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6º Encontro da ABRI – Perspectivas sobre o poder em um mundo em redefinição Belo Horizonte, 25 a 28 de julho de 2017 Área temática: Teoria das Relações Internacionais O SINTAGMA RELIGIOSO DA LÓGICA DA POLÍTICA: O MOVIMENTO ISLÂMICO, A GRAMÁTICA DA GUERRA E A VIOLÊNCIA ESTATAL Onofre dos Santos Filho Departamento de Relações Internacionais Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas Belo Horizonte 2017

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6º Encontro da ABRI – Perspectivas sobre o poder em um mundo em redefinição

Belo Horizonte, 25 a 28 de julho de 2017

Área temática: Teoria das Relações Internacionais

O SINTAGMA RELIGIOSO DA LÓGICA DA POLÍTICA: O MOVIM ENTO

ISLÂMICO, A GRAMÁTICA DA GUERRA E A VIOLÊNCIA ESTAT AL

Onofre dos Santos Filho

Departamento de Relações Internacionais

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas

Belo Horizonte

2017

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O SINTAGMA RELIGIOSO DA LÓGICA DA POLÍTICA: O MOVIM ENTO ISLÂMICO, A GRAMÁTICA DA GUERRA E A VIOLÊNCIA ESTAT AL∗

RESUMO

Para Clausewitz a guerra é mais um recurso à disposição dos Estados para a consecução de seus interesses. Neste sentido, ela não difere dos outros instrumentos políticos à disposição dos Estados para fazer valer suas posições e objetivos. Embora ele faça ressalvas em relação à guerra total, independentemente dos problemas que um conflito armado acarreta ele é um dos vários recursos que o governo e as nações lançam mão para atingirem seus objetivos e, como tal, a guerra é uma ação de motivação política desde a sua deflagração até que os beligerantes, de alguma maneira, concluam a paz. Ou seja, a guerra teria sua própria gramática, mas não a sua própria lógica, pois esta seria a da política. Nos termos de Carl Schmitt, a lógica que preside a política deriva da capacidade de designar quem é amigo ou inimigo, prerrogativa exclusiva de Estados soberanos. Na contemporaneidade emerge, porém, um problema: agentes políticos não estatais, como o Movimento Islâmico, desafiam a exclusividade soberana de designação do inimigo subvertendo-a em benefício de interesses políticos expressos em um sistema de referência religioso. O objetivo deste ensaio é o de entender como o sintagma religioso expresso na lógica da política subverte a gramática da guerra e desafia as prerrogativas estatais de exercício da violência na sociedade internacional.

Palavras-chave: guerra, Islamismo Político, terrorismo, violência.

ABSTRACT

For Clausewitz war is a political instrument available to states for the achievement of

their interests. As such, it is not different from other political instruments that states use

to assert their positions and objectives. Thus, war would have its own grammar, but not

its own logic, since the logic of war would be that of politics. According to Carl Schmitt,

the logic behind politics derives from the capacity to make a distinction between friend

and enemy, an exclusive prerogative of sovereign states. In contemporary times,

however, a problem arises: non-state political agents, such as the Islamic Movement,

defy the sovereign exclusivity of designating the enemy by subverting it to the benefit of

political interests expressed in a religious reference system. The aim of this essay is to

understand how the religious syntagma expressed in the logic of politics subverts the

grammar of war and challenges the state’s prerogative to exercise violence in

international society.

Keywords: war, politics, Political Islam, terrorism, violence. ∗ Este trabalho é parte das reflexões desenvolvidas em tese de doutoramento, ainda não defendida, no Programa de Pós-graduação em Geografia – Tratamento da Informação Espacial – da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, sob a orientação do Prof. Dr. João Francisco de Abreu.

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1. Introdução

Para Clausewitz (1996) a guerra é mais um recurso à disposição dos Estados para a

consecução de seus interesses não diferindo, assim, dos outros instrumentos políticos

que podem recorrer para fazer valer seus objetivos. Contrapondo-se àqueles que

veem na guerra uma interrupção da política, Clausewitz argumenta que tal não

acontece, já que ela é produto do intercâmbio político entre governantes e nações.

Independentemente dos problemas que um conflito armado acarreta ele é um dos

vários recursos que o governo e as nações lançam mão para atingirem seus objetivos

e, como tal, a guerra é uma ação de motivação política desde a sua deflagração até

que os beligerantes, de alguma maneira, concluam a paz. No horizonte clausewitiano

da guerra – enfrentamento de dois exércitos regulares em um campo de batalha – esta

é compreendida como um evento normal entre dois governos ou nações, orientado por

regras reconhecidas e aceitas pelos beligerantes.

No entanto, ao final de seu argumento, Clausewitz (1996) se pergunta se não seria a

guerra “outra classe de escritura e de linguagem para os pensamentos dos governos e

das nações”. Depois afirma que a guerra “possui sua própria gramática”, apesar de

não possuir sua própria lógica. Com isto podemos inferir que ao ter uma gramática

específica a guerra possui suas próprias regras e prescrições que são diferentes

daquelas atinentes à política. Contudo, ao remeter-se à lógica da política a gramática

da guerra está sujeita a imperativos além daqueles que se expressam nas regras e

convenções de batalha.

No nosso entender, a lógica da política embebida na gramática da guerra, nos termos

de Carl Schmitt, deriva da capacidade de designar quem é amigo ou inimigo,

prerrogativa exclusiva de Estados soberanos. Na contemporaneidade emerge, porém,

um problema: agentes políticos não estatais, como o Islamismo Político, desafiam a

exclusividade soberana de designação do inimigo subvertendo-a em benefício de

interesses políticos expressos em um sistema de referência religioso. Perguntamo-

nos, então, quais seriam as implicações para a lógica da política impressa na

gramática da guerra quando da alteração da primeira por atores não estatais, que

além de não serem detentores do jus belli, atuam além das fronteiras territoriais de

seus Estados de origem. O objetivo deste ensaio é, pois, o de entender como o

sintagma religioso expresso na lógica da política subverte a gramática da guerra e

desafia as prerrogativas estatais de exercício da violência na sociedade internacional.

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2. A lógica da política impressa na gramática da gu erra

Para respondermos a essas questões temos que pensar na política não nos termos

restritos de conquista e manutenção do poder, mas ir além, entender o político naquilo

que o distingue dos demais fenômenos sociais.

Uma definição do conceito do político só pode ser obtida pela identificação e verificação das categorias especificamente políticas. Isto porque o político tem suas próprias categorias, as quais se tornam peculiarmente ativas perante a diversos domínios relativamente autônomos do pensamento e da ação humanos, especialmente o moral, o estético e o econômico. Por isso, o político tem que residir em suas próprias diferenciações extremas, às quais se pode atribuir toda a ação política em seu sentido específico. (SCHMITT, 2008, p. 27)

Pensar na política como a conquista e a manutenção do poder permite-nos

compreender o seu exercício, ou seja, aquilo que os envolvidos diretamente na prática

política por meios violentos ou pacíficos objetivam, mas não autoriza qualquer

entendimento daquilo que o político possui de específico. É preciso, então, diferenciar

o político em relação às outras esferas da vida social, e para tal é necessário

determinar o que o define em seu limite. Para Schmitt, a especificidade do político

deriva diretamente da dicotomia amigo e inimigo.

A diferenciação especificamente política, à qual podem ser relacionadas as ações e os motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo, fornecendo uma definição conceitual no sentido de um critério, não como definição exaustiva ou expressão de conteúdo. Na medida em que não derivável de outros critérios, ela corresponde para o político aos critérios relativamente autônomos de outras antíteses: bom e mal no moral; belo e feio no estético etc. Em todo caso, ela é autônoma, não no sentido de um novo âmbito próprio, e sim no modo de que nem se fundamenta em uma daquelas outras antíteses ou em várias delas, nem pode ser relacionadas a elas. [...] A diferenciação entre amigo e inimigo tem o propósito de caracterizar o extremo grau de intensidade de uma união ou separação, de uma associação ou desassociação, podendo existir na teoria e na prática, sem que, simultaneamente, tenham que se empregadas todas aquelas diferenciações morais, estéticas, econômicas ou outras. (SCHMITT, 2008, p. 27, 28)

Schmitt não pretende reduzir o político à dicotomia amigo / inimigo, mas defini-lo de tal

maneira que não se recorra a categorias de outras dimensões sociais para entender a

sua especificidade. O que a dicotomia quer expressar é a intensidade de situações de

união ou separação, associação e desassociação que a ideia do político demanda em

sua manifestação como fenômeno social. É neste sentido que ele pressupõe que o

político requer a identificação de amigos e inimigos.

