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O SUICÍDIO DO SENHOR THOMPSON
Em um emaranhado labirinto de mentiras, difícil será para a experiente inspetora Elena
Ravini e a novata inspetora Denise Dantras, desvendar os motivos inusitados que levaram o
Sr. Thompson Von Campestrinni a por fim em sua própria vida, no tranquilo município de
Lontras. Um drama envolvente, de amor condensado em hipocrisia, depressão e angustia, que
descreve os efeitos de uma sociedade que estabelece os padrões de normalidade e felicidades.
No silêncio de uma vida "perfeita" sufoca a verdade que não ousa ser revelada pela luz
barulhenta de uma vida em retalhos.
ANDRESSA ROBERTI
O crepúsculo da manhã surge em cores de meia cor. A coloração
do céu estava em tom vermelho-alaranjado. O vento assoviava forte, despojava
as folhas que se amontoavam, formando um tapete no chão em cores
amareladas. As árvores, outrora, cheia de flores agora estavam despidas no
outono.
Gabriel saltou da cama. Percebeu que estava atrasado. Não
importava. Fez seu ritual matinal. Voltou-se para o espelho do quarto, a fim de
se arrumar. Viu a imagem de um homem de vinte e sete anos, esbelto e bem
sucedido. Eu me amo, pensou Gabriel. Sou um homem muito lindo.
E era de fato! Gabriel Garcia Marquetti apresentava uma
elegância nada discreta. Pode-se dizer que no tocante a aparecias, Gabriel era
tudo o que poderia ser imaginado em um homem. Era de voz madura, serena e
agradável. A pele era suave como pêssego. Possuía uma testa larga, o rosto em
linhas levemente arredondadas e os lábios carnudos. Os olhos eram castanhos e
serenos, sempre marcados com um delineador, assim como os cílios. E seu
cabelo ruivo, voluminosos e cacheados, cortados em camada leve com lateral
pouco desbastada, mantendo a franja, nuca, e topo da cabeça quase igualado, lhe
dava uma aparência ainda mais charmosa.
Com todo o seu jeito para compreender o mundo a sua volta,
havia deixado a tumultuada cidade de Florianópolis e se instalou na tranquila
cidade de Timbó, situado no coração do charmoso Vale Europeu catarinense e
conhecida como a ―Pérola do Vale‖. Montou seu escritório no ramo de
confecção e tinha sua própria marca de roupa - Oh lá lá! - muito badaladas,
sempre atuais e revolucionárias.
Gabriel colocou seu óculo de graus wayfarer redondo e vestiu
sem pressa uma Calça jeans Skinny e rasgada, pegou uma camiseta estampada
qualquer, jogou por cima um coat longo e calçou uma Chelsea Boot.
Foi ate a cozinha e ligou o liquidificador. Concentrando-se no
ingrediente que iria utilizar, jogou a couve manteiga com outras frutas e mais
água de coco. Dez minutos depois o suco detox estava pronto. Bebeu todo o
liquido devagar.
Vou começar a fazer yoga, pensou ele. Aquilo realmente parecia
ser uma ótima ideia. Anotou em sua agenda para a próxima semana fazer uma
aula experimental.
Estava se preparando para ir ao trabalhar. Mesmos as aragens da
manhã frias naquela estação, Gabriel costumava priorizar o ciclismo como meio
de transporte. Era o único momento oportuno para se exercitar.
Seguiu a avenida do bairro das Capitais e teve a incomoda
sensação de ter visto um carro o seguindo. Mas quem? E por quê? Tudo parecia
normal. Mas, todos os seus instintos lhe diziam o contrario.
A brisa da manhã tocava em seu rosto, em quanto o cenário
formidável de Timbó lhe passava pela vista escorrendo: rios de águas cristalinas
e as ruas estavam sempre limpas; o verde exuberante da mata nativa, as
palmeiras que cercavam a cidade, harmonizava com o contraste impar da
arquitetura e, ainda, um pouco de colorido dos jardins era possível ser visto
mesmo no Outono; ao longe era possível ouvir o canto dos pássaros habitantes
comuns.
Logo a sua frente já era possível visualizar o edifício do
escritório. Gabriel entrou no estacionamento, mostrou o cartão de identificação
na portaria eletrônica. E seguiu para o bicicletario.
