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O Sol Se Põe Para Todos Marconne Sousa

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Page 1: O Sol Se Põe Para Todos

O Sol Se Põe Para Todos Marconne Sousa 

 

    

Page 2: O Sol Se Põe Para Todos

Direitos autorais do texto original © 2015  

Marconne Sousa Amaral Oliveira  

Todos os direitos reservados  

   

Page 3: O Sol Se Põe Para Todos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para Maria Eduarda, com carinho. 

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 “Is all that we see or seem But a dream within a dream?” 

Edgar Allan Poe, A Dream Within a Dream (1849) 

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Alguns pensam que logo antes da morte nós descobrimos a verdade, que a morte traz uma luz as nossas dúvidas, eu creio que a morte traz morte, mas espero estar errado, queria crer em reencarnação, queria reencarnar como uma bela montanha distante de todos, mas também queria encontrar a paz de espírito que Sidarta encontrou entre meio aquelas árvores e saber ali que meu ciclo havia terminado, queria ter essas certezas, mas ao deitar nessa cama que fede a suor e remédios a única coisa que sei são dos meus pensamentos mórbidos. Eu ouço as pessoas falarem e as suas palavras se perdem no esquecimento da minha mente semi­adormecida e os carros passam e vão a lugares e eu tento imaginar à que lugares vão, mas minha outrora tão glorificada imaginação me deixa na mão. Eu sou o que sou, um velho sem nada além do que tenho e o que tenho não é suficiente, mas não tenho forças para desejar mais. A morte traz morte.  

 

Há tantas coisas que não aprendi. Nunca aprendi, por exemplo, a lavar roupas da maneira correta. Sempre joguei elas na máquina com sabão e esperei pelo melhor. O resultado foram várias manchas que nunca saíram e camisas desbotando. Há agora um silêncio sepulcral na rua e a casa está vazia como sempre. Solidão, nunca havia aprendido o que era solidão, sempre amei ser solitário e os outros seres humanos me deixavam nervoso, seus olhares e seus sorrisos e tudo sobre eles parecia falso, eu poderia usar alguma falsidade agora, alguém para me dizer que tudo estava bem. Talvez a morte traga mesmo conhecimento, agora eu entendo a solidão. Meu ultimo livro não será acabado, minha existência permanecerá incompleta. Eu não aprendi o que amor significava e por isso inventei vários significados ao longo da vida para a pequena palavra que todos adoram falar, A­M­O­R, amor, nunca me senti amado e sempre amei alguém, mesmo perto da morte eu amo a mulher que passa pela janela com as pernas de fora em uma saia rodada e seu cabelo que brilha. Talvez cada um veja um significado diferente no amor. Não é importante. Nada é. Ou tudo é. Minha mente flutua. O que é esse barulho lá embaixo? Meus sentimentos sobre descer as escadas mudaram ao longo dos anos, no começo eu não gostava, mas não era grande esforço, em certo ponto eu amei, grandes caminhadas me deixavam feliz, então eu odiei de novo e meus pulmões também, agora só dói, é demais pra mim.  

 

"Quem está aí?" grito no meu melhor tom de velho rabugento, mas ninguém responde "Ótimo, agora eu também tenho alucinações." resmungo   

 

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"Oi." diz uma menininha vinda de lugar nenhum aparentemente  

 

"Quem é você?"  

 

"Ah, pare, por favor. Não precisa agir assim, eu sei quem você é. Eu li suas histórias e elas eram mesmo muito bonitas."  

 

"Uma pena que não eram verdade, se você está aqui para me perguntar sobre essa baboseira de ficção pode ir embora, não existe nada disso menininha, só velhos morrendo existem. Aliás, como você me achou? Ah, esquece, não importa, vá embora."  

 

"Mas eu não posso, não agora. Eu sei que as histórias não são reais, mas quem disse que não são verdade?"  

 

"A realidade. Eu confio muito nela, aprendi com o tempo."  

 

"Você não está cansado?"  

 

"De que?"  

 

"De tentar soar tão inteligente o tempo todo, isso deve ser cansativo. Você precisa se deitar."  

 

"E você precisa ir embora."  

 

"Vá se deitar."  

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Não sei o que deu em mim, mas fui sem mais questionar, ela subiu logo após, eu ouvi os passos pequeninos. A sua voz pareceu se acomodar em meu cérebro enquanto ela começou a falar:  

 

"Sobre o que é o seu novo livro?" ela apontou para as páginas em cima da mesa  

 

"Sobre nada. Merda. Ficção. Mentiras. Tudo que sei contar."  

