveuO Continente, não cortou de modo radical o fio condutor simbó-lico de sua produção anterior, em que a representação da cida-de metropolitana ou interiorana vinha imbuída de uma idéia deregionalidade inspirada na dominante rural típica da economiario-grandense (cf. p. 301). Até 1949, ele evitara, como confessaem Solo de Clarineta (p. 288), o regionalismo e o passado rio-grandense, matéria dileta da literatura que se fizera e ainda sefazia no Sul. O Estado já produzira trabalhos significativos deordem localista, impulsionado desde o Romantismo à busca deuma identidade própria, que o singularizasse da gauchesca pla-tina, de um lado, e, de outro, que defendesse os valores da vidano Sul ante o cenário gradativamente tomado ou pelas agruras

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nordestinas e sertanejas ou pelos dramas de consciência da pe-quena burguesia ascendente nas grandes metrópoles do Sudes-te. Desde o Modernismo, a prosa de ficção no Brasil se dividiraem romances regionalistas, de talhe realista, com ênfase no ce-nário do Nordeste, e romances experimentais, em geral detema urbano, assimilando antropofagicamente, como queriamos irmãos Andrade, o estilo das vanguardas européias do iníciodo século.

Erico Verissimo não fugiria à tradição modernista, pormais que não se declarasse filiado às correntes que derivaramdo movimento inaugurado pela Semana de 22. Sua produção,até 1948, percorrera os mesmos caminhos do romance burguêsda “perfeita culpabilidade”, como os designaria Lukács citandoFichte (p.164) . Em Fantoches (1932), seu livro de estréia, os pe-quenos contos e sketches dramáticos eram exercícios de umaimaginação ora lírica, ora mórbida, socialmente crítica, emboraainda ingênua, com toques darwinistas entremeados a experi-mentos metanarrativos, que denunciavam as leituras européiasdo escritor, da sátira de Voltaire ao metateatro de Pirandello,passando pelo determinismo do primeiro Eça.

De Clarissa (1933) a O Resto é Silêncio (1942), investigara asrotas de migração do campo à cidade, de uma perspectiva ino-vadora, porque inversa, em que o ponto de fuga era a vida ur-bana, mesmo que a base do cone fosse a rural. Não havia nessesromances, que representavam realistica, mas também poetica-mente, a luta pela sobrevivência na cidade grande, senão laivosde nostalgia do ambiente agrário. Muito menos ocorria a exal-tação das figuras já estereotipadas pela tradição regionalista,como a do centauro dos pampas. Mesmo que personagens pro-viessem da região da Campanha, cenário privilegiado da de-manda pela identidade, desde o Romantismo de José de Alen-car, com O Gaúcho (1870), tratava-se sempre de ex-estancieirosarruinados, que se tornavam ou patéticas ruínas, como no con-

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to Os Devaneios do General (1942) ou inescrupulosos negociantescitadinos.

Nessa ficção urbana, os heróis já não eram os bravos e in-domáveis peões, de espírito independente e coragem atestadanas guerras com o Prata ou com a Federação, que amavam as li-des campeiras e as paisagens abertas do pampa sulino - modelosrepetidos à exaustão pela literatura sulina até que os ventos sim-bolistas e modernistas chegassem aos pagos. Os heróis de Ericoeram jovens arrancados de suas cidades natais no interior, ounascidos e criados na capital, todos com a mesma necessidadede afirmação pessoal, de encontrarem-se a si mesmos e torna-rem-se mais humanos num sistema sócio-econômico hostil, noqual o ingresso significava ou a reificação ou a corrupção.

Dos autores de sua geração, que incluía tanto regionalistascomo Darcy Azambuja, Manoelito de Ornellas, Ivan Pedro deMartins e Cyro Martins, quanto realistas como Dyonélio Macha-do, Reynaldo Moura e Telmo Vergara e modernistas como Au-gusto Meyer ou Raul Bopp, Erico se distinguia pelo experimen-talismo formal, absorvendo e naturalizando os artifícios deses-truturadores da linearidade narrativa do romance inglês e nor-te-americano, com algumas incursões pelo francês. Utilizandocom desembaraço o contraponto de Huxley e de John Dos Pas-sos, o discurso interior direto e a multifocalização de Faulkner,as tomadas e cortes do estilo cinematográfico hollywoodiano,aplicava-os à prática de um realismo à Balzac e Zola, prejudica-do por um espírito crítico ainda ingênuo, pois acreditava naspossibilidades do Iluminismo, enquanto seus colegas mais ido-sos ou mais intelectualizados deixavam-se levar pelo desalentotípico dos grandes autores europeus do período.

Sua aventura pela História sulina, portanto, que se iniciavacom O Continente, vinha precedida do descrédito no legado re-gionalista, tanto brasileiro quanto local, que dourara um passa-do (e por vezes um presente) de guerras bárbaras e de opressão

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no campo, e na desconfiança na História oficial do Estado, que,ao gosto da época, dedicava-se a erigir heróis a partir de caudi-lhos sanguinários e nem sempre esclarecidos. Entretanto, Ericotambém provinha do interior, de uma região politicamente con-turbada e de economia agrária, testemunhara ainda muito jo-vem os desmandos dos próceres de Cruz Alta e conhecera inú-meras figuras que transitavam entre o campo e sua cidade, tra-tara de suas doenças e feridas e ouvira seus dramas primeiro dodispensário de seu pai e depois ao balcão da Farmácia Central.

Em Solo de Clarineta (cf. p. 288), declara que começou asentir sua dívida para com sua cidade, sua família e suas origenspor ocasião das celebrações do primeiro centenário da Revolu-ção Farroupilha em 1935, pensando em escrever algo que tra-duzisse a História de seu Estado de um ângulo que não incidis-se na visão que os livros escolares e também os textos regiona-listas forneciam do passado sulino. Pesava-lhe o desprezo comque até então contemplara o Rio Grande rural, ainda sofrendoas conseqüências de uma economia feudalista, a partir de suavida num centro urbano de porte médio, que sua imaginaçãopintava em cores mais cosmopolitas, em que o capitalismo co-mercial e industrial emergente propunha desafios cada vez maisespinhosos à auto-realização pessoal. Entretanto, a idéia, queaflorara de novo quando acabou por tematizar a Segunda Gran-de Guerra em Saga (1947), só veio a tomar corpo quando, aoprocurar um desfecho para O Resto é Silêncio, visualizou a cenainaugural daquela que seria a saga da família Terra-Cambará,com Tônio Santiago meditando sobre o peso da História queredundara na platéia variegada do teatro, em que “remotos des-cendentes de índios, portugueses, paulistas e espanhós escuta-vam o allegro da Quinta Sinfonia”(p. 401):

Refletia também sobre o fascínio das planuras largas que convi-davam às arrancadas e à vida andarenga. E sobre a rude mo-notonia da rotina campeira - parar rodeio, laçar, domar, car-

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near, marcar, tropear, arrotear a terra, plantar, esperar colher.Pensava também na luta do homem contra os elementos e as pra-gas. Por sobre tudo isso, sempre e sempre o vento e a solidão, oshorizontes sem fim e o tempo. A cada passo, o perigo da invasão,o tropel das revoluções e das guerras. E ainda as criaturas tris-tes e pacientes, esperando, vendo o tempo passar com o vento, eo vento agitar os coqueiros e os coqueiros acenar para as distân-cias. (RES, p. 402).

Nessa passagem emblemática, metaforiza-se também acena de origem de O Tempo e o Vento, quando, assim como TônioSantiago, o autor procura, em meio ao clima tormentoso da Se-gunda Grande Guerra, motivos para crer na humanidade e osencontra, não na materialidade dos testemunhos históricos,mas na imaginação fantasmagórica da bravura que teria sido re-querida para que viessem a existir. Esse esforço imaginativo lhetraz o alento para, reconciliando suas lembranças de genterude, simples e corajosa do interior com a vivência da culturamais sofisticada que se desenvolveu nos centros urbanos, tentarexpressar a fundação de seu Estado ficcionalizando as possibili-dades que pressentia no horizonte de seu passado. Seu projetode imbricar vida e arte, todavia, leva-o a considerar mais os da-dos da experiência do que os dos manuais de História (sabe-seque a pesquisa para O Tempo e o Vento incluiu notícias de jornaise depoimentos de pessoas que viveram a História do Rio Gran-de do Sul e que Erico preferiu fontes primárias às narrativas doshistoriadores da época, embora não as afastasse de todo), a con-fiar mais nas interpretações literárias do que nas historiográfi-cas, tendo em vista sua reserva ante as manipulações da Histó-ria oficial e o caráter lacunar dos testemunhos memoriais.

Regina Zilberman, da perspectiva da Estética da Recepção,aponta as leituras prévias de Erico que, no plano da tradição li-terária, igualmente permitiram sua vitória sobre as barreirasque o vezo regionalista de substituir o realismo pelo exotismoda cor local lhe havia imposto (cf. 1995, p.347). Lembra que em

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Romance Antigo, de Darcy Azambuja (1940), e em Tiaraju, deManoelito de Ornellas (1945), tanto a questão de como repre-sentar a História, denunciando-a ao longo da saga de uma famí-lia, no primeiro exemplo, como a de iniciar essa representaçãode forma verossímil, a partir da primeira conquista do territóriopelos brancos, do ponto de vista mítico dos indígenas, no se-gundo exemplo, já estão presentes. Erico e Manoelito eramamigos desde Cruz Alta, e não é improvável que tivessem discu-tido o assunto de longa data. Darcy Azambuja fazia parte dogrupo de autores - e amigos - que o próprio Erico publicou,quando colaborava com seu amigo Henrique Bertaso na SeçãoEditora da Livraria do Globo, mas há que lembrar também ofato de que o escritor conhecia a forma do romance de família,também chamado romance-rio, há mais tempo, em especialatravés Jean-Christophe, de Romain Rolland (1912), e de uma desuas predileções, Os Thibault, de Roger Martin Du Gard (1940).

Reportando-se à tradição literária herdada e percebendo-lhe as potencialidades, Erico estava pronto para entregar-se à te-mática histórica que seu compromisso ético com a época e opovo lhe exigia. Pensando-se nas circunstâncias de produçãoque cercaram o período de elaboração de O Continente, períodoque vai de 1935 a 1948, além desses prováveis hipotextos, todosde procedência européia, na biografia do autor, como exotex-tos, há o registro do nascimento dos filhos em 1935 e 36, da pu-blicação de toda a série de literatura infantil e juvenil, da pri-meira tarde de autógrafos em São Paulo, em 1940, das duas via-gens aos Estados Unidos, a convite do Departamento de Estado,onde em 1943 leciona Literatura Brasileira, e que fornecem ma-téria para que publique duas exitosas narrativas de viagem. Tra-ta-se de uma época de luta pela sobrevivência como escritor (éo período em que Erico, além de Secretário da futura EditoraGlobo, traduz a ficção de língua inglesa e escreve nos intervalosdo ofício de editor), e, com o êxito de Olhai os Lírios do Campo,

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de alicerçamento da carreira, que atinge dimensões internacio-nais, mas lhe traz problemas em seu País como acusações deimoralismo, de anglofilia e de vender-se às tentações do merca-do com textos fáceis, sentimentais e impregnados de ingenuida-de ideológica. No seu novo empreendimento criativo, acumu-lam-se experiências pessoais que o induzem a valorizar a idéiade família e de descendência, num extremo, e, no outro, de tes-tar os limites de sua arte, sob o risco de pôr a perder os espaçospenosamente conquistados ao longo de duas décadas sombriascomo as estado-novistas de que fugira, aceitando o convite nor-te-americano.

Na cena política vigia o Estado Novo getulista, aconteceraa renúncia de Flores da Cunha, haviam sido nomeados váriosinterventores para o governo do Estado, e a polícia política con-trolava zelosa a atividade cultural, que o regime desejava fosseantes de tudo nacionalista. É sintomático que, como também sa-lienta Regina Zilberman, só em 1946, com a queda do regimerepressivo, Erico de fato se dispusesse a redigir O Continente (cf.1995, p.344). Com a ditadura de Vargas, o País se industrializa-ra, se haviam protegido os direitos trabalhistas, mas também secombatera os inimigos do regime a ferro e fogo. Ao despertarda Segunda Guerra Mundial haviam proliferado os movimentospró-Eixo e consolidara-se o partido comunista. Um intelectualliberal como Erico Verissimo se sentia cercado por todos os la-dos. Os rumos da modernização, que subjaziam como leitmotifem sua ficção urbana, haviam se revelado traidores. O socialis-mo brasileiro apoiava cegamente o stalinismo e sua política rea-lista. Os valores do humanismo pareciam em derrocada. Semsaída, o escritor se defronta com o passado, à busca de enten-der o presente.

Assim, embora a idéia da obra possa ter lhe ocorrido em1935 e retornado em 1939, com roteirizações de que se conhe-cem as de 1941 e de 1943, como Erico diz no esboço de uma en-

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trevista, foi em 1947 que de fato começou a escrever o roman-ce, tendo em mente realizá-lo como “uma longa sinfonia dividi-da nos clássicos movimentos e possivelmente com grandes mas-sas corais” (ALEV 01i0047-?). O resultado foi uma história emsete episódios: “O Sobrado I”, “A fonte”, “O Sobrado II”, “AnaTerra”, “O Sobrado III”, “Um Certo Capitão Rodrigo”, “O So-brado VI”, “A Teiniaguá”, “O Sobrado V”, “A Guerra”, “O Sobra-do VI”, “Ismália Caré” e “O Sobrado VII”.

Como se pode notar, os prototextos ainda existentes já de-lineavam essa matéria narrativa, embora sem o desdobramentoe intercalação de “O Sobrado”, que situa o tempo narrado em1895 e o faz remontar a 1745, acompanhando-o cronologica-mente até 1884. Essa composição de seqüências independentesentre si, cuja sucessão temporal é interrompida por uma moldu-ra que se intromete a cada passagem de uma a outra e que emsi mesma constitui uma unidade, afeta a representação do tem-po histórico. O passado mais remoto, o da civilização das Mis-sões Guaraníticas, e o passado mais recente, o período da Abo-lição da Escravatura e da Campanha Republicana, é constante-mente relido e atualizado pelo presente narrativo, que transcor-re durante a Revolução Federalista de 93-95 e acaba com a vitó-ria republicana, o lado defendido pelos Cambarás.

Assim, acentuam-se as dimensões mítico-fundadoras dosprimeiros episódios, “A fonte” e “Ana Terra”, e as implicaçõeshistórico-políticas dos últimos, “A guerra” e “Ismália Caré”. Emmeio a esses, os episódios “Um Certo Capitão Rodrigo” e a “Tei-niaguá” oscilam entre a mitificação e desmitificação dos heróis,que, embora ainda sejam moldados como emblemas, humani-zam-se em termos de ambigüidade moral. Percebe-se uma rigo-rosa simetria na composição do texto, em que a duração dos epi-sódios é equilibrada e o espaço narrativo concedido a cada vidaobedece mais a uma hierarquia tradicional do gênero (caracte-rização e atuação maior para os heróis e menor para os compar-

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sas ou vilões, venham eles de que extração social venham) doque a uma equalização dos atores de um drama social injusto,como requereria, por exemplo, o realismo socialista.

A alternância com os segmentos líricos que acompanham aerrância dos Carés, os párias dessa sociedade em formação, pro-voca efeitos de estranhamento numa leitura que parece proporum épico e gradativamente se transforma em romance históri-co, perdendo a força impulsiva e encantatória de seus heróisiniciais em favor de uma análise crítica das motivações materiaise psicológicas de seus descendentes. A presença dos Carés nes-sa estrutura cerrada, em que se consolida o regime do latifún-dio, a desordena e perturba, com a face esquálida da misériacamponesa e seu não-lugar social.

Erico trata a representação desses deserdados da fortunaapenas como uma massa coletiva, sem direito a individualiza-ção, ao longo de todo O Continente, mas quando sua trajetórianarrativa avança para o final, concede a Ismália o papel de ver-dadeiro objeto do amor de Licurgo, o que deslegitima o casa-mento de aristocratas rurais que esse mantinha a duras penascom Alice. Os Carés, apesar de sua impotência e da sorte infaus-ta a que se destina Ismália, são dignificados no modo de funcio-namento que a narrativa lhes concede. Anônimos, peças deco-rativas do cenário em que se movem os Terra-Cambarás e seusadversários, têm sua dor silenciosa expressa no discurso líricodo narrador, que os contempla também doloridamente. Sempoderem participar das várias histórias que se desenrolam notexto, pontuam-no, porém, com sua presença muda e eloqüen-temente denunciadora das injustiças daqueles que os usam e osdescartam como gado.

A família Terra-Cambará, em contrapartida, encarna a dua-lidade e é signo de contradição durante todo O Continente. Des-de seu fundador primordial, Pedro Missioneiro, sofre a opres-são dos poderosos da época, combate-os, vai à guerra pelos

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ideais libertários, mas seu ânimo belicoso, em cujo cerne habi-ta uma violência similar à que combate, gradualmente a insereno quadro do poder, que no longo período que vai de 1745 a1895, está nas mãos de caudilhos aguerridos e sanguinários, osquais comandam como tiranos a peonada que lhes pertence evestem as cores políticas que mais lhes granjeiem a primazianessa sociedade em formação. Os Amarais, tradicionais adversá-rios dos Terra-Cambarás, encarnam essa camada social explora-dora e espoliatória. O Capitão Rodrigo, sintomaticamente qua-se ao meio do texto, é o símbolo da luta pela liberdade tanto noplano pessoal quanto no social e político, mas seu filho Bolívaré moralmente incapaz de evitar a morte do amigo ex-escravo eentrega-se a uma paixão mórbida, que o aniquila. Mais para ofinal, o Licurgo seu descendente, que sustenta com a dureza deum rochedo o cerco a seu Sobrado, torna-se, igualmente, umprócer local, como dono de terras e líder republicano reconhe-cido pela comunidade de Santa Fé. Seus filhos, Rodrigo e Torí-bio, serão proprietários de estâncias e lutarão no lado políticomais progressista, mas não haverá, com eles, a emancipação dosCarés, que desaparecem de O Retrato.

Na contramão desses heróis masculinos, as mulheres, quese lhes opõem, também perdem sua potência vital na medidaem que o texto progride. Ana Terra, a jovem que enfrenta o paidespótico pelo amor ao desconhecido e culto Pedro, que pre-serva a vida da família ante os castelhanos que a violentam, quese profissionaliza como parteira e ajuda a fundar Santa Fé, tempor neta Bibiana, que se rende à sedução do bravo Rodrigo,mas é a cabeça pensante que organizará a vida de seus descen-dentes, jogando tão duro quanto os Amarais. Ela, entretanto,acabará caduca, depois de ter desgraçado a vida do filho Bolí-var ao forçá-lo a um casamento que o destruirá, a fim de tomarposse do Sobrado. Luzia, a maga sedutora que se confrontacom a velha Bibiana na posse por seu filho, tem seus sonhos de

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uma vida cosmopolita baldados pelos arranjos paternos e mor-re exaurida de si, semi-enlouquecida, aterrorizando o filho Li-curgo. Das mulheres desse, resta a Alice descolorida, que toleraa amante Caré do marido para não perdê-lo e não decair na es-tima social da cidade. Por último, sua irmã Maria Valéria substi-tui em determinação de ânimo e coragem silenciosa e sofrida afigura já remota de Ana, fechando um círculo feminino tam-bém cindido pelo dualismo.

Homens e mulheres, portanto, trazem em si, nos últimosepisódios do texto, a debilidade e hesitação que os torna indiví-duos problemáticos, ainda em busca de autenticidade nummundo que não mais a acolhe, na conhecida definição de Lu-cien Goldmann (cf. p.17). Diferem de Pedro e Ana, ou de Ro-drigo e da jovem Bibiana, que, heróis fundadores de uma dinas-tia, guardam em si o poder do direito, da vida justa e da lutapela liberdade de espírito e de ação. Na caracterização do elen-co como um todo, a ênfase não recai na psicologia ou na inte-rioridade. As personagens são apresentadas como estampas,surgem em breves traços, muito fortes, que lhes conferem suaidentidade e individualidade, não importa o lugar social queocupem. O autor evita os riscos da análise expressa das motiva-ções dos caracteres, área delicada da criação literária, em queErico tendia a optar pelas dimensões éticas, preferindo investirnos motivos composicionais, que abrem lacunas nos pensamen-tos e ações dos protagonistas, de modo a que o leitor possa agire retirar daí suas próprias conclusões. De qualquer forma, essasescolhas narrativas não diminuem nem a complexidade e diver-sidade humana da sociedade sulina nem a força evocativa e alu-siva desses heróis, que se tornaram patrimônio do imagináriobrasileiro.

Daí por que o cenário, pièce de resistance da literatura regiona-lista em geral, em O Continente vem pouco caracterizado em ter-mos físicos e muito mais em termos daqueles que o habitam. O

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pampa com suas coxilhas varridas pelos ventos não passa de panode fundo para a solidão radical de Pedro Missioneiro, de Ana Ter-ra ou do aventureiro Capitão Rodrigo. A cidade de Santa Fé, mô-nada que figura tantos povoados inaugurais do território brasilei-ro, reduz-se a alguns poucos prédios, todos descritos em funçãode acontecimentos do enredo, deles sobressaindo o Sobrado,muito mais uma alegoria da vida doméstica e do lugar social deseus moradores do que obra de arquitetura interiorana.

Assim como as personagens são descritas com poucos tra-ços, os mais significativos para suscitar as ações que praticam,do mesmo modo o espaço diegético é apenas sugerido, acen-tuando seu potencial simbólico. Por isso, alguns acessórios,como o punhal de Pedro, herdado do Pe. Alonzo, um quase as-sassino penitente, a tesoura de Ana, que corta os cordões umbi-licais e libera novas vidas, a roca de Bibiana e sua cadeira de ba-lanço, dois momentos simbólicos do percurso de sua domestici-dade no romance, e a vela de Maria Valéria, a iluminar não sóos desvãos do Sobrado, mas os do caráter dos homens de Licur-go, tornam-se significantes fortes, inseparáveis da caracteriza-ção dos sujeitos que os utilizam.

Por outro lado, a obra investe no tempo, não só o da narra-ção, com sua inversão e rupturas, mas o do mundo narrado, cujaduração é pulsante como as vidas que o habitam. Lidando alter-nadamente com momentos de conflito e intensidade dramáticae momentos de pausa, de espera estática, também simetricamen-te proporcionados, a que os segmentos dedicados aos Carés pro-longam, o autor consegue representar os séculos percorridos pe-las gerações dos Terra-Cambarás com renovado suspense. Desdea guerra entre portugueses e espanhóis pelas missões jesuíticas,passando pela ocupação do território pelos imigrantes paulistas,o surgimento dos coronéis terratenentes, as guerras cisplatinas,a imigração alemã, as guerras contra a monarquia brasileira,contra Rosas e contra o Paraguai e chegando aos tempos da Abo-

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lição, da Proclamação da República e do governo de Júlio deCastilhos, esses dois séculos desfilam com velocidade, com otempo concretizado em ações em que o histórico e o ficcional semesclam, indistingüíveis, e o que a História não consegue regis-trar acaba sendo suprido pela imaginação, que sonda o verossí-mil e com ele preenche as lacunas temporais.

É dessa forma que a História contada em O Continente des-cola do cotidiano das gentes, dos detalhes da vidinha miúda,dos atos triviais ou heróicos de atores sociais que nunca apare-cem na historiografia porque não ficam documentados nemmerecem monumentos. Nesse elenco humano há lugares dehonra para mulheres, índios, imigrantes, vagabundos, peõesdesgarrados e sem nome, assim como os há para desbravadores,militares, caudilhos de cor branca e origem portuguesa. No en-tanto, essa deshierarquização dos sujeitos sociais, captados emvislumbres rápidos, não resulta num tempo narrativo estilhaça-do. Cada pequeno gesto situa seu agente numa cadeia de or-dem sempre mais ampla, em que a continuidade não é linear,mas espiral: do indivíduo ao grupo familiar, dos feitos pessoaisaos coletivos, das histórias particulares à História do Rio Gran-de do Sul, como salienta Antonio Candido ao detectar nesseprocedimento a projeção do eixo sincrônico sobre o diacrônicoque singularizaria o sistema de composição de Erico (cf. p. 41).Talvez a partir dessa sugestão, Flávio Loureiro Chaves insista emque O Tempo e o Vento possui uma estrutura concêntrica, em queo esfacelamento de uma família é a projeção da ruína moralduma sociedade burguesa, com duas constantes: o questiona-mento da noção de progresso e a defesa das individualidades ra-dicalmente livres (cf. 1976, p. 97).

Em todo o caso, em O Continente a estrutura é monádica. Adiversidade dos sujeitos e a diferenciação ideológica, a profusãode eventos bélicos e de gestos cotidianos, mesmo subsumidos àsaga de uma só família, não exige continuidade nem se irradia

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em círculos ou num ciclo. Basta-se a si mesma e privilegia o fe-chamento. Evidencia uma progressão interna, que antes de serimpelida por uma utopia parece dela brotar para depois desgar-rar-se. Trata-se de uma estratégia moderna, lembrando a rela-ção ser e tempo heideggeriana (uma das leituras de Erico, cons-tituinte de seus cadernos de notas). O regresso iterativo dos su-bepisódios de “O Sobrado” não configura um ideal de futuroemancipado, mas representa a parede da mônada, do “conti-nente”, de onde não se deve ir além, pois não há mais terra fir-me. Esse é um “continente” que encerra ab initio um mito já des-truído pela História: o comunismo idílico das reduções, outraespécie de colonização que, impondo não pelas armas, mas pelaforça simbólica da catequese, um modelo social primitivo-cris-tão ao indígena, instala a contradição que Pedro Missioneiro játraz dentro de si em sua própria genealogia: a bastardia e a ile-gitimidade, que o conduzem à profecia, um evidente processocompensatório.

A família que ele irá gerar será igualmente ilegítima aosolhos dos que a ela se opõem. Não é à toa que a figura da opo-sição prevalece nas relações sociais engendradas. O “continen-te” é o anteparo identitário contra as reivindicações de territó-rio dos espanhóis, assim como contra as pressões político-eco-nômicas do Império brasileiro. O problema é que internamen-te essa região que se quer auto-suficiente já nasce desterritoria-lizada e é povoada por levas também sem território. Daí o ladobelicoso, que agita toda sua história num jogo de forças pelopoder e que gera exclusões e rebeldias. Para compensar suamarginalidade, a família Terra-Cambará defende seus princí-pios arrimada na convicção de sua legitimidade emancipatória,sem muita contemplação aos valores alheios, conservadores, de-vendo fechar-se outra vez como uma mônada para resistir àstentativas de assimilação ao mundo feudal dos terratenentes.Por isso “O Sobrado” assombra todo o desenvolvimento da saga

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e a vitória atordoada de Licurgo, ao final do segundo tomo, naverdade é a abertura da mônada, permitindo a entrada do ou-tro, que O Retrato irá tematizar:

De olhos fitos na fachada da Intendência, Curgo atravessa arua em silêncio. Doem-lhe os olhos e o peito; suas pernas estãofracas e trêmulas, a garganta seca, as mãos e os pés gelados.Mas ele se mantém empertigado, e vai andando sempre, enquan-to um sino enorme, um sino brutal badala-que-badala-que-bada-la implacavelmente dentro de sua cabeça, confundindo-lhe asidéias, martelando-lhe os nervos, deixando-o quase louco...(CON2, p.668)

O monadismo estrutural do romance repercute sobre amatéria temática, que, nas trajetórias isoladas no tempo dosgrupos familiares, paradoxalmente interligados pelo sangue,como requer o regime feudal da propriedade, torna-se uma es-pécie de tapeçaria à maneira medieval, cujas cenas se apagampara proporcionar uma visão de conjunto da história, não maisde pessoas, mas de um povo. Graças a essa intrincada estruturacompositiva, O Continente pode ser pensado, enquanto narrativado processo histórico do Rio Grande, a partir do modelo do ro-mance de formação, o Bildungsroman que Thomas Mann – au-tor dileto de Erico – consagrou em A Montanha Mágica, não poracaso uma das traduções que a Globo publicou sob a inspiraçãodo escritor.

À diferença do modelo europeu, não se trata de acompa-nhar a consolidação da personalidade de um jovem que se tor-na adulto e perde as ilusões infantis, em meio à reconstituiçãocuidadosa da época e das circunstâncias sócio-culturais que im-pelem seu amadurecimento. Jovem nesse caso é o Continentede São Pedro, que ao fim do volume já se transformou em Pro-víncia de São Pedro, demarcando, com a metáfora espacial, oprocesso de degradação das terras ilimitadas e de trânsito livrepara o Estado de propriedades cercadas, o processo de indivi-

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dualização política que da massa coletiva de povoadores hetero-gêneos destaca o caudilho e mais adiante concentra o mandonas mãos do Presidente da Província, Júlio de Castilhos.

Como no romance de formação, no início a personagemRio Grande aparece com suas qualidades mais autênticas: é fei-ta de homens e mulheres de fibra, independentes, capazes, naadversidade, de sonhar e de realizar seus sonhos. Quando a his-tória acaba, essa personagem-Estado mostra no que se tornouna maioridade: uma terra de conflitos políticos exacerbados, defamílias desunidas, de morte e ameaça de podridão. É assimque Erico descoloniza o processo de formação de seu Estado.Empregando os procedimentos formais europeus, do gênerodo romance e de seus subgêneros aos elementos estruturais danarrativa, faz com que trabalhem a favor de um construto iden-titário próprio, tipificado, mas multiforme, em que a Históriaoficial contracena com a história anônima e, incorporada à fic-ção, denuncia suas próprias contrafações.

Com maestria exemplar, o escritor hibridiza o repertóriode formas romanescas com uma matéria histórica informe, queresiste à moldagem eurocêntrica, e esculpe um retrato do queo Rio Grande poderia ter sido, mas não conseguiu ser, desmis-tificando a visão que a classe dominante forjou de si mesma ede que imbuiu o imaginário popular. É dessa forma que faz ossubalternos falarem, contrariando aquele desejo “de conservaro sujeito do Ocidente, ou o Ocidente como sujeito”, na formu-lação de Spivak (p.24), o que, na perspectiva de um romance deTerceiro Mundo, implica adonar-se do legado ocidental e re-criá-lo, assujeitando-o às necessidades identitárias de uma re-gião colonizada de muitas maneiras, que não se reconhece noque é: a ruína que recobre ideais e movimentos emancipatóriosvencidos.

* Doutora em Letras. ALEV/CPGL/PUCRS.

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DOCUMENTAÇÃO DO ACERVO LITERÁRIO DE ERICO VERISSIMO

ALEV 04a0033-41 – Caderneta de notas com o título A caravana, contendo o primeiroroteiro de O Tempo e o Vento.

ALEV 04b0059-43 – Agenda com primeiros planos e esboços de O Tempo e o Vento.

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“De súbito ali ao pé do poço Ana Terra teve a impressão de que não estava só. A mão que batia aroupa numa laje parou. Em compensação o coração começou a bater-lhe com mais força...”

O Continente – Ana Terra

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O NARRADOR COMO TESTEMUNHADA HISTÓRIA

F l á v i o L o u r e i r o C h a v e s *

Na última parte d’O Tempo e o Vento o personagem FlorianoCambará traça o plano de um livro que ele pretende redigir. En-tão, escreve: “Era uma noite fria de lua nova. As estrelas cintila-vam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão quieta e deserta pa-recia um cemitério abandonado”.

Logo se vê que esse último parágrafo d’O Arquipélago não ésenão o parágrafo primeiro de O Continente, sugerindo ao leitorum jogo surpreendente. O livro que Floriano Cambará imaginaé precisamente o romance que Erico Verissimo escreveu. Assim,a narrativa fecha-se circularmente, voltando ao seu início. Deum extremo ao outro, cerca de 2 mil páginas resgatam o passa-do e fazem-no refluir à memória, abrangendo 200 anos numaextensa reflexão sobre a identidade brasileira, isto é, o nossomundo presente.

Essa perspectiva ilumina o projeto original de Erico Verissi-mo que em certa ocasião ele mesmo definiu como “o corte trans-versal duma sociedade”. Tal objetivo foi perseguido nos roman-

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ces iniciais, desde a redação de Clarissa e Caminhos Cruzados, emque ele desenhou uma infinidade de tipos característicos, paracumprir-se afinal no resultado obtido em O Tempo e o Vento. A açãoque transcorre entre 1745 (quando nasce Pedro Missioneiro nasreduções jesuíticas do Alto Uruguai) e o ano de 1945 (que assi-nala o fim de uma época na queda de Getúlio Vargas) impõe a vi-são duma mudança. Transformou-se o antigo Rio Grande, pa-triarcal e agrário, para dar lugar à cultura dos imigrantes e ao sur-gimento da classe média. E com ele transformou-se o país.

Grave erro cometeria quem ainda quisesse encontrar aí umaepopéia guasca ao estilo do regionalismo retardatário em que tan-tos se fartam até hoje. Cumprindo um desígnio explícito, EricoVerissimo instaurou um romance histórico na sua forma exemplar.

A descendência da família Terra/Cambará em várias gera-ções coincide com a fundação da cidade de Santa Fé; esta, porsua vez, traduz uma síntese do Rio Grande do Sul, passando daío retrato da sociedade brasileira. Dimensiona-se assim, nesta es-cala de ampliação, o corte transversal proposto pelo narrador.

Ocorre que o mural representativo da nossa formação, fi-xando tanto os mitos fundadores quanto a seqüência dos fatos,também não era uma idéia nova. Vinha do romantismo naciona-lista (leia-se Alencar) e reapareceu em diversas correntes do mo-dernismo a partir dos anos 20, rodando até a concepção do Ma-cunaíma de Mário de Andrade. O volume inaugural de O Tempo eo Vento, em 1949, não incorporou, pois, à ficção o “projeto” do ro-mance histórico, que já era antigo. Erico Verissimo ofereceu, istosim, a chave da sua resolução formal que, fossem quais fossem osantecedentes, não havia sido encontrada até então. Esse é o mo-tivo pelo qual constitui um marco decisivo. Afinal, o triunfo dacriação não residia na mera descoberta de um tema, mas na suaexpressão ótima, que acaba por incluí-lo definitivamente na nos-sa visão do mundo.

Na raiz da questão encontra-se um paradoxo, aliás freqüen-te naquelas culturas que, emergentes do ciclo colonialista, estão

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ainda hoje empenhadas na nomeação direta da realidade,como é o nosso caso. Embora esteja ancorado na História e façaa crônica dos seus episódios, o romance não pode ser discursohistórico sob pena de deixar de ser literatura. Precisamenteporque não bastam os manuais escolares e os compêndios deexaltação cívica, recorremos ao universo imaginário da ficção.O filósofo Ernest Fischer aludia a isso quando falou da necessi-dade da arte.

Erico Verissimo põe o problema em discussão dentro dopróprio texto. O desdobramento do painel d’O Tempo e o Ventoé intercalado pelas reflexões de Floriano Cambará sobre a natu-reza do romance que está nascendo. São os capítulos que levamo título Caderno de Pauta Simples. Aí ele se reconhece como “umatestemunha da História”, cuja função primordial será estenderas pontes entre as ilhas do arquipélago. Sabe entretanto que oseu livro não pode redundar numa autobiografia nem numacrônica. Sua identidade é outra: “Imagine-se um romance quetrouxesse em seu bojo o romance de si mesmo e mais o roman-ce desse romance-de-si-mesmo”. Verdadeiro jogo de espelhos, aescritura propõe o trânsito ininterrupto entre o particular e ouniversal, a circunstância histórica e a linguagem simbólica ca-paz de torná-la patrimônio do homem.

Devemos entender portanto que, no caso d’O Tempo e o Ven-to, a engrenagem que move a História pode ser entrevista me-nos na cronologia dos fatos e mais na representação das perso-nagens fictícias. Sob esse triângulo, a arquitetura da narrativaestá toda ela na dependência dos arquétipos essenciais e opos-tos entre si, do princípio ao fim: o masculino e o feminino.

No curso das infindáveis guerras e revoluções intestinas emque está cifrada a crônica da Província de São Pedro, os guer-reiros e “heróis” são invariavelmente acionados pelo instintoprimário da violência. Sua arremetida engendra a devastação ea morte, possuam eles a simpatia individual do capitão Rodrigo

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ou a seca austeridade de Licurgo Cambará. De resto, a tradiçãogauchesca ofereceu ao autor uma riqueza de vultos exemplares,já no limite da caricatura machista.

Ao contrário, as personagens femininas situam-se na outramargem da História e representam uma força de preservação.Falando certa vez de Ana Terra, o escritor atribuiu-lhe substan-tivamente uma verticalidade, oposta (dizia ele) à horizontalidadenômade dos homens. Daí às figuras de Bibiana e Sílvia, passan-do por Maria Valéria, é sempre nas mulheres, em sua solidão eperseverança, que a narrativa amarra as linhas de força.

A posição de Floriano Cambará ou Erico Verissimo, en-quanto testemunhas da História, levam-nos à convicção de quea neutralidade é impossível e não existe o ato gratuito, como selê nas últimas páginas d’O Arquipélago. Nem por isso a questãose deslinda no campo da ideologia; sua resolução é literária.Embora a narrativa admita uma discussão política, que ocupagrande parte do seu desenvolvimento, a visão histórica só se ofe-rece no destino emblemático das personagens imaginárias: atensão (aliás insanável) entre destruição e preservação. Justa-mente aí se estabelece a unidade dos diferentes planos d’O Tem-po e o Vento, fazendo-o um romance poliédrico.

Ao alcançar esse resultado, a intuição de Erico Verissimoacrescentou, com aguda ironia, o comentário que algumas dé-cadas mais tarde pode funcionar como uma trilha na interpre-tação da obra: “Afirmam os semanticistas que o mapa ideal se-ria aquele que trouxesse também o mapa de si mesmo, o qualpor sua vez devia apresentar seu próprio mapa”. Matéria para osteóricos da literatura... De qualquer modo, aí estava firmadoum padrão: o padrão do romance histórico na literatura brasilei-ra contemporânea.

Tudo isso tem um significado importante também noutrosentido, se considerarmos numa perspectiva diacrônica o arcode tempo que vai da edição d’O Continente (1949) à conclusão

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d’O Arquipélago (1962). Um pouco antes Miguel Angel Astúriahavia publicado O Senhor Presidente (1946), colocando a literatu-ra da Guatemala na crista da onda. Seguiram-se, muito próxi-mos, as Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, Os Subterrâneosda Liberdade, de Jorge Amado, e O Reino deste Mundo, do cubanoAlejo Carpentier. Um pouco mais adiante, O Outono do Patriar-ca, de Gabriel García Márquez, e Eu, o Supremo, do paraguaioAugusto Roa Bastos.

Resguardadas as diferenças que fazem de cada autor um in-divíduo e de cada texto um universo peculiar, chega-se entre-tanto a ver que, nesse período, a decifração e a representaçãoda História propuseram um desafio crucial aos escritores detoda a América Latina. E foi justamente aí que se rompeu o sub-desenvolvimento cultural em certas obras paradigmáticas damodernidade, como essas que acabo de mencionar. A contri-buição de Erico Verissimo terá de ser considerada também nocaudal desse processo.

Ao estabelecer o modelo do romance histórico brasileiro,O Tempo e o Vento assinala um dos pontos fortes do nosso diálo-go com a literatura ocidental.

* Doutor em Letras pela USP, autor de História e Literatura.

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“Se num romancista predomina a atitude do velho Licurgo, isto é, o senso comum, corremos o riscode ter histórias chatas como a de certos autores ingleses cujas personagens passam o tempo toman-do chá, jogando cricket ou falando no tempo.”

O Arquipélago – Reunião de Família I

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NUM TERRITÓRIO DE FIGURAS FEMININAS

L é l i a A l m e i d a *

A idéia da existência da divisão entre um território femini-no e um território masculino em O Tempo e o Vento, de Erico Ve-rissimo, é recorrente nas interpretações da trilogia. Para algunscríticos, a própria ação do tempo e do vento, enquanto catego-rias estruturais de composição, estariam ligadas a práticas femi-ninas ou masculinas. Flávio Loureiro Chaves, além de destacaressa divisão de ações que caracterizariam o mundo feminino(de dentro da casa, da espera) e o mundo masculino (das guer-ras, da rua, das ações), propõe que há entre esses dois mundosuma autêntica luta pelo poder. Para Chaves, a luta de Bibianapela posse e guarda simbólicas pelo neto Licurgo contra a noraLuzia confirma a participação das mulheres, à sua maneira, nes-sa luta. José Onofre, sintetizando a percepção de outros críti-cos, ao mapear o mundo da casa e o mundo da guerra, numaleitura do texto de Verissimo sobre “idéias” e “ações” políticas,vê também as personagens femininas de O Tempo e o Vento comodetentoras de um poder e, por isso mesmo, tornando-se signifi-cativas dentro do universo ficcional.

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Há em O Tempo e o Vento uma outra divisão, originária tal-vez dessa primeira e que se relaciona com a divisão entre as pró-prias personagens femininas, naquilo que o próprio texto ins-taura como sendo um mapa das dignas esposas e as indignasamásias, e com a divisão do próprio corpo feminino no imagi-nário social e literário.

O texto de Erico Verissimo é, definitivamente, o que maisamplamente se ocupou de retratar uma diversificada galeria depersonagens femininas, vivíssimas para sempre no imagináriodo público leitor gaúcho. Ana Terra, Bibiana, Luzia são, semdúvidas, personagens femininas fortes, inesquecíveis e comuma força arquetípica constatável nos inúmeros solares, edifí-cios, projetos “Ana Terra”, ou inúmeras também Anas Terras eBibianas nascidas até hoje no Rio Grande do Sul a fora, nummovimento recorrente como é o movimento que solidifica aforça dos mitos. Mitos de mulheres de força, teimosia, perseve-rança, garra, determinação.

No caso de Ana Terra, por exemplo: tendo a casa paternadestruída pelos castelhanos e mortos pai e irmãos e o corpo vio-lentado, parte cheia de coragem para reconstruir sua vida nopequeno povoado que se transformará na cidade de Santa Fé,cenário e palco onde se desenvolvem os 200 anos de história dafamília Terra/Cambará.

Ana Terra não é movida apenas pelo ódio à violência provo-cada pelos castelhanos: sua força e determinação, sua teimosia eperseverança (típica dos Terra) são fruto de um sentimento po-deroso, absoluto: é preciso criar seu filho Pedro, torná-lo um ho-mem, sobreviver. E é dessa brava figura que depende a vida domenino. Investida de fúria e de vontade, Ana Terra parte comum menino pela mão para conquistar seu território, e a mater-nidade é o sentimento, a função que lhe dá essa fúria, sua força.

Bibiana Terra, neta de Ana Terra, tem igual destino. É obs-tinada como a avó, briguenta, enfrenta o pai para se casar como capitão Rodrigo e cria três filhos em meio a esperas, perigos,

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solidão e idas e vindas do marido a guerras e outras mulheres.Para ambas, cuidar da terra é mais do que parece; cuidar da ter-ra é cuidar da descendência e da manutenção da sobrevivência,que é, afinal, o que importa e o que concerne às mulheres. É as-sim que Bibiana, com uma praticidade e objetividade agudas,casa o filho Bolívar com Luzia, num casamento de interessescontratuais, e consegue reaver assim sua casa de infância, seuquintal, a tradição da família Terra, e investir o filho e o neto depoder político e prestígio social.

Nada que um bom pai de família não fizesse por uma filhacasadoira. Bibiana, como a avó, é teimosa, perseverante, brigasem limites e pruridos pelo que quer e consegue sempre o quedeseja. Para ela, como para Ana Terra, o que importa é a famí-lia, a descendência, o filho, o neto. Ana Terra e Bibiana se con-solidam na nossa literatura como mulheres indubitavelmentefortes, e toda a crítica especializada usa de qualitativos masculi-nizantes para legitimar essa força: são poderosas, viris, varonis. Eessa força que tem uma expressão masculina nasce de um moti-vo específico, feminino: a maternidade. Ana Terra e Bibiana sãobravas e fortes mulheres, e são mães; acima de tudo são mães.

A contrapartida dessas figuras exemplares pautadas no ar-quétipo da Grande Mãe, a Mãe Terra, é Luzia, neta de AguinaldoSilva e mulher de Bolívar Cambará, nora, portanto, de Bibiana.Inscrita no capítulo A Teiniaguá, no segundo volume de O Conti-nente, reforça com seu comportamento diferenciado aspectos sig-nificativos da lenda. Luzia é bonita, rica, sedutora, vem da cidadegrande, toca cítara, faz versos, emite opiniões próprias, é cruel enão se situa dentro de um modo de ser feminino proposto às per-sonagens femininas ao longo do texto, quiçá ao longo de toda anossa literatura. Um modo de ser feminino idealizado, muito dis-tante do modo como as mulheres são e vivem realmente.

Luzia desempenha papel de estrangeira: nem ela nem oavô são originários de Santa Fé, ele nordestino, ela órfã e ado-tiva, o que obscurece e mitifica ainda mais sua origem, reforçan-

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do a percepção trágica do Dr. Winter, que a nomeia significati-vamente de Melpômene. Essa Lorelei perversa, de olhos de rép-til, tem sua força e seu poder na sedução a que sucumbe Bolí-var e numa determinação que a põe em guerra com Bibiana,numa disputa por Licurgo e pelo Sobrado até sua morte, vitima-da por um tumor maligno.

Se a terra e as boas águas nutrem o nosso imaginário quan-do falamos em Ana Terra e Bibiana, com Luzia o que aparece éo fogo destruidor, poderoso, sedutor, como quer seu próprionome e a lenda na qual seu perfil está calcado. Luzia é tambémuma forte, mas sua força, ao contrário de Ana Terra e Bibiana,não tem motivação na sublime função materna, mas na sexuali-dade que seduz a aniquila Bolívar, uma sexualidade que vemosmuita mais explicitada no desejo do Dr. Winter e no ódio de Bi-biana do que na conduta propriamente dita de Luzia. Essa for-ça sexual, por assim dizer, é representativa ao longo do texto,sobretudo se recordarmos que Helga Kunz evocava à jovem Bi-biana os olhos de Teiniaguá e que, na tradição das “outras” dosvarões Terra Cambará, Ismália Caré evocará à velha Bibiana umjeito, alguma coisa de Luzia.

Na contrapartida das mães dignas e fortes, Ana Terra, Bi-biana, Flora e Sílvia estão as “outras” no rastro de Luzia-Teinia-guá-Lorelei-Melpômene, as Helga Kunz, Ismália Caré, Toni We-ber, Roberta Çadário, Sônia Fraga, Mary Çee, Mandy. A prince-sa moura é estrangeira, como o desejo é estrangeiro. As “ou-tras”, todas estrangeiras, perigosas, ameaçadoras, excluídas tan-to do âmbito cultural como da classe social dos Terra Cambará,encarnam uma sexualidade impulsiva e destruidora.

A equação é simples, recorrente ao longo da representaçãoe construção das personagens femininas na literatura: o corpofeminino dividido entre um corpo materno digno e um corpoprostituído indigno; ou bem Marias ou bem Evas, ou bem san-tas ou bem putas, como se sabe.

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Submetidas à prescrição patriarcal “parirás na dor”, as taismães fortes e poderosas expiam a culpa do pecado original evêem-se deslegitimadas na própria maternidade ao terem seucorpo dividido com as “outras”. E o desfecho de cada uma de-las é revelador: Ana Terra pede para enterrarem a roca de fiarcom ela para que Bibiana não seja mais uma escrava; Bibiana jávelha, ao saber da morte da bisneta Aurora, sente-se aliviada aopensar que será uma a menos a amargar um destino de mulher;Luzia é sacrificada por um tumor maligno.

A contraposição do território feminino versus o territóriomasculino, dentro de O Tempo e o Vento implica a representaçãocindida do corpo feminino através das personagens analisadas,as dignas mães de família e as indignas amásias.

A casa e o mundo doméstico são por excelência o territó-rio das esposas e das mães, reduto familiar onde se dá o cuida-do com a manutenção da sobrevivência, território privado paraonde os homens sempre retornam. Ali as mulheres têm seus fi-lhos e esperam infinitamente que cresçam. Alimentá-los, vesti-los, educá-los, criá-los, socializá-los, enfim, é tarefa das mãesnum território rigidamente demarcado pelas leis sociais e cultu-rais: o espaço da intimidade, do dentro do mundo, do interiore da subjetividade, o espaço de casa. O corpo feminino mater-no, em função de suas atribuições, traz em si os odores da casa,seus cheiros e luzes, seu ritmo. Esse é um corpo que lembra, noimaginário do texto, um grande regaço onde descansar, ondeproteger-se do medo, da grande solidão de ser no mundo, deter de crescer e morrer. É o das mulheres fortes que amparamseus homens e filhos, os de Ana Terra, Bibiana, Flora, Sílvia. Suaforça vem do recato, decência, dever, da resignação, responsa-bilidade, sacrifício, da infinita paciência, dessas qualidades quetecem essas mulheres nas suas malhas, enquanto os filhos cres-cem e os homens partem. O corpo materno é o corpo da casa ena casa da infância, como quer a aparência dos fatos e comoacredita o texto, não há sexo, não há desejo.

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O desejo está fora de casa, na rua, no mundo dos homens.Esse é o território do masculino, onde se faz política, onde sevai para a guerra, onde é permitido beber, fumar e jogar, ondepode-se “possuir” livremente as mulheres. O território do outrolado da rua, além da casa, traz em seu mapa a casa das mulhe-res perdidas, sexuadas, que “tentam”, com seus corpos e artima-nhas, o juízo dos homens até o sumidouro, a perdição. Na ruaestá o perigo, o inimigo, o outro, o desconhecido, o que não éfamiliar, o estrangeiro. As mulheres da vida são um território aser “conquistado”, um corpo a ser “possuído”, “submetido”,“violentado”, um corpo que deve “entregar-se”. O corpo sexua-do evoca cheiros e tessituras que despertam todos os sentidos,são frutas, carnes, flores e que encontram correspondência nossentidos de outros corpos; são perigosos, traidores e não sãoconfiáveis. O corpo sexuado é como a rua à noite, desafiador,perigoso, fascinante.

As mulheres da casa são senhoras de boa alma, as mulheresda rua são criaturas de belos corpos. Essa é a divisão que perpas-sa o imaginário social de O Tempo e o Vento, a divisão do corpo fe-minino em um corpo materno versus um corpo prostituído in-digno. É verdade que certas trajetórias individuais reduzem ouniverso feminino da obra, a história das mulheres, seus corpose suas vozes, a essa dicotomia simplista, mas a força desse ima-ginário tem servido, na história da nossa cultura, como um mo-delo, um exemplo, um modo de ser feminino a ser seguido.

A maternidade e o casamento, como opções únicas para avida das mulheres, escraviza-as ao mundo doméstico e ao cuida-do dos maridos e filhos. A prostituição (as “outras” são encara-das como prostitutas ainda que nem sempre o sejam) escravizaas mulheres a um movimento narcísico em torno do própriocorpo e à violência e hostilidade de um relacionamento hete-rossexual com homens que temem e querem “possuir”, “subme-ter” esse corpo feminino.

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Assim reza o texto. Não há, portanto, muitas alternativaspara as personagens femininas de O Tempo e o Vento. As opçõessão aquelas estipuladas como paradigmáticas, que criam ummodo de ser feminino exemplar: ser esposa e ser mãe.

Entre elas, no entanto, esquecida pela crítica, no rastro dopróprio anonimato criado pelo texto, Maria Valéria Terra, comuma vela na mão, perpassa O Tempo e o Vento suscitando ques-tões, subvertendo um modo de ser feminino que subjaz às nor-mas e condutas. Esta figura feia, seca, sem a graça feminina deAlice, sua irmã, virgem e solteirona, traz sua força num corpoque, ao não cumprir com a prescrição patriarcal às mulheres,não se divide. É a Dinda, a Madrinha, a que cuida e protege,sem ser mãe; sombra, matriarca sem descendência, que na es-tranha configuração de seu perfil vem perguntar sobre o femi-nino: é vulto, fantasma, sombra. Maria Valéria é fada de inver-no, fantasma predileto de Rodrigo Cambará, vestal, parca, cons-ciência viva, símbolo das coisas imprescindíveis, guardiã da me-mória das mulheres (é uma figura central no texto, entre AnaTerra e Bibiana, Flora e Sílvia), assombração, almirante, roche-do, fada de gelo e aço; Maria Valéria não se enquadra na carac-terização do corpo feminino dividido. Anônima, solteira e vir-gem, funda, ao contrário do que quer a tradicional leitura dacrítica, que a vê como uma reduplicação do arquétipo da MãeTerra fundado por Ana Terra e Bibiana, um novo arquétipo. Ode Héstia, a deusa do lar, do mundo da casa, simbolizado pelofogo doméstico. A deusa virgem e anônima que mantém seu po-der por não sucumbir às paixões humanas, em especial à doshomens. Na sua inteireza, Maria Valéria tem voz própria, seusditos e falares exprimem uma sabedoria peculiar, um certo hu-mor e nos remetem ao resgate da oralidade na leitura da histó-ria das mulheres e suas vozes. Uma sombra, um vulto, um fan-tasma. Uma vela acesa e a descoberta de um conhecimento ain-da não revelado. O saber das mulheres e seus silêncios.

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Maria Valéria atualiza questões urgentes: do sentimentomaterno ser instintivo ou cultural, de conceitos de feminilida-de, de identidade, das mulheres e sua expressão, de seus falares.