O ambiente já pulsava a todo vapor, todos empenhados
trabalhando apara acompanhar o ritmo global de novas ideias de novas
tendências, e também de criar novas propagandas.
No primeiro andar ficava a facção responsável por fabricar as
peças. O conjunto de escritório ficava no segundo andar, onde se viam varias
divisórias: administração, vendas, marketing e suporte técnico.
Todo o ambiente era informal e descontraído, com áreas de
descompressão, arquibancadas para compartilhamento de ideias, pufes, redes,
dress code mais informal, assim como o clima leve das reuniões em áreas de
convivência. Tudo favorecia um clima de trabalho mais colaborativo, criativo,
espontâneo, conectivo e humanizado.
Quando Gabriel se encaminhou para sua mesa, Ruan, um dos
estilistas, logo foi ter com ele:
Bom dia, doçura! – disse alegremente Ruan.
Gabriel sorriu. Baixou a cabeça e permaneceu pensativo. A voz
dele lhe dava nos nervos.
— ...iel?... iel?... – Era o apelido carinhoso que Ruan lhe dera e
que Gabriel detestava. – Você está a um milhão de quilometro de distancia
daqui. No que você esta pensando?
A voz irritante de Ruan o arremessou de volta para o momento.
— Em nada! – Respondeu Gabriel secamente.
— Nossa! Quanto bom humor para uma sexta-feira. – Respondeu
Ruan ironicamente. - Pensei que hoje fosse dia de happy hour.
— Você sabe muito bem que detesto que me chame de iel. Faça
o favor de manter o profissionalismo?
Ruan pegou umas folhas do ultimo relatório sobre as novas
tendências e exibiu um sorriso antipático.
— Viu isso? Os números? As cores?
Gabriel correu o olho ligeiramente. Não estava com cabeça para
trabalhar com números naquele momento. Mas não poderia deixar de
transparecer aquilo.
— Certo obrigado! Deixe aqui comigo...
— Como pretende trabalhar nesses novos looks? Você sabe que
preciso de um feedbeck.
— Eu ainda não sei. Vamos conversar sobre isso depois do
almoço. Tudo bem?
— Ah!... Também já recebemos os nomes de algumas pessoas
que aceitaram fazer propaganda com o nosso nome. Está aqui? Parece estar
dentro do nosso orçamento...
Gabriel analisou ligeiramente a lista e jogou a folha por cima da
folha do relatório.
— Depois eu vejo isso!...
— E... A proposito, a lista de clientes e o relatório não tenha
pressa, querido. Precisamos de sua assinatura para semana passada. –
Respondeu Ruan mais uma vez ironicamente e esboçando aquele sorriso
debochado.
Gabriel permaneceu em silencio. Não queria entrar numa
discussão explosiva logo de manhã, ainda mais com Ruan.
— Ei! Que tal sairmos para jantar no sábado? – Insistiu Ruan.
— Obrigado, mas já tenho compromisso!
— E por que não almoçamos juntos hoje então? – continuou
Insistindo... – poderíamos conversar sobre todos esses relatórios num ambiente
mais descontraído.
— Eu já lhe disse... Não! Não estou interessado. – Respondeu
Gabriel rispidamente. - A empresa já é bastante descontraída. Deixe-me
trabalhando e, por favor, volte para sua sala.
— Não está interessado, mas vai ficar. Aguarde-me!
Gabriel ficou analisando Ruan parado em frente a porta. Havia
algo assustador naquela entonação de voz. Gabriel tornou a se perguntar se não
seria ele o motivo de tanto desconforto. Afinal, Ruan era um individuo que
todos diziam ter fixação por ele. Mas, não, Gabriel meneava a cabeça. Não.
Precisava esquecer aquilo e pensar em outras coisas. Ruan estava apenas
colocando a prova a paciência de Gabriel naquele dia.
— Fiquei sabendo que você esta de namorado novo?... –
Continuou Ruan com as provocações. Agora está todo irritadinho, porque não
deve mais ser divertido ser a segunda opção, não é mesmo?
Que sujeitinho atrevido pensou Gabriel. Ele acha que é da sua
conta cuidar da minha vida. Gabriel se virou e olhou para ele, seriamente.
