o surrealismo a luz da fotografia

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  • XXIV Colquio CBHA

    O surrealismo luz da fotografia: uma releitura1

    Profa. Dra. Annateresa FabrisPrograma de Ps-Graduao em Artes - ECA/USP

    Pesquisadora do CNPqComit Brasileiro de Histria da Arte

    Ao intervir no primeiro dos dois debates sobre o realismo, organizados pela Casa da Cultura deParis na primavera de 1936, Louis Aragon faz da fotografia um dos eixos fundamentais de sua argu-mentao. A complexa relao dos artistas plsticos com a questo mimtica desde o sculo XIX porele atribuda ao embate entre pintura e fotografia, que teria conhecido trs estgios. O abandono daimitao da natureza primeira forma de realismo , determinado pela percepo da inferioridade dopincel diante da objetiva, seguido por um momento em que o pintor naturalista resolve ser maisrealista que o fotgrafo, pintando o que escapa ao desenho, arte em preto e branco. Esse momento,contudo, de curta durao, pois os pintores dirigem suas pesquisas para outros objetivos, chegando aquerer rivalizar com a natureza, como no caso de Picasso e Braque.2

    Traado esse quadro sumrio da metamorfose da pintura moderna, o escritor volta sua atenopara a histria da fotografia, na qual assinala de imediato sua proximidade dos modelos pictricos,exemplificada pela moldura que enquadrava os primeiros daguerretipos e pelas poses congeladas,escolares, acadmicas, exibidas por aqueles que se faziam retratar com a nova tcnica.3

    O que importa a Aragon, no momento em que apresenta esse quadro das relaes recprocasentre pintura e fotografia, mostrar como a apropriao dos modelos artsticos foi deletria para a novaimagem, afastando-a de um caminho bem mais produtivo. Paradigma desse equvoco a obra de ManRay, encarnao do fotgrafo clssico, capaz de reproduzir

    a prpria maneira dos pintores modernos, o que neles parecia, mais que tudo, ter que desafiar aobjetiva, a mecnica. at mesmo o empaste, o toque dos pintores que encontramos nela. Todospassam por ela: Manet, Seurat, a extrema ponta do pontilhismo, Picasso. O aparelho fotogrfico chegapor si s a impor-se pelo desenho e no apenas pela matria: o fotgrafo, com Man Ray, torna-se,assim, uma espcie de novo crtico da pintura, no poupando nada, nem mesmo o surrealismo. Mas, aomesmo tempo, essas pesquisas so atingidas pela mesma esterilidade que j havia atingido a pintura:essa fotografia separada da vida, tem por matria a arte que a precedeu. Quem no conhecer ospintores aos quais se alude, no apreciar plenamente essas realizaes. Mais do que nunca a foto [...] uma arte de ateli, com tudo o que isso comporta: o carter eminentemente esttico da fotografia.4

    1 Investigao realizada com uma bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq.2 V.A. La querelle du ralisme. Paris: ditions Cercle dArt, 1987, p. 87.3Ibidem, p. 88-89.4Ibidem, p. 90.

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    Se o caminho perseguido por esse tipo de fotografia no satisfaz Aragon por seu esteticismo, h,porm, outra vertente que retm sua ateno: o instantneo, capaz de revelar o humano e o social, doqual o cinematgrafo fora um legtimo herdeiro. Nos ltimos tempos, graas ao surgimento de novosaparelhos, a fotografia saiu do estdio, perdeu o carter acadmico, misturou-se vida, tornando-se

    mais reveladora, mais denunciadora do que a pintura. Ela nos mostra no mais seres que posam, mashomens em movimento. Fixa momentos de seus movimentos que ningum teria ousado imaginar, queningum teria ousado ver. H muito tempo, pelo gosto do natural, o pintor tinha chegado a emprestar aseus modelos apenas gestos ordinrios, simples, naturais. [...] A fotografia, hoje, tem todas as ousadias.Descobre de novo o mundo. [...] Hoje as multides voltam na arte pela fotografia. Com os gestosexaltados das crianas que brincam. Com as atitudes do homem surpreendido no sono. Com os tiquesinconscientes dos flneurs, as diversidades heterclitas dos seres humanos que se sucedem nas ruasde nossas cidades modernas. E aqui tenho em mente sobretudo fotografias de meu amigo Cartier, asque, no por acaso, foram feitas no Mxico e na Espanha.5

    essa experincia humana, da qual surgir o novo realismo, que Aragon aponta como caminhoaos pintores, a exemplo do que haviam percebido confusamente Max Ernst e John Heartfield, quetentaram incorporar a fotografia no quadro. Essas pesquisas representam um estgio transitrio, pois afotografia, que v o que o olho no percebe, ser, no futuro, o auxiliar documentrio da pintura.6

