o teatro e seu espaco - peter brook

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  • 8/9/2019 O Teatro e Seu Espaco - Peter Brook

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    Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O Teatro e Seu espao(Peter Brook)

    Sumrio

    Peter Brook e Seu Teatro 2O Teatro Morto - 3

    O Teatro Sagrado - 23O Teatro Rstico - 37

    O Teatro Imediato 57

    Apresentao

    *Este livro baseado em quatro palestras pronunciadas por Peter Brook com o ttulo Oespao vazio: O teatro hoje. As palestras foram realizadas nas universidades de Hull,Keele, Manchester e Sheffield.

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    Peter Brook e Seu Teatro

    Peter Brook um diretor e um homem de idias Seu The Empity Space* umlivro voltado para o futuro. Seu raciocnio dialtico, entretanto, no parte de algo

    nascido de leituras, mas sim da experincia, do dia-a-dia da oficina-teatro. Sualinguagem sobre um teatro que deve ser feito, teatro este nascido e testado sobre o

    palco j vivido. Esse avanar retornando o tratamento que faz a dialtica de Brookganhar um dinamismo extremamente vivo: teatro feito no vento, todos os dias sedestri, todos os dias se cria, no h frmulas, no h preconceitos, teatro brincadeira

    essas so suas idias bsicas e elasticamente desdobrveis.Brook aceita a Crise. Mas identifica a Crise atravs daquilo que ele chama de

    mortal. Assim, logo de sada, estamos diante de um teatro mortal e de um teatro vivo.Equacionada a Crise, seria um erro achar que o autor cairia num esquematismo assimto simplista: o mortal se insinua no vivo; o vivo contm sempre matria inerte e,novamente, estamos diante de um real relacionamento dialtico. Brook define o mortal

    como o mau teatro, somente e de maneira exemplar: teatro morto aquele que rendeculto a Chatice, conclui com a fora das grandes descobertas, no mesmo nvel daquelaque permitiu a Gramsci encontrar-se com oHumanismo campons.

    Se The Empity Space divide-se em duas grandes partes, compostas pela anlise profunda de quatro tipos de teatro: o Mortal, o Sagrado, o Rstico e o Imediato. Aprimeira parte pars destruens expe a nu a matria inerte. E a parte do equivoco, dapretenso, da descrena, da viso mecnica do acontecimento teatral. Aqui, Brook nosfala das vrias convergncias, dos vrios espaos em que se esconde o Morto e a vezdo crtico, do autor, do diretor e do grande captulo da platia. J o Sagrado o teatro doinvisvel tornado visvel, conforme o define estamos diante de uma das maisinteressantes aberturas que um raciocnio dialtico possa ter dado: para Brook, oindizvel algo que existe espera de se estudado e compreendido. O autor cr na suafora, quer por essa fora ao alcance das mos; mais ainda, conta com ela, confia nela

    para uma ressacralizao do teatro ocidental. O Rstico encontra-se com Shakespearenos comentrios do autor e no teatro desaburguesado que encontra a primeira de suasgrandes sadas para a Crise. Exposta a natureza complexa da realizao teatral, Brook se

    permite chegar ao imediato; isto , ao depoimento pessoal de toda uma soma deexperincias acumuladas.

    Este manual presta-se qualquer escola de teatro e no se esgota nelas. PeterBrook um diretor de teatro, um criador de idias, mas poderia ser um criador em

    qualquer atividade que procurasse a sntese. Sua eficcia chama-se inteligncia- suainteligncia permite-lhe ser um pensador sem padro, um intelectual de nossa poca. No toa que pde chegar concluso-frase: A play is a play, to verdadeira, toinquietante.

    Oscar Araripe

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    O Teatro Morto

    Posso escolher qualquer espao vazio e consider-lo um palco nu. Um homematravessa este espao enquanto outro observa.

    Isto suficiente para criar uma ao cnica. Mas quando falamos de teatro no bem isso que queremos dizer. Em uma imagem catica contida em uma s palavra,comodamente se sobrepe, na confuso, cortinas vermelhas, luzes, versos brancos,risadas, obscuridade. Falamos do cinema matando o teatro, e nesta frase nos referimosao teatro tal como era na poca em que o cinema nasceu: um teatro de bilheteria, salesde espera, strapontins, ribalta, mudanas de cenrios, intervalos, msica, como se oteatro fosse, por definio, apenas isso e pouca coisa mais.

    Tentarei dar aqui quatro interpretaes diversas da palavra teatro distinguindoquatro diferentes significados: um teatro morto, um Teatro Sagrado, um Teatro Rstico(1) e um Teatro Imediato. Algumas vezes os quatro realmente existem, um ao lado dooutro, no West End de Londres ou Nova Iorque, perto de Times Square. Algumas vezes

    esto bastante separados: o Sagrado em Varsvia e o Popular em Praga. Outras vezesso metafricos: dois deles juntos num s espetculo, num mesmo ato. s vezes osquatro esto juntos num s momento o Sagrado, o Popular, o Imediato e o morto,entrelaados.

    O Teatro Morto pode ser reconhecido primeira vista, pois significa mau teatro. este tipo de teatro a que assistimos com mais frequncia, e como est diretamenteligado ao to desprezado e atacado teatro comercial, pode parecer perda de tempocritic-lo. Mas somente ao percebermos que esta morte enganadora e que pode surgirem qualquer lugar, que teremos conscincia da dimenso do problema.

    A situao do teatro Morto bastante bvia. No mundo inteiro o pblico deteatro esta definhando. Existem movimentos novos ocasionais, bons escritores novos eassim por diante, entretanto, como um toso, o teatro no s fracassa em elevar ouinstruir,mas raramente distrai. O teatro tem sido frequentemente chamado de prostituta,no sentido de que se trata de uma arte impura. Mas hoje isso verdade em outrosentido: as prostitutas tomam o dinheiro e depois do o prazer. A crise da Broadway, ade Paris, a crise de West End, so a mesma; no precisamos das agncias de venda deingressos para nos informarem de que o teatro se tornou um negcio morto e se o

    pblico passasse a exigir um verdadeiro divertimento, a maioria de ns no saberia poronde comear. Um verdadeiro teatro de divertimento no existe, e no apenas acomdia trivial e o musical ruim que no conseguem reembolsar aquilo que pagamos. Oteatro Morto penetra na grande pera e na tragdia, nas peas de Molire e nas peas de

    Brecht. E no existe melhor lugar para o teatro Morto se instalar com tanta facilidade,segurana, conforto, do que nas peas de Willian Shakespeare. Assistimos a suas peasinterpretadas por bons atores, na maneira que parece ser a mais correta a pea pareceviva, colorida, musicada, e todos ostentam belos figurinos, exatamente como seimagina que deve ser o melhor dos teatros clssicos. Mas, secretamente, achamos oespetculo extremamente enfadonho. Ento, ou culpamos Shakespeare ou o teatroclssico ou culpamos a ns mesmos. Para piorar a situao, existe sempre umespectador morto, que por motivos especiais gosta da falta de intensidade e at da faltade divertimento. assim por exemplo o conhecedor, que emerge de um espetculorotineiro dos clssicos com um largo sorriso, porque nada o impediu de confirmar suasteorias tolas enquanto recitava para si prprio seus trechos favoritos. No fundo, o que

    ele quer sinceramente um teatro que seja mais nobre que a vida, mas confunde umaespcie de satisfao intelectual com a experincia verdadeira que realmente deseja.

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    Infelizmente, usa o peso de sua autoridade para prorrogar a existncia do tedioso TeatroMorto.

    Qualquer pessoa que assistir aos grandes sucessos de cada ano, observar umfenmeno curioso. Seria de esperar que o grande xito fosse mais vivo, rpido e

    brilhante do que fracasso mas nem sempre isso que acontece. Quase toda temporada,na maior parte das cidades que possuem intenso movimento teatral, apresenta umgrande sucesso que desafia essas regras; uma pea que funciona no apesar, mas

    justamente por causa do tdio. Afinal, estamos acostumados a associar a idia de culturacom um certo sentido de obrigao, aos costumes de uma poca, a longos discursos, emsuma, chatice: portanto a exata medida do tdio a exata garantia de umacontecimento de valor. Naturalmente a dosagem to sutil que impossvelestabelecer a frmula exata se for demais o pblico se desinteressa, se for de menos o

    pblico talvez ache o espetculo de uma intensidade desagradvel. Entretanto, autoresmedocres parecem encontrar o caminho certo para a dose exata e o Teatro Morto

    perpetuado com xitos maantes, universalmente elogiado. O pblico procura

    avidamente no teatro algo que possa considerar melhor que a vida. Por isso esta sujeitoa confundir cultura ou os adornos da cultura com uma coisa que no conhece, mas queintuitivamente sabe que poderia existir e assim, tragicamente transformando uma pearuim num sucesso, o pblico esta apenas enganando a si prprio. Quando falamos deMorto, preciso acentuar que a diferena entre vida e morte, to clara no homem, umtanto obscura em outros campos. Um mdico conhece imediatamente a diferena entreresto de vida e a intil carcaa que a vida j abandonou. Mas ns temos prtica emobservar como uma idia ou atitude ou uma forma podem passar da condio de vida

    para moribunda. difcil definir, mas uma criana pode sentir a diferena.Vou dar um exemplo. Na Frana existem duas maneiras mortas de fazer uma

    tragdia clssica. Uma tradicional e envolve a utilizao de uma voz especial, umporte especial, um olhar nobre, um texto dito musicalmente. A outra no passa de umaverso pela metade da mesma coisa. Gestos imperiais e valores da realeza estorapidamente desaparecendo da vida cotidiana; assim cada nova gerao encontra essemaneirismo cada vez mais vazio, mais sem sentido. Isso leva o jovem ator a uma buscafuriosa e impaciente daquilo que ele chama de verdade. Ele quer representar seu papelcom mais realismo, fazer com que tudo parea natural, verdadeiro; mas percebe que aformalidade do texto to rgida que resiste a esse tipo de tratamento. forado aadotar uma conciliao incomoda, que no nem estimulante e viva como a linguagemhabitual, nem histrinicamente positiva, como aquilo que chamamos de canastrice.Assim, seu trabalho fraco e, como o do canastro forte, ficamos lembrando dele com

    uma certa nostalgia.Inevitavelmente tem sempre algum que pede que a tragdia seja representadamais uma vez da forma como foi escrita. Isso justo, mas infelizmente tudo que o textonos diz o que esta escrito no papel e no como a pea foi originalmente trazida vida.

    No h documentao, no h fitas gravadas h somente estudiosos, mas nenhumdeles, claro, tem conhecimentos de primeira mo. As verdadeiras interpretaesantigas se foram todas s sobreviveram algumas imitaes, na forma de atorestradicionais, que continuam a representar de maneira tradicional. Estes tiram suainspirao no de fontes reais, mas imaginrias, como a lembrana de um som que umvelho ator empregou certa vez, som que, por sua vez, j era lembrana de um estilo deum predecessor.