— Chega Ruan! Vá para sua sala imediatamente! Entendeu
bem?... - Gabriel fez um gesto para que ele se retirasse.
Naquele momento Ruan se inclinou para frente e sussurrou:
— Tem uma coisa que você precisa aprender doçura: Nunca é
bom misturar a reputação com o prazer. Você esta saindo com um homem
casado que eu sei e isso não está certo!
— Na verdade, não sei o que você... – Gabriel ia dizendo, mas
preferiu não dar explicações. – Ah! Quer saber, mesmo? Não é da sua conta...
— Seja como for, eu não sei o que você viu nele! O cara é uma
almofadinha, um quadradão. Você pode se divertir muito mais comigo. – Ruan
deu uma piscadela – Você sabe o que quero dizer, não sabe?
Gabriel ficou olhando em quanto Ruan se afastava e tornou a
pensar agora de forma mais convicta: seria ele? Mas, Gabriel tentou se
controlar. Ele pôs mãos a obra. Meia hora mais tarde, em quanto trabalhava, o
telefone tocou. Levantou o rosto e viu que a ligação era de fora. Deixou a
secretaria cuidar disso.
Gabriel estava tão aflito que podia ouvir o som dos passos de
Ruan quando ele caminhava pelo corredor. Aquilo foi criando um temor em
torno de Gabriel.
Ao final do dia Gabriel ligou para o departamento de Recursos
Humanos dando ordens para que Ruan fosse despedido.
***
Sexta-feira era para ser um dia de relaxar, mas Gabriel não
conseguia nem mesmo rodeado pela tranquilidade e o silencio, de volta ao seu
lar. Por mais que tentasse focar em algo que não fosse o trabalho, a discussão
que tivera com Ruan pela manhã, sua voz em tom ameaçador sempre voltava a
ecoar em sua mente.
Gabriel tentou despistar os pensamentos negativos, puxou o livro
―Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra‖ do proeminente teólogo
e escritor catarinense, Leonardo Boff, quando percebeu que havia um recado em
seu celular:
“Você me deixou excitadíssimo da última vez. Fiquei interessado
em você. Vamos nos ver no próximo sábado à noite, conforme combinamos? Na
mesma hora no mesmo lugar”?
Gabriel fechou os olhos e ficou a lembrar dos momentos em que
estivera em Guarda do Embaú: trilhas ecológicas, praias desertas, mirantes,
cachoeiras e o mítico vale da utopia.
O nome da praia deriva da lenda dos baús com tesouros que
foram enterrados na praia pelos jesuítas durante a Guerra dos Farrapos e pelos
piratas que ali aportavam. E para ter acesso ao balneário, era necessário
atravessar o Rio Madre, que poderia ser feito por barcos guiados pelos nativos,
nadando ou caminhando quando o rio estava baixo.
Ficou a relembrar, de forma que sentia estar ainda lá, com os pés
descalços na areia branca e fina tocando o mar cristalino. Relembrando como se
ainda estivesse lá observando seu namorado catando conchinhas.
Ficou a relembrar os momentos românticos que teve com seu
amado: o chalé em estilo rústico com varanda com rede. Vista para o jardim e o
céu estrelado.
O local ficava próximo a praia, numa simpática vila de
pescadoras com ar alternativo, formada por dezenas de ruas de areia e outras
pousadas charmosas, restaurantes e barzinhos rústicos que agitavam a noite do
vilarejo.
Ainda podia ouvir as batidas do coração em descompasso, o
abraço quente e aconchegante, depois de terem se amado completamente, sem
pudor sem medo.
Gabriel ficou ali relembrando aquelas cenas. Ficou a relembrar
do passeio pela Serra do Tabuleiro e os fins de tarde jantando crepioca vegana e
açaí. Gabriel ficou a sorrir sozinho, revivendo as aventuras e as brincadeiras.
Depois olhou animadamente mais uma vez o seu celular, lendo
várias vezes à mensagem. A sensação de imaginar os dois morando juntos
formando uma família era inexplicável. Ele se sentia um homem feliz, amado e
realizado.
