o sofrimento na nossa cultura do sucesso transcrição cpfl maria livia monteiro

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Maria Lívia Moretto: O sofrimento na nossa cultura do sucesso Café Filosófico Canal da Editora Boitempo Link: https://www.youtube.com/watch?v=nTVuwSGx40c ::: Transcrição ::: Boa noite, muito obrigada pela presença, por terem vindo e pelo acolhimento simpático do pessoal aqui do Café Filosófico. Eu quero começar essa conversa agradecendo a possibilidade de estar aqui com vocês, agradecendo à Luna, à Marta e especialmente ao meu amigo Christian Dunker, curador desse módulo “Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma”. Nessa série que vai discutir esses três temas e, sobretudo, articulação entre eles. Eu agradeço porque é sempre importante que a gente agradeça a oportunidade que nos é dada de discutir com público aquilo que a gente toma pra si como causa. Nós estamos discutindo o sofrimento, e vocês não tão aqui à toa. Certamente, por mais agradável que seja o lugar, não estão aqui a passeio.Então, sim, eu agradeço a oportunidade de poder compartilhar com vocês o meu trabalho. Na parte que me cabe, então, nessa série, nesse módulo, e sobre isso nós vamos conversar hoje, nós vamos falar sobre o sofrimento e sua relação com os ideias de felicidade, e aquilo que ao longo da conversa eu vou propor que a gente entenda como imperativos de gozo. O nosso título, no nosso título, temos uma frase afirmativa: “é preciso ser feliz”. Então, nós vamos discutir o sofrimento nessa cultura de sucesso. Eu tenho intenção de fazer com que, ao longo da nossa conversa, a gente consiga modificar o ponto de afirmação transformando isso em interrogação: “é preciso ser feliz?”. Será que é preciso ser feliz mesmo? Então, de certa maneira, o que estou dizendo pra vocês é que minha expectativa é que a gente consiga, ao final da minha exposição, conversar, a gente consiga chegar à uma espécie de clareza, não vou dizer de consenso, do que seria uma espécie de sofrimento atual à moda brasileira. Como é que o brasileiro sofre hoje de acordo com a visão, ou melhor a escuta de um psicanalista.

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Transcrição da palestra de Maria Livia Monteiro no CPFL Cultura.

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Page 1: O Sofrimento Na Nossa Cultura Do Sucesso Transcrição CPFL Maria Livia Monteiro

Maria Lívia Moretto: O sofrimento na nossa cultura do sucesso

Café Filosófico

Canal da Editora Boitempo Link: https://www.youtube.com/watch?v=nTVuwSGx40c

::: Transcrição :::

Boa noite, muito obrigada pela presença, por terem vindo e pelo acolhimento simpático do pessoal aqui do Café Filosófico. Eu quero começar essa conversa agradecendo a possibilidade de estar aqui com vocês, agradecendo à Luna, à Marta e especialmente ao meu amigo Christian Dunker, curador desse módulo “Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma”. Nessa série que vai discutir esses três temas e, sobretudo, articulação entre eles. Eu agradeço porque é sempre importante que a gente agradeça a oportunidade que nos é dada de discutir com público aquilo que a gente toma pra si como causa. Nós estamos discutindo o sofrimento, e vocês não tão aqui à toa. Certamente, por mais agradável que seja o lugar, não estão aqui a passeio.Então, sim, eu agradeço a oportunidade de poder compartilhar com vocês o meu trabalho. Na parte que me cabe, então, nessa série, nesse módulo, e sobre isso nós vamos conversar hoje, nós vamos falar sobre o sofrimento e sua relação com os

ideias de felicidade, e aquilo que ao longo da conversa eu vou propor que a gente entenda como imperativos de gozo. O nosso título, no nosso título, temos uma frase afirmativa: “é preciso ser feliz”. Então, nós vamos discutir o sofrimento nessa cultura de sucesso. Eu tenho intenção de fazer com que, ao longo da nossa conversa, a gente consiga modificar o ponto de afirmação transformando isso em interrogação: “é preciso ser

feliz?”. Será que é preciso ser feliz mesmo? Então, de certa maneira, o que estou dizendo pra vocês é que minha expectativa é que a gente consiga, ao final da minha exposição, conversar, a gente consiga chegar à uma espécie de clareza, não vou dizer de consenso, do que seria uma espécie de sofrimento atual à moda brasileira. Como é que o brasileiro sofre hoje de acordo com a visão, ou melhor a escuta de um psicanalista.

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Porque é claro que eu falo pra vocês a partir dessa experiência clínica enquanto psicanalista, que por si só a experiência de um psicanalista equivale à experiência de entrar em contato diariamente, por opção dele, com o sofrimento do outro. Esse ofício, esse trabalho, ele sustenta sustentado por esse desejo, de preferência um desejo bastante analisado, de acolher e tratar do sofrimento daquele que vai ao seu encontro. Vocês sabem que o que promove o encontro de alguém com psicanalista é

o sofrimento. Não acreditem na grande possibilidade disso ser diferente; se alguém procura um psicanalista, em qualquer situação, é porque ali há um sofrimento que foi desencadeado por alguma coisa que, não necessariamente, quem convive com esta pessoa, sabe. Muito difícil, muito pouco provável que alguém procure um psicanalista porque está bem; nesse caso é melhor que não o faça, é arriscado, porque vai virar uma questão, no mínimo vai virar uma questão. Então, se vocês estão de acordo comigo, e a ideia é que a gente chegue pelo menos em algum acordo, se vocês estão de acordo comigo de que o que leva … vamos pensar, é um princípio, o que leva alguém a procurar um psicanalista é o sofrimento, então, vocês também vão estar de acordo comigo de que a clínica psicanalítica funciona como uma espécie de espelho da cultura. Por que que eu tô propondo isso? Espelho, reflexo da cultura, reflexo no sentido de que, se um

sujeito leva seu sofrimento a um psicanalista, ele não leva simplesmente as

questões ligadas ligado a ele e ao mundo; ele leva questões ligadas a ele no

mundo. Então, nesse sentido que eu tô propondo que a gente considere a clínica psicanalítica como reflexo da cultura, ali onde se sofre, e, às vezes, onde se sofre na intimidade, é a isso que um psicanalista vai ter acesso. Pra Freud, pra psicanálise, há uma relação intrínseca entre inconsciente, subjetividade e cultura, donde se parte do princípio básico de que a constituição da subjetividade humana, e também as modificações que ocorrem com esta subjetividade, se dão num campo chamado alteridade. Por alteridade

compreendam o campo da relação com o outro, ou se preferirem, a subjetividade se constitui e se modifica naquilo que a gente chama de laço social.

