o sujeito entre mÚltiplas geografias e a geografia …ºltiplas... · predominante em geografia de...

25
O SUJEITO ENTRE MÚLTIPLAS GEOGRAFIAS E A GEOGRAFIA GERAL ELIAS LOPES DE LIMA 1 Resumo: Há um traço fundante da geografia moderna que historicamente (ao longo de todos os seus momentos de renovação) a impele a confrontar o particular e o todo, o que comparece, em última análise, como uma dualidade entre uma geografia regional e uma geografia geral que se manifesta sob variadas formas correlatas e nuançadas: idiográfico e nomotético; multiplicidade e unidade; local e global etc. Curiosamente, um aparente indício de superação desses imbróglios se erige em geografia a partir da renovação do método regional, já que tal expediente permite entrecruzar as mais variadas escalas de ocorrência dos fenômenos, permitindo, com isso, o desvelamento de alguns conteúdos objetivos até então reificados e uma consequente revalorização do sujeito na produção geográfica. O presente texto consiste numa tentativa de instigar um debate de maneira a tornar inteligível (de dotar de formas) essa profusão de conteúdos que convoca o sujeito a um inquérito por parte da geografia. Palavras-chave: sujeito, objeto, espaço, multiplicidade, diferença. Abstract: There is an fundamental trace of the modern Geography that historically (along all its moments of renovation) impels it to confront the particular and the whole, which appears, ultimately, as a duality between a regional Geography and a general Geography which manifests itself in different correlated ways and nuances: idiografic and nomothetic; multiplicity and unity; local and global etc. Curiously, an apparent indication of overcoming this imbroglio rises in Geography from the renovation of the regional method, since it allows intersecting varied scales of phenomena occurrences, which allows the unveiling of some objective methods which were reified and a consequent revaluation of the subject in a geographic production. The current text consists on an attempt to incite a debate to make these abundant contents intelligible (to provide with forms) that impells the subject for an inquiry on the part of the Geography. Keywords: subject, object, space, multiplicity, difference. 1 Doutor em geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor adjunto do curso de geografia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisador do Núcleo de Pesquisa Espaço e Ação (NuGea).

Upload: nguyenkhanh

Post on 12-Dec-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

O SUJEITO ENTRE MÚLTIPLAS GEOGRAFIAS E A GEOGRAFIA GERAL

ELIAS LOPES DE LIMA1

Resumo: Há um traço fundante da geografia moderna que historicamente (ao longo de todos

os seus momentos de renovação) a impele a confrontar o particular e o todo, o que comparece,

em última análise, como uma dualidade entre uma geografia regional e uma geografia geral

que se manifesta sob variadas formas correlatas e nuançadas: idiográfico e nomotético;

multiplicidade e unidade; local e global etc. Curiosamente, um aparente indício de superação

desses imbróglios se erige em geografia a partir da renovação do método regional, já que tal

expediente permite entrecruzar as mais variadas escalas de ocorrência dos fenômenos,

permitindo, com isso, o desvelamento de alguns conteúdos objetivos até então reificados e

uma consequente revalorização do sujeito na produção geográfica. O presente texto consiste

numa tentativa de instigar um debate de maneira a tornar inteligível (de dotar de formas) essa

profusão de conteúdos que convoca o sujeito a um inquérito por parte da geografia.

Palavras-chave: sujeito, objeto, espaço, multiplicidade, diferença.

Abstract: There is an fundamental trace of the modern Geography that historically (along all

its moments of renovation) impels it to confront the particular and the whole, which appears,

ultimately, as a duality between a regional Geography and a general Geography which

manifests itself in different correlated ways and nuances: idiografic and nomothetic;

multiplicity and unity; local and global etc. Curiously, an apparent indication of overcoming

this imbroglio rises in Geography from the renovation of the regional method, since it allows

intersecting varied scales of phenomena occurrences, which allows the unveiling of some

objective methods which were reified and a consequent revaluation of the subject in a

geographic production. The current text consists on an attempt to incite a debate to make

these abundant contents intelligible (to provide with forms) that impells the subject for an

inquiry on the part of the Geography.

Keywords: subject, object, space, multiplicity, difference.

1 Doutor em geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor adjunto do curso de geografia da

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), pesquisador do Núcleo de Pesquisa Espaço e Ação (NuGea).

O espaço é a manifestação geográfica mais expressiva da realidade objetiva total que o

sujeito no curso de toda uma vida, com todo aporte intersubjetivo, com todo o aparato

tecnológico disponível hoje e com todo o conhecimento acumulado desde os registros mais

remotos não é capaz de dar conta, senão de uma parcela objetiva em que ele consta como um

elemento constitutivo vital. Na qualidade de realidade geográfica, e não propriamente como

uma representação, o espaço está suscetível de uma interpelação sensível e prática a partir de

cada experiência particular cujo sentido e significado, após uma triagem intersubjetiva dos

atores que partilham a experiência, são reduzidos, por fim, a uma representação objetiva.

O espaço, entendido como uma representação ou um objeto geográfico, por sua vez, não

o é enquanto tal a partir das minhas experiências pessoais ou de quem quer que seja, e sim um

conceito que dispensa tais experiências particulares em proveito de um equivalente geral

inteligível e acessível supostamente a todos por se instituir como fundamento absoluto da

ciência geográfica. Este é, sem dúvida, um dado unificador dos afetos subjetivos acerca do

espaço, mas também é um aspecto limitador do seu potencial objetivo, aquilo que o espaço de

fato (ontologicamente) é. A partir do tensionamento entre o múltiplo e o uno, o particular e o

geral, o descritivo e o analítico, o local e o global, dentre múltiplas outras formas de

compreensão da complexa trama de interações de fenômenos geográficos, pretendemos, com

este artigo, sugerir uma intricada implicação do sujeito na produção do conhecimento e do

fazer geográficos.

Na qualidade de uma forma geral de nossa representação de mundo, o espaço é,

reconhecidamente, menos um ser da realidade efetiva do que uma categoria do conhecimento,

uma forma de intuição,2 já que não sendo ele próprio um ente é o meio pelo qual se

fundamenta o ser de todas as coisas, esclarece Martins (2007, p. 35). De outro modo, o espaço

cujo sentido deriva da corporeidade dos atores sociais implicados na trama de fenômenos

geográficos, ou seja, o espaço de uma geograficidade propriamente dito, situa-se entre os

domínios do conhecimento e da ontologia, pois é na realidade mesma em que reside um

significado indeterminado cujo desvelamento na experiência corpórea de espacialidade

acarreta em agregação de valor ao conhecimento. Embora remeta a uma gênese do sentido

manifesta numa espacialidade pregnante da experiência corpórea, a apreensão do significado

outrora indiscernível representa uma ínfima parcela da realidade ontológica adquirida a partir

da experiência de um sujeito corporificado, sem com isso concluir que esta apreensão

determine o espaço enquanto ser. Este modo de ser do espaço fundamenta o espaço objetivo

2 Hettner (2011, p. 146) escreve que “o espaço enquanto tal é uma forma de intuição; ele ganha significado real

apenas através de seu conteúdo”.

geográfico através de uma síntese da experiência de múltiplos sujeitos, mas o faz para

revolver a unidade objetiva estática e formal em favor de uma objetividade histórica

franqueada por acréscimos da realidade objetiva até então indeterminada.

Para todos os fins, o espaço enquanto realidade geográfica que ultrapassa nossa

capacidade de apreensão objetiva de mundo é a superfície de contato com o corpo, ele partilha

com o nosso corpo um princípio de conaturalidade, confiando-lhe, portanto, seus conteúdos

indiscerníveis passíveis de serem apreendidos por meio da experiência. Uma vez que a

geografia é dentre todas as ciências a que de forma mais fragrante expõe a totalidade sensível

do mundo, incluindo em seu domínio camadas não discernidas da realidade objetiva pela

inteligibilidade ou mesmo percebidas numa apuração mais pormenorizada, de modo que estas

condições estariam disponibilizadas pelo espaço geográfico enquanto um todo objetivo, então

também é ela, dentre todas as ciências, que talvez melhor permita explorar a defasagem do

sujeito mediante a realidade efetiva do espaço, já que o corpo, condição fundamental desta

possibilidade, mantém com ele certas afinidades ontológicas. Ambos, corpo e espaço,

constituem a condição material de toda possibilidade objetiva em geografia.

