o socialismo e a educação da criança

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C o n t e x t o e E d u c a ç ã o - E d i t o r a U N I J U Í - A n o 1 7 - nº 6 8 - O u t . / D e z . 2 0 0 2 - P. 81-125 PAOLO NOSELLA Aceito para publicação em outubro de 2002 A LINHA VERMELHA DO PLANETA INFÂNCIA: o Socialismo e a Educação da Criança RESUMO Organizado em três partes: o socialismo utópico e a educação da criança, o socialismo científico e a educação da criança, o socialismo investigativo e a educação da criança, o texto pre- tende expor um panorama das principais contribuições teóri- cas e práticas fornecidas pelo socialismo referentes à educa- ção infantil. Palavras-chave: infância, socialismo, educação.

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Discute como o socialismo compreende o lugar da infância no mundo

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  • C o n t e x t o e E d u c a o - E d i t o r a U N I J U - A n o 1 7 - n 6 8 - O u t . / D e z . 2 0 0 2 - P. 81-125

    PAOLO NOSELLA

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    A LINHA VERMELHADO PLANETA INFNCIA:o Socialismoe a Educao da Criana

    RESUMO

    Organizado em trs partes: o socialismo utpico e a educao

    da criana, o socialismo cientfico e a educao da criana, o

    socialismo investigativo e a educao da criana, o texto pre-

    tende expor um panorama das principais contribuies teri-

    cas e prticas fornecidas pelo socialismo referentes educa-

    o infantil.

    Palavras-chave: infncia, socialismo, educao.

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    LA LNEA ROJA DEL PLANETA INFANCIA:el socialismo y la educacin del nio

    Resumen: Organizado en tres partes: el socialismo utpico y

    la educacin de los nios, el socialismo cientfico y la educacin

    de los nios, el socialismo investigativo y la educacin de los

    nios, el texto pretende exponer un panorama de las principales

    contribuciones tericas y prcticas fornecidas por el socialis-

    mo referente a la educacin infantil.

    Palabras-clave: infancia, socialismo, educacin.

    THE RED LINE OF THE CHILDHOOD PLANET:Socialism and child education

    Abstract: Structured in three parts utopian socialism and the

    organization of the children, the scientific socialism and child

    education, investigative socialism and child education this

    text intends to show a panorama of the most important

    contributions and practices concerning child education given

    by socialism.

    Keywords: childhood, socialism, education.

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    ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES

    sintomtico o fato de encontrarmos alguma dificuldade na es-colha dos termos para o subttulo deste texto. A inteno geral clara: pretende-se expor um panorama das principais contribuiestericas e prticas fornecidas pelo socialismo com referencia edu-cao infantil. Entretanto, no momento de se precisar o que se en-tende por socialismo, os conceitos e os termos se confundem. De-vemos utilizar o termo comunismo? Ou mais precisa a palavramarxismo?

    Por esse motiovo uma preliminar declaratio terminorum(explicitao dos termos), como nas antigas disputas filosficas,torna-se aqui muito oportuna. Alis, hoje, tal explicitao indispen-svel, uma vez que a crise dos paradigmas tericos deixou aindamais confusos termos que, h uma ou duas dcadas, eram paratodos bastante claros.

    Comeamos com o termo comunismo. Embora essa pala-vra possa se referir tanto ao sistema poltico, social e econmico,quanto doutrina, mais comum considerar comunismo comouma organizao poltica que pretendeu concretizar o idealcomunstico da propriedade coletiva e do planejamento centralizadoda vida de toda comunidade. Nesse sentido, costuma-se remontar aPlato para identificar a primeira formulao terico-poltica do idealcomunista.

    A historiografia indica (Bobbio, 1990, p. 175 ss), posterior-mente, outras formulaes sociais voltadas concretizao do idealcomunstico de uma vida em comum, morando em pobreza indivi-dual. Por exemplo, algumas das primeiras comunidades evangli-cas, vrias ordens monsticas e hereticais.

    A modernidade consagrou famosas utopias comunistas for-muladas por eminentes pensadores, como Thomas Moore e TommasoCampanella. No mbito da Revolues Inglesa e Francesa emergemno apenas personalidades que teoricamente debatem e defendemsistemas econmicos e sociais comunistas baseados na propriedadecoletiva, mas surgem tambm grandes movimentos populares quepraticam ideais comunistas e por estes lutam. Destaca-se, na Revo-luo Francesa, o nome de Franois-Nol Babeuf e o movimentodenominado Babuvismo, cujas idias principais esto registradas noManifesto dos Plebeus (1795).

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    Os nomes de Karl Marx e Friedrich Engels representam athoje a expresso mxima da elaborao terica dos ideais comunis-tas. O Manifesto do Partido Comunista (1848) foi a Carta Magnae referncia para todos os regimes comunistas criados no sculoXX.

    O termo socialismo se entrelaa desde suas origens comcomunismo: ora se identificando, como sinnimos, ora se distin-guindo e at se contrapondo. Em termos gerais, socialismo refe-re-se aos inmeros programas poltico-sociais, bem como as suasteorias, elaborados em defesa das classes trabalhadoras que se for-maram no mbito do processo industrial. No entrelaamento dosdois termos, comunismo guardou sempre uma conotao de maiorradicalidade. Marx considera o socialismo como fase transitria parao modo de produo integralmente comunista. A partir da Revolu-o Russa (1917), socialismo e comunismo se tornaram acrrimosantagonistas, com espordicas fases de aliana e colaborao entresi. Aos poucos, porm, o conceito de socialismo perdeu o sentidode fase de transio para o comunismo e assumiu, de forma autno-ma, o sentido de sociedade embasada na democracia representativae numa ampla poltica de proteo social, sobretudo das classes tra-balhadoras.

    O termo marxismo refere-se a um conjunto, relativamentehomogneo, de idias, metodologia cientfica, estratgia poltica,valores e formas de vida, derivado dos escritos de Marx e Engels.Os estudiosos dessa doutrina que no pretendiam assumir a conotaode militncia poltica introduziram os termos de marxlogo emarxiano. O primeiro indica simplesmente o estudioso do marxis-mo, o segundo refere-se aos textos e s concepes de Marx, dis-tinguindo-os, na medida do possvel, de Engels e de outros pensado-res identificados com o marxismo.

    Nossa excluso, no subttulo, dos termos marxismo e co-munismo, justifica-se por considerar o primeiro restrito aos escri-tos de Karl Marx e Friedrich Engels e o segundo pela sua forteconotao com os modelos poltico-sociais dos pases comunis-tas do Leste europeu, cuja crise desembocou na queda do Muro deBerlim em 1989. Ora, este texto pretende oferecer um panoramahistrico das principais contribuies terico-prticas da tradiosocialista para a educao da criana, sem enfocar a crise poltica e

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    ideolgica do comunismo. Assim, o termo socialismo que, comodissemos, define-se historicamente como conjunto dos programaspolticos da classe trabalhadora a partir da Revoluo Industrial, pa-rece-nos o mais adequado.

    Com a expresso educao da criana nos referimos s prin-cipais contribuies pedaggicas terico-prticas registradas na his-tria da educao que plena ou parcialmente se identificaram com osvalores, as idias e as propostas ideolgico-socialistas, destacando aeducao da infncia ou das crianas. Estes dois termos, aos efeitosdeste ensaio, tm o mesmo sentido; referem-se ao perodo da vidados homens que vai de zero ano at a puberdade ou adolescncia;isto , at os doze ou quatorze anos de idade.

    Esclarecidos os termos do enunciado, cabe ainda uma inda-gao preliminar: qual a contribuio especfica que o autor destetexto pretende oferecer? Com efeito, a historiografia pedaggica estrepleta de snteses sobre o assunto. Mrio Alighiero Manacorda,Franco Cambi, Fredrerich Mayer, Maurice Debesse, Gaston Mialaret,etc. relatam com propriedade as principais contribuies pedaggi-cas para a educao infantil da tradio socialista.

    Seria, portanto, este texto uma seleo, mais ou menos org-nica, de outras contribuies? No negamos serem essas que cita-mos as principais fontes bibliogrficas que consultamos, entretantonossa leitura parte de uma importante distino sugerida por NorbertoBobbio e que nos parece original. Bobbio diz que Gramsci introduziuna Itlia o marxismo investigativo, contrapondo-o ao marxismodidasclico ou doutrinrio. Com isso, Bobbio contraps o mtodoinvestigativo da teoria socialista postura doutrinria, estabelecendoum marco divisrio na tradio socialista, antes e depois de Gramsci.Pessoalmente, consideramos essa distino da mxima importncia,equivalente (ou at mais) distino entre socialismo utpico e socia-lismo cientfico.

    Assim, pensamos que esta exposio poderia ser organizadaem trs partes: o socialismo utpico e a educao da criana; o so-cialismo cientfico e a educao da criana; o socialismo investigativoe a educao da criana.

    A primeira parte abrange, grosso modo, o perodo que vai daRevoluo Industrial at a publicao do Manifesto Comunista, ca-racterizando-se justamente pelos pensadores socialistas utpicos:

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    Fourier, Owen, Cabet, Saint-Simon, etc. A segunda parte abrange operodo que vai da publicao do Manifesto Comunista ascensode Stalin, caracterizado pelo socialismo cientfico: Marx e Engels,Lnin e Krupskaia, Stalin, Makarenko, etc. A terceira parte abrangeo perodo que vai da crescente divulgao e prestgio dos textosgramscianos aos dias de hoje e que denominamos como socia-lismo investigativo: Gramsci, Vygotski e o Instituto de Psicolo-gia de Moscou.

    No se trata, obviamente, de uma periodizao precisa. Porisso, as datas so apenas referncias. Trata-se de caracterizar dife-rentes momentos e climas culturais. O clima cultural ou o espritodo tempo (lesprit du temp, expresso utilizada por Hegel) no sedeixa datar com preciso. Todavia uma qualificao dos tempos,isto , da Histria e, portanto, da cronologia. O esprito do tempo seri do ontem e do hoje; aparece, flui, reflui e reaparece com maiornfase; se impe como possibilidade ou at mesmo como evidnciadefinitiva, mas sabe conviver com seu contraditrio do passado ecom sua prpria superao futura. A mdio e longo prazos, contu-do, o esprito do tempo emerge preciso e insofismvel, caracteri-zando momentos especficos da Histria.

    assim que entendemos a organizao desta exposio: oesprito do socialismo utpico caracteriza o perodo pr-marxista,sem limitar-se a ele e sem excluir o esprito de investigao cientfi-ca; igualmente o esprito do socialismo cientfico ortodoxo caracte-riza o perodo de Marx a Stalin, influenciando inclusive o perodoposterior sem excluso absoluta dos horizontes utpicos einvestigativos; finalmente o esprito do socialismo investigativo ca-racteriza o perodo que vai de Gramsci aos pesquisadores e marxis-tas contemporneos, sem excluso da utopia e at mesmo de algumdoutrinamento ideolgico.

    PRIMEIRA PARTE:o Socialismo Utpicoe a Educao da Criana

    Se os nomes dos grandes pensadores socialistas ou comu-nistas da Histria Antiga e Medieval representam um genuno ele-mento de continuidade entre a crtica tradicional dos males da so-

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    ciedade e a nova crtica dos males da sociedade burguesa(Hobsbawn, 1980, p. 36), preciso deixar claro que, para os histo-riadores em geral, quando se fala em pensamento e programas so-cialistas entende-se os que surgiram no perodo demarcado pelodesenvolvimento industrial.