    Vi, certa vez, num ensaio da Comdia Franaise, um ator muito jovem diante deum ator muito velho. O jovem falava e mimava o papel do velho, como se fosse um

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    reflexo num espelho. Isso no deve ser confundido com a grande tradio, digamos dosatores N, passando cultura oralmente de pai para filho. Nesse ltimo caso o sentidoque comunicado e o sentido nunca pertence ao passado. Pode ser corrigido na

    prpria experincia presente de cada homem. Mas imitar o aspecto exterior da

    representao somente perpetua o maneirismo difcil de ser relacionado a qualquercoisa.

    Novamente a respeito de Shakespeare ou vimos ou lemos o mesmo conselho represente o que est escrito. Mas o que que est escrito? Alguns sinais no papel. As

    palavras de Shakespeare so documentao das palavras que ele queria que fossemfaladas, palavras destinadas a sair, sob forma de sons, dos lbios de gente viva, com umtanto de entonao de pausa, de ritmo e gesto que deviam fazer parte integrante designificado verbal. Uma palavra no comea sendo uma palavra o produto finaliniciado com um impulso, estimulado por atitude e comportamento, por sua vez ditados

    pela necessidade de expresso. Este processo acontece dentro do dramaturgo. repetidodentro do ator. Ambos talvez estejam apenas conscientes das palavras. Ma tanto para

    autor, como depois para ator, a palavra a pequena poro visvel de um conjuntogigante de invisvel. Alguns escritores tentam ressaltar suas intenes com rubricas eexplicaes. Entretanto no podemos deixar de nos surpreender com o fato de que osmelhores dramaturgos no se explicam muito. Reconhecem que indicaes demaissero provavelmente inteis. Reconhecem que a nica maneira de encontrar overdadeiro caminho para dizer a palavra atravs de um processo criativo original; fatoque no se pode nem ignorar nem simplificar. Infelizmente no momento em que umamante fala, ou um rei murmura, ns nos precipitamos para colocar um rtulo: o amante romntico, o rei nobre. E antes de nos darmos conta, estamos falando de amorromntico e nobreza real, como se fossem objetos que pudssemos segurar nas moscom a pretenso que os atores observem e assumam. Mas esquecemos que no se tratade substncia fsica, esquecemos que no existem. Se as procuramos, o melhor que

    podemos fazer um trabalho aproximativo, reconstrues a partir de livros e pinturas.Se pedimos a um ator que represente um estilo romntico ele tentar heroicamente,

    pensando que sabe o que queremos dizer. Mas em que, efetivamente, pode ele sebasear? Intuio, imaginao e num livro de notas de memrias teatrais. Tudo isso lhedar um vago romantismo, que ele ir misturar com uma disfarada imitao de algumator mais velho que admira. Se buscar em suas prprias experincias, o resultado talvezno seja de acordo com o texto. Se s representar o que pensa ser o texto, far umaimitao convencional. De um modo ou de outro, o resultado ser semprecomprometido e quase sempre esse compromisso pouco convincente. E vo pretender

    que as palavras que aplicamos s peas clssicas, como musical, potica, maior que avida, nobre, herica, romntica, tenham qualquer sentido absoluto. So reflexos daatitude crtica de uma poca especfica, e tentar montar uma pea de acordo com estasregras e nos dias de hoje o caminho mais certo na direo do Teatro Morto: um TeatroMorto com tal respeitabilidade pode at passar como verdade viva.

    Fazendo certa vez uma conferncia sobre este tema, pude test-lo na prtica. Porsorte havia uma senhora na platia que nunca havia lido nem visto o rei Lear. Dei-lhe a

    primeira fala de Goneril e pedi-lhe que a dissesse da melhor maneira possvel, usandoqualquer valor que encontrasse na fala. Ela leu com muita simplicidade e o textoemergiu com muita eloqncia e graa. Ento expliquei que era a fala da mulher m, esugeri que ela lesse cada palavra com hipocrisia. Ela tentou, a platia viu que luta,

    difcil e sem naturalidade, se tratava com a msica simples das palavras, enquanto asenhora procurava representar com uma inteno:

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    Senhor, eu vos amor mais do que possam as palavras exprimir;Com mais amor que viso, o espao e a liberdade;

    Alm do que pode ser avaliado, raro ou valioso;No menos que a vida, com graa, sade, beleza, honra;

    Mais do quanto o filho haja jamais amado ou o pai encontrado o amor;Um amor que torna mesquinho o alento e incapaz a fala;Muito alm de tudo isso eu vos amo. (2)

    Qualquer pessoa pode tentar por si prpria. s experimentar. As palavras sode uma dama de classe e linhagem, acostumada a se expressar em pblico, uma pessoadotada de naturalidade e aplomb social. Se se procura traos que possam antever sua

    personalidade, no encontraremos mais do que uma fachada e, a fachada bem se v, deelegncia e graa. Entretanto, se pensamos nos espetculos em que Goneril fala essas

    primeiras linhas com vilania macabra e olhamos a fala outra vez, ficamos perdidosprocurando o que pode sugerir isso, alm de preconceitos sobre as posies morais de

    Shakespeare. De fato, se Goneril em sua primeira entrada em cena no representa ummonstro, mas apenas o que as palavras sugerem, ento todo o equilbrio da pea sealtera e nas cenas seguintes, a sua vilania e o martrio de Lear no so nem to crus,nem to simplificados como poderia parecer. Naturalmente, no final da pea vemos queas aes de Goneril fazem dela o que chamamos um monstro

    mas um monstro real, ao mesmo tempo complexo e compulsivo. Num teatro vivo, comearamos o ensaio dirio testando as descobertas do dia

    anterior, prontos para acreditar que a verdadeira pea nos escapou mais uma vez. Mas oteatro morto trata os clssicos supondo que, em algum lugar algum j descobriu edefiniu como o drama deve ser representado. Este o problema permanente que nslivremente chamamos de estilo. Todo trabalho tem seu prprio estilo. No momento emque tentamos especificar este estilo estamos perdidos. Lembro-me vivamente quando,

    pouco depois da temporada em Londres da pera de Pequim, veio outra pera chinesarival, vinda de Formosa. A companhia de Pequim ainda estava em contato com suasfontes e cada noite recriava seus temas antigos; a companhia de Formosa, trabalhandocom os mesmos temas, estava imitando a lembrana que possua deles, passando porcima de alguns detalhes, exagerando os trechos espetaculares, esquecendo o sentido nada era recriado. Mesmo este estranho estilo extico, a diferena entre vida e morteestava ntida e clara.

    A verdadeira pera de Pequim foi exemplo de uma arte teatral onde as formasexteriores no mudam de gerao para gerao, e h poucos anos atrs parecia estar

    congelada de forma to perfeita que continuaria assim para sempre. Hoje at mesmoessa soberba relquia acabou. Sua fora e sua qualidade possibilitaram-lhe asobrevivncia bem alm de seu tempo, como um monumento. Mas veio o dia em que alacuna entre ela e a vida da sociedade sua volta se tornou grande demais. A GuardaVermelha reflete uma outra China. So poucas as idias e atitudes da tradicional perade Pequim que se relacionam com a nova estrutura de pensamento no qual vive hoje o

    povo chins. Hoje, na pera de Pequim, os imperadores e princesas foram substitudospor proprietrios de terras e soldados e a mesma incrvel habilidade acrobtica usadapara falar de temas visceralmente diferentes.

    Para um ocidental isso parece uma perda terrvel e nos fcil chorar lgrimas deintelectual bem comportado. Naturalmente trgico que este milagroso patrimnio

    tenha sido destrudo. Mas ao mesmo tempo eu sinto que a atitude implacvel doschineses para com um de seus tesouros mais valiosos atinge o mago do teatro vivo. O

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    teatro sempre uma arte autodestrutiva, sempre escrito no vento. Um teatro profissionalrene pessoas diferentes todas as noites e fala com elas atravs da linguagem docomportamento. Um espetculo fica pronto e normalmente ele representado e deveser repetido to bem quanto o melhor nvel j alcanado. Mas desde o dia em que fica

    pronto, alguma coisa invisvel comea a morrer.No teatro de Arte de Morcou, em Tel Aviv, no Habimah, produes tm durado

    quarenta anos ou at mais. Eu assisti a uma fiel remontagem da Princesa Turandot,espetculo montado na dcada de 1920 por Vakhtangov. J assisti ao trabalho do

    prprio Stanislavski, perfeitamente conversado. Mas nenhum destes espetculos tinhamais interesse do que o de um antiqurio, nenhum possua a vitalidade da invenonova. Em Straford, onde nos preocupamos em no representar nosso repertrio a pontode exauri-lo como bilheteria, ns discutimos isso de forma bastante emprica omximo que uma montagem pode viver, concordamos, so cinco anos. No so apenasos penteados, os figurinos e a maquiagem que parecem ultrapassados. Todos osdiferentes elementos de montagem os compostamentos abreviados que passam a

    representar certas emoes, os gestos e tons de voz oscilam permanentemente numainvisvel bolsa de valores. A vida se agita, influncias atuam sobre ator e pblico; sobreoutras peas, outras artes, o cinema, a televiso, acontecimentos cotidianos, tudo seunifica num constante reescrever da histria, retificando a verdade cotidiana. Nas lojasde moda, algum bate numa mesa e diz: as botas esto decididamente na moda. Este um fato existencial. Um teatro vivo, que pensa poder se colocar acima de algo to trivialcomo a moda, vai degenerar. No teatro, toda forma, uma vez nascida, mortal; todaforma tem que se reconhecida e sua nova concepo trar as marcas de todas asinfluncias que a cercam. Neste sentido o teatro relatividade.

    Entretanto, um grande teatro no uma casa de modas; elementos perptuosretornam a certos eventos fundamentais e sustentam toda atividade dramtica. Aarmadilha mortal separar as verdades eternas das variaes superficiais; uma formasutil de exibicionismo, e fatal. Por exemplo, aceita-se que cenrio, figurinos, msicaso um desafio para diretores e cengrafos: precisam ser renovados. Quando se trata deatitudes e comportamentos, temos bem menos clareza, e tendemos a acreditar que esteselementos, se fiis ao texto, podem continuar a ser expressos da mesma maneira, ouquase.

    Intimamente ligado a isso est o conflito entre diretores de teatro e msicos emprodues de peras, quando formas totalmente diferentes, drama e msica, so tratadascomo se fossem uma nica. Um msico esta lidando com uma textura que o mais

    perto que o homem pode chegar de uma expresso do invisvel. Sua partitura mostra

    essa invisibilidade e o som produzido por instrumentos que praticamente nadamudaram. A personalidade do msico no importa; um clarinetista magro podefacilmente fazer um som mais gordo do que um clarinetista gordo. O veculo da msica,em suma, est separado da msica. Por isso a msica vai e vem, sempre da mesmamaneira, livre da necessidade de ser revisada e renovada.