Como lembra Hartshorne (1978, p. 180), “a geografia é um campo cuja matéria inclui a

maior complexidade de fenômenos, e, ao mesmo tempo, preocupa-se, mais do que a maior

parte dos outros, com estudos de casos individuais (...). Por essas duas razões, a geografia é

menos capaz do que muitos outros domínios de elaborar e empregar leis científicas”. A

constatação de que a geografia é um campo do conhecimento que se preocupa em conhecer e

compreender casos individuais, herança de uma tradição idiográfica cuja maior expressão é a

individualidade regional de Ritter, decorre diretamente de sua função como estudo dos

lugares.3 Uma vez que a deificação do objeto a uma lei geral e apodítica, como ocorre, por

vezes, com o próprio espaço, corrobora para a elisão do sujeito, logo, não se prender por

completo a tais princípios universais permite alguma margem de contemplação dos sujeitos

implicados nos fenômenos estudados – ainda que a inclinação em prover o discurso

geográfico de uma unidade de sentido concorra para que o sujeito compareça na maior parte

das vezes de forma passiva.

O fato de o conceito de espaço não convergir em parte para uma unidade conceitual

efetiva, repercute em atenuar a produção da intersubjetividade de tipo universalizante em

geografia. Em outras palavras, não há a bem dizer um consenso objetivo acerca do objeto

geográfico, já que são variadas e, em alguns casos, até mesmo conflitantes as concepções de

3 ibid., p. 167.

espaço entre os geógrafos. Sauer (2004, p. 12) observa a este respeito que “enquanto os

geógrafos discordarem em relação ao seu objeto, será necessário, através de definições

repetidas, procurar uma base comum sobre o qual uma posição geral possa ser estabelecida”.

É claro que esta diversidade de objetos geográficos reflete a própria multiplicidade de

fenômenos e conteúdos concernentes ao espaço, de maneira que mesmo um estudo de caso

sobre alguma pequena área poderia incluir uma grande variedade de tópicos.4

Em contrapartida, múltiplas são as subjetividades enredadas na produção epistêmica do

espaço e mesmo em sua reprodução material. A dificuldade em estabelecer esse consenso

deve-se de certo modo à expansão do caráter indiscernível do sujeito, que em parte implica

também uma inconstância do objeto. Atribuir tal diversidade ao caráter indiscernível do

sujeito é, no entanto, somente uma maneira alternativa de lançar luz ao problema, já que não é

ele mesmo o elemento desencadeador desta pluralidade objetiva senão um ingrediente que

consta muito mais como o seu produto, uma vez que só pode ser concebido implicado em

meio aos seus noemas, isto é, os diferentes modos de apreensão objetiva. A geografia é um

campo de produção científica franqueado a múltiplos objetos temáticos, todos reunidos sob o

imperativo do espaço, que por seu teor de permeabilidade e de universalidade admite o

intercruzamento dos mais variados objetos.

As formas com que se apresenta e o seu conteúdo são tão variados, que a tarefa de

incluir em uma unidade de definição uma tão grande multiplicidade fatual surge

como um obstáculo de peso, sobretudo porque, tanto a metodologia cotidiana como

a própria conceituação estão carregadas das múltiplas acepções correspondentes aos

outros tipos de espaço (SANTOS, 1978, p. 120).5

Essa profusão de sentidos acerca do espaço, o objeto geográfico por definição, vai

implicar no estabelecimento de um sujeito tanto quanto mais difuso, já que este está sempre

enredado numa relação de objetividade com o objeto para o qual se inclina. Não é raro que

esta objetivação assuma um tamanho poder de determinação objetiva inversamente

proporcional à indeterminação do sujeito. Sujeito este expresso na plêiade de interpelações

abstratas (sobretudo filosóficas) que intervém no discurso geográfico quando esta objetivação

é, por assim dizer, relativizada, mas sem que se possa efetivamente objetivá-lo. Qualquer

4 Hartshorne, op. cit., p. 28.

5 “(...) os utensílios comuns à vida doméstica, como um cinzeiro, um bule, são espaço; uma estátua ou uma

escultura, qualquer que seja a sua dimensão, são espaço; uma casa é espaço, como uma cidade o é. Há o espaço

de uma nação – sinônimo de território, de Estado; há o espaço terrestre, da velha definição de geografia, como

crosta do nosso planeta; e há, igualmente, o espaço extraterrestre, recentemente conquistado pelo homem, e, até

mesmo o espaço sideral, parcialmente um mistério” (ibid., p. 119, 120).

tentativa de capturá-lo numa unidade inteligível compromete o sincretismo objetivo

geográfico: sua propriedade de tratar de tudo ao mesmo tempo e de nada em especial.6

A afirmação tornada linguagem corrente de que “há tantas geografias quanto geógrafos”

tomada como um expediente de fuga quando se coloca a questão “o que é a geografia?”7 é, se

levada ao pé da letra, absurda, pois ela supõe que cada geógrafo é independente do horizonte

objetivo característico da ciência geográfica dando assim maior vazão às suas respectivas

subjetividades. É óbvio que há um traço de subjetividade que personaliza cada trabalho, mas

daí a admitir que cada geógrafo seria capaz de conduzir individualmente sua narrativa e

produção científica seria da maior incoerência, porquanto comprometeria o estabelecimento

de um quadro de referências metodológicas que autoriza caracterizar um trabalho como

geográfico. O edifício científico geográfico ou de qualquer outro campo de conhecimento

somente é possível em face de um horizonte objetivo comum produto/produtor de um campo

de intersubjetividade. Esta determinação concorre para um arrefecimento da multiplicidade de

representações objetivas e, por conseguinte, para o estabelecimento de um sujeito em especial

(em detrimento de tantos outros), assim como para afirmação de seu caráter passivo.

Toda a assertiva acima poderia ser refutada a considerar a ideia atualmente

predominante em geografia de que o espaço é um produto social ao passo que condiciona a

própria produção social. Discordar desta “lei” seria como assinar um atestado de óbito no

meio acadêmico geográfico, dado o seu poder de cooptação intersubjetiva, comparável a

todos os outros paradigmas geográficos que ao seu devido tempo se impôs como verdade

apodítica, herança, por sua vez, de nossa tradição nomotética. Por mais sensata que seja esta

noção aos nossos olhos, porquanto não a refutamos nem temos meios para tanto, já que é ela

mesma “a cara” da geografia de nosso tempo, há que se reconhecer que o seu caráter

universalista demanda um tipo especial de sujeito segundo uma circunvizinhança muito

específica de subjetividades, ao passo que alija um sem-número de horizontes objetivos

geográficos em potencial. Sob este aspecto, o espaço geográfico é um ponto comum em meio

às mais variadas controvérsias entre os geógrafos. Devemos então concordar com Smith

(1988, p. 122), para quem esta concepção de espaço predominante hoje em geografia “não é

somente grosseira e mecânica na sua elaboração, mas também impede mais discernimento

com relação ao espaço geográfico”; no fundo, prossegue o autor, “isto se deve ao fato de que

a visão da relação entre o espaço e a sociedade permanece presa à concepção absoluta de

6 “Acabamos, por isso, tendo uma multiplicidade tão grande de geografias que justificaria a um espírito irônico

dizer que, nos dias de hoje, há muitas geografias mas nenhuma geografia” (ibid., p. 92). 7 idem, 1996, p. 16.

espaço”, logo, não compreendendo os aspectos múltiplos e heterogêneos concernentes à

subjetividade humana e à própria qualidade sensível do espaço.

Muitas vezes, porém, ao reorientarmos nosso olhar para a multiplicidade, traímos uma

interpretação coerente acerca do real por negligenciarmos o teor mediador (e não exatamente

essencialista) concernente à unidade objetiva pela falta de um rigor dialético. Não é raro que

essa postura assuma, curiosamente, expedientes descritivos, em alguns casos, comparáveis à

leitura idiográfica encetada pelos clássicos. A tradição idiográfica de descrição com base em

aspectos únicos e particulares dos fenômenos e o retardo em encetar avaliações analíticas

entrevendo processos histórico-sociais orientados para um horizonte de totalidade certamente

limitou a multiplicidade de formas acerca dos fenômenos geográficos. Os conteúdos abertos

pelas grandes expedições certamente desencadearam efusões intersubjetivas inéditas,

inaugurando um novo horizonte objetivo geográfico sem paralelo na história. Talvez muitos

desses conteúdos tenham se perdido em razão dos procedimentos descritivos de investigação,

os quais se poderiam atribuir à boa parte da geografia produzida no século XIX e início do

século XX. Para um geógrafo cioso por afirmar o caráter sistemático da geografia, Sauer8

avalia que a leitura analítica acerca desses então novos conteúdos só compareceria após

esgotar-se o entusiasmo suscitados pelas novas descobertas e pela exploração colonial-

imperialista. Esta observação crítica poderia ser estendida a todo fenômeno geográfico cuja

limitação de sentido foi alimentada pelo método descritivo.