    A contraposio entre Ray e Cartier-Bresson responde no tanto s realizaes concretas dosdois fotgrafos quanto viso que Aragon tinha da arte aps sua adeso ao Partido Comunista Francsem 1927, que o levar a abandonar o movimento surrealista cinco anos mais tarde. Se o escritorpolemiza com as preocupaes formalistas de Ray, presentes nas experimentaes com cmara (sola-rizao) e sem cmara (rayograma) e na utilizao requintada da luz, no menos artstica a pesquisade Cartier-Bresson, pautada por uma viso peculiar do real, que no deixa de ter pontos de contato coma idia de beleza convulsiva proposta por Andr Breton. Dotado de um olhar que faz surgir do banalo fantstico, o perturbador ou o simplesmente curioso ou divertido, Cartier-Bresson, segundo AlainFleig, realiza um jogo de emancipao do real, que desloca o sentido e prope misteriosas correspon-dncias, aproximando-se dos pressupostos do Surrealismo.7

    Os outros dois nomes lembrados por Aragon colocam em pauta a possibilidade de revisodos postulados da pintura graas ao uso de imagens de derivao fotogrfica, produzidas para finsno-artsticos. Sobre Heartfield Aragon havia realizado uma conferncia em 1935 na mesma Casa daCultura que estava abrigando os debates sobre o realismo. Nela havia destacado a capacidade dofotomontador de conjugar poltica e arte, conferindo um sentido potico e ideolgico a imagens nascidasde seu jogo com o fogo da realidade.8

    Ernst, por sua vez, estava associado a uma tcnica como a colagem, que havia despertado umalonga reflexo de Aragon intitulada A pintura desafiada (1930), que ele considerava ainda coerentecom o pensamento atual, apesar de algumas diferenas no explicitadas.9 Interessado em focalizaraquelas experincias da arte moderna que se haviam destacado pelo questionamento da pintura, vistacomo um simples processo artesanal, o escritor confere primazia a dois momentos: inveno dacolagem, que havia posto fim ao predomnio de uma gestualidade ritual e vazia, e ao processo contraa personalidade, empreendido pelos dadastas. Dessas duas negaes havia nascido uma idia afirma-tiva, denominada por Aragon personalidade da escolha, que estava na base do questionamentodaquele misterioso parentesco fsico, anlogo gerao, que unia o pintor a seu quadro.10

    5 V.A. La querelle du ralisme. Op. cit., p. 90-93.6 Idem, p. 94-95.7 FLEIG, Alain. Photographie et surralisme en France entre les deux guerres. Neuchtel: Ides et Calendes, 1997, p. 143.8 ARAGON, Louis. John Heartfield et la beaut rvolutionnaire. In: Les collages. Paris: Hermann, 1980, p. 84. Para dados ulterioressobre Heartfield, ver: FABRIS, Annateresa. A fotomontagem como funo poltica. Histria, So Paulo, 22 (1): 11-57, 2003.9 V.A. La querelle du ralisme. Op. cit., p. 87.10 ARAGON, Louis. La peinture au dfi. In: Les collages. Op. cit., p. 53.

