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O SOL SE PÕE EM SÃO PAULO

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Romance do autor brasileiro Bernardo Carvalho.

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Page 1: O sol se põe em São Paulo

O SOL SE PÕE EM SÃO PAULO

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Título: O sol se põe em São Paulo

© Bernardo Carvalho, 2007© Edições Cotovia, Lda, Lisboa, 2007

Publicado pela 1.a vez no Brasil,pela Companhia das Letras, São Paulo, 2007

(para venda exclusiva na Europa)

Capa: Silva! designers

ISBN 978-972-795-203-8

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Bernardo Carvalho

O sol se põe em São Paulo

Cotovia

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Para a minha mãe, Beatriz.E para o Henrique.

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[...] estranhos discursos, que parecem feitos por um personagem distinto daquele que os diz e dirigir-se

a outro, distinto daquele que os escuta.

PAUL VALÉRY

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1.

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Não vejo nenhuma metáfora no que eu digo. É como setudo estivesse na sombra. Houve um tempo em que eu fre-qüentava um restaurante obscuro, que não existe mais, cha-mado Seiyoken, numa rua mal-afamada da Liberdade.A comida era boa, o preço honesto e o serviço simpático, paradizer o mínimo, já que nunca nos expulsaram. Quase semprehavia lugar, e não passava pela minha cabeça, nem pela dosmeus colegas de faculdade, que a algazarra que costumávamosfazer depois de uns copos de sakê e de cerveja pudesse inco-modar os outros clientes. Éramos muito convencidos e cegospara pensar duas vezes antes de levantar a voz e discorrersobre o que não interessava a ninguém, a começar pelos gar-çons, que não só ignoravam o tom das nossas discordânciasou, pior, da nossa autocomplacência, como aproveitavam ofato de estarmos engasgados com o que nós mesmos dizíamos,para saírem da sombra que nos envolvia e aumentava con-forme também avançavam as horas e a nossa bebedeira (semque percebêssemos, iam apagando as luzes) e encherem oscopos vazios, sem que se fizessem notar, garantindo assim umagorjeta maior no final da noite e do nosso porre. Quandodávamos por nós, já estávamos no escuro.

Lembro de um jantar especialmente desconcertante emque alguém na mesa gritava que, se não fosse pelo nazismo, omundo não teria entendido e reconhecido os textos de Kafka.Ou de quando alguém citou o exemplo de William Blake —autor do Casamento do Céu e do Inferno, que tínhamos estu-

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dado naquela mesma tarde, no curso de literatura inglesa —,reconhecido só depois de um século da sua morte, como lemada nossa fantasia de incompreendidos: “O que espanta é aincapacidade de ver, avaliar e fazer justiça no presente”. Erauma boa fantasia. Se o reconhecimento nunca vinha das obras,mas das circunstâncias históricas e sociais em que elas sur-giam, toda crítica era uma farsa mais ou menos míope em quea obra servia ou de ilustração para um contexto prévio oucomo justificação para estados de espírito criados por aquelasmesmas circunstâncias. Era isso que chamavam o lugar e ahora certa. Irritava a idéia de que o homem só pudesse ver oque ele já estava preparado para enxergar, que o futuro fossesempre uma projeção do passado. E que não pudesse haveroferta sem demanda, nem em literatura, nem nas artes. Nãopassava pela nossa cabeça que pudéssemos não escapar à regrae também não estivéssemos vendo nada ali mesmo, naqueledebate no Seiyoken. Assim como as obras não podiam estarseparadas dos contextos em que eram criadas, assim como nãopodiam escapar ao presente, nós também não.

No seu curso de literatura inglesa, publicado postuma-mente com o título Borges profesor, o escritor argentino dizque, “para Blake, o que os teólogos costumam chamar deInferno é na realidade o Céu”. A memória daqueles jantaresinflamados fica ainda mais constrangedora quando confron-tada com o que nos tornamos, o contrário do que prometía-mos. Só dez anos depois de uma daquelas noites, na qual a dis-cussão tinha girado em torno da minha pífia ambição deescritor (que hoje me causaria grande embaraço se por umainfelicidade eu viesse a reencontrar um daqueles colegas e lhefosse permitido constatar o que virei, embora saiba que elestambém não se saíram muito melhor), foi que notei pela pri-meira vez a dona do restaurante.