Mas o caráter nomotético de objetivação geográfica também perfaz suas limitações,

principalmente em razão da inclinação universalista por vezes atribuída às categorias e a

determinados objetos, reiterando igualmente a limitação da multiplicidade de formas dos

conteúdos do real. Defendendo uma leitura analítica nomotética, os geógrafos alemães Bobek

e Schmithüsen (2004, p. 83) ressaltam que “os objetivos fundamentais da análise geográfica

da paisagem são descobrir a ordem dentro da multiplicidade, decompô-la e explicar com

clareza o emaranhado de relações recíprocas que nela se dá”. No que o faz, a geografia

amputa uma série de possibilidades objetivas acerca da própria paisagem em apreço,

restringindo igualmente os sujeitos recalcitrantes a essa inclinação objetivista. Isto porque o

seu conteúdo oculto fica então encapsulado pelo caráter delimitador e impessoal que a

analítica nomotética requer. A propensão em hipostasiar o objeto como uma verdade ou lei

apodítica, gerando com isso todo tipo de geografismo, é um dos maiores entraves de

reconhecimento dos sujeitos como reais agentes transformadores do espaço. “Esta cosmologia

8 Sauer, op. cit., p. 19.

de „única narrativa‟ oblitera as multiplicidades, as heterogeneidades contemporâneas do

espaço. Reduz coexistências simultâneas a um lugar na fila da história”, concorda Massey

(2008, p. 24).

A despeito destes percalços, o mais emblemático é que a própria realidade material do

espaço contribui para uma restrição de sentido por conceder maior longevidade às formas e

estruturas materiais. Além das limitações inerentes ao sujeito por ocasião da escolha de um

caminho (um método, seja idiográfico ou nomotético, seja positivista, fenomenológico ou

dialético) ou mesmo uma subárea de investigação que lhe permita compreender

coerentemente os fenômenos, o fenômeno também restringe a qualidade essencial de seus

conteúdos, dificultando assim que lhe sobrevenham algumas formas inovadoras. A própria

natureza do espaço no que se refere a uma perenidade pregnante de sua concretude, impõe

uma espécie de inércia ao movimento de produção social por meio das formas herdadas dos

modos de produção precedentes.

A construção de vias modernas de circulação são um exemplo da inércia espacial: as

rodovias construídas paralelamente às vias férreas; as autoestradas que seguem,

aproximadamente, o traçado das rodovias antigas, as pontes que se sucedem no

mesmo lugar, mesmo se as condições naturais não são mais as melhores. E muitos

exemplos da força das condições locacionais do passado.9

O espaço é a expressão mais factual das determinações histórico-materiais de existência,

já que se manifesta como a própria produção social da realidade objetiva (a natureza,

sobretudo). Ora, o espaço é um produto social mas é ao mesmo tempo um dado geográfico

condicionante do acontecer social, não como um a priori que precede a objetivação de seus

conteúdos através de uma intuição sensível, como prescreve o criticismo kantiano, mas sim

por meio das formas legadas da formação socioespacial, do arranjo e da configuração

territorial precedente, do acúmulo histórico de conteúdos na paisagem etc., todos como

condições concretas da atualização das formas-conteúdo no presente. “Pode-se dizer das

formas em geral que elas se metamorfoseiam em outras formas quando o conteúdo muda ou

quando muda a finalidade que lhe havia dado origem”, acrescenta Santos.10

Com a forma

espacial, prossegue o autor, a questão é diferente, “pode-se adicionar-lhe uma outra forma

nova, pode-se adaptá-la, ou então impõe-se destruí-la e substituí-la completamente. Mas neste

último caso já não será a mesma forma”.11

9 Santos, op. cit., p. 132.

10 Santos, op. cit., p. 149, 150.

11 ibid., p. 150.

Em meados da década de 1960, Pierre George (1969, p. 117) descrevia que o trabalho

industrial é uma atividade concentrada e geograficamente fixa. Hoje, porém, podemos afirmar

que o trabalho industrial é em grande parte disperso, para não dizer “flexível”, o que o torna

geograficamente fluído. A redistribuição do capital produtivo e a consequente reestruturação

da divisão internacional do trabalho no imediato após-guerras não se apresentou então a

George e alguns geógrafos de sua geração como um conteúdo discernível de maneira a

suscitar uma forma objetiva. Só um pouco mais tarde, no lapso das últimas três ou quatro

décadas, as estruturas espaciais parecem autorizar um tratamento analítico geográfico à

tradicional noção de “trabalho livre”. O que para a economia política compareceu como forma

objetiva (o trabalho livre), em que pese principalmente as contribuições de Smith, Ricardo e

Marx, só ganharia uma forma objetiva geográfica correspondente bem mais tarde: um lapso

de mais ou menos um século e meio. E ainda que se trate de núcleos conceituais muito

diferentes, poder-se-ia alegar,12

fica claro que esta defasagem poderá sempre ser atribuída à

perenidade ou inércia inerente à materialidade do espaço geográfico.

O espaço como condição do caráter ativo e transformador do homem

É de longa data (pelo menos desde Kant) a ideia de que o espaço, assim como o tempo,

impõe um condicionamento à objetivação dos fenômenos do real. O paradigma geográfico

hodierno reitera o caráter condicionante do espaço, porém não exatamente como um a priori

ordenador da sensibilidade e da cognição acerca dos fenômenos, senão como contrapartida de

ser um espaço historicamente produzido, daí então seu poder de determinação sobre as formas

de objetivação dos fenômenos. “Assim, espaço é atributo do ato de cognição do mundo. Mas

como tal, não é um dado a priori, como queria Kant, e sim algo que emerge como construção

social, um atributo cultural, uma forma de ver e compreender o mundo”, explica Martins.13

Trata-se, a rigor, de um complexo jogo de determinações recíprocas, cuja eventual

polarização em uma das partes (a sociedade ou o espaço, o sujeito ou o objeto) resultaria

numa débil apreensão formal. Ao se restabelecer o tempo (suprimido pelas ciências da

natureza e, sobretudo, pelo método teorético-quantitativo) como um ingrediente estruturador

da produção social do próprio espaço, a materialidade herdada da produção social passada

torna a condicionar a produção social do espaço no presente, numa trama de interferências

mútuas cujo tensionamento acaba por forçar o desvelamento de novas formas-conteúdo

12

A propósito, utilizamos exemplos bem díspares, que de comum só têm o núcleo conceitual da categoria

trabalho, para enfatizar o problema. 13

Martins, op. cit., p. 37.

realimentando todo o ciclo de determinações. Nesses termos, concordamos com Santos14

para

quem “o novo não se inventa, descobre-se”. Ou ainda que “a simples apreensão da coisa, por

seu aspecto ou sua estrutura externa, nos dá o objeto em si mesmo, o que ele apresenta e não

o que ele representa”.15

O espaço geográfico está prenhe de conteúdos informes a serem descobertos ou

apresentados. Conteúdos esses que, para todos os fins, são franqueados ao homem por meio

de um princípio de conaturalidade entre o corpo, sede irredutível de toda experiência sensível,

e o espaço geográfico, domínio material de toda a realidade geográfica. Daí, portanto, a

importância para a compreensão do sujeito a partir do movimento da realidade objetiva de um

autor como Merleau-Ponty, filósofo que em seus últimos trabalhos interpreta o corpo como

um ente cujas propriedades diacríticas são do mesmo estofo sensível da materialidade

mundana,16

como não nos deixa iludir as adaptações técnicas dos mais variados gêneros de

vida sobre a face terrestre. Em termos geográficos, diríamos que o espaço desabrocha

sentidos tornando evidentes conteúdos que até então permaneciam ocultos e forçando a

transformação dos gêneros de vida, isto é, dos modos de existência adaptados às condições

materiais por ele impostas.

Reclamar um sujeito no âmbito da produção geográfica não significa de modo algum

restituir o velho discurso da relação homem-meio, pelo menos não da maneira ingênua como

esse tema vem sendo abordado pelo discurso ambiental e pela perspectiva holista hodierna,

embora seja quase uma unanimidade entre os geógrafos que o seu campo de estudo abranja o

conjunto da complexa rede de fenômenos humanos e naturais. Não consiste também em

apenas atestar a participação ou não-participação do homem na edificação do conhecimento

geográfico. Ela é já um fato consumado: uma vez evidenciada esta participação, trata-se de

avaliar o seu caráter criativo ou mesmo passivo, se for o caso. Para todos os fins, não é

propriamente o homem como uma unidade geral (um fator antrópico ou a humanidade) que

autoriza compreender o sujeito enredado nos fenômenos geográficos,17

senão o homem na

qualidade de um agente transformador do espaço enquanto uma condição prática de sua

existência material e de sua consciência. É o caráter transformador do homem, o que lhe

qualifica como um sujeito ativo, que interessa-nos sublinhar.

14

Santos, op. cit., p. 1. 15

ibid., p. 69. 16

A propósito, cf. Merleau-Ponty (2005). Por materialidade estamos aludindo a uma concepção científica de

matéria, isto é, ao que grosseiramente se convencionou associar ao concreto e ao corpóreo, e não à sua

concepção filosófica. 17

Aliás, é esta concepção abstrata de homem que autoriza equívocos retóricos e despolitizados como a alegação

de que “o homem está destruindo a natureza” ou da sua intervenção nos ciclos de transformação da matéria

qualificada como um “fator antrópico”.