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Nesse sentido, nos interessa muito de perto o exame, examinar a relação que se estabelece entre a subjetividade e as mudanças da ordem social, as mudanças de ordem política, as mudanças de ordem econômica, financeira de um certo tempo, de uma certa época. Em outras palavras, estou dizendo que interessa ao

psicanalista estudar as relações entre contemporaneidade e processos

psíquicos. Nessa mesma direção, e talvez por isso Lacan reforça a importância da relação entre clínica e cultura, e escreve que “antes renuncia a tudo isso” - tudo isso aí é exercer a psicanálise - “aquele que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”. Essa é a questão que estamos discutindo: o sofrimento hoje no Brasil. Se Freud era um crítico da cultura, e nós sabemos que era, a pergunta que se apresenta é: Qual é a crítica que hoje fazemos à cultura da qual pertencemos e a qual testemunhamos? O que acontece hoje que não acontecia antes que faz com que o psicanalista afirme que hoje sofre-se de um modo que não é igual ao que se sofria no tempo do Freud? Claro que as estruturas se sustentam, mas as contingências são outras porque a cultura é outra, o tempo é outro, as subjetividades, a gente já falava, se constituem no campo da alteridade. Então, estou querendo que a gente chegue nisso, quer dizer, o que é que caracteriza o que a gente chamou de sofrimento tipicamente à brasileira, de sofrimento à moda do Brasil? Por que os sujeitos brasileiros, hoje, para que eles procuram análises, o que eles contam como sofrimento, qual é a dor, que tipo de sofrimento frequenta a clínica psicanalítica hoje; acompanham? É por aí que a gente vai conversar. Nesse ponto, quando eu falo de clínica psicanalítica, eu queria falar também que eu não estou me referindo - este é um esclarecimento que eu julgo importante - eu não estou me referindo ao consultório do psicanalista, necessariamente. O

psicanalista atua, cada vez mais, em diversos contextos que não só o seu

consultório. Ele atua em instituições, ele atua em instituições de Saúde, em hospitais, em UBS’s, em escolas, em empresas, em universidades, que é nosso caso. Então, quando eu digo pra vocês, com muita segurança, que a clínica

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psicanalítica não equivale a um lugar geográfico é porque eu quero dizer pra vocês que a clínica psicanalítica é um modo de relação que se estabelece entre o psicanalista e alguém que sofre, independente do contexto. Essa clínica,

portanto, se faz possível e muito mais fundamentada num texto do que

num contexto. Isso é muito claro pra mim, não é nosso tema hoje, mas com certeza esse é um tema que me sustenta, que é o meu trabalho ao longo de 23 anos dentro de um hospital, no caso foi o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. É um lugar privilegiado, um hospital é um lugar bastante privilegiado para aquele que se interessa pelo sofrimento, por abordar o sofrimento. A gente vai poder falar um pouco disso ao longo de nossa conversa. Onde quer que esteja o psicanalista - voltando ao que eu falava ainda há pouco - a lógica que faz alguém buscá-lo é mais ou menos a mesma, seja em seu consultório, seja na instituição, seja na rua, nos projetos de acolhimento e atenção ao sofrimento dos moradores de rua, enfim, têm várias possibilidades da gente pensar a clínica psicanalítica. De qualquer maneira, é sempre por conta de uma dificuldade ligada ao manejo do sofrimento; por exemplo, dentro do hospital uma equipe de saúde solicita a presença de um psicanalista. Não não é por conta da gravidade de uma doença por si só, é porque no contexto onde a equipe de saúde atua, aparece esse elemento chamado “sofrimento” e imediatamente a ideia de que há alguém, existe alguém interessado nisso; é aí que acontecem os chamados ao psicanalista. Então, o paciente que procura o psicanalista está interessado em tratar do seu sofrimento; o profissional que acessa um psicanalista o faz pela mesma razão. O profissional pode chamar um psicanalista, seja por conta do sofrimento do seu paciente, seja por conta do sofrimento dele próprio no contato com o paciente, mas de qualquer modo nós estamos falando da relação entre o chamado e o sofrimento. E aí tem uma coisa que é importante, que a gente vai precisar conversar mesmo, que é assim: o que justifica o chamado ao psicanalista é o sofrimento mas é

o sofrimento de cada um. E aí entramos um pouco no que de fato a gente precisa. O que estou chamando de sofrimento de cada um? Estou inventando este termo porque eu preciso que vocês me ajudem a distanciá-los da ideia de um

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sofrimento consensual, um sofrimento de grupo, um sofrimento no atacado. Claro que existe essa possibilidade, a gente poderia combinar aqui que a perda de um ente querido gera sofrimento, ponto. É como se isso tivesse dado, resolvido, combinado: todo mundo que perde um ente querido há de sofrer. Eu não estou contradizendo isso, embora seja possível colocar uma dúvida, dependendo do ente querido, do quão este ente querido é querido, mas não é exatamente esse sofrimento de todos que interessa a um psicanalista, este sofrimento compreensível a priori não é exatamente o que interessa ao psicanalista. Porque interessa ao psicanalista aquilo que faz “um” sofrer, o modo singular de

sofrimento de cada um. Até porque uma pessoa pode procurar, dificilmente vai procurar um psiquiatra quando sai do cinema. Mas é possível, um psicanalista não vai estranhar que alguém lhe telefone pedindo pra marcar o primeiro encontro dizendo “eu assisti a tal filme, eu preciso…”, o filme pode ser uma comédia, inclusive, talvez até por isso, mas não é estranho a um psicanalista que alguém lhe procure dizendo que precisa marcar um começo de um trabalho no dia que a irmã vai casar, sobretudo se for a irmã mais nova; no dia em que recebe a notícia de aprovação em um concurso. É uma razão… vocês não vão encontrar no DSM porque que alguém vai procurar uma pessoa quando é promovida a presidente de uma empresa, porque tirou 10 na escola. São motivos que frequentam muito a clínica psicanalítica. E aí eu vou eu vou chamar Freud pra me ajudar e dizer que ele tem uma expressão, do meu ponto de vista bastante visionária do que aconteceria com a gente hoje, é possível que pessoas sofram na medida em que se sentem

arruinadas pelo êxito. Isto é importante, isso nos interessa. Esse sofrimento é muito singular, é aquela pessoa. Por alguma razão, que não está em manual algum, que talvez ela própria não tem a mínima ideia do que está acontecendo com ela; até porque ela nos conta que isso que ela conquistou foi o projeto de uma vida inteira. Então tem qualquer coisa aí sobre si que ela própria não sabe, indicando a existência do inconsciente. Sofre-se pelo que não se sabe. Naturalmente, eu não posso dizer pra vocês, embora eu esteja dizendo que isso é frequente, isso não me autoriza, quando penso na ideia de sofrimento singular, por isso que eu chamei de sofrimento de cada um, isso não autoriza nenhum de