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    Se o escritor atribui um papel determinante a Ernst na afirmao da colagem porque estabele-ce uma diferena de propsitos entre o papier coll, que remete esfera da matria e, logo, dequestes eminentemente pictricas, e a colagem propriamente dita, voltada para uma problemticaessencialmente formal, que tem a ver com a representao do objeto. Na primeira exposio parisiensedo artista (1921), as possibilidades da colagem estavam plenamente representadas, cabendo umpapel fundamental fotografia, que podia vir associada pintura e ao desenho ou sob formas de umarranjo de objetos que ela tornava incompreensvel. Os elementos tomados de emprstimo de outrasfontes desempenhavam funes diversas: tanto reforavam o j representado quanto apresentavamalgo diferente por proporem uma espcie de metfora absolutamente nova.11

    Desse modo, Aragon coloca toda a produo de Ernst sob o signo do Surrealismo, uma vez quenela destaca dimenses como o maravilhoso e a desambientao. O maravilhoso no representaapenas a negao de uma realidade (dada) e o surgimento de novas relaes liberadas por essarecusa. Atualiza tambm uma mxima de Lautramont o qual apregoava o carter coletivo do mara-vilhoso , posto que a colagem rompia a barreira da criao individual por apropriar-se de imagensproduzidas por outros, colocando em xeque as idias de personalidade, talento e propriedade artstica.12

    Quanto desambientao, trata-se de um conceito derivado de Breton, que Aragon define uma desordeminesperada, uma desproporo surpreendente, a negao do real que possibilita a conciliao do reale do maravilhoso.13

    A incorporao de Ernst ao Surrealismo, obscurecendo sua militncia dadasta, tambm reali-zada por Breton, que credita a suas colagens a primeira configurao de uma plstica surrealista.Proposta de organizao visual absolutamente virgem, mas correspondente ao que havia sido dese-jado na poesia por Lautramont e Rimbaud, as colagens do artista alemo impem-se desde logo peloestranhamento que propunham percepo convencional:

    O objeto exterior tinha rompido com seu campo habitual, as partes que o constituam tinham, de algummodo, se emancipado dele, estabelecendo com outros elementos relaes inteiramente novas, queescapavam do princpio de realidade, sem deixar de ter conseqncias no plano real (subverso danoo de realidade).14

    Confrontado com uma visualidade na qual a imagem era modificada por combinaes inslitas,por aproximaes que geravam novos sentidos, Breton coloca-a sob o signo do maravilhoso j nocatlogo da exposio de 1921. No que consistia essa qualidade? Na aproximao de duas realidadesdistantes, da qual brotava uma fasca; na concretude conferida a figuras abstratas; na capacidade dedespojar o espectador de seu sistema de referncias, desorientando-o psicologicamente.15 Alguns anosmais tarde, o escritor usar a imagem do labirinto para definir o choque perceptivo provocado porimagens constitudas a partir de elementos dotados de uma existncia relativamente independente,prxima do recorte fotogrfico, cuja natureza era essencialmente lrica por escapar da lgica convencionale de toda inteno preconcebida.16

    Se as colagens de Ernst retm a ateno de Breton porque permitem questionar as concepestradicionais de arte graas apropriao de imagens preexistentes, elas so importantes na formulaode seu iderio esttico tambm por outros motivos. significativo que o texto do catlogo da exposiorealizada em maio de 1921 na galeria Au Sans Pareil comece com uma afirmao peremptria, queno s atribui fotografia a capacidade de colocar em xeque os velhos modos de expresso, comoestabelece uma relao intrnseca entre ela e a escrita automtica.17

    11 ARAGON, Louis. La peinture au dfi. In: Les collages. Op. cit., p. 47-48, 65-66.12 Ibidem, p. 38, 44, 77.13 Ibidem, p. 44.14 BRETON, Andr. Gense et perspective artistiques du surralisme. In: Le surralisme et la peinture. Paris: Gallimard, 2002, p. 91.15 BRETON, Andr. Max Ernst. In: Les pas perdus. Paris: Gallimard, 1949, p. 102.16 BRETON, Andr. Le surralisme et la peinture. In: Le surralisme et la peinture. Op. cit., p. 42, 44.17 BRETON, Andr. Max Ernst. Op. cit., p. 101.