***
Manoel Cristóvão e Lorita Silva Cristóvão estavam casados há
trinta e sete anos. Ambos haviam nascido e crescido em Lontras, um município
cortado pela antiga Estrada de Ferro Santa Catarina, localizado na Região do
Vale Europeu.
Em seus aspectos mais formidáveis, a cidade preservara os
costumes retratados na gastronomia, no artesanato e na hospitalidade de seus
moradores. É possível observar também os traços da história da colonização
alemã, registrado nas construções dos inúmeros casarios no centro e nos bairros.
Eles trabalhavam na casa da família Campestrinni. Nos dias de
folga, não perdiam o costume de namorar na Praça Henrique Schroeder e tomar
um delicioso sorvete no Guela Gela, que ficava ao lado do casarão Schroeder,
uma estrutura de detalhes expressivos na ornamentação externa e interna que
reforçam o estilo neoclássico, e diziam ser mal assombrado.
Também eram de muita fé e frequentavam todos os domingos, a
palestra pública, na Fraternidade Espírita Chico Xavier, localizado no centro da
cidade, ao lado da Sociedade Lontrense.
A palestra daquele domingo estava imperdível. O tema abarcava
a história do Espiritismo. Como era de se esperar, o casal estava na primeira fila
ouvindo atentamente cada detalhe mencionado pelo palestrante.
“Em um humilde vilarejo – Começou a falar o palestrante em voz
tranquila, - chamado Hydesville, no estado de nova York, morava uma família
protestante. O pai, Jonh Fox e sua esposa Margareth, com suas duas filhas
Margareth e Kate. Na tosca cabana, residência da família Fox, começaram a
acontecer fatos estranhos, ruídos e pancadas inexplicáveis que se faziam ouvir
com tal intensidade que essa família não pôde mais repousar tranquilamente.
Certa noite quando as pancadas se tornaram mais persistentes e
fortes, as irmãs Fox resolveram desafiar o mistério, travando-se um diálogo com
o que todos julgavam ser o diabo: ao passo que Kate ia batendo palmas,
imediatamente se ouviram pancadas, em número igual ao das palmas.
Posteriormente, Margareth contou um, dois, três, quatro, e logo se fizeram
ouvir as pancadas correspondentes. Em seguida, Margareth perguntara se era
um espírito que fora assinado naquela casa e pedira que então batesse duas
palmas. E duas pancadas se fizera ouvir sem demora respondendo de forma
afirmativa a pergunta feita.
Entretanto, muitos curiosos, atraídos por esses fenômenos novos,
não se contentaram mais com perguntas e respostas. Um deles, chamado Isaac
Post, teve a ideia de nomear em voz alta as letras do alfabeto, pedindo ao
Espírito para bater uma pancada quando a letra entrasse na composição das
palavras que quisesse fazer compreender. Desde esse dia, ficou descoberta a
telegrafia espiritual.
No mesmo período, na Europa, sobretudo na França, acontecia
outro fenômeno estranho, chamadas de mesas girantes ou dança das mesas, que
se movimentava, se levantava e, com um dos pés, davam certo número de
pancadas, respondendo desse modo – sim, ou – não, conforme fora
convencionado, a uma pergunta feita. Até então as pessoas utilizavam do evento
como um passatempo que animava os salões, interrogando os Espíritos sobre as
mais fúteis questões.
Foi quando em 1854, um cientista chamado Hippolyte Léon
Denizard Rivail, ao saber do evento, através de seu amigo Fortier, se dispõe
finalmente a participar pela primeira vez de uma sessão para verificar, observar
e analisar o fenômeno.
No primeiro momento Rivail não se impressiona com os fatos
verificados, pois que aquilo não havia nada de convincente para os céticos, sendo
que se podia acreditar num efeito da eletricidade, cujas propriedades eram pouco
conhecidas pela ciência de então.
No entanto, conforme as perguntas eram mais desenvolvidas
chegando, assim, a formular palavras e frases respondendo às perguntas
propostas, a precisão das respostas e sua correlação com a pergunta deixou
Rivail intrigado, pois não poderiam ser atribuídas aquilo ao acaso, um vez que
não poderia a mesa se mover se ela não possui músculos ou formular respostas
se ela não tem um cérebro. E assim concluiu: que por trás daqueles eventos
havia uma força inteligente.