    Mas o veculo do drama carne e osso, e aqui leis completamente diferentesesto agindo. O veculo e a mensagem no podem ser separados. Somente um ator nu

    pode comear a assemelhar-se a um instrumento puro como um violino, e somente seele possui um fsico completamente clssico, sem barriga, sem pernas arqueadas. Umdanarino est s vezes prximo desta condio, e pode reproduzir gestos formais semalteraes feitas por sua prpria personalidade ou pelos movimentos exteriores da vida.

    Mas no momento em que o ator se veste e fala com sua prpria lngua, est entrando noterritrio varivel de manifestao e existncia que partilha com o espectador. Como a

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    experincia do msico to diferente ele participa com o espectador. O msico,exatamente porque sua experincia completamente diversa, encontra dificuldade emcompreender por que aqueles trechos opersticos tradicionais que faziam rir Verdi eobrigavam Puccini a dar grandes palmadas nos joelhos, hoje no so mais nem

    divertidos, nem iluminantes. A grande pera, naturalmente, o Teatro Morto levado aoabsurdo. pera um pesadelo de disputas imensas sobre mnimos detalhes; de anedotassurrealistas que giram em torno da mesma afirmao: nada precisa mudar. Tudo empera tem que mudar, mas em pera a mudana impedida.

    Novamente precisamos acautelar-nos contra a indignao, pois se tentarmossimplificar o problema supondo que a tradio seja a barreira fundamental entre ns eum teatro vivo, mais uma vez estaremos evitando as causas verdadeiras. H umelemento morto em toda parte; na formao cultural, em nossos valores artsticosherdados, na estrutura econmica, na vida do ator, na funo do crtico. Seexaminarmos isso, veremos que, enganosamente, o oposto tambm parece verdadeiro.Pois, contidos no Teatro Morto, se encontram frequentemente lampejos que podem ser

    vassaladores, abortivos ou at momentaneamente satisfatrios.Em Nova York, por exemplo, o elemento mais morto certamente o econmico.

    Isto no quer dizer que todo trabalho seja ruim; mas num teatro onde uma pea, porvrias razes econmicas, no pode ser ensaiada mais do que trs semanas, estdeturpada de incio. Tempo no o princpio criador nem o destruidor: no impossvelconseguir resultados surpreendentes em trs semanas. s vezes o que no teatrochamamos livremente de alquimia , ou sorte, traz um surpreendente jato de energia. Eento inveno segue inveno numa imediata reao em cadeia. Mas isto raro: o bomsenso mostra que , se o sistema rigidamente impede que, na maioria dos casos, mais doque trs semanas de ensaio, o resultado sacrificado. Nenhuma experincia realizadoe nenhum risco artstico possvel. O diretor tem que despachar a mercadoria ou serdespedido, e o ator tambm. Naturalmente o tempo pode tambm ser muito malutilizado. possvel passar meses e meses discutindo, preocupando-se, improvisando,sem que depois isso aparea no espetculo. Vi na Unio Sovitica produes deShakespeare to convencionais como concepo que faziam pensar que nem mesmodois anos de trabalho inteiros de discusso e estudo dariam melhores resultados que osalcanados, sem maiores estudos, em trs semanas por companhias sem recursos.Conheci um ator que ensaiou Hamleth durante anos e nunca chegou a represent-lo

    porque o diretor morreu antes de encenar a pea. Por outro lado, produes de peasrussas, ensaiadas no mtodo stanialavskiano durante anos, ainda atingem um nvel derepresentao excepcional. O Berliner Ensemble conseguiu criar um repertrio de tima

    qualidade que, impreterivelmente, cada vez que acaba de ser representado, obtm ocompletamente exaurido - e cada um deles lota o teatro inteiramente todas as noites.Em simples termos capitalistas, isto melhor negcio do que o teatro comercial, ondeespetculos mal feitos e remendados raramente obtm sucesso. Na Broadway ou emLondres so incontveis, cada temporada, as montagens carssimas que, depois de umaou duas semanas, caem miseravelmente, contra uma ou outra montagem de sucesso quese insinua no se sabe muito bem como. Mesmo assim, a percentagem de desastres nosacudiu o sistema nem a crena de que, de alguma maneira, no fim tudo se resolve smil maravilhas. Na Broadway os preos de ingressos continuam subindo e,

    paradoxalmente, enquanto cada temporada se torna mais desastrosa, o grande sucessoda temporada encaixa mais dlares. Enquanto cada vez menos pessoas ocupam as

    platias, somas cada vez maiores entram nas bilheterias. At que chegue o dia em queum ltimo milionrio estar pagando uma fortuna para ver um espetculo especial s

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    para ele. assim que o mau negcio para uns constitui bom negcio para outros. Todosse lamentam, e mesmo assim muitos querem que o sistema perdure.

    As consequncias artsticas so graves. A Broadway no uma selva, e sim umamquina dentro da qual muitas peas se encaixam confortavelmente. Entretanto, cada

    uma destas peas foi brutalizada, foi deformada para um nico teatro do mundo ondetodo artista com isso me refiro a cengrafos, compositores, eletricistas e tambmatores necessita de um agente para a sua proteo pessoal. Parece melodramtico, masem certo sentido todos esto em contnuo perigo; seu emprego, sua reputao, seu meiode vida oscilam diariamente. Em teoria, esta tenso devia levar a uma atmosfera deterror, e, se fosse esse o caso, ver-se-ia com clareza o seu poder destruidor. Na prtica,entretanto, essa tenso subjacente conduz diretamente clebre atmosfera da Broadway,muito emocional, palpitante, de um aparente calor humano e boa disposio.

    No primeiro dia de ensaio da House of Flowers, seu compositor Harold Arlenchegou usando a escovinha azul na lapela, com champanha e presentes para todos ns.Enquanto abraava e beijava a torto e a direito o elenco, Truman Capote, que havia

    escrito o libreto, me sussurrou maldosamente: Hoje tudo so flores. Os advogadosviro amanh. Era verdade. Pearl Bailey apresentou-me uma conta de 50.000 dlaresantes que o espetculo chegasse ao palco. Para um estrangeiro visto o problema emretrospectiva tudo foi divertido e emocionante tudo rotulado e desculpado pelotermo show business- mas em termos precisos, o calor humano brutal est diretamenterelacionado a falta de segurana emocional. Em tais condies raramente existe calma esegurana para que algum ouse expor-se. Refiro-me verdadeira intimidade, poucoespetacular, que o longo trabalho e a verdadeira confiana nas outras pessoas

    proporcionam. Na Broadway um gesto cru de franqueza fcil de encontrar, mas issonada tem a ver com a sutil e sensvel inter-relao entre pessoas que trabalham juntas, aconfiana mtua.

    Quando os americanos tm inveja dos britnica, esta estranha sensibilidade,este dar e receber desigual e espontneo, que a provoca. Chamam isto de estilo, e oconsideram um mistrio. Quando a distribuio doa papis feita em Nova York, eafirmam que um certo ator tem estilo, isto geralmente significa a imitao da imitaode um europeu. No teatro americano as pessoas falam seriamente de estilo como sefosse um modo de ser que pudesse ser adquirido. Convencidos pelos crticos de que elestem it, fazem tudo para perpetuar a noo de que estilo algo raro, que s algunssenhores possuem. No entanto nos Estados Unidos poderiam ter um grande teatro

    prprio. Possuem todos os elementos; h fora, coragem, humor, capital e capacidade deafrontar as situaes adversas.

    Uma manh eu estava no Museu de Arte Moderna vendo o enxame de pessoasentrando pelo preo de um dlar. Quase todos tinham o rosto vivo e o aspecto tpico deuma boa platia utilizo aqui o simples padro pessoal de um pblico para o qualgostaramos de fazer espetculos. Em Nova York existe potencialmente um dosmelhores pblicos de teatro do mundo. Infelizmente, quase nunca vai ao teatro.Raramente vai porque os preos soa muito elevados. claro que pode pagar, mas j sedecepcionou inmeras vezes. No sem razo que Nova York o lugar onde os crticosso os mais poderosos e severos do mundo. Foi o pblico que , ano aps ano, viu-seforado a elevar simples homens falveis a categoria de peritos pesquisadssimos.Acontece o mesmo quando um colecionador compra um trabalho caro: ele no podecorrer o risco sozinho. A tradio dos avaliadores, especialistas em trabalhos de arte,

    como George Duveen, atingiu as bilheterias. Portanto o crculo est fechado; no s osartistas, mas tambm o pblico precisa de seus guarda-costas e a maioria dos curiosos,

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    inteligentes, inconformados, fica de fora. Esta situao no ocorre exclusivamente emNova York. Tive uma experincia bastante semelhante quando montamos uma pea deJohn Arden, Sargent Musgraves Dance, em Paris, no Athene. Foi um verdadeirofracasso quase toda a imprensa se manifestou contra e ns estvamos representando

    para casas virtualmente vazias. Convencidos de que a pea tinha pblico em algumlugar da cidade, anunciamos que realizaramos trs espetculos gratuitos. Foi tal aafluncia de pblico que estes espetculos se transformaram em estrias alucinantes.Multides lutavam para entrar, a polcia teve que instalar grades de ferro na sala deespera, e a pea em sim se transformou num espetculo magnfico; os atores,estimulados pelo calor do pblico, realizaram suas melhores interpretaes, o que porsua vez lhes proporcionou verdadeiras ovaes da platias. O teatro que na noiteanterior parecia um cemitrio frio, agora zumbia com conversa e rudo de sucesso. Nofinal, acendemos as luzes para a platia e olhamos o pblico. Na sua maior parte jovens,todos bem vestidos, um pouco formais, com ternos e gravatas. Franoine Spira, diretorade teatro, veio ao palco:

    - H algum aqui que no podia ter pago o preo do ingresso?Um homem levantou a mo

    E os outros, por que esperaram para entrar grtis? A crtica foi contra. Vocs acreditam na crtica?Um coro bem alto disse: - No!

    Ento, por qu...?E de todos os lados a mesma resposta o risco grande demais, as decepes

    excessivas. Aqui vamos como se traa o crculo vicioso. Com obstinao, o TeatroMorto cava sua prpria sepultura.

    Ainda pudemos atacar o problema pelo outro lado. Se o bom teatro depende daboa platia, ento toda platia tem o teatro que merece. Contudo, deve ser muito difcilpara os espectadores serem informados da responsabilidade de uma platia. Como podeisso ser encarado na prtica? Triste seria o dia em que as pessoas fossem ao teatro porobrigao. Uma vez dentro do teatro, a platia no se pode forar a ser melhor do que .Em certo sentido, no h nada que um espectador possa fazer. E, entretanto, tudodepende dele.