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Passados quase dez anos sem dar as caras, agora queestava desempregado e separado da minha mulher, depois deme foder por nada, trabalhando como redator de comerciaisde uma agência de publicidade, eu voltava de vez em quandoao Seiyoken. Os garçons eram os mesmos e me tratavam comose eu fosse um velho conhecido. Pensando bem, o mais certoseria dizer que, se até então eu não a percebera, era porque elanão se fazia ver. E encontros como aquele esperam a horacerta. Era uma velha discreta, que uma noite saiu do seu cantodebaixo da escada, como uma aparição, para me impor o mis-tério do seu recolhimento. Sempre que estava sozinho, eu pre-feria ficar no balcão. Pelo menos tinha a companhia do sushi-man. Uma vez, lá pelas tantas, quando já não restava ninguémno restaurante, a velha que eu nunca tinha percebido saiu detrás da caixa registradora onde passava as noites — deve ter selevantado e se aproximado furtivamente, porque só a noteiquando já estava ao meu lado — e foi direto ao assunto:“O senhor é escritor?”. Fiquei mudo. Devo ter arregalado osolhos de um jeito que costumava afligir a minha mulher, tantoque ela logo se explicou, como se pedisse desculpas, refe-rindo-se a um garçom: “O rapaz me disse que o senhor é escri-tor”. Era uma velha de cabelos grisalhos e escorridos, presosnum rabo-de-cavalo que lhe dava uma aparência escolar, umvestígio anacrônico da juventude distante, como se uma jovematriz tivesse se maquiado para interpretar uma anciã no teatro.Acho que estava com um vestido de seda azul-escuro. Já nãotenho certeza. Deve ter sido uma mulher bonita. Era magra.O nariz era pontudo. Não correspondia ao padrão oriental.Os olhos também não eram tão amendoados. Estavam incha-dos, intumescidos, como nas máscaras de teatro nô, como seela tivesse acabado de acordar ou estivesse chorando. Nãoestava. Não era alta, mas para mim, sentado no balcão, a suapresença súbita, em pé ao meu lado, conferia à dona do res-

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taurante uma imponência inesperada. Era o contrário de simesma, de tudo o que se podia imaginar de uma velha japo-nesa. Eu não podia saber que naquela noite, pouco antes desair do seu canto para me confrontar com a consciência deuma fantasia que eu achava já ter enterrado, ela recebera apior notícia da sua vida.

“Não”, respondi, um pouco bêbado, incomodado com oque me pareceu a princípio algum tipo de ironia ou piada demau gosto (ainda mais àquela altura, em que eu me via desem-pregado e sem nenhuma outra perspectiva), embora tivessehavido um tempo, dez anos antes, em que costumava alardearas minhas ambições mais íntimas em público, sem a menorvergonha, sempre que surgia a oportunidade. “Na verdade,nunca escrevi nada.”

“O melhor escritor é sempre o que nunca escreveu nada”,ela respondeu, sem dar a entender se a ironia era por decep-ção ou por alívio, e se recolheu à sombra da caixa registradora,debaixo da escada atrás da porta de entrada, de onde nuncadevia ter saído.

Pela primeira vez, me senti mal de estar ali. Depois detantos anos, vi o que já não queria ver, que a minha ilusão nãoia acabar enquanto eu não escrevesse a primeira linha; entendique não tinha vencido os sonhos de adolescente, como che-gara a acreditar, porque ainda nutria aquela fantasia infernal,só que agora em silêncio, só para mim. No fundo, aindaachava que pudesse escrever — e um dia me salvar não sabiabem do quê. A loucura era que nunca tivesse escrito nadaalém de um punhado de roteiros de comerciais. E só isso per-mitia que eu seguisse pensando que podia ser (ou que era)escritor, e que podia me salvar. Terminei de comer o maisrápido que pude e pedi a conta. Estava envergonhado. Saí semolhar para trás. Pensei em não voltar mais ao restaurante. Vol-tei na semana seguinte.