Uma sombra percorre o texto, ponta a ponta. Maria Valé-ria não morre, não se maldiz enquanto mulher. Floriano Cam-bará ao iniciar/finalizar O Tempo e o Vento, ouve os passos da Din-da pela casa e pensa: “O Sobrado está vivo”. Maria Valéria octo-genária, cega, a vela acesa na mão.

O universo feminino, intuído por Erico Verissimo em OTempo e o Vento, está onde não se aceita a cisão do corpo femi-nino, onde esse corpo não está fendido e de onde, portanto, elepode falar, argumentar, deliberar. Maria Valéria Terra vem di-zer, em seus silêncios e meios-tons, que o feminino - ainda quesaibamos pouco sobre a sombra, sobre como nomeá-la, comoiluminá-la - é mais sutil e também menos misterioso do que suasrígidas e inúmeras aparências. A Pucela de Santa Fé atravessa otexto, de ponta a ponta, desmontando certezas. Duvida, com avela na mão, da falsa transparência, do que nos tem sido dito so-bre esse desencontrado mundo onde habitam atrapalhadamen-te os homens e as mulheres desses tempos.

* Professora de Literatura da Unisc, autora de A Sombra e a Chama.

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“Bandeira tem razão. É necessario agarrar o touro a unha. Enfrentar sem medo e com a alegriapossível ‘el momento de la verdad’.”

Arquipélago – Caderno de Pauta Simples

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O TEMPO E O VENTO:CINQÜENTA ANOS DEPOIS

P a u l o H e c k e r F i l h o *

Reler 50 anos depois O Tempo e o Vento (O Continente), amaior obra de Erico Verissimo no consenso geral, buscando vero que nela ainda funciona, não é fácil, a começar por serem 639páginas compactas. No entanto, o modo de narrar, duma ele-gância simples, as torna bem mais digeríveis do que pareceriamcom esse tamanho todo. E já está aí, a meu ver, o melhor do li-vro, o autor sabe interessar contando uma história. É claro, atéuma criança o entende, e se algum passo complica, o explana,não teme simplificar. Não se excede – já que é o melodrama queprende o maior número, vai de melodrama, mas sabendo coibirperorações. Aceita que as pessoas sejam diferentes, ao ponto deadmitir tolices e mesquinhezas, estendendo a linha do roman-ce de costumes a um prosaísmo de vida abominado por tantosmodernos, que buscam a verdade, inclusive nos caracteres. Aci-ma de tudo, Erico encontra tal prazer em contar uma históriaque o transmite a quem lê. O Tempo e o Vento é sem dúvida umdos mais lidos dos livros julgados importantes ou de leitura

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obrigatória, enquanto a maioria dos outros importantes sãocomprados e olhados, raramente lidos. E não é só o conhecidoe fácil de dramas e personagens que leva à leitura, os apenas fá-ceis acabam abandonados, é o modo dosado e sapiente comque escreve e conquista o leitor. E tem suas reservas: se diálo-gos, descrições ou personagens ameaçam encher, muda de pa-rágrafo, cena ou capítulo, cria novo interesse e torna assim o as-sustador mar de páginas sempre navegável.

Na época receei que o intento de romancear a história doRio Grande fosse suspender a revelação crítica do autor da bur-guesia porto-alegrense dos romances anteriores, já que essa crí-tica era a sua melhor justificação. Agora, relendo, vejo que reto-mar nosso passado representou um tema real para Erico, tantoque, ao conceber novelas no contexto, não deixou de ser críti-co moralizador. Ao sair, a obra impressionou pelo cuidado for-mal, superior ao dos títulos precedentes, e foi saudada como achegada à maturidade.

Mas esse depois revisou toda a obra e talvez essa evoluçãojá nem se note nas edições revistas, já que basicamente o escri-tor estava pronto desde Cruz Alta. Em 1949, o que primeiromarcou foi a atenção e a felicidade da redação e já por isso o fo-ram pondo acima de seus outros títulos. De minha parte, comoromance, segui preferindo por exemplo Clarissa e mais tarde OSenhor Embaixador. Mas repegando agora os parágrafos de OTempo e o Vento na mão para examinar, de fato a propriedade devocabulário e frases é constante, tanto que no imenso texto ano-tei apenas uma meia dúzia de escusáveis deslizes.

O importante é que o crítico persiste e a burguesia do pas-sado é vista como rude e primitiva, pior que a atual. “Selva-gens”, conclui o dr. Winter, alter-ego do autor. Uma das figurasque ganha mais espaço na obra é Bibiana, egoísta, possessiva,maldosa, e que o dr. Winter considera “mulher prática” e tratacomo “amiga”, em parte para fazer andar o enredo com as con-fissões dela, mas que amiga!

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Já se acha a tolerância do narrador excessiva, ainda queprogramática. Licurgo, o neto que ela cria, é outro monstrinhomandão e briguento, e o dr. Winter só de vez em quando seexaspera, mas ainda bem que se exaspera. “Estou certo do quehouve um erro qualquer na distribuição das raças. Quandodeus criou o mundo ele destinou a esta terra outras gentes quenão estas. Haverá ainda um meio de corrigir esse erro” (p. 410).(Pergunto eu hoje: haverá, Olívio Dutra?)

Tem mais. A festejada Guerra dos farrapos é dada “comoestúpida guerra civil que atrasara a Província de muitos anos”(p. 395). Sem anacronismo, com imaginação histórica, faz osdonos tratarem os negros como os escravos que eram, sem con-templação com sua humanidade. Os índios são várias vezes lem-brados como temidos assaltantes que matam sem remorsos, forado falso lugar-comum atual que os dá como donos da terra,quando para a tornarem sua deveriam cultivá-la, não viver dela.De ponta a ponta, recusa a lenda tradicionalista de um gaúchoforte e generoso, e os machões que apresenta são, como na real,injustos. Os apoderados se mostram cobiçosos e agressivos, e ospobres, como sempre, não têm praticamente vez de serem issoou aquilo. Completa o quadro dando uma aula sobre os fatoshistóricos que constam dos compêndios, e sem enfarar, nãoraro postos num debate pessoal, vivo. Outra aula é sobre a lín-gua que se falava e que em parte prática, com castelhanismos etermos já em desuso (alarife, origens, despautérios, sortir); ou-tra, substanciosa, sobre expressões, hábitos, pratos, sobremesas,quadrinhas rurais (p. 474) e reconta com encanto a lenda doNegrinho do Pastoreio (p. 521).

Mas se é tão crítico, como o livro foi tão bem-recebido, poralguns mesmo como a Bíblia do Rio Grande? É que os leitores,inclusive pela crítica, vêem nele um passado em que se reconhe-cem por ser real, ainda que o pintem diferente. Mas se foi assim,foi assim, quem não sabia aprende, no mínimo para respeitar.

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E o romance? Pelo menos no realista como é o caso, o ro-mance vale pelas personagens que cria através dos dramas nar-rados. Eis a galeria que as novelas de O Tempo e o Vento oferecem.A concepção mítica da vida do índio está aproximada das vi-sões, já em termos católicos, do índio menino Pedro, logo cha-mado Pedro Missioneiro. É assim, o mítico tem a visão, e quan-do falha inventa. E a usa para se excetuar, dominar os outros,ser pajé. Mas, adulto, Pedro perde a individualidade, calado tí-tere da trama planejada pelo autor. Ana Terra se desfraldacomo uma das bandeiras feministas do livro – tema no ar, saíano mesmo ano O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, que setornaria a Bíblia feministas. Ana, personagem, tem duas reaisações. Uma é se enamorar de Pedro, e descrita com a ingenui-dade machista que vê nas mulheres entes meio primários, mo-vidos por fatores que não entendem, quando mais verdade éque a mulher, desde sempre alvo sedutor, aprende cedo a dis-cernir o sexo e seu sexo em particular. A segunda é mandar o fi-lho e a cunhada se esconderem na mata, enquanto enfrenta orisco dos bandidos castelhanos. Aí a personagem nasce e pro-mete. Não cumpre a promessa. Estuprada até desfalecer pelosassaltantes, para decepção do leitor, poucos parágrafos depoisse confessa bem como nunca, o texto prossegue e logo a perdede vista referindo dados sociais. Rodrigo Cambará tem a fraseinicial que não se esquece e é justo que por ela seja recordado:“Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nosgrandes dou de talho!”. Em seguida, conquista com risos umgaúcho ofendido, o que é inverossímil. Na mesma linha, seu en-contro com o coronel Ricardo Amaral chega ao irrisório, e a fi-gurinha difícil não convence até o fim, no recursos a situaçãofolhetinescas e na incoerência psicológica. Pode-se explicar oinsucesso por estar o autor dividido diante dele, visando aquies-cências ao pintar o popular galã fanfarrão e, no íntimo, despre-zando-o, no caso com todo o direito.

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Já em Bibiana o que não se admite é que essa danada ávidapossa ser aceita pelo dr. Winter – o feminismo tinha os seus exa-geros. Nossa desforra e do autor é que esse termina por lhe ti-rar a razão, fazendo-a caducar. Luzia, dita a Teiniaguá, já que to-dos insistem em que é um ser maléfico, não justifica a designa-ção, porque o autor não a mostra fazendo o mal, e é a ação, noromance ou na vida, que dá o verdadeiro caráter.

Em sua única cena forte, a briga aos gritos com a sogra Bi-biana, Luzia é quem tem razão e a sogra é que vence. Bolívar seexpõe aos tiros, se mata frivolamente, já que não foi mostradoo tão aludido inferno que a esposa Luzia lhe teria criado. Eolhem a força de Licurgo. Quando a cunhada Maria Valéria lhepergunta, desesperada, o que dar para os homens sitiados emortos de fome, responde em pensamento: “Por que não dor-me com eles? Assim eles esquecem a fome, vassuncê fica sosse-gada e me deixa em paz”. Belo caráter...

Mas há o dr. Winter, há o Erico, o autor dando opinião, oraisonneur, tipo execrado no romance realista pelos teóricoscomo uma facilitação que corrói o drama, detém o romance en-quanto tal. Mas o Erico era tão inteligente e vivido que não ficamal em nenhuma parte. Se me permitem uma inconfidência,ele me disse na ocasião que, ao redigir o dr. Winter pensava emmim – eu o queria muito, como amigo. “Nada de parecido, a ati-tude”, especificou. Mas desde sempre vejo o dr. Winter bemmais maleável e sedutor do que eu jamais fui e Erico, sim, sou-be ser. Acabo de reler também suas entrevistas, reunidas sob otítulo A Liberdade de Escrever e ora reeditadas. É um charme só.

* Escritor, autor de Febre de Viver.

8 9O t e m p o e o v e n t o : c i n q ü e n t a a n o s d e p o i s

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“O gaiteiro continuava a tocar a tirana. Rodrigo via por sobre sua cabeça um vago brilho de estrelase, num relance, lembrou-se das suas noites de guerra, nos acampamentos da banda oriental...”

O Continente – Um Certo Capitão Rodrigo

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O TEMPO E O VENTO:“O CONTINENTE” COMO OBRA SÍNTESE

J o s é A d e r a l d o C a s t e l l o *

A leitura da nossa narrativa ficcional possibilita selecionarautores e obras de momentos diversos, inspirados em ocorrênciasde ocupação e fixação pioneira de partes distintas do Brasil. Elesrepresentam perspectivas semelhantes e freqüentemente reali-zam criações de conteúdo épico-lírico. Aglutinam panoramas deetapas de nossa formação, em nível de investigação, de memóriae até de inconsciente coletivo, compondo painéis totalizadores.Projetam-se em continuidade e geram uma cadeia de representa-ções convergentes. São classificados autor-síntese e obra-síntese.

Erico Verissimo é um dos que exemplificam a contribuiçãoproposta. Para melhor esclarecê-la, achamos fundamental a refe-rência, embora sumária, à experiência de princípios da carreirado romancista, ressaltado como observador da sociedade con-temporânea em centro metropolitano, Porto Alegre, e interiora-no gaúcho. Nas narrativas publicadas nas décadas de 30 e 40, sou-be interligar personagens em núcleos familiares e apreendercomportamento de classe média surpreendido no dia-a-dia, sob

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enfoque abrangente da condição humana em geral à realidadebrasileira. Destacamos o narrador preso a seu universo, quandojá se achava ultrapassada a fase de integração da imigração deprocedência européia. Ele se colocaria, então, na posição de me-lhor compreender o novo gaúcho, enquanto o perfil do históri-co seria delineado em O Tempo e o Vento, volume I, a ser retoma-do em seu processo de renovação/assimilação nos volumes se-guintes, II e III. Equivale a dizer definição do novo brasileiro quesurgiria da “recolonização”, uma vez que Erico Verissimo percor-re caminhos paralelos aos de ficcionistas paulistas. Inclusive, tam-bém, com a aproximação do interior ao urbano metropolitano,acentuando crises ideológicas. Finalmente, confronta-se com ou-tros do Centro e do Nordeste, quando se volta para a visão dosmomentos originários de penetração e conquistas de nossos espa-ços geográficos.

Reconhecida a relação da experiência acumulada nas pri-meiras narrativas com a concepção de O Tempo e o Vento, podemosmelhor distinguir nessa trilogia a sua primeira parte, O Continen-te, de 1949. Principiemos pelos títulos dos capítulos que a com-põem, às vezes com dimensão de novelas justapostas, encadeadasde maneira remissiva: O Sobrado, A Fonte, Ana Terra, Um Certo Ca-pitão Rodrigo, A Teiniaguá, A Guerra, Ismália Coré. Por força dasações romanescas interpenetrantes, mapeia-se um espaço geográ-fico de conquista e fixação e dimensiona-se o tempo nos limitesdo século 18 a fins do 19. Delineia-se igualmente a trajetória épi-ca, também com episódios de certo conteúdo lírico, nos quais orude prevalece sobre a sentimentalidade. Fatos e desdobramentode situações convergem para a cidade de Santa Fé, configurandoa atualidade em decorrência da visão retrospectiva. Aqui, O Sobra-do se impõe como símbolo de poder patriarcal e despótico. É tí-tulo do primeiro e também do último capítulo-parte, entremea-dos cinco vezes com outros sob a mesma designação. Tudo indi-ca a preocupação do narrador em enfatizar a tradição brasileirade concentração e preponderância de poder no processo forma-

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dor de um Estado, que ainda contaria com o destaque da partici-pação migratória.

As subunidades intituladas O Sobrado, em torno de 1895(data citada na narrativa), são, portanto, do momento culminan-te do processo histórico da configuração do Rio Grande do Sul,cujo início também é datado com precisão: “O fato de os portu-gueses haverem fundado em 1737 um presídio militar no RioGrande indicava que estavam decididos a tomar posse definitivado Rio Grande de São Pedro”.

Advertência, nas primeiras páginas da obra, confirma inten-ção de traçar a trajetória das origens e formação do Estado gaú-cho pelo discurso de mais de século e meio, ampliada nos dois vo-lumes posteriores da trilogia: O Retrato e O Arquipélago. Mas oacontecimento histórico que marca essa abertura é a guerra dasMissões dos Sete Povos do Uruguai, sabida conseqüência do tra-tado de 1750 entre Portugal e Espanha. Integra a parte significa-tivamente intitulada A Fonte. É uma versão e interpretação quepede do leitor confronto com a literatura anterior sobre aqueleepisódio: O Uruguai, de José Basílio da Gama, Tardes de um Pintorou as Intrigas de um Jesuíta, de Antônio Gonçalvez Teixeira e Sou-za, e mesmo O Jesuíta, de José de Alencar. Comporta referênciasàs incursões paulistas de apresamento do índio, em situações decontatos que justificam a criação ficcional do protótipo do mesti-ço mameluco, na figura de Pedro Missioneiro. Ele se juntará, porsua vez, com outro lado paulista, fundando a geração dos Ter-ra/Cambará. Também dos Sete Povos provém a figura lendáriade Sepé Tiaraju, o grande chefe e herói índio nas lutas ali desen-cadeadas, mitificado, até mesmo santificado pela tradição gau-chesca, e a lenda de origem peninsular da Teiniaguá. São lendas,mitos e tradições que ilustram reminiscências históricas sob o cri-vo da ficção, às vezes próxima da crônica. Um segundo aconteci-mento é sugerido pela referência à imigração açoriana, a primei-ra colonização daquela região, de iniciativa oficial. Mas o que seexalta mesmo é a presença paulista, a índia e também a castelha-

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na dentro do “continente”, onde terra e gados “seriam de quemprimeiro chegasse”, com ou sem respeito à lei, em apropriaçõesarbitrárias.

“Muitos requeriam sesmarias. Outros roubavam terras. La-drões de gado aos poucos iam virando estancieiros”.

E chega-se, finalmente, à conceituação de patriarcas autori-tários e despóticos. Primeiro, o clã dos Amaral, todo poderosoem Santa Fé, núcleo urbano que ele funda.

Mais tarde, nos fins de 1700, com a união de Pedro Missio-neiro com Ana Terra surge o filho Pedro, pai da futura matriar-ca Bibiana, mulher de Rodrigo Cambará, que dará origem aosTerra Cambará. Os clãs se defrontam: o chefe dos Amaral, paulis-ta que lutou em Sete Povos, e Rodrigo Cambará, em guerras e es-caramuças de fronteiras, herói, fanfarrão, jogador, mulherengo ecorajoso. Os dois seguirão entrelaçados por ódios, vinganças, lu-tas e finalmente oposição política. Ao fim de quase um século derivalidades, a narrativa se encerra com a vitória republicana doSobrado, reduto impoluto dos Cambará. E confirmamos a prefe-rência do autor pelo capitão Rodrigo Cambará e pelos CambaráTerra, os quais, no decorrer da ação épica da narrativa, seriamsempre ressaltados entre os formadores e descendentes do nú-cleo originário, interno, no espaço gaúcho que se delimita.

No desdobramento das famílias rivais, surgem heróis, traido-res, vilões, prepotentes e usurpadores, generosos e justos. Certa-mente, porém, elas se prendem a raízes internas geradas por se-mentes índias e de paulistas que se aventuraram até as “bandasorientais”. No princípio, vivem em condições precárias, isoladas,mas avançam progressivamente para maiores agregações, de es-tâncias, povoados e cidades. No panorama retroativo, o açorianoé referido, contrastando, digamos, com o gaúcho do universo ru-ral. E Portugal era mesmo rejeitado: “Antigamente, quem diziagoverno dizia Portugal, e a gente tinha uma certa má vontadepara com tudo quanto fosse português, começando por antipati-zar com o jeito de falar dos galegos”.

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A imigração alemã é vista com simpatia, também a italiana,mas, curiosamente, práticas populares, tradições, até o canto e overso são de origem castelhana e principalmente açoriana. Dessaúltima procedência, seriam as cavalhadas, que, contudo, já eramfreqüentes por quase todo o Brasil do século 18. De qualquer ori-gem que sejam, as raízes internas - quer dizer, “continentais” ame-ricanas - seriam logo mais adubadas por açorianos, alemães e ita-lianos. E assim, da visão surpreendida em momentos pioneirosépico-líricos, caminha-se, e não esqueçamos as sugestões anterio-res e posteriores de toda a criação do romancista, para a visão da-quela nova representação gaúcha mencionada inicialmente.

Obra-síntese, juntamente com outras do Modernismo, con-tribuiu significativamente para ampliar a representação históricae contemporânea do Brasil. No conjunto da criação ficcional dosanos 20 aos 60, ela se entrelaça com narrativas do mesmo senti-do, que se enriquecem entre si. Se o começo está com José deAlencar, a participação modernista principia com Macunaíma,propondo a desregionalização geográfica e cultural do Brasil, afavor da visão unitária. Prossegue-se em retomadas parciais, po-rém, sem aprisionamentos exclusivistas. Vasculham-se raízes in-ternas em espaço e tempo de limites definidos, sob investigaçãohistórica e cultural de maneira a compor a visão inter-relaciona-da do processo seccionado da nossa formação.

E com os modernistas, além de Mário de Andrade, ressalta-mos José Lins do Rego (Fogo Morto e Pedra Bonita), Jorge Amado(Terras do Sem Fim e São Jorge dos Ilhéus), Graciliano Ramos (o con-junto de suas narrativas), Guimarães Rosa (Grande Sertão: Vere-das), Rachel de Queiroz (Memorial de Maria Moura), aos quaisacrescentamos Erico Verissimo com a contribuição de O Continen-te (O Tempo e o Vento I), entre outros possíveis.

* Doutor em Letras, USP, autor de A Literatura Brasileira: Origens e Unidade.

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“Naquele dezembro – o sexto dezembro da Guerra – já não havia em Santa Fé família que nãochorasse um morto.”

O Continente – A Guerra

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O TEMPO E O VENTO:UM DIÁLOGO ENTRE FICÇÃO E HISTÓRIA

M a r i l e n e W e i n h a r d t *

Erico Verissimo apostou no potencial romanesco da vida deseus conterrâneos e da história de sua terra. A cartada foi extraor-dinária e há cinco décadas os leitores vêm entrando no jogo, ence-nando sempre, a cada leitura de O Tempo e o Vento, a comédia hu-mana da província, muitas vezes de modo revigorado.

A afirmação de que a vida de alguém ou de que a história deum lugar daria um romance é ouvida com freqüência. Aquelesque, a partir dessa convicção, tentam transpor essa vida ou essa his-tória para a escrita, descobrem que não é o relato de uma seqüên-cia de episódios, ainda que interessantes, que faz um romance,como também não se constitui em ensaio histórico. Um e outro -discurso ficcional e discurso histórico - têm especificidades que osdistinguem de outros usos da palavra. O discurso ficcional, com aliberdade de apropriação de linguagens que o caracteriza, podeaproximar-se do histórico a ponto de parodiá-lo. O discurso histó-rico, reconhecem hoje os teóricos da história, também recorre aelemento próprio do ficcional, o imaginário, para dar sentidos aosdocumentos, conceito este também reformulado e ampliado. As-

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sim, a designação romance histórico, herdada do século 19 e quepara alguns, dada a reação de certos escritores e de tantos outroscríticos, parece se constituir em uma pecha, merece ser redimen-cionada à luz dos conceitos contemporâneos do que é história e doque é ficção, bem como à luz do diálogo que se pode estabelecerentre essas duas áreas da produção humanística, em alguns mo-mentos de seu percurso tão próximas.

O conceito de história predominante quando da publicaçãoda trilogia de Erico Verissimo - estudo dos fatos registrados pelacrônica histórica e de figuras de destaques a eles relacionados, pre-ferencialmente num sentido de exemplaridade e de reforço do he-roísmo nacional, conceito ainda hoje não superado de todo e bas-tante corrente, cristalizados desde os bancos escolares - permitia lo-calizar os momentos e as personagens históricas de que apropriou-se a escrita ficcional, ou antes, que constituíam o cenário do enre-do, já que se referir à noção de apropriação talvez seja prematuronesse contexto. Os modos de abordagem do texto literário, por suavez, observavam se o que era considerado assunto histórico estavaintegrado ao momento ficcional, isto é, se era informação necessá-ria ao desencadeamento da ação romanesca.

Tome-se como exemplo o relato do episódio do assassinato dePinheiro Machado, situado no segundo tomo de O Retrato. O queaparece em primeiro plano na narrativa é o modo como a notíciase difundiu na imaginária Santa Fé e a reação de cada personagem.À leitura dos jornais, seguem-se comentários mais ou menos apai-xonados, conforme o caráter e a coloração política de cada perso-nagem. Para a realização literária, é relevante notar, em princípio,se essas reações são verossímeis, das perspectivas comportamentale ideológica, com a atuação que cada um vinha demonstrando, ese o ato integra-se ao curso da ação romanesca. Para o discursoorientado para a história política, interessava a possibilidade deconferir, na pesquisa em jornais da época, que as notícias registra-das foram de fato divulgadas na imprensa, com detalhes sobre o as-sassino e sobre o enterro, bem como a colagem do telegrama por

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Rui Barbosa à viúva e transcrito no jornal. Vale destacar que o des-compromisso do ficcionista com o que se acreditava como “a ver-dade histórica”, única e definitiva, lhe permite dar voz e peso a to-das as opiniões correntes na ocasião, sem deferência especial pornenhuma.

O simpatizante da história dos vencidos, primeiro questiona-mento da história tradicional com repercussão fora dos círculosacadêmicos, focaria sua atenção sobre o padeiro gaúcho que des-feriu a punhalada, denunciando sua condição de vítima. Quer te-nha tido mandantes, quer tenha se decidido em função da mortedo “filho duma protetora sua” na repressão policial violenta à ma-nifestação popular contra a candidatura do marechal Hermes,conforme declarou, estaria sempre servindo aos interesses da clas-se dominante. No estudo do plano lingüístico, reforçar-se-ia tal ar-gumentação pela seleção vocabular usada para denominar o agres-sor. Não só a imprensa e os grupos governistas usam termos bemmarcados. O dr. Rodrigo Cambará, um civilista mas nem por issotraindo sua casta, qualifica o crime de “bárbaro”, designa o autorcomo “sicário”, esbofeteia e chama de “canalha” um forasteiro queousa dizer em voz alta que a morte do caudilho fora “uma limpe-za”. Atualmente, a história do cotidiano extrairia outras significa-ções da mesma cena: o modo de transmissão e de difusão da infor-mação (um telegrama urgente ao intendente, o centro telefônicocongestionado, a leitura dos jornais da Capital); a situação em quefoi comprada a faca e seu preço, reveladores de uma faceta da ati-vidade comercial popular; a roupa que vestia o senador e os obje-tos encontrados em seus bolsos, marcas da condição social. A his-tória cultural interessar-se-ia ainda pela seleção de opiniões: o vigá-rio, o forasteiro, o intendente naturalmente situacionista, o oposi-tor também pertencente à oligarquia. Este, ainda também signifi-cativamente, dado uma coloração humana ao ser político, no mes-mo momento em que emite e ouve opiniões sobre o acontecimen-to, sente saudades da amante.

99u m d i Á l o g o e n t r e f i c ç Ã O e h i s t ó r i a

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A primeira acusação que se pode levantar contra esse modode ler diz respeito ao nivelamento produzido entre fatos históricose fatos ficcionais. A seguinte é a de que se está afirmando que a fic-ção contém tudo o que seria objeto da história, propondo-se por-tanto que seria dispensável. O discurso romanesco produz, de fato,esse nivelamento. Tudo o que ele relata é, por princípio, ficcional,tenha ou não referente externo. A excelência dessa equiparação,quando o escritor opta por recorrer ao externo, é um dos fatoresde realização do romance, o que não significa que a fusão se pro-jete para além das fronteiras do tempo e do espaço do romance.

Quanto a importância da história, a maneira de ler a realida-de que lhe é própria depende de instrumental de sua exclusivacompetência. A ficção, que eventualmente até pode ser usada pelahistória como documento, neste caso oferecendo subsídios a pro-pósito do tempo em que é produzida e não do tempo ficcional,não é substitutivo para o ensaio histórico, embora parceira de diá-logo. É em decorrência dessa possibilidade de diálogo que se estápropondo aqui uma forma de ler e de estabelecer a relação entreliteratura e história na ficção de Erico Verissimo. O movimentonão é de exclusão, mas de inclusão. O texto literário, se submetidoaos atuais recursos da teoria histórica, pode ganhar novo rendi-mento ficcional. Quando a teoria histórica abre seu leque para acultura e, em movimento simultâneo, reconhece seu caráter dediscurso e percebe a necessidade de conhecer as regras de funcio-namento de processos discursivos e sua força de revelação e demascaramento, está apontando também para um outro modo deler o texto ficcional que encena o histórico. A consistência do ro-man fleuve gaúcho revelada por diferentes tipos de abordagens his-tóricas é mais um modo possível de aduzir razões para a força deverdade de seu universo ficcional.

No episódio comentado, o que se informa sobre a persona-gem histórica é resultado de pesquisas em jornais e em registroshistóricos, portanto nos mesmos documentos em que se apoiaria ahistória que se quer ciência. O romancista registra também os ele-

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mentos que constituem matéria da história que promove, em pro-cesso de fetichização, a mitificação dos heróis. Lá estão listados osobjetos a serem encaminhados à estante envidraçada do museu.Da perspectiva da história, tal como era entendida há poucas déca-das, essa seria a linha limítrofe de sua atenção, tudo o que estáalém seria campo exclusivo de interesse da ficção. As reações àmorte do senador no universo de Santa Fé naturalmente são pro-duto do imaginário. Mas seria invenção em grau muito mais eleva-do, no sentido de distanciamento da realidade, do que aquilo queaconteceu no Rio de Janeiro e foi objeto do olhar e da pena do jor-nalista? Mesmo na Capital, quanto e como o cidadão comum sesentiu afetado? No país todo, dado o papel que Pinheiro Machadovinha exercendo, como a notícia terá ecoado? Em tantas cidade in-terioranas, particularmente nas sulistas, a repercussão terá sidomuito diversa da que ocorreu na cidade ficcional? Ou seja, o ficcio-nista Erico cria o que é verossímil e mesmo muito provável que te-nha acontecido. À noção de que Santa Fé é um microcosmo do Es-tado, ou do país, agrega-se a possibilidade de entendê-la com este-reótipo. A realidade a que a maioria de nós tem acesso, sempreparcial, é a de nosso círculo social e profissional, a de nosso bairro,de nossa cidade, no máximo. O que acontece no país, ou mesmono Estado, chega à imensa maioria dos cidadãos como um eco quepassou por uma série de filtros. A credibilidade do testemunho nahistória é tão relativa quanto qualquer ideal de totalidade.

Realizado esse balizamento, neste espaço só é possível um pre-cário levantamento dos tipos de abordagem histórica que vêm serealizando e que se poderia transpor, com seguro rendimento,para a análise literária dos sete volumes. O conceito de longue du-rée, proposto por uma linha da historiografia francesa que conside-ra só assim ser possível apreender o processo cultural, pode serponto de partida. O tempo ficcional da trilogia cobre desde os qua-se míticos tempos missioneiros até meados do século 20. Na se-qüência, a história do cotidiano e da vida privada se instalam à von-tade. O narrador estende-se em minúcias sobre a história da famí-

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lia, da constituição das classes sociais, da sexualidade, dos hábitosde vida no espaço doméstico e social, da alimentação, do vestuário,da música, dos modos de lazer, dos meios curativos; acompanha ainstalação e o incremento do consumismo; reconstitui o percursodos sistemas de comunicações, particularmente do papel do jornalcomo difusor de informações e formador de opiniões e de hábitos,funções em que recebe expressiva colaboração do cinema, cuja tra-jetória também está representada. A história da arquitetura, da in-trodução e incorporação do automóvel, da aviação e de tantos ou-tros avanços tecnológicos no cotidiano brasileiro estão tambémpresentes. A história do leitor brasileiro é acompanhada com rigor.O registro de diversos padrões e preferências de leitura, do folhe-tim a Marx, dão oportunidade a entrada da história das idéias. En-fim, é o relato ficcional, nem por isso menos verdadeiro, da cons-tituição de um povo. No painel visto desse ângulo, destaca-se a fun-ção de dois tipos de personagens. Um grupo é representado pelos“de fora”, estrangeiros ou originários de outras regiões do país,cujo olhar sobre os habitantes do Sul, sem os mesmos condiciona-mentos, permite iluminá-los. Outro grupo é o de indivíduos social-mente marginais, cujas vozes relativizam a perspectiva dos detento-res do poder.

Nessa altura, fica claro que se está confirmando O Tempo e oVento como ficção histórica, não no sentido de limitação, mas dereafirmação de seu potencial criativo, sempre disponível para atua-lização. Não se reivindica para o autor o título de precursor dosatuais métodos da história e da filosofia que os orienta, mas se in-tenta sublinhar o caráter plural da criação literária e sua capacida-de de revitalização.

Que o passado está vivo quando oferece achegas para explicaro presente é lição da história. Para enfim amarrar essa abordagemque transita entre a literatura e a história, vale a pena lançar umolhar sobre a história da literatura mais recente e focalizar o mes-mo espaço em que predominantemente Erico Verissimo produziusuas obras e situou a ação romanesca. A permanência de seu lega-

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do é uma evidência. Em Josué Guimarães, o diálogo se estabelecede forma mais direta, ainda que não exclusivamente, em A Ferro eFogo (1972/75); Luiz Antonio de Assis Brasil, em seu projeto depainel da sociedade e da história do Rio Grande do Sul, não disfar-ça a condição de tributário da linhagem, mais claramente na trilo-gia Um Castelo no Pampa (1992/94), mas seus primeiros títulos jáapontavam também nesse sentido; Tabajara Ruas, particularmenteem Os Varões Assinalados (1985), oferece outra contribuição signifi-cativa para a produção romanesca gaúcha que não se contém nolimites daquele regionalismo que significa criação autocentrada.Certamente há outros nomes a acrescentar na descendência dessamatriz. E a interlocução não se dará também, ainda que pelo aves-so, quando a negação do modelo parece um imperativo? João Gil-berto Noll, cujas opções narrativas o colocam em patamar muitoafastado, não estará pagando o seu tributo? Seu romance A CéuAberto (1996) encena uma guerra, o indefectível assunto sulista,embora essa seja indeterminada e em espaço indefinido. E aindahá uma passagem que cita como uma das possíveis causas da luta oresgate do morro em que está enterrado um herói, vencedor deuma batalha ao cortar a língua de um velho guerreiro inimigo quenão parava de falar, enunciando continuamente os feitos de seupovo. Tematização da morte do pai ou do discurso como princípioque constrói a realidade, lê-lo em contraponto com a ficção de Eri-co é uma vereda crítica possível.

* Doutora em Letras, UFPR.

1 0 3u m d i Á l o g o e n t r e f i c ç Ã O e h i s t ó r i a

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“Pai era Sol. Mãe era Lua.Pai era ouro. Mãe era prata.Pai era fogo. Mãe era água.Pai era vento. Mãe era terra.”

O Arquipélago - Caderno de Pauta Simples

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O TEMPO E O VENTO COMOROMANCE HISTÓRICO

P e d r o B r u m S a n t o s *

Dentro das diversas e novidadeiras formas de manifestaçãoda literatura registradas ao longo do século XX, é possível res-gatar um fato singular relativamente ao romance histórico. Asocorrências significativas desse gênero, registradas, por exem-plo, pelas produções de Thomas Mann e André Malraux, estãomais próximas de uma tradição afirmada entre os oitocentos eos novecentos do que das vanguardas contemporâneas. Graçasa isso, o romance histórico do século XX continuou sendo clas-sificado como uma narrativa que recupera e problematiza açõese personagens que, se não reproduzem experiências de histori-cidade consagrada, ao menos apontam para questões gerais deuma época e de uma comunidade.

De resto, também ao longo dos novecentos, a aludida defi-nição se prestou para diferenciar o romance histórico de outroque lhe é próximo - o romance social. Pelo critério da matériade representação, pode-se dizer que enquanto o primeiro tema-tiza questões abrangentes, que buscam refletir sobre o próprio

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fundamento dos fatos, o recorte social tende para assuntos loca-lizados, de abrangência específica e circunstancial.

O romance histórico, segundo a caracterização consagradade Georg Lukács1, não necessita reproduzir diretamente feitose personagens decalcados de registros do mundo empírico. To-mando como exemplo introdutório do gênero as obras de Wal-ter Scott, Lukács lembra que no autor escocês do século XVIIIas referências aos feitos da realidade contingente aparecemcomo pano-de-fundo. O que conta para a caracterização do ro-mance histórico – e isso se encontra em Scott – é uma respostaque esse tipo de obra apresenta frente a questões históricas,algo que é feito através do torneio de ações nas quais são fixa-das literariamente etapas reconhecidas como pertencentes àHistória da época de produção.

No Brasil, ao longo dos novecentos, salvo exceções, o ro-mance foi primeiro social e, somente depois, histórico. A feiçãosocial começa a despontar cedo em autores como Lima Barretoe Graça Aranha, mais tarde seguidos, em parte, por Mário deAndrade e Oswald de Andrade. Depois desses, tal feição se con-sagra como o recorte preferido do chamado romance de 30.Preferido, mas não exclusivo.

Erico Verissimo, nas primeiras obras lançadas nos anos 30,demonstra uma preferência pela História como matéria de re-presentação. O exame da produção atesta que a abordagem defundo histórico pode ser detectada no conjunto da obra ficcio-nal de Verissimo, e que, além disso, se intensifica com a passa-gem do tempo. As obras iniciais, como Música ao Longe e O Res-to é Silêncio, em que a referência a episódios históricos é menosenfática, já colocam questões de inequívoco sentido historicista,como a decadência do patriarcado rio-grandense e as marcas docrescimento desenfreado das cidades. Nas obras da maturidadedo escritor, como O Tempo e o Vento, Senhor Embaixador e Inciden-

1. LUKÁCS, Georg. La Novela Histórica. Barcelona, Grijalbo, 1976.

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1 0 7O t e m p o e o v e n t o c o m o r o m a n c e h i s t ó r i c o

te em Antares, a opção pela história ocupa função no próprio es-quadrinhamento do enredo.

Presente desde os primeiros escritos, a consagração da fór-mula através da qual o autor equaciona a matéria de representa-ção ficcional na linha do romance histórico ocorre por ocasiãodo primeiro volume de O Continente,2 com o qual lança o proje-to da trilogia O Tempo e o Vento, em 19493. O procedimento con-siste em selecionar um episódio histórico, dentro do qual são in-seridas as personagens e situação ficcionais e em torno do qualgira a trama romanesca, num processo integrativo que produzimbricações entre micros e macros seqüências de significados.

Soluções Estéticas

De acordo com o esquema de imbricações entre seqüên-cias, a revolução federalista de 93, em O Continente I, serve comoum leitmotiv para o desencadeamento das ações. Os episódios,seriados segundo o título de “O Sobrado”, estão divididos emsete partes e servem de ponte a partir da qual, na seqüência daleitura, entre um e outro, intercalam-se trechos que recuam eavançam no tempo. Os segmentos que compõem “O Sobrado”estão situados em junho de 1895, data que coincide, no âmbitoda História, com o término da revolução federalista.

No romance, a habitação encontra-se cercada pelas forçasrepublicanas, que aparecem como vitoriosas sobre o poder po-lítico de Santa Fé. Dentro da fortaleza, em condições precáriascausadas pelo isolamento, resistem os representantes republica-nos: Licurgo Cambará, o chefe político deposto, alguns fiéis se-

2. VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento. Rio de Janeiro, Globo, 1985.3. O crítico que melhor compreendeu a caracterização histórica da proposta literária de Erico Ve-

rissimo foi Flávio Loureiro Chaves, para quem o realismo social do autor se traduziu “como umpacto ético-literário no qual o indivíduo se faz cidadão da História”. Cf. CHAVES, Flávio Lourei-ro. Erico Verissimo: Realismo e Sociedade. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1981, p. 128.

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guidores e os familiares. À medida que o leitor vai se situandoem relação às personagens que se encontram no Sobrado, co-nhece, nos capítulos circundantes, dados de outras persona-gens e episódios que se ligam aos nucleares.

Além da imagem da casa – o sobrado – o autor utiliza-se dereferências da natureza com o fito de integrar as personagens eas ações a âmbitos cada vez mais amplos da trama e da História.Esse procedimento de integração permite uma mistura entre es-paço doméstico e palco de guerra, do mesmo modo que justifi-ca a referência ao vento como marca de tempo – numa perspec-tiva que conduz do particular para o geral, da parte para o con-junto, da definição de detalhes às imagens-sínteses, nas quais seincluem os títulos das partes e do todo.

Assim, do mesmo modo em que se passa da casa para aguerra e do vento para o tempo, a História – guerra civil – inte-gra-se à história – enredo. Os conflitos experimentados por Li-curgo, como chefe político e pai de família, num certo nível,possuem uma lógica ficcional. Dentro dessa lógica, tais conflitosinteragem com a queixa das mulheres – Alice, sua esposa, e Ma-ria Valéria, a cunhada, para ficar no âmbito do sobrado.

Para além do círculo de casa – e ainda no espectro roma-nesco – os cruzamentos se ampliam, chamando para o diálogoa memória de Ana Terra, Capitão Rodrigo, Luzia – os antepas-sados de Licurgo e de outros ocupantes da casa. Novas imagensvão se formando na teia de relações aberta pelos trechos quepreenchem os espaços entre as diferentes focalizações sobre osobrado. Além das referências ficcionais, essas imagens vão co-locando em diálogo recortes históricos diversos. De 93, retroce-de-se a episódios do povoamento do solo sulino, à época dasmissões jesuíticas e à revolução farroupilha, para citar três refe-rências bem presentes.

Os diferentes níveis de representação, tal como estão dis-postos em O Continente – e, de resto, ao longo de todo O Tempo

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e o Vento – exigem que o leitor vá montando a história, como sejuntasse as peças de um quebra-cabeças. O procedimento, queé próprio dos grandes romances, fica reforçado pela utilizaçãoque Verissimo faz do contraponto, técnica consagrada pelo es-critor inglês Aldous Huxley, em romance de 28, no qual apro-funda o uso da composição fracionada da história, cujos pontos,disseminados pelo todo, vão se ampliando passo-a-passo.

Do ponto de vista do arranjo ficcional, a escolha da revolu-ção federalista como tópico de partida de O Continente I – e, deresto, da própria trilogia, considerando-se que se trata do volu-me inaugural - reveste-se de particular significado. Na históriado Rio Grande do Sul esse é um conflito essencial, pois signifi-ca a passagem da antiga ordem institucional, arranjada com osacordos imperiais que puseram fim à revolução farroupilha, àordem republicana, assentada no ideal positivista de Júlio deCastilhos.

Registrado na história como um embate de contornos bár-baros, com fartos registros de degolas, humilhações e massa-cres, aos quais não escaparam velhos, mulheres e crianças, a re-volução de 93 tornou a envolver inocentes nas contendas da eli-te rio-grandense. Na oportunidade, o confronto foi entre os fe-deralistas, chamados maragatos, simpáticos ao parlamentarismomonárquico e chefiados por Gaspar Silveira Martins e os repu-blicanos, ditos pica-paus ou chimangos, que eram republicanose obedeciam à chefia de Júlio de Castilhos.

O arranjo ficcional que Verissimo procede em relação aesse evento histórico, logo na abertura de O Tempo e o Vento, ga-rante a visão da história que se alarga pelos demais volumes datrilogia. Em primeiro lugar, o procedimento distingue-se porgarantir a expressão de vários aspectos em relação ao mesmoobjeto retratado. Em segundo lugar, por força da disposição domaterial, fica preservada a prevalência de uma lógica de caráterficcional contra a linearidade mais própria da lógica do discur-

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so histórico. Por fim, a forma pela qual se realiza a integraçãoentre os fatos da realidade contingente e o universo diegéticopermite que os fatos da História sejam recuperados do congela-mento do passado para a multiplicidade viva do presente.

Com a transposição da revolta federalista da História paraa ficção, integrando diferentes planos narrativos, Verissimo, talcomo faz em O Continente I, desveste o episódio histórico de seusentido apriorístico e deixa-o à mercê da trama ficcional. Cabe,então, aos agentes ficcionais expressarem opiniões, que, embo-ra às vezes sejam contraditórias entre si, por isso mesmo, colo-cam para o leitor questionamentos que mais dizem respeito àépoca de produção da obra do que propriamente ao episódioretratado.

A revolução federalista, pois, transforma-se no centro gera-dor em torno do qual as personagens, envolvidas no conflito,em lugar de protagonizarem cenas de enfrentamentos bélicos,refletem sobre a inutilidade das situações a que estão submeti-das. O velho Florêncio Terra, sogro de Licurgo, em meio aos si-lêncios do sobrado cercado, registra:

Eu tenho quase sessenta e cinco. Já vi outras guerras. Tudo issopassa. A revolução termina, os federalistas e os republicanos fi-cam alguns meses ou anos um pouco estranhos, mas o tempo temmuita força. Um dia se encontram, fazem as pazes, esquecemtudo (VERISSIMO, 1985, p. 11).

Os aspectos destacados por Florêncio transcendem a Revo-lução de 93, embora neles não se deva desprezar o quanto issoencerra de crítica sobre a tradição heróica e brava do Rio Gran-de do Sul. Mas acima disso, a digressão de Florêncio Terraaponta para uma dimensão hedonística da História que é pre-ponderante em O Tempo e o Vento. Esta é traduzida pelo princí-pio de que, como o tempo a tudo consome, o verdadeiro senti-do da ação humana está em canalizar as energias em ações agra-

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dáveis, que sejam ao mesmo tempo simples e realizadoras e que,acima de tudo, signifiquem fontes de prazer.

Fandango, o velho e alegre contador de histórias, igual-mente submetido ao cerco do Sobrado, exprime seus sentimen-tos exatamente nesses termos:

Curgo vive dizendo que os maragatos são bandidos. Mas qual!Todo mundo sabe que há gente boa e gente ruim dos dois lados.(...) [a guerra é] uma sangueira braba, uma perda horrível devidas, de dinheiro e de tempo! E no entanto o mundo tem tantacoisa gostosa! Mulher bonita, cavalo bom, baile, churrasco, mateamargo... Laranja madura, melancia fresca, uma guampa deleite gordo ainda quente dos úberes da vaca... Uma boa prosaperto do fogo... Uma pescaria, uma caçada, uma sesta debaixodum umbu... Tanta coisa! (Idem, p. 287).

Reflexões como a de Fandango – e aqui é mais uma vez ofato histórico ganhando expressão particular pelo ponto de vis-ta de uma personagem –mostram a montagem do romance his-tórico em Erico Verissimo. Distanciando-se da pura e simples re-visão do passado, o autor busca, a partir desse, montar o seuprojeto ficcional de modo que, de acordo com a tradição do ro-mance histórico, os fatos referenciados sirvam para que o leitorvá adiante, presentificando as questões suscitadas pelos referi-dos fatos.

Sentidos da História

As soluções estéticas adotadas por Verissimo na composi-ção ficcional dos recortes históricos que toma como matéria-prima para compor seus romances, freqüentemente levaram acrítica a classificá-lo como um humanista liberal. Em períodosde acirramento de discussões ideológicas, como aqueles em que

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produziu, tal classificação é conseqüência lógica dos debatesque estavam postos para o conjunto da sociedade.

O enquadramento no humanismo liberal, às vezes, é vistode modo negativo. Álvaro Lins, por exemplo, ao comentar oconjunto que o autor produziu entre os anos 30 e 40, apontaque se trata de um universo ficcional que costuma tornar-sevago e incaracterístico “por efeito do seu otimismo, do seu in-vólucro cor-de-rosa”4. Outras vezes, o liberalismo, traduzido porliberdade, rende elogios. Otto Maria Carpeaux enquadra-senessa vertente da crítica, destacando a identidade que se estabe-lece entre a expressão liberal de Verissimo e o anseio do povobrasileiro, “anseio tão profundo que (...) até os mortos estão fa-lando dela e sonhando com ela: é a liberdade”5

Ao insistir nas posições ideológicas do autor, a crítica deixade ver que, por trás delas, estão as soluções estéticas que os ro-mances de Verissimo propõem, buscando, justamente, fugir dasarmadilhas do esquematismo ideológico em que facilmentepode escorregar o romance histórico. Tais riscos decorrem nãoapenas das marcas prévias de que são constituídas as referênciashistóricas, como das marcas próprias que lhes pode dar o ro-mancista. Ora, a marca, no sentido de partidarismo, é um pas-so para o fechamento ideológico e para o discurso de caráterpanfletário. Esses são os riscos que a matéria histórica colocapara o romancista. No caso de Verissimo, há uma complicaçãosuplementar representada pelo quadro que encontra no perío-do em que produz.

Nos anos 30, quando surgem suas obras iniciais, o roman-ce brasileiro desdobra-se em, pelo menos, três vertentes repre-sentativas. Uma delas é assinalada pelo experimentalismo for-mal, ao modo de Oswald e Mário de Andrade. A outra é a que

4. LINS, Álvaro. Sagas de Porto Alegre. In: Os Mortos de Sobrecasaca. Porto Alegre, Mercado Aberto,1981, p. 43.

5. CARPEAUX, Otto Maria. Erico Verissimo e o Público. In: O Contador de Histórias. Porto Alegre, Glo-bo, 1972, p. 39.

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propõe a indagação sobre os estágios interiores, psicológicos doser humano, casos em que se enquadram Lúcio Cardoso e Cor-nélio Pena. A terceira vertente registra a ficcionalização de uni-versos que, com maior ou menor propriedade, classificam-se noâmbito do regionalismo, tal como se constata em nomes comoGraciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.

No Rio Grande do Sul, a linhagem de cunho regionalista,mantendo arraigada tradição, permanece, na primeira metadedo novecentos, como dado relevante da produção literária. Nes-se período, embora surjam revisões relativas ao trato grandilo-qüente do passado, a literatura sulina ainda dá crédito à figuraentronizada do gaúcho, considerando-a, a partir do ícone debravo guerreiro, como autêntico tipo representativo do povorio-grandense. O mito composto sob inspiração romântica noséculo XIX revive, de modo particular, sob a égide da gauchiza-ção do Brasil aurida pelos revolucionários getulistas de 1930.

A crescente ficcionalização da História que a obra de Veris-simo apresenta a partir dos anos 30, encontra certas dificulda-des diante do panorama esboçado. Em nível nacional, depara-se com uma crítica que, diante do pendor histórico dos enre-dos, busca julgar sua obra a partir de princípios ideológicos. Jáem termos rio-grandenses, o problema é encontrar o tom quesuplante o apelo ideológico verificado em produções preceden-tes, sem cair num ideologismo oposto.

O autor de O Tempo e o Vento soube equacionar tais ques-tões. Um exame distanciado de sua obra, como hoje é possívelfazer, permite concluir que o seu mérito radica na opção pri-meira que fez pela ficção, a cujo funcionamento soube subme-ter, com técnica e criatividade, a matéria histórica. Depois de sereconhecer esse aspecto e de colocá-lo antes de qualquer outro,pode-se até concordar em classificar o autor como um humanis-ta liberal. Mesmo porque, se, como sugere Lukács (op. cit.) o ro-mance histórico faz ver as grandes questões do tempo de produ-

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ção, não é exagero levantar-se que a liberdade, em termos hu-manistas, como destaca a referência anterior de Otto Maria Car-peaux, é uma das grandes questões da época em que Verissimoproduziu.

É preciso lembrar que o romance, desde os primórdios deseu desenvolvimento moderno, a partir do século XVIII, deba-teu-se entre o modo enunciativo assumido por sua forma pro-saica e o caráter poético necessário para que pudesse funcionardo ponto de vista estético. É evidente que o trato da Históriapossui naturalmente um caráter enunciativo. Verissimo buscadar-lhe, justamente, a dosagem poética a partir dos pontos quedestacamos: fuga da linearidade própria do relato históricocom a proposta de integrar, em seus romances, fatos da realida-de contingente com universos diegéticos e extradiegéticos, bus-cando resgatar sentidos que substituam o congelamento do pas-sado pelas cores vivas do presente.

Tudo isso concorre para que o autor retire da matéria his-tórica os melhores resultados literários. Nesse sentido, O tempo eo vento, cujo lançamento completa 50 anos, é exemplar, porque,a partir do recorte sul-rio-grandense monta um processo inte-grativo que, do micro para o macrocosmo dialoga com as gran-des questões do século, não apenas em relação ao Brasil mas àprópria sociedade ocidental.

* Doutor em Letras, Coordenador do Mestrado em Letras, UFSM.

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“Ó mundo horrível dos grandes / que cheiravam a sangue de boi / a sangue de homem / a suor decavalo / a sarro de cigarro de palha.”

O Arquipélago – Caderno de Pauta Simples

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O Retrato e a Identidade

O r l a n d o F o n s e c a *

Bota o retrato do velho, outra vezBota no mesmo lugarO sorriso do velhinho faz a gente trabalhar.

Haroldo Lobo e Marino Pinto

Seguindo a indicação do título dado por Erico Verissimo àsegunda parte de sua trilogia de O Tempo e o Vento, há dois mo-mentos significativos importantes para a leitura de O Retrato, noque concerne à configuração do espaço ficcional e a remissãoaos eventos históricos ou regionais. Ainda que trate de envolverpersonagens com aspectos da história nacional, 1910 a 1945, efundar o ambiente da fictícia Santa Fé em elementos caracterís-ticos do meio rural gaúcho, não se trata de um romance histó-rico, stricto sensu, ou obra regionalista, à maneira da produçãocaracterísticas da geração de 30. Entretanto, uma leitura esqua-drinhada dos eventos ficcionais, mais do que a presença de da-dos históricos propriamente, produz a descoberta de aspectosimportantes para se visualizar um julgamento da História brasi-leira recente.

O primeiro momento apontado, no quadro alegórico quese pretende destacar como revisão histórica do romance de Eri-co, aparece já nos primeiros parágrafos, quando o proprietário

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da Casa Sol sai para a rua com um quadro debaixo do braço, e,dirigindo-se a um “mulato”, exclama: “Este é o dia mais feliz daminha vida!” E então quebra o quadro na quina da calçada, ras-gando em pedaços o retrato do ex-presidente, que não é indica-do, mas, pelas evidências que seguem na narrativa, trata-se deGetúlio Vargas. Com uma fúria “que o deixava apoplético”, naspalavras do autor, depois do gesto de soltar os pedaços da fotoao vento, num gesto dramático, acentua: “Este é o fim de todosos tiranos!” Na seqüência, o “mulato”, dirigindo-se ao comer-ciante, sentenciou: “Deixe estar, um dia esse retrato volta praparede. Os milicos derrubaram o Velho, mas ele caiu de pé nosbraços do povo!”1

Importante destacar nessa cena composta por Erico, emque se confrontam na rua dois emblemas do quadro social vi-gente: o proprietário de uma loja, representando uma pequenaburguesia emergente, e um representante da minoria étnica, oestrato popular originário da miscigenação, os quais esboçamduas reações distintas, diante da situação política de crise, dedesencanto ou de expectativa. Reações que aparecem contradi-tórias também nas referências que seguem à apresentação dofato citado: na discussão que se originou, insultado, o proprie-tário da loja agrediu violentamente o mulato, que foi arrastado,então, por dois desconhecidos rua abaixo, no entanto sem secalar, repetindo aos brados: “Viva o nosso Presidente! Viva o Es-tado Novo!”. Em pichações, no muro à frente da Casa Sol, amesma contradição: “Queremos Getúlio, resíduos da campanha“queremista”2. Logo abaixo, em garranchos brancos: Viva Pres-tes! Morra o fascismo! E, entre a foice e o martelo, um molequegravara no reboco, a ponta de prego, um nome feio”. (p. 4)

1. VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento. Porto Alegre: Globo, 1985, v. 2: O Retrato, p. 4. Todas as re-

ferências à obra serão retiradas desta edição, mencionadas no corpo do texto, seguidas apenas

do número da página.

2. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995, p. 385.

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O outro momento relacionado mais especificamente como plano temático da obra é o retrato de Rodrigo Cambará, apersonagem protagonista, aos vinte e quatro anos, feito pelopintor espanhol Don Pepe. Esta era tida, pelos moradores deSanta Fé, “para todos os efeitos o Retrato, com R maiúsculo”, oqual representava uma espécie de referência turística, pois,quando chegava algum forasteiro, a primeira coisa que pergun-tavam era: ‘Já viu o Retrato’?”(p. 28) Erico Verissimo, na com-posição das falas do pintor, deixa indícios de uma insinuação,em metalinguagem, desse propósito transversal ao percurso danarrativa:

Quando tive na minha frente o modelo e a tela vazia, pensei: DonPepe, esta vai ser a grande obra de tua vida. Mas não pintes ape-nas o corpo de Rodrigo, pinta também sua alma. Não fixes ape-nas este momento, mas também o passado e o futuro. (...) O re-trato é profético, é mágico, porque dentro dele está tudo: Don Ro-drigo aos vinte e quatro anos, seu passado, seus antepassados etambém o futuro com todas as suas vitórias e derrotas... (p. 31)

No retrato de Rodrigo, configura-se uma personalidade po-lítica identificada com uma identidade nacional, pois este tre-cho, situado temporalmente no momento presente da narrati-va, em que os fatos importantes serão recuperados em flash backmarca o retorno de Rodrigo, envelhecido e doente, depois deter estado no Palácio Guanabara como amigo e assessor do Pre-sidente Vargas, já deposto. O pintor, também decadente, refere-se a uma dupla identidade do representado em sua obra, : “DonRodrigo nunca saiu de Santa Fé. Me refiro ao Rodrigo verdadei-ro, o do Retrato. (...) Esse que chegou do Rio é o fantasma dooutro.” (p. 29) Planifica-se desse modo a configuração típica daalegoria, na qual subsiste um referente imediato e explícito, oretrato de Rodrigo, e uma remissão latente que perdura na de-cifração secundária, mas não por isso menos importante, emque o retrato do Velho, Getúlio Vargas, emblematiza a época

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histórica nacional e seu conseqüente julgamento crítico. “Estátudo lá no quadro. Vai a ver. Tudo: a glória, sua carreira, suasviagens, a Revolução de 30, o Estado Novo, as mulheres que eleamou, e também este final desastroso...”(p. 32), são as palavrasdo pintor, que intensificam esse sentido oculto da obra.

1 – A moldura

Tendo iniciado a composição de O Tempo e o Vento com a in-tenção de constituir um único volume, ao final da redação de OContinente e logo após sua publicação, Erico compreendeu queseria necessário articular a saga em uma trilogia. O segundo vo-lume, O Retrato, trazia o propósito de apresentar o bisneto doCapitão Rodrigo, “representando a urbanização e intelectuali-zação da família Cambará”3. Publicado em 51, começou a serelaborado “em janeiro de 1950, em Torres, e continuado emPorto Alegre, em sua casa, na sala de jantar, cercado de volumesdo Correio do Povo”.4 Esse período coincide com o da campanhaeleitoral que reconduziu Getúlio Vargas ao poder pelo voto. Osversos da epígrafe do presente ensaio foram tomados da mar-chinha “Retrato do Velho”, o maior sucesso do carnaval de 51.A letra da canção composta por Haroldo Lobo e Marino Pintotem como mote o fato de que, durante a vigência do EstadoNovo, instituiu-se como prática a colocação de retratos dos pre-sidente nas paredes das repartições públicas. “Em 1945, Vargassaiu e saíram também os retratos. Veio então sua vitória na elei-ção presidencial de 1950 (...) a volta do líder ao poder é simbo-

3. BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Erico Verissimo. Porto Alegre: L&PM/EDIPUCRS,

1995, p. 136.

4. idem, ibidem.

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lizada pela volta dos retratos às paredes”.5

A mesma motivação impele Erico a compor o quadro emque Rodrigo assume a luta política, primeiramente em sua cida-de, e, posteriormente no governo Vargas, sem que esta parte te-nha representação efetiva na trama romanesca. É pelo mote do“retrato” que o autor resgata os elementos históricos que compa-recem nesta parte de O Tempo e o Vento, servindo, literalmentecomo suporte da configuração da protagonista, e subsidiariamen-te como uma visão crítica do Estado Novo, tanto em sua gestação,como em sua efetivação não nomeada. Verifica-se, a propósitodisso, um lapso não narrado de 1915 - coincidindo as mortes dePinheiro Machado, assassinado, e da personagem Toni, comquem Rodrigo teve um affair, levando-a ao suicídio - a 1945,quando aparece outra coincidência entre ficção e História: Ro-drigo retorna doente a Santa Fé e Vargas acaba de ser deposto.

Embora o contexto contemporâneo à produção da obraseja o do retorno de Vargas ao poder, o período histórico emque transcorre o universo ficcional começa na crise da Repúbli-ca Velha e a implantação do Estado Novo. Ao lado de um pro-gresso industrial importante, as primeiras décadas deste séculonão assistiram a uma ascensão do capitalismo urbano, mas o do-mínio da velha oligarquia rural, que se tratou de manter sobsuas rédeas o regime político, com o predomínio do “coronelis-mo”. Segundo Luiz Roberto Lopez, “a inexistência da JustiçaEleitoral, o voto aberto e a falta de mecanismos eficazes de con-trole asseguravam a mais absoluta impunidade para a domina-ção política do latifundiário”6. A fraude era comum, pois eraum procedimento natural o camponês votar de acordo com aindicação do dono da terra, em articulação com o governadordo estado. Como não havia políticos nacionais, predominavam

5. SEVERIANO, J. & MELLO, Zuza H. de. A canção no tempo – 85 anos de músicas brasileiras. vol. 1.

São Paulo: Editora 34, 1997, p. 284.

6. LOPEZ, Luiz R. História do Brasil contemporâneo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, p. 44.

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os Partidos Republicanos estaduais, máquinas que “assegura-vam a unanimidade em eleições”7. Nesse estado de coisas, o re-sultado de eleições nacionais estava diretamente relacionadoaos interesses das duas maiores oligarquias do país, a produçãocafeeira de São Paulo e a produtora de gado leiteiro de Minas –daí a chamada “política café-com-leite”. Na campanha civilistade 1910, houve a primeira divisão política, pois Minas se juntouao Rio Grande do Sul, liderado por Pinheiro Machado, apoian-do o Marechal Hermes, contra Rui Barbosa.

No período da República Velha, o setor militar não tevemuita participação, até o advento do tenentismo, em 1922. Oexército começa a ter participação mais efetiva entre 1910 e1914, durante o governo de Hermes da Fonseca, especialmentecom intervenções no nordeste, para neutralizar as oligarquiaslocais, que militaram a favor do candidato civil. No entanto,essa não teve maiores repercussões. A política das oligarquiascomeça a mudar no período de 1914 e 1918, com a I Guerra naEuropa, que favoreceu a industrialização nacional, o que provo-cou o aumento da população operária urbana. Junto com essedado, “a influência anarquista e ainda o impacto da RevoluçãoRussa de 1917 deram início a um período de greves de massaem São Paulo”.8 Com isso começaram as perseguições aos traba-lhadores e às sociedades anarquistas, no início dos anos 20. Em22, substituindo o anarquismo na condução do movimento ope-rário, surgiu o Partido Comunista, que junto com o “tenentis-mo”, formaram umas das principais forças políticas e ideológi-cas antecedentes à Revolução de 30.

Agravou-se o quadro de cisão entre os setores civis e milita-res nos anos entre 1919 e 1922, período da presidência de Epi-tácio Pessoa, contribuindo para a instabilidade do regime repu-blicano. Em 22, com a campanha eleitoral, mais uma vez o pro-

7. Idem, ibidem, p. 45.

8. Idem, ibidem, p. 49.

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cesso transcorreu num clima de tensão, uma vez que alguns es-tados formaram a “reação republicana” para garantir a candida-tura de Nilo Peçanha, contra o candidato governista, ArthurBernardes, que acabou vencendo as eleições. Embora o podercivil tenha explorado ao máximo o descontentamento dos mili-tares para atacar o governo, foi da parte dos militares que a rea-ção teve conseqüência efetiva: em julho de 1922 aconteceramdiversas revoltas patrocinadas pelos jovens oficiais, fazendo sur-gir o “tenentismo”, cuja representante histórica mais ilustre é afamosa “Coluna Prestes” de 1924.

Em 26, assumiu Washington Luís, no último conchavo vito-rioso da política café-com-leite. Este, no entanto, não conseguiusolucionar os graves impasses da conjuntura nacional; o PartidoComunista teve uma atuação importante às vésperas da Revolu-ção de 30. Em meio às crises, era intensa a articulação política:em São Paulo, criou-se o Partido Democrático, reunindo seto-res da burguesia e classe média, com um programa de reformasliberais; no Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas patrocinou umacordo entre o Partido Libertador e o Partido Republicano, oque se demonstrou importante para os eventos que levaram àRevolução de 30.

Em plena campanha eleitoral, a crise mundial de 1929 le-vou o setor cafeeiro, endividado, a apelar para o governo, quepreocupado com seu plano de estabilidade cambial, recusouajuda, gerando um descontentamento nos produtores paulistas.Embora a ala política tradicional tivesse aceitado a derrota, umageração de políticos novos, tendo à frente Getúlio Vargas, Flo-res da Cunha, Osvaldo Aranha, Lindolfo Collor, e outros, can-sada das fraudes eleitorais, decidiu impedir à força a posse, mar-cada para novembro daquele ano, do candidato oficial, JúlioPrestes, eleito em março de 1930. Reforçada pela adesão dos te-nentes, a revolta teve como base um movimento regional, par-tindo do Rio Grande do Sul, Minas e Paraíba, na qual se deu o

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estopim do movimento, com o assassinato de João Pessoa, em26 de julho.

O período que se inaugura neste momento histórico tem amarca das contradições que caracterizam o país desde então. Oregional e o nacional se apresentam na dicotomia que se confi-gura com o caráter da revolta:

Getúlio Vargas deslocou-se de trem a São Paulo e daí seguiu parao Rio, onde chegou precedido por 3 mil soldados gaúchos. O ho-mem que, no comando da nação, iria insistir no tema da unida-de nacional, fez questão de fazer transparecer, naquele momen-to, seus traços regionais. Desembarcou na capital da Repúblicaem uniforme militar, ostentando um grande chapéu dos pampas.O simbolismo do triunfo regional se completou quando os gaú-chos foram amarrar seus cavalos em um obelisco existente naAvenida Rio Branco.9

Com a posse de Vargas e ascensão do populismo, chega aofim a Primeira República, marco de uma transição do Brasil ar-caico para a modernidade. No entanto, produto de uma alian-ça heterogênea, é importante destacar que “a multiplicidadedos interesses vitoriosos fez com que sérias dificuldades surgis-sem posteriormente, quando chegou a hora das grandes opçõespara resolver os grandes impasses nacionais”.10

Não se percebe na narrativa de O Retrato a evidência doquadro histórico acima referenciado. No entanto, é a ele queremete o autor quando aponta traços da personagem Rodrigo,um misto de personalidade política e dandy do interior do Esta-do do Rio Grande do Sul, origem das figuras nacionais que as-cenderiam ao poder central com a Revolução de 30. O modocomo isso se realiza, no plano da composição ficcional, é umdado instigante na leitura do romance. Enquanto na primeiraparte de O Tempo e o Vento ressalta-se a força do símbolo, como

9. FAUSTO, Boris, op. cit., p. 325.

10. LOPEZ, op. cit., p. 64.

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o “punhal” de Pedro Missioneiro que passa pela mão dos Terrae dos Cambará – figurando ao final desta segunda parte na mãodo filho mais novo de Rodrigo, um prestista ferrenho –, a tesou-ra de Bibiana11 e o vento, em O Retrato persiste a força da alego-ria: o “retrato” concentra os dois eixos de leitura da obra: o dalinearidade romanesca e o da referência ao plano histórico.Ainda que possa se verificar a presença do símbolo, segundoRegina Zilberman, como elemento integrador da trama, obser-va-se que há um modo diferente do emprego em O Continente,uma vez que se relaciona com a configuração do narcisismo daprotagonista, e não mais para “caracterizar os vínculos geracio-nais e a repetição dos ciclos vitais”.12

A distinção conceitual entre símbolo e alegoria, que se fazaqui, remete à definição romântica, especialmente em Goethe,associada à herança da retórica,13 que leva em consideração, nodado da representatividade, o universal e o particular. Segundoessa proposta, no símbolo se percebe o universal no particular,decorrendo daí uma “intransitividade” do símbolo - baseadonisso é que Erico simplesmente faz referência passageira de queo punhal de Pedro Missioneiro, o qual atravessa a narrativa de OContinente, está na cintura de Eduardo, sem a necessidade denenhuma informação adicional: a menção já diz tudo. Ao passoque, na alegoria, escolhe-se um particular para o universal, exi-gindo para a leitura alegórica uma representação coerente noplano literal, que, no entanto, deixa margem para uma segun-da leitura implícita, tão ou mais importante que a primeira ca-mada do texto. É por esta razão que se toma aqui a polissemia dosigno “retrato”, na narrativa, uma vez que o mesmo se desdobra,explicitamente, na cadeia sintagmática, como um dado da nar-rativa, na ordem dos eventos ficcionais, mas mantém uma vin-

11. Cf. ZILBERMAN, Regina. “O Tempo e o Vento: história, mito, literatura”. In: Discurso histórico e

narrativa literária. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998, p. 142.

12. idem, ibidem, p. 144.

13. Cf. TODOROV, Tzvetan. Teorias do símbolo. Lisboa: Edições 70, 1977, p. 203-223.

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culação importante, como signo de época, com o “retrato ofi-cial”, signo histórico popular à época da produção do texto, eque comporta, nas entrelinhas de sua configuração do roman-ce, um julgamento do período político enfocado.

2 – O retrato

A passagem do primeiro capítulo, “Rosa dos ventos” para osegundo, “Chantecler”, apresenta uma sutileza de construçãotemporal importante para a definição de uma relação ambíguade Rodrigo com o contexto de Santa Fé e para com o contextonacional: ao final do primeiro capítulo, anuncia-se a volta deRodrigo, depois de sua passagem pelo governo; já o início de“Chantecler” apresenta a sua chegada, mas em um recuo notempo, com um Rodrigo recém formado em Medicina, muitoantes de iniciar sua carreira política. Jovem, ambiciosa, dividida,a personagem é retratada como uma personalidade, por vezesimpulsiva (“Digam para o Titi Trindade que de agora em dian-te ele vai encontrar homem pela frente”, p. 155) diante dos ou-tros, ou vacilante diante de si mesmo (“No caminho, Rodrigoarrependeu-se do que havia feito. Será que nunca vou criar juí-zo? Traço uma linha de conduta, sigo-a durante algum tempo ede repente, sem saber como, caio no primeiro alçapão que mearmam,” p. 384). Esta última passagem, que revela uma cons-tante no auto-retrato que Rodrigo faz de si mesmo, precede depoucas páginas o relato em que o espanhol anarquista se dispõea pintar o famoso retrato: “Rodrigo, me gustaria de pintar tu re-trato de cuerpo entero... No! De alma entera!” (p. 394). O qua-dro pintado serve tanto como um reforço na auto-estima daprotagonista, quanto para intensificar a autocrítica. Rodrigo,em alguns momentos, assimila a pose que assume no retrato:

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“Havia naquela figura uma poderosa expressão de vitalidade.(...) Sim, ele se reconhecia naquela imagem: a tela mostravanão apenas sua aparência física, as suas roupas, o seu “ar”, mastambém seus pensamentos, seus desejos, sua alma”. (p. 402)

Como não se trata de um retrato à maneira do de DorianGrey, de Oscar Wilde, e na condição de recurso narrativo, per-mite que a protagonista revele a sua autocrítica, como em umespelho de imagem fixa. Em diversas situações graves, de atitu-des contraditórias, Rodrigo se vê forçado a comparar a sua ima-gem e sua personalidade: “Aproximara-se do piano, bateu dis-traído numa tecla, tornou a olhar para o Retrato e quedou-senum diálogo mental com o Outro.” (p. 515) Nesse procedimen-to de uma alteridade fictícia, Rodrigo demonstra o seu egocen-trismo, pois não há, na narrativa, a revelação efetiva de um alterego, como a presença física, concreta de sua própria imagem,com a qual busca confrontar-se: “Entre o que ele era hoje e oRodrigo do Retrato havia já algumas diferenças de volume visí-veis a olho nu. Era o diabo...” (p. 517) Nesse ponto, a preocu-pação é com o aspecto físico, uma vez que estava apaixonadopor uma garota muito mais nova, a qual, em outras ocasiões jáestivera diante do quadro a admirar a pintura. O Retrato apare-cia como um julgamento do tempo, a dizer que a personagemnão era mais o mocinho de 24 anos, no entanto, o que maispreocupava Rodrigo era a sua forma física envelhecida. Algu-mas páginas adiante, em razão do que se desencadeia com suapaixão por Toni Weber, diante do retrato ele tem uma outrareação: “Olhou para o Retrato, viu-se todo de negro, de coleteclaro, plastrão carmesim, bengala e cartola – um dandy, um gen-til-homem, um perfeito cavalheiro. No entanto tratara a esposacomo um brutamontes... Aos poucos foi se sentindo invadidopor uma fria vergonha.” (p. 520)

A forma está, aí, acompanhada de um conteúdo que reme-te à personalidade, num sentido positivo, o que, para os even-

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tos do presente, apresenta-se como uma condenação ao seu atode traição à esposa.

A visão política de Rodrigo aparece, nesse conjunto de as-pectos, como um confuso retrato que reflete a sua impetuosida-de e ausência de um corpo doutrinário consistente. Confun-dem-se interesses particulares, com uma profunda, e talvez sin-cera, dedicação ao próximo, o que, aos olhos do anarquistaPepe, é mais um indício da sua formação burguesa. Em razãodo confuso quadro político rio-grandense em que a velha divi-são entre federalistas e republicanos é posta em cheque por di-visões internas de cada facção, numa conversa com amigos, en-tre os quais um padre liberal, um militar positivista, Rodrigo faza sua profissão de fé liberal: “Pois permita que eu faça mais umavez a minha declaração de princípios. Creio nos Direitos do Ho-mem e em todas as conquistas da Revolução Francesa. Creio naliberdade, na igualdade e na fraternidade. Numa palavra: creiona Democracia”. (p. 539)

No entanto esta crença não resiste ao seu olhar particularsobre a condição do país, pois, algum tempo depois, diante deum fato arbitrário cometido pela polícia, e com as desculpas ofi-ciais apresentadas pelo presidente do Estado, ele reage, de-monstrando sua inconstância: “- A desculpa de sempre! O queacontece é que nossos governantes não toleram oposição. Nos-sa democracia é apenas de fachada. Estou farto dessa farsa!” (p.551) Voltando à discussão sobre o regime político ideal, a dis-puta entre o padre e o militar não lhe interessam a ponto dedeslocar o seu pensamento obsessivo sobre a sua paixão do mo-mento. Ou seja, o quadro político nacional não tem a dimensãoefetiva de uma luta consciente, e sempre que pode, coloca o in-teresse particular, a visão pessoal, diante da conjuntura:

Rodrigo sentou-se pesadamente. Por que o padre provocava o co-ronel? Assim não havia nenhuma esperança de que o homem secalasse. Que importava a ele, Rodrigo, a ditadura positivista, o

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Dr. Borges de Medeiros, Augusto Comte e a confusão mental doOcidente? Seu corpo ardia de desejo pelo de Toni. (p. 542)

Rodrigo chega ao ponto de usar como desculpa, no planodoméstico, a fim de dissimular seu ato adulterino, a situação po-lítica, dimensionando-a acima da sua própria consideração arespeito. O seu encontro com Toni Weber coincide com umfato político, em Porto Alegre: uma manifestação estudantilcontra a candidatura de Marechal Hermes foi dissolvida violen-tamente pela Brigada Militar. Ao chegar em casa, para justificaro fato de estar chegando àquela hora, alega à esposa que estavaàs voltas para resolver a questão, alguns quilômetros distante desua cidade:

- Onde é que andavas?- Às voltas com o Cel. Prates. Aconteceu uma coisa horrível emPorto Alegre. (p. 552)

Fruto desse temperamento que lhe infunde, ora uma visãopositiva, pelo entusiasmo quase juvenil, ora uma crítica mordaz,por sua arrogância burguesa, a visão que tem da questão políti-ca não passa de arroubos intempestivos. Mesmo depois de ouvirdos amigos uma consistente discussão desse tema, seus projetosestão arquitetados a partir de seu estado particular, diante daconquista da moça austríaca.

Rodrigo depediu-se dos amigos e entrou em casa. Agora uma es-pécie de feroz alegria apoderava-se dele. Tinha em mente umaefervescência de planos. Sim, era preciso lutar, tomar posição.Deixaria o Partido Republicano, escreveria uma carta ao Dr. Fer-nando Abbott aderindo aos democratas. Faria ali em Santa Fé earredores a propaganda de Ramiro Barcellos... Só de pensar naluta seu peito como que inflava de esperança e alegria. (p. 552)

A mistura do compromisso social com os sentimentos, quepor fim é o fundamento de um caráter político populista de Ro-

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drigo, está evidenciado com o diálogo que a personagem esta-belece com o “outro” do retrato. Diante do mesmo, admira asua própria figura, no topo de uma coxilha, “a olhar o futurocom certa arrogância”:

Tens cinco anos menos que eu, rapaz, mas não te invejo, porqueestás preso nessa tela e eu estou livre, e vivo, compreendes? Livree vivo! E, caso ainda não saibas, comunico-te que Toni é minha.E que pretendo romper com o Partido e com o Senador. Daqui pordiante sou um homem novo. O que vai acontecer não sei, nemquero saber, só sei que vai ser divertido. (p. 552)

É interessante como o autor também faz transparecer nanarrativa, o retrato que as outras personagens fazem da prota-gonista, acentuando suas contradições e ambigüidade quanto àsustentação de sua auto-estima diante da necessidade de umavida pública. O fato de, ao início da narrativa, a protagonistanão aparecer por estar preso a uma cama, torna-o inacessível,tanto aos moradores de Santa Fé, quanto aos leitores. Atravésdos depoimentos dos moradores da cidade, emerge “uma visãocontroversa do herói: um primeiro retrato, o falado, vai dese-nhando sua personalidade”.14 É muito significativo o fato de queo “retrato”, primeiramente, seja feito por um estrangeiro. Ro-drigo, inclusive, segundo a narrativa, tinha isso em considera-ção, vendo “em Pepe - apesar de tudo quanto o espanhol pudes-se ter de falso - um símbolo das coisas maravilhosas que estavampara além dos horizontes de Santa Fé, do Rio Grande do Sul edo Brasil. Don Pepe representava o Velho Mundo”. (p. 179) Émais um elemento da faceta da personagem, porque, da visãocrítica e da expectativa que Rodrigo manifesta ao longo dos ca-pítulos ressalta-se uma preferência acentuada pela realidade ex-terna, principalmente a França, em detrimento da identidade edos destinos nacionais, filtrados pela ótica da desilusão política

14. idem, ibidem, p. 143.

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e das condições locais. Planejara ir para a França, onde teriavida: “Que tinha ali em Santa Fé? A civilização da vaca, do sebo,do charque. A boçalidade, a banalidade, a rotina, a pobreza deespírito, o atraso dum século! Ou vou para Paris o ano que vemou me caso. Ou faço as duas coisas. Ou meto uma bala nos mio-los.” (p. 333) Mas é de Don Pepe também que parte um julga-mento definitivo, a partir da distinção entre a personagem reale a do retrato: “Aquel, si es mi amigo. Mi único amigo. Pero tu,tu eres un impostor!” (p. 419)

O lado político de Rodrigo aos olhos das outras persona-gens ressaltam o seu aspecto vacilante e desprovido de princí-pio. O Cel. Jairo Bittencourt, um positivista ferrenho, destacaque lhe falta uma orientação doutrinária; diz ele: “O amigo temo sentimento de justiça social. O que lhe falta é uma base ideo-lógica sólida. (...) E que melhor base existe para uma ação so-cial do que o positivismo?” (p. 252) Em outra ocasião, fazendofrente a esta avaliação do Coronel, Rodrigo tenta se justificar,fazendo uma síntese para se eximir da falta de uma doutrina,mas acentuando o seu narcisismo:

Teoricamente amava os pobres e, fosse como fosse, estava fazen-do alguma coisa para minorar-lhes os sofrimentos. Não tens ra-zão, meu caro Rubim. Podemos e devemos elevar o nível materiale espiritual das massas. Tenho uma grande admiração por Cé-sar, Cromwell, Napoleão, Bolívar: foram homens de prol, dota-dos de energia, coragem e audácia, figuras admiradas, respeita-das e temidas. Mas para mim, meu caro Cel. Jairo é mais impor-tante ser amado que respeitado e mesmo admirado. O tipo huma-no ideal, o supremo paradigma, seria uma combinação de Napo-leão Bonaparte e Abraão Lincoln. O ditador perfeito, amigos,será o homem que tiver as mais altas qualidades do soldado cor-so combinadas com as do lenhador de Illinois. O diabo é que abondade e a força são atributos que raramente se encontram reu-nidos numa mesma e única pessoa. A menos que essa pessoa sejaeu – acrescentou, um pouco por brincadeira e um pouco a sé-rio.(grifo nosso) (p. 312)

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No pasquim da situação, o jornal A Voz da Serra, um artigopublicado em resposta à provocação do próprio Rodrigo, pro-duz uma caricatura da sua assimilação burguesa, do seu dandis-mo, inadequado aos padrões provincianos de Santa Fé:

Que importância pode ter o Dr. Rodrigo Cambará (ai, doutor damula ruça!) esse mocinho pelintra que pensa conquistar SantaFé com sua “formidável” inteligência e seus dotes físicos? Ai, Ro-driguinho! Onde foi que compraste tuas botininhas de cano decamurça? E as tuas águas-de-cheiro? Quem confeccionou essasroupinhas que te fazem o “dandy” mais completo de Santa Fé?Teria sido o Salomão Padilha, teu amiguinho particular? Dizemque trouxeste de Porto Alegre muitos caixões de bugigangas, eque entre estas veio um gramofone, com chapas de Caruso. Seráque o grande tenor canta a famosa canção intitulada “IsmáliaCaré”? (...) Ouvimos também dizer que o “dandy” trouxe muitosvinhos e conservas estrangeiras. (p. 246)

Rodrigo mesmo manifesta o seu descompasso com aquelacidade atrasada, algum tempo depois, em seguida aos resulta-dos das eleições que deram a vitória ao Mal. Hermes: “Concluiuque não valia a pena sacrificar-se por aquele burgo podre. Ossanta-fezenses simplesmente não queriam ser salvos...” (p. 291)

O último julgamento de um outro olhar sobre Rodrigovem do seu pai, que mantém a dignidade inabalável dos ho-mens simples, aguerridos do tempo simbólico enfocado n’OContinente. E é com esse código que desmerece a si mesmo a fi-gura do filho, sobre o qual depositava a esperança da continui-dade da luta política nos moldes de sua geração. Diante do fra-casso no plano familiar, após as circunstâncias trágicas da mor-te de Toni Weber, em que Rodrigo tinha sua parcela de culpa,o autor constrói, com um simbolismo expressivo, a decepção deLicurgo Cambará: “No coração de Licurgo havia uma praça eno centro dessa praça um monumento: a estátua do jovem Dr.Rodrigo Cambará, homem de caráter, médico humanitário,bom filho, bom irmão, bom marido, bom pai, bom amigo. Ago-

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ra ele próprio, Rodrigo, derribara a estátua com aquela confis-são, atirara sua própria imagem ao barro”. (p. 586) O arrematefinal do quadro de Rodrigo, pintado pelos olhos dos outros,vem das palavras de seu filho Eduardo, em um discurso na fren-te do Sobrado, em defesa de Luiz Carlos Prestes, e identificaçãosimbólica com a era getulista se explicita de todo:

Se eu tivesse de escolher um símbolo de todos os defeitos e víciosdessa classe decadente, eu vos apresentaria a figura dum dessespró-homens do falecido Estado Novo, dum egoísta que, em virtu-de de sua vida de dissipações, orgias e indulgências tivesse fica-do com o coração irremediavelmente abalado e à beira da morte!(p. 608)

Floriano, na seqüência, revela-se chocado com a mençãoacintosa: “Aquilo era uma referência clara ao velho Rodrigo”.(p. 608) Depois do comício, procura o irmão para dizer-lhe queconsiderou de mau gosto o seu gesto. Eduardo então se voltapara o retrato de Rodrigo e o aponta como o símbolo das coisasque eles, os comunistas, combatem: “Olha só a empáfia, a vaida-de...” (p. 610) Como o outro falasse em voz alta, Floriano o re-preende, em face à possibilidade de o pai estar ouvindo.

3 – A identidade

O que está implicada sob esta rubrica é a noção de “identi-dade nacional”, como um esboço do Brasil que emerge, ou seinsinua através dos eventos ficcionais, constituindo uma segun-da camada no quadro pintado por Erico. Pouco resta no Dou-tor Rodrigo Cambará de seu homônimo da primeira parte datrilogia, o Capitão Rodrigo, alicerçado no código de honra dogaúcho. Caudilho urbanizado dos anos 30, alimentado no opor-tunismo político, o segundo Rodrigo não alcança a adequação

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entre o pensamento político, pretensamente liberal, e a ação.Enquanto o primeiro era um protótipo da velha tradição, o úl-timo é um emblema da situação política de sua época. “Na ver-dade, esta personagem não é mais do que uma caricatura da ti-rania getulista e, significativamente, a narrativa denuncia a suainstabilidade afetiva colocando-a no primeiro plano justamentequando, acompanhando o líder vitorioso, embarca para o Riode Janeiro”,15 assinala Flávio Loureiro Chaves, considerandoainda que esta personagem se constitui na verdade em simula-cro do antepassado.

Em várias passagens, é possível detectar os indícios dessaafinidade identitária, como alegoria. A primeira, como já se des-tacou, a ênfase sobre o “retrato”, com uma relação à imagemoficial do presidente, consagrada pela imposição do EstadoNovo. Outra expressão comum associada ao nome de Getúlio éo apelido “Velho”, usado na primeira cena, na reação de umapessoa comum ao insulto que um comerciante faz com a que-bra do retrato, expressão que praticamente se repete, pela bocade um motorista, no capítulo final: “- Mas um dia ele volta. Podedemorar um ano, dois, quatro... mas o Velho volta e essa corjatoda ainda vai beijar a mão dele.” (p. 599) Imediatamente, naseqüência da narrativa, em que Floriano se encontra com DonPepe, este revela sua impressão de que o filho é muito seme-lhante ao pai, ressalvando: “- Mas o parecido é só no físico, sa-bes? Te falta algo. Fogo. O fogo que o Velho tem no olhar”. (p.600) O adjetivo é usado em seguida para identificar, entre os fi-lhos de Rodrigo, a figura paterna. Floriano se dirige ao outro:“- Por que não esperas mais uns dois ou três dias pra fazer essecomício? O velho não está nada bem...”E logo em seguida,Eduardo também usa a mesma forma: “Se o velho não quiser es-cutar, que tape os ouvidos com algodão.” (p. 602). Nas reminis-cências que Floriano faz, a respeito de sua família, volta a se re-

15. CHAVES, Flavio L. Erico Verissimo: realismo & sociedade. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1981, p. 80.

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ferir em pensamento ao pai, com o mesmo termo, com a dife-rença que, nesse caso, o autor usa a inicial maiúscula, como ofaz para Getúlio: “Certo ou errado, o Velho vivera com plenitu-de, tivera a coragem dos próprios defeitos e desejos”. (p. 604)

Uma outra referência recorrente na obra é a identificaçãode Rodrigo, em razão de suas obras de caridade, como o “pai dapobreza”, modo pelo qual lhe adjetiva tia Vanja, depois de saberde suas atividades de médico entre os mais necessitados.(p.380) O mesmo título foi conferido a Getúlio, em razão de suapolítica populista, o que o próprio Floriano menciona: “O Esta-do Novo produzira o Pai dos Pobres”. (p. 610)

Segundo a indicação de Flavio L. Chaves, Rodrigo tem umaidentificação com o perfil ditatorial de Getúlio Vargas, de modoque a sua representação em O Retrato é feita dentro de um qua-dro em que o contexto nacional aparece na forma de alegoria.Ainda que a identificação com o presidente Vargas pontue anarrativa, a relação de Rodrigo com a realidade nacional é con-traditória, uma vez que, de resto, a própria personagem apre-senta uma personalidade multifacetada.

Dentro de seu perfil burguês, a visão que Rodrigo tem docontexto nacional, do país, é de certa forma condicionado poruma valorização do ambiente estrangeiro, especialmente daFrança, em detrimento da cultura, da natureza, dos destinos dopaís. Rodrigo não é necessariamente cético, mas, diante de seuperfil egocêntrico, elege como espaço um lugar que não é o doatraso em que se vê cercado, tanto em sua cidade natal, como oresto do Brasil. A uma certa altura da sua luta política, diantedos sucessivos fracassos pessoais neste terreno, e diante do qua-dro político nacional, contrapõe a disputa pela força à possibi-lidade de evadir-se do campo de luta, ou seja, do país: “E o pior– acrescentou – é que o Marechal mandou à Câmara uma men-sagem pedindo o estado sítio! (...) É o fim de tudo, a debaclemoral e material do País, o descalabro completo. O que as pes-

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soas decentes têm a fazer é emigrar, homem. O remédio é fazeruma revolução e derrubar esse sargentão.” (p. 408) Em seu re-torno à cidade natal, trouxe de Porto Alegre, onde cursou Me-dicina, uma série de produtos e materiais que deixam clara estapreferência pelo estrangeiro, motivo de reação dos moradoresde Santa Fé, que representam no âmbito da narrativa, o contra-ponto nativo, da resistência, tanto em relação à tradição, quan-to à identidade.

Já se disse que Rodrigo, por seu narcisismo, coloca em mui-tas ocasiões o seu interesse, o seu modo particular de ver omundo, acima de uma consideração, vamos dizer, patriótica.Não é por outra razão que Erico dá título ao maior capítulo deO retrato de “Chantecler”, personagem de Rostand, em umapeça francesa, cuja vinculação, como alegoria, faz convergir tan-to a figura de um administrador político soberano, que com-porta a identidade mais flagrante de Vargas, e o egotismo deRodrigo, com sua supervalorização das coisas francesas. Ao ma-nifestar o desejo de pintar o retrato de Rodrigo, Don Pepe jáhavia espressado, quanto ao possível nome do quadro: “Chante-cler! Si, tu eres el Gallo”. (p.395) Em diversas passagens, revela-se um apaixonado pela França, ou pela vida parisiense: “Um diahei de visitar Paris - prosseguiu, depois de breve silêncio. - Masenquanto esse dia não chegar, hei de fazer o possível pra trazerum pouco de Paris pra Santa Fé”. Tinha trazido consigo unsquinhentos livros franceses, feito a assinatura de dois anos deL’Illustration. “A França é minha segunda pátria” – emendava –“Ah! Paris... Lá é que está a verdadeira civilização”. (p. 176).

Quando da visita oficial do candidato militar às eleições de1910, Marechal Hermes a Santa Fé, a agitação, a música, fize-ram despertar uma emoção confusa na personagem, em queimagens do sentimento de nacionalidade revelam a ambigüida-de que havia muito acalentava o gosto pessoal pelo estrangeiro:

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E um passado inteiro feito de textos e gravuras escolares, discur-sos patrióticos, romances de capa e espada, hinos, heróis, márti-res, clarinadas, apoteoses; todo um passado de mitos que Rodri-go julgava mortos, ergueu-se como um vagalhão e arrebatou-o,atirando-o, por um mágico segundo, às prais da infância. Lo-mas Valentinas... Riachuelo... Itororó... Quem for brasileiro queme siga!... Com a cavalaria dos Farrapos conquistarei o mun-do!... Felipe Camarão... O estudante alsaciano batendo no pei-to: A França está aqui dentro!... O tamborzinho inglês que nãosabia tocar retirada... Ó auriverde pendão de minha terra, quea brisa do Brasil beija e balança! (p. 279)

Quando o quadro político do país se agrava, Rodrigo vaiperdendo o interesse pela luta em favor das causas nacionais, ea solução que imagina para a sua frustração política é a fuga doespaço brasileiro, embora a conjuntura internacional, com aPrimeira Guerra, imponha certos obstáculos: “Talvez estivesseprecisando de novos amigos, de outros horizontes e interesse:duma viagem em suma. Mas viajar para onde? Para a Europa eraimpossível. Os Estados Unidos, com suas chaminés a vomitar fu-maça e fuligem (...) Buenos Aires era uma cidade sem alma.Montevidéu nem chegava a ser uma cidade...” (477). Rodrigotambém encontra uma justificativa para o seu envolvimento ex-traconjugal, dentro desse quadro de oposição entre o nacionale o estrangeiro: “Toni era a Europa.” (p. 517) Diante da possi-bilidade real de derrota do candidato civilista, alimenta a suapreferência “nacional” pela França: “Os lampiões alumiavam lo-bregamente a rua. Rodrigo sentiu saudade de Porto Alegre, deteatros, cafés, cabarés e pândegas. Pensou em Paris e decidiuque em princípios de 1911 estaria dentro dum fiacre, rodandopelo Bois de Boulonge. Se Hermes fosse eleito, passaria quatroanos na Europa...” (p. 292)

Por vezes o nacional é criticado por uma revelação de pre-ferência às coisas estrangeiras: quando um disco que havia en-comendado chega quebrado, reage, com indignação: “Então es-

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ses animais não vêem que está escrito no caixão. Frágil! Frágil!(...) Mas não sabem ler. São analfabetos, irresponsáveis. Estepaís está perdido”. Ao ver que a música da outra face do discoera Miserere, fica ainda mais furioso: “Miseráveis! Cretinos! OBrasil não tem mais compostura. Só o Mal. Hermes. É o queeste país merece.” (p. 209)

Pelo que se pode observar, não é exatamente movido porum senso cívico que Rodrigo toma decisões políticas, nem se-quer por um bairrismo, no que diz respeito à sua relação com acomunidade local, santa-fezense. Diante da indagação do paiquanto à eficácia de sua campanha civilista pelo jornal, manifes-ta uma crença ingênua na retórica panfletária: “Claro que es-tou. Se não estivesse, o jornal nasceria morto”. (p. 199), defen-dendo uma posição nacional na defesa do candidato à presi-dência. No entanto, algumas páginas adiante, já revela o verda-deiro sentido de sua militância: “Sim, era médico e pretendialevar a sério a profissão, cumprir à risca o voto de esculápio.Mas o que interessava no momento - empurrando a medicinapara um plano inferior - era sua luta contra o Trindade”. (p.229,230) A compreensão da missão política de Rodrigo decorrede sua experiência a partir de Santa Fé, a qual, em muitas oca-siões, serve de referência para o julgamento do quadro nacio-nal. Ao ver uns cavaleiros chegando do interior para as eleições,condicionados pela orientação do Intendente a votar no candi-dato governista, Rodrigo, da janela de sua casa, indignado, mur-mura: “Isto é um país de botocudos. Só a bala!” (p. 288) A mes-ma avaliação, do local para o nacional, procede no caso em queele socorreu uma pessoa, e tomou partido desta, em razão de amesma ter sido agredida ao dar um “viva” ao candidato Rui Bar-bosa: “Vejam o que o beleguim fez neste pobre homem! Issonão pode ficar assim. Vou mover um processo contra o bandi-do. Que país é este em que a polícia em vez de ser uma garan-tia de vida é um elemento de terror?” (p. 170) Mais adiante, ao

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justificar a sua atitude para Maria Valéria, que queria repreen-der os seus arroubos, expressa-se: “Deixe, titia. Não tem impor-tância... Imagine, só porque ele deu um viva ao Dr. Rui Barbo-sa... Em que país estamos? Na Cochinchina?” (p. 171) Já, em ou-tro momento, ouvindo uma discussão da conjuntura nacionalentre seus amigos, esboça um certo enfado por ela, diante doque se lhe apresenta na esfera municipal: “Não estava interessa-do naquela guerra hipotética entre a Argentina e o Brasil, massim em sua guerra particular contra Titi Trindade e seus asse-clas”. (p. 244) Em razão de um acontecimento grave nas elei-ções, historicamente fraudulentas naquela época, em que foimorto um correligionário, Rodrigo redigiu um telegrama deprotesto, a ser enviado ao Presidente da República, “acusandoo Trindade e seu delegado de polícia como responsáveis peloconflito, e exigindo justiça”. Mas a sua decepção se desenha apartir da pouca adesão dos outros membros do partido:

Saiu depois de casa em casa a colher assinaturas para o memo-rial. Todos os federalistas assinaram sem hesitar; alguns republi-canos dissidentes fizeram o mesmo; mas muitos foram os que seesquivaram, usando de subterfúgios ou dizendo claramente quenão queriam meter-se naquele embrulho. Ao fim do dia o telegra-ma contava apenas com quarenta e três assinaturas. Rodrigo,que esperara conseguir no mínimo cento e cinqüenta, estava de-sapontado. SantaFé era um caso perdido. (p. 294)

Em outras, a situação pessoal, íntima – agravada pelo nar-cisismo, condiciona uma visão positiva ou negativa do quadronacional. Nesse sentido, é muito significativo o diálogo que Ro-drigo tem com a esposa, Flora, na cama, já quase ao final da nar-rativa, quando chega em casa após o primeiro encontro comToni Weber e depois de passar na intendência para se inteirarde um ato violento da Brigada Militar contra estudantes queprotestavam contra a candidatura do Marechal. Rodrigo estavaexcitado por esses casos em conjunto, e especialmente por ter

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conseguido dissimular a sua traição diante da mulher, usando osfatos políticos como anteparo. É com esse espírito que senten-cia, ao deitar-se: “Este país não tem compostura”. (p. 552) Mui-to tempo antes, em função da derrota de Rui Barbosa, já haviarevelado a Maria Valéria os seus planos estabelecendo uma in-versão de prioridades: “Daqui por diante pretendo cuidar daprofissão, do consultório, da farmácia. O resto que vá pro diabo!(...) Palavra de honra. Esse país não tem jeito. Só uma revolu-ção”. (p. 299) Em uma festa, logo em seguida, reforça a sua de-cisão, misturando em sua idéia de conjuntura, o local e o nacio-nal: “É para comemorar a minha retirada da vida política (...)Santa Fé não merece o nosso sacrifício. Os povos têm o governoque merecem, não é Cel. Jairo? Sejamos egoístas. Bebamos vi-nhos estrangeiros e comamos caviar. A vida é curta. – Ergueu ataça”. (p. 303) Ainda no mesmo evento, sob o efeito das bebidas,desenvolve a sua tese, para dois militares positivistas, de que opaís estava perdido, para ouvir a reação deste: “Perdido qualnada! – protestou o coronel. O Brasil tinha um futuro fabuloso.”(p. 304) Já o Tenente Rubim defendia, para a redenção nacio-nal, a ditadura: “O Brasil – continuou – é um país novo e infor-me, que só poderá ser governado mediante uma ditadura de fer-ro”. (p. 305) A reação de Rodrigo ia cada vez mais se encami-nhando para o desinteresse da ação política, diante do que ocor-ria no resto do país, optando pela sua condição particular:

Rodrigo atirava longe os jornais num gesto teatral com o qualqueria dar a entender que estava não só desiludido da políticacomo também indiferente ante os resultados daquela farsa eleito-ral. Meter-se em política seria não só perder tempo como tambémfazer papel de tolo. De resto, não trocava seu prestígio de médicopela oposição do Trindade ou de qualquer deputado estadual oufederal. Sentia-se forte, feliz e de consciência tranqüila. (p. 322)

Erico Verissimo usa a mesma alegoria do “retrato” para re-presentar esta mudança gradativa de Rodrigo em relação a sua

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missão política condicionada por sua vida pessoal, o que lhe in-funde caráter muito peculiar e ambíguo com a conjuntura. Aoassumir o seu papel de dono do Sobrado, manifesta o interessede fazer modificações: “Se dependesse de mim – murmurou Ro-drigo – eu tirava também aquele retrato do Júlio de Castilhos daparede do escritório (...) Não é que eu não admire o homem...Mas acontece que esse retrato tem qualquer coisa de cemitério,de mausoléu. Temos de alegrar esta casa. Precisamos de cor!”(p. 298) Para efetivar a sua vontade, revela sua preferência porelementos estrangeiros: “Estava pensando em quadros com mu-lheres nuas – nus artísticos, naturalmente – reproduções deobras de pintores famosos como Rubens, Ticiano, Manet, Re-noir... Ah! Como ele gostaria de ter no Sobrado as sugestivaspinturas de Toulouse-Lautrec, tão típicas da galante vida pari-siense!” (p. 298)

Toda essa contradição e espírito oportunista pode ser enfa-tizado pelo modo como Erico retrata a relação de Rodrigo como senador Pinheiro Machado. Quando este visitou Santa Fé,sentiu-se orgulhoso desfilando com o mesmo pelas ruas da cida-de, às vistas de todos, ainda que ficasse em dúvida com a tenta-tiva do senador em neutralizar a sua ação local, lisonjeando-ocom a perspectiva de uma carreira nacional, “em páreos maisimportantes”:

Não sabia se devia indignar-se ou envaidecer-se ante aquelas pa-lavras. Amanhã poderia fazer o que bem lhe aprouvesse: ressus-citar A Farpa, romper fogo de novo contra a situação, atacar opróprio Pinheiro Machado... (esta idéia lhe dava uma reconfor-tante sensação de força, por mais improvável que parecesse).Agora, porém, ele, Rodrigo Cambará, simplesmente se entregavaao esquisito prazer de ser cortejado por uma figura do porte do“Condestável da República”. (p. 374)

Mais adiante, devido às transformações abruptas de suaaventura pessoal, já não tem a mesma dimensão dos eventos na-

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cionais. Ao ler um discurso do senador, teve ímpetos de lhe es-crever uma carta, solidarizando-se com a sua figura, diante dasameaças de assassinato, mas deixou esmorecer a vontade: “Ficapara outro dia – decidiu. Mas esse dia não chegou. Rodrigo es-queceu o Senador, pois Toni Weber absorvia-lhe os pensamen-tos, fazendo-o alternadamente feliz e desgraçado”. (p. 561)

Quando Pinheiro Machado foi assassinado, Rodrigo de-monstrou a sua indignação, produzindo um julgamento dopaís, a partir dos elementos do episódio: “Que estupidez! - ex-clamou Rodrigo - Uma faca comprada a um negro por seiscen-tos réis cortou a vida do maior político do Brasil! E não me ad-mirarei se o bandido for absolvido. Este país não cria vergonha,o que ele merece mesmo é um ditador da fibra do Senador prabotar a canga no pescoço da canalha!” (p. 567) No entanto, aose retirar para o Angico, em razão do suicídio de Toni, há umamudança na ordem das importâncias que empresta aos eventospessoais e conjunturais, em virtude de estar mais sensibilizado eabalado pela morte da amante. Diante da pergunta do paiquanto à sua visita inesperada, dá como desculpa o abalo pelamorte do senador, para em seguida refletir: “Sim, ele sentirasinceramente a perda de Pinheiro Machado, mas por que razãoessas palavras agora soavam como uma mentira?” (p. 585) Oque dá bem uma perspectiva do modo como a protagonista écomposta em sua dimensão particular sustentando indícios deuma visão muito especial quanto ao quadro político nacional daépoca em que é composta a sua vivência.

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4. Conclusão

Erico Verissimo, como atestam inúmeros estudos, não este-ve diretamente vinculado ao projeto nacionalista do regionalis-mo de 30. O próprio autor, em suas memórias, testemunha quenão estava no escopo do seu trabalho demarcar a condição na-cional.16 Contudo, como se pretende demonstrar desde o iníciodeste ensaio, há um Brasil que emerge das entrelinhas da nar-rativa, com um julgamento crítico de um período histórico bra-sileiro definido, tanto no que concerne ao tempo no âmbitodos eventos narrativos, quanto no que se refere ao tempo daprodução. A história, como se viu, não serve de pano de fundopara a ação da narrativa: está presente, no entanto, na forma daalegoria do “retrato”. Tanto é assim que há um lapso de tempona narrativa, nesta parte da trilogia, que não tem narração efe-tiva. A história dá um salto no tempo histórico, justamenteaquele em que o próprio Rodrigo está vinculado ao governo ge-tulista, cujos fatos só aparecerão ao nível da narrativa n’O Arqui-pélago, e assim mesmo do ponto das aventuras da própria perso-nagem protagonista, em sua experiência ficcional.

Observe-se a sugestão de Regina Zilberman de que a estru-tura narrativa de O Retrato não satisfez o autor, que assim o ex-pressou,17 justamente porque, ao contrário de O Continente, quefecha um ciclo, esta segunda parte desemboca, necessariamen-te, n’O Arquipélago, o qual representa desse modo uma soluçãode continuidade à saga. Ao invés de narrar diretamente os fatos,e proceder em sua menção uma análise crítica, o autor optoupor indiciá-los em eventos ficcionais, colocando neles toda umacarga de julgamento.

16. Palavras de Erico: “nunca morri de amores pelo regionalismo e, para ser sincero, tinha e ainda

tenho para com esse gênero literário as minhas reservas, pois acho-o limitado e, em certos ca-

sos, com um certo odor e um imobilismo anacrônico de museu”. Solo de clarineta. Porto Alegre:

Globo, 1974, p. 288.

17. Idem, ibidem, p. 306.

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Não é possível afirmar que Erico tenha tido alguma in-fluência da letra da marchinha de carnaval “O Retrato do Ve-lho”, ainda que revele ter começado a produzir O Retrato empleno carnaval de 50 – a referida canção é de 51. Que tenhaacrescentado este dado posteriormente também não é possívelidentificar, mas é certo, pela estrutura da obra, que o “retrato”é o ponto nodal, sustentáculo dos eventos narrativos, assimcomo a era Vargas pode ser resumida pela presença do seu re-trato, tanto nas paredes dos gabinetes oficiais, como nas das ca-sas particulares e estabelecimentos comerciais dos anos 30 - 45e posteriormente, 51-54. Erico teve, seguramente, a mesma ins-piração que os letristas da marchinha, na recuperação da fasegetulista do Estado Novo, em razão de ser “o retrato” uma mar-ca definitiva do culto ao personalismo que reconduz Getúlio aopoder, com uma plataforma populista. Nesse último caso, o sen-so crítico está acima da propaganda, que é o motivo central nocaso da composição da referida música.

Moldado pelo mesmo caráter público, Rodrigo aparececomo uma cópia de Vargas, sendo representado na ficção comoum participante em seu governo. Em se tratando apenas destaparte específica da trilogia, O Retrato, a sua composição nãocomporta a recomposição da História brasileira, o que implicaum valor alegórico da personalidade ficcional central da narra-tiva e os eventos em que está envolvido. Erico não estaria maissob os efeitos da censura do Estado Novo em 50, quando come-ça a escrever O Retrato, contudo propõe-se a uma revisão da His-tória, como pano de fundo dos eventos do plano fictício, justa-mente de um momento histórico cujos atores estão outra vez nopoder. Para isso lança mão da alegoria, configurando em Rodri-go Cambará os traços de caráter e ações políticas contraditóriasque pretendia enfocar no próprio Getúlio dos anos 30. Os even-tos políticos, propriamente, deste, não estão explicitados nanarrativa em questão, e só vão aparecer na seqüência da trilo-gia, que Erico começa a produzir em fins de 57.

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O autor só conseguiu trabalhar, segundo seu testemunho,os eventos históricos de 1923 a 1945, depois de um distancia-mento físico do país, cumprindo missão cultural na OEA. Nosdados que constam de seu acervo, esse período seria “o mais di-fícil de escrever, o mais perigoso e por tudo isso o mais fascinan-te”.18 Erico fugiu de representá-lo em O Retrato, recheando otexto da narrativa com longas digressões das personagens sobrea realidade cultural, tertúlias e debates ideológicos, que desfi-guram a trama, impondo ao projeto ficcional o caráter frouxoe pouco consistente – na comparação com as duas outras partes– na avaliação dos críticos e do próprio autor.19 Onde o escritorencontra refúgio e se sente seguro para revisar os eventos quemarcaram a história nacional do Estado Novo é na alegoria, naqual persiste um distanciamento entre o conteúdo explicitadona trama e o conteúdo latente, para usar um termo do concei-to freudiano de trabalho onírico, para o qual Erico remete a suaavaliação e julgamento dos aspectos históricos vislumbrados nouniverso fictício em que se move Rodrigo Cambará.