    O triste espetculo que se abria aos olhos inconformados doshumanistas no final do sculo XVI e no incio do XVII era, emsntese, o seguinte:

    A produo nos campos mudara. At ento fundamentalmenteagrcola, transformou-os em campos para a criao de ovelhas epara a caa. (...) A cidade, conseqentemente, sofrera tambmtransformaes profundas: as corporaes se extinguiam e as ma-nufaturas se expandiam (Leal, 1990, p. 25).

    Homens, mulheres e crianas, expulsos da terra, se ajunta-vam nas periferias da cidade e, para sobreviverem, vendiam suafora de trabalho nas manufaturas e nas primeiras indstrias. Tra-ta-se do fenmeno posteriormente chamado por Marx de acumula-o primitiva do capital, quando nem sequer a escravido de ho-mens e crianas era poupada, tanto em alguns pases europeus quantonas colnias:

    A maquinaria recentemente inventada foi utilizada em grandesfbricas, margem de correntes de gua capazes de fazerem fun-cionar a roda hidrulica. Milhares de braos tornaram-se de sbi-to necessrios (...). Nesses lugares procuravam-se principalmen-te dedos pequenos e geis. Era interesse desses feitores de escra-vos fazerem as crianas trabalhar o mximo possvel, pois suaremunerao era proporcional quantidade de trabalho que delaspodiam extrair (Marx, 1985, p. 876-877).

    De certa forma a importante funo que a criana exerce nainiciante acumulao do capital faz com que a sociedade pela primei-ra vez na histria a tome a srio, mesmo que fosse, infelizmente,para explor-la como fora produtiva barata. Ao ler a obra de PhilippeAris, Histria Social da Criana e da Famlia (1978), entende-seperfeitamente esse tipo de afirmao. Aprende-se a que nas socie-dades pr-industriais a criana era apenas uma possibilidade (remo-ta) de um dia ser um adulto e um cidado, com nome prprio eidentidade individual de cidado. A criana, naquelas sociedades, no

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    representava ainda uma subjetividade social. S quando ela se tor-nou fora de trabalho interessante para o capital comeou a ser con-templada pela legislao de forma autnoma de sua famlia.

    Foi uma legislao que, num primeiro momento, obrigou acriana a trabalhar e, mais tarde, aps o desenvolvimento da grandeindustria, a liberou do trabalho. Os movimentos e os programas so-cialistas utpicos ou pr-marxianos se organizam e formulam pro-gramas sociais com base nessa realidade: ora os industriais urbanosutilizavam inescrupulosamente a mo-de-obra infantil, ora a dispen-savam quando a maquinaria a substitusse. Num caso e no outro ascrianas eram exploradas, abandonadas e malcuidadas. Engels ilus-tra a situao com essas palavras:

    Numa fbrica onde recentemente havia oitenta fiadores, no res-tam atualmente seno vinte; os outros foram despedidos ou en-to ficaram reduzidos ao trabalho de uma criana, por um salriode criana (...). Atiram cada vez mais para a mquina o verdadeirotrabalho, o trabalho fatigante, transformando assim o trabalho deadulto em simples vigilncia que tambm pode ser exercida poruma mulher fraca e mesmo por uma criana, o que eles efetivamen-te fazem pelo tero ou metade do salrio de um operrio (Engels,1986, p. 159-160).

    O processo de industrializao transformava molecularmentetoda a sociedade e, sobretudo, toda a famlia trabalhadora. Muitasfunes das mes de famlia, como, por exemplo, a preparao dosalimentos, o atendimento sade, a assistncia aos filhos, o simplesremendo de uma roupa (Leal, 1990, p. 33) eram simplesmente aban-donadas. Para outras, como cuidar dos pequeninos e amament-los,tornava-se indispensvel encontrar formas substitutivas de atendi-mento infantil, uma vez que as mes de famlia eram absorvidas nasindstrias. Os elementares bens-de-uso produzidos pelas famlias(costura, alimentos e os cuidados bsicos dos filhos) precisavamser substitudos pela compra de novos bens-de-troca industriais.Assim, os custos de manuteno da famlia trabalhadora aumenta-vam, impedindo-lhe qualquer tipo de poupana ou receita comple-mentar: a velha instituio familiar pr-industrial se desintegra ea instituio escolar acaba tomando algumas das responsabilidadesque at ento a ela pertenciam (p. 34). De forma particular, aquesto da guarda e da educao das crianas tornou-se assuntoprincipal no debate poltico, na legislao social e nas reformas es-

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    colares desde o final do sculo XVIII e praticamente at hoje. Nasgrandes cidades europias da poca criaram-se refgios onde ascrianas eram guardadas enquanto seus pais trabalhavam. Em se-guida surgiram organizaes com o objetivo de cuidar das crian-as lactentes cujas mes trabalhavam fora de casa.

    As primeiras creches urbanas da Frana e da Inglaterra dofinal do sculo XVII eram, naturalmente, caracterizadas peloassistencialismo, visavam afastar as crianas pobres do trabalhoservil que o sistema capitalista em expanso lhes impunha, alm deservirem como guardis de crianas rfs e filhas de trabalhadores(Kramer, 1984, p. 29). Marco histrico importante: em 1774 surgiua primeira escola para crianas de dois a seis anos, organizada porJoo Frederico Oberlin, chamada de Ecles Tricoter. Eram es-colas que abrigavam tambm filhos de operrios.

    Nesse contexto desenvolveu-se o fenmeno cultural doIluminismo francs. O nome de Jean Jacques Rousseau, pioneiroabsoluto do pensamento contemporneo voltado para a educaocrtica da criana, uma grande estrela do momento. O papel deci-sivo de Rousseau na revoluo pedaggica contempornea, que atri-bui criana centralidade mxima no processo educativo, por to-dos os historiadores reconhecido. A dimenso utpico-romntica deseu pensamento pedaggico tambm universalmente afirmada. OEmlio de Rousseau a criana que deve ser educada longe dodoutrinamento dogmtico jesutico e dos costumes antinaturais daaristocracia. Se Rousseau no pode ser considerado um socialista,suas obras e idias esto presentes no frontispcio terico de todosos movimentos e pensamentos socialistas.

    Rousseau introduz a discusso sobre o tema progresso, cujotermo nos leva quela que foi certamente a principal matriz inte-lectual das primeiras crticas socialistas e comunistas modernas dasociedade, ou seja, o iluminismo setecentista e, mais particularmen-te, o francs (Hobsbawn, 1980, p. 37). De fato, o pensamentopedaggico rousseauniano no estabelece uma relao de tranqilaaceitao do progresso moderno. Ao contrrio, mantm com o pro-gresso das cincias e das artes modernas uma relao bastanteconflituosa que influenciar vrios socialistas utpicos. Diz ele, porexemplo:

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    Que partido deverei tomar nessa questo? (...) Como ousar cen-surar as cincias perante uma das mais sbias companhias daEuropa? Como louvar a ignorncia numa Academia clebre e con-ciliar o desprezo pelo estudo com o respeito pelos verdadeirossbios? (...) Mas no em absoluto a cincia que maltrato, avirtude que defendo (Rousseau, 1988, p. 137).

    Ou seja, no a cincia e as tcnicas modernas que Rousseaucondena, a imoralidade da poca que ele recusa.

    Conceitualmente, tal distino fcil; concretamente torna-sedifcil. A concluso a que Rousseau chega que no estgio da evo-luo em que nos encontramos no nos resta outra sada que assu-mir a educao da criana, porm numa perspectiva naturalista:

    No estado em que j se encontram as coisas, um homem abando-nado a si mesmo, desde o nascimento, entre os demais, seria omais desfigurado de todos. Os preconceitos, a autoridade, a ne-cessidade, o exemplo, todas as instituies sociais em que nosachamos submersos abafariam nele a natureza e nada poriam nolugar dela. Ela seria como um arbusto que o acaso fez nascer nomeio do caminho e que os passantes logo faro morrer, nele ba-tendo de todos os lados e dobrando-o em todos os sentidos(Rousseau, 1973, p. 9).

    No h, portanto, para Rousseau, como no educar as crian-as na situao social em que se encontram. Mas como faz-lo, se oconjunto social, a Paidia moderna, est totalmente avariada? Rousseauno consegue resolver esse dilema e imagina um lugar natural para aeducao de Emlio que de fato no existe, um u-topos, uma utopia.

    De forma semelhante tambm o socialista Charles Fourier

    encarava com suspeio o progresso, partilhando de uma dasconvices de Rousseau, a de que a humanidade escolhera umcaminho errado ao adotar a civilizao. Desconfiava da indstriae do progresso tecnolgico, mesmo estando disposto a aceit-los,convencido de que a roda da histria no pode voltar atrs(Hobsbawn, 1980, p. 49).

    A favor ou contra o progresso industrial, no h socialistautpico que no elabore, para sua sociedade comunista, uma polti-ca educacional detalhada, com destaque especial para a educaoinfantil. Projetos de escolas e de pequenas comunidades educativas

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    brotam numerosos ao longo de toda a histria dos homens, porm,na primeira metade do sculo XIX, o florescimento de comunidadessocialistas de carter utpico foi extraordinrio. Nessas comunida-des pretendia-se educar as crianas para forjar o novo homem in-dustrial, porm no capitalista

    As escolas socialistas e comunistas que floresceram no perodoque intercorre entre o fim da Revoluo Francesa e o ano de 1848se distinguem claramente do programa babuvista (de Babeuf) porcausa da diferente maneira de conceber a passagem da velha paraa nova sociedade: isto , uma passagem no violenta, pacfica,essencialmente na base da convico e pelo exemplo de novascomunidades harmoniosas fundamentadas na cooperao e nafraternal unio de seus membros (Bedeschi, 1990, p. 178).

    Fourier, por exemplo, cria os famosos Falanstrios, peque-nas comunidades nas quais os trabalhadores desenvolvem livremen-te sua vida e suas atividades numa espontnea comunho de bense de relaes recprocas, sob a direo de um anarca, chefe e mo-derador (Geymonat; Tisato; 1978, p.147). Nessas comunidades otrabalho perderia o carter de obrigao e se tornaria como um jogode criana.

    Historicamente, porm, tanto na Europa como na Amricatais comunidades demonstraram sua inconsistncia terica, pois noconseguiram se consolidar. Isso, no entanto, no quer dizer que notenham contribudo para a elaborao de uma pedagogia infantil queresgatasse o valor do homem em geral e da infncia em particular.Com efeito, as crianas, aos poucos, so vistas por todos os educa-dores no mais como adultos em miniatura e sim como cidados e,at mesmo, pais dos adultos.

    Numa segunda vertente, o socialismo utpico, olha para oprogresso moderno e, particularmente, para o trabalho industrial deuma forma menos desconfiada, alis, de forma entusiasta. O nomede Robert Owen, industrial ingls e filantropo, inscreve-se nessasegunda vertente como socialista utpico plenamente favorvel aoprogresso industrial. Ele pretende

    instituir um sistema de instruo e de organizao do trabalhoindustrial, visando a restituir dignidade humana e cultura aos ope-rrios e aos seus filhos. As escolas de Owen objetivavam a forma-

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    o integral, sob o aspecto fsico e moral, dos homens e das mu-lheres, para que aprendessem a pensar e a agir sempre racional-mente (Leal, 1990, p. 37).