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nós a dizer pra vocês que cinemas são insalubres, ou que irmãs mais novas casando são fatores de risco, que isso é um fator de risco, que pode parar no psicanalista por conta de uma contingência dessa. Eu não posso dizer que promoções na carreira ou aprovações em concursos são necessariamente fatores desencadeantes de patologias. De maneira nenhuma eu posso dizer sequer que sofrer é uma patologia.

Mas eu posso dizer que interessa ao psicanalista o sofrimento de cada um e isso, pra gente, é o que a gente chama de lógica da singularidade. Muito bem, contrapor a lógica da singularidade é propor uma felicidade no atacado, uma felicidade para todos, é acreditar, portanto, tudo o que tem a ver com “para todos” tem a ver com a lógica universalizante, portanto, pautada nos ideais. O ideal de que a felicidade não só existe mas ela é acessível para todos, “se você ainda não a acessou é porque você tem um problema, se você até uma altura dessa não se sentiu feliz é porque x, y, z”. Enfim… Vocês estão entendendo que a gente sabe, pela experiência clínica que alcançar ou chegar perto disso que se chama, na nossa cultura, alguns ideais de felicidade, isso coincide, muitas vezes, como o motivo pelo qual alguém procura um psicanalista. Parece paradoxal e é, na verdade. O fato é que nós vivemos numa cultura que propõe a felicidade, articulada nesse campo do coletivo, como se houvesse a possibilidade de um felicidade possível pra todos, e a psicanálise, por sua vez, vem atestar, para não dizer contestar, mas vem atestar com segurança de que

cada um, a despeito desses ideais, sofre ao seu modo. Portanto, se o que nos interessa é a felicidade de cada um, nós só podemos pensar em tratar no sofrimento de cada um. Não tem como um psicanalista dizer para uma pessoa: “este seu sofrimento não é adequado”. Porque existe isso, as pessoas dizem “seu sofrimento é desproporcional ao fato”, não tem mais irritante que isso, quando a gente presta atenção num programa como este, por exemplo. Muito bem, tudo isso que eu tô dizendo é a título da gente introduzir o tema, mas o argumento forte mesmo, que eu acho que vai orientar a nossa conversa daqui a

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pouco é o seguinte: se a subjetividade se constitui nesse campo de

alteridade, toda expressão de sofrimento traz em si uma demanda de

reconhecimento. Isso é uma coisa sutilíssima, e a gente precisa se deter um pouco nesse ponto; o que é isso?: sofrer é demandar reconhecimento. A gente pode analisar o sofrimento ou constatar o sofrimento que decorre do desejo de reconhecimento que nos falta - pessoas não nos reconhecem, ou pelo menos não nos reconhecem no lugar que a gente acha que devia se reconhecido ou que a gente gostaria de ser reconhecido. Essa é uma possibilidade. Há também uma outra possibilidade, diferente dessa, porque essa primeira é o desejo de reconhecimento que nos falta; uma segunda possibilidade é a falta de reconhecimento do nosso desejo, é a falta do reconhecimento, por parte do outro, da nossa condição de desejante. E aqui é importante que se faça clara é equivalência estrutural, que a condição

desejante de um sujeito equivale, por estrutura, à sua condição de faltante. Muitas vezes sofre-se por não poder ser reconhecido como alguém marcado pela condição de desejante, pela condição de faltante. As pessoas, por alguma razão, preferem nos reconhecer como completos, fálicos, inteiros, sem falta; isso é chave importante, fonte importante de sofrimento. É muito crítico, é muito difícil para algumas pessoas se apresentarem no

laço social como portadores de faltas. Por conta mesmo da relação disso com os ideais de completude e felicidade que orientam a nossa cultura. Habitualmente quem tem muita dificuldade de se apresentar no laço social como portador de falta é alguém que interpreta suas faltas como falhas, pontos falhos, defeitos que deveriam ser consertados, desordens que deveriam ser ordenadas. Essas pessoas se apresentam como pessoas-problemas, elas não identificam a falta como um elemento que lhes constitui enquanto sujeito humano. É claro que estou exatamente no ponto que o nosso título propõe, estou

examinando a relação dos sujeitos hoje, no Brasil, com os ideais de

sucesso, completude e felicidade. Mas tem mais: têm os ideais de beleza e têm duas outras coisas que eu quero muito poder conversar com vocês, que são os ideais de autonomia e autenticidade. “O ideal é que você seja autônomo, o ideal é

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que você seja autêntico”; leia-se por “autêntico” alguma coisa do tipo “seja você mesmo”. Que coisa complicada uma pessoa ter que ser ela mesma por ordem de uma cultura. Isso, aprofundado, não sei se vamos ter tempo pra isso, mas isso, aprofundado, nos ajudaria muito a articular as noções de mal-estar, sintoma e sofrimento, permitindo, ainda, que nós articulemos também as noções de diagnóstico e cuidado, para a psicanálise. À guisa de conclusão - precisamos caminhar pra concluir - eu vou organizar

daqui pra frente minha fala em 3 momentos (só para vocês me acompanharem, isso é coisa de professor): 1 - Os ideais de sucesso; 2 - As narrativas de sofrimento, os modos de apresentação do sofrimento que são frequentes na clínica psicanalítica hoje, e 3 - Tratamento: como é que a gente tem pensando em tratar disso hoje. Vamos falar menos disso, mas vamos tocar nisso também. Ponto 1. Os ideais de sucesso. É claro que vou ser esquemática porque a situação exige, mas eu posso dizer pra vocês, aproveitando inclusive as duas conversas dentro desse módulo que vocês já tiveram com os meus colegas Christian e Nelson, eu posso dizer pra vocês que as transformações da cultura ao longo do tempo permitiram que a felicidade fosse deslocada do campo do

sonho - o sonho de ser feliz - pro campo dos ideais, lembrando que sonho e ideais são duas noções caríssimos à psicanálise. O fato é que isso não fica sem consequência quando a felicidade sai do campo do sonho pro campo do ideal. É claro que eu tô me referindo aqui ao conceito de