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    Ao propor essa associao, Breton realiza, pelo menos, duas operaes conceituais. Estabeleceum elo significativo entre a escrita surrealista, que deveria trazer tona um texto latente, alheio sconvenes literrias e portador de um sentido surpreendente, e a formao autnoma da imagem noprocesso fotogrfico, no qual a automatizao ptica e qumica da representao coloca em crise aidia de sujeito criador e os parmetros da criao artstica.18 Se se considerar que cabia escritaautomtica negar as regras da literatura (vista como resultado de uma elaborao e um trabalho volun-trios), inverter as relaes entre literrio e no-literrio, fazer brotar uma objetividade profunda daentrega total subjetividade, no parecer demasiado afirmar que, num primeiro momento, Bretonconfere imagem fotogrfica de que Ernst se apropria para realizar suas colagens e fotomontagens omesmo papel transgressor que atribua ao processo de composio potica, uma vez que ambasatuam muito mais no mbito da descoberta do que no da inveno.19

    O artista alemo coloca-se alm da pintura, ao relativizar seus pressupostos tcnicos, sem negara idia de figurao, qual atribui um novo significado. Para compreender seu papel no interior doSurrealismo, necessrio atentar para a funo renovadora que Breton outorga fotografia no momentoem que esta provoca a crise do conceito mimtico. Partidrio de uma figurao que desrealize o real, opoeta detecta na fotografia o mrito de ter levado a pintura a concentrar-se na necessidade de exprimirvisualmente a percepo interior, voltando-se para a representao mental pura e para a libertaocrescente do impulso instintivo. Isso no significa que o escritor postule a ruptura total com o referente,pois para ele a criao surrealista consiste na reorganizao dos restos visuais provenientes da percepoexterior.20 Se for lembrado que Breton considera as colagens de Ernst como a primeira manifestao devisualidade surrealista, no ser difcil detectar nas imagens de derivao fotogrfica que esto na suabase restos visuais, os quais, reorganizados, abrem caminho para uma percepo capaz de contestaros parmetros corriqueiros, e para um procedimento mental, que retira a identidade primitiva dosobjetos e os transforma completamente ao combinar realidades, primeira vista, incompatveis numplano que, aparentemente, no lhes convm.21

    No deixa de ser significativo que Ernst, ao referir-se aos procedimentos utilizados pelos surrea-listas para subtrair-se ao domnio das faculdades conscientes, use a imagem de uma fotografia assom-brosa do pensamento e dos desejos dos artistas. Desse modo, a idia de automatismo mais uma vezassociada ao processo de formao da fotografia e ao afloramento de uma imagem latente, provocadopor uma subverso da ordem lgica da realidade, em virtude de uma intensificao sbita dasfaculdades visionrias, da qual brota uma sucesso alucinante de imagens contraditrias.22

    A imagem fotogrfica no desperta o interesse de Breton apenas pelo fato de permitir, como nocaso de Ernst, a existncia de uma figurao no realista. H outra vertente, representada por Ray, quetambm o atrai, por possibilitar a transformao do real graas a um instrumento moderno e reveladorpor excelncia: o papel sensvel. Reduzindo a interpretao artstica ao mnimo, a rayografia demonstrano apenas a inutilidade da pintura, como faz entrever a perspectiva de uma arte mais rica em surpresas,prxima das pesquisas poticas dos surrealistas e dos jogos mentais de Duchamp.23 A valorizao doautomatismo, associada contestao das tcnicas tradicionais, que guia a reflexo de Breton na con-ferncia proferida em Barcelona em novembro de 1922, acresce-se de novos dados no artigo quededicar ao fotgrafo norte-americano na srie O surrealismo e a pintura (1927). Estabelecendo uma

    18 Aragon, ao analisar um dos conjuntos (No nos mexamos mais) de Os campos magnticos (1920), estabelece um paraleloentre o carter instantneo da imagem tcnica e a velocidade da escrita automtica: O fotgrafo dificilmente faz posar por muitotempo, contenta-se com a instantaneidade de uma frase... Para dizer a verdade, trata-se ainda de uma conseqncia da acelera-o novamente introduzida, tanto que a corrida difcil de ser mantida, interrompendo-se com o el da mo. Cf.: BONNET,Marguerite. Andr Breton: naissance de laventure surraliste. Paris: Librairie Jos Corti, 1975, p. 184.19Estou aplicando imagem fotogrfica a reflexo de: BONNET, Marguerite. Op. cit., p. 181.20BRETON, Andr. Situation surraliste de lobjet. In: Position politique du surralisme. Paris: Denol/Gonthier, 1972, p. 155-157.21 Ibidem, p. 162.22 Apud: Idem, p. 160; apud: MARCEL Jean. Histoire de la peinture surraliste. Paris: ditions du Seuil, 1959, p. 77.23 BRETON, Andr. Caractres de lvolution moderne et ce qui en participe. In: Les pas perdus. Op. cit., p. 197-198.