    Nas proximidades das suas fbricas, nos arredores de Lon-dres, em 1816, foram criadas por Owen as classes de asilo, nomeque, posteriormente, foi substitudo por escolas maternais. Para esseindustrial socialista, a indstria havia criado uma nova classe social,a dos industriais, que inclua tanto os proprietrios das fbricas e osbanqueiros quanto os operrios e os cientistas. Educar as crianasnessas escolas maternais significava formar o novo homem socia-lista industrial.

    Na Itlia, por exemplo, a iniciativa socialista de Owen inspi-rou um sacerdote, Ferrante Aporti, que, na cidade de Cremona, em1828, abriu seu primeiro asilo infantil para as crianas das famliasabastadas. Em seguida abriu outras instituies semelhantes para asfamlias mais pobres. Eram escolas que rompiam com a tradio dassalas de abrigo

    como aquelas da marquesa de Barolo, onde as crianas eram con-denadas a ficarem imveis por muitas horas nas cadeiras comassentos furados e a respirar um ar empestado pelo bafo e fedorde muitas outras crianas doentes que a eram entulhadas(Manacorda, 1992, p. 172).

    O padre Aporti, note-se, fazia parte do clero do Norte da Itliaque, como afirma Gramsci nas notas sobre a questo meridional, sediferenciava normalmente do clero meridional pela sensibilidade epelas atividades de carter popular e social:

    O padre setentrional normalmente filho de um arteso ou de umcampons; tem sentimentos democrticos, est mais ligado smassas dos camponeses; moralmente mais correto do que opadre meridional (Gramsci, 1987, p. 156).

    Com efeito, no Manual de Educao e Treinamento para asescolas infantis publicado por Aporti em 1838, l-se: Os mestresdevem ser, ao mesmo tempo, educadores e instrutores das crian-as (Manacorda, 1992, p. 172). Nessas escolas infantis, a partir daltima srie pr-escolar, as crianas j aprendiam os primeiros ele-mentos da leitura, escrita e conta.

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    Esse padre no era, certamente, um socialista de carteirinha,porm, foi hostilizado pelos peridicos catlicos mais conservado-res da poca at que, em agosto de 1837, o Vaticano condenou seusasilos para a infncia como algo perigoso. As iniciativas institucionaisreferentes educao da criana, sobretudo nas primeiras socieda-des industriais, foram sempre muito hostilizadas porque potencial-mente saturadas de significao poltico-revolucionria. No foi poracaso que o livro de Jean-Jacques Rousseau Emlio ou da Educa-o fora condenado pela Igreja Catlica e posto no Index LivrorumProhibitorum (Lista dos Livros Proibidos). Ocupar-se de crianas sempre tocar no ponto mais sensvel das elites econmicas e daIgreja, porque as primeiras sentem-se donas da riqueza que no pre-tendem pr em risco; a segunda sente-se a dona do destino ltimodo ser humano, logo, de sua formao.

    A prova dessa verdade est no fato de que os educadores epolticos mais progressistas, porm no socialistas, justificavam asiniciativas educacionais em favor das crianas pobres afirmando queseriam formas eficazes de resolver pacificamente os conflitos so-ciais e afastar assim as ameaas do socialismo e do comunismo:Aps o ano de 1848, quando a revoluo amedrontou a muitos,Aporti insistia sobre a falta de educao popular apontando os pe-rigos das doutrinas do socialismo e do comunismo (Manacorda,1992, p. 172).

    As pequenas comunidades educativas de Fourier e de Owenforam experincias socialistas importantes, porm localizadas e bemcircunscritas. Diversamente, o programa educacional de outro edu-cador socialista utpico, Etienne Cabet, foi um projeto orgnico ecomplexo de mbito nacional, rigorosamente comunista, porqueexclua qualquer tipo de propriedade pessoal. Na sua obra Voyage enIcarie (1840), ilustrava uma imaginria terra de nome Icria, na qualministrava-se para todas as crianas uma instruo elementar inte-gral, que compreendia todos os conhecimentos e, com base nestes,na seqncia escolar, uma instruo especializada com elementostericos e prticos (Manacorda, 1989, p. 273).

    Todas essas inmeras iniciativas (e muitssimas mais), volta-das para a educao da criana, se desenvolveram, na primeira me-tade do sculo XIX, inscritas ideologicamente no grande movimen-to socialista francs, o Saint-Simonismo. Esse movimento tomousentido e fora no clima cultural que caracterizou o perodo das

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    duas grandes revolues (a Industrial Inglesa e a Francesa) at arestaurao. O otimismo geral suscitado por aquelas revolues eainda pelas guerras de independncia (sobretudo a americana, em1776), as esperanas acalentadas pelos sucessos da indstria cria-vam uma expectativa poltica de novas e ousadas realizaes, deadvento de uma nova sociedade e de um novo homem. Era um climacultural fecundo para o nascimento dos ideais e dos programas socia-listas e comunistas. Estes, numerosos e viosos, surgiam como co-gumelos nos bosques aps as primeiras chuvas primaveris. Nenhumoutro movimento socialista utpico teve tanta importncia e amplasignificao como o Saint-Simoniano. At mesmo com referncia aFourier, Owen, Cabet e outros,

    a escola Saint-Simoniana d um passo frente da mxima impor-tncia, porque conjuga estritamente os ideais socialistas e co-munistas com a organizao industrial do mundo moderno. Naobra de Saint-Simon no h trao de antagonismo entre operriose empreendedores. (...) O contraste social por ele destacado si-tua-se na relao entre a propriedade privada e o rendimento m-ximo do sistema industrial (Bedeschi, 1990. p. 179).

    Saint-Simon conclui que a propriedade privada obstculo aodesenvolvimento da grande indstria, nica forma de se produzirgrandes riquezas para todos. Por isso, a propriedade privada preci-sava ser abolida e pertencer a um nico proprietrio, ao Estado, quedeve ser concebido como uma Associao de Trabalhadores. A im-portncia do movimento Saint-Simoniano grande, porque repre-sentou um terreno frtil para todo o socialismo de maneira geral, noapenas para o utpico:

    Seu carter especfico foi o de associar uma forte componenteromntica tradio progressista do iluminismo, na valorizaoda cincia e da tcnica. Foi por isso que galgou enorme sucessojunto cole Polytecnique, a famosa escola de engenharia deParis, criada pela Revoluo Francesa e junto aos estudiosos epesquisadores do campo cientfico (Geymonat et al., 1978, p. 145).

    O que importa, ainda, aqui destacar, referente questo daeducao da infncia, que para o sansimonismo cabe ao Estadono s abolir a propriedade privada mas tambm desconstruir a an-tiga instituio familiar, com base na emancipao da mulher, na

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    liberdade sexual e na total responsabilidade do Estado para com aeducao infantil. O trabalho industrial deve ser o princpio educativoda nova sociedade e de todo o processo pedaggico.

    Naturalmente o socialismo utpico demonstrou, com o fra-casso de suas pequenas comunidades comunistas, a inviabilidadehistrica de seus programas pedaggicos. Foram precisamente es-ses movimentos socialistas utpicos, contudo, a definirem a pautado debate contemporneo sobre a educao infantil.

    Mesmo assim, chegara a hora de avaliar, com maior rigorcientfico, as razes desses fracassos e estabelecer princpioseducativos e programas escolares objetivos e viveis. A tarefa deagregar cientificidade ao socialismo utpico coube, sobretudo, a Marxe Engels.

    SEGUNDA PARTE: o SocialismoCientfico e a Educao da Criana

    O clima cultural do sculo XIX estava mudando. Os ideaisprogressistas e iluministas da Revoluo Industrial e Francesa nomais incendiavam e sim amedrontavam as sociedades europias eamericanas. O susto pelos excessos revolucionrios fortaleceu osdesejos da restaurao da antiga ordem. As campanhas militares deNapoleo e as obras filosficas de Hegel recolocaram o mundo e osideais em ordem, poltica e intelectualmente.

    O esprito de restaurao atingira sobretudo os movimentossocialistas cujas vises utpicas haviam posto a perigo a estruturasocial tradicional. Coube ao socialismo cientfico ou marxismo secontrapor, de forma racional e determinada, ao refluxo revolucion-rio da restaurao, fornecendo s doutrinas socialistas utpicas ba-ses cientficas slidas. Karl Marx e Friedrich Engels fixaram noManifesto Comunista de 1848 uma feliz sntese sobre a distinoentre socialismo utpico e socialismo cientfico.

    Os tempos, de fato, estavam mudando: enquanto os socialis-tas utpicos ainda acreditavam na essencialidade da fora de traba-lho humano, os prprios industriais compreendiam que o centronevrlgico do processo de transformao era o meio de trabalho,

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    que podia ser um homem, uma mulher, uma criana ou ento umamquina, uma estrutura organizativa, algo que pudesse utilizar ohomem ou at mesmo dispens-lo. A relao entre trabalhador eproduo era, afinal, menos orgnica e indispensvel do que at en-to se pensava: A revoluo determinada pelas mquinas na rela-o jurdica entre quem compra e quem vende fora-trabalho talque toda a transao perde at a aparncia de um contrato entrepessoas livres (Marx, 1974, p. 440).

    Em suma, para o capitalista no existe negociao objetivaentre o capital e o homem. Assim, ou o homem passa a negar radi-calmente o capital ou o capital negar definitivamente o homem.Para o marxismo cientfico no existe a possibilidade da dialticahegeliana da conciliao entre o capital e a subjetividade humana.Funciona apenas a dialtica da negao da negao. Conseqente-mente, s o proletariado representa a subjetividade histrica que podegarantir o homem contra seu aniquilamento e o socialismo o seunico programa cientfico de auto-emancipao.

    Para tal dialtica, o horizonte histrico estava definido, noera um ideal moral. O socialismo era uma inevitabilidade histrica,inscrita nas objetivas e freqentes crises do capital que, por suanatureza, autofgico. Assim, o esforo terico de Marx e Engelspara transformar o socialismo numa cincia objetiva, apagava o con-tedo tico dos programas educacionais dos socialismos utpicos.

    A hegemonia do capital tinha seus dias marcados, mas en-quanto tivesse sobrevida produtiva nenhuma piedade e revoltahumanistas o destruiria. Para os socialistas marxistas era obrigaotentar minimizar os efeitos negativos do capital, por exemplo, sobreas crianas e adolescentes, mas jamais seria possvel elaborar umprograma pedaggico realmente consistente enquanto o capital norusse dando lugar ao Estado socialista: Uma organizao socialnunca desaparece antes que se desenvolvam todas as foras produ-tivas que ela capaz de conter (1977, p. 25).

    Em concluso, a cientificidade marxista foi um balde de guafria nos ideais e programas socialistas utpicos em geral e de educa-o da infncia e dos adolescentes em particular. Marx no ignoravaa trgica situao da infncia nas periferias das grandes cidades in-dustriais, mas, para ele, o mtodo cientfico no admitia dvidas

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    As minha opinies (...) so o resultado de longas e consciencio-sas pesquisas. No limiar da cincia, como entrada do inferno, adeterminao absoluta se impe: Qui si convien lasciar ognisospetto / Ogni vilt convien che qui sia morta. (Aqui necess-rio abandonar toda suposio / Toda timidez precisa ser abando-nada.). Londres, jan. 1956 (p. 27).