Ideal como aquilo que norteia, é norte pra vida subjetiva de uma pessoa; é aquilo que orienta, pra não dizer que desorienta também, em algumas situações, a decisão de uma pessoa. Quando alguém tem que decidir qual rumo tomar, habitualmente ela se refere, ainda que não fale isso pra ninguém, mas ela se refere aos seus ideais. Exemplo bastante comum no nosso cotidiano: jovens diante do desafio, da escolha da profissão. Não existe a possibilidade da gente pensar num jovem - e

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cada vez mais jovem - diante de uma coisa dessas, fazer uma escolha dessas, sem se deparar com os ideais da cultura. Eu não estou nem falando dos ideais da família dele, os ideais da cultura porque às vezes os ideais da família, pra ele é muito fácil, ele vai pelo avesso; se fosse só isso estava excelente, estava fácil. O problema é que se você diz pra um jovem “tenha visão de futuro” - na verdade você não precisa dizer isso pra um jovem, diga isso pra qualquer pessoa “tenha visão de futuro”, você abre uma porta chamada “angústia”, porque talvez a

ideia, não o ideal mas a ideia de visão de futuro, seja uma das coisas mais

angustiantes que uma pessoa lúcida pode imaginar. Se a gente pensar o que vai acontecer no futuro… enfim… talvez nenhum de nós esteja aqui pra ver. Mas ocorre que decidir alguma coisa hoje pautada na visão de futuro - estou imaginando aqui, a gente tá falando de sofrimento à brasileira, o que é você ser cidadão do país do futuro, mas enfim - ocorre que a visão de futuro de verdade, se a gente foi levar isso a sério, alguém que tenha sobrevivido a uma crise de angústia só pode planejar o seu futuro baseado em elementos do seu passado. Ele vai ter que se posicionar frente a algo que lhe antecedeu pra imaginar o que ele vai ser daqui pra frente. Toda decisão que precisa ser tomada não vai, na verdade, na visão do psicanalista, ser tomada apenas com os elementos do tempo

presente, porque os elementos do tempo presente não muito frágeis por mais evidentes que sejam, talvez sejam os únicos que estão na mesa, o fato é que pra decidir coisas ligadas ao futuro a gente lança mão dos ideais e a gente lança mão das experiências passadas, muitas delas que a gente nem lembra. Decisão é

coisa difícil. Nós estamos diante, no momento presente, entre o que a gente não lembra: passado, e o que a gente não sabe: futuro. De fato não é uma situação psíquica das mais confortáveis. Mas voltando ao que quero dizer, se decisões, quando precisam ser tomadas, levam em conta os ideais, os ideais de nossa cultura, não só brasileiras mas estou me referindo à cultura brasileira, que também não é uma só, podem muito bem ser representados por expressões como “seja feliz”, “seja autêntico”, “seja você mesmo”, “tenha sucesso”, “seja belo”, “tenha autonomia”, tudo bem, ideais - vamos fazer as pazes com eles - teriam a rigor a função de orientar, orientar decisões. O problema é quando os ideais são interpretados por cada sujeito

como imperativos; aí a gente começa a entrar num campo bastante

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problemático porque esta interpretação que transforma os ideais em imperativos, transformam frases do tipo “o ideal é que você seja” em frases do tipo “seja porque você tem que ser”. “Ter que ser” é diferente de “o ideal é que você seja”. “Você tem que ser feliz”, “é preciso ser feliz”, “você tem que ter sucesso”, “você tem que ter autonomia”, “você tem que ter autenticidade”, “você tem que, enfim, ser você mesmo”. “Obedeça a mim, mas você tem que ser você mesmo”. Vou abrir um parêntese que acho que pode nos ajudar, só pra vocês terem a dimensão do quanto esta noção, essas noções de autonomia e autenticidade elas interessam ao psicanalista nessa discussão que nós estamos nos propondo aqui hoje. Porque a gente precisa ter um certo cuidado com isso. Se, como falei no começo, nós somos pessoas que nos constituímos a partir da relação com o outro, naquilo que eu chamava há pouco de campo da alteridade, é claro que a

autonomia é uma condição psíquica que não é dada, ela vai ser constituída e ela vai ser constituída, construída justamente numa relação na qual eu sou um dependente, porque quando eu chego no mundo chego numa condição

essencialmente de desamparo e não consigo me tornar de fato um ser humano se não for pelo acolhimento de um outro, seja ele quem for. Então, o que eu tô dizendo é que autonomia é uma condição psíquica altamente complexa, sofisticada, herdeira, portanto, de uma relação de dependência; herdeira, portanto, de uma relação que Lacan chama de alienação. O que estou dizendo é muito paradoxal mas quero muito que vocês me acompanhem. O que estou dizendo é: ninguém consegue chegar a esta condição de autônomo se não tiver sido antes um bom desamparado; ninguém consegue, de fato, se constituir, ninguém consegue se separar do outro se não tiver sido muito bem alienado. Então, veja que é nesta relação de dependência que eu me constituo como um sujeito autônomo, eu preciso do outro para ser autônomo. É essa saída, de uma posição à outra, de uma posição de alienação para uma posição de autonomia, essa saída o sujeito não faz isso sozinho, ele faz isso por meio da relação com o outro. Eu não disse: o outro faz por ele, ele faz por meio da relação com outro. Há, na atualidade, sobretudo nos discursos das escolas, discursos da Educação, mas também o discurso da Saúde o que eu tenho um chamado - me incomoda