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    diferena entre as experimentaes de Ernst e Ray, o escritor detecta na atitude deste um afastamentodo lugar comum da representao fotogrfica, da qual no s subtrai seu carter positivo, como aarrogncia de passar-se pelo que no era. Longe da crena homolgica que guiar a tomada de posiode Aragon, Breton descarta a idia do espelho, uma vez que a imagem fotogrfica requer uma atitudepropcia das figuras que se inscrevem em sua superfcie, alm de surpreend-las freqentemente emseu aspecto mais fugidio. Coube a Ray demonstrar que a fotografia no , afinal de contas, umaimagem fiel, demarcando seus limites, colocando-a a servio de objetivos diferentes dos que pare-ciam estar na raiz de seu surgimento, demonstrando que ela era capaz de perseguir por conta prpria,e na medida de seus prprios meios, a explorao daquela regio que a pintura acreditava poderreservar para si.24

    As idias de Breton sobre a fotografia e suas relaes com a potica surrealista nem sempre tmrecebido a devida considerao por parte dos historiadores da arte e da fotografia. Alain Sayag, porexemplo, considera um equvoco afirmar que a fotografia foi um dos apoios privilegiados da criaosurrealista, lembrando sua escassa presena nas publicaes do movimento, o engano da incorpo-rao de um nome como o de Brassa e as contradies entre acaso e ofcio, inerentes s pesquisas deRay. Num texto repleto de idas e vindas, no qual sua posio em relao ao tema nem sempre clara,o autor formula uma pergunta, que parece atestar uma leitura bastante apressada da produo reflexivado Surrealismo:

    No seria necessrio assinalar a ausncia de qualquer meno fotografia nos textos tericosde Breton?25

    Tambm Alain Fleig, que define a relao entre Surrealismo e fotografia nos termos de um casalilegtimo e aleatrio, em virtude da aparente antinomia entre automatismo psquico e realismo bruto,apresenta uma viso negativa da avaliao da imagem tcnica por Breton: do mesmo modo que umacerta literatura marginal, esta seria rejeitada ou vista com suspeio.26

    No campo histrico-artstico, s recentemente o pensamento de Breton sobre a fotografia temsido alvo de interesse. Uma rpida anlise da bibliografia dedicada ao Surrealismo antes das ltimasdcadas do sculo XX permitir mostrar como a colagem de Ernst associada ao processo automticode escrita (Georges Hugnet, Jos Pierre) ou possibilidade de um maravilhoso subversivo, atacando arealidade com elementos que nela se inspiravam, com o nico fim de os voltar contra ela (SaraneAlexandrian)27, sem que haja maiores consideraes sobre as imagens usadas como ponto de partida.Nesse campo, Marcel Jean parece constituir uma exceo. Embora no fale explicitamente no papelda fotografia, ao lembrar que as colagens de Ernst se inspiravam provavelmente nas imagensem trompe-loeil de De Chirico, que davam a impresso de serem coladas na tela, afirma que oartista alemo escolheu um caminho mais curto e mais desinibido: como o ilusionismo, o desenho

    24 BRETON, Andr. Le surralisme et la peinture. Op. Cit. p. 52-53.25 SAYAG, Alain. Colecionar a fotografia surrealista hoje? In: Surrealismo. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, ago.-out.2001, p. 205-206. Outro ndice do interesse de Breton pela fotografia pode ser encontrado numa evocao de MargueriteBonnet. Numa carta de agosto de 1920, o poeta fala de um hbito compartilhado com Philippe Soupault: quando os dois amigosse sentiam tristes, iam ver nas vitrines dos estdios fotogrficos as fotografias de casamento com os belos bigodes, os fundospintados, o langor, as banquetas e as flores de laranjeira, em busca de sinais de vida. (Cf.: BONNET, Marguerite. Op. cit., p. 233-234). Alm disso, poderia ser lembrada a presena de ilustraes fotogrficas em vrios livros de Breton, cujo papel no seresume a eliminar toda descrio, como escreve o escritor no prefcio da edio de Nadja de 1963. Tambm neste caso Sayagdemonstra uma viso equivocada da relao entre Surrealismo e fotografia. Ao lembrar a ruptura entre Breton e Boiffard, causadapela decepo despertada no escritor pelas imagens mortas e desilusionantes que o fotgrafo realizara para Nadja, conclui quetal ruptura sem qualquer dvida, estigmatiza o fracasso dessa tentativa de colocar a ilustrao fotogrfica em primeiro plano (Op.Cit. p. 206).26 FLEIG, Alain. Op. cit., p. 40.27 HUGNET, Georges. Dada. In: BARR Jr. ALFRED H., org. Fantastic art, dada, surrealism. New York: Arno Press, 1968, p. 31 (ediooriginal: 1936); PIERRE, Jos. Le surralisme. Paris: Fernand Hazan, 1978, s.p. ALEXANDRIAN, Sarane. O surrealismo. Lisboa:Editorial Verbo, 1973, p. 96. Como tais autores incorporam sem qualquer problematizao os trabalhos fotogrficos de Ray,optou-se por concentrar a anlise nas colagens de Ernst.