Na acepção de Walter Benjamin, que aqui, contudo, nãosegue numa acepção estrita, a alegoria empreende a façanha decompor possibilidades não constituídas da História, revelando asua facies hippocratica. E isso com a missão de superar a censura.20

Talvez, neste caso do autor de O Tempo e o Vento, não fosse a cen-sura oficial da ditadura Vargas, já um pouco distante, que o im-pedisse de ser explícito, mas uma auto-censura em relação aoprojeto de recompor a história rio-grandense e dimensioná-lanacionalmente, sem que para isso trouxesse a antipatia de patrí-cios, tanto do sul como do centro-norte do País – vide a afirma-ção de Rodrigo com relação a Pinheiro Machado que defendiaa candidatura de Hermes da Fonseca: “O que eu temo – disse

18. Erico Verissimo. In: BORDINI, M. da Glória. op. cit., p. 140,141.

19. ide, ibidem, p. 138,139. Vide Solo de clarineta, ed. cit., p. 306, e .

20. BENJAMIN, W. Documentos de cultura: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1986, p. 22.

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Rodrigo – é que o Senador Pinheiro acabe chamando sobre oRio Grande a antipatia do resto do Brasil”. (p. 415) Só assim ob-teve segurança para poder revelar, seguindo o conceito benja-miniano, a verdadeira face, ou melhor a caveira,21 da Históriabrasileira. Esta, vivida nos anos que transcorreram após a Revo-lução de 30 e durante a implantação e vigência do Estado Novo,com tudo o que houve de contraditório neste, se assemelha aoquadro em que um tipógrafo é convencido à força a trabalharno jornal de Rodrigo. Diante do pobre rapaz, que tem compro-misso com o inimigo político do patrão, Rodrigo declara, como revólver em punho: “Estamos num país livre, onde cada qualfaz o que bem entende. E você vai trabalhar por bem ou pormal”. (p. 224)

* Doutor em Letras, UFSM.

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21. “A história, com tudo o que desde o início ela tem de extemporâneo, sofrido, malogrado, se ex-

prime num rosto, não, numa caveira”. idem, ibidem.

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“A paisagem era civilizada, mas os homens não. Tinham rudes almas, sem complexidade, e erammovidos por paixões primárias.”

O Continente – A Teiniaguá

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A Imigração Alemã emO Tempo e o Vento

L ú c i o K r e u t z *

Em princípios de 1833 Santa Fé foi sacudida por uma grandenovidade: a chegada de duas carroças conduzindo duas famí-lias de imigrantes alemães, as primeiras pessoas desta raça a pi-sarem o solo daquele povoado. Os recém-chegados acamparam nocentro da praça, e em breve toda gente saía de suas casas e vinhabombear. (O Continente, p. 248).

Ao examinar a maneira como Erico Verissimo retrata a imi-gração alemã em O Tempo e o Vento, parece-me oportuno explici-tar previamente alguns aspectos que, em meu entendimento,influenciaram o autor na sua concepção do romance e do papelque atribuiu à imigração. Da mesma forma, também apontopara algumas dimensões relacionadas com o tema e que certa-mente condicionaram o foco de interesse de minha leitura. Tra-ta-se de esclarecer pelo menos em parte que conjunto de fato-res deve ter levado o renomado escritor a traçar determinadoperfil dos imigrantes alemães no Rio Grande do Sul e que mo-tivações e filtros levaram-me a perceber e a deixar de perceber

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ênfases do autor. Tanto o escritor quanto o leitor exercem suacriação e leitura a partir de um contexto específico, com umconjunto de elementos que permitem ênfases, condicionam si-lêncios. No presente caso minha tarefa é bastante complexaporque o escritor, reconhecido pela sua acurada sensibilidadeartística, pode ter criado sentidos e matizes talvez nem semprepercebidos na leitura.

Em relação a meu ponto de vista, isto é, um certo referen-cial que me conduz na leitura, entendo que a identidade étnicanão é uma realidade muda. Ela é uma das instâncias fortes noengendramento do processo histórico, mesmo quando margi-nalizada no imaginário nacional. Em cada grupo étnico há umahistória de lutas pela determinação de suas metas e valores. Noentanto, o étnico não é algo constituído e estável, mas é funda-mentalmente um processo, um eixo desencadeador de conflitose interações (Betancourt, 1994; 1997). Etnia, o pertencimentoétnico, perpassa os símbolos de uma sociedade, sua organizaçãosocial, de forma semelhante ao que Scott (1990) afirma em re-lação ao gênero. Isto significa que o processo histórico é etnici-zado, atravessado pela etnia. A sociedade caracteriza, classificae decide sobre o espaço dos grupos étnicos, fazendo-o com dis-putas e conflitos.1 Talvez seja mais apropriado dizer que a dinâ-mica dos grupos étnicos, suas afirmações e reações, interferemna reconfiguração do processo social. Isto quer dizer que as es-tratificações e divisões feitas em termos de etnia também sãofundantes na dinâmica social.

Não parece adequado falar em identidade étnica, poispode ensejar a compreensão de que o étnico é algo constituído,pronto, estável. Ao contrário, ele é algo em constante reconfi-guração, é um processo identitário. E esta reconfiguração pro-cessa-se mais rapidamente em situação de contatos interétnicos

1. A este respeito veja-se estudos de Epstein, Sutton, Blumer, apud Pujadas (1993).

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mais freqüentes.2 Por outra, o processo identitário de um grupoétnico também não se articula apenas a partir de dentro do gru-po. Há aí também o concurso da nominação, isto é, os gruposétnicos também vão internalizando em seu processo identitárioa forma como são nomeados e caracterizados pelas outras et-nias.3 O processo identitário implica também um processo rela-cional.

Quanto aos referenciais de Erico Verissimo para traçar suacompreensão da imigração alemã em O Tempo e o Vento, certa-mente é oportuno lembrar que elaborou o romance entre 1947-1962 e, segundo depoimento seu, já vinha alimentando estaidéia desde 1935. Em 1947 Erico já havia convivido com descen-dentes de imigrantes, tinha amigos entre os mesmos e sua espo-sa Mafalda Volpe, filha de Emma Halfen Volpe, também tinhaascendência alemã. Em 1941, passou três meses nos EstadosUnidos da América e de 1943-46, indisposto com a DitaduraVargas, viveu nos Estados Unidos, lecionando literatura em Uni-versidades e dando palestras. A partir de 1953 passou três anoscomo adido cultural da União Pan-Americana em Washington,função que lhe propiciou diversas viagens pelos Estados Unidose pelos países da América Central e do Sul. Isto significa que, aocompor O Tempo e o Vento, Erico Verissimo já havia conhecido econvivido com outros grupos étnicos, além dos do Rio Grandedo Sul, que já são bastante diversificados, como povos indíge-nas, negros, lusitanos e variado grupo de imigrantes, entre osquais italianos, alemães, poloneses, judeus, sírio-libaneses, japo-neses e outros.

Além de fatores diretamente vinculados com sua vivênciacotidiana, Erico Verissimo observava profundas transformaçõesde ordem econômico-social e política no Rio Grande do Sul. Sa-

2. Veja-se a respeito HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&AEd., 1997.

3. Veja-se estudos de Seyferth em relação à forma como foi se constituindo a reconfiguração étnicaentre teuto-brasileiros.

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bia ele pelo censo de 1920 que havia um número praticamenteequivalente de habitantes entre a metade Sul e a metade Nortedo estado, traçando-se uma linha imaginária de São Borja aOsório, excluindo-se o município de Porto Alegre. E que pelocenso de 1940 o número de habitantes da metade Norte se tor-nara 50% superior ao da metade Sul, sendo que todos os indi-cadores sócio-econômicos também apontavam para o maior de-senvolvimento da metade Norte, com exceção dos que haviamcursado ensino superior, predominantes na região Sul (Gertz,1999).

Em 1940 a população gaúcha era de 3.320.821 pessoas, dasquais 393.934, acima de 10% do total, falavam alemão em casa.Destes falantes em alemão, 375.731 já haviam nascido no Brasil(Giron, 1980). A imigração estava diretamente vinculada comestas transformações no estado e também no Brasil. A partir doséculo XIX expressivo número de imigrantes de diversas etniascontribuiu para a formação de um pluralismo étnico e culturalmais visível nas regiões Sul e Sudeste. Os alemães formaram aprimeira corrente imigratória para o Brasil, a partir de 1824,em São Leopoldo, RS. E até 1947 entraram no Brasil em tornode 253.846 imigrantes alemães, número pouco expressivo secomparado com algumas outras etnias. Os italianos, tendo vin-do a partir de 1875, formaram o contingente maior: 1.513.151imigrantes. No mesmo período vieram 1.462.117 portugueses,598.802 espanhóis, 188.622 japoneses (a partir de 1908),123.724 russos, 94.453 austríacos, 79.509 sírio-libaneses, 50.010poloneses e 349.354 de diversas nacionalidades (Carneiro,1950).4

Roche (1969) estima que o Rio Grande do Sul tenha rece-bido um total de 75.000 imigrantes alemães entre 1824-1939. É

4. Viotti da Costa (1977); Bruit (1982); Schorer Petrone (1982) e Diegues Júnior (1960;1976), entreoutros, também tratam da questão do número de imigrantes para o Brasil. Alertam que não se temestatística exata a respeito e que os números devem ser tomados como aproximação. Carneiro dizque os dados levantados por ele talvez não contemplem o número total de imigrantes, mas que emtodo caso não pecam por exagero.

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um número pouco expressivo dentro de um contexto geral deimigrantes no país. Porém o que conferiu maior visibilidade aalgumas etnias foi o fato de terem se estabelecido em núcleosetnicamente homogêneos, mantendo as tradições culturais deorigem. É o caso dos alemães, poloneses e em parte italianos ejaponeses, especialmente nos três estados sulinos. Imigrantesespanhóis e portugueses, instalando-se mais em zonas urbanas,não deram tanta ênfase à manutenção de características étnico-culturais.

Erico Verissimo, ao compor O Tempo e o Vento, tinha conhe-cimento do significado da imigração tanto no Brasil quanto naAmérica anglo-saxã, onde já vivera alguns anos. Da imigraçãoeuropéia para a América, só 24% tinha vindo para a América doSul, os outros 68% haviam ido à América anglo-saxã, aspectobem conhecido por ele.

No século XIX o imigrante ainda vivia bastante isolado noRio Grande do Sul. A liderança política e econômica provinhada região das estâncias com estrutura latifundiária. A partir doséculo XX, com a crescente industrialização e o aumento daprodução na região Norte do estado, foi-se formando, a partirdos imigrantes, uma crescente liderança econômico-social comreflexos no quadro político.

Zilberman (1982), entre outros, afirma que a partir de1930 a região da Campanha começou a perder a primazia tam-bém em termos de representação literária. O aparecimento doromance histórico, vinculado à narrativa dos episódios da colo-nização, significou a formação de uma literatura em cujo cená-rio aparece a imigração. Os imigrantes alemães foram os pri-meiros a receberem a atenção dos romancistas. Vianna Moogpublicou em 1939 Um Rio Imita o Reno, tratando diretamente daimigração alemã. Na pequena e imaginária cidade de Blumen-thal, referência a São Leopoldo, o imigrante alemão chama aatenção pela sua linguagem, pela alimentação, pelo vestuário e

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pelos hábitos. Marobin realça que as sucessivas edições deste ro-mance mostravam que Vianna Moog “havia trazido algo novopara a literatura gaúcha”. Blumenthal é apresentada como o la-boratório “onde se caldeiam os novos elementos que integrama temática urbana”, é um ponto de “intersecção de conflitos, deculturas e de raças”. O texto polemiza e seu objetivo é fazer umadenúncia do nazismo e do isolacionismo dos imigrantes ale-mães (Marobin, 1985, p. 188/9). O sucesso deste romance fezcom que Vianna Moog fosse eleito para a Academia Brasileirade Letras, em 1945.

Estas são algumas referências de contexto, importantespara se entender o momento histórico em que Erico Verissimoelaborou O Tempo e o Vento. O centro do romance dá-se em tor-no dos Terra Cambará, originários de etnia indígena e luso-bra-sileira. Mas Verissimo vai acentuando a presença dos diferentesgrupos étnicos na formação social rio-grandense no decorrerdo relato. Os imigrantes entram com um papel colateral, inten-sificando-se seu significado na medida em que o autor apresen-ta a gradativa decadência da aristocracia rural e o surgimentode uma nova dinâmica econômica e social a partir, especialmen-te, dos imigrantes.

Erico Verissimo manifesta em O Tempo e o Vento profundapercepção das transformações, do contexto histórico-social deseu tempo. Apresenta uma descrição em que processos identitá-rios e história real são misturados com a ficção, no entanto,muitos personagens e fatos reais são claramente identificáveis.Em relação aos imigrantes alemães, Gertz nos lembra que os in-cidentes referidos sobre Neu-Württemberg (hoje Panambi) du-rante a revolução de 1923 de fato ocorreram. O mesmo valepara a referência aos Brummer, a Koseritz e, principalmente, asdescrições relativas aos imigrantes alemães.

Chaves (1981, p. 119) salienta a capacidade de EricoVerissimo para, “observando um cotidiano que aparece como

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opaco e anônimo, penetrá-lo e dar-lhe um novo significado pelacriação imaginária exercendo-se mediante o reconhecimentoexplícito do mundo concreto”. Problematiza o real, realça o pa-pel significativo e ao mesmo tempo contraditório do processohistórico no qual estavam inseridos os imigrantes. Frente a umaformação social rio-grandense que tem o concurso de muitas et-nias, Erico Verissimo realçou o tema da identidade. Levou aspersonagens a dizerem como se entendem e como entendemseu mundo. O Tempo e o Vento é um romance. Pelo depoimentodado a Roche (1967, p. 725), Erico Verissimo preferia que suatrilogia não fosse considerada nem um ensaio sociológico, nemum estudo histórico, mas com “um pano de fundo tecido deacontecimentos históricos”.

Este conjunto de referências certamente ajuda a situar,pelo menos em parte, a perspectiva a partir da qual Erico traçao perfil dos imigrantes alemães em O Tempo e o Vento.

Parece-me oportuno lembrar ainda que O Tempo e o Ventode fato é uma trilogia. O Continente, escrito entre 1947-49, retra-ta a gênese da sociedade rio-grandense, sob a liderança de umaelite audaciosa e guerreira. Vai de 1745 até 1895, com ênfasesna Revolução Farroupilha, Guerra do Paraguai e Revolução Fe-deralista. Os imigrantes alemães entram em cena a partir de1833, quando duas famílias chegam a Santa Fé, e, especialmen-te, a partir de 1855, quando um grupo maior de imigrantes ale-mães funda a colônia de Nova Pomerânia, distante três léguasde Santa Fé. O Retrato, segundo livro da trilogia, escrito de 1949-51, embora inicie e termine com a deposição de Getúlio Vargas,em 1945, centra a ação principal entre 1905 e 1920, com o ce-nário político referenciado a Castilhos, Medeiros e Assis Brasil.Neste livro os imigrantes são descritos em fase de forte expan-são econômica, com presença crescente na indústria e no co-mércio. O último livro da trilogia é O Arquipélago, escrito de1959-61. Neste a narrativa parte do início dos anos 20, acompa-

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nha a revolução de 30, a ditadura do Estado Novo e fecha coma queda de Getúlio Vargas, que também abrira e fechara O Re-trato. Neste período de nazismo na Alemanha, fascismo na Itá-lia e integralismo no Brasil, os imigrantes alemães, em períodode afirmação econômica, também manifestam adesão política,quando não pró-nazismo, então pró-integralismo. É o períodoem que a presença dos imigrantes alemães torna-se alvo demaiores questionamentos por parte das lideranças tradicionaisda metade Sul, que então vão perdendo a liderança econômicae em parte política.

Daqui para a frente toda referência ao texto de EricoVerissimo não será feita em termos genéricos de O Tempo e o Ven-to, mas sempre citando o livro específico da trilogia do qual tra-to. Pressupondo que se trata de Erico Verissimo em O Tempo e oVento, citarei apenas o título do livro da trilogia com a respecti-va página. Entendo que isto facilita tanto a compreensão do pe-ríodo histórico do qual se fala quanto a identificação do textooriginal. Um motivo a mais para este procedimento é que em OContinente uso a edição Círculo do Livro e em O Retrato e O Ar-quipélago, a edição José Aguilar.

A descrição dos imigrantes.O estranhamento do outro

Em O Tempo e o Vento os imigrantes não aparecem comogrupo único nem com características iguais. O primeiro grupoestava composto de apenas duas famílias, a do artesão (seleiro)Kunz e a do agricultor Schultz, que mais tarde tornou-se comer-ciante. Foram a Santa Fé em 1833.

O segundo grupo entrou em cena em 1855, fundando a co-lônia de Nova Pomerânia. Também estes não são descritos

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como grupo totalmente homogêneo. Além da maioria pro-veniente da Pomerânia, há também alguns da Renânia e daWestfália.

A partir de então entram em cena também imigrantes deforma isolada, como o Dr. Winter, o jornalista Carl von Koseritz,representando um grupo de 1.800 Brummer, o sacristão JacobGeibel e a família de músicos Weber.

Os motivos apontados para a imigração alemã são basica-mente dois: a fuga à tributação fiscal altíssima e a miséria, compoucas perspectivas de futuro melhor na Alemanha, motivo pri-meiro dos colonos e artesãos. Outros, como o médico Winter –figura de destaque, sendo entendido como um alter-ego (outro-eu) de Erico Verissimo – e o grupo dos Brummer (liberais comformação mais acurada, dentre os quais se destaca Koseritz),que entram em cena através dos contatos do Dr. Winter, saíramda Alemanha por motivos políticos, após sua derrota nos movi-mentos liberais de 1848. No caso do Dr. Winter também concor-reu o fator de uma decepção amorosa.

A chegada das duas primeiras famílias de imigrantes ale-mães, a de Erwin Kunz e a de Hans Schultz, representa umagrande novidade e simultaneamente uma interrogação para osmoradores habituais de Santa Fé. As duas famílias tinham vindocada uma na sua carroça e estavam acampadas na praça.

Erico Verissimo teve muita sensibilidade artística e habili-dade para fazer aparecer na seqüência da cena um conjunto deaspectos típicos do estranhamento quando dois grupos étnicosdiferenciados se encontram. Está bem clara, aí, a idéia de quenormalmente se reage a partir de uma perspectiva etnocêntri-ca, isto é, caracteriza-se, avalia-se a partir do lugar cultural noqual o observador se encontra. Os costumes, o modo de ser e deagir de cada qual são a referência, o lugar a partir do qual eledirige seu olhar e emite seu parecer. E a partir deste lugar deobservação caracteriza-se o outro, cria-se parte do outro através

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da nominação, através daquilo que se pronuncia do outro. Nosestudos sobre etnia entende-se, como vimos acima, que a reali-dade étnica de determinado grupo não é apenas aquilo queeste grupo é “em si”. É também aquilo que o outro fala dele, aforma como o caracteriza. Isto significa que a nominação, o atode pronunciar e caracterizar o outro, também é constituinte daetnicidade. Sylvia Caiuby Novaes (1993) diria que as especifici-dades étnicas também vão criando cores na inter-relação e noestranhamento que os grupos diferenciados têm uns em relaçãoaos outros. A “identidade étnica” estaria se construindo numprocesso de nominação, de “jogo de espelhos”.

Voltando à praça de Santa Fé onde estavam acampadas asduas famílias de imigrantes, sendo que nenhuma delas “pareciafalar ou entender em português”, percebemos uma dinâmicade reação entre os “continentinos”, isto é, os habitantes tradi-cionais da Província, que se torna mais clara com as referênciasacima.

Os imigrantes são descritos como pessoas louras, “aquelacoleção de caras brancas, cabeleiras ruivas e douradas, olhosazuis, esverdeados e cinzentos” (O Continente, p. 248). ErwinKunz é visto como “o alemão alto, magro, de rosto vermelho esardento” (ibidem). E os filhos do Schultz tendo “fisionomiasvagas e sardentas, coroadas de cabelos que mais pareciam bar-ba de milho”.

Helga, a filha de Kunz, tinha “olhos dum azul vivo e limpoe cabelos tão louros que pareciam polvilhados de ouro”. Al-guém comentava: “tem cara de imagem”, outro observava que“era duma boniteza engraçada”. Helga Kunz, “tão branca e de-licada”, usando chinelos de couro, falando outra língua, vestin-do-se de uma maneira diferente, contrastava com as mulheresdo lugar, “de cabelos e olhos castanhos ou negros – criaturas defeições bem marcadas” (O Continente, p. 248).

Na observação do Pe. Lara aventa-se o possível imagináriodestes colonos: “como deveriam achar estranho ficarem sob o

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governo dum homem como o coronel Amaral e como lhes deve-riam parecer rudes as caras barbudas e morenas dos homens daprovíncia e bárbara a língua que falavam”(O Continente, p. 248).Mas o Pe. Lara, por sua vez, também entrava neste “jogo de espe-lhos” e se perguntava: “seriam protestantes?” E a paraguaia Ho-norina, em contraposição a Helga, “saiu do rancho e estava des-calça” (O Continente, p. 249/53). O impacto inicial do diferentefoi cedendo espaço para novas percepções na medida em que seestabeleciam as relações entre os dois grupos. Assim, ao anoite-cer já havia informações positivas sobre as duas famílias, observa-va-se que Kunz e Schultz falavam um pouco de português.

Uma das características marcantes atribuídas aos imigran-tes alemães é sua dedicação ao trabalho, o que já era um dosmotivos da preferência do Governo, a partir do Império, paraconvidá-los a imigrar ao Brasil. A laboriosidade e o espírito or-deiro dos mesmos entraram forte no imaginário popular. EricoVerissimo realça-o freqüentemente. Um dos momentos destacaracterização está na descrição da família Schultz na lavoura:“estavam todos na lavoura, menos a mãe, que decerto tinha fi-cado em casa com o filho de colo a preparar o jantar para suagente”. Enfatiza também que os imigrantes Schultz viviam quie-tamente a sua vida, “trabalhavam de sol a sol, desde o filho maismoço, de oito anos, até o velho Hans”. O capitão Rodrigo en-contrara na estrada o “batalhão dos Schultz que ia para o traba-lho. Cada um levava sua enxada e uma lata de comida. Iam to-dos de tamancos e tinham nas cabeças chapéus de palha de abaslargas”. (O Continente, p. 254). E ainda: “Naquela madrugada,mal o sol começava a raiar, lá se iam eles para a lavoura, falan-do muito alto a sua língua doida, e dando grandes risadas”.

Ante este contraste de vida com a de Rodrigo, este tentavajustificar-se, “afinal de contas, eles eram estrangeiros e tinhamvindo com a intenção de encher os bolsos de dinheiro para de-pois voltarem para sua pátria” (O Continente, p. 254).

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Porém, ao ver a primeira vez a família Schultz em plena ati-vidade, Rodrigo parou, admirou e ficou confuso:

Aquilo era até bonito (...) Era bom a gente ver aquelas gentes depele clara e roupas de muitas cores inclinadas a virar a terra,com a cara escondida pela sombra dos chapéus. (...) Toda a fa-mília tinha parado de trabalhar, voltava-se para Rodrigo e, ti-rando os chapéus, acenava-lhe (...) E de repente, sem ele mesmosaber por quê, sentiu um nó na garganta e uma vontade de cho-rar. Ficou com raiva de si mesmo e meio ressentido com aquela‘alemoada do diabo.’ (O Continente, p. 254/5).

E o Padre Lara, pressentindo que iria rebentar a guerra ci-vil e “vendo a família de Hans Schultz passar em fila indiana, devolta do trabalho a cantar uma cantiga alemã”, refletiu: “essessim é que são felizes” (O Continente, p. 256).

As referências à laboriosidade dos imigrantes alemães con-tinuam em O Continente a partir das narrativas referentes a 1855,quando o Governo da Província autorizara o estabelecimentode uma colônia de imigrantes pomeranos a três léguas de San-ta Fé. Fundando a colônia de Nova Pomerânia, os imigrantesdedicavam-se sem trégua ao trabalho. Tendo recebido um peda-ço de terra virgem, em pouco tempo haviam transformado tudono campo e embelezaram a vila. Construíram uma ponte, umaroda-d’água, instalaram um moinho e uma serraria. Nova Po-merânia crescia, transformava-se em vila. Os colonos fundaramsua associação, sua escola, sua igreja. Com o passar do tempoabriram uma cervejaria. Até formaram uma banda de música di-rigida por um colono. Era a única banda do município de San-ta Fé, sendo convidados com freqüência para tocarem nas festi-vidades da cidade e região vizinha.

Os moradores de Santa Fé passavam por vezes na colôniade Nova Pomerânia para ver como ia o trabalho. Ficavam sur-preendidos com o que viam.

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A região transformava-se dia a dia, tomava um jeito de povoa-do, e por toda a parte viam-se valos, lavouras, cercas, roçados,sinais, enfim, de que aqueles estrangeiros começavam a dominara paisagem (...) Haviam construído uma ponte sobre um riachoque cruzava aquelas terras e Otto Spielvogel já tinha posto afuncionar seu moinho d’água (...) De vez em quando passava acavalo um caboclo moreno, de olhos e cabelos negros, parava,olhava para os colonos por muito tempo, sem dizer nada, depois(...) seguia caminho. (O Continente, p. 384/5).

Há muitas outras passagens em que Erico Verissimo realçaa dedicação dos imigrantes ao trabalho, no qual eram persisten-tes e metódicos. Já no terceiro livro de O Tempo e o Vento, em OArquipélago, descreve a pontualidade com que os imigrantes, in-cluindo agora os italianos, punham-se em atividade: “às seis ho-ras da manhã, Lunardi, metido num macacão de mecânico, en-trava em seu caminhão; José Kern abria a casa de comércio;Spielvogel punha em movimento a máquina de sua serraria cujoapito costumava ser exatamente às seis.” (O Arquipélago, p. 114).

Enfim, tanto os imigrantes alemães que se estabeleceramna vila de Santa Fé quanto os da colônia Nova Pomerânia sãodescritos como muito diligentes, transformando logo o meio,organizando-se e progredindo. Em Santa Fé abriram confeita-rias, casas comerciais, indústrias de conservas, de sabão, de ar-tefatos de couro e serraria. A serraria dos Spielvogel foi sendotransformada para usar energia a vapor, e os que tinham casascomerciais fundavam filiais em outras localidades. Os imigran-tes entravam em cena como pioneiros da indústria, com bonslucros e rápida expansão do comércio. Assim foram surgindonomes como os de Kern, Kunz, Spielvogel, Schnitzler e outros,vinculados à indústria e ao comércio, entrando aos poucos noscírculos mais “conceituados” de Santa Fé, associando-se às so-ciedades antes restritas aos fazendeiros.

Porém Erico Verissimo deixa bem claro que a distinção en-tre fazendeiros, donos das grandes extensões de terra, com a li-

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derança política, e os imigrantes mantém-se viva e forte, o quese evidenciava até nas festas.

Pelo aspecto de suas caras germânicas e pelo entusiasmo com quedançavam, Jacob Spielvogel e sua Frau davam ao baile um arde Kerb colonial, ao passo que Chiru Mena, com suas batidas decalcanhares com esporas hipotéticas e com seu ar de monarca,parecia esforçar-se para transformar o reveillon num fandangode terreiro. (O Retrato, p. 165/6).

Erico Verissimo escreveu O Continente entre 1947-9. Comovimos acima, neste momento histórico a metade Norte do esta-do (linha imaginária), povoada predominantemente por imi-grantes, desenvolvera-se rapidamente enquanto a metade Sulestagnara, o que trazia reflexos nas composições políticas e in-clusive na fisionomia sócio-cultural e religiosa. Era o períodopós-Segunda Guerra Mundial, com reflexos fortes nas iniciati-vas culturais dos imigrantes (escola, imprensa, associações)através do processo de nacionalização. Havia tensões étnicas eos imigrantes, especialmente os alemães, eram vistos com ressal-vas. Porém o fato mais importante a ser levado em conta é a gra-dativa perda da hegemonia política e econômica das tradicio-nais lideranças e grandes proprietários da metade Sul.Verissimo torna habilmente o peão José Fandango, totalmenteidentificado com a vida e as lidas das estâncias, o porta-voz dainsatisfação da metade Sul.

O peão José Fandango, a refletir, solava:

Pra meu gosto o verdadeiro Rio Grande fica na margem direitado Jacuí, pros lados de São Borja e pra baixo na direção de Uru-guaiana, Santana do Livramento, Dom Pedrito e Bajé (sic),principalmente na Campanha onde sempre terçamos armas comos castelhanos. Da margem esquerda pro norte e pro mar tem grin-go demais. Não gosto de alemão. Falam uma língua do diabo,olham pra gente com ar de pouco-caso. Tudo neles é diferente: asroupas, as danças, as comidas, as casas, até o cheiro. Quandovejo um homem de pele muito branca, cabelos de barba de milho

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e olho de bolita de vidro até me dá nojo. Se eu fosse governo, man-dava esta alemoada embora. (O Continente, p. 489).

Quanto aos imigrantes italianos, José Fandango considerava:

Duns anos pra esta parte, tem chegado também muito italiano.Se empoleiraram na serra, porque a alemoada, que chegou pri-meiro, pegou os melhores lugares na beira dos rios. Já andei poressas novas colônias da região serrana. A fala deles tem músicae é doce como laranja madura e meio parecida com a nossa. Gos-tam de comer passarinho, de fazer e beber vinho, de cantar, deouvir missa de padre e de procissão. (O Continente, p. 489).

Não era só pelo trabalho que os imigrantes alemães se di-ferenciavam do restante da população. Também o vestuário, ahabitação, a alimentação, entre outros aspectos culturais, erammarcantes. Quanto às casas, elas “ofereciam um contraste níti-do quando comparadas com todas as outras do povoado. Eramgraciosos chalés de madeira, muito limpos, que tinham até cor-tinas e vasos de flores nas janelas.” (O Continente, p. 256).

Os poucos que haviam entrado nas mesmas diziam que “ládentro até o cheiro das coisas era diferente”. Também RodrigoCambará, referindo-se a Frau Wolf, que o recebera em Neu-Württemberg (hoje Panambi), admirava-se que ela, com quase80 anos, vivia em grande casa de madeira, em estilo bávaro, en-tre árvores e flores, filhos, netos, livros, muitos livros. Realçaque ela o havia recebido com graça de castelã antiga, ofereceu-lhe café com leite, bolos, Apfelstrudel e vinho do Reno. Além demostrar-lhe a Bíblia da família, falou-lhe de seus autores predi-letos, recitando Heine e Goethe. Depois sentou-se junto a umórgão de fole e tocou trechos de Bach. Maravilhado, Rodrigo ti-vera a impressão de ter entrado em outro mudo. “Aquela se-nhora vestida de negro, os cabelos brancos penteados à modado final do século passado, os móveis, os bibelôs, os quadros, alouça, o cheiro de madeira envernizada, tudo lhe evocava a Ale-

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manha.” (O Arquipélago, p. 64). E, para sua surpresa, ao despe-dir-se, Frau Wolf recitou versos de Alfred de Musset, em francês.

Também Licurgo diz que em Neu-Württemberg tivera“oportunidade de tomar um banho, comer boa comida, dormirem cama limpa e ter mulher.” (O Arquipélago, p. 63).

Outro aspecto que chamava muito a atenção dos santa-fe-zenses eram os jardins bem cuidados em frente às casa dos imi-grantes, com seus canteiros caprichosos e suas flores. Tambémachavam muito engraçada a maneira como os imigrantes ale-mães festejavam a Páscoa e o Natal. O domingo em Nova Pome-rânia também contrastava com o dos “continentinos”. Havia, àmeia tarde,

café com leite, cuca e manteiga de nata, doce na casa de Spielvo-gel. Apfelstrudel no chalé de Frau Sommer. Canecos de cerveja es-pumante e partidas de bolão no clube dos atiradores. Música deacordeão e cantigas. (O Continente, p. 519).

No romance atribui-se a Helga Kunz uma liberdade de cos-tumes que causava estranheza em Santa Fé. Como que ela viaja-va sozinha com o noivo para São Leopoldo, viagem que levavavários dias e noites? As observações eram: “cruzes, que gente!”,“estrangeiro é bicho sem-vergonha!”. O Pe. Lara relativizavaesta atitude da moça, juntamente com os amores que ela tiveracom Rodrigo, pois “ela é protestante”. Erico Verissimo retrataclaramente que, em relação às diferenças religiosas e étnicas,permitem-se certas aproximações, mas sempre com ressalvas. Ese ocorre algo menos aceitável, então é porque provém do ou-tro, do diferente. São os grupos étnicos e confessionais que têmseus estranhamentos mútuos. Neste sentido é elucidativa a rea-ção de Bibiana à expectativa do Pe. Atílio Romano quanto aoconvívio cada vez mais próximo entre os grupos étnicos. Emsermão dominical, o padre ponderava:

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Nesta mesma igreja hoje, sentados no meio de brasileiros, acham-se imigrantes italianos que há quase dez anos chegaram a estaprovíncia e fundaram neste mesmo município de Santa Fé umacolônia que se chama Garibaldina, em homenagem ao herói. E éporque estes colonos italianos, bem como os alemães de Nova Po-merânia, estão trabalhando juntamente com os brasileiros pelagrandeza deste município, desta Província, deste país. E nestaterra cujos conquistadores primitivos tinham nomes como Maga-lhães, Pereira, Fagundes, Xavier, Terra, vivem hoje homens quese chamam Bernardi, Nardini, Sorio, Conte, Bauermann,Schultz, Schneider, Schmitt, Kunz. (...) Espero um dia unir emmatrimônio uma Dela Mea com um Pinto ou um Spielvogel. (OContinente, p. 523).

Bibiana reagiu: Filho meu não casa com gringo.E quando o Dr. Winter achava que seria melhor que as fa-

mílias tradicionais de Santa Fé “casassem seus homens e mulhe-res com os imigrantes alemães do que com os negros e índios”,o Pe. Otero perguntava: “não eram aqueles imigrantes na maio-ria protestantes? Como casariam com moças brasileiras?” (OContinente, p. 365/6). Nesta cena Verissimo não retrata apenaso preconceito racial e religioso, tão fortes na época. Traz à luztambém a questão da eugenia numa perspectiva marcantemen-te racial. E não terá sido meramente fortuito que atribuísse estaproposta ao médico alemão. Na época da concepção do roman-ce os horrores cometidos pelo nazismo em nome da raça purae da ciência posta na perspectiva do “melhoramento” das raçasainda estavam muito próximos e vivos na memória. Da mesmaforma, ainda não se divisava uma aproximação entre as confis-sões religiosas.

Quanto à aparência física, Verissimo retrata os imigrantesalemães com alguns traços marcantes, comuns. Assim, OttoSpielvogel era “um alemão corpulento da Renânia, de quasedois metros de altura, com grandes manoplas sardentas reco-bertas de pêlo ruivo, nariz vermelho e fino, e olhos de pupilastão claras que chegavam quase a parecer vazios.” (O Continente,

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p. 384). Jacob Vogt, natural da Westfália, “tinha longas barbasdum branco amarelecido, que lembravam as macegas dos cam-pos (...) olhos muito azuis.” (O Continente, p. 385). E Jacob Gei-bel, sacristão, (...) de barbas ruivas e olhos cor de malva.” (OContinente, p. 505). O noivo de Helga, de São Leopoldo, “umalemão grande, de barbas louras e olhos claros.” (O Continente,p. 259). Erwin Kunz, “o alemão alto, magro, de rosto vermelhoe sardento.” (O Continente, p. 248). Os filhos de Schultz, “fisio-nomias vagas e sardentas, coroadas de cabelos que mais pare-ciam barba de milho.” (O Continente, p. 249).

Verissimo caracteriza fisicamente os imigrantes sempre aoestilo de um nórdico. Nenhum deles é descrito à semelhança derespeitável parcela de alemães provenientes de povos mediter-râneos, com cabelo preto, tez mais morena e olhos escuros.

Erico Verissimo usa freqüentemente a língua alemã na nar-rativa, seja através de palavras, expressões ou frases. As expres-sões espontâneas como “ach!” ou “mein Gott” (meu Deus!) sãoas mais freqüentes. Ocorrem também quando expressa os senti-mentos dos imigrantes. “Trude! Trude! Ich liebe dich! (Trude!Trude! Eu te amo!)” (O Continente, p. 327), ou “ach, liebe FrauCambará!” (Ó, querida senhora Cambará)” (O Continente, p.370). Freqüentes vezes cita a expressão em alemão seguida daportuguesa: “Kaput! Morreu!” (O Continente, p. 436). “Eine gros-se Schweinerei”, “uma grande porcaria” (O Continente, p. 437).No período referente ao nazismo, usa termos então em voga:“Kreis”, “Putsch”, “Führer”.

Quanto à perspectiva de gênero, entre os imigrantes ale-mães os homens não tratam as mulheres como sua proprieda-de. Tomam-nas sob seus cuidados, mas não reagem à força. Ro-drigo sentia-se humilhado quando Herr Schnitzler o encontroucom Marta e se limitou a uma advertência (O Retrato, p. 319).Não costumavam demonstrar constantemente sua virilidade. Ea mulher, entre imigrantes alemães, é apresentada como pessoa

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muito enérgica, que, no entanto, não se envergonhava de exter-nar seus sentimentos em público. Podia conversar com homensestranhos, o que não era mal interpretado. Toni Weber falavacom Rodrigo, passeava sozinha com Erwin Spielvogel. Para osmoradores de Santa Fé esta relação era chocante. As vestimen-tas da mulher imigrante são descritas como bonitas e alegres. Amulher teuto-brasileira é caracterizada como pessoa ativa, comopinião própria, não dependendo de seu marido. Quando oshomens foram convocados para a revolução e as colheitas requi-sitadas, assim mesmo no outro dia a mulher foi com os filhospara a roça, pois o serviço não poderia deixar de ser atendido.Também são descritas como altamente prendadas para mantera casa limpa e atraente. E em matéria de cozinha, de forno e deconfeitaria eram admiradas.

Frau Schnitzler era uma doceira de primeira ordem e suas cucas,bolos e tortas eram muito apreciados, principalmente pelos habi-tantes de Nova Pomerânia, para onde semanalmente ela man-dava os produtos de seu forno. (...)“Rodrigo gostava daquela casa – o único café e restaurante queexistia na cidade. Era um lugar que ‘cheirava a estrangeiro’.Imaculadamente limpo, tinha nas paredes quadros com paisa-gens da Baviera e do Tirol. À hora das refeições andava naque-las salas um cheiro de molho de manteiga, batatas cozidas e ‘Ap-felstrudel.’ (O Retrato, p. 126).

O Dr. Winter, uma crítica da imigraçãoa partir de um imigrante

Foi realçado acima que a narrativa de Verissimo não retra-ta um único tipo de imigrante alemão. A maioria efetivamenteera de agricultores, artesãos e comerciantes, dentre os quaismuitos ascenderam economicamente e abriram indústrias. Po-rém também havia os imigrantes com outras profissões e bem

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mais cultos, como a família de músicos Weber, o Dr. Winter, mé-dico, e o jornalista Koseritz, juntamente com quase 2 mil“Brummer”, revolucionários sem espaço político após a revolu-ção conservadora de 1848 na Alemanha e que, após uma parti-cipação rápida na guerra contra Rosas, da Argentina, estabele-ceram-se no Rio Grande do Sul, dedicando-se ao magistério, àimprensa, ao comércio e à indústria.

Críticos literários entendem que na primeira parte de OTempo e o Vento, entre 1855 e 1895, o Dr. Winter exerce comoque o papel de alter-ego (outro-eu) de Erico Verissimo, ao esti-lo do que Floriano significa na última parte. O Dr. Winter éapresentado como um dos protagonistas de O Continente. Médi-co alemão, natural de Eberbach, formado em Medicina pelaUniversidade de Heidelberg, solitário, culto, um tanto bizarromas extremamente observador, havia fugido da Alemanha porrazões sentimentais e políticas. O Dr. Winter é um “comentaris-ta” da vida cotidiana e dos costumes, tanto de Santa Fé quantoda Província de São Pedro. Segundo Sérgius Gonzaga (1986), oDr. Winter é a expressão da acentuada curiosidade européiapela vida nas regiões remotas, traduzida em centenas de viajan-tes cultos que estiveram no Brasil, no século XIX, e deixaramsignificativa quantidade de relatos.

Quanto ao Dr. Winter, Florêncio sempre admirava a manei-ra correta com que aquele homem se exprimia em português, oque já é uma contraposição à maioria dos imigrantes do interiorque, tanto no romance quanto na vida real, não demonstravammuito interesse em aprender o português. E quando o apren-diam, tinham muita dificuldade com a pronúncia correta. Flo-rêncio sentia que ele, Dr. Winter, “tinha um sotaque forte, car-regava nos erres, mas quanto ao resto falava fluentemente comoum brasileiro educado, quase tão bem como o juiz de direito,ou o padre.” (O Continente, p. 319). Tinha muitos livros em lín-guas estrangeiras e sabia latim.

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Através do Dr. Winter, Erico Verissimo introduz na históriaCarl von Koseritz, revolucionário do grupo dos Brummer. Kose-ritz entra no romance na função que exerceu como persona-gem real, jornalista, batalhador pela participação política dosimigrantes alemães. Também Koseritz falava fluentemente oportuguês, tinha interesse em naturalizar-se brasileiro já na dé-cada de 1850/60. No caso, trata-se de mais uma contraposiçãoà maioria. É na voz do Dr. Winter que Erico Verissimo expressaas ressalvas e críticas em relação aos imigrantes colonos. Winterachava que muitos imigrantes eram estúpidos, cheios de pre-conceitos, politicamente apáticos e isolados. Mesmo estando há50 anos no Brasil, eram poucos os que sabiam falar português.Seus compatriotas o irritavam por sua falta de cultura. Emboraa maioria deles morasse bem e prosperasse, desprezavam os ca-boclos e eram desprezados pelos fazendeiros, dos quais não gos-tavam, embora parecessem temê-los (O Continente, p. 325). Win-ter encontrara compatriotas que haviam assimilado “todos osmaus hábitos dos naturais da terra”, amasiando-se com mulatase negras, das quais tinham filhos. “Moravam em ranchos mise-ráveis, andavam descalços e já estavam roídos de vermes e de sí-filis.” (O Continente, p. 325). Causava tristeza ao Dr. Winter vercomo em seus baús e sacos, junto com as roupas e tarecos, ha-viam trazido para o Brasil todos os preconceitos, rivalidades,mesquinhezas de suas aldeias natais. “Não compreendiam, osinsensatos, que lhes seria possível passar a vida a limpo naquelapátria nova.” (O Continente, p. 325).

Em termos gerais, o Dr. Winter não era admirador dos imi-grantes alemães colonos. Achava-os ignorantes e pouco simpáti-cos (O Continente, p. 384). E em relação à questão dos Mucker,o Dr. Winter escreveu a seu amigo Koseritz:

Este lamentável episódio vem confirmar a opinião que tenho demeus compatriotas: individualmente são excelentes, sensataspessoas, mas quando reunidos em grupos acabam sempre fazen-do alguma asneira brutal. (O Continente, p. 581).

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Porém, quando observava Nova Pomerânia, a dedicação aotrabalho, a transformação do ambiente por parte dos imigran-tes, achava que os alemães seriam as pessoas mais apropriadaspara a Província.

Tanto o Dr. Winter quanto os músicos Weber e o jornalistaKoseritz são apresentados como pessoas cultas, tendo excelen-tes relações com as elites locais. O Dr. Winter é quem dá um to-que de reflexão aos diálogos, procura entender as motivaçõesdas pessoas, relativiza certezas e costumes, abre horizontes. En-fim, é uma presença reflexiva, ao mesmo tempo simpática equestionadora. E Erico Verissimo lança habilmente mão da fi-gura do Dr. Winter, um imigrante alemão, alguém de dentro dogrupo e ao mesmo tempo diferente, para fazer a crítica e apon-tar as mazelas da imigração alemã. Bem arquitetada estratégia.

Se o Dr. Winter e Carl von Koseritz aprenderam logo o por-tuguês, fizeram esforço em adaptar-se ao ambiente e tornar-seinterlocutores cultos e simpáticos entre os moradores tradicio-nais da província, sem no entanto descaracterizar-se, não falta-ram imigrantes que também queriam adaptar-se, mas faziam-node forma ridícula. Erico Verissimo apresenta na figura de JacóStumpf a dificuldade que a maioria dos imigrantes tinha com apronúncia correta do português e a forma ridícula com que al-guns forçavam uma adaptação aos costumes locais. O que maisdeliciava Rodrigo era que Jacó Stumpf – apesar de seu aspectonórdico e de seu sotaque – tinha a mania de ser gaúcho legíti-mo, “neto de Farroupilha”. Era um espetáculo vê-lo metido naslargas bombachas de pano xadrez, chapéu de barbicacho, botasde sanfona com grandes chinelas barulhentas. Esforçava-se porimitar o linguajar gaúcho e com freqüência dizia: “Puxa tiapo”.Os companheiros logo passaram a chamá-lo “Jacòzinho PuxaTiapo”. Quando perguntado se agüentaria o repuxo, respon-deu: “Quem tem medo de parulho não amara poronco nos ten-dos.” (O Arquipélago, p. 49).

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Os imigrantes alemães esua participação política

Segundo os críticos literários, Erico Verissimo cria persona-gens que nos diversos períodos de O Tempo e o Vento são comoque seu “alter-ego”. Se o Dr. Winter é assim considerado, emparte também Aaron Stein, com certeza Floriano é o que exer-ce esta função de forma mais completa. Em O Arquipélago, Flo-riano faz reflexões para seus interlocutores Terêncio, Bandeirae Toríbio sobre a mudança sócio-econômica no Rio Grande doSul com reflexos diretos sobre a constelação política. Parece-meque esta reflexão de Floriano deixa entrever muito claramentea posição de Erico Verissimo em relação à participação dos imi-grantes alemães no processo político. Em função da centralida-de desta reflexão, recorro a três citações mais longas.

Até o final da Primeira Guerra Mundial os imigrantes ale-mães haviam participado pouco do processo político, não sen-do nenhuma ameaça para a tradicional liderança dos fazendei-ros. Quando o quadro econômico-social se modificou e os imi-grantes apareceram como candidatos na campanha política,criou-se um mal-estar entre os estancieiros, tradicionais lideran-ças. Floriano considerou com seus interlocutores Terêncio,Bandeira e Toríbio que:

O fenômeno sociológico mais importante na história do RS, nes-tes últimos cinqüenta anos, é o declínio da aristocracia rural deorigem lusa e o surgimento de uma nova elite com raízes nas zo-nas de produção agrícola e industrial onde predominam elemen-tos de ascendência alemã e italiana. Neste meio século processou-se a marcha do colono da picada para o comércio e para a indús-tria. Antigamente o produtor menor e o assalariado não podiamnem sequer sonhar com uma carreira política. Agora a situaçãoestá mudando. O estancieiro perde o seu poder econômico e polí-tico, e os nossos deputados, senadores e governadores já não sãomais, digamos assim, eleitos pela força do boi. Hoje os candida-

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tos se chamam também Spielvogel, Greenberg, Lunardi, Schmidt,Kunz, Kalil. (O Arquipélago, p. 571/2).

Terêncio escutava-o com expressão triste e Floriano conti-nuava:

Se folhearmos, por exemplo, o catálogo telefônico de Porto Alegre,descobriremos uma grande, expressiva quantidade de médicos,advogados, engenheiros, professores, comerciantes e industriaiscom nomes alemães, italianos, sírio-libaneses, polacos, judeus...E as listas dos estudantes que todos os anos entram ou saem denossas escolas superiores revelam o mesmo fenômeno. Estamossaindo da Era Mezozóica da nossa história, isto é, da Idade deOuro dos Grandes Répteis. Em breve não veremos mais dinossau-ros em nossa paisagem política, pois o caudilho urbano (...) per-tence a uma espécie praticamente extinta. (O Arquipélago,p. 572).

Respondendo aos questionamentos de Bandeira, Terêncioe Toríbio, Floriano toma a palavra:

A mim me parece tão absurdo querer italianizar ou germanizaro Rio Grande como pretender ignorar a grande contribuição queo imigrante alemão ou italiano trouxeram para a nossa vida.Acho que temos de aceitar esta contribuição com alegria e espe-rança. Só podemos lucrar com isto. (O Arquipélago, p. 573).

Até o período da República os imigrantes normalmentesão retratados sem participação política. Organizavam-se comu-nitariamente, assumiam escola, professor, sociedades, pontes,estradas e mantinham a maior distância possível de ingerênciase disputas políticas. Achavam que os políticos prometiam mui-to, mas não cumpriam as promessas. Não tinham recebido nemprofessor. Havia o entendimento entre eles que teriam que ze-lar por si mesmos, tornando-se assim bastante independentesdos estancieiros e do governo, mantendo por muito tempo suaspeculiaridades étnicas. Mesmo assim votavam com o governo.

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Os moradores de Santa Fé observavam os imigrantes ale-mães, salientavam que eles viviam quietamente a sua vida, traba-lhavam de sol a sol e transformavam o ambiente em que viviam(O Continente, p. 254). O Padre Lara, preocupado com a guerracivil que lhe parecia iminente e vendo a família Schultz voltardo trabalho cantando, refletia:

Esses sim é que são felizes. Não sabem o que está se passando e,se vier a guerra, não terão nada a ver com ela, porque são es-trangeiros”. Outro felizardo era o Erwin Kunz (...) “passava osdias a fazer lombilhos e a bater a sola, enquanto a mulher e a fi-lha faziam doces e cucas cujo cheiro apetitoso o padre às vezessentia ao passar pela casa do seleiro. (O Continente, p. 256).

Quando os imigrantes vieram para se estabelecer em NovaPomerânia, o chefe político local, Coronel Bento Amaral, fezuma preleção e, com “ar patronal”, dizia-lhes: “têm de obedeceràs autoridades. Não queremos badernas nem anarquias.” (OContinente, p. 384). E os colonos o escutavam “entre uma atitu-de respeitosa e assustada”. É significativa a forma comoVerissimo descreve a visita que este mesmo Coronel fez a NovaPomerânia, quando os imigrantes já estavam se instalando. OCoronel Amaral “falou com a ‘alemoada’ de cima do cavalo,olhou em torno, fez perguntas e deu conselhos. Depois voltoua Santa Fé.” (O Continente, p. 385). O fato de chegar, observar,falar de cima do cavalo, perguntar e aconselhar, retrata forte-mente a relação política incorporada autoritariamente. Estequadro torna-se mais significativo ainda com a descrição decomo os imigrantes reagiram: “os colonos seguiram o Coronelcom o olhar. Mas não disseram nada: voltaram discretamentepara o trabalho”.

A partir da República, a nova liderança política de SantaFé, agora sob os Cambará, tenta cooptar os colonos com favo-res. “Os colonos de Garibaldina e de Nova Pomerânia obtinhamdele tudo quanto pediam”. Porém, como foi salientado acima,

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a partir da República as famílias tradicionais de Santa Fé, “abas-tadas há vinte ou trinta anos, foram decaindo, ao passo que osimigrantes italianos, alemães, sírios e judeus prosperavam.” (OArquipélago, p. 604). E começaram a ter maior definição políti-co-partidária, alguns inclusive com aspirações políticas, como éo caso de José Kern. Este, iniciando no interior do estado comomascate, abriu comércio em Nova Pomerânia, transferiu-se paraa sede do município, tornando-se proprietário de várias fábricas– de conservas, sabão, malas, artefatos de couro –, entrando de-pois em loteamento de terrenos e construção de prédios. Comaspirações políticas, sendo de tendência autoritária, tornou-se“ardoroso defensor da suástica e do sigma”, entre 1934-40. De-pois tornou-se candidato do PRP (Partido de Representação Po-pular) (O Arquipélago, p. 603/4). O Café Poncho Verde desteJosé Kern é descrito como o ponto de encontro natural entreintegralistas e os nazistas de Santa Fé. José Kern aparece comomembro influente de ambos os grupos, sendo como que “umaponte viva entre o fascismo alemão e o indígena.” (O Arquipéla-go, p. 502). Quando Rodrigo foi fazer campanha política emNova Pomerânia, José Kern o prevenira: “o senhor não faz co-mício aqui porque a gente não somos políticos. O que quere-mos é trabalhar em paz.” (O Arquipélago, p. 694). Mas fazia polí-tica. E Rodrigo foi fazer o comício assim mesmo e foi mal rece-bido pelos colonos. Vários imigrantes foram gradativamenteaparecendo como candidatos na campanha política, o que ge-rou mal-estar dos estancieiros.

Enfim, na medida em que os imigrantes foram se firmandoeconômica e socialmente, começaram a independentizar-setambém da influência dos estancieiros e a ter opções políticaspróprias.

Em 1933 foi fundado o núcleo local da Ação IntegralistaBrasileira, que ganhara logo muitos adeptos entre imigrantes.Tanto em Santa Fé quanto em Nova Pomerânia foram criados

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núcleos do Partido Nacional Socialista, fundando-se o “Kreis”, ocírculo nazista, e fazendo-se proselitismo nas escolas e nas socie-dades recreativas. Nas escolas a “campanha de nazificação seprocessava livremente”, criando-se a Juventude Hitlerista. Hou-ve incidentes como, por exemplo, o caso de um “mascate judeuapedrejado em Santa Fé por três rapazes alourados.” (O Arqui-pélago, p. 507).