Esse caráter criativo e transformador do homem se encontra, por correspondência a uma

objetividade que o institui como sujeito, num domínio tênue entre a objetividade determinada

(o fenômeno) e uma objetividade potencialmente factível. Um passo à frente da coisa

(enquanto um dado indiscernível do real), já que corresponde aos conteúdos negligenciados

na própria experiência do sujeito, e não na abstratividade da realidade numenal. Por algum

motivo, não raro atrelado a uma ordem ideológica constituída, não se atribui esta qualidade a

uma ou outra forma objetiva senão à forma que melhor atende aos interesses dos grupos ou

classes dominantes. Santos18

percebe que “o objeto é o resultado de determinações paralelas e

concomitantes da estrutura nua e da ideologia”. Portanto, esta estrutura nua (sobretudo, o

conteúdo coisificado) não é totalmente despida dos condicionamentos históricos acerca dos

quais o sujeito, enquanto agente transformador, e não somente idealizador, está implicado.

Negar a ideologia, como algumas correntes geográficas costumam fazer, só confirma

seu poder assaz determinante, concorrendo para essa constatação narrativas tanto mais cínicas

quanto mais sutis. De outro modo, a variedade de apreensões perceptivas estaria de certo

modo amarrada por um laço que unifica muitas das efusões subjetivas acerca de um

determinado conteúdo, atribuindo-lhe assim uma forma objetiva. A intersubjetividade não se

dá, portanto, como mera manifestação tética do espírito coletivo, ela supõe como condição a

produção social e a consequente transformação da sociedade. E uma vez que o sujeito

derivado desse movimento consiste num sujeito corporificado, a intersubjetividade comparece

sempre como corporeidade, expediente metodológico este que deixa margem a uma

progressiva apreensão daquela variedade perceptiva não endossada na experiência a título de

objetivação – exatamente esta a parcela sobressalente dos conteúdos informes do espaço. Ou

seja, o fato do sujeito estar subjacente à corporeidade o compele a uma progressiva

objetivação da realidade em derredor, já que o corpo é do mesmo estofo sensível das

estruturas existenciais as quais se encontra implicado.19

Este dado abre perspectivas para a compreensão da apropriação dos conteúdos

indeterminados do espaço a partir da própria objetivação dos fenômenos geográficos,

expediente este que não se reduz a uma apropriação formal dos conteúdos em função do

concurso do sujeito corporificado no edifício de objetivação. Vidal de La Blache (2002, p.

146) escreve que “uma necessidade do espírito nos incita a restituir o detalhe isolado, por si

mesmo inexplicável, a um conjunto que o esclarece”. Isto não significa que o sujeito, a

despeito de sua corporeidade constitutiva, detém completo poder de determinação sobre a

18

Santos, op. cit., p. 69. 19

Merleau-Ponty, op. cit., passim.

objetividade geográfica, ele seria antes um dado mediador da objetividade. Lefebvre (1991, p.

176) argumenta, a propósito, que o sujeito não acrescenta absolutamente nada de essencial ao

conteúdo objetivado. A forma atribuída ao conteúdo pelo sujeito é nada mais que um sentido

provisório em direção ao seu significado efetivo. No que ele atribui ao conteúdo uma forma

específica limita-a, desde logo, a uma aparência momentânea da essência da coisa. Merleau-

Ponty (1999, p. 148) concorda que “se o conteúdo pode verdadeiramente ser subsumido sob a

forma e aparecer como conteúdo desta forma, é porque a forma só é acessível através dele”, e

não por determinação de uma inspeção subjetiva. Concorre para este edifício um campo

intersubjetivo que envolve o plano da ideologia, da alienação das qualidades criativas dos

sujeitos, das relações de poder (inclusive de poder dizer, poder significar), e não exatamente

um sujeito isolado em sua subjetividade mesma. A partir de uma espécie de triagem

intersubjetiva, o sujeito atribui uma forma objetiva aos fenômenos geográficos com os quais

se depara na medida em que seus conteúdos se apresentam ao seu discernimento, pelo que lhe

facultaria sua própria experiência prática, uma vez reunidas as condições histórico-materiais

para tanto. Essa determinação permite que a forma-conteúdo aparente se expresse como o

próprio real, isto é, como um modo de ser do todo ontológico ou ainda como um ser social,

comparecendo, em todo caso, como um objeto pretensamente universal.

Para todos os efeitos, o espaço secreta muitos conteúdos cujas formas objetivas não

compareceram ainda ao discernimento dos sujeitos implicados em sua incessante reprodução

social, seja por questões ideológicas, por relações assimétricas que permeiam a

intersubjetividade, seja por não fazerem sentido algum à inteligibilidade em dada conjuntura

paradigmática. A relação dialética entre a forma provisória e o conteúdo objetivado se dá

sobre um “fundo”, isto é, uma miscelânea de conteúdos informes passíveis de serem

objetivados consistindo num plano abstrato por não aludir à concretude da forma-conteúdo.

“(...) essa lacuna irredutível entre o sujeito e seu „fundo‟, o fato de o sujeito nunca se encaixar

inteiramente no ambiente, nunca estar inteiramente embutido nele, define sua subjetividade”,

reconhece Žižek (2008, p. 68).20

Entretanto, não é exatamente o fundo e seus conteúdos

indetermináveis ou uma existência em potencial que permitem uma reapropriação objetiva de

maneira a autorizar entrever o caráter transformador do sujeito, senão um fundo em que

estariam alocados determinados conteúdos concernentes à sua própria experiência e que por

algum motivo não foram aproveitados a título de objetivação. Um conteúdo acerca do qual

não se atribuiu uma forma objetiva, menos, porém, por constar como uma “coisa-em-si” que

20

Na mesma linha, Maffesoli (1998, p. 87, 88) considera que “a forma exprime a intensidade de uma existência

e, ao mesmo tempo, admite a inexistência da potência, isto é, daquilo que poderá, algum dia, advir à existência”.

por ter sido reificado (coisificado) no processo de produção social do espaço, o que estamos

chamando de conteúdo protofenomenal. Trata-se de uma faixa marginal da experiência

corpórea para onde é relegado tudo quanto é contingente, aleatório, inconstante ou tudo que,

no fenômeno, não é submetido a um ordenamento por meio de um princípio ou lei

fundamental. Daí por que Merleau-Ponty (1999, p. 147) vai sustentar que “no que concerne à

espacialidade (...) o corpo próprio é o terceiro termo, sempre subentendido, da estrutura figura

[forma] e fundo, e toda figura se perfila sobre o duplo horizonte do espaço exterior e do

espaço corporal”. O sujeito corporificado é assim um requisito, um dado mediador, para que a

forma compareça como uma aparência sempre provisória no curso da apropriação objetiva do

espaço geográfico.

Com efeito, esta plataforma objetivo-sensível, muitas vezes radicada na própria

experiência dos sujeitos sociais, de uma maneira ou de outra (geralmente, impulsionada pelas

contradições na ordem do acontecer social) força o seu desvelamento como forma-conteúdo

na teoria espacial. O esvaziamento político que Lacoste (1997, p. 33) põe em causa ao

denunciar o descrédito de uma geografia enfadonha e desinteressante, a “geografia dos

professores”, confrontada com a geografia hegemônica dos Estados Maiores mediante a

omissão academicista é uma das manifestações mais contundentes deste desvelamento de

conteúdo. Lacoste está fazendo crítica a uma geografia aplicada institucionalizada típica do

modelo fragmentário neopositivista. Sua proposta, reação a este modelo, tem todos os

requisitos para a implementação de uma teoria do sujeito, a considerar a noção de

espacialidade diferencial. Conceito este que admite uma diversidade de representações

espaciais de dimensões e conteúdos variados, correspondente a uma multiplicidade de

fenômenos e práticas sociais. No horizonte objetivo da espacialidade diferencial, no seio da

qual o olhar especializado sucumbe à dialética do uno e do múltiplo, a paisagem (que num

contexto positivista de apreensão dos fenômenos era o eixo articulador da fragmentação

positivista: geomorfologia, climatologia, demografia etc.) passa a acolher a diversidade

segundo os mais variados gêneros de classe dos fenômenos.

A espacialidade diferencial é, sem dúvida, uma das contribuições teóricas mais ricas em

termos de possibilidades de apreensão dos sujeitos, pois materializa espacialmente o caráter

multifacetado dos sujeitos implicados na profusão de fenômenos geográficos permitindo

entrever o domínio objetivo sem que desapareça o subjetivo, plano por excelência da

multiplicidade aventada por Lacoste. O aspecto geográfico mais fragrante desse desembaraço

objetivista é, talvez, a renovação do método regional, de vez que os lugares passam a ser

trespassados por uma variedade de escalas espaço-temporais que interage não somente o local

e o global, mas também o particular e o todo, o idiográfico e o nomotético, o corpo e o espaço

e daí por diante num cruzamento de formas-conteúdo que complexifica e dinamiza a realidade

geográfica, misturando a aparente homogeneidade da escala de origem (o domínio das

decisões) à fragmentação e pluralidade da escala de impacto das ações (SANTOS, 1996, p.