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    acadmico e a perspectiva j estavam presentes nos catlogos ilustrados, pode-se dizer que seu pontode partida , literalmente, um clich.28

    Se, desse modo, Jean acaba por colocar a problemtica da reprodutibilidade da imagem, DawnAdes, em Photomontage (1976), recupera parcialmente o pensamento de Breton, ao destacar o duplopapel que este atribua fotografia no catlogo da primeira exposio parisiense de Ernst: afirmao doobsoletismo dos modos tradicionais de representao e proviso de novos elementos de figurao.29

    Um ensaio publicado por Rosalind Krauss na revista October em 1981 pode ser considerado umverdadeiro divisor de guas na avaliao do Surrealismo, pois nele se prope esboar uma definio domovimento no mais a partir da pintura, e sim de uma anlise das funes semiolgicas da fotografia,que passaria a ocupar um lugar absolutamente central. Decalcomania do real, marca obtida por umprocesso fotoqumico, a fotografia geneticamente diferente das formas tradicionais de arte: umndice, ao passo que pintura, escultura e desenho so cones. Tendo em vista as manipulaes a que asujeitam os fotgrafos do movimento, a autora sublinha o paradoxo da fotografia no interior do Surrea-lismo: constitui a realidade em signo, prxima do objetivo primeiro perseguido por Breton e Aragon. Osconceitos de maravilhoso e beleza convulsiva apontam, a seu ver, para uma percepo da realidadeenquanto representao, da natureza convulsionada numa espcie de escrita, objetivo congenial fotografia, que seria considerada pelos surrealistas uma apresentao do real estruturado e codificado.Alm disso, Rosalind Krauss no deixa de lembrar a correlao intelectual que Breton estabelecia entreo automatismo psquico e o automatismo da cmara, capaz de modelar a realidade a partir de seusprprios pressupostos.30

    Propondo trs exemplos paradigmticos para a anlise das contribuies que a nova imagemtrouxe para a arte contempornea lgica do ato (Duchamp), espacialidade gerada pelas tomadasareas (Suprematismo) e mistura polifnica de materiais e signos (Dadasmo e Surrealismo) PhilippeDubois destaca no ltimo a percepo da fotografia como um verdadeiro material, um dado icnicobruto, manipulvel como qualquer outra substncia concreta [...], portanto, integrvel em realizaesartsticas diversas, em que o jogo de comparaes (inslitas ou no) pode exibir todos os seus efeitos.Embora a fotomontagem venha a ser utilizada de maneiras diferentes pelos artistas que dela lanammo, h duas caractersticas que se repetem sistematicamente: a integrao da imagem fotogrficanuma espcie de grande amlgama de suportes, fonte de sua dessacralizao e de sua conversonum objeto, num dejeto, num vestgio, num ingrediente da composio; a correspondncia de jogosde combinaes simblicas a essa mistura de materiais, graas ao uso de todos os fios da analogia, dacomparao, da acoplagem de idias, num sentido poltico de contestao e de crtica ou naquele(potico) de uma metaforizao positiva e expansiva.31