A partir dai Hippolyte cria meio mais eficazes de se comunicar
com os Espíritos. Foram nessas reuniões, na casa da família Baudin, que ele
iniciou seus estudos sérios a respeito do fenômeno. E através do auxilio de vários
médiuns, que registravam os ensinos universais dos Espíritos, Hippolyte
codifica obras como O Livro Dos Espíritos, O Livros Dos Médiuns, O
Evangelho Segundo O Espiritismo, A Gênese e O Céu E O Inferno, com o
pseudônimo de Allan Kardec. Surge assim a doutrina dos Espíritos, aliado a
ciência, filosofia e religião, buscando uma melhor compreensão não apenas do
universo tangível, mas também do universo transcendente.
Na introdução em o Livro Dos Espíritos, item 6, Allan Kardec,
resume os pontos principais da nova doutrina, tendo como fundamento a
existência de um Deus; Jesus como guia e modelo para toda a humanidade; a
comunicação útil com os espíritos através de médiuns; a reencarnação; e a
pluralidade dos mundos habitados.
E em 1869 desencarna Allan Kardec deixando o legado da
terceira revelação prometida por Jesus: a doutrina espírita. O Espiritismo é a
nova ciência que vem revelar aos homens, por meio de provas irrecusáveis, a
existência e a natureza do mundo espiritual e suas relações com o mundo
material; o Espiritismo também é a chave para se fizer compreender problema
tão obscuro e tão controvertido do passado e do futuro da Humanidade. Era, em
suma, toda uma revolução nas ideias e nas crenças”.
Ao final da palestra, todos se organizavam para tomar o passe e
seguir para seus lares. Manoel e Lorita gostavam de prosear com os
trabalhadores da casa a fim de continuar em torno daquela simpática sintonia
que emanava do ambiente.
Depois de muito conversarem o casal resolveu que iriam
começar, nas terças-feiras, o estudo sistematizado da doutrina espírita – ESDE -
e trazer o neto para o estudo evangelizador aos sábados.
***
Ângela Von Campestrinni começou a perceber os ruídos
domésticos pela manhã. Ela estava tonteada e mal sabia o dia da semana.
La embaixo, pisadas pelo corredor, passos apressados e tão cedo.
Em seguida, se fazia ouvir o ruído da porta da sala que estavam sendo abertas.
O guizo das argolas da cortina correndo quando puxadas, o ruído da pá de lixo,
da vassoura, no passeio da casa, e da voz sem igual de Lorita cantarolando.
Como consegue ser tão feliz logo de manhã cedo, pensou
Ângela.
Por mais meia hora, os ruídos domésticos continuaram, nada
discretos, culminando de passos descontrolados pelo corredor. Em seguida, o
tinido de louça espatifando pelos chãos e, de repente, um estranho silencio
pairava.
Da luz típica de um dia apático, invadindo o quarto, ouviu-se a
porta do quarto se abrir e Lorita estava entrando sem cerimonias. A Sra. Ângela
grunhiu, resmungou e virou-se para o outro lado.
— O Sr. Thompson está no escritório... — Disse Lorita sem
folego, histérica, não conseguindo terminar a frase, apenas desabafando: — Oh,
que coisa mais horrível!
Ângela assentou-se na cama. Reuniu todos os seus sentidos
dispersos e procurou inteirar-se da situação.
— Há... O quê? – Disse ela irritadamente, olhando para Lorita,
que estava parada ao pé da cama. – Vai lá buscar meu café imediatamente e
chega de escândalos.
Ângela agora estava completamente acordada. Resmungando,
ela vestiu seu roupão e saiu do quarto. Caminhou pelo corredor e desceu a
escada, ao pé do qual se acotovelava o restante dos empregados, em soluços.
Manoel, o jardineiro, adiantou-se com um ar trêmulo.
— Graças a Deus a senhora veio. Tinha ordenado que nada fosse
feito antes da senhora chegar. Acha que eu já deveria ter chamado a policia?
— Chamar a policia? Para que? Por que o café da manhã ainda
não está servido?
O jardineiro lançou um olhar de espanto para Lorita que estava
soluçando histericamente no ombro da cozinheira.
— Eu pensei que Lorita já tivesse lhe avisado.