121), dando o tom de uma espacialidade diferencial fluida e descontínua.

A ideia de diferença aparece (de forma mais sistematizada) em geografia21

inicialmente

como um expediente metodológico resumindo-se a uma variação corológica. Introduzida e

adaptada por Hettner para empreender um exame comparativo de diferenciação de áreas,22

foi em seguida aproveitada por Hartshorne que incorporaria, inclusive, seu caráter de variação

corológica. Aqui, o método regional assume um atributo epistemológico quando assume

efetivamente a diferença como fator preponderante da dialeticidade entre o particular e o

geral, não por acaso Hartshorne23

compreendia uma redundância lógica entre as noções de

diferença e similaridade. Ainda que não assuma explicitamente, o procedimento utilizado por

Hartshorne está eivado de uma dialética que confronta o idiográfico e o nomotético, o

particular e o todo – estas oposições subsumindo-se por conseguinte ao método regional.

Reclamar a diferenciação de áreas é, para Hartshorne, uma forma de reafirmar a região como

síntese de múltiplas variáveis geográficas.

A diferenciação que ora enfatizamos é uma alusão a performances somático-espaciais

que retoma e desloca o sentido daquela noção corológica aludida por Hartshorne em face do

horizonte espacial do sujeito corporificado, pendendo mais para o sentido que Lacoste

atribuiu à noção de espacialidade diferencial ou ao conjunto de considerações interescalares

que entrecruza o local e o global e algumas outras formas correlatas que mais recentemente

Massey (2000, 2008, passim) vem tecendo acerca da diferença em largo sentido para a análise

geográfica.

A experiência da corporeidade conjunta dos sujeitos reserva à trama da espacialidade

diferencial o friccionamento entre os aspectos fenomenais e os aspectos refratários e

acidentais da síntese objetiva resultante, isto é, a passagem da coisa ao objeto, do espaço per

21

“(...) se examinarmos as definições de outras ciências, podemos concluir, por analogia, ser supérfluo afirmar

que a geografia estuda „diferenças‟. Todas as ciências consistem no estudo de diferenças” (HARTSHORNE, op.

cit., p. 22). 22

Uma avaliação prematura e concisa atribuiria a Hettner o mérito de ter legado à posteridade e sobretudo a

Hartshorne o método de diferenciação de áreas. Tudo não passaria de um lamentável equívoco assumido pelo

próprio Hartshorne por ter divulgado em A Natureza da Geografia, de 1939, um erro de tradução cometido por

Sauer em seu texto clássico A Morfologia da Paisagem, de 1925, a partir dos originais de Hettner. A propósito,

cf. Hartshorne (op. cit., pp. 13-22) e Hettner (op. cit., p. 139), especialmente a nota do tradutor acerca deste mal-

entendido. 23

Hartshorne, op. cit., p. 18.

se ao espaço geográfico ou à espacialidade, no sentido que lhe confere Soja (1993, passim). A

espacialidade diferencial implica uma sobreposição das mais diversas representações ou

dimensões de fenômenos espaciais de modo que sobressaia um horizonte objetivo como

síntese da confrontação das mais diversas dimensões diferenciais em jogo, tanto no que se

refere ao eixo transversal das diversas ordens de grandeza geográficas como dos aspectos

qualitativos que lhe prestam subsídios. Se hoje muitos fenômenos podem ser multi-

interescalares, como admite Lacoste,24

também os sujeitos neles implicados assumem esta

projeção plural. Mas é claro que não é propriamente o ator social quem determina esse caráter

pluriescalar, senão sua implicação em relações ou fenômenos que demandam este “vai-e-

vem” de escalas. Não devemos esquecer que a escala é um expediente analítico, um recurso

metodológico que aguça nossa percepção acerca da complexidade do mundo. É preciso

discernir, contudo, que a multiplicidade é tributária da unidade e vice-versa, não somente no

plano analítico ou tético, mas também e principalmente como expressão de práticas concretas

reais.

Uma vez que cada sujeito, cada indivíduo, carrega a potencialidade de obter uma

percepção própria acerca de um fenômeno geográfico qualquer que seja, o espaço, na

qualidade de um meio agregador de todos os fenômenos (reflexo de seu poder de cooptação

intersubjetiva), torna-se o ponto focal comum a cada um deles. O eixo de intersecção ou

interação é exatamente o fenômeno espacial tornado objeto a partir da experiência

intersubjetiva. No contraste ou diferença entre cada campo prático ou de presença, cada

recorte espacial, cada objeto geográfico de análise se potencializa com a reabsorção do

sentido diferencial até então olvidado na própria experiência de objetivação. A possibilidade

de poder partilhar tais impressões com outrem por meio de perfis perceptíveis diferenciados é

que dá o tom da intersubjetividade corpórea. Tudo isso por entremeio da relação de base

corológica, a localização dos fenômenos geográficos e a situação histórico-geográfica dos

agentes produtores do espaço corporalmente enredados na trama da geograficidade.

O que a diferença nos conclama a discernir em termos de apreciação dos fenômenos

geográficos é, dentre outras possibilidades, a profusão de conteúdos que não se apresentara à

consciência a título de forma objetiva.

24

Lacoste, op. cit., passim.

O desvelamento dos conteúdos informes do espaço

A realidade geográfica é, com efeito, um dos horizontes objetivos do homem que, por

conta dos conteúdos informes e indeterminados do espaço, melhor exprime e inspira a

retomada ampliada da consciência, já que ele é condição de toda reprodução social. Assim

nos confirma Besse (2011, p. 126), para quem “a geografia não tem outra vocação que não

seja a de recordar infatigavelmente aos homens a contingência irremediável das situações com

que se defrontam e a responsabilidade irreversível diante dos fatos”. O espaço é uma das

principais fontes de efusões subjetivas dos sujeitos dada suas características estruturais como

condição de produção social bem como de enraizamento cultural, como prescreve o

paradigma geográfico atual. Como observa Massey (2008, p. 15), “o espaço é uma dimensão

implícita que molda nossas cosmologias estruturantes. Ele modula nossos entendimentos de

mundo, nossas atitudes frentes aos outros, nossa política. (...) E isso é ao mesmo tempo um

prazer e um desafio”. Ora, ele é justamente um desafio porque supõe um conteúdo objetivo

que naturalmente transcende qualquer encapsulamento conceitual. É essa transcendência, uma

vez que traz implicado um sentido depreendido, que autoriza compreender os aspectos

criativos e transformadores do homem.

É sempre curioso constatar como alguns geógrafos, notadamente os clássicos da

literatura geográfica, foram capazes de antever o essencial de uma objetivação de conteúdos

geográficos sempre crescentes e o quanto ela influencia os modos de existência. Vidal de La

Blache, por exemplo, a despeito de restringir os fenômenos geográficos a um quadro de vida

regional e do teor ideológico-imperialista então implícito, tinha esta determinação geográfica

potencialmente objetiva em conta:

À luz das causas gerais em que o modo de ação se deixa apreender, as afinidades

foram reconhecidas como sendo mais numerosas, ao mesmo tempo em que melhor

fundadas. (...) Assim, quanto mais as páginas se multiplicam no estudo da Terra,

mais se percebe que elas são folhas do mesmo livro. Eu acrescentaria que, desse

ponto de vista, toda uma ordem de relações novas se abre ao espírito.25

Embora Vidal de La Blache não endossasse abertamente esta progressão objetiva dos

conteúdos geográficos como contrapartida e expressão da própria autoprodução humana (sua

narrativa é qualificada por vezes como descritiva pela leitura desatenta de seus textos), esta

conotação estava, em última análise, incluída implicitamente em seus postulados.

25

Vidal de La Blache, op. cit., p. 146.

Max Sorre (2003, p. 142) admitia que o geógrafo deve sempre manter um “critério de

disponibilidade”. Em face da contingência humana, recomendava ao mesmo tempo não

subestimar a pressão do meio, “porque junto ao campo de possibilidades encontram-se

também as parcelas veladas”.26

Ora, não é exatamente este o ponto em que estamos

insistindo? Ecologia, complexidade, interdisciplinaridade, sociabilidade são algumas dos

variados temas empregados por Sorre para entrever a unidade geográfica e até mesmo a

unidade humana, antecipando alguns debates que aguardariam por, pelo menos, meio século

para se consolidarem como consenso intersubjetivo, embora ainda deixem a desejar se

comparados à prolixa narrativa de Sorre. A ideia de ecologia em Sorre, por exemplo, agrega

um sentido mais amplo do que se convencionou atribuir à dinâmica dos ciclos naturais no

discurso ecológico atual, pois compreende mesmo uma “antropologia somática” que congrega

atributos humanos, físicos e biológicos numa trama de complexos geográficos em que o

homem não se limita a um mero “fator antrópico”.