    Quando a Royal Shakespeare Company apresentava o rei Lear em excursoatravs da Europa, o espetculo enriqueceu a medida que prosseguia e as melhoresapresentaes foram realizadas entre Budapeste e Moscou. Foi fascinante ver como uma

    platia, composta na sua maior parte de pessoas com pouco conhecimento de ingls,

    podia to facilmente influenciar o elenco. Estas platias traziam consigo trs coisas: umamor pela pea em si, verdadeira sede de contato com estrangeiros e, acima de tudo,uma experincia de vida da Europa, nos ltimos anos, que lhes permitia chegardiretamente aos dolorosos temas da pea. O grau de ateno que este pblico trazia seexpressava em silncio e concentrao: um sentimento que afetava os atores, como seuma luz brilhante se projetasse sobre seus trabalhos. Em consequncia, os trechos maisobscuros foram iluminados, representados com uma complexidade de sentido e umrequintado uso da lngua inglesa que poucas platias podiam literalmente seguir, masque todas podiam sentir. Os atores sentiam-se estimulados quando seguiram para osEstados Unidos, preparados para dar a um pblico de lngua inglesa tudo que haviamaprendido. Fui forado a voltar para a Inglaterra e s me encontrei com a companhia

    algumas semanas depois, em Filadlfia. E fiquei surpreso e desanimado, pois muito daqualidade do espetculo desaparecera. Eu queria culpar os atores, mas estava claro que

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    eles se esforaram o mximo. Era a relao com o pblico que mudara. Em Filadlfia o pblico entendia ingls perfeitamente, mas a platia era na maior parte composta por pessoas que iam ao teatro por motivos convencionais porque era um acontecimentosocial, porque as esposas insistiam e assim por diante. Sem dvida existia uma maneira

    de envolver esse pblico com o Rei Lear. Mas no era a nossa maneira. A austeridadedeste espetculo, que parecera to correto na Europa, no fazia mais sentido. Vendo

    pessoas bocejar, me senti culpado, compreendendo que se exigia algo mais de ns. Eusabia que se estivesse montando o Rei Lear para o pblico de Filadlfia, precisaria, semtransgredir, acentuar tudo de outra maneira e, em termos imediatos, teria feito a peafuncionar melhor. Mas com uma produo estabelecida, em excurso, nada mais podiafazer. Os atores, entretanto, estavam respondendo instintivamente nova situao.Enfatizavam tudo que pudesse prender os espectador isto, quando havia um pouco deao excitante ou uma ecloso de melodrama, exploravam-no, representavam mais altoe de forma crua. E, claro, passavam voando pelos trechos intrincados, de que a platiano-inglesa poderia ter apreciado integralmente. Afinal, nosso empresrio levou a pea

    para o Lincoln Center em Nova York um auditrio gigante, de acstica ruim, onde aplatia se ressentia do distante contato com o palco. Fomos colocados neste vasto teatropor causas econmicas: uma simples ilustrao de como um crculo fechado de causa eefeitos se produz de forma que o pblico errado, ou o lugar errado, ou ambos, extraemdos atores seu trabalho mais bruto. Novamente os atores respondiam instintivamente scondies presentes. No tinham alternativa: encaravam a platia de frente, falavam altoe, com toda razo, jogavam fora tudo que se tornara valioso em seu trabalho. Este

    perigo inerente a qualquer excurso, porque em certo sentido do poucas as condiespara que a representao original se conserve e o contato com a platia nova muitasvezes um problema de sorte.

    Nos velhos tempos os atores ambulantes naturalmente adaptavam seu trabalho acada lugar novo: as elaboradas produes modernas no possuem essa flexibilidade.Alis, quando representamos US, um espetculo happening engajado na RoyalShakespeare Company, sobre a Guerra do Vietn, decidimos recusar todos os convites

    para excursionar. Cada elemento do espetculo fora criado somente para os setoresespecficos da populao londrina que compareciam ao Teatro Aldwich, em 1966. Ofato de no possuirmos um texto, trabalhado e montado de antemo por um dramaturgo,era a condio fundamental desta experincia. O contato com a platia, estabelecidoatravs de uma especial comunho de idias, tornara-se a substncia do espetculo. Setivssemos estruturado um texto, poderamos ter representado em outros lugares, massem ele, ramos como um grupo fazendo um happening e, com o passar do tempo,

    todos ns sentimos que alguma coisa se perdera em representar US mesmo numatemporada de cinco meses em Londres. Uma nica apresentao teria atingido o clmaxdo espetculo. Nosso erro foi no sentirmos obrigados a incluir US em nosso repertrio.Um repertrio se repete e, para ser repetido, algo tem que ser fixado (3). As regras dacensura britnica no permitem que atores adaptem e improvisem nos espetculos (4).Justamente neste caso, fixar era o incio de um deslize em direo do Morto avivacidade dos atores foi se esvaindo medida que diminua o imediatismo da relaocom o pblico e o seu tema.

    Durante uma conferncia que fiz para um grupo de universitrios, tentei ilustrarcomo uma platia afeta os atores segundo o tipo de ateno que presta. Pedi umvoluntrio. Um homem veio a frente e entreguei-lhe uma folha de papel na qual estava

    escrita uma fala da pea de Peter Weiss sobre Auschwitz The Investigation. O trechoera a descrio de corpos dentro de uma cmara de gs. Enquanto o voluntrio apanhava

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    o papel e o lia para si prprio, o pblico dava risadinhas, como sempre faz quando vum dos seus exposto um papel de bobo. Mas o voluntrio estava por demais atingido ehorrorizado pelo que estava lendo para reagir com o habitual sorriso amarelo, quesempre aparece nessas ocasies. Algo da sua serenidade alcanou o pblico e fez se

    silncio. Ento, a meu pedido, o voluntrio comeou a ler em voz alta. As primeiraspalavras estavam carregadas com seu prprio sentido de horror e com a reao do leitora elas. Imediatamente a platia compreendeu. Uniu-se ele, a fala dele. A sala deconferncia e o voluntrio sumiram de vista: A evidncia nua de Auschwitz era to

    poderosa que nos invadiu a todos, por completo. No s o leitor continuou a falar emmeio a um silncio chocado e atento, mas tambm sua leitura foi tecnicamente perfeita

    no possua graa nem falta de graa, habilidade nem falta de habilidade foi perfeitaporque no lhe sobravam nem um pouco de ateno para concentrar-se em si prprio,para pensar se estava ou no usando a entonao correta. Ele sabia que a platia o queriaouvir, e estava disposto a deixar que seu pblico ouvisse: as imagens encontraram seu

    prprio nvel e guiaram sua voz inconscientemente para o volume e tom apropriados.

    Depois disso pedi outro voluntrio e dei-lhe uma fala de Henrique V: era umalista de nomes e nmeros de ingleses e franceses mortos depois da batalha. Quando leuem voz alta, surgiram todas as falhas do ator amador; porque bastou uma olhadela novolume das obras de Shakespeare para provocar-lhe uma srie de reflexoscondicionados que interviram na leitura dos versos. Usou uma voz falsa com o objetivode ser nobre e histrico. Arredondou os lbios em torno de cada palavra, inventou

    bizarros acentos tnicos, ficou com a lngua presa, tenso e confuso; enquanto o pblicoescutava desatento e irrequieto. Quando acabou, perguntei ao pblico por que no haviaaceito a lista de mortos de Agincourt com tanta seriedade quanto a descrio da morteem Auschwitz. Isto provocou uma discusso viva:

    Agincourt pertence ao passado. Mas Auschwitz tambm pertence ao passado. Mas s quinze anos. Ento quanto tempo necessrio ? Quando que um cadver se torna um cadver histrico? Quanto anos tornam um homicdio romntico?

    Deixei que o debate esquentasse por um tempo e, ento, propus uma experincia.O ator amador leria a fala novamente, parando um momento depois de cada nome: a

    platia tentaria silenciosamente, durante a pausa, relembrar e unir as impresses deAuschwitz e Agincourt. E assim tentaria encontrar um meio de acreditar que essesnomes foram uma vez indivduos, de maneira to viva como se a carnificina houvesse

    ocorrido no passado recente. O amador comeou a ler. E a platia se empenhouarduamente, representando a sua parte. Quando ele disse o primeiro nome, o semi-silncio passou a ser um silncio denso, cuja tenso atingiu o leitor. Havia emoo naleitura, partilhada por ele e pela platia. E isto desviou toda a ateno do leitor paralonge de si, na direo do assunto que lia. Agora a concentrao da platia passou agui-lo: suas inflexes eram simples, seus ritmos verdadeiros. Isto por sua vez,aumentava o interesse da platia. Finalmente a corrente se formou, simultaneamente,entre a platia e o ator amador. Quando a experincia terminou, nenhuma explicao foinecessria; a platia se havia visto em ao. E havia entendido quanto substrato podiaconter o silncio.

    Como toda experincia, esta, era naturalmente artificial: aqui a platia tinha

    recebido um papel insolitamente ativo, como resultado, dirigiu um ator inexperiente.Geralmente um ator de experincia lendo um trecho como este, conseguir impor

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    platia um silncio que est na razo direta do grau de verdade que der ao texto.Excepcionalmente, um ator pode dominar por completo qualquer platia e ento, comoum hbil toureiro, capaz de trabalhar a platia como quiser. Normalmente, entretanto,isto no pode vir somente do palco. Por exemplo, tantos os intrpretes como eu

    encontramos mais satisfao quando representamos A Visita da Velha Senhora eMarat/Sade nos Estados Unidos do que na Inglaterra. Os ingleses se recusavam a aceitarA Visita em seus prprios termos; o tema da pea a crueldade latente em qualquer

    pequena comunidade. Quando representamos nas provncias inglesas, para casaspraticamente vazias, a reao dos que iam ao teatro era no real, no poderia teracontecido. E gostavam ou no gostavam no nvel da fantasia. O Marat/Sade agradouem Londres, no tanto como a pea sobre a revoluo e loucura, mas, sim, como umademonstrao de teatralidade. Os dois termos contrastantes literrio! E teatral tmmuitos sentidos, mas no teatro ingls, quando usadas como elogio, elas quase sempredescrevem maneiras de evitar contato com temas embaraante. O pblico dos estadosUnidos, entretanto, reagiu a ambas as peas de forma muito mais direta. Aceitara, sem

    reservas, a sugesto de que o homem vido e assassino, um louco em potencial. Foramatingidos e envolvidos pelo material do drama. E, no caso de A Visita, frequentementenem comentavam o fato de que a estria era contada de modo um pouco inslito eexpressionista. Simplesmente discutiam o que a pea dissera. Os grandes sucessos deKaza-Willians-Miller, o Quem tem medo de Vrginia Wolf? de Albee, atraam platiasque se encontravam com os atores no terreno comum do argumento e do interesse: eestes foram acontecimentos prodigiosos porque o crculo de representao eraestimulante e completo.