O inimigo político não precisa ser moralmente mau, não precisa ser esteticamente feio; ele não tem que se apresentar como concorrente

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econômico e, talvez, pode até mesmo parecer vantajoso fazer negócios com ele. Ele é precisamente o outro, o desconhecido e, para a sua essência, basta que ele seja, em um sentido especialmente intenso, existencialmente algo diferente e desconhecido, de modo que, em caso extremo, sejam possíveis conflitos com ele, os quais não podem ser decididos nem através de uma normalização geral empreendida antecipadamente, nem através da sentença de um terceiro “não envolvido” e, destarte, “imparcial”. (SCHMITT, 2008, p. 28)

Não se trata de um inimigo convencional nos termos de nossas relações privadas – o

inimicus romano –, mas o inimigo existencial coletivo – o hostis romano, o inimigo

público. Inimigo nos termos do político é o estranho, que quando a sua não aceitação

é levada ao extremo, pode gerar conflitos com aqueles que não a reconhecem. No

entanto, não é qualquer tipo de conflito, mas aquele que não pode ser equacionado

por meio das regras gerais existentes ou pela arbitragem de um terceiro de posição

imparcial. A relação de inimizade gera, pois, uma situação conflitiva que só pode ser

resolvida por aqueles nela implicados, já que apenas eles, ao designarem-se como

inimigos, sabem a natureza da inimizade e do quanto o outro, o estranho, é entendido

como uma ameaça existencial.

Assim, inimigo não é o concorrente ou o adversário em geral. Tampouco é inimigo o adversário privado a quem se odeia por sentimentos de antipatia. Inimigo é apenas um conjunto de pessoas em combate ao menos eventualmente, i.e., segundo a possibilidade real e que se defronta com um conjunto idêntico. Inimigo é somente o inimigo público, pois tudo o que se refere a um conjunto semelhante de pessoas, especialmente a todo um povo, se torna, por isso, público. (SCHMITT, 2008, p. 30)

A inimizade verdadeira é aquela em que o seu objeto é demarcado e delimitado em

razão de uma determinada questão e o inimigo verdadeiro aquele, que em razão desta

demarcação e delimitação, é considerado uma ameaça existencial em circunstâncias e

situações específicas. A hostilidade é, pois, relacional já que o inimigo sempre se

contrapõe ao outro, e esta contraposição é que gera o ato atributivo da inimizade.

Sendo relacional, a inimizade não perdura para sempre, já que o outro pode passar da

condição de inimigo para a de amigo, ou ainda que a inimizade política persista nada

impede, por exemplo, que se estabeleçam laços econômicos entre os antagonistas. O

que caracteriza o inimigo político é a natureza pública da inimizade, a combatividade e

o fato de sempre estar relacionado à hostilidade entre dois ou mais agrupamentos

sociais.

O político tem, assim, na dicotomia amigo/inimigo a especificidade de sua lógica

operatória, a única base a partir de que se pode constituir um determinado

ordenamento. Para Schmitt (2009), é uma ideia absurda pressupor que os povos não

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tenham sempre se agrupado como amigos ou inimigos, pois na política sempre está

implícita a aglomeração social em torno destas categorias dicotômicas, o que deixa

sempre em aberto a possibilidade de as relações desembocarem no extermínio e na

guerra.1 É esta a lógica operatória do político na guerra, é esta lógica que encontra-se

inscrita em sua gramática, pois é por meio dela é que a guerra se torna, em termos

clausewitianos, uma extensão da política. A guerra, então, é uma condição latente da

política que, por sua vez, se fundamenta sempre na capacidade de se determinar

quem é o inimigo e, por implicação, determinar aqueles que são amigos.

Ao Estado como unidade essencialmente política pertence o jus belli, isto é, a real possibilidade de determinar o inimigo no caso dado por força de decisão própria e de combatê-lo. Com quais meios e técnicas o combate é conduzido, como é a organização das forças armadas, quão grande são as expectativas em se vencer a guerra, tudo isto é irrelevante sempre quando o povo politicamente unido está disposto a lutar por sua própria existência e sua independência, determinando por força de decisão própria em que consistem sua independência e sua liberdade. (SCHMITT, 2008, p. 48)

Para Schmitt cabe ao Estado, como unidade política organizada, a decisão sobre

quem é o amigo e quem é o inimigo, tanto do ponto de vista interno como externo. A

sua decisão é soberana e é parte do próprio jus belli, prerrogativa que lhe é exclusiva.

No entanto, para a condução do combate, é importante o apoio da população sujeita à

jurisdição estatal, apoio este que decorre da percepção que tem de sua liberdade e

independência, ou seja, da própria ameaça existencial que o designado como inimigo

representa. Este papel, contudo, é condicionado pelas prerrogativas do Estado como

unidade política normativa.

O Estado enquanto unidade política normativa concentrou em si mesmo uma imensa competência: a possibilidade de fazer guerras e, assim, de dispor abertamente sobre a vida das pessoas. Isto em virtude do fato de que o jus belli contém tal disposição; significa a dupla possibilidade: exigir de membros do próprio povo prontidão para morrer e prontidão para matar, e matar pessoas do lado inimigo. Mas o desempenho de um Estado normal consiste, sobretudo, em obter dentro do Estado e de seu território uma pacificação completa, produzindo “tranquilidade, segurança e ordem” e criando, assim, a situação normal; esta é o requisito para que as normas jurídicas possam ter eficácia absoluta, pois toda norma pressupõe uma

1Schmitt participou diretamente do Governo nazista e muitas de suas ideias estão relacionadas ao seu envolvimento com o nacional-socialismo. Sua concepção de político, que tem na dicotomia amigo e inimigo seu fundamento maior, é funcionalmente adequada às pretensões nazistas e ao seu projeto de poder. Certamente, o político tem no conflito um de seus principais fundamentos, mas ao contrário do que pressupõe Schmitt, este conflito não desemboca, necessariamente, em beligerância aberta ou em guerra. Quanto à participação de Schmitt no governo nazista e muito daquilo relacionado aos interesses e à ideologia nacional-socialista que aparecem em suas ideias políticas, afirmamos nossa total concordância com as críticas que lhe foram e ainda são feitas.

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situação normal e nenhuma norma pode ter validade para uma situação que lhe é plenamente anormal. (SCHMITT, 2008, p. 49)

O Estado possui duas atribuições maiores: manter a tranquilidade, a segurança e a

ordem no plano doméstico para que a normalidade jurídica venha a se constituir; exigir

de sua população, que morra ou mate no caso de uma guerra, o que significa, por

implicação, suspensão da própria normalidade da vida jurídica. Assim, mesmo não

prescindindo do apoio popular para designar o inimigo o Estado, como unidade política

normativa, avoca exclusividade em declarar guerra àquele reconhecido coletivamente

como inimigo público, prerrogativa assegurada pelo jus belli. Proteger, obrigação

primeira do Estado em relação à sociedade, para Schmitt são duas faces de uma

mesma moeda: é garantir a normalidade da vida cotidiana e o império do direito e, ao

mesmo tempo, suspender a normalidade quando a ordem está em perigo, seja em

função de um inimigo interno ou externo.

O atributo estatal de nomear o inimigo exerce-se, então, do ponto de vista interno e

externo assentado na soberania vatteliana e no segundo, em particular, no

reconhecimento por parte de todos os Estados que é direito de qualquer um deles de

continuar a política por outros meios necessários, em especial a guerra2. Para Schmitt

a ordem territorial que se consolida após as guerras religiosas europeias, expressa no

jus publicum europæum, confere igualdade jurídica dos poderes soberanos e

reconhece-lhes o direito à guerra.