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Quando, um ano depois, num apartamento em Tóquio,o homem com lábio leporino terminou de ler a carta, em silên-cio, e resolvi lhe contar a minha história, tentando explicartambém por que havia desistido da literatura sem nem aomenos ter me aventurado uma vez que fosse, ele logo falou emmasoquismo. Sem saber se ele se referia à história ou a mim,ignorei o comentário, que me pareceu automático e superfi-cial, ainda mais naquelas circunstâncias. Preferi não retrucar.Queria que me contasse de uma vez por todas o que dizia acarta que ele acabava de ler. Esperava que ele a traduzisse.Expliquei que, se tinha voltado ao restaurante, fora por acharque a velha proprietária guardava um segredo. Eu queriasaber por que era melhor não escrever nada.

A Liberdade é um desses bairros de São Paulo que,embora em menor escala do que nas regiões mais ricas, e porisso mesmo de um modo às vezes até simpático, ressalta nomau gosto da sua rala fantasia arquitetônica o que a cidadetem de mais pobre e de paradoxalmente mais autêntico: a von-tade de passar pelo que não é. O pôr-do-sol em São Paulo éreputado como um dos mais espetaculares, por causa dapoluição, eu disse ao homem com lábio leporino. Só fui enten-der que São Paulo era uma cidade de monumentos — masonde os monumentos não existiam; eram por assim dizer invi-síveis — no dia em que sonhei que dirigia um carro, de monu-mento em monumento, pelas ruas vazias de uma tarde dedomingo, no inverno, uma estação que aqui também nãoexiste. Eram monumentos que eu nunca tinha visto antes, eque só existiam no meu sonho, em lugares onde na realidadese erguem os prédios mais decrépitos ou as fantasias arquite-tônicas mais tolas e não menos pavorosas. São Paulo não seenxerga — ou não chamaria periferia de periferia. Não é sóeufemismo. Chamam-se excluídos aos oitenta por cento dapopulação. Não é à toa que é uma cidade de publicitários. Em

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São Paulo, publicidade é literatura, expliquei ao homem comlábio leporino, em inglês, sem deixar claro se fazia uma críticaou me justificava. É uma cidade que quer estar em outro lugare em outro tempo. E essa vontade só a faz ser cada vez maiso que é e o que não quer ser. As mansões mouriscas e ecléti-cas do começo do século XX (a maioria derrubada) e os pré-dios mediterrâneos, neoclássicos, florentinos e normandosconstruídos há poucas décadas revelam o atraso do presente.Cada imigrante, achando que transplantava o estilo da suaterra e dos antepassados, acabou contribuindo para a carica-tura local. Em Nova York, também houve um momento deexaltação capitalista, antes da quebra da bolsa, em 1929,quando o poder do novo dinheiro ergueu prédios renascen-tistas, na tentativa de transformar a cidade numa nova Flo-rença. Quase cem anos depois, o poder do novo dinheiroergueu em São Paulo — uma cidade sitiada pela miséria e pelocrime, dos quais esse mesmo poder se alimenta embora tenteem vão excluí-los — prédios de estuque, que foram batizadosde “estilo florentino”, na tentativa de imitar a antiga NovaYork. Não é só que esteja tudo fora do lugar. Está tudo fora dotempo também. Na Liberdade, nem mesmo um bêbado, aosair trôpego de um restaurante, acreditando que é escritor,pode achar que está numa viela tranqüila dos subúrbios deTóquio e não numa megalópole violenta do Terceiro Mundo.E, no entanto, é disso que as ruas de São Paulo tentam con-vencer quem passa por elas: que está em outro lugar, numesforço inútil de aliviar a tensão e o incômodo de estar aqui, omal-estar de viver no presente e de ser o que é.