Rodrigo, representante da elite política dos fazendeiros,questiona a postura dos imigrantes pró nacionalismo alemão. Eirrita-se com a grande adesão ao integralismo por parte da po-pulação luso-brasileira. Queixa-se dos imigrantes: “afinal decontas estes lambotes vivem na nossa terra, comem o nosso pão,bebem a nossa água, respiram o nosso ar, dependem, enfim, danossa generosidade e da nossa tolerância.” (O Retrato, p. 412).Começa a negar cumprimento aos de sobrenome alemão e achaque haverá de chegar o dia em que organizará uma expediçãopunitiva contra a Nova Pomerânia.

Erico Verissimo levanta ainda outro aspecto crucial naquestão política relacionada com a imigração. Trata-se da con-cepção que os imigrantes tinham da relação entre etnia e nacio-nalidade. Para os luso-brasileiros era chocante o fato de os imi-grantes afirmarem-se de língua e cultura alemã e quererem es-tar vinculados ao Estado brasileiro. Afirmavam-se alemães nosangue, na espécie, na cultura e na língua, concomitantementecom a cidadania brasileira. Entendiam que havia um Estadobrasileiro no qual viviam alemães, lusitanos, italianos, japone-ses, etc. (O Arquipélago, p. 535). Isto era inconcebível na tradi-ção luso-brasileira.5

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5. A este respeito veja-se Rambo (1994) e Seyferth (1994).

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Indicações finais

Não pretendo tirar conclusões, mas salientar, de forma bemsucinta, alguns aspectos que me chamaram a atenção na leiturade O Tempo e o Vento com o olhar atento para a forma como é re-tratada a imigração alemã.

Verissimo teve muita atenção para com todos os grupos ét-nicos que compõem a formação social do Rio Grande do Sul.Sua sensibilidade de artista da palavra também se manifesta naforma como aborda e concede espaço ao pluralismo étnico doestado. Na trilogia transparece claramente a dinâmica de umasociedade que, pela sua formação étnica plural, viveu tanto mo-mentos ricos de afirmação de processos identitários quanto si-tuações de estranhamento e de conflitos. O texto deixa entrevera visão aberta, equilibrada do autor Erico Verissimo em relaçãoa esta temática. Reconhece e salienta os valores dos diferentesgrupos étnicos, mas não deixa de apontar suas mazelas. Nestesentido entendo que usou de uma estratégia bem arquitetada aoapontar parte de suas divergências e críticas à imigração alemãatravés do Dr. Winter, também um imigrante alemão. Através deFloriano, seu alter-ego, Erico Verissimo é claro: nem italianizarou germanizar o RS nem ignorar a contribuição dos imigrantes.“Temos de aceitar esta contribuição com alegria e esperança”.Isto ele faz em relação a todas as etnias no estado.

No romance percebe-se também aquilo que hoje se afirmateoricamente: os grupos étnicos mantêm suas especificidadesculturais mais fortemente quando bastante isolados. Quando en-tram em contato mais freqüente com outros grupos há estranha-mentos, o poder de nominação começa a ser também constituin-te do processo identitário, isto é, os diversos grupos vão interna-lizando aquilo que os outros dizem deles. Os processos identitá-rios entram como que numa dinâmica de “jogo de espelhos”.

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Outro aspecto bem patente é o de que as relações interétnicasimplicam também relações de poder, de confrontos, de afirma-ções e silenciamentos, porém não em perspectiva linear. Na re-lação interétnica os grupos se recriam em suas especificidadesculturais, mas não apagam as diferenças. Trata-se daquilo quehoje chamaríamos de “a dinâmica entre tradição e tradução”.Claro que Verissimo não teorizou estas questões – somos nós queo fazemos hoje – mas teve uma extraordinária sensibilidade deartista para captar a dimensão étnica na dimensão histórica.

Quanto à imigração alemã, embora trate mais diretamentedaqueles imigrantes que estavam em Santa Fé e Nova Pomerâ-nia, deixa entrever que eles não eram um grupo homogêneonem cultural nem religiosamente. Com o Dr. Winter faz a pon-te para Koseritz e, através dele, para os Brummer e outros, decaracterísticas culturais bastante diferentes daquelas do traba-lhador rural em Nova Pomerânia. Concordo com Roche no sen-tido de que Verissimo soube exprimir muito bem a realidadepsicossocial que cobria os esquemas coletivos e de grupos. Tivea impressão que a descrição da opção política dos imigrantesalemães em Santa Fé e Nova Pomerânia em termos de nazismoou integralismo carrega um pouco nas tintas, mas é perfeita-mente inteligível levando-se em conta o contexto histórico. Aopção do autor foi a de não fazer um romance histórico, mas defundo histórico. Erico Verissimo apresenta, no geral, uma visãomuito positiva tanto da imigração alemã quanto de outros gru-pos étnicos.

* Programa de Pós-Graduação em Educação, UNISINOS.

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“Uma geração vai, e outra geração vem; porém a terra sempre permanece. E nasce o sol, e põe-se osol, e volta ao seu lugar donde nasceu. O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte; continua-mente vai girando o vento, e volta fazendo seus circuitos.”

Eclesiastes - I, 4-6

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OLHAI O QUE O TEMPO NÃO LEVOU.A Literatura de Erico Verissimo

M a r i a e l e n a C a m a r a B a s t o s *

M a r i a T e r e s a S a n t o s C u n h a * *

Os pensamentos postos no papel nada maissão que pegadas de um caminhante naareia: vemos o caminho que percorreu, maspara sabermos o que ele viu nesse caminho,precisamos usar nosso próprios olhos.

Schopenhauer1

Introdução

A Literatura não é um mero documento para a História. Éuma prática simbólica que coloca em cena determinados acon-tecimentos históricos, como a organização e as convenções derepresentação de um certo tempo. É também um dispositivoeducativo e pedagógico que permite entrever os espaços discur-sivos de um tempo, as representações sociais forjadas em cadaépoca, o imaginário de atores sociais - reais e ficcionais.

Historicizar a obra literária significa, para o historiador, in-serí-la no movimento da sociedade, investigá-la em suas redesde interlocução social e desvelá-la como constrói ou representasua relação com a sociedade e a cultura.

1. SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre livros e leitura. p. 21.

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Toda produção literária tem um projeto educativo que lhe dáforma, sentido e lhe eterniza... Sua função é, sem dúvida, de mora-lizar, mas introduzindo na história as razões do coração que a razão nãoquer conhecer.2

O autor de uma narrativa literária cria um efeito de verdade - averdade está no fim de uma procura que é uma ascese social e moral.3 Istoé, a verdade procede do íntimo, o que garante o seu reconheci-mento por parte do sujeito. Goulemot afirma ser possível identificarnas obras literárias os deslocamentos, as tensões e os conflitos que perpas-sam o discurso.4 É, portanto, nesse espaço fascinante e movediço -onde se constróem a história dos homens, as linguagens, os discur-sos e as representações - que se moverá este texto.

Além de um documento para a História da Educação, a Lite-ratura permite múltiplas abordagens e olhares do pesquisador -história da leitura, práticas de leitura, memórias da vida escolar;imaginário, representações, hábitos e valores perpassados, discur-so ficcional/real. Para Hansen, a literatura trabalha com enunciadosde possibilidades, a história com enunciados de realidade5 - assim, o histo-riador mantém uma dependência com o arquivo, enquanto o es-critor pode falar de um vir-a-ser.

Como leitor dos documentos literários, o historiador produzsentidos; dessa produção, resulta o ser social e cultural, movido porcertos objetivos e expectativas.

É verdade também que devemos perguntar sobre a produção dosmodos de leitura pelos próprios textos. Com seu processo de escri-tura, cada texto inventa um leitor fictício ao qual interpela econvoca. É uma evidência que essas sociabilidades de leiturainscritas nos livros dependem do debate entre privado e públiconas práticas de leitura.6

2. GOULEMOT, Jean Marie. As Práticas Literárias ou a publicidade do privado. IN: ARIES, P. eDUBY, G.(org) História da Vida Privada III. P.398.

3. Ibidem, p. 373.4. Idem, p. 373 e 395.5. HANSEN, J. Os lugares das palavras. p. 1.6. GOULEMOT, J.M. op. cit. p. 389.

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Ao se apropriar da Literatura, o historiador produz sempreuma nova leitura, que constrói um outra leitura do passado.Dessa forma, aquilo que acabamos de chamar de passado é sem-pre uma elaboração tanto do historiador como do escritor. Paraexemplificar e tornar mais inteligível as relações entre históriae literatura é importante recorrer às memórias de Mário Mar-ques - quando professor de Sociologia na faculdade, enfatizavaque por um bom período, levava os alunos a analisarem os processos so-ciais correntes nas tramas de obras literárias, processo mais acessível erico que as observações que pudessem realizar na realidade local. Predo-minavam aí obras de Graciliano Ramos, Erico Verissimo, ViannaMoog.7

A obra literária nasce do concreto, do meio condicionante,mas também trata da essência dos seres e dos eventos - as utopiasdo autor, a necessidade de extravasar ao mundo suas idéias, pro-jetos, nostalgias; ou seja, ele quer respostas para angústias inter-nas. Para Goulemot, a Literatura expressa os sonhos de liberdade e deintercâmbio de um tempo passado e as coerções institucionais do presente.8

Erico Verissimo (1905–1975), autor de uma significativaobra literária, retrata o universo rio-grandense, através da histó-ria social de várias gerações que se sucedem.9 Nesta construçãoficcional, que faz da sociedade gaúcha, é possível perceber asvárias representações sociais10 do universo escolar, da educação,da profissão docente, temas fartamente abordados na caracteri-zação do universo dos personagens. Por exemplo, na criação dapersonagem Dr. Carl Winter, em O Continente, o autor assim se ex-pressa:

7. MARQUES, Mário O. Uma Hermenêutica de Minhas Aprendizagens. p. 41-2. 8. GOULEMOT, J.M. op. cit. p. 389.9. MARTINS, Wilson. As Gerações e a Terra. In: Cultura Especial. Zero Hora. Porto Alegre. Sába-

do, 18 de setembro de 1999. p. 5.10. O conceito de representação social é resultado das relações históricas e sociais que a produziram, em determi-

nado espaço de tempo. A representação é uma maneira do sujeito fabricar um objeto psicológico e cultural sig-nificativo. O conteúdo, a forma e o processo de construção da representação social possibilitam caracterizá-lacomo produto cultural, resultado organizado de informações, julgamentos, atitudes de seu sujeito. Produtosculturais, as representações sociais são determinadas socialmente, duplamente pelo seu conteúdo e forma.DESCAMPS, Annie. L’image des enseignants dans le journal Le Monde. p. 6-7. (A tradução é nossa)

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A certa altura comecei sentir a necessidade de criar uma perso-nagem que pudesse fazer o papel de coro daquela comédia provin-ciana. Devia ser uma pessoa não só alfabetizada, mas tambémlida e com pontos de referência geográficos e culturais que a tor-nassem capaz de comparar aquela agreste e incipiente civilizaçãosul-americana com a européia, comentar consigo mesma ou comoutras aquela gente, a vida de Santa Fé, em particular, e a daProvíncia de São Pedro do Rio Grande do Sul.11

Nesse texto, nosso olhar estará centrado na questão esco-lar/educacional, tema recorrente em sua obra - como podemosconstatar principalmente em Clarissa, Música ao Longe, CaminhosCruzados, O Tempo e o Vento, Olhai os Lírios do Campo, e outros.

Um Olhar na Obra de Erico Verissimona Perspectiva da História da Educação

(Re)Ler e/ou (re)visitar a obra de Erico Verissimo12 foi umprazer, como leitura, como pesquisa e como fruição estética.Voltar às leituras que marcaram nossa adolescência e os vinteanos é sempre muito prazeroso e gratificante. É uma volta aopassado com os olhos do presente, em dupla dimensão - indivi-

11. VERISSIMO, Erico. Solo de Clarineta I. p. 299.12. A cronologia de sua obra completa é a seguinte: 1932 – Fantoches, contos; 1933 – Clarissa, roman-

ce; 1935 – Música ao Longe, romance; Caminhos Cruzados, romance; A vida de Joana D’Arc, literatu-ra infanto-juvenil; 1936 – As aventuras do Barão Vermelho, literatura infantil; Os três Porquinhos Po-bres, literatura infantil; Rosa Maria no castelo encantado, literatura infantil; Um Lugar ao sol, roman-ce; 1937 – As aventuras de Tibicuera, literatura infantil; 1938 – O Urso-com-música-na-barriga, litera-tura infantil; Olhai os Lírios do campo, romance; 1939 – A Vida do elefante Basílio, literatura infan-til; Outra vez os Três Porquinhos, literatura infantil; Viagem à aurora do mundo, literatura infanto-ju-venil; Aventuras no Mundo da Higiene, literatura infantil; 1940 – Saga, romance; 1941 – Gato Pretoem Campo de neve, viagens; 1942 – As mãos de meu filho, contos; 1943 – O resto é silêncio, romance;1945 – Brazilian Literature, An outline; 1946 – A Volta do Gato Preto, viagens; 1949 – O Tempo e o Ven-to, 1ª Pare: O Continentes, 2. Vols, romance; 1951 – O Tempo e o Vento: 2ª Parte: O Retrato, 2.Vols, romance; 1954 – Noite, novela; 1956 – Gente e Bichos, literatura infantil (antologia); 1957 –México, viagens; 1959 – O Ataque, contos; 1961/62 – O Tempo e o Vento; 3ª Parte: O Arquipélago, 3vols, romance; 1965 – O Senhor Embaixador, romance; 1966 – Ficção Completa; 1967 – O Prisioneiro,romance; 1969 – Israel em Abril, viagens; 1970 – Um certo Capitão Rodrigo (extrato de O Continente1); 1971 – Ana Terra (extrato de O Continente, 2); Incidentes Antares, romance; 1972 – Um certo Hen-rique Bertaso, biografia; 1973 – Solo de Clarineta, 1º vol, memórias; 1975 – A Ponte ( extrato de OAtaque); 1976 – Solo de Clarineta, 2º vol, memórias.

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dual e social. É olhar a natureza humana e social a partir dosolhares de Erico, pela extraordinária realidade dos acontecimen-tos que descrevia.

A produção literária de Erico Verissimo é permanente:atravessa várias gerações de leitores13. Cada uma delas retém oque lhes interessa, ou seja, aquilo que convém a seu sistema devalores ou a seus objetivos, a sua ambiência cultural.14 A recep-ção e apropriação15 de sua obra é um fato: basta constatar o nú-mero de edições e exemplares editados, significativo indicadorda pregnância de sua obra.

Solo de Clarineta - livro de memórias16 - é o mote, o ponto departida nessa viagem pela obra de Erico Verissimo. O livro dememórias, autobiográfico, é uma fonte preciosa para a Históriada Educação. Para Gondra, nesse gênero narrativo:

Um sujeito fala a sua própria voz, levando o leitor a aceitarcomo verdadeiro o que ele conta sobre o seu destino. A ênfase re-cai sobre o universo privado e das experiências particulares fa-zendo, então, com que a barreira estabelecida entre a esfera davida pública e da vida privada deixe de ser tão nítida. O leitoré convocado para o lugar de testemunha do que é narrado. As-sim, este entendimento acerca do caráter da narrativa autobio-gráfica potencializa o seu uso como fonte para a pesquisa histó-rica.17

13. Passados mais de sessenta anos do primeiro livro de Erico Verissimo, sua obra permanece atual,pois continua sendo referência de leitura, tanto para alunos como para professores, tendo sidoindicada recentemente como leitura da Biblioteca Básica para a formação do Professor Leitor, ondeconsta a trilogia - O Tempo e o Vento. Folha Proler. Rio de Janeiro, ano III, n°7, julho de 1999.

14. SCHOPENHAUER, Arthur. Op. cit. p. 43.15. Para Chartier, a noção de apropriação é útil: porque permite pensar as diferenças na divisão, porque pos-

tula a invenção criadora no próprio cerne dos processos de recepção. Uma sociologia retrospectiva, que du-rante muito tempo fez da distribuição desigual dos objetos o critério primeiro da hierarquia cultural, deve sersubstituída por uma outra abordagem, que centre sua atenção nos empregos diferenciados, nos usos contras-tantes dos mesmos bens, dos mesmos textos, das mesmas idéias. CHARTIER, Roger. História Cultural. p.136.

16. Para Calligaris, falar ou escrever de si é um dispositivo crucial da modernidade, uma necessidade cultu-ral, já que a verdade é sempre e prioritariamente esperada do sujeito - subordinada à sua sinceridade. CAL-LIGARIS, Contardo. Verdades de Autobiografias e Diários Íntimos. p. 45.

17. GONDRA, José G. A Exibição do Privado. p. 1.

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As memórias também enfatizam a importância da vida públi-ca para a valorização e desenvolvimento do indivíduo - ninguém existefora da vida pública -, e mostram, ao mesmo tempo, a importância dosujeito individual aumentada à custa do coletivo.18

Essa opção por Solo de Clarineta deveu-se também à necessi-dade de melhor conhecer o autor19 - o conhecimento do eu, isto é,possibilitar um (re)encontro com suas vivências, com a históriade sua obra:

Seguir o fio do intinerário particular de um homem implica ins-crevê-lo num grupo de homens que, por sua vez, são situados namultiplicidade dos espaços e tempos de trajetórias convergentes.As séries documentais, aparentemente circunscritas a um indiví-duo, acabam indicando situações vividas em comum; no tempocurto de uma existência cujo espaço é mais ou menos restrito, nalonga duração de um universo cultural sem fronteiras.20

Ao mesmo tempo, significou uma forma de olhar o socialrio-grandense a partir da dimensão individual, da identidade desujeito e de autor - de um lado normas, valores e categorias que dão sen-tido ao mundo, e, de outro, comportamentos e atos que o instrumentam.21

O livro de memórias permite conhecer algumas faces dapersonagem do autor: sua relação com a obra, sua singularidade,o modo de ser do seu discurso. Para Foucault, o autor é um fun-dador de discursividade - portanto, a função do autor é caracterís-tica do modo de existência, de circulação e de funcionamentode alguns discursos no interior de uma sociedade.

O que, afinal, essas memórias apontam para um pesquisa-dor da História da Educação? Os costumes e práticas sociais e

18. GOULEMOT, J.M. op. cit. p. 391.19. A idéia de autor de Foucault ajuda a ampliar a compreensão de sujeito histórico. Para ele, o nome

do autor não é um nome próprio como qualquer outro, mas antes um instrumento de classificação de textos eum protocolo de relação entre eles ou de diferenciação face a outros, que caracteriza um modo particular de exis-tência do discurso, assinalando o respectivo estatuto numa cultura dada. FOUCAULT, Michel. O que é umautor? p. 53.

20. SALGUEIRO, H. A. Engenheiro Aarão Reis: O Progresso como Missão. p. 18.21. LEPETIT, B. L’histoire prend-elle les acteurs au sérieux? Espace Temps Paris, n. 59-61,p. 115-116,

1995. In: SALGUEIRO, H. op. cit. p. 13 a 21.

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familiares que marcaram a vida de Erico - em uma pequena ci-dade, Cruz Alta, e na capital do Estado, Porto Alegre - do iníciodo século XX aos anos setenta, especialmente as recordações deescolaridade e as práticas de leitura22 de um sujeito de classemédia urbana. Em toda sua obra, é possível encontrar uma his-tória do cotidiano e da vida privada - onde o narrador espraia-se em minúcias sobre a sua formação em família, em seus hábi-tos de vida no espaço doméstico e social, em seus dispositivos de(in)formação, em sua história como leitor.

Singularmente, Solo de Clarineta possibilita, a nós, pesquisa-dores da História da Educação, entrever o universo cultural desua família, através de inúmeros registros onde se evidenciamsua aguçada percepção do mundo. Por exemplo, descreve aspreferências de leitura de seus familiares - uma tia é mostradacomo ledora voraz de romances, essa tia, a quem sempre votei uma afei-ção especial, era das poucas mulheres - talvez a única - que naquela pe-quena cidade serrana sabia ler e falar francês. O Tio Antônio é re-memorado por ter feito algumas incursões pela literatura: lembro-me de ter lido um soneto de sua autoria intitulado Lenço Encarnado,no qual ele exaltava o símbolo de seu partido. De igual maneira, TioNestor é apresentado por sua preferência pelo folhetim, e édescrito como – Devoto ledor de novelas de capa-de-espada, compra-zia-se nas ficções de Alexandre Dumas, Xavier de Montepin, Michel Ze-vaco, Ponson du Terrail e outros grandes do folhetim romanesco do fimdo século passado. O pai – Sebastião Verissimo - merece uma aten-ção especial, mais pormenorizada. Para tanto, Erico elenca osvários autores lidos, os quais permitem pensar na riqueza domundo cultural que vivia.

Homem de leituras variadas, embora não profundas, SebastiãoVerissimo, à boa maneira brasileira, era capaz de discutir com bri-

22. Neste texto, consideramos a leitura como um dos processos de socialização, que juntamente coma função estética tem também uma função pedagógica. A literatura e a leitura como dispositivossociais formadores de seus leitores. FREITAG, Bárbara. O indivíduo em formação. p. 10.

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23. Em 11 de outubro de 1905, surgia no Brasil a primeira publicação de estórias em quadrinhos infantil - O Tico-Tico -, publicada pela Editora S.A O Malho. Além de história em quadrinhos, a revista publicava estórias emtextos, biografias, folclore, poesias e brincadeiras. PRADO, Maria Dinorah Luz. A Literatura Infantil deErico Verissimo. p.11

lho assuntos que não conhecia, e livros de que apenas ouvira fa-lar. Sabia de cor versos de poetas brasileiros, portugueses e france-ses. Lia com delícia Guerra Junqueiro (Quantas vezes o ouvi reci-tar O MELRO!). Devorava As farpas, de Ramalho Ortigão e Eçade Queirós. Conhecia toda a obra do autor de Os Maias. Gostavadas crônicas mordazes de Fialho de Almeida. Era íntimo de Her-culano, Camilo, Garret, Antonio Nobre e Antero Quental. Conhe-cia muito bem a História de Portugal. Admirava a Inglaterra,mas seu amor, esse ele reservava para a França. Tomara uma as-sinatura da revista parisiense L’Illustration. Sua biblioteca cresciaaos poucos. Creio que chegou a ter mais de dois mil livros - isso emCruz Alta, na primeira década deste século. Lembro-me de nomesque eu via em letras douradas na lombada dos volumes ricamen-te encadernados em couro: Chateaubriand, Lamartine, Taine, Re-nan, Victor Hugo, Nietzche, Goethe, Tolstoi, Zola, Stendhal, Flau-bert, Balzac... Numa outra estande não menos pesada alinha-vam-se brochuras impressas em papel gessado - novelas galantes deboulevard - com ilustrações em que se notavam ainda influênciasde Toulouse-Lautrec.

Em igual sentido, a história de leituras de seu avô maternoé também registrada como uma prática de leitura intensiva,conforme nos informa Chartier: poucos livros mas muito lidos,destacando a sua intensa circularidade.

Meu avô materno, entusiasta leitor de jornais, não era, entre-tanto, amigo de livros. Sua “biblioteca” constava de três volu-mes: Os Sertões de Euclides da Cunha, Martín Fierro, de JoséHernandez e Antônio Chimango, de Amaro Juvenal. Dessas trêsobras só lera a última, mas tantas vezes que lhe sabia os versosde memória.

Também é possível perceber em suas memórias o registroconstante de suas práticas de leitura, que se iniciam pela revis-ta carioca Tico-tico23, e prosseguem com Eu sei tudo, L’Illustration.

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Esta última - uma publicação francesa largamente difundida noBrasil, entre as elites ilustradas, desde finais do século XIX - si-naliza o enraizamento de um habitus cultural francês, que valo-riza a presença de uma cultura humanística clássica.

Compondo um verdadeiro painel, Erico enumera delicio-samente uma sucessão de leituras que lhe marcaram a fase juve-nil. Primorosos comentários são realizados sobre os livros lidos- por exemplo, a lembrança do primeiro livro como uma “narra-tiva sobre caçadas”. E prossegue lembrando:

Aos dez ou onze anos, Júlio Verne: Viagens Maravilhosas – ACasa a Vapor. O que me interessava em seus romances não era acultura, mas a aventura. Aos treze li Esfinge de Afrânio Peixo-to. De Afrânio Peixoto também li Fruta do Mato e Bruguinha...Travei conhecimento com Aluísio de Azevedo através de O Corti-ço e Casa de Pensão. Coelho Neto me conquistou - que linguagemrica, quanta palavra de dicionário! - com o seu Sertão, mas detodos os seus romances o que mais me impressionou foi Invernoem Flor. Por mais estranho que pareça, a minha primeira tenta-tiva para ler Machado de Assis não foi lá muito bem sucedida.Fiz passeios deliciosos pelos romances de Joaquim Manoel de Ma-cedo, cuja Moreninha beijei castamente....

A paixão pela leitura e pelas palavras aparece na dedicató-ria à sua mãe na obra Viagem à Aurora do Mundo: aquele primeirodicionário que me deu. O que tanto o impressionou?

A recordação de seus livros escolares remete para algumasobras significativas do ensino no período, tais como Seleta de Pro-sa e Verso, de Clemente Pinto; Dicionário Prosódico de Portugal eBrazil, de João de Deus - além destes, faz referências a uma va-riedade de leituras e autores que o marcaram: Renan, StuartMill, Tagore, Khayyan, etc.

O romancista também relata em minúcias descritivas todoo seu processo de educação formal, permitindo ao pesquisadorum certo conhecimento do cotidiano escolar de sua época:

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Aos sete anos eu havia sido matriculado no Colégio ElementarVenâncio Aires. Como já sabia ler passavelmente bem, pude sal-tar por cima da cartilha primária do uva, ovo, avô e cair numlivro que começava com a estória de duas irmãs, Guiomar e Jú-lia. Para o menino acostumado aos pitorescos contos de Estevão- com seus punhais malaios, seus suplícios chineses, duelos eguerras -, aquelas inocentes fábulas das duas irmãs eram-me in-suportavemente aborrecidas, a ponto de me provocarem bocejos.(...) No colégio elementar eu era um aluno bem comportado, sem-pre fechado no meu silêncio, retraído nas horas de recreio. Porisso não era lá muito bem querido pelos alunos rebeldes, que mechamavam de “chaleirista”, de adulador das professoras. Estassim, eram minhas amigas, citavam-me como exemplo de bomcomportamento e até de decência, mal sabendo por onde anda-vam meus pensamentos e sentimentos. Aprendi a soletrar muitocedo, em casa. Mais tarde, na escola primária, fui um tanto mi-mado pelas professoras, por causa do prestígio social de meu pai.Lia corretamente, sabia o meu pouco de História do Brasil, tira-va boas notas em Lições das Coisas, mas tinha as piores relaçõesimagináveis com os números, que me causavam vertigens.Aprendi a duras penas três das quatro operações, mas empaqueinas contas de dividir. Como se aproximassem os exames de fimde ano, e eu estivesse correndo o risco de ser reprovado por causade Aritmética, D. Margarida Pardelhas, diretora da escola, melevou a meu pai e lhe disse: “fizemos tudo que estava ao nossoalcance, mas não conseguimos meter na cabeça desse menino aconta de dividir”. Pronunciou estas palavras apocalípticas e sefoi no seu passo duro e marcial de coronel prussiano. Fiquei en-vergonhado, com um calorão nas orelhas. Meu pai me olhou edisse: “Acabas de receber o diploma de burro”. Depois dessa cenaconfiou-me aos cuidados magistrais dum senhor que naquelaépoca estava hospedado no Sobrado. Chamava-se Miguel Maia,era franzino, tinha no rosto chupado, de um amarelo citrino,uma permanente expressão de azedume. Homem inteligente eculto, lia Nietzsche e Schopenhauer...

Ainda com relação à sua memória escolar, destaca-se o sig-nificado da passagem do tempo para o autor:

É sabido que o relógio psicológico da infância anda muito maisdevagar que o dos adultos. O calendário das crianças parece fei-

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to mais para a eternidade do que para o tempo humano. As ho-ras de aula arrastam-se como tartarugas monótonas. Como cus-ta a chegar, todos os anos, o período de férias de verão!

Sobre a professora, a descrição apresentada parece confir-mar alguns estereótipos ainda presentes no imaginário coletivo.A primeira professora é assim descrita:

Meus pais me faziam também freqüentar a Aula Mista Particu-lar da famosa D. Margarida Pardelhas24 – inesquecível figurade educadora que fez história na nossa cidade e fora dela.(...) D.Margarida Pardelhas era uma espécie de Nêmesis, temida pelosalunos insubordinados ou vadios e respeitada e mesmo venera-da pelos outros. Solteirona de estatura meã, robusta mas nãogorda, usava pince-nez, tinha um par de olhos claros e penetran-tes, que pareciam ler nossos pensamentos mais recônditos, o lá-bio superior sombreado por um buço que, quando seu rosto esta-va sério ou irado, lhe acentuava a expressão de terribilidade.Sua voz era metálica e autoritária. Tinha, porém, um belo sor-riso, que parecia reservar para os seus eleitos, isto é, os alunosque se portavam bem em aula e interessavam-se por aprender.(...) Pisava duro com seus sapatos de salto militar, e o ruído rit-mado de seus passos era conhecido de todos, inocentes e culpa-dos. Quando ela entrava na aula em que a desordem e a balbúr-dia se haviam instalado, todos se aquietavam de súbito, ao im-pacto de sua poderosa presença, e dali por diante reinava o si-lêncio. Recordo-me freqüentemente dessa minha professora atrásde uma mesa, em cima do estrado, tomando notas num caderno.Quando se ouviam murmúrios na aula, erguia a cabeça, seusóculos relampejavam, e ela exclamava: “Ai!Ai!Ai!”. E os ruídosmorriam instantaneamente.

Futuramente, as marcas desse período escolar vão aflorarquando de uma viagem a Portugal. Erico relembra:

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24. Margarida Pardelhas foi aprovada em concurso público urbano a que se submeteu em fevereirode 1904, sendo nomeada para reger a segunda classe complementar, seção feminina do ColégioDistrital de Cruz Alta. Com esse colégio foi extinto, passou a assumir a 6ª aula mista de 2ª entrân-cia de Cruz Alta. Em 14 de maio de 1913 foi designada para servir no Colégio Elementar de CruzAlta, acumulando a função de diretora. Completou 30 anos de serviço em 31 de dezembro de1934, passando a atuar no Grupo de Navegantes. Diretoria Geral da Instrução Pública. AlmanckEscolar do Estado do RGS. 1935. Porto alegre: Livraria Selbach, 1935. p. 81.

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E então de súbito o menino está em Cruz Alta, na Aula MistaParticular de D. Margarida Pardelhas, de pé junto de sua car-teira, com a Seleta de Prosa e Verso nas mãos, lendo em voz altaum trecho de Pinheiro Chagas, intitulado Os Restos do Naufrá-gio, e que começa assim: Nas praias da Bretanha vivia um pes-cador com a mulher e um filho...

Ao longo de sua obra, muitas recordações remetem à in-fância. Durante a recuperação de um enfarte - decidido a conti-nuar vivo -, são as lembranças de um velho livro de leitura escolar quelhe povoam a mente, através do desenho linear que ilustrava a Pa-rábola das Varas.

Na adolescência, Erico é interno em um Colégio fundadopor missionários da Igreja Episcopal Americana - Colégio Cru-zeiro do Sul, onde permanece três anos (1920-22). No interna-to, segundo o autor, ... ocupava o quarto número 50, um cubículo es-treito onde mal cabiam uma cama, um lavatório de ferro com jarro e ba-cia, e o baú onde eu guardava as minhas roupas. Essa descrição si-naliza para um regime de enclausuramento do sujeito, que o fazidentificar-se com o protagonista de um de seus textos escolares- Por essa época líamos e analisávamos em classe Eurico, o Presbítero,de Alexandre Herculano. (...) Agora naquele internato eu me sentiacomo Eurico enclausurado no seu mosteiro.

Nesse aspecto, pode-se inferir que o universo escolar deErico é recorrente em suas obras literárias e nas motivaçõespara escrevê-las, como podemos observar em O Tempo e o Vento:

Antes de começar o ambicioso projeto, eu precisava vencer mui-tas resistência interiores, a maioria delas originadas nos meustempos de escola primária e ginásio. (...) Nossos livros escolares– feios, mal impressos em papel amarelado e áspero – nunca nosfizeram amar ou admirar o Rio Grande e sua gente. Redigidosem estilo pobre e incolor de relatório municipal, eles nos apresen-tavam a História do nosso Estado como uma sucessão aborrecí-vel de nomes de heróis e batalhas entre tropas brasileiras e caste-lhanas. (Ganhávamos todas) (...) Concluí então que a verdadesobre o passado do Rio Grande devia ser mais viva e bela que a

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sua mitologia. E quanto mais examinava a nossa história, masconvencido ficava de desmitificá-la.

Em Olhai os Lírios do Campo, para construir o personagemEugênio, o autor utiliza de eventos escolares para descrever avergonha da pobreza. Eugênio não podia olhar para o pai sem selembrar do Segundo Livro de Leitura, cuja lição moral consistia nafrase:

Quem com ferro fere com ferro será ferido. Na aula Eugênio sen-tiu-se humilhado como um réu. Na hora da tabuada a professo-ra apontava os números no quadro-negro com o ponteiro e osalunos gritavam em coro. Dois e dois são quatro! Três e três sãoseis! E o ritmo desse coro lembrava a Eugênio a vaia do recreio.Calça furada-dá.

Eugênio lia as revistas que Erico lia na infância - L’Illustra-tion. Através desse personagem, também defende que uma dasformas de ascensão de classe social se dá através do desempe-nho escolar, resignificando a instituição escola como agênciaformadora matriz.

Eugênio não tinha outro remédio senão procurar compensaçãonos livros. Estudava muito, distinguia-se na sua classe, ocupa-va os primeiros lugares. Isso lhe valia novas inimizades e essasinimizades o empurravam cada vez mais para a solidão.

Ao que tudo indica, podemos pensar que Eugênio seria umalter ego de Erico, haja vista as similaridades da formação escolarvivenciadas por ambos. Eugênio freqüentou também internatode missionários americanos - Columbia College - graças ao sacrifícioda mãe - o luxo de freqüentar um colégio de primeira classe era porque amãe pagava a pensão e o ensino lavando toda a roupa branca do colégio.

A mulher na obra de Erico é, em geral, uma figura centrale de personalidade forte. Para construir suas personagens femi-ninas, as insere no universo da escrita como desvelamento de si.

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Clarissa, Silvia, Olívia, Bibiana são autoras de diários25 e de car-tas; entre outras finalidades, servem para apreensão de suas sub-jetividades. Espaços sacralizados da escrita feminina, os diáriosfazem parte de práticas da memória, que o autor, como homemque não tinha um diário, lamenta não tê-lo feito enquanto es-crevia O Tempo e o Vento:

Esse jornal não só teria registrado os pensamentos, sentimentos,dificuldades e dúvidas, ânimos e desânimos do escritor empe-nhado em fazer o que ele esperava viesse a ser a sua obra máxi-ma, como os fatos políticos e sociais desses agitados quinze anosda vida nacional e internacional se refletiram na mente, navida e na obra do romancista.

O público infanto-juvenil também mereceu atenção espe-cial de Erico Verissimo. A Literatura Infantil, no início de suacarreira, foi um investimento singular. É um período em que aescolarização infantil é foco da atenção das autoridades gover-namentais. Na década de 3026, produz vários escritos voltados aeste público, depois reunidos em Gente e Bichos (1956).27 Nestestextos, ocorre uma associação da criança com os animais huma-nizados, isto é, os personagens são bichos, bonecos animados,que assumem características humanas.28

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25. Para Goulemot, no diário o autor manifesta sua consciência, sua visão privilegiada por ser comume exterior aos fatos, sua vontade de salvar do esquecimento o que viu, escutou ou ouviu dizer. Nes-sa prática, o sujeito que escreve se coloca como o fundamento da verdade daquilo que enuncia. Oque garante a veracidade do conteúdo do diário paradoxalmente pertence ao não público, ao pri-vado e ao íntimo, (...) a esse olhar individual, à margem, quase secreto, lançado sobre as coisas e omundo. GOULEMOT, J.M. op. cit. p.392. Para Calligaris, os conteúdos do diário são invariavelmen-te afirmações da substancialidade de quem escreve. (...) de um diário o indivíduo espera identida-de, significação e valor. CALLIGARIS, Contardo. Verdades de Autobiografias e Diários Íntimos. p. 50.

26. Os romancistas e a crítica de 30 compartilham a evolução da literatura infantil brasileira. O crescimento quan-titativo da produção para crianças e a atração que ela começa a exercer sobre escritores comprometidos com arenovação da arte nacional demonstram que o mercado estava sendo favorável aos livros. Essa situação rela-ciona-se aos fatores sociais: a consolidação da classe média, em decorrência do avanço da indústria e da mo-dernização econômica e administrativa do país, o aumento da escolarização dos grupos urbanos e a nova po-sição da literatura e da arte após a revolução modernista. Há maior número de consumidores, acelerando aoferta. LAJOLO, M. e ZILBERMAN, R. Literatura Infantil Brasileira. p. 47.

27. Recentemente, o Ministério de Educação divulgou a lista de títulos considerados indispensáveisem bibliotecas de escolas públicas selecionados entre autores nacionais e clássicos da literaturapara crianças. Nesta lista não consta nenhuma obra de literatura infantil de Erico Verissimo. ZEROHORA. Caderno de Cultura. Porto Alegre, 6 de março de 1999.

28. Para Filipouski e Zilberman esse tipo de literatura tem a função de fornecer informação científi-

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Erico também escreve três obras, caracterizadas como ro-mances didáticos: Viagem à Aurora do Mundo (1939), Aventuras noMundo da Higiene(1939) e As Aventuras de Tibicuera (1937) - essaúltima conta, a partir das proezas de um índio imortal, a Histó-ria do Brasil, tendo como mote a versão oficial escolar da histó-ria de nosso país, ou seja, Erico assume os mesmos juízos lega-dos pela visão portuguesa da história brasileira.29

Também para as crianças, Erico aborda temas históricos: es-creve a biografia de Joana D’Arc (1935) e Viagem à Aurora do Mun-do (1939), que afirma ser:

Conseqüência dum feriado que concedi à imaginação - não temnenhum compromisso com a psicologia nem com a verossimilhan-ça e muito menos com os problemas sociais do mundo. Trata-se deuma fantasia quase didática na forma de romance e seu objetivoprincipal é dar ao leitor uma idéia do mundo pré-histórico, talcomo os cientistas o reconstruíram.30

Essas obras constituem um projeto político e pedagógico -como podemos perceber no final do livro A Vida de Joana D’Arc,em que conta à personagem o que aconteceu após sua morte edestaca as semelhanças ainda presentes no século XX.

De repente me acho dentro do meu século. Que vejo? Rumores deguerra na Europa onde ainda há reis sem vontade, conselheirosastutos e homens solertes que tiram gordos proveitos das guerras.Existem ainda capitâes bravos (...) e soldados ingênuos que, comono teu tempo, iam à guerra sem saber para quê. Os tratados se ras-gam com a mesma facilidade (...). (...) Infelizmente, doce Joana,

ca, moralizante e fantástica, ensinando divertindo. Também, essa produção age como um exercíciopreparatório para a vida futura, nos quais a criança adquire noções primárias sobre o meio ambiente atravésde uma efabulação com contornos dramáticos que, mesmo possuíndo índole fantástica, volta-se para o real. FI-LIPOUSKI, Ana Maria e ZILBERMAN, Regina. Erico Verissimo e a Literatura Infantil. p.58-59.

29. LAJOLO, M. e ZILBERMAN, R. op. cit. p. 79.30. No Prefácio, encontramos referência que a obra de Conan Doyle - O Mundo Perdido -, “fêz que -

sendo já adulto - meu interesse por aqueles monstros pré-históricos revivesse. Procurei dar nestelivro destinado a leitores de todas as idades - leigos como eu na matéria - um história compreen-siva daqueles truculentos habitantes do mundo antediluviano. Tratei de açucarar a pílula, envol-vendo a narrativa nos véus do romance e por sinal romance folhetinesco ao qual não faltam o mo-cinho, a mocinha e nem mesmo o homem mau detentor duma hipoteca...”

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ainda não podes voltar ao mundo apenas com o teu vestidinhovermelho de camponesa, com a roca na mão e um sorriso no rosto.Terá de usar de novo tua rija armadura (...), a tua espada e teugrito de guerra. E nem assim estará protegida, porque os homensde hoje, minha iluminada, são senhores de artimanhas sobrenatu-rais.31

Do ponto de vista da História da Educação, especial regis-tro deve ser dado à obra Aventuras no Mundo da Higiene32, porsua significação para o momento histórico, de organização econsolidação da Secretaria de Educação e Saúde Pública(1935). Nessa época, as autoridades governamentais assumemum discurso de sanitarização da sociedade, especialmente notocante às questões de higiene pessoal e social. Essa obra podeser considerada um manual de civilidade, que serve ao mesmotempo para impor novas condutas através dos modelos altamente va-lorizados e para excluir necessariamente do espaço público comporta-mentos que outrora lhe pertenciam.33

Trabalhando na interface entre História, Literatura e Edu-cação, foi possível o diálogo: o historiador da educação, enrai-zado nas condições do mundo contemporâneo, busca interpre-tar práticas de memória expressas via literatura. Para esse olharpassageiro na obra de Erico Verissimo, nos arriscamos pelos ca-minhos do apenas imaginável, onde seguindo misteriosas pega-das foi possível entrever, nas sombras da memória, o doce, o su-blime, o interdito, o proibido, o permitido, o sonhado...

Finalmente, parece importante lembrar que essa experiên-cia de interpretação não descartou a imaginação produtiva: abar-cou outros campos disciplinares como constantes interlocuto-res, levando em conta a possibilidade da inclusão de represen-tações, metáforas e imagens variadas no trato histórico. Assim,

31. VERISSIMO, Erico. A Vida de Joana D’Arc. p. 310-311.32. Maria Dinorah Luz Prado, na dissertação de mestrado sobre a literatura infantil de Erico

Verissimo, não cita e nem faz referência a esta obra. 33. GOULEMOT, Jean M. op.cit. p.373.

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entre um e outro - discurso ficcional e discurso histórico - esta-belecem-se arriscadas e sedutoras relações, em alguns momen-tos do seu percurso muito próximas, como tentamos olhar e tra-çar um caminho pela vasta obra de Erico Verissimo.

* Doutora em História e Filosofia da Educação, UFRGS.

** Doutora em História e Filosofia da Educação, UDESC/UFSC

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“Maria Valéria sempre lamentara que os homens não tivessem juízo suficiente para resolverem suasquestões – as políticas e as outras – sem duelos ou guerras.”

Arquipélago – Lenço Encarnado

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O CICLO DE VARGAS SEGUNDO VERISSIMO

R e n é E . G e r t z *

A partir dos livros de Hélio Silva, popularizou-se a expres-são “ciclo de Vargas”. Para ele, esse ciclo iniciou-se em 1922,mas seu fechamento pode ser tanto o ano da morte de Vargas,em 1954, quanto o do golpe militar de 1964, porque visou o le-gado getulista e porque seus protagonistas militares se viam nalinhagem dos de 1922. Para o início, costuma indicar-se comobatizador fundamental o levante de jovens oficiais, os “tenen-tes”, no Rio de Janeiro, movimento continuado em 1924, emSão Paulo e no Rio Grande do Sul, e depois na Coluna Prestes.Mas deve-se agregar outros episódios, como a fundação do Par-tido Comunista, fator que, no decorrer do tempo, reforçou osurgimento de sentimentos anticomunistas e de propostas paralidar com a “questão social”; a realização da Semana de ArteModerna, a partir da qual vários artistas e intelectuais começa-ram a repensar o Brasil; a fundação do Centro D. Vital, impor-tante local de articulação político-religiosa do catolicismo. Comcerteza não está errado incluir as eleições ao governo do Rio

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Grande do Sul, pois seu desfecho desencadeou a revolução de1923, que só acabou com a fixação de um término para o longodomínio de Borges de Medeiros, abrindo caminho para a ascen-são política de Vargas. E esses episódios todos estavam emoldu-rados pelos festejos do centenário da Independência.

O “ciclo de Vargas” ocupa espaço importante em O Tempo eo Vento. Aparece no início do segundo terço da obra, ao abrir –e também fechar – O Retrato, e ocupa todo O Arquipélago. O fatode a trama terminar em meio ao período, em 1945, sugere que,para o autor, a história do Estado percorreu um caminho deci-sivo entre 1745 e 1945. Claro, Vargas não aparece desde o iní-cio (em 1922), tanto na história real quanto na ficção, comopeça-chave desse período de significativas transformações. Pelocontrário, foi antes responsável pelo continuísmo, quando nes-se ano exerceu o cargo de presidente da comissão escrutinado-ra das eleições em que Borges concorreu pela quinta vez ao go-verno do Estado e necessitava de 75% dos votos para se reele-ger. A comissão presidida por Getúlio conseguiu, por meio dealquimias usuais na época, produzir um resultado em que essepercentual foi atingido.

Como acontece com todo o período abarcado pelo roman-ce, a história referente ao “ciclo de Vargas” aparece em váriosníveis e sob várias formas. Quanto aos níveis, temos desde osmais profundos sobre as transformações econômicas, sociais, re-ligiosas, culturais, até o mais cambiante dos episódios políticosdo dia-a-dia. Quanto às formas, temos, no mínimo, duas: a his-tória narrada pelo autor e as versões das personagens.

O período Vargas foi rico em transformações econômicas.O Brasil iniciou uma transição decisiva de uma economia essen-cialmente agrária para uma economia mais urbanoindustrial.Seja porque esse processo não afetasse muito profundamente aeconomia gaúcha, que no início do século ocupava o terceirolugar no ranking nacional de industrialização, perdendo grada-

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tivamente essa posição, seja porque Erico Verissimo não tivessetido muita familiaridade com assuntos econômicos, esse aspec-to – e outros – da história econômica está parcamente refletidoem O Arquipélago. Há, evidentemente, referências genéricas àcrise da pecuária, mas a apresentação de fatos concretos não vaimuito além da bancarrota do Banco Pelotense. Referências a as-pectos culturais, em contrapartida, estão onipresentes, caracte-rizando de forma convincente a crescente influência norte-ame-ricano desde a I Guerra, sobretudo por meio do cinema e damúsica; mas persistem também debates antigos, incluindo lite-ratura e filosofia, entre francófilos, germanófilos e , agora, ame-ricanófilos.

Cabem algumas observações menos banais sobre as trans-formações sociais e religiosas. Em vários momentos, as persona-gens do romance apontam a decadência da aristocracia rural e aemergência da sociedade colonial como o fato social mais im-portante do período, aparecendo quem temesse a “agringalha-ção” do Rio Grande. A pesquisa histórica aponta para a correçãodessa percepção, ao menos no que tange ao segundo elemento.Santa Fé fica numa zona limítrofe entre esses dois mundos.

Se dividirmos o Estado através de uma linha imaginária deSão Borja a Osório – com exclusão do município de Porto Ale-gre – definindo, cum grano salis, os dois mundos, veremos quepelo censo de 1920 ambos tinham mais ou menos o mesmo nú-mero de habitantes, mas pelo censo de 1940 o número de habi-tantes da metade Norte se tornara 50% superior ao do Sul. To-dos os indicadores socioeconômicos desse mesmo ano tambémapontam para a superioridade do Norte em relação ao Sul. Oassociativismo econômico colonial crescia, com a reestrutura-ção da católica União Popular em 1926 e a fundação da lutera-nófila Liga de Uniões Coloniais em 1929, esta última com atua-ção muito intensa na região de Cruz Alta. Mas – na medida emque a educação constitui um indicador social – a elite universi-

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tária em 1940 ainda era mais numerosa no Sul, com 2.695 indi-víduos com curso superior, contra 2.138 no Norte, e nesse sen-tido os diálogos de O Arquipélago – mesmo desconsiderando fa-tores culturais – soariam deslocados na região colonial.

A religiosidade do mundo gaúcho tradicional certamentenão era muito intensa. O “ciclo de Vargas”, no entanto, coinci-de com um movimento nacional de renovação do catolicismo ecom desafios representados pelo ingresso de confissões protes-tantes de origem não-imigrantista. E diante desse quadro estru-tura-se no Rio Grande do Sul uma Igreja Católica fortementemarcada por traços coloniais – o que não é necessariamente amesma coisa que alemão ou italiano: a liberal madre superiorado colégio de Santa Fé viera da Alemanha, já o vigário era de“origem” alemã. D. João Becker governava desde 1912 a arqui-diocese de Porto Alegre, permanecendo nela até sua morte, em1946. Na década de 1920, o encontramos tentando ampliar suainfluência política, candidatando-se a mediador do conflito de1923. Em 1929, iria colocar um de seus mais estreitos colabora-dores, monsenhor Nicolau Marx, numa cadeira da Assembléiade Representantes, de cuja tribuna sairia em defesa da candida-tura de Getúlio Vargas em 1930, contra as acusações de ateísmopositivista formuladas por grande parte do clero do restante dopaís. Além de Marx, a equipe em torno do arcebispo incluíanomes como José Barea e Vicente Scherer. Das 47 funções pas-torais de Porto Alegre em 1940, 30 estavam ocupadas por pa-dres de sobrenome alemão ou italiano. No restante da arquidio-cese, 101 do total de 119 paróquias eram presididas por padresde sobrenome alemão ou italiano.

É, porém, ao nível da política – para os historiadores, omais imediato e cambiante – que se destaca com intensidadenão só a percepção, mas também a pesquisa histórica de Erico.É natural que nem toda a história política do romance seja umahistória “verdadeira” – o autor mistura personagens e fatos fic-

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tícios com a história real e os diferentes personagens apresen-tam suas versões. Mas não raro impressiona a precisão com re-lação aos fatos. Nesse sentido, por exemplo, efetivamente acon-teceram os incidentes referidos sobre Neu-Württemberg –nome real de Panambi, na época – durante a Revolução de1923, e o presidente eleito Washington Luís de fato visitou o Es-tado na primeira semana de junho de 1926.

Mas acontece um fato curioso. O cidadão interessado nahistória política do Rio Grande do Sul encontrará pouquíssi-mos trabalhos sobre o período que vai além de 1937. Uma dasraras exceções é o livro Gaúcho Politics, do brazilianista norte-americano Carlos Cortés, que está aguardando uma traduçãodesde 1947. O livro cobre os anos de 1930 a 1964, mas, interes-santemente, ao tratar do período de 1937 a a 1945, como quelevanta vôo, pois as informações sobre o estado são muito escas-sas, havendo um certo detalhamento da política nacional.

Com Erico parece acontecer algo parecido, talvez por ou-tra razões. Sua história política do Rio Grande do Sul é bastan-te detalhada até 1927, mas sofre uma inflexão a partir desseponto. O governo estadual getulista de 1928 a 1930 ocupa mui-to espaço e, a partir de 1930, os personagens centrais transfe-rem residência para o Rio, de forma que a história passa a serrelatada a partir dessa perspectiva federal, o que ocorre conco-mitantemente com o abandono do detalhe. Para uma saga gaú-cha, causa estranheza a ausência de referências significativas aFlores da Cunha, que, afinal, governou o estado de 1930 até1937; há muito maior destaque para sua atuação anterior a esseperíodo. E Cordeiro de Farias, na qualidade de interventor de1938 a 1943, não aparece.

Depois de ter proclamado o Estado Novo, em 10 de novem-bro de 1937, Getúlio deixou o irmão Protásio como supervisorde seus interesses pessoais e políticos no Rio Grande do Sul. Nasua correspondência, encontramos freqüentes cartas do irmão

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com avaliações sobre o desempenho de Cordeiro de Fariascomo interventor. No início de 1938, Protásio julgou que haviamuito pouco entusiasmo em torno do novo regime no Estado.Por isso, criou um Comitê Propaganda, presidido por ViriatoVargas, que, entre outras medidas, passou a irradiar aos sábadospela manhã, através da Rádio Farroupilha, pequenas falas de in-telectuais a favor da nova situação. Logo no início desse movi-mento, em abril de 1938, Erico Verissimo compareceu a umdesses programas, sendo sua fala posteriormente publicada noJornal do Estado (25/4/1938). Começou contando uma histó-ria sobre o que costumava acontecer no Brasil, onde, em virtu-de dos excessos do federalismo, a luta entre facções locais e en-tre os Estados prejudicava o país, aviltando, por exemplo, o va-lor de sua moeda: “E nessa cegueira caminhávamos para a gran-de catástrofe. E é desse desastre que o Estado Novo nos procu-ra livrar”. A idéia de que a política local e regional deixaria deser a determinante e que, portanto, teríamos uma verdadeirapolítica, a nacional, estava bem presente, justificando possivel-mente o próprio abandono da história regional: “O EstadoNovo em última análise pretende fazer com que os brasileiros,desde o mais humilde até o mais importante, política e social-mente, deixem de olhar para a sua barriguinha e ergam osolhos e pensem no Brasil como um todo”. A partir dessa avalia-ção, foi além, mostrando-se bem prático, ao abordar a questãoda nacionalização do ensino nas assim chamadas “escolas es-trangeiras” : “Senti sempre a necessidade da nacionalização doensino. Ela aí está”. Endossou aquilo que imaginava ser a políti-ca externa do novo regime, destacando que o Brasil por nature-za renegava o racismo e precisava praticar uma “política deaproximação pan- americana”. Confessou que mudara sua opi-nião sobre o regime entre novembro de 1937 e abril de 1938:naquela data, pensara que se estava diante da concretização daditadura integralista, “mas os fatos, meus amigos, tomem nota:

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os fatos se encarregaram de provar que felizmente eu me enga-nara. Nem esquerda nem direita, mas sim o centro, que é oequilíbrio e o bom senso. Nenhum homem de boa vontadepode negar o seu apoio ao Estado Novo”.