Sem uma autoridade institucional comum mais elevada, os portadores do jus bellis se contrapõem entre si como pessoas [morais] soberanas juridicamente iguais e igualmente justas. Isto pode ser considerado um estado anárquico, mas de modo nenhum um estado carente de direito. [...] Como pessoas [morais] soberanas são iguais “por natureza”, isto é, iguais no estado de natureza – ou, mais especificamente, são pessoas soberanas de igual qualidade – elas não têm nem um legislador comum nem um juiz acima de si. Par in parem non habet jurisdictionem [um par não tem jurisdição entre seus pares]. Como qualquer um deles é juiz em causa própria, só estão vinculados por seus próprios contratos, cuja interpretação é assunto seu. Como cada um é igualmente soberano em relação aos demais, cada um tem o mesmo direito à guerra, o mesmo jus ad bellum. (SCHMITT, 2014, p. 157)

2 Entendemos como soberania vatteliana aquela que se constitui lentamente a partir do fim da Guerra dos Trinta Anos e dos Acordos de Vestefália: “Toda Nação que se governa por si mesma, sob qualquer forma que seja, sem dependência de nenhum estrangeiro, é um Estado soberano. Os seus direitos são naturalmente os mesmos dos demais Estados. Tais são as pessoas jurídicas que vivem em conjunto em uma sociedade natural submetida às normas do direito das gentes. Para que uma Nação tenha o direito de participar imediatamente nessa grande sociedade, é suficiente que ela seja verdadeiramente soberana e independente, ou seja, que se governe por si mesma, pela sua própria autoridade e por suas leis.” (VATTEL, 2004, p. 102) Vide, também KRASNER, 2001 e 2001a.

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Do ponto de vista externo, a normalidade nada mais é do que aquela consentida pelos

Estados por meio dos acordos e contratos entre eles, que cada um interpreta à sua

maneira. Na medida em que são pares, o que significa que nenhum deles está acima

do outro também igual, nenhum pode impor ao outro, como no caso das relações

domésticas em suas respectivas sociedades, uma leitura unilateral dos acordos e

contratos firmados entre eles. Mas como cada um interpreta estes instrumentos à sua

maneira, podem rompê-los se julgarem prejudicados – o que implica suspensão da

normalidade, atributo assentado no consentimento mútuo que todo e qualquer um

pode assim proceder. Neste consentimento mútuo está o direito à guerra, ou seja, a

designação do inimigo e a prerrogativa de combatê-lo com os meios e recursos

admitidos pelos próprios Estados. No plano interno, em que a atribuição primordial do

Estado é a manutenção da paz – garantia de proteção assentada no direito –, os

fundamentos para a declaração do inimigo são distintos da ordem externa.

Em situações críticas, esta necessidade de pacificação intra-estatal leva a que o Estado, como unidade política, enquanto existir, também determine, por si mesmo, o “inimigo interno”. Destarte, em todos os Estados, de alguma forma, há o que o Direito Público das repúblicas gregas conhecia por declaração de polemios e o Direito Público Romano por declaração de hostis, ou seja, tipos de desterro, de ostracismo, de proscrição, de banimento, de colocação hors la loi, em suma, tipos de declaração de inimigos intra-estatais, podendo ser estes tipos mais rigorosos ou mais suaves, supervenientes ipso facto ou com efeito jurídico em virtude de leis especiais, explícitos ou encobertos por circunscrições genéricas. Conforme o comportamento daquele declarado como inimigo do Estado, esse é o sinal da guerra civil, i.e., da dissolução do Estado como uma unidade política organizada, internamente pacificada, fechada territorialmente em si e impenetrável por estranhos. Por meio da guerra civil, fica decidido o futuro destino dessa unidade. (SCHMITT, 2008, p. 49,50)

No entender de Schmitt o próprio Direito Público já prevê a designação do inimigo por

parte do Estado na órbita doméstica. Mas as medidas a serem adotadas pelo Estado

dependem do comportamento daquele nomeado como inimigo, o que pode conduzir a

uma situação limite. Baseando-se em Lorenz von Stein, afirma que a Constituição é “a

expressão da ordem social, a existência da própria sociedade civil. No modo como é

agredida, o combate tem que se decidir, por isso, fora da constituição do Direito, logo,

com o poder das armas”. (SCHMITT, 2008, p. 50) Em outras palavras, combater o

inimigo fora da Constituição e do Direito nada mais é do que suspender a normalidade

da ordem, ou seja, exercitar a prerrogativa elementar do poder soberano: decidir, tanto

do ponto de vista interno quanto externo, quando e como as pessoas devem matar ou

morrer em função de uma decisão do Estado assentada no jus belli.

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Nessa perspectiva, a afirmação de Schmitt, que é “soberano aquele que decide sobre

o estado de exceção” tem, na declaração de guerra, a sua maior manifestação. Já que

a principal característica do político reside na identificação externa ou interna do amigo

e do inimigo, a guerra nada mais é do que a sua continuidade por outros meios, como

argumenta Clausewitz. O exercício do jus belli por parte do Estado suspende,

simultaneamente, a normalidade de suas relações externas e a normalidade jurídica

interna expondo às claras a natureza do poder soberano: vencer a morte, e fazer

morrer, pela prerrogativa de mandar matar aquele que designou internamente ou

externamente como seu inimigo. Contudo para que esta lógica opere normalmente

duas condições tem que ser atendidas: a) em primeiro lugar que o poder político do

Estado esteja, de fato, consolidado em um território definido; b) que a soberania seja

uma prerrogativa assentada na lógica territorial do Estado. Estes fatores são

importantes para se definir quem é o inimigo e a partir de quais elementos este inimigo

pode ser considerado como interno ou externo ao próprio Estado.

O exercício do jus belli permite, assim, a qualquer Estado designar aqueles que são

amigos ou inimigos do ponto de vista de suas interações com outros Estados, e por

meio deste atributo estender a lógica da política à gramática da guerra, o mesmo se

sucedendo, também, em relação ao inimigo interno. Isto significa que esta prerrogativa

estatal encontra-se diretamente subordinada à sua capacidade política, ou seja,

designar amigos ou inimigos, e fazer-lhes a guerra quando julgar necessário. Mas qual

seria a consequência para a competência estatal de orientar a gramática da guerra

pela lógica da política quando a segunda é subvertida por atores não estatais, como

no caso do Islamismo Político, tidos como inimigos internos e não detentores do jus

belli, que estendem sua ação política para além de seu território estatal de origem?

3. O Islamismo Político

O Movimento Islâmico, ou Islamismo Político, não é um movimento religioso ou um

reduto de fundamentalistas, como costumeiramente é difundido por alguns analistas e

veículos de comunicação de massa. Ele nasceu da relação do Islã com o Ocidente

moderno, do impacto que esta relação causou no primeiro, e da tentativa de se

encontrar uma resposta islâmica eficaz à exposição aos valores ocidentais. Apesar de

diferentes denominações e especificidades no mundo muçulmano, a ideologia

expressa pelo Islamismo Político pode ser sintetizada em algumas teses básicas.

O Islamismo é muito crítico relativamente a três aspectos: a modernidade, o Estado e o Ocidente. Esta ideologia é bastante heterogénea, incorporando um conjunto diverso de pontos de vista, tendências de pensamento, actores e organizações, por vezes

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opostas umas às outras. Esta diversidade constitui, sobretudo, uma resposta às condições políticas com que os diversos actores se deparam ao longo dos tempos e, simultaneamente, é um sinal da sua flexibilidade teórica. Contudo, quase todos os islamistas partilham das seguintes ideias: o desejo de purificar e renovar a vida islâmica, de modo a dar respostas aos problemas da sociedade; a vontade de restaurar as fortunas terrenas do Islão; a convicção que ambos os objectivos podem ser atingidos através da adopção do modo de vida islâmico do século VII, conforme exemplo do Profeta e seus companheiros (Salaf) e do regresso aos Textos sagrados. (COSTA, 2010, p. 2)

Embora as diferenças no Islamismo Político possam advir de díspares interpretações

doutrinárias ou de objetivos distintos e das estratégias para melhor atingi-los, trata-se

de um movimento eminentemente político. Sua preocupação básica é encontrar uma

resposta aos dilemas enfrentados pelos muçulmanos ao se depararem com o arranjo

institucional moderno e os seus efeitos sobre a vida social e política. Ainda que as

soluções aventadas tenham como ponto central a doutrina do Islã e seus

desdobramentos na vida em sociedade, sua proposta é de uma transformação política

que consiga, ao mesmo tempo, adequá-lo às contingências históricas da modernidade

sem, contudo, violar seus preceitos básicos. Trata-se, portanto, de uma crítica social e

política que se expressa em quadro de referência de natureza religiosa.