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um pouco, mas enfim… - de imperativo de autonomia. Isso a gente escuta com muita frequência: “aqui nessa escolas nosso objetivo é facilitar a construção da autonomia dos nossos alunos”, quase que assim “ou você vai ser autônomo ou vai ser reprovado”. A gente precisa tomar um certo cuidado com isso. Na Saúde tem muito isso também, a ideia de que é um sujeito que tá doente, ele está mais grave se ele tiver menos autonomia, se ele tiver menos dependente dos cuidados de um outro. Eu tenho acompanhando, tenho visto com alguma preocupação porque eu acho que tem muito pouca pesquisa sobre isso, mas vocês sabem, vocês têm acompanhado: hoje, isso é fato, as pessoas vivem mais, as pessoas morrem mais tarde. Eu tenho acompanhado o sofrimento, é preciso dizer, de alguns idosos preocupados em serem velhos autônomos. (Acho que isso seja, talvez, um acordo com a Escola, “seja autônomo desde agora porque o fato é que se você envelhecer sem autonomia você vai ser caro, não é só pra sua família, não, é pro seu País”). Temos o sistema público de Saúde que se interessa muito pelo tema da autonomia, a gente precisa prestar atenção nisso. O que eu quero dizer é que: educar ou administrar situações onde falta autonomia, é muito perigoso que as pessoas tomem isso ao pé-da-letra, porque neste sentido a noção psicanalítica de autonomia faz diferença. A gente não pode entregar um protocolo “siga os passos que seu filho seja autônomo”, a gente não pode realmente acreditar, tomar isso ao pé-da-letra e achar que é por meio de determinados comportamentos - fora da relação a qual me referi ainda agora - que uma criança vai construir a autonomia na vida dela. “Se vire sozinho”; a chance de uma criança escutar uma expressão dessa “seja independente”, “se vire sozinho”, a chance de uma criança escutar uma coisa dessa como abandono, como desamparo é imensa. Eu quase que digo que isso pode ser traumático; a ideia de que você “tem que se virar sozinho” é a ideia de que você não me interessa, o que acontece com você não me interessa . Eu não estou generalizando, mas estou dizendo assim, isso põe pais muito bem intencionados bastante angustiados porque o que eles vêm nos perguntar é: “qual é a medida? Qual é a dose? Até quanto eu posso deixar meu filho sozinho?”. Até quando deixar sozinho é cuidar ou é abandonar; esta é uma questão, bastante contemporânea, inclusive.

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Tudo isso é pra dizer ou talvez pra perguntar se vocês me acompanham na idéia de que qualquer tipo de protocolo é arriscado porque ele nega a

singularidade de cada caso. Eu, pra ter uma criança autônoma eu preciso de várias condições; duas delas talvez mereçam destaque. Eu preciso de um adulto que acredite que ali naquela criança há um sujeito capaz de decidir, e uma outra condição que ultrapassa a crença é o desejo, o desejo desse adulto de que esta criança se torne um sujeito capaz de decidir. Portanto, estou dizendo de um desejo de produzir um sujeito, abrindo mão da criança como objeto de sua

própria satisfação.

Então, a questão da autonomia e consequentemente a questão da autenticidade, é muito irônico que a gente escute uma coisa dessas como ideais da sociedade, “você tem que ser autônomo”, “você tem que ser autêntico”; isso não se compra, isso faz parte da subjetividade, isso é ou não, constituído em um determinado momento da vida. O risco disso não ser compreendido é a gente deixar em silêncio a confusão que decorre disso. Por exemplo, se autonomia for entendida como separação no campo do comportamento, a gente vai acreditar que a distância é uma medida interessante, quando, na verdade, a autonomia é a condição psíquica de se diferenciar do

outro, não é se distanciar do outro, não é mandar o filho pra passar um ano longe pra ele voltar autônomo. “Não, ele voltou ótimo, tá ótimo, não depende nada de mim”; ok, não depende, mas está gravemente doente porque não tem condições de decidir nada, ele vai lhe perguntar qual é o próximo lugar que ele vai. Autonomia é a condição de decidir, portanto, de me diferenciar do outro, “eu não sou aquele que sirvo como objeto de satisfação de quem me rege”. Então, vocês estão percebendo que alguns equívocos são possíveis: confundir distância com diferenciação; distância faz sofrer, diferenciação, não, diferenciação pode libertar alguém, inclusive libertar a ponto de alguém querer ficar junto, não precisa se separar para ter autonomia. Bom, tudo bem os Ideais (ponto 1)? Vou passar pro ponto 2 - Narrativas de sofrimento que são frequentes na

clínica psicanalítica. Estou chamando de narrativas são formas de

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apresentação. Não são tantas assim, se a gente for levar coisa a séria mas eu vou destacar três. Dentro do ponto 2 vou destacar três narrativas que provavelmente vão fazer a gente discutir uma coisa mais tarde. Primeira narrativa é a narrativa do fracasso pessoal. É a narrativa que traz consigo uma forma de sofrimento onde esse sujeito se apresenta como fracassado. Imediatamente eu tenho que relacionar isso com o que a gente acabava de falar: os imperativos - diferentes dos ideais - produzem fracassados, porque os imperativos quase sempre são afirmativas que trazem em si algo da ordem do impossível, pelo menos na singularidade. Então, se eu sigo o imperativo da autonomia, eu sigo como um soldado, parecendo que sou autônomo mas não sou. Então, isso contradiz próprio conceito de autonomia. Diante de um imperativo “você tem que ser”, a resposta que o sujeito entende que ele deu ao imperativo é a resposta do fracasso. Ele, portanto, sofre porque ele se sente, de fato, fracassado por não ter correspondido ao que ele diz que se esperava dele e se apresenta ao psicanalista desta forma, com esse tipo de narrativa. Nesse ponto eu também quero trazer pra vocês uma coisa que a gente tem precisado pensar, que é uma diferença muito sutil entre as noções de impossível

e impotência. O que eu quero dizer é, frente ao impossível, ao que não é possível, o sujeito interpreta o impossível, o impossível de ser, como algo relativo à sua impotência. [Aqui ela dá um exemplo cotidiano, de um aniversário de uma pessoa muito amiga, que mora em Nova York; foi convidada, mas não pode ir, não só por estar no Café Filosófico] Não existe possibilidade, nenhum recurso da realidade me levaria a jantar em Nova York hoje. Isso não é possível. Eu poderia chegar pro meu analista na segunda-feira, e dizer pra ele: eu sou uma fracassada porque eu não fui ao aniversário do fulano de tal, me sinto impotente. Vocês imaginam que eu tava em Campinas sofrendo pela impotência de não estar em Nova York. Não. Tem alguma coisa errada nessa narrativa. Isso não tá certo. Se sofrimento tem a ver com a demanda de reconhecimento, esta é uma demanda de reconhecimento de um impotência que nós não podemos avalizar, porque não se trata de impotência neste caso se trata de impossibilidade. Se você, por alguma razão, absolutamente singular interpreta o impossível

como impotência, talvez isso seja uma ilusão de onipotência.