O restaurante mantinha as velhas mesas e o balcão detoras de madeira envernizadas, que davam ao ambiente umaspecto nostálgico, alpino, e que eu associava aos anos 50,quando o otimismo desenvolvimentista fez de São Paulo a suaponta-de-lança industrial — e quando o meu pai, filho de agri-

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cultores do interior do Paraná, se mudou para a cidade e abriuuma firma de luminosos em sociedade com um primo dis-tante, de Fukuoka, que começara a ganhar dinheiro com o fimda ocupação aliada do Japão. Fabricavam luminosos que, pormeio de centenas de lâmpadas, piscando em alternância, umascoladas às outras num imenso mosaico, davam a ilusão de tex-tos que corriam sobre uma superfície plana. Veio do meu paia idéia de que eu devia ser publicitário para tocar os negóciosque ele iniciara e criar os textos aos quais as lâmpadas dariamvisibilidade, corpo e movimento.

Voltei ao Seiyoken na semana seguinte. Parei o carro aalgumas quadras e fui a pé. Não estava certo da minha von-tade. Entrei sem olhar para a caixa registradora no vão daescada. Segui direto para o balcão. Pedi um prato de sashimie uma dose de sakê, e duas horas depois, sem comer maisnada nem tomar nenhuma iniciativa, continuava ali sentado, oúltimo cliente. Tinha que ganhar coragem para fazer o quenão era do meu feitio quando sóbrio (não ia ficar bêbado comuma única dose). Aquela era uma espécie de paixão. Melevantei e fui ao banheiro com o mero pretexto de perguntarà dona do restaurante o que tinha afinal contra a literatura.Mas, ao passar pelo vão da escada com a frase na ponta da lín-gua, percebi desapontado que a velha não estava lá, onde sem-pre ficava, atrás da caixa registradora. Havia ido embora semque eu percebesse — ou talvez não estivesse lá desde a minhachegada. Voltei ao balcão. O sushiman perguntou se eu aindaqueria alguma coisa. A cozinha ia fechar. Respondi que não.“Só a conta.”

No dia seguinte, lá estava eu de novo. E, mais uma vez,não a encontrei. Ela podia estar doente. Aproveitei para puxarconversa com o sushiman, que eu nunca tinha visto (não era omesmo da véspera), e perguntar sobre a proprietária. Ao queparecia, tinha chegado ao Brasil havia mais ou menos cin-

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qüenta anos. Ele não estava certo das datas, trabalhava ali faziapouco tempo. Ouvira histórias. O restaurante existia comoutro nome desde meados dos anos 50, quando ela o teriacomprado. Até onde ele sabia (e talvez não fosse muito, maspelo menos era mais do que eu), tudo o que ela possuía foraconquistado com esforço próprio. Não dizia como. E eu pre-feri não perguntar. Pensei no pior. Que o dinheiro fosse sujo.Ela vinha de Osaka, o berço da Yakuza. No fundo, sou ummoralista. O mundo está cheio deles. É um azar quando se tor-nam escritores. Estão sempre prontos a dar opinião sobretudo. Mas eu não estava ali para julgá-la, e, se o fizesse, pro-vavelmente nunca ouviria o que ela guardava sobre a litera-tura, e que a mim bastava para revê-la. O sushiman me con-firmou o que eu já havia intuído: “Foi uma mulher bonita”.Tinha visto fotos. Ela devia estar com uns oitenta anos,embora aparentasse menos. Por que viera para o Brasil? Haviarumores. Alguma coisa a ver com um homem que teria sematado no monte Koya, sede da seita budista Shingon, quequer dizer “A Palavra Verdadeira”. “Seppuku”, disse o sushi-man. “Koyasan é o melhor lugar para morrer no Japão. Quemmorre em Koyasan segue vivo.” Perguntei o que teria levado ohomem ao suicídio. E o sushiman, que naquela hora cortava acarne branca dos tentáculos de um polvo, respondeu, semolhar para mim, como se falasse de uma doença qualquer:“Dizem que foi a literatura”.