O islamismo, ou Islão Político, é um fenómeno intelectual que ganha forma no final do século XIX e que obtém respaldo popular no início do século XX. Desta forma, ainda que inspirado em ideias do passado, algumas das quais remontam ao período do profeta Maomé, o islamismo é algo recente, consideravelmente posterior ao aparecimento da religião islâmica e que não a substitui. O islamismo surge como uma crítica social e política que advoga o regresso a uma alegada pureza original com vista a combater desvios heterodoxos e hedonistas que estariam a dominar o mundo islâmico. É, desta forma, uma realidade simultaneamente conservadora e revolucionária. Mas o que importa reter é o seu carácter marcadamente político. (NOIVO, 2012, p. 2)

As práticas políticas do Islamismo Político remontam ao movimento intelectual

conhecido como o Despertar do Islã ou Renascimento, que tem sua raiz no século

XVII. O núcleo central deste movimento, a salafiyya, tem origem no Egito e pode ser

sintetizado em três princípios básicos:

• o retorno ao Corão e às tradições autênticas dos muçulmanos das origens, daqueles que sempre foram denominados salaf, donde o nome de salafiyya dado a este movimento nos países árabes. Esta volta era uma libertação em relação às obras, textos, glosas e superglosas dos autores da Idade Média que se passava meses estudando, em vez de ir ao essencial3;

3O salafismo procura discernir a essência doutrinária do Islã, aquilo que ele tem de imutável, daquilo que do ponto de vista dos ensinamentos e das leis sociais é mutável. No entendimento do movimento “as doutrinas foram transmitidas por uma linhagem central de pensadores, os

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• a luta pela libertação dos territórios ocupados pelas potências coloniais; • a luta contra os soberanos muçulmanos que rejeitam as reformas, que não aceitam a modernização ou que pactuam com as potências ocupantes. (JOMIER, 1992, p. 216, 217)

O ressurgimento fundamenta-se, assim, em duas teses complementares que

exprimem, simultaneamente, um projeto de revivalismo e um projeto de reforma. A

primeira é a postulação de uma Idade de Ouro, os anos de formação da comunidade

em torno do Profeta e dos quatro primeiros califas, tidos como bem guiados. Neste

período a comunidade encontrava-se unida em torno do Alcorão e da sharia, Deus a

protegia e por isto os muçulmanos prosperaram. Deste argumento provém uma

segunda tese: os infortúnios islâmicos diante dos europeus decorriam do afastamento

da palavra revelada e da sharia (PACE, 2005), e dela derivam duas estratégias

políticas para a transformação do mundo islâmico: uma revivalista – dever-se-ia tomar

a Idade de Ouro como modelo societário, retornando-se à pureza original da vida dos

primeiros crentes; outra de natureza reformista – reinterpretação do modo de vida

islâmica e sua adequação aos novos tempos.

Um expoente do revivalismo é o wahabismo e seu ideário compreende, originalmente,

uma critica ao enrijecimento da doutrina pela jurisprudência islâmica e à corrupção de

costumes provocada pela chegada dos europeus. Propõe, como solução, um modelo

de sociedade orientado pelo Alcorão, pela sharia e pelos costumes dos primeiros

muçulmanos. Florescendo na Península Arábica o wahabismo se consolidou

regionalmente devido ao clã Sa’ud tê-lo convertido em bandeira política em sua luta

por independência do Império Otomano. Vitoriosos, os Sa’ud subverteram o caráter

crítico do wahabismo adotando a jurisprudência hanbalita, restabelecendo, neste

processo, o primado interpretativo dos ulemás. (PACE, 2005) O resultado foi a

subordinação da religião à política e a constituição de um Estado, a Arábia Saudita,

baseado na interpretação hanbalita do Corão e da sharia.

Enquanto os movimentos revivalistas objetivam, em linhas gerais, o retorno à vida das

primeiras comunidades muçulmanas, a proposta do Reformismo segue um caminho

diferente. O Reformismo pressupõe a necessidade de reinterpretação do Islã em

“ancestrais pios” (al-salaf al-salih), daí o nome muitas vezes dado a esse tipo de pensamento (salaffiyya). São simples – crença em Deus, na revelação através da linhagem de profetas que acaba em Maomé, na responsabilidade e julgamentos morais – e podem ser articuladas e defendidas pela razão. A lei e a moralidade social, por outro lado, são aplicáveis a circunstâncias particulares de certos princípios gerais contidos no Corão e aceitáveis para a razão humana. Quando mudam as circunstâncias, também elas mudam; no mundo moderno, é tarefa dos pensadores muçulmanos relacionar leis e costumes mutantes a princípios imutáveis, e ao fazer isso impor-lhes limites e uma direção”. (HOURANI, 1994, p. 312)

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função do seu contato com o Ocidente e compreende vários pensadores, mas tem em

Jamal al-Din al-Afghani (1838-1897) o seu principal expoente. Para ele, contrariando a

tese sunita do fechamento da porta da interpretação, o Islã deveria sofrer uma

releitura, uma nova exegese corânica capaz de conciliar a doutrina e os imperativos

dos novos tempos. Seu esforço é o de produzir uma nova síntese que sem contrariar a

Revelação, os ensinamentos do Profeta e a especificidade cultural islâmica,

possibilitasse a incorporação de ideias e inovações ocidentais renovando-se, desta

forma, a sociedade e os costumes muçulmanos. (PACE, 2005; HOURANI, 2005)

Do ponto de vista dos movimentos políticos, o Ressurgimento neles incide de

maneiras diferentes. Em um primeiro momento, representado pela criação da

Irmandade Muçulmana nos primeiros anos do século XX, no Egito, a ideia central era

a da luta contra a dominação colonial e pela fundação de um Estado islâmico. Na mais

antiga organização islâmica em atuação no mundo árabe, os princípios orientadores

da prática política são de natureza religiosa: Alá é o nosso objetivo. O Profeta o nosso

líder. O Alcorão a nossa lei. Jihad é o nosso caminho. Morrer pelo caminho de Alá é a

nossa maior esperança. Podemos perceber por estes princípios que os Irmãos

indicam uma solução diferente para os problemas de consolidação dos Estados do

Oriente Médio e do Norte da África após a descolonização.

Com efeito, a “Irmandade Muçulmana” defende a criação dum Governo Islâmico, seguindo os princípios consignados no Alcorão “O Alcorão é a nossa Constituição”. A interpretação do Islão é bastante conservadora em relação aos assuntos sociais, como por exemplo em relação ao papel da mulher. Acreditam que o Islão impõe ao homem a luta pela justiça social, a erradicação da pobreza e da corrupção e a liberdade política, tal como estão definidas no Estado Islâmico. É fortemente hostil ao colonialismo e teve um importante papel na luta contra o domínio Ocidental no Egipto e noutros países muçulmanos no início do século XX. (LEAL, 2006, p. 218)

Os Irmãos reconhecem, assim como os Jovens Oficiais egípcios que derrubaram a

monarquia nos anos 1950, que é preciso enfrentar a dependência e a influência

ocidentais, garantir a autonomia política dos Estados recém-criados e lutar contra as

injustiças sociais. Porém, ao contrário do grupo de militares que tomou o poder no

Egito, a Irmandade vê no retorno às raízes islâmicas e na construção de um sistema

de regulação social baseado na sharia a solução para os problemas que os primeiros

denunciavam. É por esta razão que ao perceber os rumos políticos impostos pelos

Jovens Oficiais após o golpe – pan-arabismo e socialismo árabe – a Irmandade retira-

lhe o apoio inicial e passa a atuar em direção totalmente diferente. Esta mudança

configura um segundo momento de inflexão do Ressurgimento e dele irão resultar

duas estratégias políticas distintas.

13

A primeira estratégia se manifesta naquilo que Hassan al-Banna, fundador da

Irmandade Muçulmana, afirmava: precisamos de três gerações para os nossos planos

– uma para ouvir, uma para lutar e a outra para ganhar. Esta afirmação expressa um

projeto de médio e longo prazo que não implica a transformação violenta ou

revolucionária, mas uma postura política reformista. A ideia é atingir os objetivos de

constituição de uma sociedade e Estado islâmicos recorrendo-se, inclusive, aos

próprios mecanismos políticos ocidentais. Não é fortuito que após ter sido conduzida a

clandestinidade pelo Governo Nasser, a Irmandade ressurge nos anos 1990

defendendo a democracia como indispensável à vida política, o direito das minorias,

principalmente no que se refere aos cristãos coptas e um novo estatuto para a mulher.

(LEAL, 2006). Apesar de estas propostas advirem de seus membros mais jovens, elas

acabaram sendo adotadas pela Irmandade por meio de seu braço político, o Hizb Al

Wasat, fundado em 1996.