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Essa diferença que estou propondo entre o impossível e a impotência interessa e muito ao psicanalista, como interessava a Mario Quintana. Eu cito Mário Quintana num determinado momento, quando ele diz assim: “se as coisas são impossíveis isso não é motivo para não querê-las”. Tá certo, mas também não é suficiente para transformar o impossível em impotência. Você pode querer, sem problema nenhum, realmente ninguém precisa adoecer por isso, por querer o impossível, por desejar o impossível; daí a transformar isso em impossibilidade é sintoma. Sintoma importante. Isso é muito importante quando a gente é psicanalista e trabalha no hospital com pessoas adoecidas. Se elas transformam o impossível em impotência, elas

perdem em potência pra lutar. Acompanham? Isto é muito importante para quem vai cuidar do sofrimento de pessoas que estão adoecidas, às vezes gravemente adoecidas. Frente ao impossível, cabe o luto. Frente ao que é

possível, cabe a luta. Trabalhemos! Segunda narrativa frequente de sofrimento. São narrativas que a gente escuta, por falar em adoecidos, em pacientes que chegam encaminhados pela medicina. Portanto, são pessoas que chegam trazendo sofrimento que passa pelo corpo, o que já é uma coisa importante se a gente for pensar nos ideais de sucesso e felicidade. Antigamente, não se eu posso dizer muito antigamente, as pessoas às vezes utilizavam muito a ideia, a desculpa de estarem doentes para não frequentarem algum lugar, sobretudo o trabalho. A pessoa achava uma maravilha dizer “eu não vou porque eu tô doente”, ela dizer “eu não vou em seu aniversário em Nova York porque eu tô doente”, as pessoas não tinham muito constrangimento. Tenho percebido que hoje as pessoas inventam desculpas um pouco mais socialmente simpáticas, porque elas têm vergonha de adoecerem. As pessoas têm vergonha de adoecerem. Aquilo que antes era uma desculpa imbatível, hoje parece um constrangimento. Então, essa segunda narrativa de sofrimento que eu dizia que a gente escuta de pessoas que chegam na clínica psicanalítica encaminhadas pela medicina é muito interessante, pois são pessoas que sofrem por terem constatado que têm um

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corpo; o que pode parecer estranho a quem não trabalha com isso, mas é verdade. O corpo, frequentemente utilizado pra muitas coisas, não pra lembrar pra alguém que esse alguém é finito. Então, o corpo adoecido … eu ouvi essa semana de um colega, ele dizendo “o corpo é a prova viva da passagem do tempo”. É disso que eu me refiro. Cada um sabe o que estou dizendo, preste atenção no corpo e você não vai ter a menor dúvida de que o tempo passa. Mas essa é uma constatação que a gente facilmente esquece. À la Freud, a gente facilmente recalca. No entanto, se você tá doente, se existe no seu corpo é um sinal de que alguma coisa não vai bem; o adoecimento é uma experiência singular que não serve só pra conectar diversos profissionais da Saúde; ele indica pra você de que ali, onde você não pensava nisso, há finitude. De tal maneira que muitas pessoas ao adoecerem, independente do tipo de doença, se perguntam “isso tem cura?” imediatamente, antes de saberem o que é. “Eu vou ficar bem?”, “eu vou ficar bom?”. É uma pergunta compreensível, mas o adoecimento é uma experiência

que impõe, não propõe, impõe limite. Talvez por isso as pessoas, hoje em dia, se envergonhem de adoecerem. Agora, por que os médicos encaminham certos casos pros psicanalistas? Porque são casos - isso é muito interessante - que normalmente ilustram muito bem pra gente a diferença entre o sintoma na medicina e o sintoma para a

psicanálise. Eu não vou trabalhar isso aqui agora, mas esse é um argumento importante que orienta essa discussão. Tem um outro que é mais importante ainda, são casos clínicos que indicam pra gente com clareza a diferença entre sofrimento e sintoma. Isso não é a mesma coisa pra psicanálise. Aliás, este é o tema do nosso módulo: sofrimento se relaciona com sintoma mas não é a mesma coisa. Isso vai ficar claro. No entanto, essa diferença entre sintoma e sofrimento, por sua vez, não é clara para os profissionais da saúde. Nós não temos profissionais atentos a essa diferença. Então, percebam comigo o que acontece: o indivíduo chega na cena médica, chega à instituição de saúde, chega ao hospital e ele oferece o seu corpo doente ao saber médico com expectativa de obter deste saber soluções razoáveis para o seu sofrimento. Aqui eu tô chamando isso de sofrimento. Se eu tenho um corpo que me incomoda, que me produz um mal-estar, eu ofereço esse corpo pra um

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dispositivo de saber médico na expectativa de que este saber, ao se dirigir a mim, alivie meu sofrimento. E se sofrimento e sintoma não são a mesma coisa, isso me permite dizer a vocês que, uma das formas de alguém tornar manifesto o seu sofrimento é um

sintoma, é fazendo um sintoma, inclusive um sintoma no corpo. Ele não sabe falar de que ele sofre, mas ele sofre por meio do corpo. Ele sofre, ele não fala, ele sofre por meio do corpo, ele leva este corpo, o próprio corpo ao dispositivo médico esperando dali uma intervenção ou um saber que faça efeito no seu sofrimento. No entanto, o médico, a instituição, a equipe tem um dispositivo clínico sustentado e orientado por critérios diagnósticos bastante estabelecidos, muito bem estabelecidos, na verdade, mas enquanto o paciente oferece o seu

sofrimento o que o médico recebe é seu sintoma. E se pra gente sintoma e sofrimento não são a mesma coisa, nós temos aí a grande chance de um mal-entendido: eu tenho uma pessoa que levou o seu sofrimento, mas eu tenho um profissional que codificou, reconheceu - ou não reconheceu - o seu sintoma. Então, a questão que se coloca é, no ato médico de fazer um diagnóstico do que se trata, de sofrimento ou de sintoma? A gente sabe que de sintoma. Mas o que o paciente foi buscar foi um intervenção pro seu sofrimento… e ele não vai embora, e alguém tem uma ideia: “chamem um psicanalista”. E ele vem, esse psicanalista vem. E a ele é pedido um esclarecimento diagnóstico relativo ao sintoma e ele sabe, porque ele tá aqui, que sintoma e sofrimento não são a mesma coisa, e ele sabe que, ainda que a equipe médica lhe peça um trabalho de avaliação diagnóstica pra construir conjuntamente uma estratégia terapêutica, ele sabe que, na verdade, esta equipe, que tem dúvidas sobre o sintoma não tem nenhuma dúvida sobre o sofrimento, embora não chame dizendo “alguém sofre”, chame dizendo “faça o diagnóstico”. A gente sabe que, na verdade, o chamado ao psicanalista se dá por conta do

sofrimento, muito antes de se dar por conta da presença do sintoma. Isso só não é um mal-entendido que se perpetua porque a gente está lá, a gente sabe disso, e a gente faz intervenção. A gente sabe que no fundo, no fundo a demanda da equipe manifesta é “faça o diagnóstico”, mas a demanda que sustenta esse chamado é “me ajude a lidar com o sofrimento”. E o sofrimento que não é só sofrimento do paciente; sofrimento que é nosso.