    Era um preciso recado para o romantismo dos socialistas ut-picos: embora, parece dizer Marx, tudo deva ser feito para reduzir osofrimento das crianas, enquanto perdurar o capitalismo a situaoser sempre infernal e os programas socialistas de educao teroapenas um carter assistencialista.

    Marx e Engels viviam, aps o fracasso da Revoluo de 1848,um clima cultural de desengano das expectativas de uma revoluoimediata. O mesmo clima marcou toda a Segunda Internacional, naqual Marx se apresentou como um cientista social que percebia ascontradies do capitalismo, mas tambm reconhecia seu vigorosoflego histrico.

    Sabemos que o socialismo cientfico sofreu grande influnciado cientificismo positivista, do evolucionismo darwinista e doexperimentalismo, por exemplo, da Psicologia: todas essas vertentescomungavam uma Filosofia da Histria com base no determinismo.Assim, o socialismo cientfico conclua que o reino da liberdade(comunismo) s aconteceria aps o reino da necessidade (capitalis-mo). A justaposio dos dois reinos, cientificamente arbitrria,era uma declinao filosfica da viso judaico-crist da passagem(Pscoa) deste mundo, vale de lgrimas, para o mundo celeste, oparaso. Quando Marx e Engels tentavam dizer algo sobre as carac-tersticas da futura sociedade comunista, apenas invertiam os sinaisdas caractersticas da sociedade burguesa. Assim, por exemplo, oconceito de trabalho permanece prisioneiro dos limites conceituaisda crtica ao trabalho burgus. Como tambm o conceito de estadono ultrapassa os limites da crtica ao estado burgus.

    Por isso, o marxismo ortodoxo ou o socialismo cientfico noconseguiu perceber que a educao infantil e a escola em geral, mesmono mbito dos estados burgueses, tomariam enorme impulso e de-senvolvimento, muito alm dos limites do trabalho fabril e da escolaprofissional. Concluindo: o reducionismo escolar que criticado aosocialismo ortodoxo foi reflexo, na verdade, da aporia marxiana,criticada por muitos analistas, a respeito da categoria trabalho.

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    Apesar dos inegveis limites do socialismo cientfico, delecontudo o grande mrito de combinar ensino e produo. A partir deMarx o trabalho produtivo passou a ser o fundamento principal daPedagogia socialista que tambm influenciou toda a Pedagogia pro-gressista do sculo XX.

    Com efeito, influenciado pelo vislumbramento iluminista dian-te dos milagres da indstria, Marx deslocava a centralidade dosespaos pedaggicos, at ento representados pela famlia e pelasala de aula, para a fbrica. Ele percebia que, de um lado, a famlia eas escolas burguesas estavam desmoronando, enquanto, de outrolado, mesmo com toda explorao, as fbricas aprimoravam a divi-so do trabalho e faziam da cincia e da tcnica suas bases revolu-cionrias, exigindo do operrio maior cultura, maior versatilidadetcnico-profissional e, conseqentemente, forando o Estado a abrirescolas politcnicas, profissionais e agrcolas teis, interessantes epedagogicamente disciplinadas. No restava a Marx e Engels outraalternativa que concluir pela combinao de ensino profissional etrabalho produtivo, fazendo dessa combinao o fundamento peda-ggico da escola socialista.

    Quanto s escolas tradicionais burguesas, Engels, em 1844-45, escreve que:

    Os mestres so pssimos: um deles havia sido condenado porroubo e saindo da priso no encontrara outro meio de vida a noser mestre-escola. (...) Crianas que haviam freqentado por anosas escolas dominicais no conseguiam distinguir uma letra deoutra. Em toda regio, mesmo a instruo religiosa e moral, almda intelectual, encontra-se num nvel muito baixo (Engels, 1964, p.46-47).

    O contedo pedaggico da poltica educacional da Inglaterra,para citar outro exemplo, era to pobre que nada ou quase nada deleseria til na elevao moral e intelectual das crianas. At mesmo arecente legislao sobre a instruo dos filhos dos trabalhadores nopassa de

    lei ilusria (delusive law), a qual, sob a aparncia de cuidar daeducao das crianas, no contm sequer uma s disposiopara garantir o objetivo que professa. S dispe sobre o seguinte:as crianas devem estar fechadas por um determinado nmero dehoras (trs horas) por dia entre as quatro paredes de um lugar

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    chamado escola (...). No eram raros os certificados de freqnciaescolar assinados com uma cruz por mestres ou mestras que nemsabiam escrever (...). Em outra escola observei que a sala de aulaera de quinze ps por dez e a havia setenta e cinco crianas quegritavam algo de incompreensvel. (...) Nas escolas onde h ummestre competente, seus esforos fracassam quase totalmentediante do barulho ensurdecedor de crianas de toda idade, dostrs anos para cima. A remunerao do mestre, que miservel namaioria dos casos, depende dos pence que se consegue pelomximo nmero de crianas apertadas numa sala. Acrescente-seos escassos mveis escolares, a falta de livros e de qualquermaterial didtico e o efeito deprimente de uma atmosfera fechadae nauseabunda sobre os pobres meninos. Estive em muitas des-sas escolas, onde observei fileiras inteiras de crianas que nofaziam absolutamente nada e aquelas crianas constam comoeducadas (educated) na estatstica oficial. (...) Pela lei, toda crian-a, antes de ser empregada nas empresas, deve ter freqentadopor trinta dias (pelo menos) e por no menos que cento e cinqen-ta horas durante os seis meses que precedem imediatamente oprimeiro dia do seu emprego (...). A criana pula, por assim dizer(buffeted) da escola fbrica, da fbrica escola, at que se al-cance a soma de cento e cinqenta horas (Marx, 1867 apudManacorda, 1964, p. 93-94).

    O real criticado, todavia, acabou por se apresentar como umhorizonte possvel: assim, a combinao de trabalho produtivo comeducao fsica e intelectual se apresentou para o socialismo marxianocomo a frmula mgica da educao, o germe da educao futura.Afinal, mesmo a pobre e ilusria legislao sobre educao infantilno deixava de ter sido o resultado da presso operria, logo, cons-titua uma implcita conquista da classe trabalhadora:

    Por quanto no seu conjunto se apresentem pobres, as clusulassobre a educao afirmavam que a instruo elementar era umacondio obrigatria do trabalho. Seu sucesso demonstrou pelaprimeira vez a possibilidade de interligar a instruo e a ginsticacom o trabalho manual. (...) O sistema metade trabalho e metadeescola permite que cada uma das duas ocupaes seja repousoe revigoramento da outra e, portanto, muito mais adequado crian-a do que a continuidade ininterrupta de uma ou de outro.(...) Do sistema da fbrica, como se l particularmente nos escritosde Robert Owen, nasceu o germe da educao do futuro que inter-ligar, para todas as crianas, alm de certa idade, o trabalho pro-

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    dutivo com a instruo e a ginstica, no somente como mtodopara elevar a produo social, mas tambm como nico mtodopara produzir homens plenamente desenvolvidos (Marx apudManacorda, 1964, p. 95).

    A Pedagogia marxista no s considera hegemnico o papelda fbrica no processo pedaggico, com referncia escola tradicio-nal, mas tambm com referencia prpria famlia. Escola e famliaprecisam ser educadas pelo trabalho produtivo industrial, a pri-meira tornando-se cada vez mais profissional, tcnica e, finalmente,tecnolgica; a segunda substituindo a autoridade dos pais (patriapotestas) pela autoridade, num primeiro momento do capital, e, fi-nalmente, do Estado socialista industrial.

    A fora dos fatos, finalmente, obrigou a sociedade a reconhecerque a grande indstria, desagregando o fundamento econmicoda velha famlia e do trabalho familiar que lhe correspondia, desa-grega tambm as velhas relaes familiares (patria potestas). Pre-cisou, finalmente, proclamar o direito dos filhos (p. 98).

    Mesmo reconhecendo que o fundamento nico da exploraoinfantil a mais-valia capitalista, Marx percebe que o capital realiza aexplorao das crianas por meio da autoridade familiar e que, por-tanto, a desagregao desta permite o surgimento futuro de umaforma superior de famlia, a socialista, assim como a forma familiargreco-romana se seguiu germnico-crist, etc.:

    Desgraadamente, as crianas dos dois sexos no precisam deproteo contra ningum quanto contra seus prprios pais. Osistema de explorao ilimitada do trabalho infantil em geral e dotrabalho domiciliar em particular mantido pelo fato dos pais exer-citarem sobe seus jovens e tenros rebentos uma autoridade arbi-trria prejudicial, sem limites e sem controle. Os pais no podempossuir o poder absoluto de tornar seus filhos meras e simplesmquinas de render algum salrio semanal. Crianas e adolescen-tes tm direito a serem protegidas pela legislao contra o abusoda autoridade paterna que arrebenta precocemente sua fora fsi-ca e os rebaixa na escala dos seres morais e intelectuais (p. 98).

    Em suma, para o socialismo cientfico, o verdadeiro pedagogoou o parteiro do novo homem socialista a prpria grande indstriaque, mesmo no sofrimento, forja a nova famlia desagregando a

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    velha, a nova escola profissional e tecnolgica, eliminando a escolatradicional intil e retrica, o novo homem e a nova sociedade so-cialista eliminando o homem burgus e seu meio depravado.

    Obviamente o programa educativo propriamente socialista,original e autnomo, se desenvolver quando o Estado concentrarem seu poder toda a propriedade e a gesto dos meios de produomoderna. At l, se o trabalho industrial infantil penoso, e precisaser temperado com o ensino profissional e com exerccios fsicos,mais piedoso ainda o desejo de ver as crianas fora das fbricas:

    A proibio geral do trabalho das crianas incompatvel com aexistncia da grande indstria e no passa, portanto, de um vo epiedoso desejo. Sua concretizao, quando fosse possvel, seriareacionria, porque a alternncia precoce entre o trabalho produ-tivo e a instruo um dos mais poderosos meios de transforma-o da sociedade atual (p. 111).

    No podemos esquecer que, durante toda a metade do sculoXIX, Froebel difundiu os jardins da infncia nas favelas alems, aoredor de Berlim, e escrevera textos sobre educao infantil comoCnticos e carcias maternas, As famlias educadoras, Vive-mos para as nossas crianas. Ou seja, quando Marx e Engels criti-cavam a famlia e a escola burguesas por no entenderem historica-mente a evoluo das foras produtivas e seus inexorveis mas re-volucionrios reflexos na educao, dirigiam-se tambm s teorias eprticas de educao infantil de Froebel. Ou seja, enquanto os pro-gramas de educao infantil de carter assistencialista se preocupa-vam em criar espaos de abrigo, de cuidados, de manuteno fsicae de segurana contra os perigos da rua e do trabalho fabril, o socia-lismo cientfico do final do sculo XIX encarava a grande indstriacomo sendo a parteira e a pedagoga do novo homem.

    Nas primeiras trs dcadas do sculo XX o capitalismo pas-sou por importantes mudanas que influram no atendimento e naeducao das crianas. A grande indstria produzira forte concen-trao do capital no final do sculo XIX, dando origem ao fenmenodenominado por Lnin de Imperialismo, fase superior do capitalis-mo. Estamos a cavalo entre o sculo XIX e XX. Enquanto inme-ros trabalhadores eram forosamente relegados a uma vida ociosa,outros trabalhavam de doze a treze horas dirias. Muitssimas crian-

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    as pobres eram dispensadas do trabalho das indstrias e este fatotransformou o problema da educao infantil numa questo cadavez mais poltica.