No romance, essa posição aparece quase ipsis verbis numafala de Rodrigo Cambará em defesa do regime; mas Rodrigo,evidentemente, não reflete o pensamento de Erico Verissimo.Se olharmos para aquilo que Floriano pensa sobre o EstadoNovo, veremos que ele se sente culpado por esse regime, cúm-plice “por comissão ou omissão”. Suas principais críticas são aprática de todo tipo de violência e a não-eliminação das maze-las da velha política regional: empreguismo, corrupção, negó-cios escusos. Talvez tenha sido essa decepção que levou o ro-mancista a não investir pesado na pesquisa histórica sobre opróprio Vargas.

* Doutor em História, UFRGS/PUCRS.

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“Em 1850 a vila de Santa Fé foi elevada a cabeça de comarca e seu primeiro juiz de direito, o Dr.Nepomuceno Garcia de Mascarenhas, natural do Maranhão, veio morar com a esposa numa dascasas de alvenaria que o Cel. Bento Amaral mandara recentemente construir na Rua dos Farrapos.”

O Continente – A Teiniaguá

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A Identidade Sul-rio-grandense noImaginário de Erico Verissimo

H e l o i s a J o c h i m s R e i c h e l *

A identidade é uma definição posicional deindivíduos dentro de instituições e socieda-des.

Raúl Béjar Navarro 1

Entre as inúmeras abordagens que a obra O Tempo e o Ventode Erico Verissimo possibilita, escolhemos identificar e analisaras representações que, no imaginário do autor, aparecem comoelementos fundantes da identidade sul-rio-grandense. Para tal,selecionamos a primeira parte da mesma, a qual se apresentasob o título de Ana Terra.2

Para justificar nosso enfoque, inicialmente, destacamos arelevância de que se reveste, para o processo de construção e deafirmação da identidade coletiva de uma sociedade, um textoque, escrito por um reconhecido autor como Erico Verissimo,narra as origens de sua formação. Para que as representaçõesde um romancista, aqui entendidas como construções mentaissubjetivas e apresentadas de forma ficcional, sem compromissocom a objetividade do real, alcancem o estatuto de verdade e

1. NAVARRO, Rául, Béjar; CAPELLO, G. Héctor Manuel. Bases teóricas y metodológicas en el estudio dela identidad y el carácter nacionales. Cuernavaca: Universidad Autónoma de México, 1990. p. 24.

2. VERÍSSIMO, Erico. Ana Terra. 9 ed. Porto Alegre: Globo, 1977.

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atuem como marcas identitárias, é necessário que dois elemen-tos se conjuguem: deve haver uma relação entre a narrativa doenunciador e as vivências econômicas, sociais, políticas e cultu-rais do grupo receptor, como também o reconhecimento, pelosmembros deste grupo, da autoridade do autor do discurso.Bourdieu alerta para a relevância deste reconhecimento quan-do afirma:

O acto de categorização, quando consegue fazer-se reconhecer ouquando é exercido por uma autoridade reconhecida, exerce poderpor si... A eficácia do discurso performativo que pretende fazersobrevir o que ele enuncia no próprio acto de o enunciar é pro-porcional à autoridade daquele que o enuncia...3

Se considerarmos a identidade como um ato consciente de tra-zer à existência um grupo que passa a ter uma visão única de sua iden-tidade e uma visão idêntica da sua unidade, isto quer dizer, uma per-cepção de alteridade em relação a outros grupos sociais e de per-tencimento a um em especial, podemos dizer que o romance deErico pode ser considerado como um discurso regionalista quecontribui significativamente para a aceitação coletiva de determi-nadas representações como sendo próprias da identidade sul-rio-grandense.4

As idéias, as imagens, os valores, as atitudes ou os estereóti-pos descritos num texto podem expressar o conteúdo de umaidentidade e atuar na construção dos sentimentos de pertença ede alteridade. Mas como todo o grupo tem necessidade de co-nhecer sua origem, aquelas representações vão desempenhareste papel tanto quanto mais estiverem compromissados a dar co-nhecimento das condições de nascimento do próprio grupo. Emoutras palavras, o que queremos afirmar é que as representações

3. BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Rifel, 1989. p.116.4. Para Bourdieu, “ O discurso regionalista é um discurso “performativo”, que tem em vista impor

como legítima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a “região”assim delimitada....”. [Op. cit., p.116].

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construídas por um autor acerca das origens de um grupo, sejaele político, social, étnico etc, têm uma força determinante noprocesso de construção de sua identidade. Daí advém, pois, a im-portância do texto de Ana Terra, no qual Erico Verissimo procu-ra dar a conhecer aos receptores privilegiados do mesmo que sãoos sul-rio-grandenses, os elementos constitutivos e o processo degestação deste grupo regional.

Seria, assim, o momento de perguntar quais as principaisrepresentações sobre a formação da sociedade sul-rio-gran-dense que se fazem presentes na obra de Verissimo a ponto depodermos considerá-la como peça importante no estabeleci-mento da comunidade de sentido em que se constitui a identi-dade. Antes, porém, nunca é demais referir que as representa-ções se constituem de construções imaginárias que se apoiamem dados concretos do real, reapresentando-os através de ima-gens e de palavras, através dos quais se realiza uma atribuiçãode sentido.

A principal idéia que queremos destacar porque perpassatodo o livro é a de formação e delimitação de fronteira, como li-nha que divide os territórios do eu e do outro. Ela é fundamen-tal para a identificação e reconhecimento daqueles que estãodentro do continente como integrantes da sua coletividade eaqueles que a ele não pertencem, como os diferentes. Através deuma linha imaginária que vai sendo traçada, o sentimento depertença e o de alteridade vão sendo construídos. Nesse sentido,é evidente o papel de outro que Erico Verissimo atribui aos caste-lhanos e, para que as diferenças sejam rapidamente assimiladaspelo leitor, a representação dos mesmos como bandidos e inva-sores. Episódio ilustrativo, encontramos no assalto à casa de AnaTerra e seus pais quando Pedro ainda era menino. Num mesmoparágrafo, há a identificação dos invasores como castelhanos ebandidos e, logo a seguir, o uso de palavras em espanhol, ajudan-do a construir a imagem do hispânico como o outro:

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Combinaram tudo. Antonio sairia para se entender com os cas-telhanos enquanto os outros ficariam dentro de casa, preparadospara tudo. Se os bandidos quisessem apenas saquear a estância,respeitando a vida das pessoas, ainda estaria tudo bem. Era sóapear e começar a pilhagem...5

A gritaria continuava. Mãos fortes agarravam Ana Terra no ar,e puseram-na de pé. A mulher abriu os olhos: cresceram para elafaces tostadas, barbudas, lavadas em suor.– Mira que guapa!” 6

A fronteira, como território reconhecido como propriedadecoletiva por onde se pode transitar com segurança e oficialmen-te, inspira, também, o espaço e o tempo trabalhados pelo autorem seu livro. O período delimitado entre os anos de 1777 e1811 é fundamental para a delimitação do atual território doRio Grande do Sul pois, além de seu início ser marcado, comorefere Erico, pela expulsão dos espanhóis das terras do continen-te, ele corresponde ao momento da expansão portuguesa parao oeste e para o sul da linha de Tordesilhas. Corresponde, as-sim, a um momento de construção de novas fronteiras, quandoo território se estendeu até o rio Uruguai, através da anexaçãoda área missioneira e, ao sul, foram ocupadas as terras que cor-respondiam aos campos neutrais.

Além de se referir a um período de crescimento e, portan-to, de conquistas, a obra narra o domínio do território da cam-panha rio-grandense, espaço que os construtores da identidaderio-grandense, numa perspectiva homogenizadora, identificamcomo berço da cultura regional típica. É sugestiva, assim, a idéiade fronteira móvel que se faz presente na descrição de uma cons-tante interiorização e ocupação de novas terras, além das do po-voado mais avançado na fronteira legal, que surgira em 1756

5. VERÍSSIMO, Erico. op. cit. p. 95.6. VERÍSSIMO, Erico. op. cit. p. 96-7.

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com a fundação do forte de Rio Pardo. Assim aconteceu com ospais de Ana Terra, quando vieram se instalar no Rio Grande doSul e quando, após perder quase toda família, ela mudou-separa a zona missioneira. A imagem que nos passa o autor é deque as terras estavam vazias e a concessão de sesmarias aos mili-tares, pelo governo português, é que provocava a sua efetivaocupação e povoamento. O cenário construído em torno da es-tância Santa Fé e de seu proprietário, o militar e estancieiro Ri-cardo Amaral, serve para atribuir o sentido de legitimidade àocupação portuguesa, porque ela ocorreu em território desocu-pado e foi lenta e gradual. Nesta mesma direção, a conquista doterritório missioneiro, em 1801, significou apenas o reconheci-mento oficial de um espaço já povoado por luso-brasileiros defato. Sendo assim, podemos dizer que, com este sentido, o ima-ginário do autor se embasou na interpretação portuguesa deque a ocupação se legalizava através do uti possidetis.

As partes do texto que se detém no personagem RicardoAmaral servem para, igualmente, fortalecer os sentimentos depertencimento dos sul-rio-grandenses à nacionalidade luso-bra-sileira e os de alteridade em relação aos castelhanos do Prata.Baseado em acontecimentos históricos que antecederam a to-mada das Missões, o autor constrói uma comunidade (o nós)em que todos são de origem portuguesa ou, pelo menos, estãosob a guarda e a tutela do responsável pela defesa do territórioe representante legal do governo luso. Exemplo encontramosna cena em que Ricardo Amaral relata ter sido recebido em au-diência pelo governador. O espanhol mais uma vez aparececomo o inimigo, o outro. Diz:

General, preciso que o governo me conceda mais sesmarias paraas bandas do poente. Vossa mercê precisa saber que meus camposficam a dois passos do território inimigo. Mais cedo ou mais tar-de os castelhanos nos atacam de novo...7

7. VERÍSSIMO, Erico. op. cit. p. 122.

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A representação da sociedade sul-rio-grandense, formada apartir da união de portugueses com índios missioneiros consti-tui-se em outra marca da identidade regional que integrava oimaginário de Erico Verissimo. Ao vincular a origem da famíliade Ana Terra ao tropeirismo, atividade econômica que encon-trou seu auge no período que corresponde ao do romance, oescritor nos apresenta a sua representação acerca da origem ét-nica predominantemente portuguesa da sociedade gaúcha. Se-gundo ele, os portugueses desceram de São Paulo com a finali-dade de levar o gado do sul para os mercados do centro do paísque se encontravam em franca expansão, dado o desenvolvi-mento da atividade mineradora inicialmente e, mais tarde, a ex-pansão urbana das cidades do sudeste do país. A partir da circu-lação pelos campos do continente, do crescimento do mercadointerno e a presença das vias de comunicação e dos caminhosdas tropas, alguns tropeiros, como foi o caso do pai de Ana Ter-ra, mostraram interesse em se fixar nas terras do continente, co-meçando a surgir algumas pequenas propriedades. As terraspassaram a ser exploradas por homens livres que as compravamou, na maioria das vezes, simplesmente as ocupavam, tornando-se posseiros que se dedicavam a produzir gêneros de subsistên-cia, possuíam um pequeno número de cabeças de gado e, às ve-zes, alguns escravos.

Para Erico Verissimo, o sul-rio-grandense é um mestiço,como todo o brasileiro. Nesse sentido, segue as versões apresen-tadas por importantes e reconhecidos intelectuais brasileiros,como Silvio Romero e Gilberto Freyre, que vinham, desde asprimeiras décadas do século XX, contribuindo com reflexõessobre a identidade e o caráter nacionais brasileiros. segundoversões autorizadas apresentadas pela sociologia brasileira. Parao romancista, porém, a mestiçagem do gaúcho é peculiar em re-lação a dos demais brasileiros. Ela é composta da união de san-gue branco com o do indígena, sendo que este aparece de for-

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ma bem menos expressiva. O negro é muito pouco considera-do, como atestam os papéis de meros figurantes destinados aoshomens de cor em seu romance.

O nascimento do filho de Ana Terra e de Pedro Missionei-ro retrata esta situação. O elemento de caráter permanente é oportuguês. Ana Terra é a mãe e a figura que cria e permanecejunto ao filho, transmitindo-lhe sua cultura. O índio missionei-ro tem uma participação tão fugaz na formação da sociedadequanto a duração de seu personagem no romance. Dele, só oque interessava era a figuração enquanto contribuição racial.Da sua cultura, dos seus valores quase nada se aproveitou, o queé bem representado pela fala escassa do personagem Pedro Mis-sioneiro.

A contribuição da etnia indígena fica restrita apenas aogrupo dos índios aculturados. Pedro Missioneiro representava oíndio guarani que fora aproveitado pelos portugueses para tra-balhar nas estâncias, era dócil, convertido e, consequentemen-te, não engrossava as hordas de índios selvagens e infiéis que seencontravam do outro lado da fronteira e eram aliadas dos cas-telhanos. O índio que formou o mestiço sul-rio-grandense era opacífico, ordeiro, trabalhador e, ainda mais, conhecedor das ar-tes e ofícios que atendiam as necessidades de trabalho e lazerda sociedade que se formava.

As representações construídas por Erico Verissimo acercadas origens e da composição étnica da sociedade sul-rio-gran-dense integravam um imaginário que era partilhado por boaparte da intelectualidade gaúcha e, sendo assim, caminhava apassos largos para assumir a posição de um imaginário de todaesta sociedade acerca da sua identidade.

Para nos fazermos entender acerca do que afirmamos acima,se faz necessário reportarmo-nos ao contexto político e, principal-mente, ao debate sobre a identidade dos sul-rio-grandenses que sefazia presente na sociedade do Estado à época da produção do ro-mance, em especial entre os seus intelectuais.

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Desde o início do século atual, o Rio Grande do Sul estrei-tara sua vinculação com o Brasil, tanto na esfera política quan-to na econômica. O federalismo representativo que a Repúbli-ca adotara como sistema de governo era uma antiga reivindica-ção de parte dos gaúchos. Além disso, a modernização e a ex-pansão da cafeicultura exportadora bem como o incremento daurbanização, estimulados pela adoção da mão de obra livre e damudança de regime político, faziam com que fosse se consoli-dando o mercado interno brasileiro, do qual o Rio Grande dosul era importante abastecedor.

No campo da literatura e das artes, mais especificamenteapós a Semana de Arte Moderna, o nacionalismo passara a seruma idéia que inspirava toda a produção, fenômeno que seriaenriquecido ainda mais pelo surto nacionalista que seguiu a Re-volução de 30 e a Segunda Guerra Mundial.

Alguns estudos sobre a historiografia produzida acerca dahistória do Rio Grande do Sul8 têm mostrado, com muita pro-priedade, a presença de duas vertentes que se diferenciam noque diz respeito às origens da sociedade sul-rio-grandense: avertente hispânica, que aceitava a participação de influênciasvindas do Prata espanhol e a vertente lusitana, que defendia aexclusividade lusa na formação do Rio Grande do Sul.

À época em que Erico Verissimo escreveu sua obra, a ver-tente lusitana se apresentava com grande força e projeção, inse-rida que estava em uma conjuntura que se caracterizava por umintenso nacionalismo. O crescimento da economia com base naindústria e no mercado interno nacionais, bem como a presen-ça de um governo central que defendia a presença do Estadono processo desenvolvimentista, características econômico-polí-ticas do momento, haviam se iniciado no governo de GetúlioVargas, um gaúcho, na década de trinta.

8. Destaca-se principalmente o trabalho de GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-Grandense. Por-to Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1992.

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O período do governo Vargas possibilitou grande projeçãoe acesso ou intimidade com o poder aos intelectuais da verten-te lusitana. Aurélio Porto, ao ser nomeado, em 1932, para atuarjunto à direção do Arquivo Nacional, foi um dos principais res-ponsáveis pelo fortalecimento da historiografia lusitana e enga-jamento dos círculos literários na campanha de, definitivamen-te, integrar a origem lusitana no imaginário da sociedade sul-rio-grandense. A importância do trabalho de Aurélio Porto parao predomínio da vertente lusitana, ao ordenar e publicar vastadocumentação sobre o Rio Grande do Sul, especialmente sobreo movimento farroupilha, junto aos arquivos nacionais, foi bemapreendida pelo padre Luís Gonzaga Jaeger, S.J., quando escre-veu o prólogo à segunda edição da importante obra do historia-dor, História das Missões Orientais do Uruguai:

No entanto, os anos foram correndo; mas a História do RioGrande do Sul não ficou estacionária. Foi se delineando cadavez mais nítida, graças a novas achegas e documentos desconhe-cidos, antes soterrados sob a poeira de arquivos europeus e sul-americanos, desenterrados pouco a pouco pelos estudiosos donosso passado. Um dos que mais aprofundaram a História doRio Grande do Sul foi incontestavelmente AURÉLIO PORTO...Teschauer9, em geral, conforme alguns críticos, se mostra com-placente para com os espanhóis, aos quais defende na maioriados casos, ao passo que se manifesta mais rigoroso no julgamen-to dos luso-brasileiros É que o ilustre historiógrafo se abeberouprecipuamente em fontes de origem hispânica, além dele própriopertencer à Companhia de Jesus, tão sacrificada pela política ex-pansionista dos portugueses e a ação hostil dos bandeirantes.Por sua vez, Aurélio Porto carrega as cores no campo oposto pe-las razões contrárias e ainda por seu acendrado nacionalismo10

9. O padre Carlos Teschauer. S.J. publicou, em 1818, o primeiro dos três volumes da sua HISTÓ-RIA DO RIO GRANDE DO SUL DOS DOUS PRIMEIROS SÉCULOS, a qual pode ser classifica-da como integrante da vertente hispânica. (nota nossa)

10. JAEGER, P. Luis Gonzaga, S. J. Aurélio Porto e sua história das Missões Orientais do Uruguai -Prólogo da segunda edição.In: PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai – 1ªparte. Porto Alegre: Selbach, 1954, p. 5 e 6.

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Aurélio Porto publicara Notas ao Processo dos Farrapos, emquatro volumes de Documentação das Publicações do ArquivoNacional, de 1933 a 1936 e, após vários outros trabalhos, em1943, sua História das Missões Orientais do Uruguai, obras que ti-nham grande repercussão junto aos intelectuais gaúchos. Estespassaram a constituir uma comunidade que defendia as mesmasidéias acerca da identidade do sul-rio-grandense e, por pode-rem usufruir das vantagens de quem estava junto ao poder, en-contraram canais expressivos para divulgação de suas concep-ções junto à população. Erico Verissimo era apenas um destegrupo de intelectuais, que também contava com a participaçãode Moysés Vellinho, Othelo Rosa, Carlos Reverbel entre outros.

Concluindo, podemos afirmar que foi lendo as obras dehistoriadores da vertente lusitana, seus contemporâneos e mui-tas vezes colegas de ofício que com ele compunham uma con-fraria, que Erico Verissimo foi construindo as representaçõesque nos apresenta em sua obra. Sem dúvida, ela pode ser consi-derada como fortemente engajada na tarefa de transferir esteimaginário individual ou de grupo ao imaginário coletivo da so-ciedade sul-rio-grandense. E, sem dúvida, sua competência paratal foi e é inquestionável.

* Doutora em História, UNISINOS.

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¨Naquele dia chegou Toríbio. Desde que soubera da notícia do levante de São Paulo – confessou –andava pisando em brasas, sentindo ‘comichões no cabo do revólver’.”

O Arquipélago – Um Certo Major Toríbio

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A Abolição da Escravatura a Serviçoda República - Leitura Política

Do Episódio Ismália Caré

T e ó f i l o O t o n i V a s c o n c e l o s T o r r o n t e g u y *

A Trama Ficcional

O narrativo repousa na situação de impasse político quan-do da propaganda republicana. A contradição existente era ade libertar os escravos e, ao mesmo tempo, manter o poder dosgrandes proprietários. Da mesma maneira, promover a Repúbli-ca e estabelecer o novo, sem que as camadas elitistas da socieda-de perdessem o domínio econômico, social e político.

A localidade, Santa Fé, era dominada por duas famílias la-tifundiárias: a dos Amarais e a dos Cambarás. A primeira era li-derada pelo venerando Coronel Bento Amaral, enquanto que asegunda era liderada pelo jovem Licurgo Cambará, descenden-te de Rodrigo Cambará. Na ocasião, dia 23 de junho de 1884,chegou a notícia que o governo provincial havia elevado a Vilaao status de cidade. Os liberais programaram, imediatamente,uma festa comemorativa, incluindo missa com te deum.

O Coronel Bento Amaral lutou contra os farroupilhas e foilíder dos conservadores. Mais tarde, ele, sua família, seus empre-

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gados e correligionários, ingressaram no Partido Liberal. Man-tinha um jornal político, “O Arauto”, escrito pelo jornalistaManfredo Fraga, subserviente ao velho Amaral.

Licurgo Cambará, embora jovem, mantinha a tradição re-publicana da família enquanto sua avó, Bibiana, detinha o po-der sobre todos os cambarás. Influenciado pela propaganda re-publicana e, principalmente, pelo Dr. Toríbio Rezende, Licurgoentregou-se à causa abolicionista. Dr. Rezende era um jovembaiano que, com a sua oratória, encantava os republicanos. Esteredigia o jornal “O Democrata”, de orientação republicana eabolicionista. Licurgo e Dr. Rezende eram os líderes do ClubeRepublicano de Santa Fé.

Enquanto os liberais estavam programando os festejos co-memorativos da elevação do local em cidade, os republicanosprogramaram uma solenidade, no Sobrado, onde 31 escravosreceberiam a carta de manumissão.

Pela cidade correram boatos de que haveria conflito entreas duas facções. A população, assistente diante da espectativa deluta, preocupava-se, enquanto os jornais preparavam seus edito-riais defendendo seus pontos de vistas.

A noite de 23 para 24 foi ruim para Licurgo. Ele teve sonhoaflito. Sonhou que ora andava a cavalo e ora andava a pé. Usa-va roupa vermelha com turbante de mouro. Distribuía, ao mes-mo tempo, títulos de manumissão e pontaços de lança. Estavaenvolvido numa luta entre mouros e cristãos. Fazia parte deuma quadrilha de lanceiros. Seu par, às vezes era sua prima Ali-ce, outras vezes, Ismália Caré. Sentiu agonia naquela noite.Acordou pensando que seu casamento com Alice já estava pre-parado e marcado. Todavia, mantinha uma amante: IsmáliaCaré.

Dona Bibiana pediu que o neto deixasse aquela china. Ele pen-sou, e sua vontade era outra. Alice, sua prima, tinha dotes paraser uma boa dona de casa. Ele a considerava bonitinha. Com

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certeza, ela daria uma boa esposa e boa mãe. Olhava Alice comrespeito, pois logo ela seria sua esposa. Mas, ele não conseguiadeixar de pensar em Ismália. Licurgo amava aquela chinocaque nunca havia lhe pedido nada e que nada esperava dele.1

Ismália era filha de um posteiro que cuidava o fundo da in-vernada na estância do Angico, propriedade de Licurgo. Tudocomeçou quando ele a violentou no mato. Pensou que jamaistornaria a vê-la. Porém, Ismália o procurou e o romance entreeles tornou-se forte. Sempre se encontravam. Quando ele esta-va na cidade, mandava chamá-la. Não saberia viver sem o amordaquela mestiça.

Licurgo levantou-se cedo, depois de ouvir o sino da igrejasendo badalado ferozmente pelo sacristão, Jacob Geibel. Pou-cos estavam em pé naquela pequena localidade. O Sobrado, acasa dos Cambarás, era imponente e despertava um misto demedo e raiva dos seus opositores. O Sobrado tinha “o jeito dumgrande animal adormecido.”2

Aos poucos seus ocupantes foram se levantando naquelamanhã de 24 de julho de 1884. A negra Lindóia, cozinheira, eFandango, capataz, também levantaram cedo.

Fandango era o homem de confiança da família. Amigo deBibiana e de Licurgo. Tinha sua maneira descontraída de ser eseus pensamentos próprios. Ele dizia que Licurgo possuía trêsamantes: a República, a abolição e a Ismália. O capataz era expe-riente e esperto, sabia de tudo sobre as pessoas daquela família.

Enquanto o Sobrado se preparava para a cerimônia de alfor-ria dos escravos, os festejos da cidade de Santa Fé transcorriam.

Negros da estância do Angico e de outras estâncias estavamno porão do Sobrado à espera da liberdade que ocorreria na-quela noite.

1. VERÍSSIMO, 1987:591.2. VERÍSSIMO, 1987:565.

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A velha Bibiana não aceitava a alforria daqueles escravos. Noentanto, para fazer a vontade do neto aceitou a libertação dosseus escravos e dirigiu a preparação da festa, que iria incluir, éclaro, comidas, bebidas, música e dança, além dos discursos e aentrega dos títulos de manumissão. Ela conservava preconceitocontra os negros. Incluía em suas reservas os gringos e os baia-nos3.

Outras personagens da ficção auxiliaram o desenho da tra-ma: Pe. Atílo Romano, Dr. Winter e Florêncio.

Pe. Atílio era italiano e não escondia seu favoritismo aos re-publicanos. Apesar de usar de um discurso conciliador, ele ten-tava ou acomodar os ânimos ou manter a Igreja na secular po-sição pendular. Entretanto, não escondia sua simpatia pelos re-publicanos.

Dr. Winter era o médico. Seu pensamento e sua análise políticaera de origem liberal-transformadora. Por isso encaixava-se comos republicanos. Sua lucidez era demonstrada pelo que conheciado Império e do contexto internacional para falar sobre os escra-vos4.

Florêncio era o pai de Alice. Pertencia ao ramo pobre dosCambarás. Lutou na Guerra do Paraguai e teve uma vida de sa-crifícios econômicos. Suas investidas pouco frutificaram e seusnegócios não prosperavam.

Na manhã daquele dia foi a missa do te deum. Houve um in-cidente, o Cel. Bento saiu da igreja, de maneira intempestiva,com sua gente, por considerar-se ofendido com a fala do Pe.Atílio ao citar Garibaldi. O velho Amaral chamou Garibaldi detraidor porque lutou junto com os republicanos farroupilhas.

Na tarde daquele dia ocorreu a “luta” entre mouros e cris-tãos. Pe. Atílio, por precaução, colocou liberais e republicanosmisturados entre os dois “exércitos”. Não adiantou. Outro inci-

3. VERÍSSIMO, 1987:584,586 e 591.4. VERÍSSIMO, 1987:593-595.

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2 2 3a abolição da escravatura a serviço da república

dente aconteceu. Alvarino Amaral, filho do Cel. Bento, e Licur-go Cambará se desentenderam. Houve refrega e os dois saírammachucados. As famílias e acólitos de ambos os lados quase en-traram em conflito armado. A pronta intervenção do Pe. Atílioacalmou os ânimos.

A tão esperada noite veio. Na parte nobre do Sobrado, no salão,reuniram-se pessoas da camada social privilegiada de Santa Fé.No pátio, ao redor da fogueira, os negros esperavam a hora deserem chamados para entrarem na casa e receberem um papel -a carta de liberdade. Apenas alguns sabiam o que esse papel sig-nificava.5

Depois do discurso inflamado e demorado do Dr. Toríbio,começou a entrega dos títulos de manumissão.

Aos poucos, um por um os escravos entravam na casa pelaporta da cozinha e se dirigiam até a sala. Alguns, assustados,não sabiam o que fazer, se ficavam no lugar ou se saíam, imedia-tamente alguém lhes indicava o caminho do retorno ao quintal.Muitos ajoelhavam-se diante de Bibiana e beijavam a fímbria desua saia. Alguns, ainda, choravam. Um negro, João Batista, en-trou e saiu altivo; era um bom peão, mas provocador, pensou Li-curgo: “merecia uns bons chicotaços na cara”6.

Os negros estavam andrajosos e malcheirosos.A cerimônia foi demorada. Os assistentes estavam inquietos;

esperavam o fim da entrega das alforrias para comemorar o fato,comendo e bebendo. Havia a promessa de um fandango no local.

Os negros, já homens livres, no quintal, comiam e bebiam.Uma boa parte deles dançavam. Eles não sabiam ao certo o quefazer depois dessa “noite histórica”.

Foi um alívio geral quando o último negro recebeu o título.Dona Bibiana não se conteve e disparou:– Agora abram as janelas pra sair o bodum ! 7

5. TORRONTEGUY, 1994:134.6. VERÍSSIMO, 1987:630.7. VERÍSSIMO, 1987:631.

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As janelas imediatamente foram abertas, enquanto os repu-blicanos davam “Vivas” ao Clube Republicano.

Nessa mesma noite Licurgo recebeu a visita da amante, Is-mália Caré. O encontro furtivo aconteceu numa edícula, um“puxado” estilo meia-água, fora do Sobrado. Lá se amaram e Is-mália revelou que estava grávida. Logo Licurgo retornou ao So-brado, onde, inclusive, estava a sua noiva, Alice. Dona Bibiana eFandango perceberam imediatamente o que havia acontecidocom ele.

A festa continuou até a soltura de um balão. Remanescen-tes persistiram na dança e na bebedeira.

A Trama Política

Apenas o negro João Batista não comemorou a “libertação”.Naquela noite deveria ser a festa de São João. Houve a fes-

ta, mas, o motivo mesclou-se com os interesses do momento his-tórico. A ação republicana da libertação dos escravos ocorreubaseada na separação dos dois mundos já observados. Um, dosque estavam dentro do Sobrado e, o outro, dos que permanece-ram no quintal. Prelúdio daquilo que o tempo comprovou. Ne-gros, ex-escravos e mestiços não receberam as oportunidadessociais.

O crescimento da urbanização, com seus costumes particu-lares de vida, e o uso da mão-de-obra livre estão relacionadoscom a implantação capitalista.

A abolição e o próprio abolicionismo explicam apenas parcial-mente a transformação do escravo em trabalhador livre. Os pro-cessos econômicos e sociais responsáveis pela expulsão do escravoda esfera dos meios de produção são os mesmos que provocam ofluxo de imigrantes e, em menor escala, o deslocamento de cabo-clos e roceiros para as fazendas de café e os núcleos urbanos.(...)

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Em teoria, os processos racionais do modo capitalista de produ-ção tendem a tornar-se incompatíveis com a condição escrava dotrabalhador. Ou melhor, na empresa nacional de então, como emqualquer empresa capitalista, ou tendente a esse padrão, a par-ticipação de mão-de-obra precisa conformar-se às exigências daprodução do lucro.8

Somente a partir da Segunda metade deste século é queirão surgir análises históricas mais consistentes sobre o negrono Rio Grande do Sul; embora o número seja reduzido, desta-cam-se Fernando Henrique Cardoso em Capitalismo e Escravidãono Brasil Meridional – O negro na sociedade escravocrata no Rio Gran-de do Sul (1962), Margaret Marchiori Bakos em RS: escravismo &abolição (1982) e Mário José Maestri Filho em O escravo no RioGrande do Sul. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho (1984).

As propostas dos republicanos sul-rio-grandenses foram re-forçadas pela abolição dos escravos em 1888. O castilhismo, en-tendido como política positivista, propunha uma ação baseadano progresso. A sociedade republicana não teria escravos, masproletários. Júlio de Castilhos, em idéias e na prática assumiusua condição de líder poderoso, baseou-se na ordem, no pro-gresso e na obediência ao chefe político.

O autoritarismo monárquico, combatido pelos republicanos,sob novas roupagens foi conservado pela república no RioGrande do Sul.

Na ficção o discurso inflamado do Dr. Rezende defenden-do a abolição juntava-se ao pensamento utópico de Licurgo.Este planejava uma reviravolta na ação do governo, caso os repu-blicanos viessem a assumir o poder. O Clube Republicano era en-tusiasta em idealizar um governo limpo, sério e progressista. Aficção mostra tais pensamentos se confrontando com outrospensamentos de outras personagens.

8. IANNI,1987:23 e 24.

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Dona Bibiana mantinha forte preconceito contra os negrose achava bobagem libertá-los. Onde eles arranjariam comida elugar para ficar? Questões antigas aparecem no episódio trata-do. O dono do escravo é o seu protetor. O negro longe de seudono estaria desprotegido. No dia da cerimônia Bibiana refe-riu-se ao negro como negrada e que “carta de manumissão não en-che barriga de ninguém.”9

Ela possuía preconceito contra gringos e baianos:

“Filho meu não casa com gringa” 10

(...)“O baiano era um estrangeiro” 11

Ela, no íntimo, admirava a força e a firmeza. A imagem deRodrigo estava sempre presente em suas ações. Inconsciente-mente, talvez, gemia no seu interior a visão triunfalista. A anti-ga construção da raça dos gaúchos. A conquista da liberdade de-veria ser pelo ato de força. Esta imagem aguerrida dos avoengosfoi a presença fóssil de que nada valeria se não fosse conquista-da. A alforria, portanto, a liberdade concedida, seria uma der-rota. É uma visão dialética da fala de Bibiana, mas, que tomadana obra geral de O Tempo e o Vento poderá ter sentido.

Fandango, o capataz, gostava muito de Licurgo. No entanto, dis-cordava de seus pensamentos políticos a respeito da escravidão:– Eu só quero ver o que é que essa negrada vai fazer depois de re-ceber papel de alforria. (...)– Vassuncê vai ver – prosseguiu o capataz – Recebem dinheiro egastam tudo em cachaça. Vão passar o dia na vadiagem, dor-mindo ou se divertindo. Nenhum desses negros alforriados vaiquerer trabalhar. No fim acabam morrendo de fome.” 12

9. VERÍSSIMO, 1987:273.10. VERÍSSIMO, 1987:584.11. VERÍSSIMO, 1987:586.12. VERÍSSIMO, 1987:568.

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2 2 7a abolição da escravatura a serviço da república

Fandango, embora tivesse regalias e afeto dos Cambarás,não era da família e tampouco proprietário. Sua vida toda foi de-dicada ao serviço da estância do Angico. O governo que ele co-nheceu foi o proprietário. Submeteu-se a ele com verdadeira de-voção. Era trabalhador e valorizava o trabalho. Entretanto, convi-veu mais com a vida bruta dos trabalhos criatórios ou nas lutas defronteira. Ele teve que se condicionar numa posição intermediá-ria entre o patrão e os peões. Depois, de uma hora para outra, opatrão enveredou para o movimento abolicionista. O capataz, jávelho, demorava a se adaptar aos novos pensamentos. Até entãopensava-se o negro de um jeito, depois de outro. Nessa confusãoFandango manteve-se na voz corrente, pois pouco conhecia daretórica abolicionista, a não ser conversando com Licurgo.

Fandango também era intermediário entre o Sobrado e apopulação de Santa Fé. Seu discurso conservava o que ouvia dopovo em geral.

Florêncio, que lutou na Guerra do Paraguai e talvez tenhapresenciado atos de bravura dos negros-soldados e que nunca ti-nha tido escravos pensava assim:

Acho que no Rio Grande os negros são felizes. Nas estâncias enas charqueadas eles trabalham ombro a ombro com os brancos.A não ser um ou outro caso, em geral são bem tratados. Dizemque lá no Norte os senhores de engenho maltratam os escravos.Não sei. Há muita conversa fiada. O que sei é que aqui na Pro-víncia os negros passam bem. (...)Acho que as coisas não vão mudar se vier a República.13

Ele passou a sua vida preocupado em dar um conforto ma-terial para a sua família. Amava sua mulher. Sofria vendo-a terque costurar e bordar para vender e ajudar no sustento da casa.Suas duas filhas também necessitavam de mais conforto. Depoisda morte da mulher ficou mais triste ainda. Nunca teve tempo

13. VERÍSSIMO, 1987:595-596.

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para se ilustrar ou fazer amizade com doutores, padres ou polí-ticos. O que sabia era pelas suas andanças na guerra e por con-versa informal com algum viajante ou tropeiro. Em parte repro-duzia a fala oficial de que no Rio Grande do Sul o negro era tra-tado como igual.

Demonstrava admiração pelo imperador e por SilveiraMartins. Por isso não acreditava na República.

Na ficção encontra-se a riqueza do narrativo histórico. As-sim como os negros festejaram fora do Sobrado, os brancos fes-tejaram no salão. Os negros não ouviram o discurso político. Amaioria não entendeu o que estava acontecendo. O mundo dosnegros e dos mestiços era outro, diferente do mundo das cama-das dominantes da sociedade.

Ismália Caré, mestiça, chinoca para os outros, não entravano Sobrado. João Batista só entrou no Sobrado para receber otítulo de manumissão. Como foi altivo recebeu os arreganhosdo proprietário.

Da mesma maneira que São João Batista foi imolado, o ne-gro João Batista e a mestiça Ismália também serão imoladospela sociedade. Um seguirá a senda dos ex-escravos. A outraserá a outra rejeitada por todos. As proles do negro e da mesti-ça amargarão o preconceito e a falta de oportunidades sociais.Estas não faltaram ao imigrante e, mais tarde, aos clientes daburocracia republicana.

A abolição da escravatura no Brasil mais serviu ao movi-mento republicano do que à ação social. Ela foi o grande argu-mento contra o Império.

* Doutor em História, UFSM.

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“Tornou a olhar o Sobrado, a uma de cujas janelas surgia agora um vulto, Bibi... Esquecera-se porcompleto da irmã. Era uma omissão que ocorria com freqüência quando ele fazia aqueles inventáriosmentais da família.”

O Retrato – Uma Vela pro Negrinho

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A Representação do Espaço na Obra deErico Verissimo: O Tempo e o Vento

C e l i a F e r r a z d e S o u z a *

Introdução

No revoar do vento, no passar do tempo, o espaço é coloca-do como um elemento permanente, o grande referencial, umsignificativo ponto de apoio, dessa extraordinária trilogia deErico Verissimo: O Tempo e o Vento.

As personagens vão se revezando, dando lugar umas às ou-tras nesse tempo pelo qual gerações vão atravessando, num pro-cesso contínuo de mudanças das práticas sociais: hábitos e costu-mes, condições econômicas, atividades, muitas guerras e destrui-ções, valores, mas sempre sobre o mesmo solo da cidade de San-ta Fé. Esta com seus espaços públicos, praças e ruas e seus espa-ços arquitetônicos, suas construções, também vão se modifican-do ao sabor do vento, mudando nas partes, mas permanecendono todo. Sofre alterações, novas construções vão dando lugar àsantigas, outras envelhecem acompanhando as personagens. Sur-gem novos equipamentos, novos bairros e a cidade persiste!

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No romance de Erico Verissimo, o espaço físico de Santa Fé,atravessa o tempo, enfrenta o vento e participa do contexto da fic-ção, não apenas como cenário, de forma passiva, mas tambémcomo uma personagem, cujo papel é nortear ou orientar o per-curso no tempo, de todos as outras personagens. Tanto os espaçosurbanos como os arquitetônicos representam papéis significati-vos, haja visto o papel do Sobrado, o casarão dos “Amarais”, a Igre-ja, ou a Intendência, além evidentemente da praça com sua figuei-ra, ou das zonas do Barro Preto e Purgatório, para citar apenas al-guns. Eles fazem parte do passado e do futuro. É como se a cida-de do presente fosse a síntese de seu passado, onde estariam con-vivendo permanentemente todos as personagens dessa saga queenvolve tantas gerações, desde Ana Terra. É na cidade que se en-contra todo o manancial da memória onde a trama vai marcandosua história, e onde as personagens buscam suas lembranças. A fi-gueira da praça atravessa todos os tempos, participa da locação dosítio urbano, das guerras, das mortes, dos festejos, das tristezas edas alegrias de todas as gerações. Certas ocasiões ela é quase umaextensão do Sobrado, numa relação íntima entre o espaço públi-co e o privado. É a partir dela que muitas vezes as rememoraçõesdas personagens são detonadas. O contato com a árvore liberta fa-tos e acontecimentos guardados no âmago mais profundo de cadaum. Proust mostrou esse processo no seu livro “Em busca do Tem-po Perdido”, quando ao comer uma madeleine que lhe foi servidacom chá, enquanto esperava a pessoa a quem visitava, desenrolou-se uma seqüência de recordações que estavam muito distantes desua memória e de seu tempo. A volta ao passado foi detonada poruma bolachinha que ele comia na sua infância. Foi como se abris-se as comportas da memória e nesse momento ele pudesse revivertodo um passado, que para ele não estava mais presente. A praçacom a figueira, inseparáveis apesar de tratadas muitas vezes indivi-dualmente, são representações muito fortes que alcançam o ima-ginário coletivo da população em O Tempo e o Vento.

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2 3 3a representação do Espaço na obra de erico verissimo

A cidade é colocada assim, de forma bastante clara, tendocomo elemento básico de fundo, a estrutura e a paisagem urba-nas, onde estão postos os referenciais que fornecem a identida-de para todos os seus moradores, assim como para os “estran-geiros” que vem a ela. O espaço urbano faz parte da vida de to-dos, razão pela qual funciona como um texto lógico para os ci-dadãos de Santa Fé, com o qual podem fazer uma leitura plenade significados, identificando-se com o mesmo. É o vento trans-formando ao longo do tempo o espaço urbano, cuja significa-ção está presente ao olhar de todos.

A Leitura do Espaço

Procurando entender um pouco mais como a questão se co-loca em termos universais, Taveira1 sugere que a busca do Ho-mem, em adaptar-se aos lugares, levou-o a criação da ordem, daordenação do mundo e da luz, em função de seus comportamen-tos, religião e de desgostos, ostentação e luxo, delicadeza, paixão,amor e forma, ações e atitudes, que não podem deixar de fazerparte da história dO urbanismo e da arquitetura. Prossegue, colo-cando a cidade como um texto, no qual a história age transfor-mando a matéria da arquitetura aqui entendida como língua,cuja organização lógica gramatical se transforma na relação dasforças sociais da cena histórica. Essa colocação trás para o discur-so arquitetônico uma leitura e uma relação dialética em relaçãoao real, à urbe (conjugação de arquitetura), e à sociedade que éa forma e a essência da transformação na qual elas próprias par-ticipam. Para o autor citado, urbe, aglutinação dos espaços e dasformas que enquadram as situações humanas, é o texto, e arquite-tura é a língua, entendida aqui como forma construída.

1. TAVEIRA, Tomás. O discurso da cidade. Lisboa: (s/ed.), 1974, p.14.

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Entretanto, a urbe-texto e a arquitetura-língua surgemcomo formas de marcar o mundo e de o animar. Mas, sem o en-tendimento da significação, que nada tem a ver com a forma doedifício, da rua ou da cidade, o texto tornar-se-ia incompreensí-vel. A forma - a estrutura e o estilo - são resultantes de um de-terminado tempo, com determinadas técnicas e usos. Por outrolado, o conteúdo - a sociedade com suas práticas e seus valores- imprime a significação, para justificar as permanências, as des-truições, os usos e costumes. São atos e fatos que ocorrem no es-paço no decorrer do tempo, mostrando então um sistema trípli-ce de relações, espaço, tempo e sociedade, permeado fortemen-te pelo caráter da significação, que é construído pelo imaginá-rio social.

Em o Urbanismo de Representação2, já propúnhamos aprofun-dar o estudo das questões urbanísticas na direção da construçãodo imaginário urbano. Na verdade, este se coloca como um ou-tro código a ser decifrado para a compreensão daquela relaçãotríplice, citada a cima. Bazcko3 mostra que um dos caracteresfundamentais do fato social é precisamente seu aspecto simbó-lico. Embora o Urbanismo e a Arquitetura gerem formas queexijam conhecimento de ciência, arte e tecnologia, a forma4

deve ser entendida no sentido Aristotélico do termo, no qual es-tejam presentes simultaneamente os conceitos de Idéia e Ima-gem. A forma tem um caráter de representação social e de mar-cação no espaço de referenciais simbólicos da sociedade. Nessesentido o urbanismo e a arquitetura são um modo de represen-tação dos interesses coletivos através da forma, expressos pelopoder, pela classe dominante, ou ainda pelas crenças e mitosdessa sociedade. Não se trata, portanto, só de uma questão téc-

2. SOUZA, Celia Ferraz de - Construindo o Espaço da Representação: O Urbanismo da represen-tação. In: SOUZA, C. F .de & PESAVENTO, S.J. - Imagens Urbanas; Os Diversos Olhares na Forma-ção do Imaginário Urbano. Porto Alegre: Ed. da Universidade - UFRGS, 1997

3. BAZCKO, Bronislaw. A Imaginação Social. In: Einaudi-Anthropos ,1986.4. TAVEIRA, op.cit. p.32.

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nica ou científica ou mesmo artística, como muitas vezes foramencarados, desde o princípio deste século. Interessa-nos, parafins de análise, perceber como a obra arquitetônica ou urbanís-tica detém um significado, e como é portadora de uma repre-sentação, já que qualquer obra singela, pode expressar o senti-do da sociedade que a construiu.

Literatura e História

Estabelecidos esses pressupostos podemos partir para idéiade análise da narrativa ficcional envolvendo a cidade e seu es-paço. Qual seria o sentido aqui? De início podemos afirmar quese é difícil perceber a força do imaginário na vida real, podetornar-se mais evidente percebê-lo na ficção, já que esta está im-pregnada de sensibilidades. Ou seja, a literatura através da fic-ção pode mostrar livremente, sem compromissos com a ciência,essa correlação de forças presente na sociedade, que é a ques-tão das representações do imaginário coletivo. O leitor é indu-zido a perceber a questão que na vida real está posta, mas nãoestá explicitada. Odile Marcel5 coloca bem essa questão do espa-ço e a literatura, dizendo que a literatura ao longo do tempoproduziu representações das formas urbanas e que com seu po-der metafórico deu sentido e função aos lugares. E explica ain-da que:

A descrição das formas urbanísticas e arquitetônicas (na literatu-ra) (...) não figuram apenas como um quadro inerte e preliminar,facultativo, ao desenrolar da ação. (...) Mais principalmente asformas do espaço servem para objetivar e qualificar a organizaçãosocial. Reciprocamente a identificação da constituição visual domundo humano, se efetiva no romance a partir das categorias psi-cológicas, sociais e econômicas que caracterizam geralmente esse

5. MARCEL, Odile, -Formes Urbaines et Littérature. In: Le Courier du CNRS-La Ville N.81/1994 p.123.

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mundo, fazendo assim da ordem arquitetural um momento expres-sivo da totalidade social.(...) A leitura das formas arquitetônicasna literatura, pode ser feita em direção a realidade social, no regis-tro da identificação crítica. (...) No espaço imaginário da poesia edo romance, a rudeza da mediocridade dos lugares podem de re-pente se tornar geniais, e aqueles sem vida encontrar seus demô-nios familiares.

Pensamento, esse que hoje já encontra raízes em vários paí-ses, e Sandra Pesavento em seu recente livro O Imaginário da Ci-dade - Visões Literárias do Urbano, complementa:

É nessa medida que as obras literárias, em prosa ou verso, tem con-tribuído para a recuperação, a identificação, a interpretação e acrítica das formas urbanas. (...) que essa potencialidade metafóri-ca de transfiguração do real, não apenas transmite as sensibilida-des passadas do “viver em cidades” como também nos revela so-nhos de uma comunidade, que projeta no espaço vivido as suasutopias.6

A História Cultural tem colocado o romance histórico comouma das fontes da própria História. Uma vez que haja coerênciae verossimilhança é possível que essa representação do passadonos ajude a encontrar respostas para determinadas questões.Paul Ricoeur coloca a narrativa de ficção como uma “quase histó-ria” e afirma em seu livro Tempo e Narrativa7:

Na medida em que os acontecimentos irreais que ela relata sãofatos passados para a voz da narrativa que se dirige ao leitor; éassim que eles se parecem com a ficção e a ficção se parece com ahistória. (...) Infelizmente essa simulação do passado pela ficçãofoi ulteriormente obscurecida pelas discussões estéticas provoca-das pelo romance realista. A verossimilhança é, então, confundi-da com uma modalidade de semelhança com o real que coloca aficção no mesmo plano da história. Nesse aspecto, é bem verdade

6. PESAVENTO, S.p15 O Imaginário da Cidade-Visões Literárias do Urbano. Porto Alegre: Ed. da Uni-versidade, UFRGS 1999, p. 12.

7. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. S.Paulo: Papirus, 1998. p. 329.

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que podemos ler os grandes romancistas do século XIX, como his-toriadores adjuntos, ou melhor como sociólogos avant la lettre:como se o romance ocupasse aqui um lugar ainda vacante noimpério das ciências humanas.

Se a narrativa de ficção vem sendo trabalhada com o olhardo historiador, com resultados extremamente interessantes, porque não se encaminhar, também, nessa direção a relação da ar-quitetura e do urbanismo com literatura e história, para se ava-liar sob o olhar do arquiteto as espacialidades vividas no roman-ce e seu caráter de representação? Nesse sentido é possível veri-ficar ainda que, embora muitos estudos venham surgindo, commuitos olhares, produzindo uma múltipla interpretação, naobra de Erico Verissimo, a interpretação do espaço não temsido muito corrente. O olhar do arquiteto está faltando e issopretendemos suprir com esse texto.

Literatura, História e EspaçoA Representação do Espaço

Uma das imagens mais fortes e mais concretas da cidade é arua, espaço plurifuncional onde os mais variados fatos ocorrem,do comércio à circulação, do ponto de encontro ao local de des-file. A rua, juntamente com a praça, sempre representaram o es-paço da liberdade, o espaço do cidadão, o espaço de fora, o espa-ço público, enfim, o espaço da coletividade, que se contrapõe aoespaço de dentro, ao espaço íntimo, ao espaço do controle fami-liar, das regras individuais. As regras, que referem-se ao controlecoletivo, vêm também no sentido de orientar o comportamentoda população. Nesses espaços, o cidadão sempre assumiu a suacaracterística de parte do coletivo social. A morfologia urbana, astipologias arquitetônicas e as práticas sociais desenvolvidas nasruas e nas praças também sempre serviram como elementos de

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orientação e leitura da cidade. Entretanto, a desagregação da or-dem, a confusão das atividades e fluxos de circulação, a falta deidentidade, a insegurança social, que vigora hoje nas cidades,têm tirado das ruas centrais da cidade o seu papel didático-refe-rencial. Em leituras como O Tempo e o Vento, essa visualização cla-ra da integração espaço e sociedade serve para o leitor fazer esseresgate, podendo sentir a necessidade de buscar suas referências,despertando um novo olhar sobre a sua própria cidade ou aindaperceber como é delicada a questão do trato do espaço urbanono que se refere ao que preservar e ao que destruir.

Ao se pretender colocar a análise do espaço nesse campo dediscussões, é necessário estabelecer alguns conceitos básicos,como Imaginário Social, Coletivo e/ou Urbano, além do que seentende aqui por Representação. Para Bazcko8, Imaginário Socialé uma das forças reguladoras da vida coletiva e através dele:

Uma coletividade designa sua identidade, elabora uma certa re-presentação de si, estabelece a distribuição de papéis e das posi-ções sociais, exprime e impõe crenças comuns, e constrói uma es-pécie de código de convivência. (...) Cada geração trás consigouma certa definição de homem e de sociedade, simultaneamentedescritiva e normativa, no mesmo tempo que adota, a partir des-sa concepção, uma idéia de imaginação do que a sua sociedadeé, e do que ela deveria ser.9

Daí a sugestão de que cada geração deveria reescrever asua história, porque, embora o passado não mude, o presentese modifica a cada geração, criando um novo olhar sobre o pas-sado. Não é o passado que altera o presente, mas sim o presen-te que altera a maneira de ver o passado, através do imagináriocoletivo de cada época. Ainda de acordo com o autor acima ci-tado, o Imaginário Social tem que ser visto como uma peça efeti-va e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e em espe-

8. BAZCKO, op.cit.9. idem, op. cit. p. 309.

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cial do exercício da autoridade e do poder, “se transformando as-sim, no lugar e no objeto dos conflitos sociais.”10. A cidade é, portan-to, o lugar que melhores condições tem para produzir um am-biente fértil para o desenvolvimento das idéias, das imagens edas representações. Através dos diversos olhares com que a so-ciedade a vê, das múltiplas opiniões que ocorrem no seu meio,dos vários conceitos e preconceitos que se estabelecem, dos sím-bolos que se criam, e também, por ser o “locus” do poder, a ci-dade é a projeção no espaço físico do Imaginário social. 11

O imaginário busca sentido para as coisas e para os fatos (epor conseguinte, para a cidade e para as obras urbanas, ou paraas edificações), através dos diversos olhares ou leituras que sãofeitas da realidade. O olhar “qualifica o mundo, transformandoo acontecimento em fato e o espaço em lugar”12.

A Representação, segundo Le Goff 13, é a tradução mental deuma realidade externa e percebida (abstração). Portanto, ela éa presentificação de um ausente, que é percebido, segundouma imagem mental ou material, que se distancia do mimetis-mo puro, e trabalha com atribuição de sentido. O ausente sepresentifica por força da imagem, já que existe sempre um ou-tro sentido além do manifesto. Os documentos históricos sãoformas de representação, expressas por palavras ou coisas. A re-presentação social possui sem dúvida uma faceta de transforma-ção e engodo, mas é também portadora do sonho da coletivida-de na sua dimensão utópica.14

Ao se trabalhar com a literatura, a representação fica coloca-da de maneira explicita, e o imaginário coletivo com os valoressimbólicos expressos no discurso da narrativa. Do ponto de vis-ta do urbanismo e da arquitetura a interpretação se dá a partir

10. BAZCKO, op.cit. p. 113.11. SOUZA, op. cit.12. PESAVENTO, op. cit.13. LEGOFF, Jacques, apud Pesavento, S, 1992-93. Op.cit, p. 10.14. ver SOUZA, op. cit.