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Isso nos autoriza dizer com muita clareza que o ato médico de diagnosticar um

sintoma, não equivale, em absoluto, a tratar do mal-estar, nem ao reconhecimento do sofrimento. Lembram: sofrimento é a demanda de reconhecimento? Fazer um diagnóstico, dar o nome da doença e um esquema terapêutico correspondente não tem absolutamente nada a ver com tratar de sofrimento. Se todo sofrimento traz em si uma demanda de reconhecimento, que não é a mesma coisa de uma demanda de diagnóstico é preciso dizer que estar doente e não ter o seu sofrimento reconhecido como seu, como próprio, é um pesadelo. É da ordem do sofrimento exponencial, e aumenta significativamente a dificuldade de nomeação do mal-estar (do modo ruim de estar no mundo). Vocês vejam que há uma tendência atual, certamente vocês têm acompanhado isso, uma tendência que se estabelece - o Nelson falou bastante disso - por meio de certo modo de enunciar o discurso tecnocientífico, há uma tendência importante de se tomar o sofrimento pela vertente da patologização, e a consequente vertente disso é a medicalização, que já chegou na infância. É preciso dizer, quantas vezes for necessário, de que tomar o sofrimento pela vertente da patologia, não trata. Isto não trata. Isso pode indicar, inclusive, uma indisposição, pouquíssima disponibilidade dos profissionais da Saúde a lidar com o sofrimento. “Eu te dou um diagnóstico para que eu não sofra, e se eu continuar nessa situação eu chamarei um psicanalista.” Terceira narrativa de sofrimento frequentemente apresentada ao

psicanalista.

Lembrando: a primeira é do fracasso, do impossível, da impotência; a segunda, esta que diferencia sintoma do sofrimento, portanto, do sofrimento pela via do corpo e, esta última é a narrativa de alguém que se apresenta, até fala que “sim, há um sofrimento”, mas é um sofrimento sem nenhum tipo de questionamento. É a pessoa que chega, ela dando o seu diagnóstico; ela foi aquela que estava no hospital antes, alguém deu o diagnóstico e ela chega “olha, eu vim aqui porque eu tenho X”, mas nenhum questionamento, nenhuma implicação, nenhum tipo de autoria. “Eu repito o que eu escuto, inclusive sobre mim mesma”. É um

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sofrimento anunciado por uma pessoa, mas posso dizer pra vocês que é um

sofrimento sem sujeito - se a gente fosse pensar na estrutura da oração. Às vezes quando você incentiva qualquer coisa além disso, aparece também como queixa a ideia de que há sentimentos de inutilidade, “me sinto inútil”. Expressão frequente de vazio de sentido da vida, falta de originalidade, “não consigo inventar nada”, “nem sonhar, eu sonho”. Alguém poderia dizer: está deprimido, mas não precisa alguém dizer isso, ele já disse “eu tenho depressão”, “eu tenho apatia”. A conversa entre os psicanalistas, numa situação como essa, é uma demanda que não apresenta, não traz consigo nada que se relacione com a dor da perda, que antes era uma coisa muito frequente as pessoas chegarem e dizerem da dor da perda, donde a gente pensava que essa análise indica a necessidade de elaboração de lutos. Mas neste caso não há o que perder, não há um objeto perdido, a não ser este próprio que vos fala. É ele que está perdido, ele é o próprio objeto

perdido. Neste sentido, é que eu tenho chamado atenção para esta vertente melancólica da demanda atual. Melancólica pra fazer o contraponto, quer dizer, se na primeira demanda tinham “objetos perdidos indicam a necessidade de luto”, aqui o objeto está presente, eu tenho uma demanda melancólica, não há um trabalho de luto a ser feito, pelo menos num primeiro momento. Sendo que perdido é esse que vos fala e, provavelmente - não dá pra dizer isso a priori , mas é muito provável que você vá precisar, rapidamente, examinar as relações desse, que não se apresentou nem como doente nem como fracassado, mas se

apresentou como perdido; examine a relação dele com os imperativos de sucesso. Com isso que a gente esta chamando aqui “é preciso ser feliz”, a resposta dele é “eu não sou”. Como é que o psicanalista contemporâneo, se é que isso existe, lida com um sofrimento sem sujeito? Porque eu não estou diante de um sujeito sem

sofrimento, estou diante de um sofrimento sem sujeito. Como é que a gente trata disso? Este é o nosso desafio. Ou vai mandar embora a pessoa? “Você não tem uma questão, não? Você não quer falar de luto, você não quer falar de perda, você não quer falar de Édipo, você não quer falar de sexualidade, então, vá embora porque eu não tenho o que fazer por você”. Não! Lacan dizia que

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renuncia a isto este que não pode prestar atenção na subjetividade da sua época. A gente pode e quer prestar atenção. Então, ok, “você me apresenta um sofrimento sem sujeito, mas você fica. Você fica porque, senão, nem você se trata, nem a gente avança”. Não adiante ligar pro colega ou chegar na Universidade, no grupo de pesquisa e dizer assim “eu vi os efeitos do discurso capitalista no sofrimento humano”. A gente já sabe disso. Não adianta dizer “olha, a sociedade de consumo e a lógica capitalista produz o apagamento do sujeito, produz uma sociedade sem diferenças, é um discurso que vai produzir o apagamento das singularidades”. Sim, a gente já sabe de tudo isso. Não estou dizendo que não é pra dizer, mas estou dizendo que isso não resolve o nosso problema, porque este sujeito está constituído, você não estava lá quando ele resolveu, por alguma razão que nem ele sabe, se alienar a esses imperativos. A