A segunda estratégia tem origem nas ideias de Sayyid Qutb, também irmão

muçulmano. Para ele, não existia mais uma sociedade islâmica, já que esta se

encontrava contaminada por valores exógenos à comunidade dos fiéis. O mundo em

que os muçulmanos viviam era de ignorância e de barbárie (jahiliyya) e os crentes

deveriam lutar para romper este estado das coisas, e sobre os seus escombros

construir, de fato, uma sociedade e Estado verdadeiramente islâmicos. (LEAL, 2006).

Os seguidores de S. Qutb interpretaram o seu apelo de luta para a implementação dos princípios muçulmanos autênticos de maneiras bastante diferentes: alguns defendiam a construção de escolas e a participação em eleições nacionais; outros (uma minoria com grande capacidade de autopromoção) defendiam a prática de actos de violência e terrorismo. Na prática a segunda opção foi a que mais sucesso teve quando os Governos autoritários e não participativos tentaram esmagar a oposição. (LEAL, 2006, p.233)

Na verdade, os grupos que defenderam a adoção da violência partiram do

pressuposto de que a solução apresentada por nacionalistas e socialistas não

convergia com o propósito de se restaurar o Islã em suas bases originais. Portanto, o

estado de compromisso que antes levara a Irmandade a apoiar os Jovens Oficiais, por

exemplo, havia sido rompido. A alternativa seria o enfrentamento aberto em uma luta

constante para a instauração de uma sociedade orientada pela autoridade do Corão e

as regras da sharia4. Estes grupos adquiriram maior visibilidade política em

4 “A partir de Qutb os movimentos coletivos com base religiosa e política que, em nome do Islã, se agregam em diversas realidades nacionais (do Paquistão à Argélia, da Tunísia ao Sudão), declaram de modo sempre mais convicto que terminou o tempo do compromisso. Ou melhor, dos compromissos, tanto com os modelos socioculturais e políticos de matriz ocidental como com as classes dirigentes nacionais surgidas depois do fim do colonialismo. Muitas vezes estas

14

decorrência, por exemplo, de atentados terroristas espetaculares, e deu origem a uma

nova modalidade de ativismo político: o Salafismo jihadista.

O Salafismo jihadista resulta da mescla do conservadorismo salafita (que concentra as suas atenções tradicionalmente nos assuntos internos do Islão) e das tendências jihadistas radicais. Esta corrente combina o respeito pelos textos sagrados na sua forma mais literal com um compromisso absoluto com a jihad. Durante a luta contra os Soviéticos, na fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão, fundem-se várias tendências ideológicas e políticas, com a chegada de indivíduos de diferentes países, origens e backgrounds. Naquele território diversas mesquitas, escolas religiosas e centros de acolhimento para os mujahidin árabes foram responsáveis pela difusão da corrente jihadista. Assim, o Jihadismo tem um carácter transnacional, o que se fica a dever ao facto de incorporar indivíduos de várias nacionalidades. De igual modo, a sua heterogeneidade e complexidade provêm das prioridades políticas e estratégicas divergentes dos seus actores. (COSTA, 2010, p. 14)

O que faz o Salafismo jihadista é tomar como princípio básico para a defesa do Islã, a

chamada pequena Jihad em detrimento da grande Jihad. O termo jihad significa luta,

combate, conotando esforçar-se para alguma coisa. Na tradição islâmica, pode

significar tanto o esforço interior contra as paixões que assaltam o muçulmano e

podem compeli-lo a desviar-se do caminho reto – a grande jihad – ou uma guerra legal

na defesa do Islã ou ofensiva nos casos em que isto se fizer necessário – pequena

jihad. (JOMIER, 1992) Ela foi empregada de diferentes maneiras durante a trajetória

do Islã chegando até mesmo a ser entendida, por alguns governos após o período

colonial, como a luta contra o subdesenvolvimento ou interpretada como resistência

cultural à penetração de costumes e de valores alheios aos muçulmanos. O que o

Salafismo jihadista fez foi acentuar a importância da pequena jihad baseando-se

naquilo que a doutrina islâmica estabelece em relação ao direito à guerra pelos

muçulmanos.

O Salafismo jihadista combina, em um mesmo plano interpretativo, a ideia de que o

Islã encontra-se tolhido por adversários não apenas externos, mas também internos.

Do ponto de vista externo ele está ameaçado não mais pelo colonialismo, mas pelo

Ocidente; do ponto de vista interno enfrenta, também, governos apóstatas, pois

aliados dos Estados ocidentais. Assim, ele ressignifica a ideia de agressão,

transgressão e subversão fundindo em um mesmo nível as guerras defensiva e

ofensiva, além de ampliar o seu alcance. Trata-se de uma guerra para defender o Islã

no plano global contra a penetração dos valores ocidentais e no plano local contra os

últimas são pintadas com o rosto do verdadeiro Inimigo do Islã, pior do que o Grande Satã Ocidental”. (PACE, 2005, p. 267)

15

governantes infiéis e, ao mesmo tempo, de uma guerra ofensiva para recuperar os

territórios islâmicos do controle ocidental e seus aliados no poder.

À semelhança dos restantes islamistas radicais, os jihadistas tendem a considerar-se a vanguarda da ummah, detentores do monopólio da verdade e da moral e os únicos Muçulmanos com qualificações para impor o Islão autêntico aos restantes. Aqueles interpretam os cânones religiosos de modo altamente selectivo e reaccionário e tentam impor a sua interpretação desses textos ao Estado e à sociedade. Consequentemente, muitos dos jihadistas são adeptos da doutrina takfiri, excomungando (sem que tenham qualquer autoridade para o fazer) aqueles Muçulmanos que fazem uma leitura diferente dos preceitos islâmicos e que não se juntam à sua luta. As organizações de inspiração salafita jihadista tentam restaurar as glórias do passado da nação islâmica através da guerra contra os restantes Muçulmanos, os quais são considerados inimigos. Com efeito, as vítimas das organizações jihadistas são, muitas vezes, Muçulmanos e não estrangeiros como aquelas afirmam. (COSTA, 2010, p. 15)

Considerando-se a vanguarda da ummah os Salafistas jihadistas irão eleger inimigos

em três níveis a serem combatidos por qualquer muçulmano fiel a Allâh e ao Profeta.

(COSTA, 2010) A primeira das correntes, o jihadismo irredentista, elegeu como inimigo

os governos não muçulmanos que administram territórios islâmicos ou poderes não

muçulmanos que ocupam territórios muçulmanos. Seu objetivo é recuperar estes

territórios e instaurar Estados islâmicos. Grupos que lutam no Afeganistão, Chechênia

ou na Palestina tem justamente o propósito de instaurar governos islâmicos após a

derrubada do atual sistema de poder ou a expulsão de forças externas. A segunda das

correntes, o jihadismo interno, elegeu os governos que consideram apóstatas ou

ímpios e por esta razão se tornaram alvos legítimos da jihad. Jihadistas como o Grupo

Islâmico e o Al-Jihad no Egito ou o Grupo Islâmico Armado na Argélia pretendem

derrubar governos que consideram ímpios ou traidores da causa islâmica.

Em termos da dicotomia amigo/inimigo trata-se da construção de uma relação de

inimizade tendo em vista um determinado objetivo, seja ele a recuperação de

territórios administrados por governos não muçulmanos ou a destituição de governos

muçulmanos tidos como apóstatas. Ainda que não portadores da prerrogativa do jus

belli, como agrupamentos sociais eles avocam a capacidade de designar outros

grupos sociais como inimigos em razão da criação de um Estado, a partir do

entendimento que aquele existente não coaduna com os seus costumes políticos e

religiosos. Trata-se, então, do inimigo interno nos termos convencionais do inimigo

verdadeiro: um inimigo público claramente demarcado e considerado como tal devido

a um objetivo político específico. A relação de inimizade é circunstancial, pois existe

na medida do próprio objetivo, o que significa que pode cessar assim que o mesmo

16

seja alcançado. No entanto, a terceira corrente do jihadismo, o jihadismo global, altera

a natureza da inimizade política.