Carl Sauer é, a exemplo de Max Sorre, outro autor clássico da geografia que tomaria

partido de questões ecológicas bastante avançadas para o seu tempo. Em um estudo intitulado

The Agency of Man on the Earth, Sauer conclui que “o homem necessita de uma ética e uma

estética que possibilitem que as gerações do presente possam legar as do futuro uma terra

habitável” (CORRÊA, 2001, p. 18). O geógrafo norte-americano anteciparia assim o conteúdo

de uma noção ecológica que somente algumas décadas mais tarde se apresentaria na forma

conceitual do “desenvolvimento sustentável”.27

Tendo um apurado discernimento acerca dos

aspectos contingentes dos fenômenos geográficos, Sauer28

considerava que

o que quer que seja místico é uma abominação. Entretanto, é significativo que

existam outros, e entre eles alguns dos melhores que acreditam que, tendo

amplamente observado e catalogado de forma diligente, ainda existe uma qualidade

para ser compreendida em um plano mais elevado que não pode ser reduzido a um

processo formal.

Certamente Sauer reconheceria Hettner dentre alguns dos “melhores” de que faz

menção. O geógrafo alemão considerava que “a geografia grava os fatos individuais não

apenas no momento em que reconhece sua condicionalidade geográfica, mas (...) facilmente

pode acontecer que ela deva mencionar fatos cujas conexões causais ainda lhe são

26

ibid. 27

O conceito de desenvolvimento sustentável foi inicialmente formulado em 1987 por ocasião da elaboração do

Relatório Brundtland (intitulado Nosso Futuro Comum) pela então Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e

Desenvolvimento, criada em 1983 no âmbito da Organização das Nações Unidas. 28

Sauer, op. cit., p. 61.

obscuras”.29

Esse caráter sobejo dos conteúdos da realidade geográfica também remonta a

uma preocupação de Hartshorne30

em identificar “a medida de significância em geografia”, o

que o levara a admitir ser “impossível estudar o conjunto total de fenômenos significantes da

geografia de uma área”.31

De acordo com o geógrafo norte-americano, “a geografia não pode

apresentar todos os fatos de uma área, do mesmo modo que a história não pode registrar tudo

que houver ocorrido”.32

O autor afirmava com grande convicção que “um grande número de

fenômenos que são importantes para o homem nunca serão cabalmente explicados em termos

de causas antecedentes, porque certos fatores essenciais inevitavelmente escapam ao nosso

conhecimento”.33

Levantar a variação dos fenômenos numa mesma área, comparando-os entre

si para, por fim, também comparar áreas entre si segundo algumas categorias de fenômenos

similares e/ou mesmo diferentes, como propõe Hartshorne, não é a mesma coisa que entrever

o desvelamento de novos conteúdos desses fenômenos ou mesmo de algum novo fenômeno.

Não obstante, esta possibilidade só pode ser aventada a partir dos fenômenos já situados,

herdados pela produção social passada. Com efeito, o cotejamento das diversas características

dos fenômenos de uma mesma parcela do espaço desperta, mais cedo ou mais tarde, a atenção

para um ou outro conteúdo até então não considerado à guisa de objetivação dos fenômenos.

Obviamente, esta propriedade de antecipar (ou pelo menos ter em conta) alguns

conteúdos informes do espaço não é privativa dos clássicos. Não faltariam geógrafos de nossa

geração que deram importantes contribuições neste sentido. Doreen Massey (2008, p. 144),

por exemplo, partilha a ideia de que “o espaço nunca pode ser definitivamente purificado. Se

o espaço é a esfera da multiplicidade, o produto das relações sociais, e essas relações são

práticas materiais efetivas, e sempre em processo, então o espaço não pode ser fechado,

sempre haverá resultados não previstos, relações além, elementos potenciais de acaso”. Para a

referida autora,

o espaço jamais poderá ser uma simultaneidade completa, na qual todas as

interconexões já tenham sido estabelecidas e no qual todos os lugares já estão

ligados a todos os outros. Um espaço, então, que não é nem um recipiente para

identidades sempre já constituídas nem um holismo completamente fechado. É um

espaço de resultados imprevisíveis e de ligações ausentes. Para que o futuro seja

aberto, o espaço também deve sê-lo.34

29

Hettner, op. cit., p. 149. 30

Hartshorne, op. cit., p. 39. 31

ibid., p. 128. 32

ibid., p. 41. 33

ibid., p. 165. 34

ibid., p. 32.

Parece evidente que essa agregação de significados aos fenômenos geográficos e até

mesmo o desvelamento de novos fenômenos, seja lá qual o meio que se utilize para apreendê-

los, varia em função do tempo, na medida em que esta progressão é, de certa maneira,

condicionada por um processo de objetivação do real sempre crescente. Mas não se trata de

um processo cumulativo no seu todo, em muitos casos os avanços ocorrem a partir de radicais

rupturas. Uma vez identificados os conteúdos implícitos aos fenômenos, dado esse

concernente à própria experiência e não a uma elucubração meramente abstrata, eles passam a

nos colocar novos problemas e desafios, permitindo inferir uma nova teoria capaz de

representar, porém sem jamais esgotar, a essência objetiva do real geográfico.

Embora pudéssemos continuar arrolando uma série de outros depoimentos acerca dos

conteúdos informes do espaço na visão dos mais importantes geógrafos tanto do passado

quanto do presente, cumpre discernir que na maior parte dos casos essa identificação não era

mais que tangenciada, muitas vezes intuitivamente reforçada. Comprova-o a evidência de que

seus respectivos objetos de estudo, por mais variados que fossem, atenuavam, por fim, as

potencialidades objetivas do espaço, e não poderia ser diferente: Vidal de La Blache e Sauer

são exemplos paradigmáticos quanto a esta observação, mas de modo algum seriam os únicos.

Estes aspectos contingentes aparecem aqui e alhures nas obras desses autores, muitas vezes de

forma velada e sem ganhar destaque no interior de suas démarches. Ao destacarmos o núcleo

conceitual de seus postulados não encontramos tais conteúdos senão a partir de uma leitura

seletiva acerca dos aspectos retóricos muitas vezes decorativos e aparentemente irrelevantes

que orbitam em torno de suas teses centrais. Esta observação, obviamente, não lhes inflige

qualquer demérito. Foucault (2008, p. 50) escreve que “não é fácil dizer alguma coisa nova;

não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se

iluminem e, na superfície do solo, lancem sua primeira claridade”.35

Por isso, o desvelamento

objetivo de novos conteúdos é um acontecimento extraordinário na ordem do saber – por

vários motivos, mas principalmente por explicitar o caráter criativo do homem, sua qualidade

de sujeito.

Poucos geógrafos tiveram a real compreensão desta extensão ao vir-a-ser geográfico (a

uma consignação objetiva, se preferir) por meio do desvelamento dos conteúdos informes do

35

Parecendo concordar com o filósofo francês, Feyerabend (2007, p. 264) escreve que “esclarecer os termos de

uma discussão não significa estudar as propriedades adicionais e ainda desconhecidas do domínio em questão

das quais se precisa para torná-lo inteiramente compreendido, mas significa preenchê-los com noções existentes

tiradas do domínio inteiramente distinto da lógica e do senso comum, preferivelmente ideias observacionais, até

que eles próprios aparentem ser comuns (...). Ora, construir uma nova visão de mundo e uma linguagem nova

correspondente é um processo que toma tempo, tanto na ciência quanto na metaciência”.

espaço enquanto expressão das qualidades criativas do homem quanto Armando Corrêa da

Silva (2000, p. 13, 14). Vejamos:

o espaço transpassa o objeto, o envolve, apresenta-se como campo de forças e é

inerente a ele, que o transporta consigo, modalidades de especialidade de que o

espaço em geral é ainda fenômeno desconhecido da ciência, em que pese a ilusão

promovida pela gravitação. (...) O devir passa por ter a si mesmo como sujeito, como

complemento da liberdade social. Isso significa dominar o pensado e o dado;

significa libertar-se das determinações – como esforço mais do que de simples

abstração – e, ainda, propor-se o além da sobredeterminação, instante em que o

metafísico ganha sentido. Porque apreender o metafísico é alcançar a humanização

de si mesmo, sem o que o ser continua exterior ao sujeito.

Tomemos um exemplo para melhor ilustrar o que Silva pretende dizer com “apreender o

metafísico é alcançar a humanização de si mesmo”. O conteúdo geográfico expresso nos

fluxos das redes globais multifacetadas só recentemente (há mais ou menos quatro décadas)

tomou uma forma objetiva, com ela reestruturando-se gradativamente todo o arcabouço

teórico-conceitual da geografia. Praticamente todos os conceitos operativos em geografia

foram reorientados em função da transversalidade de uma correlação de forças atuando em

escala global e dos fluxos de vetores externos que tendem a subordinar os fenômenos e atores

enredados nas escalas de menor vulto, notadamente a local, a escala de impacto das ações

(SANTOS, 1996, p. 121).