 

"Não seja tão duro consigo mesmo. A vida é mais do que aquilo que se vê."  

 

"Quem disse isso?"  

 

"Meu pai."  

 

"Pois é um idiota. Você sente esse cheiro? E vê esses remédios? Essa é a realidade. Cheiro de doença, doença diante de seus olhos." eu vou até a janela, acendo um cigarro  

 

"Talvez se você não fumasse tanto..."  

 

"Ah, claro. Talvez a vinte, trinta anos atrás... agora nem importa."  

 

 

"É, isso é verdade." ela diz e dá um sorriso, é impossível ver algum traço de malícia nele 

 

"Você é boa em animar as pessoas, ahn?" eu sorrio também, com ironia, e dou uma baforada de fumaça, lá embaixo o mundo segue, mas o barulho não me afeta tanto, carros 

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passam e eu não dou a mínima para onde eles vão e a garota de saia rodada passa mais uma vez e eu não a amo mais, pois agora ela prendeu o cabelo em um rabo­de­cavalo.  

 

"Você contou várias histórias para as pessoas. Me surpreende que nunca quis que alguém te contasse uma."  

 

"Eu li as minhas, como eles leram as que eu escrevi."  

 

"Sim, sim, mas nenhuma pareceu especial para você, não é mesmo?"  

 

"Isso é verdade. Você é esperta também, que horror."  

 

"Você quer que eu te conte uma história?"  

 

"Não se for algo que eu escreveria, sempre odiei ficção, Hemingway, ele sim era um escritor." 

"Vou fazer o meu melhor para tentar ser realista. " ela se acomodou em uma poltrona, arrumou os óculos redondos, retirou um livrinho do bolso da jaqueta e começou a ler "Havia um garoto e ele era feliz apesar de não ter tantos amigos, ele tinha uma tia e ela era a única pessoa com quem ele podia ter conversas profundas sobre o sentido da vida, um dia sua tia morreu de câncer na garganta e a vida não pareceu mais tão profunda, a morte por outro lado virou um tópico constante... O garoto cresceu e não conseguiu mais ser feliz após uma certa idade, passou muito tempo pensando sobre a morte, algo perigoso, pois se morte é tudo que está na sua cabeça, uma hora ou outra parecerá a única saída. Um dia ele ficou muito doente, teve um sonho horrível e nesse sonho ele viu a morte, ela o agarrou pela garganta e tentou o sufocar e então ele acordou. O sonho foi só um sonho, mas aterrorizou o garoto pelo ano inteiro. Já aos quatorze anos ele não via mais sentido em viver, tentou se matar, mas sua técnica de ficar sem comer e sem se mover até o seu corpo desistir dele não foi efetiva. O garoto sofria em silêncio a maior parte do tempo, mas um dia não aguentou mais, ao ver a raiva e as dúvidas do garoto expostas a única coisa que sua mãe pode fazer foi levá­lo ao psicólogo, naquela sala o 

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garoto aprendeu a mentir como ninguém, inventou as mais mirabolantes histórias e conseguiu os melhores remédios para dormir, para alucinações e depressão que pode. Seus dias já não eram mais tão insuportáveis e ele cresceu em uma nuvem de sonolência sem fim causada pelas pílulas que engolia com gosto. Quando não estava andando trôpego pelo quarto ou deitado na cama, ele buscava seu diário e escrevia sobre uma vida melhor, sem remédios e feliz, tão distante isso parecia da realidade que ele acabou acrescentando seres místicos as histórias..."  

 

"Pare."  

 

"Mas ainda não terminou."  

 

"Eu acho que conheço a história." uma única lágrima desceu pelo meu olho esquerdo e eu percebi que o cigarro havia queimado completamente em minha mão.  

 

"De qualquer forma, é sempre bom ouvir da boca de outra pessoa não é mesmo? Tudo parece mais real quando não somos nós os personagens."  

 

"Sim, claro. Eu vou me deitar mais um pouco."  

 

"Tudo bem." eu fechei os olhos e dormi e a paz finalmente pareceu algo real e não só mais uma mentira  

 

"Ah, você está aí." eu ouvi­a dizer logo antes de entrar em sono profundo  

 

Quando acordei me senti bem, a doença ainda apertava em meu peito, mas nada terrível. Pensei que aquilo tudo tinha sido um sonho e não consegui decidir se era um sonho bom ou não, mas para minha surpresa a garotinha ainda estava lá na poltrona e junto com ela estava um gato.  