    Surgem, no final do sculo XIX, no mbito da Pedagogialiberal, fortes movimentos sociais em prol do atendimento crian-a menor de sete anos, com a exigncia de um carter mais educa-cional e pedaggico, no apenas para garantir sua segurana fsi-ca (Leal, 1990, p. 42). Bienvenu Martin, em 1882, lembra que osresponsveis pela instruo pblica esquecem que a educao pr-escolar tem seus objetivos prprios, no sendo nem simples creches,nem escolas elementares (Brasil, 1974, p. 86). Maria Montessoridurante quase toda a pimeira metade do sculo XX, com base nassuas experincias educativas com crianas excepcionais, estabele-ceu definitivamente para a educao infantil a necessidade da cola-borao cientfica entre mdicos, neurologistas, psiclogos e peda-gogos. A rede de jardins de infncia ampliara-se enormemente naEuropa e nos Estados Unidos, dirigindo-se s crianas pobres, filhasde imigrantes, para transform-las em cidads e, por meio delas,mudar tambm a prpria sociedade. A crena de que a educao emgeral, a partir da infncia erradicaria a pobreza, foi o motor do mo-vimento chamado Escola Nova, que tem por expoente principal opensador e educador americano John Dewey (1859-1952).

    Ora, se o socialismo ortodoxo se autodefinia como um pen-samento autnomo e exclusivo da classe operria, de que forma ospensadores e educadores socialistas, depois de Marx, se relaciona-ram com o movimento pedaggico em geral? Ou seja, de que formaLnin, Krupskaja e Makarenko, por exemplo, conseguiam articular aviso pedaggica marxiana com o movimento cientfico-pedaggi-co geral?

    Embora a distino entre a Pedagogia cientfica socialista e aPedagogia cientfica em geral ou burguesa se torne cada vez menosprecisa, na primeira metade do sculo XX ainda era ntida. Entretan-to, algumas pontes j estavam sendo lanadas por Lnin e sua espo-sa Krupskaja, aps a Revoluo Russa de 1917. Com efeito, o so-cialismo do sculo XX no era mais uma simples ideologia emergen-te, mas era a ideologia oficial de vrias repblicas comunistas que,pela primeira vez na histria, se defrontavam com a responsabilida-de de realizar concretas reformas pedaggicas.

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    Lnin e Krupskaja lideraram, nas duas primeiras dcadas dosculo XX, reformas educacionais que se identificavam com os prin-cpios do socialismo cientfico, explicitando que a educao se fun-damentava no reconhecimento da funo civilizadora do capitalismoburgus. Seus escritos e suas reformas constituem uma sntese ofi-cial dos princpios do socialismo marxista. Aceitavam, porm, boaparte das reformas e dos estudos pedaggicos progressistas, forado mbito socialista. Leia-se, por exemplo, essa passagem:

    A instruo gratuita das crianas, reivindicada pelos socialistasdemocrticos, constituiria uma melhora importantssima para todaa populao e sobretudo para os camponeses pobres. (...) Mas, preciso oferecer uma verdadeira instruo livre, no a que ofere-cem os funcionrios e os padres (Lnin apud Manacorda, 1964, p.172).

    Aos poucos at mesmo os princpios fundamentais da Peda-gogia marxista do sculo XIX sofriam alteraes significativas. Asaber: a concepo sobre a relao instruo-trabalho, escola-polti-ca e escola-herana cultural do passado estava sofrendo profundasmodificaes. O socialismo cientfico de Marx e Engels estabelece-ra uma relao mecnica e pontual entre trabalho fabril e escola. Eraquase um somatrio ou uma alternncia de momentos passados unsna escola profissional e outros na fbrica. As reformas educacionaisde Krupskaja, porm, concebiam essa relao de forma mais orgni-ca e geral, porque a fbrica influencia a sociedade como um todo eo trabalho industrial, como princpio educativo, modifica difusa euniversalmente todas as esferas da sociedade. Assim, o industrialismoeduca todo o conjunto da sociedade, no apenas o ser humano queest materialmente dentro dos muros da fbrica. Nesse sentido, atmesmo as creches infantis de uma sociedade industrial socialistaso informadas pelo trabalho fabril como princpio educativo.

    Conseqentemente, a proibio do trabalho das crianas, quepara Marx soava como postura idealista e reacionria, para ospedagogos socialistas soviticos era um imperativo, sem com issonegar o princpio do trabalho industrial como fundamento universalda Pedagogia socialista.

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    Nas anotaes de Lnin, de maio de 1917, feitas para a revi-so do programa do Partido, se l:

    A Constituio da Repblica Democrtica Russa deve assegurar: A completa laicidade da escola; A instruo gratuita e obrigatria, geral e politcnica (que fazconhecer terica e praticamente todos os ramos principais da pro-duo) para todas as crianas dos dois sexos at os 16 anos; umaestreita vinculao do ensino com o trabalho social produtivodas crianas e adolescentes; O fornecimento para todos os alunos de alimento, vesturio edos materiais didticos s custas do Estado; A proibio dos empresrios de se utilizarem do trabalho dascrianas em idade escolar (at os 16 anos), a limitao do horriode trabalho dos jovens (16 20 anos) a quatro horas e a proibiodo trabalho noturno desses jovens nas industrias insalubres enas minas (Lnin apud Manacorda, 1964, p. 192-193).

    Manacorda, em nota, assim comenta essa citao:

    A proibio do trabalho das crianas, estabelecida em 1895 ataos 15 anos e que aparece no Programa de 1903 at os 16 anos,permanece confirmada nessa idade; enquanto a limitao ao tra-balho, prevista no Programa de 1903 a 6 horas para os adolescen-tes de 16 aos 18 anos, neste momento (1917) foi fixada em apenas4 horas e ainda para os jovens at os 20 anos (Manacorda, 1964,192).1

    O pedagogo e poeta russo Anton S. Makarenko (1888 1939) talvez a expresso mais emblemtica da educao do socialismocientfico. Homem dedicado escola e reflexo pedaggica, acom-panhou poltica e teoricamente as reformas educacionais de Lnin ede Krupskaja, vivenciando tambm a primeira parte do desfecho daditadura comunista de Stalin, quando o socialismo cientfico torna-ra-se mero determinismo burocrtico.

    Makarenko foi um pedagogo entusiasta e um poeta da escolaenquanto coletividade educadora das crianas chamadas pela Hist-ria a serem socialistas revolucionrios. Entendeu rigorosamente queo termo socialista era antnimo de individualista, portanto, coletivi-dade era a anttese de individualidade. Seu entusiasmo pelo coletivoo fazia polemizar at mesmo com Krupskaja, rousseauniana em de-masia, no entender dele:

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    Nos cus, e mais prximo deles, na altura do Olmpo Pedaggi-co, qualquer tcnica pedaggica na rea da educao propria-mente dita era considerada heresia. Nos cus, a criana eravista como um ser recheado de um gs de composio especial,para o qual ainda nem houve tempo de inventar um nome. Deresto, isso devia ser aquela mesma velha alma sobre a qual seexercitavam os apstolos. Presumia-se (hiptese operativa) queesse gs possusse a virtude do autodesenvolvimento. Sobre isto,muitos livros j foram escritos, mas todos eles, essencialmente,apenas repetiam os pronunciamentos de Rousseau: a infnciadeve ser encarada com venerao... temei interferir na natureza.O dogma principal desse credo consistia em que, nas condiesde tal venerao e cautela perante a natureza, o gs acima mencio-nado deveria inevitavelmente produzir o crescimento de uma per-sonalidade comunista. Na realidade, nas condies da naturezapura, crescia somente aquilo que naturalmente podia crescer, isto, meras ervas daninhas mas isto no preocupava ningum: aoshabitantes celestes s eram caros princpios e idias. Minhas de-monstraes quanto discrepncia prtica entre as ervas dani-nhas resultantes e os projetos assumidos para uma personalida-de comunista eram chamadas de utilitarismo, e se eu tentava su-blinhar minha verdadeira essncia, diziam: Makarenko um bomprtico, mas entende muito pouco de teoria (Makarenko apudLuedemann, 1994, p. 240-241).

    Obviamente, para o socialista Makarenko, o princpio de au-toridade e disciplina ocupava lugar centralssimo na prtica e na te-oria pedaggicas:

    A ativao dos princpios sociais da coletividade escolar e a com-binao das medidas educacionais com o sistema de sanesexigem o fortalecimento imprescindvel do centro educacional naescola. Somente o diretor pode ser esse centro, pois o maiorresponsvel na instituio, dirigente nomeado pelo Estado (...)Todos os demais trabalhadores escolares devem atuar sob suadireo imediata e cumprir suas indicaes diretas. (...) O trata-mento individual da criana consiste precisamente em fazer delaum membro fiel e digno da coletividade e um cidado do EstadoSovitico em consonncia com suas peculiaridades pessoais. (...)Somente criando uma coletividade escolar nica pode despertarna conscincia infantil a poderosa fora da opinio pblica comofator educativo, regulador e disciplinador. (...) Subordinar-se aocamarada, no ao rico, no ao patro, mas ao camarada e saber

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    mandar no camarada. (...) A assemblia geral de todos oseducandos de uma instituio infantil o rgo principal deautogesto (p. 182-184).

    Textos como esses so inmeros nos escritos pedaggicosde Makarenko que, nos anos 20, dirigia em Poltava uma colnia dereeducao de pequenos infratores que consegue, pela sua genialidadee dedicao pedaggica, transformar numa pequena sociedadeautogestida. Em seguida, dirige uma comunidade de trabalho infantile nomeado diretor geral das casas para crianas da regio de Karkov.Morre em Moscou em 1939.

    Quanto ao trabalho como princpio educativo, sua posiocolava perfeitamente com a de Marx: De todas as formas estouconvencido de que o trabalho que no tem como finalidade direta aproduo de valores materiais no um elemento educacional posi-tivo (Makarenko apud Luedermann, 1994, p. 167). Termos comocoletividade, trabalho produtivo infantil, disciplina, autoridade,antiespontanesmo, etc. pontuam todo o pensamento e a prtica pe-daggica de Makarenko. No se deve, entretanto, esquecer as cir-cunstncias histricas em que viveu, pensou e trabalhou. Ao redordele retumbava a guerra e a revoluo: vrios mundos estavam emchoque. As crianas e os menores que chegavam colnia de ree-ducao dirigida por ele traziam, nas carnes e nos espritos, as mar-cas de tantas contradies, carncias e violncias. Seu maior mritofoi acreditar na fora da educao: Eu professo uma f sem limites,temerria e sem reservas, na imensa potncia do trabalho educativo(Makarenko apud Manacorda, 1989, p. 316).

    O diretivismo pedaggico desse grande nome da educaosocialista, sua f na revoluo e mesmo sua postura doutrinria con-servavam ainda o perfume e os encantos dos primeiros anos dabem-sucedida Revoluo Bolchevique:

    A coletividade tem que embelezar-se exteriormente. Por ela, a pri-meira coisa que fiz foi construir um campo de flores sem preocu-par-me com o custo. Cultivvamos especialmente rosas, no flor-zinha de m sorte. Flores que adornavam os dormitrios, refeit-rios, salas de aulas e de reunio e tambm as escadas (...). Quantoao uniforme, estive disposto a ir mais longe. Imagino que as crian-as devem vestir com tal gosto e elegncia que inspirem admira-o. Em tempos passados eram as tropas as que vestiam os me-

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    lhores uniformes. Era um luxo das classes privilegiadas. Em nossopas, a camada privilegiada da sociedade, que tem direito a vestirmelhor que todos, devem ser as crianas (Makarenko, in: Luede-mann, 1994, p. 189).