Uma primeira avaliação se precipitou em anunciar a região como um “conceito-

obstáculo”, reivindicando, com o seu aparente recuo, a falência do projeto unitário em

geografia;36

em decretar a emergência de epifenômenos como o “não-lugar” enquanto um

espaço sem identidade singular ou algum tipo de relação, senão solidão e similitude (AUGÉ,

1994, p. 22); em reclamar a degeneração do território mediante a abertura de fronteiras aos

fluxos de informação, capital, trabalho e finanças (CASTELLS, 1999, passim), trazendo a

reboque uma crise do território enquanto suporte de uma identidade política cidadã cada vez

mais franqueada a uma identidade étnica (BADIE, 1995, passim); em promulgar a “morte da

paisagem” (ROGER, 1991, p. 14), porquanto o perspectivismo, enquanto raiz da apropriação

objetiva da paisagem, estaria supostamente comprometido pela difusão de uma “cultura

única”; em alardear o “encolhimento” do mundo e do espaço mediante uma compressão

tempo-espaço, como recomenda Harvey (1989, p. 219); e até mesmo em sugerir substituir o

espaço pela ação na qualidade de objeto geográfico mediante um suposto “desencaixe” do

sujeito num contexto de modernidade tardia, como ocorreu que fosse a Werlen (2000, p. 15).

36

Lacoste, op. cit., pp. 59-66.

Todo um discurso se orienta, então, na tentativa de desconstruir as representações

concernentes às estruturas espaciais mais perenes, estáveis e passiveis de delimitações. As

mais variadas dimensões do espaço em suas propriedades zonal, localizacional e corológica

passam a ser o principal alvo dessa crítica.

Não demorou muito, porém, e este diagnóstico se mostrou inconsistente. A partir do

concurso das redes de fluxos globais o lugar, a região, o território e outros recortamentos

espaciais ganharam um novo dinamismo, passando a ser mobilizados a partir de complexas

relações que conciliam, ao tempo que confrontam, variáveis locais e internacionais. Uma nova

coerência regional agrega uma combinação de lógicas zonais e reticulares (redes ou fluxos),

remetendo à ideia de “rede regional” (HAESBAERT, 2010, p. 144), além de múltiplas

variáveis e vetores suscitando uma noção mais híbrida de espaço, ainda que, na maior parte

dos casos, a correlação de força suscitada ocorra de maneira dissimétrica em favor dos vetores

externos e em detrimento dos atores que atuam ao nível das escalas de impacto das ações. A

contrapelo de uma “espacialização pós-moderna” que reduz o espaço à mera distância,

tornando-o sujeito à aniquilação pelo tempo e pela velocidade dos fluxos, emerge uma

concepção de espaço que, no dizer de Massey (2008, p. 139, 141), é muito mais do que

distância, localização, confinamento, simbolismo..., ele “é a esfera das configurações de

resultados imprevisíveis, dentro de multiplicidades”. Ao invés do espaço geográfico se

esvanecer, como previam os prognósticos mais delirantes, ele ganha um novo alento, novos

recursos, em última análise, fortalece-se seu poder de determinação da reprodução social.

“Mobilidade e fixidez, fluir e assentar, um pressupõe o outro. (...) O ímpeto de movimento e

mobilidade, para um espaço de fluxos, só pode ser alcançado através da construção de

estabilizações (temporárias, provisórias). (...) Isto não é a aniquilação do espaço, mas uma

reorganização radical dos desafios que a espacialidade coloca”.37

Naturalmente, o horizonte objetivo nascido desses novos conteúdos do espaço vem

instituindo novas subjetividades e impondo novas posturas aos sujeitos, sobretudo aqueles

afeitos a uma vida regrada pelo arrabalde local e a uma economia de subsistência, obrigando-

os a abrir mão de suas inclinações provincianas para se tornarem cidadãos do mundo –

entenda-se por isto, não somente usufruir de direitos modernos, mas principalmente exercer

deveres (inclusive no plano moral) ao converterem-se em força produtiva ou reserva de

mercado numa divisão do trabalho global. A ampliação da divisão do trabalho a uma escala

planetária faculta a que as variáveis e vetores que incidem sobre o sujeito, seja o indivíduo

37

ibid., p. 144.

seja o grupo na qualidade de classes sociais ou gêneros de vida de regime comunitário, como

dão testemunho muitas comunidades camponesas e indígenas, tenham implicações, tanto em

termos práticos quanto no plano tético da consciência, num complexo de determinações

geográficas que varia das implicações locais às globais. Isto torna a realidade geográfica

muito mais complexa do que quando, num passado não muito distante, as variáveis

limitavam-se à escala local ou quando muito à nacional, sem que, contudo, houvesse uma

articulação explícita entre as mesmas. O que constava apenas como uma virtualidade, uma

“metafísica” no dizer de Armando Corrêa da Silva, como mencionado acima, converte-se

numa condição geográfica da própria reprodução social, evitando-se assim em parte que “o

ser continue exterior ao sujeito”.

Considerações finais

A geografia é um campo de apreensão dos fenômenos do real que, por mais que nos

inclinemos a circunscrevê-los e delimitá-los, submetendo-os a leis, normas e doutrinas, por

mais que nos esforcemos em abarcar o seu potencial objetivo, ainda que se eleve seu

significado a uma valoração universal e apodítica, não somos capazes de esgotá-los, pois o

espaço, seu objeto mais expressivo, secreta uma gama variável de conteúdos e sentidos acerca

dos quais não é possível nos assenhorar. A constatação de que a geografia ocupa-se tanto de

aspectos ou fenômenos gerais quanto de acontecimentos particulares, reiterando sempre que

possível a tradição nomotética e idiográfica fundante de sua institucionalização como ciência,

conduz a um friccionamento constante e involuntário, por parte do pesquisador, condicionado

pelas propriedades diacríticas e contingentes do espaço. A alusão à contingência e ao fortuito

não significa aceitar que as determinações histórico-sociais da produção do espaço seriam

abreviadas por (uma) ordem do acaso, pois todo acaso e contingência supõem riscos e

esperança de êxito, elementos históricos fundamentais. Esta contingência é fonte de uma

irresoluta implicação do sujeito nos fenômenos geográficos.

O fato é que a objetivação dos conteúdos espaciais compreende, ainda que de modo

indireto e não muito evidente, alguns conteúdos informes do espaço, como demonstram

alguns dos mais influentes autores da literatura geográfica. A consequente atribuição de

formas objetivas a esses conteúdos até então indeterminados nos fornece um importante

indicativo do sujeito em geografia. O progressivo preenchimento dessas lacunas

protofenomenais implicaria assim na efetiva reprodução do conhecimento e até mesmo do

fazer geográfico. Arriscamos dizer, inclusive, que não há um texto de geografia sequer que

não traga em seus postulados, ainda que involuntariamente por parte de seus autores, margem

para se depreender reapropriações objetivas de novos conteúdos do espaço e, por conseguinte,

brechas para aludir a implicação do sujeito neste desvelamento.38

Mesmo um estudo de caso,

qualquer que seja o objeto em apreço, é um convite a transpor os limites deliberadamente

impostos pelo autor. Não porque os geógrafos tenham algum tipo de clarividência ou que os

sujeitos enredados nessas aberturas sejam determinantes das mesmas, mas, antes, porque sua

referência maior, o espaço, é a condição histórico-material (e não uma condição a priori) sem

a qual não haveria sequer um sentido.

Desembaraçando-se parcialmente da inclinação objetivista que o instituiu, o método

regional, 39 de certa forma, autoriza a aludida concessão ao sujeito na atual conjuntura teórico-

metodológica geográfica, de vez que reordena um conjunto de forças, sentidos e afetos que se

manifesta numa implicação mediadora em relação ao todo de possibilidades geográficas (sem

a qual se inviabilizaria seu caráter analítico e mesmo sua atualidade) no interior do qual reside

o desvelamento dos aspectos criativos do homem. O caráter tópico e descritivo do método

regional o confirma como estudo idiográfico, herança de nossa tradição corológica. Porém, a

necessidade de aplicá-lo a alguns fenômenos, cuja compreensão ultrapassa a escala

meramente perceptiva e descritiva, supõe expedientes nomotéticos de generalização, e aqui

também a corologia assumiria um papel salutar.