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"Você ainda está aqui?"  

 

"Claro que sim. Diga oi para o Mordecai." ela segurou o gato no ar e ele bocejou  

 

"Oi."  

 

"E então, quando vai terminar o livro?"  

 

"Nunca, eu acho."  

 

"Besteira, você deveria terminar." mais uma vez suas palavras pareciam tão verdadeiras, não como uma ordem, mas sim como um conselho que você deveria aceitar  

 

"Infelizmente acho que não tenho tempo, ou criatividade restante."  

 

"Você tem papel e a meu ver ainda está vivo. Eu tenho um olho bom pra essas coisas."  

 

"Ainda fica faltando a criatividade."  

 

"Eu posso te ajudar com isso." ela retirou os óculos "Esses óculos fazem com que você veja o mundo de uma forma mais feliz."  

 

"Você está mentindo." eu sorri e foi um sorriso sincero  

 

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"Não mentindo, iludindo talvez. O que você tem até agora?"  

 

"O rapaz morreu e quer voltar a vida, mas nada pode fazer alguém voltar a vida, então o livro deveria terminar ai."  

 

"Isso seria entediante."  

 

"Sim"  

 

"Coloque os óculos."  

 

Eu os coloquei, tudo parecia mais amarelo com eles e, de certa forma, mais feliz também. Uma mosca voou em direção ao vidro e tentou sair pela janela fechada, eu abri a janela e o pequeno animal voou alegre para fora daquela prisão.  

 

"Você também quer dar uma volta?"  

 

"E ter que descer aquelas escadas? Acho melhor não."  

 

"Ah vamos, um passo de cada vez e quando menos esperar já está lá embaixo."  

 

Talvez eu precisasse mesmo de ar fresco. Coloquei meu casaquinho obrigatório que tanto zombava quando era mais novo, minhas sandálias e desci sem medo, mas com grande esforço, os degraus da escada que parecia um pouco menor agora. Logo estávamos na rua e tudo que parecia tão extraterrestre da janela, aqui fora parecia bem normal.  

 

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"Ei, você sabia que eu fui um sem­teto por um tempo?" a perguntei  

 

"Mesmo?"  

 

"Sim, por dois dias eu dormi nesse banco, então meu cheque de pagamento pelo meu primeiro livro chegou e eu aluguei aquela mesma casa."  

 

"Você não gosta muito de mudar não é?" nós sorrimos e ela pegou minha mão e me conduziu até uma livraria "Aqui, é aqui que o seu novo livro vai ficar." disse apontando para a vitrine  

 

"Você acha?"  

 

"Certeza."  

 

"Você é muito otimista."  

 

"Mais do que pensam, na verdade."  

 

"Você acredita que eu serei mais reconhecido depois que morrer, como Van Gogh?"  

 

"Como Kurt Cobain."  

 

"Como Michael Jackson"  

 

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"Como Bukowski."  

 

"Como Jesus." a tempos não dava mais de uma risada em um dia e ainda mais tempo não dava uma risada com alguém 

 

"Sim, eu acho. Mas você não precisa pensar nisso, não é mesmo?"  

 

"Verdade. Eles precisam." apontei para as pessoas dentro da livraria, elas sempre me deixaram intrigado, por que elas não roubavam livros dos outros ou compravam na internet como gente normal? "Eu já assinei livros aqui, nos meus dias de glória. Me lembro bem de uma menininha parecida com você vir até mim e me perguntar onde se escondiam os duendes da casa dela. Eu não soube o que dizer."  

 

"E foi por isso que depois você tentou escrever um romance sem fantasia, não é mesmo?"  

 

"Sim, isso mesmo, eu não consegui, claro. Ele ainda dorme embaixo do meu travesseiro. A vida real é tão enfadonha não é mesmo?"  

 

"Eu não acho, acho bem interessante."  

 

"Talvez eu esteja acostumado com o platonismo em que me enfiei." nós entramos na livraria  

 

"Sem dúvida um pôr do sol é um grande poema, mas uma mulher não fica ridícula ao pintá­lo com palavras grandiloquentes diante de pessoas materialistas?" ela leu a citação em um dos livros da prateleira "Isso não é machista?"  