Eu não quis saber mais nada. Ela estaria de volta na terça--feira (tinha ido ao interior), e eu esperei aquele dia na maioransiedade. Terça à noite, lá estava eu, mais uma vez, sozinho,sentado diante do balcão. Ao entrar, não resisti a olhar para ovão da escada, e, deparando aliviado com a figura da velha,cumprimentei-a com um movimento de cabeça e um aca-nhado boa-noite. Fui o último a sair, como sempre, quando jáestavam fechando. Durante toda a noite, ela não havia deixado

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o seu canto, atrás da caixa registradora. Antes de ir embora,parei diante dela, que lia, e arrisquei: “Pensei que não gostassede literatura”. Infeliz. Era uma forma desastrada de retomar aconversa que eu mesmo tinha abortado duas semanas antes.Ela apenas levantou a revista, de modo que eu pudesse ver otítulo — para mim, incompreensível — em japonês e, na capa,a foto de uma casa de dois andares — em Tóquio, supus —com cortinas esvoaçantes no lugar das paredes externas. Umacasa com cortinas no lugar das paredes, como se fosse umpalco voltado para o exterior. A imagem não fazia sentido. Elanão precisou responder que a revista não tratava de literatura.Só me desejou boa noite.

Alguma coisa na primeira vez em que me dirigiu a pala-vra, perguntando se eu era escritor, me dizia que ela guardavauma história e procurava alguém para escrevê-la. Embora eunão fosse escritor, foi essa suspeita que me deu ânimo parainsistir e voltar dois dias depois, como quem se ilude a pontode crer que a vida é feita de sinais e que afinal está diante dasua grande chance. Eu era movido por sentimentos ambiva-lentes: achava que ela podia me curar do sonho da literatura,mas no fundo queria acreditar que, de alguma maneira, aquelamulher tinha o poder de me transformar num escritor. Só merestava mentir. Fiquei no balcão, puxei conversa com o sushi-man (o mesmo da última vez) e, na primeira oportunidade,disse-lhe que era escritor. Ainda que sem convicção (faziatempo que não repetia aquilo em público), falei alto. O efeitofoi mais rápido do que eu imaginava. E foi quando entendique a dona do restaurante também estava à minha espera.Estava tomada por uma loucura que só na aparência nadatinha a ver com a minha. No fundo, sofríamos do mesmo mal.Ela também esperava o dia em que, sentado diante do balcão,eu voltasse a dizer, para quem quisesse ouvir, que era escritor,como no tempo da faculdade.

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À saída, como eu era o último cliente — um hábito quevinha conservando sempre que ia ao restaurante, mesmo antesde querer descobrir o que a velha tinha contra a literatura —e ela já não precisava manter as aparências, adiantou-se e foimais uma vez direto ao assunto. Não tinha papas na língua.Não chegava a ser grosseira. Era como se não tivesse tempo aperder. Em parte, isso tinha a ver com o fato de se expressarnuma língua estrangeira, por melhor que a dominasse. Alémdo mais, deve ter sentido o grau da minha curiosidade, quepor si só justificava a falta de cerimônia. Foi ela quem se inter-pôs no meu caminho. Perguntou que tipo de livros eu escre-via. “Romances.” Perguntou se estava disposto a conversarcom ela um dia daqueles. Apesar do mau jeito, era umasenhora reservada. Estava sempre na sombra, com a gola e ospunhos das mangas abotoados, e por isso foi só ali, quando elame estendeu a mão pela primeira vez, para me cumprimentarà luz e propor um encontro dois dias depois, que notei a pul-seira com uma pequena medalha onde estavam gravados doisideogramas mínimos, que o movimento natural do braço aarregaçar ligeiramente o punho de seda descobriu. Quandochegasse a hora, ela me revelaria que formavam o título de umromance que nunca fora escrito.

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