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das formas pelas quais as personagens circulam, habitam, traba-lham e se distraem, enfim desenvolvem suas vidas na dicotomiada vida coletiva e da vida privada

O Tempo e o Vento

A trilogia de Erico Verissimo, composta pelo O Continente es-crito em 1949, O Retrato em 1951 e O Arquipélago em 1961, abran-ge a história do Rio Grande do Sul por dois séculos, de 1745 à1945, envolvendo seu processo de conquista, colonização, urba-nização, e o início da industrialização. Ao ser perguntado se ha-via feito uma grande pesquisa histórica para a elaboração de OTempo e o Vento, Erico respondeu que não quis se aprofundarmuito para evitar descrições desnecessárias e cansativas, e conse-guiu! Seu livro prende o interesse do princípio ao fim da narra-tiva, a partir de uma brilhante abordagem histórica. O trato doespaço em O Tempo e o Vento é extremamente bem elaborado econstruído dentro da lógica e da coerência, traduzindo, sem dú-vida alguma, o imaginário da população de Santa Fé.

O primeiro volume, O Continente, como estava destinado aser o único, Erico nos mostra aqui quase todo o processo daevolução da cidade, que atravessa a história

O Espaço em O Tempo e o VentoA Evolução Urbana de Santa Fé

A cidade, em O Tempo e o Vento, é vista como o elementoconstante e permanente da história, mas que também vai seadequando as necessidades que os tempos vão trazendo no de-senrolar de sua trajetória. A cidade se transforma, mas não de-

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saparece, e nada faz crer que um dia isso possa acontecer. Pelocontrário, seu processo de evolução urbana é contínuo come-çando na formação do povoado, chegando a condição de vila,cabeça de comarca e depois a cidade, indo até o término da his-tória em 1945 nesta condição, mas já delineando algumas ten-dências para o futuro.

O espaço, colocado como um elemento incessante no de-senrolar da trama, funcionará como a base articuladora dosacontecimentos do início ao fim do romance. A evolução urba-na de Santa Fé está colocada, portanto, sempre relacionada àformação da família protagonista central da história. Aliás, o quejustifica o desenvolvimento urbano é justamente o desenvolvi-mento dos Terra ou Terra Cambará, como justificam as fases:

I - Antecedentes - 1754-1804

Da ocupação do Continente ao agrupamento de ranchos nas terrasdo Cel. Amaral à criação do Povoado: sua localização.

Esta fase se inicia com a integração do Rio Grande do Sulao Brasil Colônia, com a troca da Colônia do Sacramento pelaregião das Missões, determinadas pelo Tratado de Madri, em1750. A história remete então à região jesuítica para algunsanos antes, 1745, quando do nascimento de Pedro (Missionei-ro), ao mesmo tempo que tropeiros paulistas começam a che-gar em outros pontos do território, ainda com seus limites inde-finidos, chamado por isso de Continente de São Pedro. Este é ocaso de Maneco Terra que traz a família, proveniente de Soro-caba, São Paulo, para se instalar em uma estância próxima deRio Pardo, por volta de 1777, como confirmam as recordaçõesde Ana Terra, sua filha, Bom devia ter sido 1777: ela se lembravabem, porque esse fora o ano da expulsão dos castelhanos do território doContinente.15

2 4 1a representação do Espaço na obra de erico verissimo

15. VERISSIMO, Erico. O Continente, p. 75, Círculo do Livro.

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Rio Pardo, a vila mais próxima, mais desenvolvida, serviade ponto de apoio e era para lá que os dois filhos homens iamvender sua produção excedente, comprar outras necessidades ese distrair. Rio Pardo se apresenta como contraponto da cidade,já que é lá que existe o comércio, lá está a Matriz, lá tem festas,lá é animado! O isolamento em que viviam reflete bem a estru-tura regional e fundiária do Continente, onde enormes glebasde sesmarias foram doadas, tornando a densidade populacionalextremamente baixa. Passavam-se meses sem que nenhum cristãocruzasse aquelas paragens.16

Junto com Rio Pardo, Viamão formava uma das grandes ex-pectativas de Ana Terra para sair daquele cafundó. A chegada epermanência de Pedro Missioneiro na estância dos Terra vai daruma guinada na vida da família. A gravidez de Ana, a morte dePedro, já se constituíram numa tragédia, que não se amenizacom o nascimento de Pedrinho, mas segue com a morte da mãee após o ataque por um bando de castelhanos à estancia dosTerras, em 1789, quando esses estavam começando a progredir.Decorre daí a morte do pai e do irmão, e o estupro em série deAna. A decisão que restava era ir embora. Ana com seu filho,com a cunhada e a filha embarcaram em duas carretas com umgrupo de pessoas que se dirigiam para as terras do Coronel Ri-cardo Amaral, estancieiro mais rico da zona missioneira. É tio-avô deminha mulher. Consegui umas terrinhas perto do campo dele. Diz quehá outras famílias por lá. O velho parece que quer fundar um povoado,como informou um dos homens que as conduziam. E ao serperguntado se era muito longe dali, respondeu: “Bastantinho” 17

Depois de andarem por vários dias, avistaram o rio Jacuí, que osimpressionou pelo seu tamanho. Construíram uma balsa paraque pudessem atravessar e retomaram a marcha.

16. Idem, O Continente, p. 75.17. Idem, O Continente, p. 123.

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– Agora estamos mais perto, disse um dos homens, olhando parao norte.(...) e quando Ana já pensava que nunca mais haviamde chegar, Marciano (...)gritou:– Estamos entrando nos campos do velho Amaral!Tres dias depois chegaram ao alto de uma coxilha verde onde seerguiam uns cinco ranchos de taipa cobertos de santa fé. 18

Pela descrição, podemos inferir que a localização dessasterras se situavam à noroeste do território gaúcho, numa regiãode campos marcados por coxilhas, onde a atividade predomi-nante era a pecuária.

– Criação é trabalho pra homem. Lavoura é coisa de português,falava (o Cel Amaral) com certo desdém dos açorianos que viraem Rio Pardo, Porto Alegre e Viamão.19

Mais adiante se esclarece que Santa Fé ficaria próxima deCruz Alta, cidade que compete com ela. Por outro lado, a refe-rência de estar nas coxilhas e não na serra se coloca de plenoacordo com o mapeamento da ocupação do Rio Grande do Sulnessa época, ou seja, até 1850 todos os núcleos urbanos estavamsituados em região de campos, exceto aqueles povoados próxi-mos ao Rio dos Sinos.20 A escolha dessa localização portanto,para a instalação de Santa Fé permitiu a Erico desenvolver suahistória ligada tanto às bases oligárquicas da pecuária gaúcha,como à imigração européia e ao desenvolvimento da agricultu-ra. A presença múltipla dos habitantes acaba por marcar o ter-ritório através de seus percursos, de suas lutas e de sua perma-nência. Iniciada com os tropeiros, que darão origem ao gaúcho“peleador”, imagem tão bem expressa na figura do Cel Amarale do Capitão Rodrigo, ou com os açorianos, cuja presença sepercebe pela plantação do trigo na região e citado como exem-

18. Idem, O Continente, p. 127.19. Idem, O Continente, p. 128.20. A ocupação da serra, só acontecerá com a chegada do segundo turno da imigração no Estado

a partir de 1850.

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21. Idem, O Continente, p. 139.22. Idem, O Continente, p. 140.

plo por Maneco e Pedro Terra. Mais tarde, ocorrerá a chegadade alemães e italianos à região de Santa Fé, já na sua segundafase de desenvolvimento. Importante, então, é destacar queSanta Fé fica no caminho por onde todos passam e acabam fi-cando, desenvolvendo aqui suas práticas sociais. Não é segredopara ninguém que Erico Verissimo utilizou Cruz Alta, sua cida-de natal, como referência para criar Santa Fé, trazendo paraesta, muitas das características lá existentes, daí a rivalidade en-tre as duas no romance. Aparece o confronto entre a cidadereal e a cidade imaginária:

Em princípios de 1803 um padre das Missões passou por aque-le agrupamento de ranchos, disse uma missa, convenceu ChicoAmaral da necessidade de mandar erguer uma capela, batizoudoze crianças e fez cinco casamentos, inclusive o de Pedro Terrae Arminda Melo.21

II - Do Povoado à Vila 1804 - 1834

A formação de um povoado ocorre em 1804, para ordenaraquele agrupamento de ranchos, no qual Ana Terra havia che-gado com seu filho Pedro, nas terras do Cel. Amaral, ainda nofinal do século dezoito. Chico Amaral, filho do coronel, conse-guiu do Administrador da Redução de S. João um ofício “conce-dendo o terreno necessário para a edificação do povoado”:

Ordeno a Vmcê que faça medir com brevidade meia légua de ter-reno no lugar onde pretendem formar a povoação, contendo des-de o ponto em que desejam ter a capela, um quarto de légua nadireção de cada rumo cardeal, em rumos direitos de Sul a Nortee de Leste a Oeste.22

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Nesse documento eram também especificadas as dimen-sões das ruas e dos lotes e definia o prazo para requisição do tí-tulo legítimo (6 meses):

O Major Amaral mandou fazer uma planta da povoação porum agrimensor muito habilidoso, que viera de Rio Pardo. Que-ria uma praça, no centro da qual ficaria a figueira, três ruas denorte a sul e quatro transversais de leste a oeste. Meses depoismandou começar a construção da capela com madeira dos ma-tos próximos. E todos os homens e mulheres do lugar ajudaramnesse trabalho. E quando a capela ficou pronta, foi ela dedica-da a Nossa Senhora da Conceição; veio um padre de Santo Ân-gelo e disse a primeira missa. E o Major Amaral mandou com-prar nas Missões, a peso de ouro, uma imagem da padroeira dopovoado.23

Feita a marcação das ruas, definida a praça com a figueirano centro, se iniciaram as construções particulares nos lotes es-tabelecidos. A família Amaral mandou construir uma casa toda depedra bem na frente da capela, marcando significativamente a pai-sagem. Construiu também outras casas para alugar, obedecen-do uma pratica da época, na qual famílias de mais posses inves-tiam também em construções de aluguel. Pedro Terra dedicasua atividade principal à lavoura de trigo nas suas terras, mas vaiconstruir sua casa num lote de esquina, também na volta dapraça, perto da capela, com frente para o poente, como descre-ve o autor:

A casa de Pedro Terra ficava numa esquina da praça, perto dacapela, com a frente para o poente. Baixa, de porta e duas jane-las, tinha alicerces de pedra, parede de tijolos e era coberta de te-lhas. Os tijolos haviam sido feitos pelo próprio Pedro em sua ola-ria e as telhas tinham vindo de Rio Pardo, na carreta de Juve-nal. Era das poucas casas assoalhadas de santa fé. Dizia-se atéque muita gente em melhor situação financeira que a de Pedronão morava em uma casa tão boa como a dele. Não era muito

23. Idem, O Continente, p. 140.

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24. Idem, O Continente, p. 179.25. Idem, O Continente, p. 196.

grande. Tinha uma sala de jantar, que eles chamavam de va-randa (o vigário, homem letrado, afirmava que varanda na ver-dade era outra coisa). Dois quartos de dormir, uma cozinha euma despensa, que era também o lugar onde ficava o bacião emque a família tomava um banho semanal (Pedro tinha o hábitode lavar os pés todas noites antes de ir para cama). A cozinha,que era a peça que o dono da casa preferia, por ser a mais quen-te no inverno e a que mais fazia lembrar outros tempos – chão deterra batida, cheiro de picumã, crepitar de fogo, chiado da cha-leira – ficava bem nos fundos da casa, com uma janela para oquintal onde havia laranjeiras, pessegueiros, cinamomos, ummarmeleiro - da – índia, e o poço. A mobília dos Terra era a maisresumida possível. Na varanda, além da mesa de cedro sem lus-tro, viam-se algumas cadeiras com assento de palha trançada,uma cantoneira de tábua tosca, e uma toalha com água potávela um canto. Nos quartos, cama de vento, baús e pregos na pare-de, a guisa de cabides. As paredes eram caiadas e completamen-te nuas; na da sala de jantar havia uma saliência semelhandoum ventre roliço. (Ana Terra costumava dizer que a casa estavagrávida(...).24

O traçado xadrez exposto no texto também está em conformidadecom as demais cidades da época, no Rio Grande do Sul. Mais fácil de seimplantar e distribuir os lotes. Aliás, desde os tempos da Grécia Antigaesse é o traçado eleito para implantação de núcleos urbanos de uma for-ma mais simples, mais rápida e, do ponto da distribuição dos lotes, maisjusta, pois todos eles teriam o mesmo tamanho e a mesma forma.

Erico indica como o crescimento de Santa Fé poderia se dar atra-vés do fator populacional:

Tropeiros que vinham de Sorocaba para comprar mulas nas re-dondezas, gostavam do lugar e iam ficando por ali. E o nome deSanta Fé começou a ser conhecido por todo o município de RioPardo e fora dele.25

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As notícias externas chegavam a Santa Fé. Sempre haviaum portador para informar das novidades, das guerras, da che-gada da família real no Brasil (quando Bibiana tinha 3 anos) eoutras referências que permitem colocar a cidade na região, noEstado, no País e no mundo. A medida que o núcleo vai se de-senvolvendo, esse processo se torna cada vez mais intenso. Pri-meiro são os forasteiros, depois virão os estafetas do Correio deRio Pardo. Por outro lado, sempre haverá alguém instruídopara colocar os fatos dentro de uma dimensão histórica maisampla.

III - Da vila à Cabeça de Comarca - 1834-1850

A elevação à condição de vila em 1834 corresponde ao forta-lecimento de setores urbanos, que coincide também com a con-solidação dos Terra: o nascimento do filho de Pedro, Juvenal,exatamente nesse ano e pouco depois nasce Bibiana (1806). Sur-ge, então, uma família consolidada, no seio da qual vivem um ca-sal com dois filhos e uma matriarca, a avó Ana Terra, fundadoradesse clã. É uma fase marcada por guerras mas também pela che-gada, em 1828, de um novo personagem, lutador, aventureiro,cantador, o Capitão Rodrigo, que introduz uma nova dimensão àfamília Terra assim como à vila, cuja venda do Nicolau apareciacomo o equipamento urbano mais importante depois da Capela,além do cemitério. O seu curto casamento com Bibiana, pela suamorte (1836) num ataque a casa dos Amarais durante a Revolu-ção Farroupilha, dará início entretanto a uma forte geração, ados Terra Cambará, a qual se desenvolverá e atingirá o apogeu everá seu declínio, cuja a saga se estende até o final da história.

O desenvolvimento da Vila de Santa Fé, pode ser avaliado,pela chegada dos imigrantes alemães em 1834, que trabalhavamna agricultura em terras junto ao núcleo urbano. O trabalho sis-temático dos alemães e a cultura diferente se traduzem num con-

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traste com os habitantes do local, refletida na própria forma dehabitação. As casas dos alemães eram graciosos chalés de madei-ra, que tinham até cortina e vasos de flores nas janelas. Causava estra-nhamento a todos os jardins bem cuidados, com canteiros de flo-res. A sua produção reforçaria evidentemente o núcleo na suafunção econômica de apoio à produção primária. Entretanto, arevolução que toma conta da Província por 10 anos impede queo desenvolvimento seja maior. A própria venda aberta por Rodri-go e Juvenal se apresentava com fraco desempenho. O abasteci-mento era feito em Rio Pardo e Cruz Alta, o que mostra as rela-ções regionais claramente estabelecidas.

IV - Da Vila de Comarca à Cidade - 1850-1884

O casamento de Bolívar e o Sobrado como personagemNessa época já não se fala mais em capela, agora é a Igreja

o ponto focal da Praça e da Vila. Com a chegada de um ilustrejuiz à cidade, como o Dr. Nepomuceno, podemos ter uma idéiamais clara de com era Santa Fé, em razão de um Almanaqueque ele produziu sobre a cidade, em 1853, com informações so-bre a topografia, a geologia, a fauna e a flora do município,além do calendário, charadas, e enigmas pitorescos, conselhosúteis, etc.. Iniciava com uma descrição literária sobre a cidade:Situada sobre três colinas e cercada de colinas onduladas. (...) O alma-naque oferecia também um esforço histórico, baseada principalmenteno desenvolvimento das famílias da elite – os Amarais, no caso.E descrevia:

A vila possuía agora sessenta e oito casas, entre as de tábua e asde alvenaria, e trinta ranchos cobertos de capim; e que sua po-pulação já subia a seiscentos e trinta almas. Informava aindaDr. Nepomuceno que Santa Fé contava com quatro bem sortidascasas de negócios, uma agência do correio – cuja mala, lamen-tamos dizê-lo, chega apenas uma vez por semana – uma pada-ria, uma selaria e uma marcenaria

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Citava ainda de forma sofisticada:

A ciência de Hipócrates está representada entre nós pelo Dr. CarlWinter, natural da Alemanha e formado em Medicina pela Uni-versidade de Heidelberg e que fixou residência nessa vila em1851, data em que apresentou suas credenciais a nossa munici-palidade.26

Continua se dedicando a comentar o Sobrado da praça, que foiconstruído no terreno da antiga casa de Pedro Terra, que a perdera atra-vés da execução de hipoteca para o Sr Aguinaldo Silva, o qual, ao che-gar a vila, se aboletou num rancho nos arredores da cidade, e começoua emprestar dinheiro a juros altos.

O forasteiro que chega a nossa vila há de por certo que dar-sesurpreso e boquiaberto diante de uma maravilha arquitetônicaque rivaliza com as melhores construções que vimos no Rio Par-do, em Porto Alegre e até na Corte. Referimo-nos a casa assobra-dada que o Sr. Aguinaldo Silva, adiantado criador deste muni-cípio, mandou recentemente erguer na Praça da Matriz, numterreno de esquina com as dimensões de trinta e cinco braças defrente por uma quadra completa de fundo. Essa magnífica resi-dência deve constituir motivo de lídimo orgulho para os santa-fezenses. Dotada de dois andares e duma pequena água furtada,destacavam-se em sua fachada branca os caixilhos azuis de suasjanelas de guilhotina, disposta numa fileira de sete, no andarsuperior, sendo que a do centro, mais larga e mais alta que asoutras está guarnecida de uma sacada de ferro com lindo arabes-co; por baixo dessa sacada, no andar térreo, fica a alta porta demadeira de lei, tendo de cada lado três janelas idênticas às decima. Ao lado esquerdo do sobrado no alinhamento da fachada,vemos imponente portão de ferro forjado ladeado por duas colu-nas revestidas de vistoso azulejo português nas cores azul, bran-ca e amarela, e encimadas as ditas colunas por dois vasos de pe-dra de caprichoso lavor. O terreno, a que esse portão da acessoestá todo fechado por um muro alto e espesso que por assim dizer(perdoe-se nos a ousadia da imagem) aperta a casa como uma te-naz. O efeito é assaz formoso, pois o sobrado (assim a residência

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26. Idem, O Continente, p. 300.

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é conhecida na vila) dá a impressão desses solares avoengos, re-líquia de nossos passados lusitanos. Não devemos esquecer outroencanto, qual seja seu vasto quintal todo cheio de árvores desombra e frutíferas, com laranjeiras, pessegueiros, guabirobeiras,lindos pés de primavera, etc.27

Todas plantadas por Pedro, como diz Bibiana em certo momento:

Agora lá estava o sobrado como um intruso em cima daquela ter-ra querida - era como se o casarão do pernambucano houvesse es-magado a casinha onde vivera Ana Terra e onde ela, Bibiana,noivara com o Capitão Rodrigo. Lá estavam ainda as árvores quePedro ajudara a plantar com suas próprias mãos e amava quasetanto como a seus filho. Sempre que passava pelo sobrado, Bibia-na lançava um olhar para aquelas laranjeiras, pessegueiros, cina-momos, e tinha a sensação de que eles eram parentes seus que a es-piavam, tristes por trás das grades de uma prisão. Era por isso quecontinuava a alimentar a certeza de aquela terra ainda lhe per-tencia e que, portanto, o sobrado era um pouco seu.28

Comenta ainda o editor do “Almanaque” que, ao visitá-lo, verifica-ram que se acha dividido:

Em 18 amplas peças, muito bem arejadas e iluminadas, com pé-direito bastante alto; e que as portas que separam essas peçasumas das outras terminam em arco, em bandeirolas com vidrosnas cores amarela, verde e vermelha. Os móveis são de autênticojacarandá, muito pesados e severos, tendo pertencido, como nosinformou o dito Sr. Silva, a uma Casa Senhorial de Recife, e sen-do de lá trazidos para Porto Alegre num patacho e desta últimalocalidade para cá em carretas.29

Realmente não era costume dos habitantes da região deco-rar muito suas casas, ter muitos móveis, cortinas, etc. Diferentedo Nordeste brasileiro e evidentemente da Corte, que já exi-biam hábitos e costumes mais sofisticados.

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27. Idem, O Continente, p. 301-2.28. Idem, O Continente, p. 333.29. Idem, O Continente, p. 302.

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A elevação à cabeça de comarca, em 1850, corresponde noâmbito familiar, ao casamento de Bolívar Terra Cambará, filhode Bibiana, com Luzia Silva, neta de Aguinaldo Silva. Esse ma-trimônio estimulado por Bibiana significa a volta às origens, àssuas terras, e a conquista do Sobrado.

A presença de Luzia, jovem vinda da Corte com uma forma-ção cultural bastante rara para época, coloca Santa Fé em cho-que. O seu olhar sobre a cidade é o olhar de uma estranha, deuma forasteira, assim como o do Dr. Winter, que traduz esta per-cepção durante suas reflexões. Ambos serão sempre estranhos,mas Luzia realmente causa um grande impacto na cidade. Mes-mo assim é vista por Bibiana como o caminho para se chegar aoSobrado. Sob seu ponto de vista, vale o sacrifício do filho, (queé um apaixonado por Luzia) em prol das novas gerações.

Estava resolvido, ia tomar o Sobrado, não de assalto, com tiros,como o Capitão Rodrigo (...) Era mulher, tinha paciência, esta-va acostumada a esperar...(...) Um dia Aguinaldo morre, Bolí-var fica dono de tudo, eu volto para as minhas árvores (...) vouajudar a criar meus netos.30

Bibiana assume o Sobrado, mas tem a difícil tarefa de con-viver com a nora, que se torna uma pessoa cada vez mais com-plicada. O nascimento de Licurgo, faz com que ela assuma oneto como filho. A morte de Bolívar no meio da rua, mostrauma outra perspectiva que parece interessante abordar. É aquestão do espaço público e do privado que se misturam entreSanta Fé e o Sobrado. A guerra que ocorre na Província do RioGrande do Sul, entra para dentro de Santa Fé, assim como jáhavia acontecido na morte do Capitão Rodrigo, que saiu dacama onde se deitara com Bibiana para ir lutar, depois de tan-tas lutas fora, e morrer na guerra interna, no Casarão dos Ama-rais. Agora Bolívar sai de casa, enfrentando os capangas dos

30. Idem, O Continente, p. 334.

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Amarais, para acabar caindo de borco no meio da rua com a cara me-tida numa poça de sangue, morte essa assistida por Bibiana das ja-nelas do Sobrado.

Antes já teria havido um enforcamento na praça assistida decamarote, por quem quisesse, através das janelas da sala do So-brado. Esses fatos tornarão a acontecer com o cerco do sobradoem 1895, e o Sobrado como protagonista se tornará revelador.

Depois da Guerra contra Rosas e da Guerra do Paraguai,que Licurgo esperava poder alcançar, assim que completasse 18anos, mas que terminou antes que o fizesse, uma certa paz per-mitiu o desenvolvimento da vila que a conduziu, no fim do pe-ríodo, à duas grandes comemorações: à elevação da vila à cida-de e ao casamento de Licurgo Cambará com sua prima Alice,neta de Juvenal, irmão de Bibiana.

V - Da cidade ao cerco para o fim da história - 1884-1945

Amanhã, 24 de junho de 1884, será um dia assinalado na histó-ria de nossa idolatrada terra. Santa Fé comemorará sua elevaçãoa categoria de cidade. Aleluia! Aleluia! Que os sinos de nossa al-terosa igreja badalem e encham os ares de sons álacres, anuncian-do o fasto grandioso. Finalmente a assembléia provincial fez justi-ça (quae sera tamen), pois já a todos causavas estranheza a tar-dança de concessão de foros à nossa vila, quando uma outra lo-calidade menos progressista e menos importante que a nossa (cujonome a discrição manda calar) já o tem de há muito 31

O Arauto estava se referindo a Cruz Alta, cidade desde1879. A grande festa começava com um romper da aurora coma Banda de Música Santa Cecília, organizada pelo Dr Winter,que percorrerá as ruas principais da nossa urbs. Às 10 horas Mis-sa na Praça da Matriz, observe-se que estamos agora diante deuma Matriz. Às 4 horas, na Praça:

31. Idem, O Continente, p. 502.

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Realizar-se-ão as tradicionais cavalhadas. Finalmente a noite, oPaço Municipal abrirá seus salões para um grande Baile deGala, abrilhantada pela supra citada banda e iniciado por umcotillon, e ao qual comparecerá o que Santa Fé tem de mais sele-to e representativo. 32

A sofisticação da linguagem, novos equipamentos e novoshábitos fazem parte da introdução paulatina da modernidadedeste período, primeiro com Licurgo e depois com Rodrigo,seu filho, ambos exercerão um forte papel nesse sentido. Licur-go influenciado pelos ideais republicanos e libertários vai repre-sentar uma bandeira contra o Império escravista. Dizia-se emSanta Fé que Licurgo tinha três amantes: a república, a aboliçãoe Ismália, e que as vezes ia para cama com as três. Desse perío-do, Fandango faz o contraponto entre o antigo e o moderno,entre o rural e o urbano.

Depois de um fantástico cerco ao Sobrado, em 1895, porvários dias, a guerra está dentro da cidade e dentro do Sobradoque resiste. Santa Fé, com os capangas do Intendente e a guar-da militar atacam o Sobrado, enquanto se resguardam significa-tivamente na torre da Igreja Santa Fé. É um momento delicadoda família, quando Alice está para dar a luz, e outros atingidosresistem no Sobrado, com falta de quase todos os recursos. Mor-re a criança e a mãe sai desse episódio muito fragilizada. Nessemomento, a figura de Maria Valéria, irmã de Alice, vai assumiro papel da resistência na família, antes já representado por AnaTerra e Bibiana .

Depois desse fato, Santa Fé vai recomeçar sua vida no cami-nho da reconstrução e do desenvolvimento, tendo em RodrigoTerra Cambará, filho de Licurgo, o seu porta voz. Rodrigo se for-ma em Medicina em 1909, em Porto Alegre, e volta, de trem,para sua cidade natal a fim de assumir paulatinamente a lideran-ça familiar e política, procurando trazer, com suas próprias

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32. Idem, O Continente, p. 502.

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33. VERÍSSIMO,E. O Retrato, p. 42.34. Idem, O Retrato, p. 88.

mãos, o progresso à Santa Fé. Esta fase se desenrola com muitosdetalhes descritos em O Retrato e em O arquipélago. A fase final sedá com o seu afastamento da cidade para o Rio de Janeiro ondeassumirá uma cadeira na Câmara dos Deputados (1930-45). Seuposterior retorno, quando da queda de Getúlio Vargas, já doen-te, marca o fim de um período, com a sua própria morte. A fra-se de Tio Bicho para Floriano é esclarecedora: com Dr. Rodrigonão morre apenas um homem, acaba-se uma estirpe. Finda uma época,o que vem por aí não sei se será melhor ou pior, só sei que não será o mes-mo.33 E Santa Fé continuaria lá para o que desse e viesse.

Rodrigo, recém formado, chega a Santa Fé e a olha comum olhar crítico, através primeiro do Sobrado, o grande camaro-te da praça, e depois num passeio com Toríbio pelas ruas da urbe,como a designou O Arauto, quando da sua elevação à vila.

Do ponto em que estava (no sobrado), Rodrigo dominava com oolhar sua cidade, via-lhe os telhados em meio a densa vegetaçãodos quintais. Santa Fé resumia-se em duas ruas que corriam denorte a sul - a do Comércio e a dos Voluntários da Pátria, corta-das por cinco outras de menor importância, ruas esbarrancadasde terra batida e sem calçadas onde pobres meias-águas e casasde madeira se erguiam em precário alinhamento, entremeadas deterrenos baldios onde cresciam ervas daninhas, e os moradoresda vizinhança iam atirando dia a dia o seu lixo. A Rua do Co-mércio era a única calçada de pedra e nela ficavam o Clube Co-mercial, a Confeitaria Schnitzler, o Centro Republicano e asprincipais casas de negócio.34

Visitou os amigos nos seus estabelecimentos: Zé Pitombo, oarmador, Chico Pão, o padeiro, e depois Rodrigo lançou umolhar para as fachadas ao longo da rua do Comércio:

Como eram baixas, feias e tristonhas aquelas casa! Com exceçãodo Sobrado, do Clube Comercial e de algumas residências comodos Matos, dos Quadros e dos Fagundes, eram todas térreas e

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sem estilo, caiadas sem platibanda. No telhado limoso das maisantigas cresciam até ervas. O pavimento da rua riçado de pedraferro de tamanho irregular e de ordinário coberta de finíssimapoeira avermelhada, dava a impressão de ter sido feita com pésde moleque. Ao longo das calçadas alinhavam-se os lampiões dequerosene, no altos dos postes de madeira pintados de azul.35

Rodrigo não se conformava com o atraso da cidade, nemluz elétrica? Logo adiante no seu percurso encontrou com oaguadeiro de Santa Fé que vinha pelo meio da rua aos sacolejosde sua carroça, sentado no alto da grande pipa. A praça é palcodos acontecimentos da cidade, era também onde vacas e cava-los pastavam. A cidade já tem alguns bairros mais afastados deonde se destacam o Barro Preto, o Purgatório , e os distritos deNova Pomerânia, Garbadina.

Na volta de Rodrigo do Rio de Janeiro, em 1945, a cidadeé vista por seus filhos, primeiro Eduardo sobrevoando Santa Fé,no seu Rosa dos Ventos:

Lá estava ela esparramada sobre as três colinas, com seu casarioesbranquiçado, os telhados antigos e pardacentos a contrastarcom o coral vivo das telhas francesas das construções mais no-vas; as faixas cinzentas das ruas calçadas de pedra ferro a se-guirem paralelamente ou a cortarem nítidas as sangüíneas dasruas de terra batida; e enchendo dum verde escuro as casas da-quele tabuleiro xadrez as maciças manchas do arvoredo de poma-res e praças. Vista do alto, Santa Fé tinha um jeito miniatural emorto de maqueta, dum brinquedo a que a luz do sol, ao baternas superfícies de vidro, água e metal, dava um certo lustro deverniz e coruscações de lentejoula. A cidade estava cercada de co-xilhas que fugiam na direção de todos os horizontes, cortadaspela fita de ocre avermelhado das estradas. Era uma verde e im-petuosa amplidão onde se desenhavam chácaras e fazendolascom suas casas brancas, moinhos de vento, pomares, hortas, cer-cados, pastagens e açudes...Aqui e ali, como remendos de dife-rente tecido naquele tapete ondulado, recortavam-se os quadrilá-teros cor de ferrugem das roças de terra recém virada ou os con-

35. Idem, O Retrato, p. 96.

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tornos simétricos dos bosques de eucalipto... Olhando para o nor-te, Eduardo avistou Nova Pomerânea com a esguia torre de suaigreja numa paródia gótica; voltando a cabeça para as bandasdo poente divisou os telhados de Garibaldina entre os parreraise ciprestes(...). Até ao Rosa dos Ventos não chegava o perfumedos ricos que viviam nos melhores palacetes de Santa Fé, nem afedentina dos miseráveis que vegetavam nas malocas de BarroPreto, do Purgatório e da Sibéria.36

Do ponto de vista de Floriano a impressão não é melhor:

O carro pôs-se em movimento, descendo a encosta da coxilha, nadireção da cidade. Floriano lançou um olhar para o casario rasoe pardacento do purgatório, que se estendia ao tépido sol daque-le fim de tarde. Ainda lá estavam sórdidas malocas com sua po-pulação de marginais, bem como nos tempos de sua infância.Nada parecia ter mudado. Santa Fé tinha agora um aeroclube,uma estação de rádio, as ruas centrais pavimentadas de parale-lepípedos, mas a miséria do Barro Preto, do Purgatório e da Si-béria continuavam.37

O fato de terem morado por 15 anos no Rio de Janeiro, acapital da República, desligados de Santa Fé, fez com que per-dessem seus referenciais e suas identidades, ficando claro quenão será fácil resgatá-los, assim como reunir a família novamen-te. Entretanto, Santa Fé continuará com seu povo, com sua his-tória na mesma direção que outras cidades da região prossegui-rem, só que agora seguirá seu rumo sem as amarras aos TerraCambará, a não ser que, através de Floriano, o escritor, seurumo seja alterado...

Conclusão

A maior complexidade de relações e de problemas da cida-de nesta última fase é muito bem colocada no volume de O Re-

36. Idem, O Retrato, p. 13-4.37. Idem, O Retrato, p. 525.

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trato, apesar da crítica considerar esse volume o menos interes-sante em O Tempo e o Vento, em termos de romance, pois a tramagira em torno de praticamente um só personagem:

As narrativas não têm vida própria, senão as que servem para ex-plicar a trajetória de Rodrigo Cambará, mostrando como era e emque se transformou. Além disso, o romance centraliza na biografiado protagonista, substituindo a composição centrífuga, de O Con-tinente por uma seqüência centrípeta, cujo eixo é o líder dos Cam-barás, impedindo que cada parte assegure para si a autonomianarrativa.38

Contudo, do ponto de vista da cidade, é n’O Retrato que apa-recem as maiores riquezas de detalhes. A vida da cidade está colo-cada com todas as suas práticas sociais, seus equipamentos, bairros,periferia, serviços, e uma sociedade plural circulando por Santa Fée marcando seus passos. Ao se fixar mais em um personagem, épossível precisá-lo melhor, desenvolvendo mais o seu cotidiano edos demais, mostrando o circular, o perambular e o permanecernos espaços urbanísticos ou arquitetônicos , nos públicos ou priva-dos, ou ainda aqueles que se tornam, ao mesmo tempo, uma coisaou outra. Para esse tipo de abordagem, podemos destacar quemuitas vezes a praça fez parte do Sobrado, assim como a sua pró-pria rua de fronte. Outras vezes era o contrário, as salas do Sobra-do se transformavam em camarotes de onde podiam assistir osacontecimentos da praça. Fatos como esses são mostrados nos trêsvolumes.

Um aspecto que vale mencionar é o fato de que tanto a Cida-de como o Sobrado assumem nitidamente o papel de personagens.Não são os Terras que se preparam para as lutas, para as festas, paraos encontros, mas o Sobrado. O mesmo acontece com a cidade:Santa Fé não apreciava , Santa Fé ia a luta, Santa Fé se fez mulher.Por ocasião de sua elevação à vila, o padre, durante a Missa, dizia:

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38. ZILBERMAN, Regina. O Tempo e o Vento: História, Mito, Literatura. In: LEENHARDT, Jacquese PESAVENTO, Sandra J.(orgs). Campinas: Col. UNICAMP, 1998, p. 142.

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Santa Fé, que era menina, agora se faz moça. E nós, que a ama-mos e nos envaidecemos dela, apresentamo-la ao mundo e excla-mamos: Vede como cresceu nossa menina, como se fez tão gracio-sa e bela.39

Por último, a questão da modernidade tratada no Roman-ce de Erico Verissimo merece um tratamento mais aprofunda-do em outra oportunidade. Na verdade, ela não se reflete exa-tamente no espaço físico mas está presente de maneira muitoforte na vida urbana, seja na aceitação das novas tecnologias,nas adoções de novas políticas e novas ideologias, assim comonas práticas sociais.

* Doutora em Arquitetura, UFRGS.

39. op. cit. O Retrato p. 519.

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“Toda a gente tinha achado estranha a maneira como o Capitão Rodrigo Cambará entrara na vidade Santa Fé. Um dia chegou a cavalo, vindo ninguém sabia de onde, com o chapéu de barbicachopuxado para a nuca.”

O Continente – Um Certo Capitão Rodrigo

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ALMANAQUE MUNICIPAL DA CIDADE DE SANTA FÉ(atualização do texto original de Nepomuceno Garcia de Mascarenhas)

Para o ano de

1899por Andrey Rosenthal Schlee*

Ao leitor

Prezado leitor, em 1853 o ilustre morador de Santa Fé, e primeiro Juizde Direito da Comarca, Dr. Nepomuceno Garcia de Mascarenhas, escreveue mandou publicar, sob seus auspícios, o Almanaque de Santa Fé. Desde en-tão, nenhuma outra publicação nesse gênero foi escrita, apesar do incontes-tável auxílio que livros desta ordem prestam a todas classes da sociedade.

Passados exatos quarenta e seis anos de tão importante iniciativa e comemo-

rando a chegada de um novo século, retomamos o texto original do magistrado

com o intuito de providenciar sua atualização, dado o progresso crescente de nos-

so município. Procurei guiar-me por bons modelos na classificação e disposição dos

assuntos de que consta este livro. Ainda assim, muitas faltas hão de dar-se indepen-

dentes de minha vontade, e que os leitores relevar-me-ão, por alguma coisa útil que

tiver feito.

A Direção

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HISTÓRICO DO MUNICÍPIO DE SANTA FÉ

A vila de Santa Fé se desenvolveu à beira da antiga estrada, poronde passavam os índios missioneiros transportando erva mate de Botu-caraí para os povos dos jesuítas. No início eram apenas cinco ranchos detaipa cobertos de palha, construídos à frente de uma grande figueira.Neste mesmo local, com o tempo, passaram a pedir descanso, ou agasa-lho noturno, alguns raros viajantes provindos dos lados de São Martinhoou da região da serra.

Ainda o local da cidade de Santa Fé era assim, quando, por vol-ta de 1789, chegou o grupo capitaneado por Marciano Bezerra, compos-to de mais dois homens, seis mulheres e cinco crianças. Depois destespovoadores, vários outros foram ocupando a região, buscando o traba-lho e a proteção oferecidos pelo Cel. Ricardo Amaral.

Procuramos saber os nomes dos primeiros povoadores do terri-tório santa-fezense, mas a tradição, a memória desses homens pratica-mente desapareceu. Dois ou três nomes ainda são recordados: o do cita-do capataz Marciano Bezerra, o da viúva Eulália Terra, o da parteira AnaTerra e o de seu filho Pedro.

As terras originárias da cidade de Santa Fé pertenciam à sesmariado Cel. Ricardo Amaral. Rico proprietário e senhor da estância que deunome à localidade. Uma vez preso ao solo, por tão grandes proprieda-des rurais, resolveu formar o lugarejo, onde só havia ranchos.

De 1802 a 1811, reinou a paz na fronteira e em todo o Continente,de modo que as atividades comerciais e pastoris prosperaram. Em 1803,foi construída a primitiva capela da região, onde onze crianças recebe-ram os santos sacramentos e cinco sagrados casamentos foram realiza-dos.

No mesmo ano, o Maj. Francisco Amaral, filho do Cel. Amaral, re-cebeu autorização do administrador da redução de São João Batistapara fundar uma povoação. O ofício fornecia as diretrizes para o deli-neamento da área da povoação: “...ordeno a V.mce. que faça medir com

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brevidade meia légua de terreno no mesmo lugar em que pretendemformar a povoação, contendo desde o ponto em que desejam ter a cape-la, um quarto de légua na direção de cada rumo cardeal, isto é, em ru-mos direitos de Sul a Norte, e de Leste a Oeste, ponto marcos ou bali-zas, que permaneçam seguros nos extremos das linhas assim medidas,para que em todo o tempo se possam passar os rumos e travessões, quedevem ficar no quadro necessário da povoação. E dentro do menciona-do quadro destinará V.Mce., um terreno de um quarto de légua em qua-dro, pouco mais ou menos, no lugar próprio e adequado para logradou-ro dos animais de todos os habitantes do lugar, os quais deverão ter suashabitações em ruas bem alinhadas e destorcidas. Cada rua terá 60 pal-mos craveiros de largura e cada morador 50 palmos contados na frenteda rua e 200 ditos de fundos. São proibidas expressamente as faturas deChácaras dentro da meia légua em quadro destinada à povoação, assimcomo ninguém poderá ocupar mais terreno, que aquele que lhe é desti-nado. A frente da capela se deixará uma praça quadrada e não deveráter menos de uma quadra de 400 palmos em quadro”.

A planta da povoação foi traçada pelo piloto de Sesmarias Mau-rício Inácio da Silveira e pelo ajudante de corda Francisco Correia da Sil-va. Ao finalizar a medição e demarcação do povo, o piloto foi confirma-do por provisão para trabalhar em Rio Grande. Foram traçadas três ruasno sentido de norte a sul e quatro travessas no sentido leste a oeste. Nocentro do povoado, foi delimitada a praça, atual Praça da Matriz, que na-quela época já exibia sua majestosa figueira.

Em terreno previamente definido, o próprio Maj. Amaral mandouconstruir a nova capela, contando com a colaboração de todos os ho-mens e mulheres da localidade. Foi ela dedicada a Nossa Senhora daConceição. No outro lado da praça, edificou sua própria morada, umgrande sobrado de pedra, e que, por muitos anos, foi considerada amaior construção da região.

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Enquanto não houve autoridades civis era o Maj. Amaral quem aco-modava todas as questões, pois os habitantes da povoação, os da campa-nha e até os padres, submetiam-se ao seu parecer conciliador e discreto.

A vida corria pacata quando, em 1833, chegaram a Santa Fé as duasprimeiras famílias alemãs. A do Sr. Erwin Kunz e a do Sr. Hans Schultz.O primeiro abriu uma selaria, e o segundo comprou terras para o plan-tio. Trouxeram novos costumes e novas maneiras de viver. Um ano de-pois, em 34, Santa Fé fora elevada a condição de Vila por ato da presi-dência da Província, na conformidade do artigo 3º do Código de Pro-cesso Criminal do Império.

Nossa vila tem pago pesado tributo de sangue e heroísmo no altarda pátria. Muitos foram os oficiais e soldados que deu para as lutas deque esta Província tem sido teatro, e pode-se dizer sem exagero que nãohouve geração que não tivesse visto pelo menos uma guerra. Durante aluta civil que por espaço de dez anos ensangüentou o solo generoso doContinente, muitos foram os santa-fezenses que participaram dela, quernas hostes farroupilhas quer nas forças legalistas. Não me cabe aqui,como magistrado e como homem infenso às paixões políticas, manifes-tar simpatias ou lançar diatribes. O que passou passou e mais vale esque-cido do que lembrado, pois uma luta fratricida é mil vezes mais horren-da do que as guerras entre as nações. Graças ao Supremo Arquiteto doUniverso o sol da paz raiou benfazejo no horizonte da Província, e os ini-migos de ontem se deram as mãos e recomeçaram a trabalhar juntos emprol da grandeza da Pátria comum. Mas, ai!, ainda nem bem se haviamcicatrizado as feridas abertas pela guerra civil e já de novo eram nossosirmãos arrancados ao aconchego dos seus lares e ao seu trabalho pací-fico, convocados mais uma vez pelo pressago clarim da guerra. Rosas, otirano argentino, ameaçava a integridade de nosso Brasil, e era necessá-rio fazer frente a essa ameaça. E assim mais uma vez os santa-fezensesformaram os seus batalhões de voluntários e nessa luta que nem por serrelativamente curta foi menos cruenta, muitos foram os filhos desta vila

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que tiveram atuação destacada. Entre eles é de justiça salientar o jovemBolívar Terra Cambará, filho dum intrépido soldado, o Cap. Rodrigo Se-vero Cambará, morto heroicamente num combate que se feriu nestavila em princípios de 1836. Bolívar, esse denodado jovem, cujo nome pa-rece trazer em si uma destinação gloriosa, guiou os seus cavalarianosnuma carga de lança, destruindo um quadrado inimigo e arrancando,ele próprio, das mãos dum adversário a bandeira argentina! Esse ato debravura valeu-lhe a promoção ao posto de primeiro-tenente, e uma cita-ção especial em ordem do dia.

Em 1850 a Vila de Santa Fé foi elevada a cabeça de comarca e seuprimeiro juiz de direito foi o Dr. Nepomuceno Garcia de Mascaranhas.

Santa Fé foi elevada à condição de Cidade em 25 de março de1884, dia em que se comemora a Anunciação de Nossa Senhora. Os fes-tejos romperam pela matina quando os acordes da Banda de Santa Ce-cília se fizeram ouvir em toda a cidade. Por voltas das dez horas da ma-nhã, os sinos da matriz conclamaram a população para o magnífico TeDeum. A missa solene foi organizada pelo Pe. Atílio Romano e contoucom a presença dos mais ilustres filhos de Santa Fé. Às quatro da tardeteve início a “Cavalhada Festiva”, interrompida por um acontecimentodesastroso. Simulando uma guerra entre dois partidos, os mouros e oscristãos, os combatentes executaram várias evoluções, sempre a galope.Garbosamente montados nos seus melhores cavalos, os filhos da terraapresentaram-se na arena trajando azul, se cristãos; ou encarnado, semouros. No entanto, a simulação deu lugar à terrível realidade, e aque-les a quem todos deveriam respeitar lançaram-se em luta voraz. Ao anoi-tecer, seguiram-se dois grandes bailes. O do Paço Municipal, organizadopelo Cel. Bento Amaral; e o do Sobrado, organizado por Sr. LicurgoCambará.

Durante o baile de gala do Paço Municipal, foi prestada uma signi-ficativa homenagem ao venerando Cel. Bento Amaral, neto do fundadorda cidade. Já, durante o baile do Sobrado, num gesto de grande huma-nidade, o Sr. Licurgo Cambará concedeu carta de manumissão a todos

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os seus escravos. Na mesma ocasião, dezenove outros cativos foram liber-tados pelo Clube Republicano.

Como dizia o Pe. Atílio Romano: Santa Fé é obra de muitos homens,de muitas famílias e principalmente uma dádiva do Todo-Poderoso!

A morte do índio Sepé

Do alferes-mor de São Miguel, José Tiaraju, ouviram apenas quenão havia direito para lhes tirarem aquelas terras, que Deus e São Mi-guel lhes haviam dado. Os feitos de Sepé e seus guerreiros corriam pe-los Sete Povos e testemunhas oculares das batalhas contavam que nomeio da refrega tinham visto o lunar a fulgir na testa do corregedor, quepassava incólume por entre as balas, brandindo no ar a espada flamejan-te. São Miguel Arcanjo estava entre os índios, defendia sua própria Mis-são. Aí estava José Tiaraju, o Capitão Sepé, que chamava atenção peloseu porte e pela atitude garbosa de seu natural. Sepé luta como um sersobrenatural. Mas chega-lhe, pelas costas, um dragão português, que lhejoga um golpe profundo de lança. Sepé abraça-se ao pescoço de seu ca-valo branco. José Tiaraju morreu, padre! São Jorge foi morto pelo dra-gão! O alferes foi derrubado do cavalo por um golpe de lança. Vi quan-do ele quis erguer-se e um homem... um general... de cima do cavalo, va-rou-lhe o peito com uma bala. Lhe corta com um tiro de pistola o cursoda vida. A alma de Sepé subiu e virou estrela. Sepé ascendeu aos ares tra-jando vestes de guerreiro. Longas botas, armadura, chapéu emplumado,duas longas asas e nas mãos um arcabuz. Deus botou também na testa danoite um lunar como o de São Sepé.��

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Poesia I

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,Muda-se o ser, muda-se a confiança;Todo o mundo é composto de mudança,Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,Diferentes em tudo da esperança;Do mal ficam as mágoas na lembrança,E do bem, se algum houve, as saudades.

Tempo cobre o chão de verde manto,Que já coberto foi neve fria,E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,Outra mudança faz de mor espanto:Que não se muda já como soía.

Luiz Vaz de Camões

SITUAÇÃO DA CIDADE DE SANTA FÉ

A Cidade de Santa Fé é uma das flores mais formosas do vergel ser-rano. Situada sobre três colinas e cercada de campos ondulados, lembraela ao viajante, singelo mas gracioso presepe. Prodigamente dotada pelanatureza, seus bons ares e suas cristalinas águas são propícios à longevi-

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dade, razão pela qual muitos de seus habitantes, em geral de costumesmorigerados, passam dos noventa anos, como foi o caso extraordináriodo preto escravo conhecido pela antonomásia de Sinhô d´Angola, oqual durou mais de uma centúria, e do Cacique Fongue, que viu pelaprimeira vez a luz do dia na redução de Santo Ângelo, por volta de 1750,e que, em 1853, contava com cento e três anos.

Apresenta ao visitante uma bela e bem planejada praça, a da Ma-triz, caracterizada por sua magnífica figueira e pelos belos prédios que acercam, todos de boa arquitetura. São quatro as principais edificaçõesda cidade. A Igreja Matriz, o Paço Municipal, a residência da FamíliaAmaral e a residência da Família Cambará, distribuídos como que que-rendo desenhar uma cruz, em cujo centro está a centenária figueira.

A igreja matriz, construída a partir de 1863, apresenta duas torres euma só nave dividida através das carreiras de bancos. Trata-se de abrigosuficientemente grande para receber e proteger toda a população da ci-dade. No altar-mor destaca-se a imagem missioneira da padroeira, NossaSenhora da Conceição, ao lado da qual repousam outras santos, que maisparecem guerreiros entocaiados: São Miguel Arcanjo, anjo justiceiro,príncipe celeste e defensor do bem; São Rafael Arcanjo, anjo da guarda,que ampara e defende os homens; São Tiago Maior, combatente dosmouros, com seu cavalo branco; e São Jorge, que luta contra todas as he-resias, com sua armadura de ferro e seu cavalo, igualmente, branco. Emuma das torres, a do batistério, fica a pia com a água benta e a escada deacesso ao campanário propriamente dito; na outra, a capela de Santa Bár-bara, protetora contra as tempestades e padroeira dos militares.

O Paço Municipal, antiga Casa de Câmara e Cadeia, é um prédiotérreo, mas com porão alto. No térreo fica o salão principal com o seuforro artesoado, ladeado por quatro pequenos escritórios, dois de cadalado. O porão repete a mesma distribuição, só que os escritórios dão lu-gar às celas. �

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O cemitério de Santa Fé, ou Cemitério Católico Municipal, fica noalto da coxilha, a um quarto de légua da Praça da Matriz. Todo cercadode pedras, apresenta quatro tipos de sepulturas, variando segundo o po-der aquisitivo do finado: montículos de terra com cruzes, covas recober-tas por lajes, túmulos de tijolos rebocados e caiados e, finalmente, as ca-pelas perpétuas que acabaram transportando para o Campo Santo anti-gas rivalidades terrenas. São dignos de nota os jazigos das famílias Ama-ral e Cambará. Está aberto das 6 horas da manhã às 6 horas da tarde.

Quanto a indústria e profissões, conta a cidade: com a FarmáciaGalena; a Casa Sol; a Sapataria Serrana; a Botina Elegante, o Bazar Ame-ricano, a Fábrica a Vapor de Moer Café e o Armazém de Secos e Molha-dos do Sr. Fernando Ribeiro; a Alfaitaria Italiana, estabelecimento queacaba de passar por grandes reformas não temendo competência em tra-balhos e preços; a filial do Armazém de Secos e Molhados do Sr. Candi-do de Lamare de Santa Maria, com grande quantia de arame para cer-cas; a Fábrica de Licores de Alexandre Hurtig & Irmão, com matriz emSanta Cruz, produzindo os famosos Genebra, Aromático e Bonekamp; aFábrica de sabão e velas do Sr. Álvaro Pedroso; o Armazém Amaral, comvendas por atacado de couros secos, lã, cabelo, cera, fumos, erva e varia-do estoque de produtos de charqueadas; e a casa Ao Livro Verde, fábri-ca de livros em branco. Conta a cidade com dois jornais: O Arauto, di-rigido pelo Dr. Manfredo Fraga; e O Democrata, órgão oficial do Parti-do Republicano, dirigido pelo Dr. Toríbio Rezende.

Diário de um soldado português

Reproduzimos a única página encontrada de um documento anô-nimo, recolhido e gentilmente cedido pelo conterrâneo Dr. Carl Winter.Provavelmente deve ter sido escrito por volta de 1777, ano da expulsãodos castelhanos do território do Continente.

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“... A região percorrida até aqui é ondulada, oferecendo excelentespastagens. Como a jornada apresentava-se cansativa, o vento era inten-so, os homens estavam famintos e o forte de Santa Tecla estava distante,tratamos de buscar algum local de pouso. Paramos numa estância cujosedifícios se compõem de duas tristes palhoças: uma habitada pelo pro-prietário, esposa e três filhos; outra utilizada como depósito de tranquei-ras. O triste cenário contrastava com a beleza natural, com a coxilha,com a sanga e com os pessegueiros floridos. O proprietário, de nomeTerra, convidara-nos para descer e comer alguma coisa. E, como a fomeera grande, dentro em pouco estava, com meus oficiais, sentado à mesacomendo um churrasco com abóbora e bebendo uma guampa de leite.O rancho era de pau a pique, paredes de taquaraçu e barro, coberto depalha e piso de terra batida. Contava duma só peça quadrada com repar-tições de pano grosseiro. Um dos compartimentos resultava maior e alifaziam as refeições: era ao mesmo tempo refeitório e cozinha, e a umcanto dela estava o fogão de pedra e uma talha com água potável. O mo-biliário era simples e rústico: uma mesa de pinho sem verniz, algumas ca-deiras de assento e respaldo de couro, uma arca também de couro, comfechos de ferro, um armário meio desmantelado... Numa outra reparti-ção ficava a cama do casal, sobre a qual, na parede pedia um crucifixode madeira negra, com um Cristo de nariz carcomido. Na divisão seguin-te estavam os catres dos dois filhos machos; e no outro compartimentouma cama de pernas de tesoura, debaixo da qual se via um velho baú.Devia ser o ´quarto´ da filha, moça mui linda... Moça bonita e trabalha-deira. Um dia, vamos ficar donos de todo o Continente, e então precisa-remos de moças bonitas e trabalhadeiras...