O jihadismo global envolve a jihad contra o Ocidente, entendido como inimigo do Islão, responsável pela existência de Israel e apoiantes de regimes muçulmanos corruptos. A globalização do Jihadismo deu-se a partir de meados da década de 1990, com o aparecimento da organização conhecida por Al-Qaeda e grupos a esta associados, apesar das sementes terem sido plantadas durante os anos 1980 com a ida para o Afeganistão de muitos jovens do Médio Oriente e Sul da Ásia para lutar contra o ocupante soviético. (COSTA, 2010, p. 16)

O jihadismo global fez sua aparição triunfal na manhã de onze de setembro de 2001,

quando grande parte do mundo foi surpreendida por uma cena que, até aquele

momento, parecia impossível de ocorrer. Uma das torres gêmeas do World Trade

Center, em Nova Iorque, havia sido atingida por um avião que fazia um voo doméstico

rotineiro. Minutos depois, outro avião atingia a segunda torre e cerca de uma hora

depois, outro era atirado contra uma das alas do Pentágono e um quarto caiu sobre o

estado da Pensilvânia. Pouco depois se soube que o grupo político Al Qaeda, que em

1998 havia atacado as embaixadas estadunidenses no Quênia e na Tanzânia, era

responsável pelos atentados. A constituição e a emergência da Al Qaeda no âmbito

do Movimento Islâmico irá alterar a dicotomia amigo/inimigo e, por implicação, a lógica

da política impressa na gramática da guerra.

4. A declaração de guerra da Al Qaeda: a política c omo a continuação da

religião pelos meios de guerra

Anos antes, em agosto de 1996, Bin Laden, líder da Al Qaeda, emitira uma fatwa5

denominada Declaração de guerra contra os americanos ocupantes da Terra dos dois

Lugares Santos. Após referências a doutrina do Islã, Bin Laden, na qualidade de emir,

lembra aos muçulmanos as atrocidades por eles enfrentadas e apresenta como a

maior delas, a opressão decorrente da presença de forças estadunidenses e seus

aliados na Arábia Saudita, onde se encontram os lugares santos de Meca e Medina.

Bin Laden, então, convoca os muçulmanos a lutar alertando para os feitos de seus

antepassados que combateram pelos lugares santos e acusando o governo saudita de

5 As fatwas (sentenças) na tradição sunita são emitidas por um especialista versado na lei, o mufti, com competência para julgar questões legais. As fatwas podem, com o tempo, ser incorporadas aos tratados legais se reconhecidas por um cádi, o juiz da sharia. (HOURANI, 1994) Bin Laden, como emir, não possuía autoridade para proclamar fatwas, já que não era reconhecido como um especialista da lei islâmica ou um clérigo xiita, autorizado nesta última para efetuar tal procedimento. Bin Laden emitiu quatro ou cinco fatwas, mas interessa-nos sua declaração de guerra e o chamado à jihad universal.

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traição à umma, a comunidade dos crentes, ao permitir que infiéis permanecessem

nestes lugares.

Os cruzados foram autorizados a estar na terra dos dois Lugares Santos. [...] O país foi amplamente aberto de norte a sul e de leste a oeste para os cruzados. A terra está cheia de bases militares dos EUA e dos aliados. O regime tornou-se incapaz de manter o controle sem a ajuda destas bases. Vós sabeis mais do que qualquer outra entidade sobre o tamanho, a intenção e o perigo da presença de bases militares dos EUA na região. O regime traiu a Ummah e se juntou ao kafir, auxiliando e ajudando-o contra os muçulmanos. [...] Ao abrir a península árabe aos cruzados o regime desobedeceu e agiu contra o que foi ordenado pelo mensageiro de Allah (Bênçãos e saudações de Allah sobre ele), quando estava no leito de sua morte: (Expulsar os politeístas da Península Arábica); (narrado por Al-Bukhari) e: (Se eu sobreviver, se Alá quiser, eu vou expulsar os judeus e os cristãos da Península Arábica); sahih Aljame’ As-Sagheer. (LADEN, 1996, p. 11,12)6

Ao mencionar esses lugares Bin Laden, por meio da referência ao próprio Profeta,

busca convencer os demais muçulmanos da natureza sagrada de sua luta e

fundamentar suas pretensões naquilo que a dar al Islam, a Casa do Islã, possui de

mais central em sua crença: os lugares santos da Península Arábica. Lugares tão

santos que um dos cinco pilares do Islã é justamente a peregrinação a estes locais,

onde somente aos fiéis é permitido o acesso – o que significa que a ocupação pelos

Estados Unidos e aliados configura um ato de profanação. Além disso, entende a

profanação nos termos de uma usurpação, já que todo poder só é legítimo se for

concedido por Allâh, algo que os invasores, infiéis, não podem legitimamente aspirar.

Mas os efeitos do seu discurso vão além. Se o poder legítimo advém da divindade, o

governo saudita ao concedê-lo aos infiéis viola os limites da autoridade que lhe foi

permitida pelo próprio Allâh. Ao transgredir ele se torna, também, agressor dos lugares

sagrados, o que coloca em xeque os fundamentos de seu governo e a legitimidade de

sua autoridade como guardião dos lugares santos e comandante dos fiéis. Torna-se

então legítimo combatê-lo com os meios e recursos disponíveis até a sua derrota final.

Hoje vossos irmãos e filhos, os filhos dos dois Lugares Santos, começaram sua Jihad na causa de Deus, para expulsar o inimigo

6 Original: “The crusaders were permitted to be in the land of the two Holy Places. […] The country was widely opened from the north-to- the south and from east-to-the west for the crusaders. The land was filled with the military bases of the USA and the allies. The regime became unable to keep control without the help of these bases. You know more than any body else about the size, intention and the danger of the presence of the USA military bases in the area. The regime betrayed the Ummah and joined the Kufr, assisting and helping them against the Muslims. [...] By opening the Arab peninsula to the crusaders the regime disobeyed and acted against what has been enjoined by the messenger of Allah (Allah’s Blessings and Salutations may be on him), while he was at the bed of his death: (Expel the polytheists out of the Arab Peninsula); (narrated by Al-Bukhari) and: (If I survive, Allah willing, I’ll expel the Jews and the Christians out of the Arab Peninsula); saheeh Aljame’ As-Sagheer.”

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ocupante do país dos dois lugares santos. E não há dúvida de que vós gostaríeis de realizar esta missão também, a fim de restabelecer a grandeza da Ummah e libertar seus lugares santos ocupados. No entanto, deve ser óbvio para vós que, devido ao desequilíbrio de poder entre as forças armadas e as forças inimigas, devem aprovar um meio adequado de luta, ou seja, utilizando movimento rápido, forças da luz que trabalham sob o completo sigilo. Em outras palavras, para iniciar uma guerra de guerrilha, são os filhos da nação, e não as forças militares, a tomar parte nela. E como vós sabeis, nas atuais circunstâncias, é sábio as forças militares armadas não se envolverem em uma luta convencional com as do inimigo cruzado (as exceções são as operações arrojadas e contundentes realizadas pelos membros das forças armadas, individualmente, isto é, sem o movimento das forças formais na sua maneira convencional e, portanto, as respostas não serão dirigidas, fortemente, contra o exército), a menos que uma grande vantagem seja susceptível de ser alcançada; grandes perdas induzidas ao inimigo (que será abalado se se destruir suas bases e infraestruturas) é que vão ajudar a expulsá-lo derrotado do país. (LADEN, 1996, p. 14)7

Bin Laden enuncia a jihad para a libertação dos lugares santos e a expulsão dos

Estados Unidos e seus aliados. Explicita claramente que se trata de uma guerra

irregular, já que a desproporcionalidade de forças exige uma forma de luta indireta,

recorrendo ao combate direto e aberto apenas no caso em que as circunstâncias se

mostrarem favoráveis. Nesta perspectiva, ele nomeia o inimigo – os Estados Unidos,

seus aliados e o governo saudita – nos termos daquilo que Schmitt identifica como

sendo o inimigo verdadeiro: o inimigo é relacional e circunstancial para o qual se

estabelece um limite para lhe dar combate, ou seja, até a libertação dos lugares

santos e a expulsão daqueles que os profanaram. Convoca, então, os próprios

sauditas para realizarem a jihad e solicita o apoio dos muçulmanos.

Os Mujahideen, vossos irmãos e filhos, requerem vosso apoio em todos os sentidos possíveis, fornecendo-lhes as informações necessárias, materiais e braços. Homens de segurança são especialmente convidados para encobrir os Mujahideen e para ajudá-los, tanto quanto possível contra o inimigo ocupante; e para espalhar

7 Original: “Today your brothers and sons, the sons of the two Holy Places, have started their Jihad in the cause of Allah, to expel the occupying enemy from of the country of the two Holy places. And there is no doubt you would like to carry out this mission too, in order to re-establish the greatness of this Ummah and to liberate its’ occupied sanctities. Nevertheless, it must be obvious to you that, due to the imbalance of power between our armed forces and the enemy forces, a suitable means of fighting must be adopted i.e using fast moving light forces that work under complete secrecy. In other word to initiate a guerrilla warfare, were the sons of the nation, and not the military forces, take part in it. And as you know, it is wise, in the present circumstances, for the armed military forces not to be engaged in a conventional fighting with the forces of the crusader enemy (the exceptions are the bold and the forceful operations carried out by the members of the armed forces individually, that is without the movement of the formal forces in its conventional shape and hence the responses will not be directed, strongly, against the army) unless a big advantage is likely to be achieved; and great losses induced on the enemy side (that would shaken and destroy its foundations and infrastructures) that will help to expel the defeated enemy from the country.”