    Em que pese, todavia, a dedicao, o entusiasmo e o perfumedos primeiros anos da revoluo, o realismo e autoritarismo pedag-gico de Makarenko refletem o socialismo real da burocracia de Stalinque, aos poucos, produzir um marxismo vulgar, anlogo econo-mia vulgar do pensamento burgus: isto , pobres teorias diretamen-te subordinadas a interesses polticos e sociais de grupos no poder.

    Na sua obra Bandeiras nas Torres Makarenko, com orgulho,reproduz o discurso de um oficial do Exrcito Vermelho, dirigidoaos meninos de uma colnia escolar, ao lado da bandeira e prximo efgie de Stalin:

    Saudamos vossa colnia que assume em seus jovens ombros anobre tarefa de criar uma fbrica de ferramenta eltrica. O ExrcitoVemelho receber com orgulho a vossa produo. (...) belo sa-ber que vossas jovens mos cedo vo fabricar ferramenta tonecessria defesa do pas. Depois, as vossas mos, por sua vez,pegaro na espingarda; tambm vs entrareis no Exrcito Verme-lho (...) Agrada-nos ver a forma como vivem; a vossa feliz e sober-ba disciplina, o respeito pela nossa bandeira vermelha; tudo emvossa casa se faz pontualmente e em conscincia (Makarenkoapud Luedemann, 1994, p. 253).

    TERCEIRA PARTE: o SocialismoInvestigativo e a Educao da Criana

    Nesta terceira parte precisamos responder a trs questes: oque se pretende dizer com a expresso socialismo ou marxismoinvestigativo? Por que Gramsci? Quais os reflexos na educaoinfantil?

    Por socialismo investigativo entendemos a postura moral eintelectual de quem prioriza, entre os valores sociais, a igualdade e ajustia e se inspira nas investigaes acadmico-cientficas, no m-todo dialtico historicista. Essa postura rejeita, portanto, o socialis-mo como um conjunto de doutrinas burocraticamente definidas eauto-suficientes a serem aprendidas e difundidas.

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    Jean Paul Sartre afirmou que o marxismo tornara-se a refe-rncia epistemolgica mais importante do sculo XX. Isto , o mar-xismo, enquanto mtodo cientfico, tornara-se patrimnio universalda Filosofia contempornea, assim como a Filosofia de Descartestornara-se referncia universal para a modernidade. Por isso, pensare pesquisar a partir da dialtica entre as classes sociais, relacionarinfraestrutura e superestrutura, contexto histrico e subjetividade,priorizar o trabalho como categoria e fonte de valor e, sobretudo,considerar a coletividade e a igualdade entre os homens valoresprioritrios frente liberdade individual, qualifica programas polti-cos e posturas intelectuais de socialistas ou de esquerda, indepen-dentemente de qualquer identificao poltico-burocrtica.

    Por que Gramsci representaria o marco distintivo entre o so-cialismo doutrinrio e o investigativo? Afinal, ele foi secretrio geralde um Partido Comunista, seus escritos e sua prtica poltica o ali-nham ao autoritarismo de Lnin. A historiografia mais recente, noentanto, reconhece que a principal caracterstica do pensamento deGramsci a crtica ao determinismo histrico e ao burocratismopartidrio da tradio socialista. No por acaso Gramsci morreu nocrcere bastante isolado e at execrado pelo seu prprio partido.No por acaso, no mbito dos Partidos Comunistas das dcadas de40, 50 e 60, o nome de Gramsci permaneceu na sombra, quandono hostilizado como heterodoxo. Enfim, consideramos muito de-fensvel a tese de que a caracterstica do socialismo investigativo foihistoricamente introduzida por Gramsci, no s na Itlia, mas tam-bm no mbito do socialismo internacional, tornando-se hegemnicaaos poucos, por exemplo, no eurocomunismo, at se impor hoje,quase universalmente, aps a Perestroika e a queda do muro de Berlim.

    Gramsci, de fato, j no ano de 1918, ao publicar o famosoartigo intitulado O nosso Marx , para comemorar o centenrio donascimento de Marx (5/5/1818), demarcava com preciso e muitacoragem a distino entre marxismo doutrinrio, determinista e bu-rocrtico, e o marxismo como mtodo de livre investigao. Eisalguns trechos do artigo:

    Somos ns marxistas? Existem marxistas? Estupidez, apenas tu simortal. O vanilquio e o bisantinismo so patrimnio imarcescveldos homens. Marx no escreveu uma doutrinazinha, no umMessias que deixou uma longa srie de palavras cheias de impe-rativos categricos, de normas indiscutveis, absolutas, fora das

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    categorias de tempo e de espao. (...) Todos somos um poucomarxistas (...) ele no um mstico nem um metafsico positivista; um historiador, um intrprete dos documentos do passado, detodos os documentos, no s de uma parte (...) Com Marx, a his-tria continua a ser domnio das idias do esprito, da atividadeconsciente dos indivduos particulares ou associados. (...) KarlMarx para ns um amplo e sereno crebro pensante, um monu-mento individual da investigao laboriosa e ininterrupta da hu-manidade (1984, p. 3-6).

    Essas afirmaes de Gramsci sobre o marxismo no eramapenas intuies brilhantes, relmpagos perdidos na noite do mar-xismo doutrinrio. Representavam uma posio terica profunda,ainda que minoritria, emergente e repetidamente defendida porGramsci. Com efeito, no ano anterior, em novembro de 1917, es-crevia outro famoso ensaio intitulado A Revoluo Contra o Capi-tal, isto , contra a obra-prima de Marx. Esse artigo foi reeditadoem janeiro de 1918. Nele pode-se ler frases como:

    os cnones do materialismo histrico no so to frreos como sepoderia pensar e se pensou (...) Eles (os bolchevistas) no somarxistas, eis a questo; no compilaram a partir da obra domestre uma doutrina exterior, afirmaes dogmticas e indiscut-veis. Vivem o pensamento marxista que, em Marx, se tinha conta-minado com incrustaes positivistas e naturalistas (1982, p. 513-515).

    Em 1926 se contraps a Stalin, o que lhe custou a permann-cia na cadeia at a morte: Companheiros escreveu ao CominternComunista que pretendia expulsar Trotzky, Zinoviev e Kamenef hoje estais destruindo a vossa obra, degradais e correis o risco deanular a funo dirigente que o Partido Comunista da URSS tinhaconquistado. (Gramsci, 1971, p. 128). E ao amigo Togliatti, queo avisava do clima poltico de Moscou, impermevel s suas crti-cas, replicava: Todo teu raciocnio viciado de burocratismo(p. 136).

    O fascismo e o stalinismo liquidaram Gramsci, mas a Histriaresgatou sua postura investigativa, sua proposta de modelo de revo-luo diferenciado e adequado para cada povo e cada nao:

    Para conhecer com preciso os fins histricos de uma nao, deuma sociedade ou de um grupo social necessrio antes de tudoconhecer quais os sistemas e as relaes de produo e de troca

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    daquele pas, daquela sociedade. Sem esta investigao no sefar histria, a atividade prtica no ser explicada em toda suaslida complexidade (1984, p. 5).

    O socialismo investigativo de Gramsci criticava tambm aviso dualista que justape o reino da necessidade ao reino da liber-dade. Este no comea quando aquele termina, isto para alm daeconomia burguesa. A marxiana frmula da passagem do reino danecessidade para o reino da liberdade pagou forte tributo metafsicajudaico-crist, superada pela Filosofia moderna, que a substituiracom a frmula fazer de necessidade liberdade.

    Giuliano Gramsci, seu filho, afirma hoje que seu pai haviaentendido, j na dcada de 30, que a forma para sair da triste etrgica histria dos fascismos do sculo XX era ultrapassar amilitncia burocrtica por meio de uma verdadeira militncia tica,porque acima do partido poltico burocrtico h o partido polticotico que une personagens politicamente diferentes, mas moral-mente solidrias (Gramsci, G., 1992, p. 55).

    As conseqncias dessa nova postura socialista inauguradapor Gramsci so grandes, no mbito da concepo cultural, educa-cional e, at mesmo, da educao infantil, como veremos adiante.Por exemplo, no mbito do debate ideolgico, a antiga militnciapoltica no mais podia ser representada como um campo de batalhano qual contrapem-se bilateralmente os fiis contra os infiis, averdade contra o erro em posies nitidamente antagnicas:

    Compreender e avaliar realisticamente a posio e as razes doadversrio (e s vezes adversrio todo o pensamento passado)significa exatamente estar livre da priso das ideologias (no sen-tido pejorativo, como cego fanatismo ideolgico), isto , significaposicionar-se num ponto de vista crtico, nico ponto fecundona indagao cientfica (Gramsci, 1975, Caderno 10, nota 24).

    Para o socialismo investigativo, produzir cultura no difun-dir uma doutrina e sim desencadear nas pessoas um processo deauto-identificao histrica; por isso, a escola bsica no pode seruma escola para a profissionalizao precoce e sim uma escola decultura desinteressada:

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    Cultura organizao, disciplina do prprio eu interior, tomadade posse da prpria personalidade, conquista de conscinciasuperior, pela qual consegue-se compreender seu prprio valorhistrico, a funo na vida, os prprios direitos e deveres.(Gramsci, 1980, p. 100).

    A insistncia de Gramsci sobre a necessidade de uma culturaprofunda e desinteressada, fruto de investigao pessoal, lugar-comum entre seus escritos: as informaes, fora de todo um tra-balho de pesquisa, se tornam dogmas, verdades absolutas, ensinoteolgico, uma reedio da escola jesutica que apresenta o conhe-cimento como algo definitivo, apoditicamente indiscutvel. Emoutro texto:

    O povo italiano foi formado numa mentalidade dogmtica e intole-rante pela educao catlica e jesutica. Falta-lhe o esprito desolidariedade desinteressada, o amor livre discusso, o desejode buscar a verdade por meios exclusivamente humanos, ofereci-dos pela razo e pela inteligncia (Gramsci apud Nosella, 1992, p.26).

    Para Gramsci, finalmente, a escola infantil, fundamental emdia, deve ser unitria, de cultura geral, porm moderna, voltada compreenso do atual mundo da produo tecnolgica; no podeser uma escola de cultura geral retrica, arcaica, consoante o velhohumanismo pr-industrial. Com efeito, tanto Lnin quanto Krupskajaj haviam superado o velho mecanicismo marxiano que, na instru-o da criana e do adolescente, alternava tempos de sala de aula etempos de fbrica. Gramsci conhecia esse debate; havia lido tam-bm os escritos de Trotsky e de Ford sobre o industrialismo. Sabiaque o esprito industrial era sobretudo um clima cultural que envolvetoda a sociedade criando valores, necessidades, costumes, hbitos,produtos prprios. Nesse sentido, at mesmo o ensino pr-escolarse fundamenta pedagogicamente no trabalho industrial moderno. Defato, as creches e as pr-escolas administradas pelo Estado moder-no e pelas grandes indstrias apresentam-se fsica e pedagogica-mente de forma diferenciada das escolas administradas por socieda-des pr-industriais. Os brinquedos, por exemplo, refletem a formaprodutiva hegemnica de uma determinada sociedade.