questão é: como trata, como é que a gente vai fazer com essa pessoa. Já sabemos de tudo isso. Já sabemos que o sofrimento contemporâneo está relacionado com a subjetividade da época; que os modos singulares de existência estão todos condenados na medida em que nos é proposto uma felicidade no atacado. A questão é saber quais são os dispositivos clínicos que a psicanálise hoje tem pra oferecer pra estas pessoas, com a intenção que não pode ser duvidosa, tem que ser muito clara. Como é que nós vamos fazer, para fazer emergir um

sujeito, que talvez devesse ter emergido lá atrás, como é que vou fazer para emergir um sujeito e possibilitar a ele processos criativos, distanciá-lo dessa lógica da alienação. Processos criativos e modos de subjetivação mais afinados com a singularidade. Não é a palestra de hoje, por sorte, porque isso realmente é o que está se pesquisando: o que é que uma psicanálise tem a fazer com este tipo de sofrimento. Mas quais são os conflitos que essas pessoas, que se apresentam sem

conflitos, deviam ter? Então, a gente vai indo por exclusão. O que elas não apresentam hoje? Se os conflitos primordiais, principais época do Freud passavam pelo campo do recalque e da sexualidade, pela vida erótica, digamos assim, essa não é uma questão hoje. Os jovens não precisam esconder que transam, pelo contrário, às vezes isso é uma coisa que ele precisa dizer que faz, sob o risco de ficar fora do grupo. No entanto, alguns jovens que não escondem

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sua vida sexual, escondem que comem, escondem que gostam de comer, exatamente aquilo que os ideais de beleza contradiz. Eles escondem, muitas vezes, aquilo que pensam, eles escondem um bom rendimento escolar, eles escondem o que sentem, porque sentir determinadas coisas parece que não implica numa boa aceitação num determinado grupo. Eles escondem que

sofrem, e talvez escondam isso de si mesmos. Então, nós estamos diante de um sofrimento sem sujeito, mas talvez a

gente esteja diante de um sujeito que esconde de si mesmo o fato humano

de sofrer. Ele sofre por muitas coisas diferentes da época do Freud, mas tem alguma coisa que permanece: ele sofre pelo que não tem. Talvez o brasileiro sofra por não ser americano, por não ter cidadania europeia. É uma metáfora, mas nem em todos os casos. Ele fica extremamente indignado com o pai, que tinha um descendente italiano e não conseguiu a cidadania; isso faz dele um brasileiro menor. Às vezes é isso que ele leva pra análise: a falta do passaporte europeu. Isso não é pouca coisa, gente. São maneiras contemporâneas de

tratar das identidades. O fato é que existem muitas possibilidades. Quando a gente vive numa cultura de sucesso, onde os ideais se transformam em imperativos, a gente encontra um leque de possibilidades muito diferentes dos nossos, dos meus avós, que viviam numa cultura onde, mais ou menos, os projetos do que eles deveriam ser na vida eram entregues Prét-à-Porter, “você vai ser isso”. “Por que?” “Porque eu quero que você seja; porque eu sou seu pai e você vai ser”. E hoje, esse sonho de liberdade, parece ter se transformado

no pesadelo da escolha, gerando angústia. As pessoas têm muita dificuldade de decidir o que elas querem e, frente a essa dificuldade de decidir o que elas querem, elas retornam, elas se rementem, não só aos ideais, mas aos imperativos. Estou me lembrando de uma pessoa que me dizia, muito contente, muito feliz, uma pessoa que tem muita dificuldade de escolher qualquer coisa na vida, encontrou em São Paulo um restaurante que tem um prato só; a pessoa estava numa felicidade… (Aqui já tem isso? Não sei se aqui já tem isso) mas é uma moda contemporânea. Eu acho que isso vai dar super certo, sobretudo para essas pessoas, “eu não tenho que escolher”, “você só tem essa opção”.

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Este é um exemplo - eu achei interessantíssimo - que ilustra bem quando o sonho de liberdade - um cardápio extenso - se transforma no pesadelo da escolha. Este restaurante resolve a vida deste rapaz; só não sei se ele só vai lá, porque também ele pode escolher passar a ir só no restaurante que apresenta um prato só. É o ápice da alienação, por escolha. Bom, vou encerrar, o que a gente está dizendo, por fim das contas, é que alguma coisa precisa ser feita. O terceiro e último ponto: como é que a gente trata

disso? A gente trata disso levando em conta os princípios freudianos de

excelência. Se a subjetividade se constitui na relação com o outro, a pergunta do psicanalista hoje é: qual é outro outro que eu devo oferecer a esse que me

procura? Qual é a posição que eu ocupo nisso que a gente chama de relação transferencial? O psicanalista não é o ideal que vai se ofertar a esse que lhe procura lhe pedindo, inclusive, orientação. Vocês entendem que esse tipo de cultura que a gente está conversando sobre - eu não vou dizer criticando porque nós estamos conversando sobre - produz um sofrimento e que nesse sentido todo sofrimento produz um mercado. Não é à toa que a gente vê o quanto é pródigo o mercado de coaching. “Alguém precisa me orientar, eu não sei o que fazer na vida”. Ótimo! Que dê certo! Vá! Eu não acho que é à toa também que proliferam “religiões”, acho que não é à toa que proliferam tribos, “me digam o que eu tenho que ser”. O psicanalista não tem nada disso pra oferecer. Todo mercado que decorre deste tipo de cultura

concorre com a psicanálise na medida em que o psicanalista não vai se

oferecer no lugar de ideal, sobretudo porque ele está entendendo que a pessoa que lhe procura sofre demandando mais uma vez, como se fosse uma droga, uma alienação. Então, na falta de quem determine um caminho, quando essa pessoa chega a um psicanalista, o psicanalista vai lhe fazer um convite a resistir a essa

submissão. A psicanálise convoca o sujeito a subverter esta ordem fazendo oposição clara a esse movimento. Porque a psicanálise, desde o princípio, se põe a favor da alteridade mas também da singularidade. Em outras palavras, eu concluo dizendo que nessa relação com o analista o analista não se oferece ao seu sofrente como lugar de ideal, mais um imperativo “seja um bom analisando”, não

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dá pra dizer isso, mas o psicanalista sabe perfeitamente que a psicanálise ela própria no lugar de ideal, fracassa. O vigor da proposta psicanalítica está

justamente na proposta de fazer com que esse seja um entre vários, mas

um, singular, sem comparação. Como talvez estejamos nós aqui, agora. Cada um por seu motivo, um entre vários, certamente dispostos ao laço social. Bom, vamos conversar um pouco? Era isso que eu queria falar. (Aberto para perguntas) [Transcrição feita por Adriana Massocato | [email protected]]