    A historiografia mais recente, embora no tenha acolhido o convite de Rosalind Krauss e PhilippeDubois de conferir centralidade fotografia no mbito do Surrealismo, no deixa, contudo, de levar emconta as consideraes de Breton sobre a imagem tcnica. o que demonstra Jack Spector quandolembra a relao entre colagem e escrita automtica proposta pelo escritor, que lhe permite aindaestabelecer um paralelo com a fotografia medinica do sculo XIX, em virtude da idia dos fluxosmentais. Mesmo que, mais tarde, Breton tenha dado preferncia pintura, Spector no deixa de mostrarcomo a fotografia continuou a ser um instrumento fundamental na contestao da concepo mimticada arte. Ao rejeitar a imitao, seu intuito no era o de favorecer a abstrao ou a decorao, e sim o depropor um novo tipo de imagem, uma imitao da realidade percebida no pelo olho fsico, mas pelo

    28 JEAN, Marcel. Op. cit., p. 78. Em A pintura desafiada, Aragon j havia chamado a ateno para o papel de De Chirico nosurgimento da colagem, ao lembrar o uso do trompe-loeil nas imagens dos interiores metafsicos, que davam a impresso deserem coladas. Cf.: Aragon, Louis. La peinture au dfi. Op. cit., p. 55.29 ADES, Dawn. Photomontage. London: Thames & Hudson, 1986, p. 115.30 KRAUSS, Rosalind. Photographie et surralisme. In: Le photographique: pour une thorie des carts. Paris: Macula, 1990, p. 110,112, 115-117.31 DUBOIS, Philippe. A arte (tornou-se) fotogrfica? In: O ato fotogrfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1998, p. 268-269.

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    olho da mente, por intermdio da memria ou do sonho. Desse modo, o autor atribui o interesse dossurrealistas pela fotografia possibilidade de descoberta do inconsciente mecnico, aliada a uma certaambigidade temporal, que lhe permite estar dentro e fora do tempo de uma s vez. O momentofecundo dos acontecimentos transforma-se numa essncia complexa, que se situa alm da flutuaodo tempo, sem deixar de estar imerso nele, como demonstram as fotomontagens que ilustram os livrosde Breton e luard, os romances-colagem de Ernst, A persistncia da memria de Dal (1930) ou aslitocronias de Domnguez (1934). A problemtica do tempo fotogrfico, tanto na imagem nica, quantona imagem concebida enquanto momento de uma seqncia cinemtica potencial, parece, assim,aproximar-se da reflexo do Surrealismo sobre a percepo e a predio, a presena e a ausncia e oamor convulsivo.32

    Uma leitura estimulante do interesse do Surrealismo pelo automatismo foi proposta porEdmond Couchot no final da dcada de 1990. Os surrealistas no estariam reagindo automatizaodas tcnicas materiais, mas demonstrando que o homem pode afirmar sua mais profunda subjetividadeao dar livre vazo ao funcionamento automtico do pensamento. Essa atitude teria conseqnciasinteressantes na viso da mquina, qual atribudo um inconsciente mecnico e, logo, uma irraciona-lidade que lhe confere uma filiao humana. Desse encontro surge uma nova concepo do sujeito: asubjetividade mais ntima demonstra sua disponibilidade para com um sujeito impessoal inconsciente,que produz e percebe as imagens automticas do pensamento bruto. Pois h um sujeito impessoal namaquinaria do sonho. Mas um sujeito impessoal que no aquele da experincia tcnica, que no comum a mais ningum: um sujeito impessoal de algum modo desmassificado, nico, singular, inco-municvel, como todo sonho.33

    A leitura de Couchot pode ser aplicada conciliao entre o primitivismo e as novas condiestrazidas s artes plsticas pela fotografia, da qual resultou um subjetivismo quase total, que no respeitanem mesmo o conceito geral do objeto e reage at contra a viso que podemos ter do mundo exterior,atribuda por Breton ao Ernst do comeo da dcada de 1920.34 As colagens e fotomontagens do artistaalemo, cujo ponto de partida foi uma alucinao gerada pela percepo do carter contraditrio eabsurdo de imagens cientficas reunidas num nico catlogo, a solicitarem novos planos, para seuencontro num desconhecido novo, trazem no s a marca de um jogo combinatrio, que pode serdeterminado pelo acaso ou pelo inconsciente, como remetem ao trabalho onrico por seu carterfragmentrio. Nelas o sujeito pessoal e o sujeito impessoal se encontram e se fecundam reciprocamente,uma vez que a escolha e o acaso deixam de ser fatores contraditrios, gerando aquela desambientaode que fala Breton no prefcio de A mulher 100 cabeas (1929), por proporcionarem desvios simagens de que o artista se apropriou para criar uma viso alucinatria da realidade.35