Lorita falou ofegante:
— Ora, encontrar uma coisa daquelas! Eu estava tão nervosa,
minhas pernas começaram a tremer e vi tudo embrulhado, não consegui dizer
nada.
— Lorita, como é natural, esta muito agitada, senhora, tendo sido
ela a autora da descoberta macabra – explicou Manoel. – Entrou no escritório,
como de costume, para correr as cortinas, ajeitar tudo e... Deu de cara com o
sinistro.
Ao dizer aquilo Manoel fez um sinal da cruz em sinal de
respeito.
Ângela ainda não estava compreendo a situação. Quando
finalmente conseguiram lhe explicar o ocorrido, Ângela mal conseguia se
segurar.
— Você quer dizer... – perguntou Ângela com a voz falhando. –
que meu marido... Está morto... De fato?
O jardineiro assentiu e acrescentou.
— ...Talvez fosse melhor a senhora nem ir lá ver.
***
— Alo. Sim, é da Policial, quem está falando?
O Policial Dirceu Farias Borguezan estava quase terminando seu
turno. Com uma mão segurava sua orelha de gato, que degustava calmamente, e
com a outra segurava o telefone naturalmente.
— Oh, bom dia Manoel. – Era o jardineiro quem havia
telefonado para a emergência policial.
O tom de voz do policial passou por uma ligeira modificação.
Tornou-se menos informal, reconhecendo a voz do amigo de longa data.
— Em que lhe posso ser útil?... Desculpe, mas não compreendi
bem... Disse que o senhor?... Sim, sim... Como preferir... Está bem... Está
dizendo que... Sim, o horário exato desconhece?... Está bem. Pode deixar tudo
por minha conta.
Dirceu colocou o telefone novamente no gancho, tirou um longo
assobio e começo a discar para o seu superior.
***
Todas as manhãs, o policial Escarpa Arruda de Oliveira
costumava se deliciar com um generosa fatia da tradicional torta de queijo, na
padaria Estação, no centro de Lontras. Ele ia dar sua primeira garfada dos
deuses quando o celular começou a tocar. A chamada o intrigou.
Ora essa! – Bufou Escarpa, olhando irritadíssimo para o telefone
que tocava. — Quem será?
De forma impaciente, o fez silenciar, atendendo aquele chamado.
— Alô – disse Escarpa irritado.
— É você, Oliveira?
Escarpa ficou um tanto surpreso. Sabia que naquela hora Dirceu
também estaria tomando seu café.
— Sim, sou eu. Você caiu da cama foi, Dirceu?
— Aconteceu a coisa mais pavorosa, senhor.
— O que foi agora?
— Acabei de ser informado que o Sr. Campestrinni se enforcou.
Escarpa achou por alguns instantes que Dirceu estivesse fazendo
uma piada de muito mau gosto àquela hora da manhã.
— Você o que? Não brinca homem...
— Eu sei, não dá para acreditar, não é? Eu pensei que essas
coisas só aconteciam com os outros.
— Mas que horas foi isso?
— Eu não sei!
— Não sabe?
— Eu não sei. A Sra. Campestrinni não faz a menor ideia... Nem
ela nem os criados da casa perceberam que ele se fazia presente em casa
naquela madrugada. Mas lá está o homem, pendurado por uma corda, mortinho
da silva.
Dirceu fez uma pausa para respirar.
— Bem... — continuou ele. — A Sra. Campestrinni parecia
bastante histérica do outro lado, gritando que ele estava na gandaia.
— Gandaia? Como assim?
— Sim, é o que ela estava esbravejando...
Escarpa colocou a mão sobre a testa.
— Segue na frente que eu já vou ao encontro do local. —
Escarpa limitou-se a essa ordem de primeiro momento.
***
Escarpa ligou a viatura, seguindo pela Praça Henrique
Schroeder, contornando o trevo do centro e passando em frente ao Casarão
Schroeder. Em seguida, passou em frente ao Aeroporto Helmut Baugarten, indo
sentido ao bairro do Riachuelo.
Em quanto a paisagem de Lontras era deslumbrante, por outro
lado as estradas era uma dessas esquecidas pelo tempo. A viatura tinha
dificuldade de seguir em velocidade máxima. Não havia calçamento, era cheia
de quebra-molas, sulcos, buracos e paralelepípedos em desalinhos.