    Se a alternncia mecnica e pontual entre fbrica e escola jhavia sido superada pela pedagogia socialista, Gramsci aprofundaainda mais o sentido desta relao. Com efeito, a natureza do traba-

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    lho industrial e da automao a prpria liberdade humana. O ho-mem inventa o instrumento de trabalho e o aperfeioa para extrairdele o mximo de liberdade. Liberdade das necessidades biolgicasbsicas, liberdade da fadiga e do excesso de tarefas. Logo, a Filoso-fia moderna tinha razo quando rejeitava a dicotomia ou a justaposi-o entre reino da necessidade e da liberdade, pois este era a essn-cia ntima e oculta, o escopo profundo embutido naquele.

    Conclui-se, assim, que a escola pautada no trabalho modernocomo princpio pedaggico era, na verdade, a escola da liberdade.No, porm, da liberdade abstrata, e sim daquela historicamente de-terminada, concreta, enfim, industrial. Nesse sentido, podemos fi-nalmente entender com maior preciso o que Gramsci afirmava nainaugurao da Escola de Ordine Nuovo, em Turim, em 1920: Nos-sa idia central era: como podemos nos tornar livres? (Gramsci,1987, p.69).

    O tempo livre no pode ser concebido abstratamente, comoum mero no-trabalho. O tempo livre um componente do trabalhoindustrial, a sombra deste. A escola, portanto, ao mesmo tempoo reino da necessidade (trabalho muscular nervoso e disciplina) ereino da liberdade (expresso, criao, satisfao). Da mesma for-ma a fbrica, se humanamente gestida, um espao da sntese denecessidade e liberdade. Por isso em 1916 Gramsci escrevia: Aescola, quando feita com seriedade, no deixa tempo para a fbricae, vice-versa, quem trabalha a srio, apenas com enorme fora devontade pode instruir-se. (p. 227).

    Em suma, articular escola e fbrica no uma justaposiomecnica, uma alternncia pontual, a fundamentao das duas ins-tituies (e da sociedade moderna em geral) no mesmo princpiouniversal da liberdade industrial:

    O advento da escola unitria significa o incio de novas relaesentre trabalho intelectual e industrial, no s na escola, mas emtoda vida social. O princpio unitrio refletir-se- portanto em to-das as organizaes de cultura, transformando-as e lhes dandoum novo contedo (1975, p.1538).

    De forma sinttica, assim podemos concluir a evoluo dopensamento socialista sobre a relao trabalho e educao: inicial-mente, o socialismo se ops escola da monotecnia, quando o alunoera condenado, nos ofcios das corporaes, a aprender e exerci-

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    tar pela vida inteira uma nica profisso. s escolas das corpora-es o socialismo contrape a escola politcnica e tecnolgica damanufatura e da grande indstria. Finalmente, o socialismo evoluiem direo escola da liberdade industrial, j que a essncia do auto-matismo industrial a liberdade do homem. No sendo essa liberda-de resultado espontneo da evoluo, precisa ser ensinada. Este oobjetivo ltimo da escola socialista moderna.

    Cabe, ainda, uma pergunta: existe algum critrio especficoque diferencie a educao infantil e do adolescente, da educaosuperior e profissional? Gramsci responderia que, no mbito da es-cola bsica ou unitria, o que diferencia a educao infantil do Ensi-no Fundamental e Mdio o desigual grau de autonomia dos alunos.Conseqentemente, aplica-se um desigual grau de autoridade e dedisciplina nas escolas. A autoridade exterior e a dosagem na discipli-na tornam-se cada vez mais necessrias medida que o grau deautonomia diminui.

    luz da questo da autonomia, a puberdade consideradaum elemento da mxima importncia. Vejam, por exemplo, comorespondeu Gramsci cunhada que se queixava de sua exignciademasiada para com a sobrinha Edma (Mea), cujos trabalhos esco-lares da primeira srie, considerados orgulho da famlia, eram pelotio analisados, elogiados, mas tambm criticados:

    um erro que normalmente se faz na educao das crianas es-quecer que na vida dos jovens h duas fases muito distintas,antes e depois da puberdade. Antes da puberdade, a personalida-de no est ainda formada e mais fcil guiar sua vida e fazer comque adquira certos hbitos de ordem, de disciplina, de trabalho(Gramsci apud Nosella, 1992, p. 80).

    Como foi dito: o antiespontanesmo pedaggico caracters-tica geral da Pedagogia socialista. A criana no um homem adultoem potencial, no semelhante a um novelo que j contm enrola-da toda a linha da vida e que, portanto, baste puxar pela ponta quetudo se desenvolve naturalmente. A personalidade infantil no dife-rente da do adulto apenas em grau, quantitativamente. Sua estrutura diferente, por ser a criana uma original relao com o mundo. Oantiespontanesmo educativo defendido pela Pedagogia socialista, naverdade, a reao ao descompromisso educativo, ao falso liberalis-mo que camufla a fuga dos adultos das responsabilidades e das fadi-gas pedaggico-educativas.

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    A orgnica relao da criana com o mundo que a circunda,com o momento histrico em que vive, representa outra reconheci-da caracterstica da Pedagogia socialista. Por exemplo, quando seufilho Dlio completava os quatro anos, Gramsci ficou muito preocu-pado com o brinquedo que haveria de escolher. Est convencido queo brinquedo materializa princpios e valores educativos correspon-dentes a um determinado momento histrico. Acaba escolhendo omecano, uma caixa cheia de pequenas peas metlicas, com vriosparafusos e instrumentos para que a criana possa brincar cons-truindo guindastes, torres e estruturas vrias de metal, porque sabiaque era um tpico brinquedo do industrialismo.

    As crianas e os adolescentes manifestam tendncias profis-sionais duradouras? Trata-se de uma questo importante para seposicionar sobre a formao profissional dos jovens. A conclusode Gramsci que as tendncias so difceis de serem detectadas. Dequalquer forma, se posiciona contra as tentativas da Escola Ativa defavorecer a profissionalizao precoce. A Escola Unitria, de forma-o geral, embasada no humanismo moderno, lhe lembra o prottipohumanista representado por Leonardo da Vinci: artista, criador, pen-sador, poltico e tcnico:

    Dlio manifesta tendncia para concretar coisas? Essa, na minhaopinio, seria um sinal... de construtividade, de carter positivo,mais do que o brinquedo do mecano. Querida Jlia, voc estenganada ao pensar que eu desde pequeno possusse tendn-cias literrias e filosficas, como escreveu. Ao contrrio... (Gramsciapud Nosella, 1992, p. 76).

    A tese central sobre infncia aparece assim com clareza: acriana, sua fantasia, sua inteligncia e seu desenvolvimento so re-alidades histricas, pois o ambiente geral, os estmulos concretos, oclima cultural, os hbitos, os valores e as imagens mudam de pocapara poca. Por isso a educao familiar, a rua, a escola, as leituras,os currculos e seus instrumentos didticos constituem a Paidiaeducativa em constante mudana. A criana uma realidade origi-nal, mas no uma ilha, nem um anjo descido do cu, menos aindauma pura massa de instintos animais que devemos dobrar e adaptarao ambiente.

    Gramsci morreu em 1937. Seus escritos comearam a serpublicados e divulgados s em 1948, aps a Segunda Guerra Mun-dial, e alcanaram o sucesso nas dcadas de 70 e 80, aos poucos,

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    liberados com muita cautela ideolgica pelo Partido Comunista Italia-no, que detinha os direitos sobre os manuscritos. As cinzas dostalinismo sufocaram por dcadas o brilho das teorias de Gramsci.

    A semente do socialismo investigativo, todavia, havia frutifi-cado mesmo sob o espesso manto da Guerra Fria. Nem todos osintelectuais socialistas buscavam legitimidade sombra da burocra-cia. Como Gramsci, muitos outros a buscavam no trabalho de pes-quisa, na investigao, nos congressos acadmicos, na produo detrabalhos cientficos. Os ideais socialistas de igualdade social, amoraos trabalhadores, aos pobres, s crianas, s mulheres, aos oprimi-dos estimulavam seus estudos e investigaes.

    No mbito da educao infantil, por exemplo, grande influn-cia exercitou a assim chamada nova biologia, que divulgou impor-tantes estudos sobre o comportamento humano e o desenvolvimen-to do crebro e do pensamento. Os nomes mais conhecidos so osde Pavlov, J. B. Watson, Skinner e, sobretudo, Jean Piaget. Obvia-mente esses nomes no podem ser qualificados de socialistas, masseus estudos ofereceram a base e a fundamentao cientfica para oimportante Instituto de Psicologia de Moscou, cujos pesquisadoreseram socialistas e marcaram os principais estudos da segunda meta-de do sculo XX sobre educao infantil.

    Entre eles destaca-se o nome de Lev Semonivich Vygotski.Este psiclogo russo foi marcado pelo pensamento revolucionriosocialista; suas pesquisas buscavam, em ltima instncia, a constru-o do homem novo comunista. Sua referncia cientfica e imedia-ta eram os estudos de Jean Piaget, mas seu horizonte tico-polticoera o socialismo. Estudou a problemtica das crianas portadoras dedeficincia e tambm a aprendizagem escolar em geral. Suas con-cluses, alm das de Piaget, reforaram a centralidade da criatividadeno processo evolutivo infantil.

    O brincar, sustenta Vygotski, muito alm do simples treino norespeito s regras sociais, estimula a inveno e a imaginao e podevencer certas barreiras postas pelas condies do desenvolvimentoorgnico-mental da criana. Tais concluses influenciaram as ativi-dades escolares infantis, que a partir delas enfatizaram os aspectoscriativos, ldicos e imaginativos de seus currculos.

    Vygotski parece romper os limites do contexto e das condi-es reais para substitu-los com o contexto e as condies poten-ciais, bem mais amplas e ricas. A prpria educao esttica, diz ele,

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    rompe com certos limites intelectuais, orgnicos, rgidos e pr-defi-nidos como, por exemplo, nos estgios de desenvolvimento elabora-dos por Piaget. A mente infantil lgica, concorda Vygotski, masantes disso investigativa e imaginativa.

    Os valores socialistas, quando no so cerceados pelo buro-cratismo, nem instrumentalizados pelo poder, criam um clima cultu-ral e espiritual que favorece a ruptura com os limites do determinis-mo e da fatalidade humanos. Vygotski, de fato, conseguiu ultrapas-sar o determinismo naturalista dos estudiosos da nova biologia,porque alimentava seu esprito de ideais socialistas revolucionrios,buscava o novo homem para alm do homem real, sem subservin-cia burocracia e ao poder do Estado.