    Nos Estados Unidos, correntes poderosas reconhecem o Morto e sugere umaforte reao contra ele. Anos atrs o Actors Studio comeou a existir para dar f econtinuidade aqueles infelizes artistas que sofriam com os reveses do mtier. Baseadonum estudo muito srio e sistemtico de um dos files da doutrina de Stanislavski, oActors Studio desenvolveu um notvel estilo de representao, que correspondia

    perfeitamente s necessidades dos dramaturgos e pblico da poca. Os atores aindatinham que conseguir resultados em trs semanas, mas eram agora sustentados pelatradio da escola e no vinham de mos vazias ao primeiro ensaio. Esta base deu forae integridade ao seu trabalho. O ator do chamado Mtodo era treinado para recusarimitaes esteriotipadas da realidade e para procurar algo mais real em si mesmo.Precisava, ento, apresentar isso vivendo-o e, portanto, representar tornou-se um estudo

    profundamente naturalista. Realidade uma palavra com muitos sentidos,mas aquiera entendida como aquela parte real que refletia as pessoas e os problemas que

    cercavam o ator. E coincidia com as partes da existncia que os escritores do momento,Miller, Tenesse Willians, Inge, estavam tentando transmitir. Exatamente da mesmamaneira, o teatro de Stanislavski baseava sua fora no fato de corresponder snecessidades dos melhores clssicos russos, todos levados cena de maneira naturalista.Por vrios anos, na Rssia, a escola, o pblico e a pea haviam constitudo um todocoerente. Ento Meyerhold desafiou Stanislavski, propondo um estilo diferente derepresentar, na tentativa de captar outros elementos da realidade. Mas Meyrholddesapareceu. Hoje, nos Estados Unidos, o tempo est maduro para que surja umMeyrhold, j que representaes naturalistas da vida no mais parecem adequadas aosamericano para expressar as foras que os guiam. Agora Genet discutido, Shakespearereavaliado, Artaud citado. H muita discusso sobre ritual: e tudo por motivos bem

    realistas, pois h muitos aspectos concretos da vida americana que s podem sercaptados assim. H bem pouco tempo os ingleses invejavam a vitalidade do teatro

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    americano. Agora o pendulo balana na direo de Londres, como se os ingleses possussem todas as chaves. Anos atrs, vi uma moa no Actors Studio queinterpretava uma fala da Lady Macbeth fingindo ser uma rvore: quando descrevi istona Inglaterra, pareceu engraado, e mesmo hoje muitos atores ingleses ainda tem que

    descobrir porque os exerccios que parecem estranhos so to necessrios. Em NovaYork, entretanto, aquela moa no precisara aprender nada sobre o trabalho do grupo deimprovisao. Aceitara-os com naturalidade. Mas precisava compreender, isto sim, osentido e as exigncias da forma. De p, com os braos no ar, tentando sentir elaesbanjava seu ardor e energia inutilmente, na direo errada.

    Tudo isto nos traz de volta ao mesmo problema. A palavra teatro no tem umlugar exato na sociedade, nenhum propsito claro, s existe em fragmentos: um teatrocorre atrs de dinheiro, outro de glria, outro ainda de emoo, um outro busca a

    poltica, outro a diverso. O ator embrulhado, jogado de um lado para o outro desnorteado e consumido por condies fora de seu controle. Os atores podem as vezes

    parecer ciumentos ou vulgares. Mas nunca conheci um ator que no quisesse trabalhar.

    Este desejo de trabalhar sua fora. o que faz com que profissionais em qualquerlugar se compreendam uns aos outros. Mas o ator no pode reformar a sua profissosozinho. Num teatro com poucas escolas e nenhum objetivo, ele geralmente aferramenta agrcola, ao invs de ser o instrumento musical mesmo quando o teatrovolta ao ator, o problema permanece: a representao morta se torna o centro da crise. Odilema do ator no pertence exclusivamente aos teatros comerciais, com o tempoinadequado para ensaio. Cantores e frequentemente danarinos conservam professoresao seu lado at o fim de seus dias, enquanto que os atores, uma vez lanados, no tmnada nem ningum que os ajude a desenvolver seus talentos. Se isto nos parecealarmante no teatro comercial, o mesmo se aplica s companhias permanentes (5).

    Depois que o ator alcana uma certa posio, ele no faz mais dever de casa. Porexemplo, um ator jovem, ainda no formado nem desenvolvido, mas estourando detalento, cheio de possibilidades latentes, descobre rapidamente o que pode fazer, edepois de tornar-se senhor de suas dificuldades iniciais, com um pouco de sorte eletalvez se encontre na invejvel posio de ter um emprego de que gosta, alm de estarsendo, ao mesmo tempo pago e admirado. Se pretende desenvolver a prxima fase terde ir alm da sua aparente capacidade e comear a explorar o que realmente se tornadifcil. Mas ningum tem tempo para dedicar-se a este tipo de problema. Seus amigosso de pouca utilidade, seus pais certamente nada sabem sobre sua arte, e seu agente,que talvez seja bem intencionado e no desprovido totalmente de inteligncia, no estdisposto a desvi-lo de boas ofertas e bons papis, em troca de qualquer outra coisa que,

    quem sabe, lhe permitira uma satisfao maior. A carreira e o desenvolvimento artsticono caminham necessariamente juntos; frequentemente o ator, enquanto sua carreiraprogride, seu desenvolvimento artsticos permanece estagnado. uma triste histria, etodas as excees confirmam a regra.

    Como que o ator comum passa seus dias? Naturalmente varia muito: ficadeitado na cama, bebendo, indo ao cabelereiro, ao agente, filmando, gravando, lendo, svezes estudando, mesmo ultimamente, brincando um pouco com a poltica. Mas novem ao caso se usa seu tempo de modo frvolo ou srio: pouco do que ele faz serelaciona com a sua preocupao principal no ficar parado como ator o quesignifica no ficar parado como ser humano, o que significa trabalho dedicado a suavalorizao artstica e onde que tal trabalho pode ocorrer? Diversas vezes trabalhei

    com atores que depois do prembulo usual de que eles se pem nas minhas mos sotragicamente incapazes, por mais que se esforcem, de largar por um breve instante,

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    mesmo em ensaio, a imagem de si prprios que enrigeceu em volta de um interior vazio.Nas ocasies em que possvel penetrar nesta casca, como despedaar a imagem deum aparelho televisor.

    Na Inglaterra, parece que de repente temos uma nova e maravilhosa raa de

    jovens atores. Sentimos que estamos testemunhando duas filas de homens numa fbricaencarando direes opostas: uma fila se retira arrastando os ps, cinzentos, cansados,enquanto a outra avana fresca e vigorosa. Ficamos com a impresso de que uma fila melhor que a outra, que a fila nova feita de material melhor. Isto uma parte daverdade, mas no final a nova estar to cansada e cinzenta quanto a velha: o resultadoinevitvel de certas condies que ainda no mudaram. A tragdia que o status

    profissional de atores com mais de trinta anos raramente um reflexo de seus talentos.Existem inmeros atores que nunca tiveram a chance de cultivar sua prpria capacidadeinata at a completa maturao. Naturalmente, numa profisso individualista, presta-sefalsa ou exagerada importncia casos excepcionais. Atores excepcionais, como todoverdadeiro artista, tm alguma misteriosa qumica psquica, semi consciente, mas com

    trs quartas partes ocultas, que eles prprios s podem definir como instinto, vozesinteriores, e que lhes permite desenvolver sua viso e sua vocao. Casos especiaistalvez sigam regras especiais: uma das maiores atrizes do nosso tempo, que durante osensaios d a impresso de no estar seguindo nenhum mtodo de trabalho, possui naverdade, um sistema prprio extraordinrio, que ela s pode definir articulando emlinguagem infantil. Amassando a farinha hoje, meu bem, ela me disse. Pondo-a devolta a cozinhas, precisa de levedura agora, Estamos moldando a massa estamanh. No importa: isto cincia exata, tanto quanto se ela usasse a terminologia doActors Studio. Mas a sua habilidade de obter resultados restringe-se a ela prpria: no

    pode comunic-la de nenhuma maneira til s pessoas ao seu redor. Portanto, enquantoela cozinha a sua torta, e o ator ao seu lado est s fazendo da maneira que elesente, e o terceiro, na linguagem da escola dramtica, est buscando o super-objetivostanislavskiano, nenhum verdadeiro trabalho possvel entre eles. Sabe-se

    perfeitamente que sem uma companhia permanente poucos atores podem prosperarindefinidamente. Todavia, tambm preciso enfrentar o fato de que at uma companhia

    permanente est condenada mortalidade depois de algum tempo se no tem umobjetivo, e, portanto sem objetivo no tem um mtodo; sem mtodo no tem umaescola. Se digo escola, naturalmente no quero dizer uma academia onde o atorexercite os seus membros num limbo (6). Flexionar msculos somente no basta paradesenvolver uma arte; as escala no fazem um pianista, nem os exerccios de dedoajudam o pincel de um pintor: entretanto um grande pianista pratica exerccios de dedo

    muitas horas ao dia, e pintores japoneses passam suas vidas praticando o desenho de umcrculo perfeito. A arte de representar num certo sentido a mais exigente de todas, esem aprendizagem constante o ator para na metade do caminho.

    Ento quando encontramos o mortal quem o culpado? Dos crticos j sedisse at muito, em pblico e em privado para faz-los crer seriamente que so eles aorigem da pior mortalidade. Atravs dos anos gememos e resmungamos sobre oscrticos, como se fossem sempre os mesmos seis homens movendo-se a jato de Paris a

    Nova York, indo de espetculos de arte a concertos e teatros, sempre cometendo osmesmo erros monumentais. Ou como se fossem todos como Thomas Becket o alegre e

    prostitudo amigo do Rei, que no dia em que se tornou cardeal, condenou o prprio Rei,renegou o prprio passado e se pos a criticar todos os seus predecessores. Crticos vo e

    vm, entretanto, aqueles que so criticados os consideram todos iguais. O nossosistemas, os jornais, as exigncias do leitor, a nota ditada por telefone, os problemas de

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    espao tipogrfico, a quantidade de porcaria encontrada em nossos espetculos, o efeitodestruidor de fazer o mesmo trabalho repetidamente e durante muito tempo, tudoconspira para impedir um crtico de executar sua funo vital. Quando um homemcomum vai ao teatro, ele pode dizer que vai apenas para servir a seu prprio prazer;

    quando, porm um crtico vai ao teatro, ele pode dizer que est a servio do homemcomum, mas isto no exato. Ele no somente o homem que fornece as dicas datemporada. Um crtico tem um papel muito mais importante, um papel essencial alis,

    pois uma arte sem crticos seria constantemente ameaada por perigos muito maiores.Por exemplo, um crtico est sempre servindo ao teatro quando est farejando e

    revelando a incompetncia. Se passa a maior parte de seu tempo resmungando, quasesempre tem razo. A terrvel dificuldade de fazer teatro tem que ser aceita: , ou seria,se verdadeiramente praticada com responsabilidade, talvez a mais difcil arte entretodas. No admite piedade, no h lugar para erro, ou para o desperdcio. Um romance

    pode sobreviver ao leitor que pula pginas ou captulos inteiros; enquanto o pblicoteatral, susceptvel de passar, num piscar de olhos, do prazer ao tdio, pode ser

    irreversivelmente perdido. Duas horas um tempo curto, mas ao mesmo tempo umaeternidade. Usar duas horas do tempo do pblico uma arte requintada. Entretanto, estaarte, com suas assustadoras exigncias, servida na sua maior parte por trabalhadorescheios de indiferena. Num vcuo mortal existem poucos lugares onde podemosrealmente aprender a arte teatral por isso damos um pulo no teatro oferecendo floresao invs de cincia. isto que o infeliz crtico solicitado a julgar todas as noites.