Quinze minutos depois Escarpa estava chegando à casa do casal
Campestrinni. Ele estacionou a viatura no meio fio da calçada. Jamais pensara
que iria naquela propriedade para tal ocorrência.
Localizado em uma região privilegiada, onde a natureza é
exuberante. A casa é marcada pelos telhados inclinados, bem ao estilo
Fachwerk, feita de paredes com hastes de madeira encaixadas entre si, de forma
inclinada, e o preenchimento entre o espaço feito de tijolo aparente.
As cores vibrantes em tonalidade marrom vermelho e laranja
compõem um visual sóbrio, mas, ao mesmo tempo, marcante e definido — até
impactante, de certa forma, – criando uma paisagem vibrante e quente,
preenchendo a composição da atmosfera de forma completa.
Escarpa foi caminhando em direção à entrada cuja porta lhe foi
aberta pela Lorita.
O policial Dirceu surgiu logo depois nos degraus da entrada e
parecia um tanto zonzo.
— Escarpa?... Que bom que chegou. – Indagou Dirceu.
— Já eu não posso dizer o mesmo. Receber essa notícia logo no
café da manhã... – Escarpa limpou a garganta.
— Pois é...
Os dois policiais permaneciam na sala aguardando a Sra.
Campestrinni ir ter com eles.
Escarpa observava atentamente cada detalhe. No interior da casa,
no térreo, estava localizada a área social, com todas as salas integradas e
cercadas pelos jardins laterais do terreno. Subindo as escadas, no piso superior,
estão os quartos, interligados por uma varanda contínua, que permite aproveitar
a vista da piscina e da natureza abundante presente na região.
Não havia nenhum monitoramento de câmeras ou alarme de
segurança. E para um dia daqueles, a casa estava tranquila de mais de forma que
não era natural, pensou Escarpa.
— E a Sra. Campestrinni?... – Questionou Escarpa olhando em
direção a Lorita. – Vai demorar muito?
Ângela se recusava a descer. E os criados permaneciam em
silencio.
— Chamei à psicóloga do departamento. – Comentou Dirceu
rompendo o silencio. - Precisa que alguém esteja com ela. Caso contrário,
sofrerá um colapso.
— Onde está o corpo? - Perguntou Escarpa de forma automática
e indiferente.
Dirceu fez um gesto com a cabeça em direção ao escritório
— La dentro, senhor. – Dirceu estava visivelmente pálido.
Dirceu tomou a dianteira no corredor, a passos curtos, dirigindo-
se para o lado oriental da casa, conduzindo Escarpa até o escritório.
Do lado de fora da porta do escritório estava um policial de
guarda, a mando de Dirceu, um jovem que chegara a pouco tempo na cidade.
— Eis ali. – disse Dirceu dramaticamente. – Nada foi tocado
desde então.
Escarpa entrou no escritório e parou, chocado. Naquela manhã, o
escritório não tinha nada de característico com aquele episódio: o cômodo
possuía uma apaixonante porta francesa que dava acesso ao jardim dos fundos.
O ambiente era amplo e sereno, sem excessos e com um toque minimalista.
Havias alguns pufes que dava um toque final. A escrivaninha ficava rente à
porta francesa. As gavetas eram todas cuidadosamente organizadas. Todos os
pendrives tinham numeração e eram separados por cores. O Sr. Campestrinni
utilizava muito pouco papel e caneta, e como tinha preferencia utilizar os
arquivos digitais, a estante era pequena e havia poucos livros. No máximo
aqueles do seu extremo interesse que abordavam temas sobre o Direito.
No teto ficava fixado o data show personalizado, que ao ser
ligado era possível ver a imagem amplamente logo a frente. E meio central do
escritório, com a corda pendurado pelo data show, jazia a figura sombria de seu
corpo pendurado.
O Policial Escarpa esticou o pescoço e o analisou mais de perto.
Um rapaz ainda jovem. Vestia uma roupa descontraída, pensou Escarpa, de
modo que não aparentava estar trabalhando na noite anterior. Escarpa não tocou
no corpo. Apenas observara: o rosto estava grosseiramente inchado e azulado,
os dedos apertavam freneticamente a corda no pescoço, como se tivesse lutando
num ultimo suspiro suspendo no ar. Compreendeu então que aquela sena tão
macabra não fazia o menor sentindo.