 

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"Provavelmente só estúpido. Apesar de que não há grande diferença. Qualquer um que pensar que um por do sol é mais que só um por do sol parece ridículo, não importa para quem ele o está descrevendo."  

 

"Eles são bonitos, eu acho."  

 

"Bonitos, mas não há nada de especial na beleza. São os detalhes que contam e um por do sol é o mesmo para todos."  

 

"Alguns são mais avermelhados. Daqui a pouco mais um virá, você quer ver?"  

 

"Claro, porque não?"  

 

Nós fomos até a praia e nos sentamos na areia, ela me pediu para fechar os olhos e eu fechei. 

 

"Se esse fosse o último por do sol que você fosse ver, como você iria querer que ele fosse?"  

 

"Essa é uma pergunta difícil, deixe­me pensar. Eu queria que fosse bem amarelo e que o céu ficasse naquele tom de vermelho depois, sabe? Ia ser interessante."  

 

"Tudo bem, abra os olhos." e lá estava o por do sol amarelo, bem amarelo, feliz  

 

"É realmente bonito, não?"  

 

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"É." a garotinha olhou para cima em contemplação silenciosa "O que aquela nuvem parece?"  

 

"Um cachorro vomitando."  

 

Estava começando a esfriar e eu precisava voltar para dentro, não quis questionar quando a garotinha me seguiu de volta para minha casa. Mordecai nos esperava na soleira da porta, miou e se esfregou pela minha perna quando eu entrei.  

 

"Você quer uma xícara de chá?" eu a perguntei  

 

"Sim, isso seria bom."  

 

Enquanto a chaleira fazia o seu trabalho eu comecei a digitar ferozmente sobre como o meu personagem vencia a morte e ao ferver da água já havia terminado duas páginas. Enquanto a garotinha tomava seu chá em silêncio e o gato dormia em meu colo terminei a história. No fim ele vencia a morte simplesmente deixando de acreditar nela, ele não voltou a vida na minha cabeça, ele simplesmente fingiu voltar, mas para o bem da história resolvi fingir que acreditava nele também.  

 

"E então, terminou?" ela perguntou assim que digitei o ponto final  

 

"Sim, é... terminei."  

 

"Qual o título?"  

 

"Não faço ideia."  

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"Eu penso nisso depois." a garotinha se levantou e ela agora tinha traços mais adultos "Você deveria dormir." e eu tentei, mas não conseguia  

 

"Quer que conte o resto da história?"  

 

"Claro."  

 

"Após se tornar um escritor de algum sucesso ele pensou que sua vida valia de alguma coisa pela primeira vez em muitos anos, esse sentimento desapareceu e logo foi reposto por um medo de não ser o suficiente, a dúvida e o temor o prenderam em uma bolha a qual era muito desconfortável e apertada, mas que ele não conseguia estourar, um dia sem conseguir respirar ele se esforçou e percebeu que não havia bolha nenhuma, que tudo aquilo era um jogo de imagens, um truque mágico, a vida era, sem sombra de duvidas, algo além daquele pequeno universo onde ele vivia, ele percebeu que tudo poderia ser belo e tudo poderia ser feio, dependendo apenas do observador. Então, em silêncio e feliz, morreu."  

 

"É uma bonita história, triste, mas bonita."  

 

"Eu não acho triste. Há piores."  

 

"Claro, claro." eu disse e meus olhos se fecharam "Fins são triste, sempre foram, até os felizes."  

 

"E despedidas também."  

 

"Sempre as detestei."  

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O quarto já não cheirava a doença, o amável cheiro de seus cabelos havia tomado conta do ambiente e eu a perguntei:  

 

"Você crê que a morte traz alguma verdade escondida?"  

 

"Eu penso que não é culpa da morte se as pessoas decidem que o melhor momento pra deixar de mentir é quando ela vem."  

 

A sua voz era melodiosa, suas palavras entravam pelos meus ouvidos e eu não queria as esquecer nunca, quis abrir os olhos mais uma vez, mas não consegui. 

 

"Eu acho que ela dá um empurrãozinho." respondi baixinho, com um sorriso nascendo no canto dos lábios 

 

A garota ficou de pé, o gato subiu na cama e dormiu e antes que eu pudesse perguntar "O que está acontecendo?" aconteceu e qualquer dúvida desapareceu e tudo foi explicado pelo inalar e não exalar do ar que entrava pela janela.  

   

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