    A incompetncia constitui o vcio, a situao e a tragdia do teatro mundial emqualquer nvel: para comdia ligeira ou musical, documentrio poltico, ou drama emverso, ou ainda um drama clssico a que assistimos, existem centenas de outros textosque na maior parte do tempo so trados por uma ignorncia de tcnicas maiselementares. As tcnicas de montagem, cenografia, a tcnica de falar, atravessar o

    palco, sentar at ouvir simplesmente no so suficientemente conhecidas. Compareo pouco que necessrio exceto os casos de sorte para conseguir trabalho em muitosteatros do mundo, com o nvel mnimo de destreza exigido, digamos, aos pianistas:

    pense em quantos milhares de professores de msica, em milhares de pequenas cidadessabem tocar todas as notas dos trechos mais difceis de Liszt ou ler a msica deScriabin. Comparada simples habilidades dos msicos, a maior parte do nossotrabalho est quase sempre no nvel amador. Um crtico ver muito mais incompetnciado que competncia em suas visitas ao teatro. Uma vez me pediram para dirigir umapera num teatro do Oriente Mdio, de onde me escreveram francamente, na sua cartaconvite: nossa orquestra no tem todos os instrumentos e toca algumas notas erradas,

    mas at agora nosso pblico no notou, Felizmente o crtico em geral nota, e nestesentido, sua mais furiosa reao vlida um brado competncia. Esta umafuno vital, mas ele ainda tem outra. Ele abre caminhos.

    O crtico entra no jogo do morto quando no aceita responsabilidade, quandodeprecia sua prpria importncia. Um crtico geralmente um homem sincero ehonesto, profundamente consciente dos aspectos humanos de seu trabalho; fato queum dos famosos Aougueiros da Broadway se sentiu atormentado por saber que deledependia a felicidade e o futuro de uma srie de pessoas. Mesmo assim, mesmo queconhea seu poder de destruio, ele subestima seu poder para o bem. Quando o statusquo est podre - e poucos crticos em qualquer lugar discordariam disto a nica

    possibilidade julgar acontecimentos em relao a um possvel objetivo. Este objetivo

    deveria ser os mesmo para artista e crtico isto , um movimento por um teatro menosmorto, mas que, por hora, ainda um teatro bastante indefinido. Este o nosso propsito

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    final, o objetivo que compartilhamos. Anotar todos os sinais e rastros do caminho anossa tarefa comum. Nossas relaes com os crticos talvez sejam tensas num sentidosuperficial; num sentido mais profundo a relao absolutamente necessria: como

    peixes no mar, precisamos do talento devorador de cada um para poder perpetuar a

    existncia do leito marinho. Todavia, esta devorao no ainda nem de longe obastante: precisamos partilhar o empenho de subir superfcie. Isto que difcil paratodos ns. O crtico parte do conjunto, e se ele escreve seus artigos rpido ou devagar,curtos ou longos, no realmente importante. Ter ele uma imagem de como um teatro

    poderia ser na sua comunidade e estar ele revisando esta imagem em cada experinciaque recebe? Quantos crticos vem seu trabalho dessa maneira.

    por esta razo que quanto mais o crtico se integra dentro da arte melhor. Novejo nada de errado num crtico mergulhando nas nossas vidas, conhecendo atores,falando, discutindo, olhando, intervindo. Eu aceitaria com prazer que se misturasse aomeio, e tentasse ele mesmo faz-lo funcionar. Naturalmente, h um pequeno problemasocial como que um crtico fala com algum que acabou de condenar pela imprensa?

    Talvez haja momentos incmodos mas ridculo pensar que, em geral, isso queimpede a alguns crticos um contato vital com o trabalho do qual participam. Oembarao de sua parte e da nossa, pode facilmente ser reduzido: e certamente umarelao mais ntima de maneira nenhuma coloca o crtico numa posio de conveninciacom as pessoas que tem que conhecer. As crticas que as pessoas de teatro fazem umasas outras so geralmente de um rigor avassalador mas absolutamente precisas. Ocrtico que no se diverte mais no teatro obviamente um crtico morto; o crtico queadora o teatro, mas que no possui clareza crtica sobre o que isso significa, tambmum crtico morto. O crtico vital aquele que j formulou claramente, para si prprio, oque o teatro poderia ser e que ousado o bastante para por em questo essa frmula,toda vez que participa de um acontecimento teatral.

    O pior problema para o crtico profissional que este raramente solicitado a seexpor diante de acontecimentos perturbadores que mudem o seu pensamento: -lhedifcil reter seu entusiasmo, quando existem poucas peas boas em qualquer parte domundo. Ano aps ano material novo e rico vem sendo despejado no cinema; entretanto,a nica coisa que os teatros podem fazer uma infeliz escolha entre grandes obrastradicionais ou obras modernas bem inferiores quelas. Estamos agora em outra rea do

    problema, tambm esta vital: o dilema do escritor morto. extremamente difcil escrever uma pea. Um teatrlogo solicitado pela

    prpria natureza do drama a entrar no esprito de personagens opostos. Ele no um juiz, um criador e mesmo se sua primeira tentativa em teatro abrange apenas duas

    pessoas, qualquer que seja o estilo, mesmo assim preciso que ele viva totalmente comambas. O trabalho de alternar-se totalmente de um personagem para o outro princpiosobre o qual se fundamenta toda a obra de Shakespeare e Tchekov uma tarefa sobrehumana em qualquer poca. So necessrios, para tal, talentos singulares e talvez de umtipo que nem corresponda nossa era. Se o trabalho de um teatrlogo principiante comfrequncia nos parece fraco, provvel que seja porque o mbito de sua compreensohumana ainda no se espraiou. Por outro lado, nada parece mais suspeito do que ohomem de letras de meia idade, maduro, que se senta para inventar personagens e quedepois nos conta todos os segredos destes. A repulsa francesa forma do romance foiuma reao contra a conscincia do autor: se voc pergunta a Marguerite Duras o que oseu personagem est sentindo, talvez ela responda: Como que eu vou saber?; Se voc

    pergunta a Robbe-Grillet por que um personagem praticou certa ao, ele poderiaresponder: Tudo o que eu sei com certeza que ele abriu a porta com a mo direita.

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    Mas esta maneira de pensar ainda no alcanou o teatro francs, onde ainda oautor que, no primeiro ensaio, faz um espetculo sozinho, um one-man-show, lendo erepresentando todos os papis. Esta a forma mais exagerada de tradio, que custa amorrer em toda parte. O autor foi forado a fazer da sua especialidade uma virtude, e a

    transformar seu dom literrio numa muleta para uma espcie de auto-importncia, queno fundo ele sabe no justificada pelo sue trabalho. Talvez uma necessidade de se isolarfaa parte da maquiagem de um ator. possvel que s com a porta fechada,comungando consigo mesmo, possa lutar para dar forma a imagens interiores e conflitosque nunca revelaria a pblico. No sabemos como squilo ou Shakespeare trabalhavam.Tudo que sabemos que, gradativamente, a relao do homem que senta em casaelaborando coisas no papel com o mundo de atores e palcos est se tornando cada vezmais precria, cada vez mais insatisfatria. A melhor literatura inglesa est saindo do

    prprio teatro: Wesker, Arden, Orborne, Pinter, para usar exemplos bvios, so todosdiretores e atores, bem como autores e j estiveram at trabalhando como empresrios.

    Mesmo assim, estudioso ou ator, muitos poucos autores so o que poderamos

    verdadeiramente chamar de inspiradores ou inspirados. Se o autor fosse um mestre eno uma vtima, poderamos dizer que ele traiu o teatro. Na situao atual, podemosdizer que est traindo por omisso os autores esto falhando porque no estoenfrentando o desafio de seu tempo. claro, existem excees brilhantes esurpreendentes. Mas estou novamente pensando na quantidade de trabalho novo ecriativo que aparece nos filmes, comparado produo mundial de novos textosdramticos. Quando as peas novas se propem imitar a realidade, ficamos maisconscientes daquilo que imitativo do que daquilo que real; se eles exploram

    personagens, raro irem muito alm de esteritipos; se argumento o que oferecem, raro o argumento ser levado s ltimas consequncias; mesmo se uma qualidadeexistencial que desejam evocar, geralmente no nos oferecem nada alm da qualidadeliterria da frase bem feita; se crtica social que buscam, ela poucas vezes toca ocentro de qualquer alvo social; se o que desejam o riso, geralmente o procuram pormeios gastos e mais que sabidos.

    Em consequncia, somos forados, muitas vezes, a escolher entre a remontagemde peas antigas e a montagem de peas novas que consideramos inadequadassimplesmente num gesto de homenagear o dia presente. Ou ento partir para umatentativa de iniciar uma pea, como aconteceu, por exemplo, com um grupo de atores eescritores que do teatro da Royal Shakespeare, que queriam uma pea sobre a guerra doVietn que no existia. E comearam ento a faz-la, usando tcnicas de improvisao einvenes sem autor para preencher o vcuo. A criao de grupo, se este grupo rico,

    pode ser infinitamente mais rica do que o produto de um fraco individualismo - mas issono prova nada. Em ltima anlise, para conseguir aquela conciso e aquele centralismoque o trabalho coletivo no pode, absolutamente, oferecer, precisamos sempre da obrade um autor.

    Em teoria poucos homens so to livres quanto um dramaturgo. Ele podetransportar o mundo inteiro para seu palco. Mas na verdade ele misteriosamentetmido. Ele olha o conjunto da vida, e como todos ns s v um fragmento minsculodela: um fragmento no qual s um aspecto capta seu interesse. Infelizmente quase nunca

    procura relacionar este trabalho a qualquer estrutura maior. como se aceitasse, semquestionar, a sua intuio como completa, a sua realidade como toda a realidade. como se a sua crena na subjetividade, funcionando como seu instrumento e a sua fora,

    impossibilitasse qualquer dialtica entre o que v e o que aprende.