    A colagem, que Ernst define como a alquimia da imagem visual, o milagre da transfiguraodos seres ou objetos com ou sem modificao de seu aspecto fsico ou anatmico, traz em si umprincpio essencial da potica surrealista: o movimento dialtico graas ao qual o subjetivo e o objetivose mantm num estado de simbiose, desmentindo toda idia de paralelismo e dualismo. Em suadefesa da colagem, Michel Carrouges utiliza, no final da dcada de 1940, um argumento bem prximoao proposto por Couchot cinqenta anos mais tarde: em virtude de um princpio de exclusividade, desegmentao arbitrria e ilusria que considerado negativamente o artista que se apropria de umadeterminada imagem, de um determinado fragmento de desenho, quadro ou matria para uni-los aoutros arrancados nas mesmas condies de seus suportes originrios a fim de gerar um conjunto novoe revelador, graas a esse emprstimo de outrem, dos segredos mais pessoais do inspirado que os

    32 SPECTOR, Jack J. Surrealist art and writing - 1919/39: the gold of time. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p. 97-98,147-150.33 COUCHOT, Edmond. La technologie dans lart: de la photographie la ralit virtuelle. Nmes: ditions Jacqueline Chambon,1998, p. 63-64.34 BRETON, Andr. Caractres de lvolution moderne et ce qui en participe. Op. cit. p. 196-197.35 JEAN, Marcel. Op. cit., p. 77, 126; Breton, Andr. Avis au lecteur pour La femme 100 ttes de Max Ernst. In: Oeuvrescompltes. Paris: Gallimard, 1992, v. 2, p. 305.

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    dobrou prpria fantasia. Embora o autor no estabelea um paralelo entre colagem e imagemtcnica (reservando-o para a fotomontagem), no mbito dessas consideraes que afirma que afotografia realizou de maneira audaciosa o desejo de Breton de libertar o artista da escravido da mo.Dando voz a Raoul Ubac, Carrouges destaca outro aspecto da fotografia que mantm profundas relaescom a proposta surrealista: o acaso, presente tanto na tomada que arranca um nico aspecto do real,quanto nas operaes tcnicas que transformam uma imagem latente numa imagem estvel, a evocaremuma espcie de estranha alquimia. A partir dessa anlise, o autor faz um prognstico para o futuro dasartes plsticas, que consistiria numa combinao incessantemente aperfeioada do acaso com umduplo automatismo: o do aparelho mecnico e o da inspirao criadora.36

    Se o caminho percorrido pelas artes visuais desde ento foi bem mais complexo, Carrouges,contudo, acertou quando previu que estas no poderiam dispensar as contribuies do aparelho foto-grfico, como demonstram mais e mais as pesquisas contemporneas. H, entretanto, uma tarefa emaberto, reservada aos historiadores da arte: reconhecer o papel desempenhado pela fotografia na configu-rao de uma nova visualidade, no apenas no caso do Surrealismo, mas de todos os movimentos devanguarda do comeo do sculo XX. No uma tarefa fcil, pois est em jogo o confronto com umaconstruo terica que ainda hoje tem muitos seguidores: a idia da pureza dos meios enquantoelemento definidor da arte moderna. Seu autor, Clement Greenberg, ao escrever sobre Mir na dcadade 1940, no fazia constar, por exemplo, de suas consideraes a srie de desenhos-colagens reali-zados pelo artista em 1933, que incluam imagens publicitrias, gravuras anatmicas e cromolitografiascomerciais. Como no se trata de uma atitude isolada, o resgate de outras dimenses da arte modernaque no cabem dentro de determinados modelos tericos configura-se como um campo vasto, cujaexplorao sistemtica trar, sem dvida, novas leituras de um perodo to determinante para a culturavisual e para a redefinio dos estudos histrico-artsticos.

    36 CARROUGES, Michel. Andr Breton et les donnes fondamentales du surralisme. Paris: Gallimard, 1950, p. 195, 209-211.