    Sua obra principal Pensamento e Linguagem, de 1934, sus-tenta que o pensamento verbal (o que foi estudado particularmentepor Piaget) no inato, mas determinado por um processo hist-rico-natural inscrito no mbito da psicologia social (Cambi, 1995,p. 511). O desenvolvimento da criana, por meio de diferentes est-gios, desde o sincrtico at ao pensamento formal, no espont-neo, cultural. Nessa direo, Vygotski prioriza as atividades esco-lares formativas que organizam os conceitos em sistemas. Para ele,a escola desenvolve uma funo prioritria no crescimento cognitivoda criana. Esse psiclogo confere aprendizagem um rol funda-mental:

    Com Vygotskj abrem-se para a pedagogia e para a didtica hori-zontes absolutamente novos, justamente pela funo que atri-bua dimenso social, histrica e cultural, pelo aprofundamentoda influncia da instruo formal, pelo estudo da relao entrelinguagem e pensamento, pelo destaque dado importncia dodesenvolvimento potencial e do distanciamento do real, pelasanlises das atividades expressivas,artsticas e ldicas e, sobre-tudo, da correlao entre desenvolvimento psicolgico, sociali-zao e formao cultural (Cambi, 1995, p. 511).

    De Vygotski a Leontiev, deste Luria e Elkonin, todos pesqui-sadores socialistas do Instituto de Psicologia de Moscou, a investi-gao sobre a educao da criana evolua numa mesma direo: impossvel estudar o desenvolvimento da criana sem lutar pelo de-senvolvimento de todas elas: Para que a sociedade se preocupe

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    com a educao das crianas, deve estar interessada, antes de tudo,na educao mltipla de todas as crianas, sem exceo. Este inte-resse existe somente na sociedade socialista (Elkonin, 1998, p. 398).

    Daniil B. Elkonin ainda afirma que o trabalho deles era umabusca coletiva. Com base nas investigaes e descobertas de Vygotski,cada pesquisador dava sua contribuio. Fundamentavam assim,cientfica e experimentalmente, os grandes princpios da Pedagogiasocialista: que a dimenso social a base e fundamento do desenvol-vimento da criana individual e que esta se introduz no mbito dasrelaes sociais pelo jogo.

    A escola socialista do Instituto de Psicologia de Moscou, aoenfatizar a dimenso do social no estudo da criana, evidenciava ainsuficincia do enfoque naturalista dos estudos do seu desenvolvi-mento. O fato de a sociedade capitalista afastar as crianas do mun-do do trabalho dos adultos nos d a iluso de que o mundo dascrianas seja algo totalmente desligado, avulso, separado das rela-es de produo e de reproduo social:

    Isolada no meio da famlia e das relaes familiares e vivendo emseu quarto infantil, a criana, como natural, reflete principalmen-te nos jogos essas relaes e as funes que os membros dafamlia exercem com ela e entre eles. Talvez provenha da a impres-so de que existe um mundo infantil especial, um jogo como ativi-dade cujo contedo fundamental so formas compensatrias detoda a natureza que reflete a tendncia da criana para escapardesse ambiente fechado ao mundo das vastas relaes sociais(Elkonin, 1998, p. 398).

    Ao lembrar alguns nomes da equipe do Instituto de Psicologiade Moscou impossvel no dar um destaque particular aos nomesde Alexander Romanovich Luria e Alexis N. Leontiev. Os dois socoetneos. Faleceram ambos no final da dcada de 70 (1977-1979),aos 75 anos o primeiro e aos 76 o segundo. Os dois jovens, ainda naescola secundria, defrontaram-se com a Revoluo Sovitica. Quan-do cientistas e pesquisadores, moveram-se tambm eles no mbitodos valores e princpios metodolgicos marxistas, mas, a exemplode Vygotski, recusaram-se a formular coletneas de citaes deMarx e Engels sobre os diversos aspectos da psicologia humana;pretendiam eles introduzir na cincia psicolgica o mtodo marxis-ta (1998, p. 2).

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    As crticas destes dois pesquisadores se dirigiam s concep-es mecanicistas e deterministas do comportamento humano, tan-to no que se refere linguagem quanto cultura em geral. Confir-mam em seus estudos a natureza histrica e social do psiquismohumano, bem como a importncia da Pedagogia, dos brinquedos edos programas formativos na escola unitria.

    O filo da cincia experimental, com base na nova Biologia enos estudos da psicopedagogia, inspirou as investigaes mais re-centes de Emlia Ferreiro, orientadas a entender a gnese da leitura eda escrita. Suas concluses acabaram por questionar as prprias

    concepes tradicionais de alfabetizao, baseadas nas visesde que a aprendizagem da linguagem escrita seria um processo deassociao de smbolos grficos a sons da fala e, por isso, umprocesso mecnico de repetio de letras ou slabas e seus res-pectivos segmentos sonoros (Gontijo, 2001, p. 1).

    Inmeros cientistas, filsofos, artistas, educadores, homensde cultura em geral, da segunda metade do sculo XX, identificadoscom o socialismo mas no com o burocratismo poltico, reproduzi-ram de certa forma a histria dos antigos hereges, que no abriammo dos ideais evanglicos mas rejeitavam a institucionalizao dosmesmos. Mesmo assim, a Guerra Fria conseguiu, entre 1948 e 1980,impor ao mundo da cultura certa vinculao ideolgico-institucionalque repercutiu tambm no mbito das cincias da educao.

    A Pedagogia, como qualquer outro campo do saber, sofreu adiviso entre o front ocidental, democrtico e liberal, e o front orien-tal socialista: o primeiro coincidiu com a Pedagogia liberal, cujosnomes, entre outros, so John Dewey, Kilpatrick, Washburne,Claparde, Cousinet, Maritain, Mouier, etc. No front oriental se ali-nham os pedagogos socialistas ou comunistas, como BogdamSuchodolski, M. A. Manacorda, Bruno Ciari, etc.

    Entre os dois fronts a polmica ideolgico-poltica aparente-mente era violenta. Talvez o fosse s na aparncia. No fundo, asduas frentes ideolgicas conheciam e respeitavam as regras bsicasdo debate, de forma bastante tolerante. De repente, porm, os movi-mentos estudantis de 1968 levantaram revoltas at ento desconhe-cidas que surpreenderam toda a sociedade americana (do Norte e doSul), a europia e a asitica. Tais movimentos subverteram as pr-

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    prias barreiras ideolgicas at ento estabelecidas, os saberes e oslugares onde estes so elaborados e ministrados, as escolas (Cambi,1995, p. 515).

    Polemizavam-se os reformismos social-democrticos, os co-munismos engessados da Europa Oriental e os coronelismos e arca-smos do terceiro mundo, da Amrica Latina, do Extremo Oriente eda frica. A pulverizao de grupos ideolgicos da esquerda radicalfoi grande: todas as teoria eram revisitadas, o anarquismo, o marxis-mo, o leninismo, o trotskismo, o maosmo e o cheguevarismo. Docadinho incandescente da Revoluo Estudantil de 1968 nasceramnovas formas de pensar e viver a cultura, a educao, a escola e afamlia. Surgiram formas alternativas de vida: a contracultura(Marcuse), a desescolarizao (Ivan Illich), a Pedagogia radical(Frankfurt), a Pedagogia do oprimido (Paulo Freire), etc.

    Do ponto de vista da educao infantil, merece um destaqueespecial, nesse complexo movimento poltico-cultural e pedaggi-co, a Pedagogia da diferena alimentada pela confluncia do mar-xismo com o freudismo que

    se consubstanciaram numa pedagogia antiautoritria voltada ainterpretar a criana como um emblema de humanidade diferenteda caracterizada pela tradio crist-burguesa: a criana traduzum modelo humano mais livre, perverso-polimorfo, mais comuni-cativo e anticonformista (Cambi, 1995, p. 520).

    Assim, a educao infantil passou a descobrir e marcar a di-ferena do planeta infncia, definindo e defendendo radicalmenteseus direitos.

    H quem afirme hoje, inclusive, que as crianas representamuma classe social:

    O reconhecimento que a infncia e a adolescncia devem ser consi-deradas como uma verdadeira e prpria classe social emergente uma descoberta muito recente e ainda hoje a importncia desseconceito subvalorizada (Bollea, 1995, p. 7).

    Giovanni Bollea talvez no tenha razo. Sua afirmao soapara nossos ouvidos de forma chocante. Com efeito, a tese de que ainfncia-adolescncia forma uma verdadeira classe social, ao ladoda operria, no foi ainda analisada profundamente. Sabemos que o

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    sculo XX foi declarado o sculo da criana, mas infelizmente alinha de sombra que separa a riqueza da pobreza, o capital do traba-lho, seja ainda a fronteira mais forte e determinante do que a quesepara o mundo da infncia e adolescncia do mundo dos adultos.

    Ou ento, quando se diz que a infncia e a adolescncia for-mam uma verdadeira classe social, se queira afirmar apenas que oplaneta infncia um mundo social to novo e original, comparvel absoluta novidade histrica que o marxismo conferiu classe pro-letria ou trabalhadora.

    PALAVRAS CONCLUSIVASTodos reconhecem que o socialismo trouxe uma grande con-

    tribuio terico-prtica para a educao infantil. Ao longo destaspginas reafirmamos essa verdade.

    Partimos da constatao de que o ideal do socialismo semprefoi o de substituir o capital (e o mercado) como centro absoluto dasociedade, pelo ser humano (e o planejamento social) que, necessa-riamente, devia ser um homem novo, um homem socialista. Ora,como educar o homem novo sem priorizar a infncia ? Ela , poten-cialmente, um novo homem que ainda no proferiu palavra, maspode ensaiar um novo discurso, uma nova ordem social, justa ehumana.

    O socialismo, assim, v a criana como o centro e a finalida-de do processo educativo, porm no a considera uma subjetividadeisolada do social. Tambm o educador no uma subjetividade avul-sa, um mstico, um iluminado. A escola, por sua vez, no uma ilhade preservao e salvao. Criana, educador e escola constituem asociedade, a Paidia, o Pentakou platnico (o todo educante) que,dialeticamente, direciona-se para o socialismo. A criana uma his-tria nova e original que se desenvolve alimentada pelas relaessociais e materiais em que vive.

    Neste trabalho objetivamos traar a linha vermelha do pensa-mento e da prtica educativa referente infncia. Essa linha verme-lha ou socialista, mesmo possuindo razes histricas muito remotas,definiu-se, com a evidncia que conhecemos, a partir da Revoluo

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    Industrial, do Iluminismo e da Revoluo Francesa. Trata-se da pri-meira fase do socialismo que gerou os primeiros programas utpi-cos de educao infantil.

    Com o Manifesto Comunista e a influncia de Marx e Engels,a linha vermelha do socialismo foi se caracterizando por uma fortetonalidade ideolgico-cientfica, determinista. Os programas de edu-cao infantil surgidos nessa segunda fase pretenderam acoplar,mesmo que de forma mecnica e pontual, escola e fbrica, confe-rindo hegemonia a esta segunda.

    No incio do sculo XX, sobretudo a partir das reformas edu-cacionais da Unio Sovitica, com a contribuio do pensamentopoltico de Antonio Gramsci e das investigaes do Instituto de Psi-cologia de Moscou, o socialismo compreendeu que a essncia daindstria e da automao a liberdade humana e que, portanto, o serhumano precisava ser educado para a liberdade que o industrialismoproduzia. Chamamos a essa terceira fase de socialismo investigativo,contrapondo-o ao doutrinrio.

    Neste texto nos limitamos a traar uma linha programtica deestudos sobre autores e obras, oferecendo uma chave de leitura combase nos diferentes contextos histricos e polticos do pensamentosocialista. As fontes esto identificadas e ns utilizamos tantos osclssicos como os comentaristas.

    O traado percorrido resultado de um determinado olhar,