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    Assim, existe o autor que explora a sua experincia interior com grandeprofundidade, ou ento o autor que evita esta reas, explorando o mundo exterior noentanto cada um pensa que seu mundo completo. Se Shakespeare nunca houvesseexistido seria bem compreensvel teorizarmos que tanto um quanto outro nunca

    poderiam ser combinados. Mas o teatro elizabetano existiu e para nosso desconfortoeste exemplo nos paira constantemente sobre a cabea. Quatrocentos anos atrs era

    possvel que um teatrlogo desejasse colocar me conflito aberto a sistemtica dosacontecimentos interiores de homens complexos isolados como indivduos, a grandearrancada de seus temores e aspiraes. Drama era exposio, era confrontao, eracontradio. Conduzia anlise, ao envolvimento, ao reconhecimento e afinal a umdespertar de compreenso. Shakespeare no foi um ponto mximo sem uma base,flutuando magicamente numa nuvem: ele foi sustentado por muitos teatrlogosmenores, naturalmente com talentos menores mas que partilhavam a mesmainclinao luta contra aquilo que Hamlet chama de as formas e presses da era.Entretanto, num teatro neo-elizabetano, baseado em verso e festas populares tradicionais

    seria uma monstruosidade. Isto nos obriga a olhar o problema mais de perto, e tentardescobrir quais so exatamente as especialssimas qualidades de Shakespeare. Um fatosimples surge imediatamente: Shakespeare usava a mesma unidade de tempo que seencontra hoje nossa disposio algumas horas do tempo pblico. Usava este espaode tempo para abarrotar toda sua obra, em cada segundo, a todo instante, com umaimensa quantidade, inacreditavelmente rica. Esse material existe numa variedadeinfinita de nveis, mergulha profundidades incomensurveis e toca grandes alturas: osseus meios tcnicos, o seu uso do verso, a prosa, as cenas dinmicas, o excitante, oengraado, o perturbador, eram os recursos que o autor era obrigado a desenvolver parasatisfazer suas necessidades: e o autor tinha um objetivo precioso, humano e social quelhe fornecia motivos para pesquisar seus temas, para buscar seus meios motivos; enfim

    para fazer teatro. Vemos o autor de hoje ainda encerrado nas prises da anedota, daconscincia e do estilo, condicionado pelas relquias dos valores vitorianos, a considerarambio e pretenso palavras sujas. E, na verdade, ele precisa desesperadamente deambos. Se ao menos fosse ambicioso, se ao menos ele arranhasse o cu! Enquanto foruma avestruz, uma avestruz isolada, isto nunca acontecer. Antes que ele possa levantara cabea, precisa encarar a crise de todos ns. Tambm ele tem que descobrir o queacredita deva ser o teatro.

    Naturalmente, um autor s pode trabalhar com o que tem, e no pode saltar forade sua sensibilidade. No pode se convencer a ser melhor ou diferente do que . S podeescrever sobre o que v, pensa e sente. Mas uma coisa pode afinar o instrumento sua

    disposio. Quanto mais claramente reconhecer os elos perdidos que faltam cadeia derelacionamentos, isto , quanto mais verificar que nunca o bastante profundo emmuitos aspectos da vida, nem profundo o bastante em muitos aspectos do teatro, que seuisolamento necessrio tambm sua priso tanto mais, ento, poder comear aencontrar meios de reatar os elos de observao experincia que permanecem porenquanto desatados.

    Tentarei definir mais precisamente o problema que o escritor deve afrontar. Asnecessidades do teatro mudaram; entretanto a diferena no uma diferena de moda.

    No como se h cinquenta anos um tipo de teatro estivesse em moda, enquanto hoje oautor consegue sentir o pulso do pblico consegue tambm encontrar a chave para onovo idioma. A diferena que durante muito tempo os dramaturgos tm traficado com

    sucesso, aplicando ao teatro valores que pertencem a outros campos. Se um homempodia escrever - e escrever queria dizer a habilidade de juntar palavras ou frases com

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    elegncia e estilo ento isso era aceito como um primeiro passo no sentido de uma boadramaturgia no teatro. Se um homem podia criar uma boa trama, boas situaes ou oque se chama de a compreenso da natureza humana, estas qualidades eram todasconsideradas, pelo menos, como marcos indicativos de caminho que levam fina

    dramaturgia. Agora, no entanto as virtudes tpidas do bom artesanato, da construoslida, do abrir e fechar o pano, buscando efeito, do dilogo brilhante, foram todascompletamente desmascaradas. Igualmente importante: em consequncia da televiso,espectadores de todas as classes, no mundo inteiro, se habituaram afazer julgamentoimediato no momento mesmo em que vem um plano na tela. Logo o adulto mdioest continuamente em exerccio, situando cenas e personagens sem nenhum auxlio,sem precisar de um bom especialista que venha em seu socorro com exposio eexplicao. A implacvel desmoralizao das virtudes no-teatrais est comeandoagora a limpar o caminho s outras virtudes. Assim, essas virtudes mais estreitamenteligadas forma teatral, so tambm as mais exigentes. Pois se partimos da afirmaoque um palco um palco e no o lugar conveniente para o desenvolvimento de um

    romance teatralizado, ou um poema teatralizado, ou uma conferncia teatralizada, ouuma estria teatralizada ento a palavra pronunciada neste palco existe ou noconsegue existir, sujeita apenas ao relacionamento com as tenses que cria sobre aquele

    palco no mbito de determinadas circunstncias cnicas. Em outras palavras, apesar doteatrlogo trazer ao seu trabalho a sua prpria vida nutrida pela vida que o rodeia o

    palco vazio no nenhuma torre de marfim as escolhas que faz e os valores que segues tero vigor na medida do que criam na linguagem de teatro.

    Muitos exemplos disto podem ser vistos sempre que um autor, por motivo,morais ou polticos, tenta usar uma pea como veculo de uma mensagem. Qualquer queseja o valor intrnseco dessa mensagem ela s funciona de acordo com os valores que

    pertencem somente ao palco. Um ator pode enganar-se, facilmente, se pensa que podeusar uma forma convencional como veculo. Isto s era possvel quando as formasconvencionais ainda tinham vida para seu pblico. Hoje quando nenhuma formaconvencional consegue manter-se de p, mesmo o autor que no se interessa pelo teatrocomo tal, mas apenas pelo que est tentando dizer, obrigado a comear da raiz; isto ,encarando o problema da verdadeira natureza da expresso dramtica. No h sada: ano ser que ele esteja disposto a ficar com um veculo de segunda mo que no estfuncionando bem e que provavelmente no o levar aonde ele quer ir. E aqui overdadeiro problema do autor e do diretor caminham lado a lado.

    Quando ouo um diretor falando livremente em servir o autor, em deixar uma pea falar por si, desconfio logo, porque esta a tarefa mais rdua de todas. Se voc

    simplesmente deixar uma pea falar, talvez ela no faa nenhum rudo. Se o que vocquer que a pea seja ouvida, ento voc tem que arrancar o som dela. Isto exige muitasaes intencionais e o resultado talvez seja de grande simplicidade. Entretanto, comearcom o objetivo de ser simples pode ser bem negativo; isto , uma fuga fcil dasdifceis etapas que se sucedem e que, somente elas, conduzem soluo simples.

    um papel estranho o do diretor. Ele no pede para ser Deus e, no entanto o seu papel implica nisso. Ele quer ser falvel, e, no entanto uma conspirao dos atores pretende fazer dele um rbitro, exatamente porque h sempre uma desesperadanecessidade de rbitro. Num certo sentido o diretor sempre um impostor, um guianoturno que no conhece o territrio, e, entretanto no tem alternativa: tem que guiar,aprendendo o caminho medida que avana. O teatro Morto, frequentemente fica

    espreita quando o diretor no reconhece esta situao e confia na sorte quando deveriaenfrentar o mais difcil.

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    O Morto sempre empurra, incessantemente, repetio: o diretor morto usafrmulas velhas, mtodos velhos, anedotas velhas, efeitos velhos; princpios banais paraas cenas, e finais banais; e isto se aplica igualmente aos seus parceiros, os cengrafos ecompositores, a menos que no consigam tornar a partir do nada, do deserto e da

    verdadeira questo: por que afinal os figurinos, por que a msica, por que, para queservem? Um diretor morto aquele que no desafia os reflexos condicionados queinevitavelmente cada setor possui.

    Durante pelo menos meio sculo tem-se aceito que o teatro uma unidade naqual todos os elementos deveriam tentar fundir-se. Com este fim surgiu o diretor. Masno fundo tem sido principalmente uma questo de unidade externa, uma fuso de estilosum tanto superficial, para que estilos contraditrios no se choquem. Se levarmos emconta como a unidade interna de um trabalho complexo pode verdadeiramente serexpressa, podemos achar exatamente o oposto: que o choque de externos essencial.Quando vamos alm e pensamos na platia e a sociedade da qual esta platia vem averdadeira unidade de todos estes elementos pode ser auxiliada melhor por fatores que

    segundo outros critrios parecem feios, discordantes e deletrios.Uma sociedade estvel e harmoniosa talvez precise apenas procurar meios de

    refletir e reafirmar esta harmonia nos seus teatros. Tais teatros se poderiam propor aunir atores e espectadores num recproco sim. Mas um mundo em mudana, catico,frequentemente tem que escolher entre um teatro que oferece um adulterado sim ouuma provocao de tal maneira forte que estraalhe o pblico em fragmentos devivssimos nos.

    Conferenciar sobre estes temas tem-me ensinado bastante. Eu sei que neste ponto algum sempre se levanta na platia para perguntar se: a) penso que todos osteatros que no esto nos mais altos padres deveriam ser fechados, ou b) se eu pensoque uma coisa errada as pessoas se divertirem num bom espetculo, ou c) o que pensoa respeito de amadores?

    Minha resposta geralmente que jamais gostaria de ser o censor, proibirqualquer coisa ou estragar o divertimento de algum. Tenho o maior respeito pelosteatros de repertrio, e pelos grupos que no mundo inteiro lutam com grandesdificuldades para manter o seu nvel de trabalho. Tenho o maior respeito pelo prazer dasoutras pessoas, e particularmente pela frivolidade de qualquer um. Eu mesmo vim aoteatro por razes sensuais e talvez irresponsveis. Divertimento excelente. Mas inda

    pergunto aos meus interrogadores se eles realmente sentem que, no conjunto, os teatroslhes do o que esperam ou desejam.

    No me incomodo muito com o desperdcio, mas acho que uma pena no sabero que se est desperdiando. Algumas velhas usam notas de uma libra como marcadoresde livros: isto s tolice se for feito por distrao.

    O problema do teatro Morto como o problema do chato mortal. Cada chatomortal tem cabea, corao, braos, pernas; geralmente tem famlias e amigos: e chegamesmo a ter admiradores. Entretanto, suspiramos quando o encontramos e nessesuspiro estamos lamentando que, de alguma maneira, ele est no fundo ao invs de estarno auge de suas possibilidades. Quando dizemos morto, nunca queremos dizerrealmente morto: queremos dizer algo deprimente e ativo ao mesmo tempo, masexatamente por que em atividade capaz de mudana. O primeiro passo em direo aesta mudana encarar o fato simples e pouco atraente de que grande parte do que

    chamado teatro em qualquer lugar do mundo um travesti de uma palavra que j foi

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    cheia de sentido. Na guerra ou na Paz, a colossal carroa da cultura prossegue rolando,carregando os restos de cada artista para um monte de lixo que cresce sempre.