Fui soldado, sentei praçaJá servi numa guarita,Agora sou ordenançaDe toda moça bonita...”�

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Poesia II

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,Depois da Luz se segue a noite escura,Em triste sombras morre a formosura,Em contínuas tristezas a alegria

Gregório de Matos Guerra

FATOS CURIOSOS

• A primeira parteira da cidade foi a viúva Ana Terra. Através desuas mãos firmes muitos santa-fezenses vieram ao mundo. Era chamadapara atender partos a muitas léguas de distância da Vila. Quando chega-va a hora e algum marido vinha buscá-la, pegava a sua tesoura e, em ge-ral, exclamava: então a festa é pra hoje!?

• A primeira condenação à morte ocorreu em 1853. Fora enfor-cado, em plena Praça da Matriz, o negro Severino. Segundo registrou ovigário Otero, “o espetáculo não foi nada edificante”.

• Na esquina onde atualmente encontra-se o grande Sobrado, an-tigamente havia a residência do oleiro Pedro Terra. Morada baixa, deporta e duas janelas, tinha alicerces de pedra, paredes de tijolos e era co-berta de telhas. Era uma das poucas casas assoalhadas de Santa Fé. Talresidência, por hipoteca, passou às mãos do Sr. Aguinaldo Silva, quemandou destruí-la e construiu, no mesmo local, o grande palacete dedois pavimentos mais a água-furtada. No entanto, quis o destino que aneta de Aguinaldo Silva contraísse matrimônio com o neto de Pedro Ter-ra, de maneira que a propriedade voltou a pertencer, com a morte deLuzia Silva, à família Terra Cambará.

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Medicina Caseira

Com o intuito de melhorar a saúde da população santa-fezense, oDr. Carl Winter vem traduzindo para o português, contando com impor-tante colaboração do Dr. Cloratório Nunes e do Sr. Paulo Kraemer, a edi-ção alemã do livro “Medicina homeopática doméstica”. Acreditando quea ciência de Hipócrates deve tornar-se o bem comum de todo povo, ecom a permissão dos organizadores da edição, reproduzimos algumasinformações contidas em tão importante obra:

1. Banho de assento ou meio banho.Toma-se este banho em qualquer vasilha espaçosa contendo água

que chegue só a altura do umbigo. Os pés devem ficar fora da banhei-ra sobre um pequeno escabelo, cobrindo-se as pernas com uma colchade lã. Emprega-se para o banho de assento dois a quatro baldes de águana temperatura de 24 a 28 graus Réaumur, ficando sentado na água 15a 30 minutos. Tratamento indicado contra a febre, febres violentas, ma-les do baixo ventre e hemorróidas.

2. Calos nos pés.Estas excrescências incomodativas consistem simplesmente no en-

durecimento de uma porção da pele causada pela pressão, formandocomo que um espigão ou espinho que sai do centro e se enterra na car-ne como uma raiz. O tratamento consiste em amolecer o calo em umbanho bem quente de pés, a que se ajunta um pouco de cinza, deitandoem cima do calo um pedaço de toucinho, e ata-se em cima uma cama-da de algodão. Com esse processo o calo amolece, podendo ser retirado.

3. Moléstias das mulheres.São muitas vezes conseqüências de extravagâncias conjugais duran-

te a gravidez. É quase incrível a ignorância que domina o homem e amulher neste assunto. Mesmo a bíblia proíbe o coito no período da gra-videz. Neste tempo o marido não deve importunar a mulher com pedi-dos relativos ao leito nupcial, na prenhez a mulher deve ser uma santa

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que o marido deve respeitar religiosamente. Também ela deve estar con-victa, que será severamente castigada e terá em conseqüência gravesdoenças nervosas e nos órgãos sexuais.

A bem da saúde aconselhamos as mulheres e as moças, que lavemsuas partes íntimas duas vezes por semana com água morna.

Poesia III

Não vês aquele velho respeitável,que, à muleta encostado,

apenas mal se move e mal se arrasta?o Tempo arrebatado,que o mesmo bronze basta!

Tomás Antônio Gonzaga

AS MAIS BELAS RESIDÊNCIAS DE SANTA FÉ

A mais antiga construção, ainda existente em Santa Fé, é o sobradoda família Amaral. Mandado construir pelo Maj. Francisco Amaral, e da-tado do final de 1803, foi erguido todo em pedra segundo risco elabora-do pelo piloto Maurício Inácio da Silveira. Residência ampla de várioslanços, ou como consta em seu inventário, “uma morada de casa de vi-venda nobre de sobrado com primeiro e segundo andar com eirado,tudo feito de pedra”. O pavimento térreo é composto de inúmeros com-

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partimentos, antigamente reservados aos escravos, aos agregados ouhóspedes. Outros eram utilizados como depósitos e cocheiras. Ainda notérreo fica o escritório dos Amarais, onde, através dos anos, receberamseus empregados e trataram dos negócios. Através de um pequeno com-partimento, têm-se acesso à longa escada que conduz ao pavimento su-perior, com duas salas de frente, dois dormitórios e quatro alcovas, pe-ças que se comunicam umas com as outras. A fachada reflete a simplici-dade do interior, cinco aberturas na parte superior e duas portas e trêsjanelas na parte inferior.

O forasteiro que chega à nossa vila há de por certo quedar-se surpre-so e boquiaberto diante duma maravilha arquitetônica que rivaliza com asmelhores construções que vimos no Rio Pardo, em Porto Alegre e até naCorte. Referimo-nos à casa assobradada que o Sr. Aguinaldo Silva, antigocriador deste município, mandou erguer na Praça da Matriz, num terrenode esquina com as dimensões de trinta e cinco braças de frente por umaQuadra completa de fundo. Essa magnífica residência deve constituir mo-tivo de lídimo orgulho para os santa-fezenses. Dotada de dois andares eduma pequena água-furtada, destacam-se em sua fachada branca os caixi-lhos azuis de suas janelas de guilhotina, dispostas numa fileira de sete, noandar superior, sendo a do centro, mais larga e mais alta que as outras estáguarnecida duma sacada de ferro com lindo arabesco; por baixo desta sa-cada, no andar térreo, fica a alta porta de madeira de lei, tendo de cadalado três janelas idênticas às de cima. Ao lado esquerdo, do sobrado, no ali-nhamento da fachada, vemos imponente portão de ferro forjado ladeadopor duas colunas revestidas de vistoso azulejo português nas cores branca,azul e amarela, e encimadas as ditas colunas por dois vasos de pedra de ca-prichoso lavor. O terreno, a que este portão dá acesso, está todo fechadopor um muro alto e espesso que por assim dizer aperta a casa como umatenaz. O efeito é assaz formoso, pois o “Sobrado” dá a impressão desses so-lares avoengos, relíquias de nossos antepassados lusitanos.

Atualmente o Sobrado pertence a família de Bolívar Cambará, ten-do abrigado em suas dezoito amplas peças toda a sua descendência. No

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andar superior ficam os dormitórios e no pavimento térreo, a sala prin-cipal, o escritório, a sala de jantar, a cozinha e a despensa.

Lendas da Província

São inúmeras as lendas e histórias que povoam nossa Província. Ca-sos de assombração, lutas de família, guerras, duelos e lendas. O velhoFandango, capataz da estância do Angico, propriedade da família Cam-bará, na sua tosca sabedoria era capaz de preservar e reproduzir muitasdestas histórias que remontam aos mais distantes tempos, nos mais lon-gínquos pagos.

A da princesa moura, que aparecia, por vezes, transformada em co-bra, toda enroscada. Da cintura para cima era gente, e da cintura parabaixo era víbora. “Yo soy la princesa mora encantada, aquel que há veni-do de otras tierras por sobre el mar que nosotros jamás hemos surcado...He venido, y Anhangá-pitã transfomóme en teiniaguá de cabeza ofus-cante que unos llaman — el carbunclo — y temem y desean, porque soyyo la rosa de los tesoros escondidos en los vichaderos del mundo”.

A das mulitas que ajudaram a Sagrada Família em pleno deserto oua história do encontro de Jesus com uma mulita de coração empedernido:

Jesus, transfigurado em rapazito pobre se pôs a chorar e a tilintarde frio junto à cova de uma mulita. Esta, ao presenciar a triste cena, se-guiu o seu caminho de cabeça baixa. Na volta para a toca, Jesus implo-rou ajuda, dizendo:

— Mulita, tenho frio!— Corra que te aquecerás!, respondeu cinicamente o ani-

malzinho.— Mas é que a noite vem próxima e a chuva não tardará...— Faça como eu, cave no solo um buraco que te sirva de

abrigo.

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— Habilidade não tenho e força não possuo para tanto.Por que não me dás tu, mulita, a metade de teu abrigo, comomanda a Sagrada Escritura? O Senhor Deus te cobriu com ummagnífico poncho e te deu fortes unhas para cavar.

— Disto tudo sou muito grato ao Senhor e, por este mesmomotivo, para honrar as graças concedidas, não vou rasgar meuponcho para dar a metade a um vagabundo como tu. Agora voudormir. Sumindo em sua toca.

Então disse Jesus:— Jamais te sairá do corpo o poncho que possuis, ainda

que morras de calor.

Poesia IV

O tatu mais a mulita,É lei de sua criaçãoSendo macho não pode ter irmã,Sendo fêmea não pode ter irmão.

Autor desconhecido

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CALENDÁRIO DE SANTA FÉ

1737 – Fundação do presídio do Rio Grande1750 – Tratado de limites1754 – 1756 – A guerra das Missões1756 – Combate a Caiboaté1762 – Primeira invasão inimiga ao território do Rio Grande1773 – Segunda invasão inimiga. A praça de Rio Pardo é salva1777 – Terceira invasão. Os rio-grandenses consumam a

expulsão do inimigo 1803 – Demarcação do povoado de Santa Fé 1807 – O Rio Grande é erigido em Capitania Geral1820 – Incorporação do território oriental ao Brasil1822 – Independência do Brasil1825 – Guerra com o Rio da Prata1833 – Chegada dos primeiros alemães em Santa Fé1834 – Elevação à categoria de Vila de Santa Fé1835 – Revolução de 18351836 – Proclamação da República Rio-Grandense1838 – Combate de Rio Pardo1839 – Proclamação da República Juliana1845 – A pacificação1848 – O Rio Grande paga novos tributos de sangue1865 – 1870 – Guerra do Paraguai1882 – Fundação do Clube Republicano Rio-Grandense1883 – Fundação do Clube Republicano de Santa Fé1884 – Elevação à categoria de cidade de Santa Fé1888 – Fim da escravidão no Brasil1889 – República1893 – 1895 – Guerra civil Rio-Grandense�

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O Clima

Em Santa Fé, costuma-se dizer que “sempre que acontece algumacoisa importante está ventando!” Os ventos resultam da deslocaçãomais ou menos rápida de certas partes do ar atmosférico. São ocasiona-dos por mudanças de temperatura ou pela condensação do vapor deágua na atmosfera. Em certas regiões o ar vizinho do solo se aquece maisque em outras, dilata-se bastante, torna-se mais leve e eleva-se para aspartes superiores da atmosfera; o ar dos arredores precipita-se para subs-tituí-lo, assim resultam correntes atmosféricas dotadas, as vezes, de gran-de força.

Eclipses

No ano de 1899 haverá quatro eclipses, segundo a Astronomia de Flam-marion. Dois do sol e dois da lua, os quais terão lugar nos seguintes dias:

11 de janeiro – parcial do sol, central na Ásia8 de junho – parcial do sol, central na Europa23 de junho – total da lua, central em Nova Guiné17 de dezembro – parcial da lua, central em Cabo Verde

Poesia V

Que, se amor não se perde em vida ausente,Menos se perderá por morte escura;Porque, enfim, a alma vive eternamente,E amor é afeito de alma, e sempre dura.

Luís Vaz de Camões

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MORADORES ILUSTRES DE SANTA FÉ

Cel. Ricardo Amaral, venerando cidadão, primeiro povoador destescampos, um bandeirante na verdadeira extensão do vocábulo, e quemorreu como um bravo, no lendário combate de Passo das Perdizes.Fundador da clã dos Amarais, foi senhor de dezenas de léguas de sesma-ria e muitos milhares de cabeças de gado, além de uma charqueada e devastas lavouras de trigo, milho e feijão. Todo este vasto império era co-mandado desde a sede da estância de Santa Fé. Sentou praça no exérci-to da Coroa e em 1756 tomou parte na batalha de Monte Caiboaté. Lu-tara ainda contra as forças espanholas comandadas por Pedro Ceballos,em 1763, e Vertiz y Salcedo, em 1773.

Francisco Amaral, verdadeiro fundador de Santa Fé e filho primogê-nito do Cel. Ricardo Amaral. Na mesma batalha do Passo das Perdizes,em que perdera o pai, recebera um pontaço de lança que lhe vazara oolho, assim, carregou para o resto da vida a marca que o distinguia e de-monstrava seu heroísmo e bravura. Gratidão e honra à sua memória.

Cel. Ricardo Amaral Neto, que tanto contribuiu para o engrandeci-mento deste município, de cuja Câmara foi o primeiro presidente. Em1836, baqueou como um bravo, de armas na mão, dentro de sua própriacasa, defendendo a legalidade.

Cel. Bento Amaral, chefe político deste município, deputado à As-sembléia Provincial, verdadeiro varão de Plutarco que perpetua no tem-po e na administração de seus coevos um nome honrado e uma tradiçãode virtudes cívicas e privadas. Foi o responsável por várias melhorias nacidade, inclusive pela construção de uma série de casas de alvenaria naRua dos Farrapos.

Sra. Luzia da Silva, neta e única descendente do comerciante e cria-dor, oriundo de Recife, Sr. Aguinaldo da Silva. Herdeira de grande for-tuna, espírito de elite, primorosamente cultivado nos melhores colégiosda cidade do Rio de Janeiro. Carinhosamente chamada de “Senhora doSobrado”, em decorrência da bela morada que veio a ocupar na cidade,tornou-se a mais notável figura da sociedade santa-fezense, quer pela ma-

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neira de trajar, quer por sua capacidade de recitar versos, quer por seus do-tes artísticos e musicais (era capaz de tocar cítara). Foi casada com o Sr. Bo-lívar Cambará.

Dr. Carl Winter, médico alemão, natural de Eberbach, formado pelaUniversidade de Heidelberg. Embora vivendo em Santa Fé desde 1851,nunca abandonou os hábitos europeus, principalmente no que diz respeitoao modo de vestir. Seu conhecimento na área da medicina e seu caráterdistintivo fizeram com que a sociedade local o aceitasse com grande rapi-dez. Homem de grande cultura, tocava violino e dominava o francês. Foi oresponsável pela fundação e organização da Banda de Música Santa Cecília.

Licurgo Cambará, filho único de Bolívar Cambará e de Luzia da Silva.O mais importante membro do Partido Republicano de Santa Fé, do qualfoi fundador juntamente com o bacharel bahiano Toríbio Rezende. Aboli-cionista ferrenho, quatro anos antes da assinatura da Lei Áurea, libertou osseus escravos dando exemplo à toda sociedade local. Durante três dias de ju-nho de 1895, em nome dos ideais republicanos, juntamente com sua famí-lia e agregados, esteve sitiado em seu Sobrado pelas forças federalistas.

AS RAÇAS HUMANAS

A Escritura Sagrada ensina que a humanidade inteira, tal como existee povoa atualmente a terra, descende de um casal único, de Adão e Eva. To-davia, apesar desta comunidade de origem, diferenças secundarias, comocor da pele, a forma do rosto, a natureza do cabelo, fizeram classificar os ho-mens em várias raças. As três principais são: a raça branca, a raça amarela ea preta.

A raça branca ou caucásica tem por caracteres a alvura da tez, o ovalda face, o comprimento e a finura do cabelo. Os brancos tem geralmentenariz aquilino, dentes verticais e barba muito densa. São inteligentes e suainfluência estende-se sobre todo o globo terrestre. Povoam especialmente aEuropa, a América, a Arábia e o norte da África.

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A raça amarela ou mongólica é caracterizada pela tez amarela, faceachatada e alargada ao nível das maçãs do rosto, cabelo preto e rijo, barbarara e olhos oblíquos. Habita particularmente a China e o Japão.

A raça preta ou africana caracteriza-se pelo nariz achatado, lábios es-pessos e salientes, cabelos crespos e dentes oblíquos para a frente. Essa raçapovoa sobretudo a África central, a Austrália e a Guiné.

Encontram-se ainda, na América do Norte, vestígios de outra raça quediminui cada dia, e talvez haja de desaparecer em breve. Os indivíduos quea compõem são designados sob o nome de Peles-Vermelhas.

Poesia VI

Que saudades que eu tenhoDaqueles tempos passados,Em que eu montava um tordilho,Com arreios prateados.

Tenho saudades dos campos,Saudades de meu rincão,Onde eu era conhecidoPor homem de opinião;Saudades do bom churrascoE do mate chimarão

Mas vocês inda não sabemQuanto me vale esta espada;Pode lá vir quem vier,Hei de dar-lhe pechada!Caramba! Se viesse o Lopes,Estava a guerra acabada.

Da “Saudade”, jornal que se publicava no acampamentodo Exército Brasileiro, no Paraguai, em 1867

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O PRESTIGIO DA ARTE

Em sua Segunda Edição, o Almanaque de Santa Fé quer resgatarmomentos importantes da historia cultural de nosso crescente municí-pio. Entre eles, destacamos, a Primeira Semana de Curiosidades e Poe-sia, ocorrida em 1882. O programa, bastante variado, foi organizadapelo cidadão italiano Próspero Catalin com a colaboração da sociedadelocal. Amante das artes e da poesia, Catalin abriu o evento palestrandosobre arquitetura. Tratou de demonstrar qual o caminho futuro da ciên-cia da construção. Descreveu alguns prédios de Porto Alegre que julga-va esplêndidos e contou, longamente, sua visita à Vicenza, no outro ladodo Atlântico, a “città del Palladio”. O segundo dia foi dedicado à músi-ca, e esteve a cargo da senhorita Leonídia Moreira, de Rio Pardo. O re-cital de piano contou com a colaboração de Próspero Catalin que, ao fi-nal da apresentação da solista, declamou vários versos da Divina Comé-dia. Quarta feira, ultimo dia de eventos, a cidade recebeu o poeta argen-tino José Hernández. O convite causou, de fato, muito constrangimen-to. A sociedade de Santa Fé só aceitou receber o castelhano quando Ca-talin explicou tratar-se de um Senador da República vizinha e que fala-ria sobre a vida do estanciero. Hernández apresentou-se como um pai aquem o filho deu o nome e, rapidamente, mencionou que tinha um ca-rinho muito grande pela Província, especialmente por Santana do Livra-mento, onde escrevera parte de sua obra. Ao longo da palestra lembrouepisódios de sua vida, que ficara órfão aos nove anos, que fora criadopor uma tia, que o campo fora o seu lar e que era apenas soldado e pe-riodista. Afirmou que, desde muito jovem, se dedicou ao comércio decompra e venda de gado, percorrendo as estâncias e os acampamentosmilitares que caracterizavam a linha divisória que separava as popula-ções civilizadas das tolderias dos selvagens, adquirindo desta maneira,um profundo conhecimento da vida do gaúcho. Lembrou das lutas comUrquizia, da guerra contra Solano López, da oposição a Sarmiento, dostempos de exílio. Falou até dos índios, argumentando que o gaúcho

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odiava os índios tanto quanto a oligarquia odiava o gaúcho. E que o gaú-cho só odiava os índios porque fora ensinado, pela oligarquia, a odiá-los.Terminou sua conferência declamando: “Y si canto de este modo / porencontrarlo oportuno / no es para mal de ninguno / sino para bien detodos”. Durante a semana , Santa Fé foi visitada por inúmeros forasteirosque, mais por curiosidade do que por convicção, acompanharam os acon-tecimentos. Entre os ilustres visitantes destacamos o Sr. Catão Bonifácio,proprietário da estância São Sebastião em Uruguaiana, acompanhado deseu filho (retornando de um período de estudos no Rio de Janeiro).

Livros

Ao Livro Verde, papelaria e fábrica de livros em branco, de todosos tamanhos e riscados em todo o gênero, informa aos cidadãos santa-fe-zenses que dispõe de grande surtimento de livros técnicos e literários,tais como: “Elementos de Geografia”, de Pedro Abreu, “Pontos de Histó-ria Antiga”, de Pereira Leitão, “Compêndio de Filosofia”, de Pellisier,“Aritmética para Meninos”, de Pereira Coruja, “Algebra”, de Luiz PedroDrago, “Elementos de Geometria”, de Ottoni, “Gramática Latina”, deGroeser, “Gramática Latina”, de Clintock, “Compêndio de Gramática daLíngua Nacional”, de Pereira Coruja, “Nova Floresta”, do Pe. ManoelBernardes, “Luziadas”, de Camões, “O Gaúcho”, de Senio, “O Rio Gran-de do Sul para as Escolas”, de J. Pinto Guimarães,” A Divina Pastora”, deJosé Antônio do Valle, “Minas de Prata”, de José de Alencar e “Auras doSul”, de Lobo da Costa.

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Poesia VII

Eu não tenho pai nem mãe,Nem nesta terra parentes.Sou filho das águas claras,Neto das águas correntes.

—Índio velho sem governoMinha lei é o coração.Quando me pisam no ponchoDescasco logo o facão,E se duvidam perguntemÀ moçada do rincão.

Autor desconhecido

* Doutor em Arquitetura, Coordenador do Curso de

Arquitetura e Urbanismo, UFSM.

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“ – Olha Zé Otávio (...) não esqueças que tudo quanto vocês têm agora aqui em matéria de confor-to, reputação, crédito, tradição só foi possível porque durante quarenta anos um homem chamadoHenrique Bertaso teve fé em alguma coisa e trabalhou duro para realizar seus sonhos.”

Breve Crônica duma Editora de Província

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Breve Crônica dumaEditora dE Província

E r i c o V e r i s s i m o

Dia desses, uma conversa entre o bibliófilo José Mindlin e o pro-fessor Luiz Eugênio Véscio suscitou no primeiro a vontade de encontraralguns originais entre o seu vasto acervo. Procurou aqui, procurou ali eterminou encontrando um conjunto de páginas datilografadas e cor-rigidas à mão pelo escritor Erico Verissimo.

Ao que tudo indica, um achado fruto do acaso. Afinal não era esteo texto que o bibliófilo procurava. Mas foi a sorte de todos nós, leitoresde Erico. Empenhado na publicação desse livro comemorativo aoscinqüenta anos de O tempo e o vento, o professor Luiz Eugênio nãotitubeou. "Precisamos publicar isto", ele disse. E logo acertou os deta-lhes com o bibliófilo, tratou de entrar em contato com o filho do autore cá estamos nós diante desse conjunto de páginas fac-similadas...

Uma pequena delícia para todos os que admiram – além dos textosdos grandes autores – a própria história desses textos, as marcas da suaconstrução, a sua gênese.

Vitor Biasoli

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BREVE CRÔNICA DUMA EDITORA DE PROVÍNCIA

I

Não podendo, por motivos óbvios, começar esta crônicacom a frase bíblica de S. João que tanto me fascina – No princí-pio era o verbo, e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus – eu melimitarei a escrever que no princípio era uma pequena casa deaspecto colonial com fachada de porta e vitrina, situada numdos pontos mais centrais da cidade de Porto Alegre. Identifica-vam-na letreiros pintados na fachada: Livraria do Globo – Livra-ria. Papelaria. Tipografia.

Se S. João não pôde datar exatamente o seu princípio deacordo com qualquer calendário eu posso dizer, modéstia à par-te, que minha crônica começa no ano de 1883 com essa casa denegócio de propriedade dum certo Sr. Laudelino P. Barcellos,cidadão de origem portuguesa.

E agora, dando aquele pulo a que comodamente recorremos romancistas – e passaram-se muitos anos – deixamos para trásumas quatro décadas e aqui estamos no mesmo lugar da Rua daPraia, diante dum edifício de três andares, de fachada um tan-to pretenciosa, com esculturas, relevos e alguns mármores. Éainda a Livraria do Globo, em cujas oficinas já existem máquinaslitográficas, e cujo salão principal, onde se vendem livros e arti-gos de papelaria, é considerado um dos maiores do Brasil. O ve-lho Laudelino morreu, e a razão social da firma passou a serBarcellos, Bertaso & Cia. Esse Bertaso, homem madurão come-çara a trabalhar na Livraria como varredor, aos doze anos, gra-ças à sua diligência e à sua inteligência, tornou-se gerente. An-tes do começo da primeira Guerra teve visão suficiente [para]importar da Europa, várias toneladas de papel, prevendo a ca-rência desse artigo que o conflito mundial ia causar no Brasil.Seu jogo deu certo e a Casa (que já começava a ser no espíritodo “velho Bertaso” uma entidade quase mística)

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ganhou um impulso fabuloso.

II

Deve ter sido lá por 1923 que comecei a prestar uma aten-ção especial à Livraria do Globo, através dos raros livros que elapublicava. Claro, eu os achava um tanto provincianos, quandoos comparava às edições européias ou mesmo às que se faziamno Rio de Janeiro e São Paulo, onde Monteiro Lobato já haviacomeçado a sua notável revolução editorial.

Em matéria de edições a Livraria do Globo deve tudo quan-to fez na década de 20 a Mansueto Bernardi, poeta e prosador,que exercia então na Casa as funções de orientador intelectual.Tinha ele o seu “reino” no famoso “primeiro andar”, onde seencontravam livros e revistas estrangeiros, em sua maioria im-portados da França, da Espanha e da Itália. O inglês era entãouma espécie de língua vagamente bárbara. Quanto ao alemão,na capital dum Estado de forte imigração teutônica, era natu-ral que houvesse livrarias especializadas na venda de livros nes-sa língua. Os intelectuais da cidade costumavam reunir-se, a cer-tas horas do dia, no “salão” de Mansueto Bernardi. Ocasional-mente ali aparecia um que outro literato de alheios climas, queera devidamente festejado.

Nascido em Treviso, Itália, Mansueto viera muito meninopara a nossa terra, e se naturalizara brasileiro. Falava um portu-guês sintaticamente correto, até com um certo sabor castiço,mas pronunciava as palavras à maneira nítida e quadrada dosgaúchos, e havia em sua voz uma certa musiquinha italiana, queele haveria de conservar até o dia de sua morte. Era uma figuraesguia, de rosto anguloso e lábios finos, desses que a gente en-contra freqüentemente em quadro de pinturas italianas. Ocor-re-me agora que, com um turbante na cabeça, Mansueto bempoderia ser um doge de Veneza retratado por Giovani Bellini.

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Era um homem inteligente, cordial e acolhedor e um deseus sonhos mais queridos era o de transformar a Globo numacasa editora de importância nacional e, se possível, internacional.Essa idéia, no entanto, não encontrava muita ressonância no es-pírito dos chefes supremos da firma, razão por que o poeta so-nhador tinha de trabalhar com rédea curta. Católico fervoroso,publicava livros contra o comunismo, ao tempo em que essa dou-trina política era conhecida pelo nome de “bolchevismo” e até“maximalismo”. (Moscovo sem Máscara, A Luz que Vem do Oriente)Por outro lado Bernardi havia já descoberto o biógrafo alemãoGuilherme Ludwig, cujo Napoleão a Globo traduzira e publicarano Brasil com um êxito muito significativo para a época. Graçasàs suas leituras italianas, Mansueto fizera traduzir para o portu-guês o GOG, de Giovanni Papini. Não permanecia, porém, indi-ferente à “prata da casa”. Editava os escritores já consagrados doRio Grande e, quando podia, dava a mão a um “novo”. A Livrariado Globo lançara já obras do ensaísta João Pinto da Silva, dospoetas Pedro Vergara, Zeferino Brasil e Vargas Netto, do historia-dor Othelo Rosa, e do ficcionista Dyonelio Machado. Os “novos”que freqüentavam o seu “primeiro andar” eram por ele estimula-dos e seriam mais tarde também editados não só durante o “rei-nado” de Mansueto como nos anos que se seguiriam. Eram elesAugusto Meyer, Moysés Vellinho, Athos Damasceno Ferreira, DeSouza Júnior, Theodomiro Tostes, Darcy Azambuja, Ernani For-nari, Telmo Vergara, Paulo Corrêa Lopes, Reynaldo Moura, Ma-noelito de Ornellas, Carlos Dante de Morais e Cyro Martins, paracitar apenas os primeiros nomes que me vêm à memória.

Com o triunfo da Revolução de Outubro de 1930 MansuetoBernardi trocou Porto Alegre pelo Rio de Janeiro e a Livraria doGlobo pela Casa da Moeda, cuja direção assumiu em 1931, a con-vite de Getúlio Vargas, que nos tempos de deputado e mesmo depresidente do Estado, costumava freqüentar o grupinho de inte-lectuais que se reuniam à porta da Livraria do Globo

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ao cair da tarde. (Foi duma sugestão do futuro Presidente da Re-pública que em 1929 nasceu a Revista do Globo.)

III

Entra em cena agora a personagem principal da históriaque estou contando. É Henrique Bertaso, o filho mais velho deJosé Bertaso, e que em 1931 tinha apenas vinte e quatro anos.Desde os 15 trabalhava no balcão da casa sem privilégios, comoqualquer empregado. Nos intervalos de folga, costumava ele lernovelas e romances às escondidas. Habituava-se a ver no livronão apenas papel impresso, mas um “indivíduo” com qualida-des e defeitos e com a mágica capacidade de comunicar-se. Ima-gino que muitas vezes Henrique tenha olhado para a chamadaSecção Editora da Casa com olhos críticos, achando-a um tantoantiquada, não só na apresentação gráfica dos livros e no méto-do de distribuição, como também na escolha dos autores.

Muitas coisas aconteceram naquele ano de 1931. Como jádisse, Mansueto alçou vôo para o Rio, onde foi imprimir dinhei-ro e cunhar moedas para a nação. Henrique Bertaso tomouconta da editora. E um boticário falido, desempregado, sem di-nheiro e com grandes sonhos literários (mas sonhos controla-dos, com os pés na terra, em suma, sonhos de serrano) chegoua Porto Alegre. O sujeito tinha 25 anos e chamava-se Erico Ve-rissimo e já havia batido em várias portas, pedindo emprego,mas sem resultado.

Um encontro fortuito com Mansueto Bernardi, à porta daLivraria, foi decisivo para seu destino. Depois duma conversacurta e sem eloqüência, ficou resolvido que o recém-chegadotomaria conta da Revista do Globo.

Entrei, por assim dizer, para a “família Globo” no dia 1° dejaneiro de 1931. Jamais vira em minha vida o interior duma ti-pografia. Não tinha idéia de como

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se fazia um clichê ou como se armava uma página. Mas Deus é grande.A Revista do Globo era provinciana, mal impressa, e sua ma-

téria insossa. Eu detestava a obrigação de publicar retratos denossos assinantes, a bela senhorita, o galante menino, fotos queeram “ecos do último carnaval em Cacimbinhas” e – pior ainda!– sonetos de autoria de coronéis reformados que acontecia se-rem bons clientes da Livraria do Globo. “Gente, meu caro, queprecisamos agradar...”

Henrique Bertaso me foi um dia apresentado. Estou certode que olhou para mim e pensou: “Literato. Possivelmente umvagabundo sem noção de responsabilidade. Um boêmio.” Eurefleti: “Eis um típico filhinho de papai rico. Um burguesote es-nobe.” O tempo provou que ambos estávamos enganados (ounão estávamos?)

IV

Eu observava, duma distância tímida e cautelosa, o traba-lho e as dificuldades de Henrique Bertaso nas suas novas fun-ções. Não tínhamos nenhuma intimidade, nem mesmo relaçõesnormalmente cordiais[.] No entanto eu compreendia o que eleestava tentando fazer, isto é, publicar livros populares, vendê-los, formar um fundo que lhe permitisse editar obras de escri-tores de maior importância literária. Começavam a aparecer osprimeiros volumes de sua Coleção Amarela composta de livros po-liciais. As estrelas desse sangrento firmamento do crime era Ed-gar Wallace, Van Dine, Oppenheimer, Rinehart, Sax Rohmer,Agatha Christie.

Passou-se um ano e um dia Henrique Bertaso me convidoupara ajudá-lo na secção Editora, dedicando-lhe uma parte demeu tempo na qualidade de assessor literário. Pagava-se poresse serviço mais 200$000 (duzentos mil réis) o que foi uma es-pécie de injeção de óleo canforado (coisa hoje tão obsoletacomo o mil réis) no meu orçamento doméstico.

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Só muito mais tarde é que vim a descobrir que esse pagamen-to extra não vinha dos cofres da firma, mas do bolso de Hen-rique, que tirava de seu próprio ordenado, pois não ousava pe-dir aos chefões mais dinheiro para a editora...

Em 1932, encabuladíssimo, ofereci um livro meu à Globo.Henrique aceitou-o, generoso mas sem entusiasmo. Eu era umdesconhecido e mesmo naquele tempo a impressão dum livronão era barata. Foi assim que apareceu Fantoches, coleção decontos, numa tiragem de 1.500 exemplares, dos quais se vende-ram uns quatrocentos e poucos. Os restantes exemplares fica-ram empilhados num armazém que foi providencialmente des-truído por um incêndio. Ora, como os livros estavam seguradosa editora se livrava do prejuízo e o autor ganhava a sua comissãode 10% sobre todos os exemplares vendidos, isto é, queimados.

Com o tempo a minha amizade por Henrique fora cres-cendo e o mesmo acontecera com a dele por mim. (Que dia-bo, no fundo não somos maus sujeitos, acreditem.)

Nossas mulheres fizeram-se amigas. Nossos filhos brinca-vam juntos. A editora atirava-se em aventuras que – recordadasmesmo hoje – ainda nos dão um certo frio no estômago.

Seria longo registrar num artigo de jornal, em exata or-dem cronológica, quarenta anos da vida duma casa editora. Oque me parece importante é ressaltar que a Editora Globo foiprincipalmente Henrique Bertaso, por mais constrangimentoque esta declaração lhe possa causar. Foi graças a sua dedica-ção[,] ao seu amor aos livros, à sua inteligência e à sua mansaaudácia – e manso é o adjetivo exato – que a Editora Globo(que ficou independente da mamã Livraria em 1956) fez His-tória no Brasil.

A idéia da criação duma coleção composta da melhor literatura

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produzida no mundo contemporâneo foi de Henrique Bertaso. Re-firo-me à Coleção Nobel. Não negarei que fui eu quem escolheu osautores que nela aparecem: Thomas Mann, André Gide, CharlesMorgan, G.K. Chesterton, Willa Cather, Normam Douglas, AldousHuxley, Romain Rolland, Roger Martin du Gard, Sinclair Lewis, Wil-lian Faulkner, Pearl Buck, Graham Greene, James Joyce, KatherineMansfield...

Foi Henrique Bertaso quem em 1934 (a TV comercial só come-çou em 1947, nos Estados Unidos) teve a idéia de publicar um livrode Arturo Castellani intitulado Televisão. Hoje em dia estão em pau-ta os problemas da ecologia. Pois bem, em 1937 a Globo lançava umlivro sobre o assunto, intitulado Os Aproveitadores da Natureza.

V

Hoje, já sessentões, de vez em quando Henrique Bertaso e eunos sentamos e recordamos o nosso passado. Evocamos autores e li-vros, pessoas que desfilaram pelos nossos escritórios, tipos que pare-ciam ter saído de romances de Dickens ou Balzac. Falamos em nos-sos erros e acertos. Recordo que em 1935 deixei escapar por entre osdedos simplesmente um dos maiores bestsellers de todos os tempos.Quando recebi o volume original para dar o meu parecer, opinei: “Émuito grande. Ninguém no Brasil vai se interessar por um romancesobre a Guerra de Secessão americana”. Desistimos então de com-prar os direitos de tradução. O livro era Gone With the Wind (E o VentoLevou). Henrique Bertaso recorda um abacaxi de própria seleção: abiografia de Trellawny, o espadachim, amigo do poeta Byron. Eupenso em Boa Noite, Suave Príncipe, biografia de John Barrymore querecomendei à editora e que, uma vez publicado no Brasil, bateu o“record” dos fracassos em matéria de vendas. “Mas foste tu quem‘descobriu’ Somerset Maugham... - consola-me Henrique. E Huxley,Hilton, Steinbeck...” E eu então replico com uma lista dos “achados”felizes de meu companheiro: O Livro de San Michele, de Axel Munthe;

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Karl May, o prolífico autor de romances de viagens e aventuras;Hendrik van Loon, o divulgador; e outros, muitos outros...

Recordamos também fatos. Uma vez, lá pelos idos e vividosde 1932 entrei no gabinete de Henrique e perguntei: “Quer ar-riscar a perder dinheiro mas ganhar prestígio para a Editora,publicando um grande romance?” Henrique coçou a coroa dacabeça, num gesto muito seu, e replicou: “Qual é o livro?” Apre-sentei-lhe um volume alentado: “Aqui está. É o PointCounterpoint, de Aldous Huxley, romance destinado às elites.”Depois de breve hesitação Henrique respondeu: “Está bem.Vamos pedir os direitos.”

De posse do contrato eu mesmo comecei a traduzir comamor o Point Counterpoint. O livro foi lançado no Brasil, a críti-ca começou a falar nele, principalmente (é curioso) a propósi-to dum livro que eu publicara em 1935 (Caminhos Cruzados) eem que todos viam, com razão, influência da técnica doContraponto.

Duma feita apareceu na Editora Globo com um livro de suaautoria debaixo do braço um gaúcho do tipo nórdico, elegantede porte, cabelos alourados, olhos azuis. Era fiscal do imposto deconsumo, voltava dum exílio político na Amazônia e oferecia àGlobo uma nova obra sua. Depois que ele saiu, eu disse a Henri-que: “Esse alemão tem tão boa pinta que podia dar-se o luxo deser burro. Mas não é. Já li o livro dele, Heróis da Decadência. Émuito bom. Podemos pegar o próximo de olhos fechados.”

O homem era Vianna Moog.

VI *

Aos poucos o prestígio da Editora Globo crescia em âmbi-to nacional.

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* Optamos por inserir aqui o número VI (que se repete na página 10 do original), em função daseqüência da crônica. (N. E.)

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A Casa fazia trabalho de pioneiro. Em matéria de tradu-ções mudava de certo modo a tendência do setor editorial bra-sileiro, até então todo voltado para a França, e levava-a para omundo anglo-saxônico e germânico. Ora, isso não significava oesquecimento da França. Em plena Segunda Guerra não só con-tinuávamos a publicar um romancista do calibre de Roger Mar-tin du Gard (Les Thibault, Jean Barois) como também, sabendoque esse autor, que recusava colaborar com os conquistadoresnazistas, se encontrava em situação econômica precária, na suacidade natal, a Editora Globo convidou-o a vir morar no Brasil,comprometendo-se a prover-lhe a subsistência independente-mente de direitos autorias ou qualquer outra compensação. Eraapenas uma homenagem a um grande escritor. Du Gard, numacarta comovida, recusou o convite.

Henrique Bertaso não teve medo de Virginia Wolf, pois acei-tou um dia a minha sugestão [de] mandar traduzir e publicar osseus admiráveis romances Mrs. Dalloway e Orlando.

Um dos meus mais antigos e queridos amigos, MauricioRosenblatt, homem extremamente inteligente e de bom gosto,trabalhava, inadaptado e quase infeliz, numa casa de discos eaparelhos eletro-domésticos. Costumávamos encontrar-nosnum café, à tardinha, todos os dias, e cada qual despejava sobreo outro as suas alegrias e as suas frustações. Vi em Rosenblatt ohomem ideal para trabalhar numa editora. Convidei-o a entrarpara a Família Globo. Depois de alguma hesitação, Mauricioaceitou a proposta e mudou-se com armas e bagagens para oterritório dos Bertasos. Graças a Rosenblatt foi-nos possívelapresentar de maneira decente a edição completa da ComédiaHumana de Balzac (17 volumes!). Mauricio convidou o huma-nista Paulo Ronai para encarregar-se da parte crítica, pois o hu-manista húngaro (hoje felizmente naturalizado brasileiro) éum notável especialista em Balzac.

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Henrique Bertaso não hesitou muito quando Rosenblatt,com o meu apoio, lhe sugerimos a publicação de À la Recherchedu Temps Perdu, de Marcel Proust, para o qual ele próprio have-ria de selecionar tradutores da importância dum Drummond deAndrade e dum Mario Quintana.

Rosenblatt foi mais tarde nomeado “nosso homem no Rio”,com a finalidade de melhorar a imagem da Globo entre algunsintelectuais brasileiros que nos acusavam de estar voltados ape-nas para os autores estrangeiros, esquecendo os nacionais. Mau-ricio fez um excelente trabalho nesse sentido durante o tempoem que permaneceu no Rio de Janeiro. Cedo, porém, desco-briu que os melhores escritores nacionais preferiam ser lança-dos por editoras cariocas e seria impossível – fútil! – querer“destronar” o nosso amigo José Olympio, o editor que entãolançava escritores brasileiros novos, muitos dos quais já se ha-viam tornado famosos em todo o Brasil.

A atividade de Henrique Bertaso na Casa era tentacular.Cuidava não só da parte administrativa da editora como tambémera chamado a resolver todos os outros problemas. A Globo pu-blicava também livros didáticos, sob a direção do Eng. AlvaroMagalhães, catedrático da Universidade do Rio Grande do Sul.Bertaso concentrava sua atenção em livros técnicos e dicionáriose sonhava com uma enciclopédia, que ia aos poucos organizan-do, sob a responsabilidade e orientação do Prof. Magalhães.

Durante vários anos a Globo manteve uma equipe numero-sa de tradutores e revisores, com a finalidade de melhorar demaneira considerável a qualidade das suas versões brasileiras delivros estrangeiros. Havia, antes de mais nada, o tradutor pro-priamente dito. Terminado o seu trabalho, passava este para oencarregado de verificar a fidelidade da tradução, num con-fronto, linha por linha, com a obra original.

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O terceiro estágio era o em que a tradução passava pelo“especialista” encarregado de verificar-lhe a qualidade estilísti-ca, caso em que o tradutor era naturalmente ouvido, tendo o di-reito de protestar quando não concordasse com qualquer suges-tão em matéria de redação – caso em que haveria arbitragem.Enquanto esse esquema caríssimo perdurou, foi impecável o ní-vel das traduções da Globo.

E, por falar em traduções, uma figura se me desenha damente: a de Leonel Vallandro, um “homem em surdina”, cala-dão, fechado, sério (mas com senso de humor) e que, tendo co-meçado como tradutor de livros policiais, passou a encarregar-se de versões de maior responsabilidade até transformar-se numdos melhores tradutores do Brasil, tanto do inglês, como do es-panhol, do italiano e do francês. Outra “proeza” de Vallandrofoi a de fazer, com perseverança e seriedade um Dicionário In-glês-Português que considero, sem nenhum favor, o melhor queexiste no mundo. (Não sou homem de exageros; repito: “nomundo”.)

De uns tempos a esta parte, a Globo edita menos obras pro-priamente literárias para se dedicar mais a livros técnicos comoa dicionários e manuais de espécie vária. A Enciclopédia Brasilei-ra Globo possui hoje 12 volumes e ricas ilustrações.

VII

Entrando num terreno estritamente pessoal, direi que háquase vinte anos minhas ligações com a Globo tem sido apenasas de editor e editado. Tempo houve – quantos anos! – em quetive um escritório da Editora, e foi nele que escrevi o primeirovolume de O Tempo e o Vento. E fora numa espécie de ponte so-bre uma oficina, quente como o inferno, e onde fumegavamumas vinte linotipos,

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que eu escrevera Olhai os Lírios do Campo, romance que, publi-cado em 1938[,] mudou a minha vida. Até então eu vivia do or-denado que me pagava a Editora e do produto de traduçõesque fazia para a mesma. (Traduzi uns trinta livros, de EdgarWallace e Sax Rohmer a Aldous Huxley e Katherine Mansfield.)

Creio que no momento em que escrevo esta crônica possoolhar com objetividade o que a Editora Globo representou e re-presenta na vida cultural brasileira. De certo modo ela realizou aproeza de não só sobreviver, mas também crescer e prosperar, adespeito de obstáculos de natureza geográfica, pois quem haviade imaginar que pudesse manter-se economicamente uma casaeditora localizada numa remota cidade de província, no extremosul do Brasil, quando a vida intelectual do país estava toda con-centrada no Rio de Janeiro e em São Paulo? Outra contribuiçãoimportante da Editora Globo foi a de estimular outras editoras aproporcionar ao público brasileiro, em tradução para a nossa lín-gua, livros produzidos no resto do mundo. Não só os destinadosa uma elite intelectual como também os que em geral são consu-midos por um numeroso público médio. Através da Coleção Pro-víncia a Globo procurou fazer conhecido o Rio Grande – gente,terra, História, lendas, costumes – no resto do Brasil.

Pessoalmente devo à Editora Globo, na pessoa de HenriqueBertaso, o ter proporcionado a publicação de meus primeiros li-vros, que [de] 1932 a 1938 tiveram vendas de más a medíocres.

Henrique Bertaso entregou o “facho” ao seu primogênioJosé Otávio Bertaso, que hoje dirige a Editora Globo. E outrodia quando me vi sentado a uma mesa, discutindo a publicaçãode meu último romance, o que eu vi na minha frente nãofoi um homem de quarenta e dois anos mas o menino dequatro que conheci no primeiro dia em que visitei Henrique

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Bertaso em sua casa. Como o tempo passa depressa! - pensei. Euestava já na medade da casa dos sessenta. Hora de ensarilhar ar-mas? Não. O gesto não me seduzia nem me seduz agora. Umhomem que envelhece, no dizer de um velho gaúcho “peleiaem retirada, e com pouca munição”. Mas peleia.

Olhei através da janela o perfil da cidade, com seus altosedifícios e já com a sua nuvem de poluição. Passei o olhar emtorno do belo gabinete de José Otávio, com móveis modernos,ar condicionado... e comparei-o com os cubículos em que oHenrique e eu trabalhávamos quando moços. Nossas janelas sempaisagem davam para os fundos dum restaurante mal-cheiroso.

– Olha, Zé Otavio – tive vontade de dizer – uma coisa eu es-pero de ti. É que não esqueças que tudo quanto vocês têm ago-ra aqui em matéria de conforto, reputação, crédito, tradição sófoi possível porque durante quarenta anos um homem chama-do Henrique Bertaso teve fé em alguma coisa e trabalhou duropara realizar seus sonhos.

Mas na verdade o que lhe disse foi simplesmente:– Aqui estão finalmente os originais de meu décimo quar-

to romance.

Erico Verissimo

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“Na verdade o que lhe disse foi simplesmente:– Aqui estão finalmente os originais de meu décimo quarto romance.”

Breve Crônica duma Editora de Província

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POSFÁCIO

J o s é M i n d l i n

O Tempo e o Vento: 50 Anos vai ser certamente um marco nafortuna crítica do Erico Verissimo, pois comemora, com exce-lente conteúdo, o surgimento e o sucesso de um dos grandes li-vros e autores de nossa literatura. De meu lado, fiquei conten-te por poder participar dessa homenagem graças ao feliz acasode ter mostrado aos editores a Breve Crônica duma Editora de Pro-víncia, que vivia há muitos anos em meus guardados, aonde nãome recordo como tinha vindo parar. É um documento saboro-so, que narra a história fascinante de como nasceu e cresceu aEditora Globo, e do papel que tiveram, para transformá-la, dapequena empresa provinciana em motivo de orgulho nacional,Mansueto Bernardi, Henrique Bertaso e... o próprio Erico (aconclusão é minha). Foi uma sorte, creio eu, além de ser umprazer para mim, que essa Crônica pudesse ter sido incluída à úl-tima hora neste livro. Leiam, e vão ver.

Revendo, a propósito desta homenagem, o que a bibliote-ca de casa tem de Erico, e conversando a respeito com Antonio

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Candido, nosso crítico maior, que também aliás admira muito oescritor, demo-nos conta de que havia outra homenagem a serprestada, além da que este livro se propôs – comemoraram-setambém neste fim de século os 65 anos da premiação de Músi-ca ao Longe, o que merece destaque pelo menos por dois moti-vos: o Grande Prêmio Machado de Assis, concedido em 1934pela Academia Brasileira de Letras ao jovem romancista que eranaquela época o grande escritor que depois veio a ser; e o fatode se poder constatar que Erico Verissimo conseguiu construirem apenas 15 anos, a contar da premiação, sua sólida e invejá-vel reputação literária. Nesse “curto período” gaúcho, Ericopartiu dos primeiros romances (bem bons, aliás) para a obraprima que é O Tempo e o Vento. Um detalhe curioso é a safra li-terária excepcional que o Brasil produziu em 1934: nada menosque quatro bons livros surgiram simultaneamente naquele ano,tanto assim que o prêmio teve de ser dividido entre Erico, Dio-nélio Machado, João Alphonsus e Marques Rebello. NossoErico não recebeu sozinho o prêmio mas, vamos e venhamos, acompanhia foi excelente.

Ele se queixa, na Breve Crônica, das dificuldades que tevede enfrentar de 1932 a 38, vendendo seus livros muito pouco.Mas, olhando para trás, não parece que ele pudesse propria-mente se queixar: o prêmio já não foi pouco importante, e,como ele mesmo diz, quando saiu em 38 Olhai os Lírios do Cam-po, de sucesso imediato, sua vida mudou. Afinal de contas, nãodemorou tanto. Daí por diante, desfrutou, ao longo de suavida, de um sucesso que poucos escritores brasileiros alcança-ram.

Isso me faz pensar no destino bem diferente da maioriados escritores, não só no Brasil, como no mundo inteiro. Osexemplos seriam inúmeros, mas escolhi, para esta comparação,Stendhal, por se tratar de um dos maiores nomes da literaturauniversal. Pois bem, sabemos todos que a obra de Stendhal foi

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em vida dele, quase um fracasso editorial, ao ponto de ele terdito que ela somente seria devidamente apreciada a partir de1880, ou seja, praticamente 50 anos depois da previsão. E queprovavelmente só seria reeditada por volta de 1910... Pergunto-me se essa visão de futuro revela confiança no valor e perma-nência de sua obra, ou se foi desabafo e consolo de um aparen-te fracasso. Possivelmente uma coisa e outra, mas o fato é queStendhal não alcançou em vida a grande fama do escritor quepelo jeito ambicionava. De todo modo, não foi o caso de EricoVerissimo, pois a partir de Olhai os Lírios do Campo, foi um escri-tor de sucesso, e de grande popularidade. Isto, aliás, curiosa-mente teve também um reflexo negativo, pois fez com que fos-se visto, por boa parte da crítica nacional, como “um escritormenor”! Entrou em cena o preconceito de que popularidadeno grande público não é compatível com alta qualidade, o que,como todo preconceito, não tem cabimento. Antonio Candido,aliás, já naquela época, combateu, como crítico literário, essaposição, e especificamente defendeu a obra de Erico. É claroque grande sucesso imediato resulta freqüentemente de efi-ciente propaganda, e não de qualidade intrínseca, mas costumaser, normalmente, de curta duração. Não foi o que aconteceucom Erico Verissimo, um dos poucos escritores brasileiros queconseguiram viver de seus livros. Isso devido ao mérito, não auma reputação artificial.

Meu contato pessoal com ele ficou muito aquém do queeu teria desejado, mas acredito, assim mesmo, que chegamos aser amigos. Ele próprio também diz isso na dedicatória de umde seus livros, e uma visita que lhe fiz no princípio dos anos 80fez surgir as sempre gratificantes afinidades eletivas. Tanto as-sim que, numa visita que fiz, uns dez anos mais tarde a Mafalda,sua viúva, ela me emocionou ao me indicar a poltrona em queme deveria sentar “porque foi nela que se sentou quando veiovisitar o Erico”!

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A carreira do “boticário falido, desempregado, sem di-nheiro e com grandes sonhos literários (mas sonhos controla-dos, com pés na terra, em suma, sonhos de serrano)”, de quenos fala na Breve Crônica, e que em 1931 “entrou, por assim di-zer, para a família Globo”, é fascinante em sua pelo menos apa-rente simplicidade e serenidade – não creio que tivesse a mes-ma ambição de fama de que Stendhal sofria.

É possível que se ambos tivessem vivido na mesmo época,e um soubesse do outro, Stendhal lhe invejasse o sucesso, masnão é impossível, por outro lado, que Erico invejasse as aventu-ras de Stendhal...

Desse capítulo nada sei, mas a leitura de Breve Crônica nãodá essa impressão.

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TítuloOrganizador

Produção Gráfica e Capa

Ilustrações (Capa e Miolo)

FotógrafaRevisão de Provas

Divulgação

Secretaria Editorial

FormatoMancha

Tipologia

eBook

Número de Páginas

O Tempo e o Vento: 50 anosRobson Pereira GonçalvesRenato Valderramas

João Luiz Roth

Lúcia MindlinVitor BiasoliPedro Brum SantosGlória Maria Palma

Mário Mazzilli

Ester Parreira de Miranda

16 x 23 cm25 x 42 paicasNew Baskerville (texto)Trajan (Títulos)

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S o b r e o l i v r o