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rumores, o medo e o desânimo entre os membros das forças inimigas. (LADEN, 1996, p. 14, 15)8

Mas, ao mesmo tempo em que este inimigo pode ser claramente identificado e

demarcado, a forma de lhe dar combate é aquela já desenvolvida principalmente por

guerrilheiros que lutaram nas guerras de independência colonial ou se envolveram em

movimentos socialistas e comunistas. Neste sentido, a estratégia de Bin Laden é a

mesma do inimigo interno: uma luta na clandestinidade e que depende do apoio

popular à causa, o que requer a colaboração de segmentos sociais, tanto em termos

de guarida como, também, na obtenção de informações sobre o inimigo. A estratégia

proposta por Bin Laden não difere daquelas habitualmente utilizadas nos conflitos

irregulares: movimentação constante, sigilo, ataques rápidos de forma a evitar o

confronto em larga escala e em campo aberto, comando a partir de um santuário, o

Afeganistão, para uma luta em outro campo de batalha, a Arábia Saudita.

Chamamos à vossa atenção que o regime, a fim de criar atrito e briga entre os Mujahideen e vós mesmos, pode recorrer a uma ação deliberada contra o pessoal da segurança, guardas e forças militares e culpar os Mujahideen por estas ações. Não se pode dar ao regime tal oportunidade.

O regime é inteiramente responsável pelo que tem ocorrido no país e na nação; no entanto, o inimigo americano ocupando-os é o princípio e a principal causa da situação. Por isso os esforços devem ser concentrados em destruir, lutar e matar o inimigo até que, pela graça de Deus, ele esteja completamente derrotado. O tempo virá – pela Permissão de Allah – quando vós ireis executar o papel decisivo para que a palavra de Deus seja suprema e a palavra dos infiéis (Kaferoon) seja a inferior. Vós ireis bater com punho de ferro contra os agressores. Vós ireis restabelecer o curso normal e dar ao povo os seus direitos e cumprir seu dever verdadeiramente islâmico. (LADEN, 1996, p. 15) 9

Ao alertar contra as táticas de contrainformação a ser utilizada pelo governo saudita,

Bin Laden nomeia mais claramente o inimigo e o hierarquiza. O governo é responsável

8 Original: “The Mujahideen, your brothers and sons, requesting that you support them in every possible way by supplying them with the necessary information, materials and arms. Security men are especially asked to cover up for the Mujahideen and to assist them as much as possible against the occupying enemy; and to spread rumours, fear and discouragement among the members of the enemy forces.” 9Original: “We bring to your attention that the regime, in order to create a friction and feud between the Mujahideen and yourselves, might resort to take a deliberate action against personnel of the security, guards and military forces and blame the Mujahideen for these actions. The regime should not be allowed to have such opportunity. The regime is fully responsible for what had been incurred by the country and the nation; however the occupying American enemy is the principle and the main cause of the situation . Therefore efforts should be concentrated on destroying, fighting and killing the enemy until, by the Grace of Allah, it is completely defeated. The time will come -by the Permission of Allah- when you’ll perform your decisive role so that the word of Allah will be supreme and the word of the infidels (Kaferoon) will be the inferior. You will hit with iron fist against the aggressors. You’ll re-establish the normal course and give the people their rights and carry out your truly Islamic duty. Allah willing, I’ll have a separate talk about these issues.”

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pelo que acontece no interior de suas fronteiras e, portanto, merece ser também

combatido, mas o inimigo real, a principal causa da opressão sobre os muçulmanos

são os Estados Unidos. Sendo assim, são estes invasores que se deve enfrentar,

destruir e matar. Observe-se que não se trata somente de expulsar, mas, também, de

eliminar com o objetivo de fazer triunfar a palavra de Allâh sobre a palavra dos infiéis,

o que enuncia um deslocamento semântico da ideia inicial do inimigo.

O inimigo político é, em linhas gerais, o outro diferente, e esta diferença se define,

tanto do ponto de vista doméstico quanto do externo, em oposição a um grupo

particular que com ele não se identifica. Contudo, este pode receber conotações

específicas que alteram a natureza relacional da designação (AGUILAR, 2001;

SARAVIA, 2012). Um dos significados que o inimigo pode assumir é o de inimigo

substancial. Este, ao contrário do inimigo político verdadeiro, não é relacional, pois

independentemente das circunstâncias, sua designação permanece irredutível, pois

depende menos do que se lhe é atribuído, mas, sim, do que no entender de um

determinado agente, é constitutivo de sua própria natureza10. Assim, a característica

marcante do inimigo substancial é que a sua condição não resulta de uma designação

efetuada pelo outro, mas derivada de um elemento qualquer que lhe é considerado

intrínseco. Este elemento é tido como parte constitutiva de sua natureza e, por esta

razão, ao contrário do inimigo comum, seu status não sofre alteração diante das

circunstâncias ou de alteração no padrão interativo com outros grupos11.

Nessa perspectiva, o inimigo que na primeira acepção conferida por Bin Laden era o

inimigo verdadeiro, paulatinamente vai se substantivando e transformando-se em

absoluto, já que fazer triunfar a palavra de Deus sobre a palavra dos infiéis requer a

sua conversão ou a supressão daqueles que a expressam. Mas como a luta a ser

empreendida não visa apenas a derrota do inimigo – no sentido da lógica da política

impressa na gramática da guerra – mas fazer triunfar um discurso divino que,

supremo, não admite mediação com outros discursos que lhe fazem concorrência, só

10Embora a dicotomia amigo/inimigo tenha sido formulada em O Conceito do Político, as demais tipologias encontram-se dispersas pela obra de Schmitt, excluindo a discussão do partisan que foi depois acrescentada em uma das edições de O Conceito do Político. Existem tipologias diferentes para a classificação do inimigo, mas estamos seguindo a proposta por Saravia, 2012. Vide, ainda, Aguilar, 2001. 11 Levando em consideração o contexto político do nacional-socialismo, é como afirmar que o judeu é inimigo dos alemães devido ao fato de ser uma sub-raça, e não porque os nazistas assim o nomearam. Um inimigo identificado por uma característica tida como inerente à sua natureza, não tem como ser combatido nos termos de um inimigo político qualquer, pois nada do que se faça irá extirpar aquilo que o marca e o designa como tal. O corolário do raciocínio é que a única alternativa é a eliminação física de sua presença, ou seja, a solução final adotada pelos nazistas no equacionamento da chamada questão judaica.

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resta a alternativa de sua destruição. Este sentido de enfrentamento de visões de

mundo já se faz presente nas primeiras páginas da fatwa.

Bênção e saudações sobre Seu servo e mensageiro de Allah, que disse: (as pessoas estão perto de um castigo abrangente de Deus, se eles veem o opressor e não conseguem contê-lo). Não deve ser segredo que o povo do Islã sofreu agressão, a iniquidade e a injustiça que lhes foi imposta pela aliança sionista-cruzados e seus colaboradores, na medida em que o sangue de muçulmanos tornou-se o mais barato e sua riqueza saque nas mãos dos inimigos. Seu sangue foi derramado na Palestina e no Iraque. As fotos horripilantes do massacre de Qana, no Líbano, ainda estão frescas em nossa memória. Massacres aconteceram em Tadjiquistão, Burma, Caxemira, Assam, Filipinas, Fatani, Ogadin, Somália, Eritréia, Chechênia e na Bósnia-Herzegovina, massacres que produzem arrepios no corpo e sacodem a consciência. Tudo isso e o mundo a observar e a ouvir, e não só não respondeu a essas atrocidades, mas também, em uma clara conspiração entre os EUA e seus aliados, e sob a capa da iníqua Nações Unidas, o povo espoliado foi impedido de obter armas para se defender. O povo do Islã despertou e percebeu que ele é o principal alvo da agressão da aliança sionista-cruzados. Todas as falsas alegações e propaganda sobre "Direitos Humanos" foram postas abaixo, expostas pelos massacres que ocorreram contra os muçulmanos em todas as partes do mundo. [...] (LADEN, 1996, p. 1,2)12