    Teatro, atores, crticos e o pblico esto interligados numa mquina que range,mas que no pra. H sempre uma nova temporada a fazer, e ns estamos muito

    ocupados para parar e fazer a nica pergunta vital que mede toda a estrutura. Por queafinal o teatro? Para qu? Ser um anacronismo, uma curiosidade ultrapassada,sobrevivendo como um monumento ou um costume estranho? Por que aplaudimos, e oqu? Ocupar o palco um autntico lugar em nossas vidas? Que funo pode ter? A que

    poderia ser til? O que poderia explorar? Quais suas propriedades especficas?No Mxico, antes da roda ser inventada, uma poro de escravos tinham que

    carregar pedra gigantescas atravs da selva e subindo montanhas; enquanto isso seusfilhos puxavam os brinquedos sobre pequenos rolamentos. Os escravos faziam os

    brinquedos, mas durante sculos no conseguiam ligar as duas coisas. Quando bonsatores representam em comdias ms ou musicais de segunda categoria, quando platiasaplaudem clssicos insossos porque gostam dos figurinos ou das mudanas de cenrio,

    ou ainda da beleza da atriz principal, no h nada de errado. No entanto, jamais se preocuparam em ver que coisa existe debaixo do brinquedo que arrastam pela corda.Existe uma roda.

    (1) O autor optou pelo termo Rough ao invs de Popular por no querer conotar a palavrapopular com os vrios sentidos que ela possui, principalmente com a idia de teatro burguspopularizado (N. T.)(2) Sir, I love you more than word can wield the matter;Dearer than eyesight, space, and liberty;Beyond than can be valued, rich or rare;No less than life, with grace, health, beauty, honour;As much as child eer loved, or father found;A love that makes breath poor, and speech unable;Beyond all manner of so much I love you.(3) A repertoire repeats, and to repeat... No esta a nica passagem que o autor brinca com

    as palavras, inventando nexos filolgicos que no existem: mesmo em ingls o vocbulorepertoire nada tem a ver com o verbo to repeat. No entanto a substncia do assuntopermanece imutvel. (N.T.)(4) Recentemente foi abolida de todo a censura teatral na Gr-Bretanha (N. T).(5) Por permanentes o autor quer dizer das companhias estveis, isto , que buscam auxliofinanceiro no estado, comunidades, pessoas, ou entidades filantrpicas. (N.T.)(6) Limbs in limbo, mais uma vez o autor faz um o: limbo um jogo onde no se perde, nem seganha. Consiste em arremessar uma bola num deteerminado ponto d euma parede. Na imagem, seria o ator que atiraria seuse msculos parede, num esforo intil. (N. T.)riginal jogo depalavras

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    O Teatro Sagrado

    Chamo-o de Teatro Sagrado por abreviao, mas poderia tambm cham-lo de o

    Teatro do Invisvel-Tornado-Visvel: O conceito de que um palco um lugar onde oinvisvel pode aparecer tem um grande poder sobre os nossos pensamentos. Todossabemos que a maior parte da vida escapa aos nossos sentidos: a mais poderosaexplicao das vrias artes que elas falam de temas que s poderiam comear areconhecer quando se manifestam em ritmos ou em formas. Observamos ocomportamento dos seres humanos, de multides, da histria, obedece a estes temas quese repetem. Sabemos que trombetas destruram os muros de Jeric, reconhecemos queuma coisa mgica como a msica pode vir de homens de casacas e gravatas-borboleta

    brancas, que sopram, repercutem, harpejam e arranham. Apesar dos mtodos absurdosque a produzem, reconhecemos o concreto atravs do abstrato, compreedemos quehomens comuns e seus instrumentos desajeitados so transformados por uma arte de

    posse. Podemos fazer um culto de personalidade ao maestro, mas sabemos que no elequem faz a msica, ela quem o est fazendo se ele esta relaxando, entregue esintonizado, ento o invisvel toma posse dele; e atravs dele, chega at ns.

    esta a noo bsica, o verdadeiro sonho que est por trs dos ideaishumilhados do Teatro Morto. isso que querem expressar e relembrar os que, comemoo e seriedade, usam palavras grandiosas e vagas como nobreza, beleza, poesia, squais eu gostaria de reexaminar pela qualidade especfica que sugerem. O teatro oltimo frum onde o idealismo ainda uma questo aberta: muitas platias no mundointeiro respondero, com a sua prpria experincia, que viram o rosto do invisvelatravs de uma experincia que no palco transcendeu sua experincia de vida. Iroassegurar que dipo ou Berenica ou Hamlet ou As trs irms, interpretadas com belezae com amor, acende-lhes o esprito e lembra-lhes que a monotonia cotidiana no necessariamente tudo. Quando reprovam o teatro contemporneo por suas pias decozinha e a sua crueldade, exatamente isto que, em plena conscincia, querem dizer(1). Lembram como durante a guerra o teatro romntico, o teatro de cores e sons, demsica e movimento, chegavam como gua para a sede de suas vidas secas. Naqueletempo era chamado de evaso, contudo, a palavra era parcialmente exata. Era umaevaso, mas tambm um lembrete: um pssaro numa cela de priso. Quando a guerraterminou, o teatro procurou novamente, de maneira ainda mais vigorosa, redescobriraqueles mesmo valores.

    O teatro do fim da dcada dos 40 teve muitas glrias: foi o teatro de Jouvet e

    Brard, de Jean-Louis Barrault, de Clav do bal, de Don Juan, Amphitryon, La follede Chaillot, Carmen, a remontagem por Jhn Gielgud de The Importance of BeingErnest, Peer Gynt no Old Vic (2), dipo de Olivier, the Ladys not for burning, deVenus Observed; de Massine em Covent Garden, ainda em baixo da gaiola do canrioem The Three-Cornered Hat, exatamente como foi montado quinze anos antes. Era umteatro de cor e movimento, de tecidos fino, de sombras, de palavras excntricas eespumejantes, de vos de fantasia, de hbeis mecnicos, de brilhante leveza e de todasas formas de mistrio e de surpresa este era o teatro de uma Europa ferida que pareciater um objetivo comum: recuperar a memria de uma graa perdida.

    Caminhando pelo Reeperbahn, em Hamburgo, numa tarde de 1946, enquantouma nvoa mida e cinzenta envolvia as desesperadas prostitutas mutiladas, algumas

    com muletas, de nariz roxo de frio, abatidas, eu vi um bando de crianas se empurrandoexcitadamente para entrar num clube. Segui-as. No palco havia um brilhante cu azul.

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    Dois palhaos de roupas surradas e de lantejoulas estavam sentados numa nuvem pintada, a caminho de uma visita a Rainha do Cu. O que vamos pedir a ela? perguntou um deles. Jantar, respondeu o outro, e as crianas concordaram gritando.O que comeremos no jantar? Schinken, Leberwust... (3) O palhao comeou a fazer

    uma relao de todas as comidas impossveis de obter e as exclamaes de entusiasmoforam sendo, aos poucos, substitudas por um murmrio que se transformou num

    profundo e verdadeiro silncio teatral. Uma imagem estava tornando-se real, emresposta necessidade de uma coisa que no estava l.

    Do incndio da pera de Hamburgo s restou o palco. Mas a platia se reuniu le, num tablado, tendo como fundo o cenrio precrio, apoiado sobre uma parede nua,alguns cantores se movimentavam, subindo e descendo para interpretar O Barbeiro deSevilha; isto porque, nada podia impedi-los de agir assim. Cinquenta pessoas seamontoavam num sto muito pequeno, enquanto que nos poucos centmetros querestavam, um punhado de timos atores, resolutamente, continuava a praticar sua arte.

    Numa Dsseldorf em runas, um Offenbach menor, sobre ladres e bandidos, encheu o

    teatro alemo. No havia nada para discutir, nada para analisar na Alemanha, naqueleinverno, como em Londres, poucos anos antes, o teatro respondia a uma fome. Masafinal, o que era esta fome? Era uma fome invisvel? A fome de uma realidade mais

    profunda do que a forma das coisas que faltavam na vida, uma fome, na verdade, deamortecedores contra a realidade? A pergunta hoje importante, pois muitos acreditamque num passado bem recente ainda havia um teatro, com certos valores, certashabilidades, certas artes que ns, talvez por capricho, tenhamos deliberadamentedestrudo ou posto de lado.

    Ns no podemos deixar que a nostalgia nos engane. O melhor teatro romntico,os prazeres civilizados da pera e do bal foram numa ocasio grandes rebaixamentosde uma arte sagrada em suas origens. Atravs dos sculos os Rituais rficos foramtransformados num espetculo de gala lenta e imperceptivelmente o vinho foiadulterado, gota por gota.

    A cortina foi o grande smbolo de uma escola inteira de teatro a cortinavermelha, as luzes da ribalta, a idia de que ramos novamente crianas. A nostalgia e amgica estavam ligadas uma a outra. Gordon Craig passou a vida lutando contra umteatro de iluso, mas suas memrias mais caras eram de rvores e florestas pintadas eseu olhar se iluminava enquanto descrevia os efeitos do trompe leil. (4)

    Mas chegou o dia em que a mesma cortina vermelha no escondia maissurpresas, quando no mais queramos- nem precisvamos ser de novo crianas.Quando a mgica popular cedeu a formas de pensamento mais rigorosas; ento a cortina

    foi desmontada e as luzes da ribalta retiradas. evidente que ainda queremos captar nas artes os fluxos invisveis quegovernam as nossas vidas. Mas a nossa viso est presa agora na escurido doespectrum. Hoje um teatro de dvida, de desconforto, de problemas, de alarma, parecemais real do que um teatro com objetivos nobres. Mesmo que o teatro tivesse tido, emsuas origens, rituais que possibilitassem a encarnao do invisvel, preciso noesquecer que, salvo certos teatros orientais, esses rituais se perderam ou permanecemem lenta degenerao. A viso de Bach foi escrupulosamente preservada pela exatidode suas notaes: em Fra Angelico testemunhamos uma verdadeira encarnao; mas

    para tentarmos tais processos hoje, onde podemos encontrar a fonte? Em Cventry, porexemplo, uma nova catedral foi construda, de acordo com a melhor receita para

    conseguir um resultado nobre. Artistas honestos, sinceros, os melhores se reunirampara construir um monumento civil celebrao de Deus, do Homem, da Cultura e da

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    Vida atravs de uma arte coletiva. Existe, portanto, uma nova catedral, boas idias,vitrais lindos s o ritual est podo. Aqueles hinos Antigos e Modernos, graciosostalvez numa igrejinha de campo, aqueles nmeros na parede, o colarinho estranho dos

    pastores e os sermes, ficam tristemente imprprios aqui. O novo local clama por uma

    nova cerimnia, mas naturalmente a nova cerimnia que deveria ter vindo primeiro a cerimnia, com todos os seus significados, que deveria ter ditado a forma do local,como aconteceu quando as grandes mesquitas, catedrais e templos foram construdos.Boa vontade, sinceridade, reverncia, crena na cultura no bastam: a forma exterior s

    pode ter verdadeira autoridade se a cerimnia possuir igual autoridade. E atualmentequem poderia estabelecer os padres a serem seguidos?

    claro que hoje, como em todos os tempos, precisamos montar rituaisverdadeiros. Mas rituais que faam das nossas idas ao teatro uma experincia quealimente as nossas vidas. Precisamos de formas verdadeiras, mas estas no esto nossadisposio. E confern