— Está vendo agora o que quero dizer? Não parece real! – disse
Dirceu, quebrando o estranho silencio que pairava naquele instante.
— O que eu não posso compreender é: – disse Escarpa – o que
levou Thompson a tomar essa decisão tão drástica. Ele poderia estar em
depressão... Mas, isso não teria sentido, não é? Ele não aparentava estar com
problemas ou com depressão. Ele estava muito feliz. Tínhamos marcado um
almoço essa semana para conversamos. Ele tinha pretensão de me contar
algumas novidades. Mas, quais novidades?
Naquele momento entrou Ângela no escritório, fazendo Escarpa
silenciar-se.
— Não... Não tem sentido. – disse ela aos berros. — O que esse
cretino tinha na cabeça?
Ângela parecia mais furiosa do que triste.
As palavras rudes da Sra. Campestrinni fizeram o Policial
Escarpa sair de seu transe, se virando em direção a ela. No fim Escarpa disse em
tom moderado:
— Posso compreender como você se sente nesse caso...
A atenção de Escarpa imediatamente se voltou para o barulho de
um carro que rangeu sobre o cascalho do lado de fora. Do carro saiu um médico
da policia. E num segundo carro da policia tinha descarregado dois homens
vestidos em trajes comuns, um deles estava carregando uma câmera fotográfica.
— Deve ser a outra equipe policial, o legista e seus assistentes,
trazendo o material para ensacar o corpo... – Disse Dirceu afobado.
Escarpa dirigiu-se imediatamente a porta, sentindo-se
imensamente aliviado quando pode sair daquele escritório.
Sem cerimonias a outra equipe policial entrou na casa e com o
consentimento do Policial Escarpa, começaram a vasculhar o primeiro andar da
casa. Depois seguiram por uma linda escadaria que dava para o andar de cima,
logo adiante encontraram a porta de um quarto entreaberta. Era o quarto do
casal Campestrinni.
***
Ao anoitecer, Escarpa estava de volta a sua tranquila casa.
Estava exausto e com uma dor de cabeça que parecia que ia explodir seu crânio
várias vezes. Desejava que aquele dia não tivesse sido real, pensou ele. Ainda
podia ouvir os gritos histéricos da Sra. Campestrini. Ele sabia que Ângela não
era uma mulher fácil de lidar.
Em cima de sua mesa havia outros relatórios, de outros casos de
suicídio que ocorriam todo mês na região. Ele era o responsável pelas
investigações, levantamentos de dados e mecanismos de prevenção. Uma
grande responsabilidade que pesava em seus ombros.
Decidiu lutar por esse caso quando sua esposa, Grasiela, há dois
anos, decidiu tirar a própria vida.
Ele se aproximou de sua escrivaninha e desatou a chorar. Sentia-
se esgotado e solitário naquela causa. As pessoas a sua volta pareciam
indiferentes a esse problema. Não se sentiam confortáveis em falar sobre o
assunto e isso dificultava em explicar para as pessoas a importância de prevenir
o suicídio.
O relatório do Sr. Thompson permanecia destacado sobre sua
mesa desorganizada. Uma xícara com um pouco de café frio. Uma foto antiga
de Grasiela numa viagem que haviam feito, semanas antes do acontecimento
trágico, em foz do iguaçu. Gostava de olhar aquela foto e lembrar o quanto não
poderia desistir daquela causa. O quanto era importante continuar se esforçando
para que mais pessoas escolhessem viver.
O Sr. Thompson não era só mais um homem que havia cometido
suicídio, pensava Escarpa, ele também era seu amigo desde a infância. Não era
alguém desconhecido. Thompson confiava muito em Escarpa, qualquer
problema que ele estivesse passando iria lhe confidenciar. Isso era certo! Então,
por que tomara uma atitude tão drástica?
Decidira se dedicar inteiramente a esse caso.
Na manhã seguinte, Escarpa recebera uma ligação.
— Policial Oliveira? Aqui quem fala é o legista. Acabo de
concluir o laudo do Sr. Campestrinni... Você não vai acreditar!