A própria indefinição de um consenso conceitual acerca do objeto geográfico, ainda que

o identifiquemos taxonomicamente como “espaço geográfico” (sem, contudo, reduzi-lo a uma

forma objetiva definitiva), aponta para um indício de compreensão do sujeito, de vez que

concorre para uma multiplicidade de apropriações objetivas. Ora, ser “menos capaz do que

outros domínios de elaborar e empregar leis científicas”, como parece lamentar Hartshorne,40

não é bem um demérito quando o cientificismo passa a ser o principal alvo de crítica num

contexto de revalorização do conhecimento. O teor proteiforme e contingente do espaço exige

que os geógrafos problematizem também estudos de caso individuais; característica essa

assentada na própria fundamentação da geografia como campo de conhecimento moderno,

sobretudo a partir da individualidade regional ritteriana. Mas também pelo fato da paisagem,

domínio sensível-conceitual no seio do qual se inicia e se encerra toda investigação

geográfica, preservar, como atesta Sorre (2003, p. 137), “sua individualidade dado uma

aparente permanência à escala de nossa observação”.

38

À parte talvez os textos da tradição teorético-quantitativa, ainda assim, aqueles que impuseram de modo

arbitrário suas formulações matemático-estatísticas a despeito da manifestação real do fenômeno então

investigado. 39

Sobre a atualidade do conceito de região, cf. Haesbaert (2010). 40

Hartshorne, op. cit., p. 180.

O problema deste último tipo de abordagem estaria, porém, em negligenciar os

horizontes discursivos e analíticos que delineiam e explicitam as contradições estruturais (ou

melhor, totalizadoras) da sociedade e com isso se furtar dos aspectos particulares e

mediadores da produção social e do conhecimento. Não é raro que a avidez por reforçar os

aspectos específicos e episódicos dos fenômenos sob o pretexto de privilegiar a diversidade e

a diferença, atitude esta de evidente cariz pós-moderno e culturalista, repercuta numa estreita

visão de conjunto.41

Com isso, negligencia-se igualmente que a multiplicidade e seus

correlatos, se tomados como entidades puras (e, portanto, menos como um meio do que um

fim), compõem apenas uma das etapas da dialética: a da negação da posição; e não uma

novidade subjetivada como pretensa resolução da contradição.42

Cumpre depreender que a

multiplicidade e a diferença são, antes de tudo, mediações em deferência ao todo de

possibilidades da realidade objetiva, e não um fim em si mesmas. Não se trata, portanto, de

substituir a unidade objetiva por seu oposto espetacular, seja a diferença seja a multiplicidade,

mas de depreendê-las a título de um sentido renovado que deriva do friccionamento dessas

mesmas variáveis.

Sob essa forma de mediação que alinhava o particular e o todo, a geografia é forçada a

reconhecer o movimento, a temporalidade e, por conseguinte, o “homem”, porém, menos

como um fator geral (objetivado) do que como portador de atributos específicos e

mediadores: sua qualidade de sujeito enquanto agente criativo e transformador é somente uma

de suas possibilidades. O sujeito se mostra, assim, tanto mais presente e ativo (sem ser

reduzido a um construto objetivo) quanto mais se evidencia o desvelamento do conteúdo

invisível numa forma objetivada mediante o friccionamento dos aspectos particulares da

realidade geográfica e o todo, tal como a hermenêutica e a atitude romântica dos primeiros

geógrafos modernos a empreendiam. Por isso, reconhecer um sujeito implicado no edifício de

objetivação geográfica é uma tarefa um tanto quanto ingrata, já que ao compreendê-lo ele de

imediato se esvai, restando senão sua forma lógico-objetiva, e não o quale de sentido que lhe

caracterizaria como uma qualidade criativa. Este é o grande mistério do sujeito, seu caráter

indiscernível e informe: afirmar o sujeito é também de alguma maneira negá-lo.

41

“A ampla adesão às ideias pós-modernas e pós-estruturalistas que celebram o particular em detrimento do

pensamento mais amplo não ajuda. Certamente, o local e o particular são de vital importância, e teorias que não

aceitem, por exemplo, a diferença geográfica são inúteis (...). Mas quando este fato é usado para excluir qualquer

coisa maior do que políticas paroquiais, então a traição dos intelectuais e a renovação do seu papel tradicional

tornam-se completas” (HARVEY, 2011, p. 193). 42

“Seria fácil retrucar aqui que essa abertura e essa relativização multiculturais cartesianas da própria posição

são apenas o primeiro passo, a renúncia de opiniões herdadas: (...) Essa falta cartesiana de um lar não seria

apenas um passo estratégico? Não estaríamos tratando aqui da „negação da negação‟ hegeliana?”, indaga-se

Žižek (op. cit., p. 21).

Referências Bibliográficas

AUGÉ, Marc. 1994. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.

Campinas: Papirus.

BADIE, Bertrand. 1995. O Fim dos Territórios: ensaio sobre a desordem internacional e

sobre a utilidade social do respeito. Lisboa: Instituto Piaget.

BESSE, Jean-Marc. 2011. “Geografia e Existência a partir da Obra de Eric Dardel”. In:

DARDEL, Eric. O Homem e a Terra: natureza e realidade geográfica. São Paulo:

Perspectiva.

BOBEK, Hans; SCHMITHÜSEN, Josef. 2004. “A Paisagem e o Sistema Lógico da

Geografia”. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeny (orgs.). Paisagem, Tempo e

Cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ.

CASTELLS, Manuel. 1999. A Sociedade em Rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

CORRÊA, Roberto Lobato. 2001. “Carl Sauer e a Escola de Berkeley – uma apreciação”. In:

________; ROSENDAHL, Zeny (orgs.). Matrizes da Geografia Cultural. Rio de Janeiro:

EdUERJ.

FEYERABEND, Paul. 2007. Contra o Método. São Paulo: Editora UNESP.

FOUCAULT, Michel. 2008. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária.

GEORGE, Pierre. 1969. Sociologia e Geografia. Rio de Janeiro: Companhia Editora Forense.

HAESBAERT, Rogério. 2010. Regional-Global: dilemas da região e da regionalização na

geografia contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

HARTSHORNE, Richard. 1978. Propósitos e Natureza da Geografia. São Paulo:

Hucitec/Edusp.

HARVEY, David. 1989. A Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da

mudança cultural. São Paulo: Loyola.

________. 2011. O Enigma do Capital: e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo.

HETTNER, Alfred. 2011. A Geografia como Ciência Corológica da Superfície Terrestre.

GEOgraphia. Niterói: PPGEO/UFF, vol. 13, nº. 25, pp. 136-152.

LACOSTE, Yves. 1997. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.

Campinas: Papirus.

LEFEBVRE, Henri. 1991. Lógica Formal / Lógica Dialética. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira.

MAFFESOLI, Michel. Elogio da Razão Sensível. Petrópolis: Vozes, 1998.

MARTINS, Élvio Rodrigues. 2007. Geografia e Ontologia: o fundamento geográfico do ser.

GEOUSP - Espaço e Tempo. São Paulo, n° 21, pp. 33-5.

MASSEY, Doreen. 2000. “Um Sentido Global do Lugar”. In: ARANTES, Antonio A. (org.).

O Espaço da Diferença. Campinas: Papirus.

________. 2008. Pelo Espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand

Brasil.

MERLEAU-PONTY, Maurice. 1999. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins

Fontes.

________. 2005. O Visível e o Invisível. São Paulo: Perspectiva.

ROGER, Alain. 1991. Le Paysage Occidental: retrospective et prospective. Le Débat. Paris:

Gallimard, nº. 65, pp. 14-28.

SANTOS, Milton. 1978. Por uma Geografia Nova: da crítica da geografia a geografia

crítica. São Paulo: Hucitec/Edusp.

________. 1996. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo:

Hucitec.

SAUER, Carl O. 2004. “A Morfologia da Paisagem”. In: CORRÊA, Roberto Lobato;

ROSENDAHL, Zeny (orgs.). Paisagem, Tempo e Cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ.

SILVA, Armando Corrêa da. 2000. A Aparência, o Ser e a Forma (Geografia e Método).

GEOgraphia, Niterói: PPGEO/UFF, ano II, nº. 3. pp. 7-25.

SMITH, Neil. 1988. Desenvolvimento Desigual: natureza, capital e a produção do espaço.

Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

SOJA, Edward W. 1993. Geografia Pós-Modernas: a reafirmação do espaço na teoria social

crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

SORRE, Maximilien. 2003. A Geografia Humana (Introdução). GEOgraphia. Niterói:

PPGEO/UFF, ano V, nº. 10, pp. 137-143.

VIDAL de LA BLACHE, Paul. 2002. O Princípio da Geografia Geral. GEOgraphia. Niterói:

PPGEO/UFF, ano III, nº. 6, pp. 135-147.

WERLEN, Benno. 2000. Regionalismo e Sociedade Política. GEOgraphia. Niterói:

PPGEO/UFF, ano II, nº. 4, pp. 7-25.

ŽIŽEK, Slavoj. 2008. A Visão em Paralaxe. São Paulo: Boitempo.