Grupos políticos anteriores, como comunistas e socialistas, viam na luta contra a

opressão uma consequência da racionalidade dos explorados. À medida que se

conscientizassem de sua condição social – pelo papel exercido por um partido ou

pelas contradições das forças produtivas – eles, necessariamente, seriam compelidos

à luta contra seus opressores. A revolução, nesta perspectiva, seria o recurso final à

violência para derrotar o inimigo, os exploradores burgueses, dar fim a sua dominação

e instaurar uma nova normalidade, a sociedade da igualdade. Neste sentido, a

violência seria a continuação da política por outros meios e na medida em que o

inimigo fosse derrotado, a vida retomaria o seu curso normal. 12 Original: “Praise be to Allah, saying: (You are the best of the nations raised up for -the benefit ofmen; you enjoin what is right and forbid the wrong and believe in Allah) (Aal-Imraan; 3:110). Allah’s blessing and salutations on His slave and messenger who said: (The people are close to an all encompassing punishment from Allah if they see the oppressor and fail to restrain him.) It should not be hidden from you that the people of Islam had suffered from aggression, iniquity and injustice imposed on them by the Zionist-Crusaders alliance and their collaborators; to the extent that the Muslims blood became the cheapest and their wealth as loot in the hands of the enemies. Their blood was spilled in Palestine and Iraq. The horrifying pictures of the massacre of Qana, in Lebanon are still fresh in our memory. Massacres in Tajakestan, Burma, Cashmere, Assam, Philippine, Fatani, Ogadin, Somalia, Erithria, Chechnia and in Bosnia-Herzegovina took place, massacres that send shivers in the body and shake the conscience. All of this and the world watch and hear, and not only didn’t respond to these atrocities, but also with a clear conspiracy between the USA and its’ allies and under the cover of the iniquitous United Nations, the dispossessed people were even prevented from obtaining arms to defend themselves. The people of Islam awakened and realised that they are the main target for the aggression of the Zionist-Crusaders alliance. All false claims and propaganda about “Human Rights” were hammered down and exposed by the massacres that took place against the Muslims in every part of the world.”

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A fatwa de Bin Laden altera, contudo, os termos dessa equação. A luta contra a

opressão como um dever religioso, cujo não cumprimento pode redundar em castigo

divino, opera como um sintagma13 que rearranja a lógica da política e subverte a

gramática da guerra: lutar contra a opressão não é mais uma implicação da

conscientização política, mas um imperativo religioso cuja omissão não conduz à

manutenção da opressão, mas a um castigo divino. Sendo assim, o recurso à guerra

não é mais a continuação da política pela combinação de outros meios, mas a

continuação da religião por meio da política em uma causa de natureza transcendente.

A luta política se expressa em termos religiosos, já que é uma diretiva divina, tal qual o

cumprimento dos cinco pilares do Islã, que obriga o fiel, sob a pena de castigo, a lutar

contra a opressão. O recurso à violência deixa de ser a continuidade da política por

outros meios e passa a ser propriedade de um devir religioso, a que o crente se obriga

como expressão de sua submissão à vontade divina. A lógica que orienta a política

continua ser a nomeação do inimigo, mas a agência de designação é uma divindade

suprema que deve triunfar, como manifestação da verdade contra a falsidade, a

incredulidade e o erro. A guerra se transforma em uma luta sem quartel contra o erro,

para fazer triunfar a palavra suprema da divindade, a guerra cósmica contra o mal

para fazer triunfar o bem absoluto14. Neste processo, Bin Laden expande a ideia de

inimigo, agora absoluto ou ideal, atribuindo-o dimensão universal.

Ao caracterizar a opressão a que estão submetidos os povos islâmicos, Bin Laden não

a restringe a este ou aquele povo em particular, mas a apresenta como uma reedição

das cruzadas, agora com o apoio sionista e de outros aliados ocidentais, que abrange

as diferentes regiões em que existem muçulmanos, ou seja, ela é comum a toda à dar

al Islam. Neste sentido, resistir a opressão é combatê-la em todo o mundo islâmico, o

13 Gramaticalmente, sintagma diz respeito a elementos que uma vez vinculados em uma determinada oração, mantém relação de dependência entre eles e adquirem unidade significativa a partir de um dos elementos que se torna seu núcleo fundamental. Sintagmas podem ser nominais, adverbiais, verbais, adjetivos ou proposicionais. A proposição enunciada por Bin Laden, “as pessoas estão perto de um castigo abrangente de Deus, se eles veem o opressor e não conseguem contê-lo”, altera os termos daquela enunciada por Clausewitz, “a guerra nada mais é do que a continuação do intercâmbio político com uma combinação de outros meios”. Isto porque o recurso à violência não se assenta mais no jus belli, ou na conscientização revolucionária, mas em um imperativo transcendental ordenado pela divindade. Com isto queremos afirmar que a proposição de Bin Laden, quando comparada àquela de Clausewitz, opera de forma sintagmática possibilitando nova unidade significativa para as relações entre a guerra e a política. 14“Esta ideia de um estado de guerra extraordinário e transcendente é o segundo padrão que descortinei nos diversos incidentes de terrorismo religioso nos anos recentes. Trata-se de uma noção que apelidei de guerra cósmica, um grandioso confronto que é mais do que uma colisão de opiniões políticas ou sociais. É uma guerra maior do que os conflitos da vida normal. Aquilo de que falou Abouhalima é a imagem de uma guerra trans-histórica entre a verdade e a perversidade, o bem e o mal, religião e não religião.” (JUERGENSMEYER, 2006, p. 174)

23

que internacionaliza a própria causa em questão. Ao mesmo tempo, isola o problema

da opressão do discurso ocidental sobre os Direitos Humanos, já que a sociedade

internacional, por meio das Nações Unidas e a uma trama que envolve os Estados

Unidos e seus aliados, omitiu-se diante das atrocidades cometidas contra os

muçulmanos. Esta omissão traduziu-se no próprio impedimento de que aqueles

sujeitos à exploração adquirissem armas e pudessem se defender.

Com isso, Bin Laden desqualifica qualquer participação exógena na solução dos

problemas vivenciados pelos muçulmanos e, automaticamente, atribui-lhes a

capacidade exclusiva de lutar contra a opressão, pois apenas eles entendem a

ameaça existencial a que estão submetidos. Funde-se, então, em um mesmo plano

interpretativo o imperativo religioso de resistir à opressão e a unidade da umma em um

projeto político de luta contra os opressores. Ao proceder nestes termos Bin Laden

elege como inimigo toda a dar al Harb, a Casa dos Infiéis, e a transforma no lugar de

combate para o triunfo do Islã. Nesta perspectiva, o inimigo está em todos os lugares e

a formação de uma Frente Islâmica Mundial, expressão maior do jihadismo global,

nada mais é do que a internacionalização de uma causa política fundamentada no

quadro discursivo de um imperativo religioso.

Os objetivos da Al Qaeda configuram, assim, uma estratégia em dois níveis, uma no

plano doméstico – derrubar os governos apóstatas – e outro no plano internacional –

expulsar os EUA e seus aliados – tendo como corolário a instalação de uma nova

forma de Estado, o califado pan-islâmico. Nesta linha de raciocínio, a Al Qaeda

funcionalmente multiterritorializa as suas ações. Lutar contra os cruzados significa

enfrentar o Ocidente, em especial os Estados Unidos e o seu modelo de civilização, a

quem a Al Qaeda, na esteira da reação do mundo islâmico à penetração do arranjo

institucional moderno, elegeu como causa de seus problemas. Isto significa que o seu

inimigo não é uma sociedade ou um Estado específico, territorialmente delimitado,

mas um espaço civilizacional abstrato em que todos aqueles, independentemente dos

territórios a que pertençam, são objeto de suas ações. A pergunta subsequente é a

seguinte: se o sintagma religioso altera a designação do inimigo e, por implicação, a

lógica da política e a natureza da guerra, como os Estados, a partir do jus belli,

reagirão a esta nova situação?

24

5. A declaração de guerra dos EUA: o sintagma relig ioso e seus efeitos na

lógica da política e na gramática da guerra

Diante da natureza cósmica da jihad convocada pela Al Qaeda, a nomeação do

inimigo pelos Estados também sofre um deslocamento semântico. Assim, nomeá-la

como inimigo também não irá obedecer aos parâmetros convencionais, o que pode ser

percebido na reação do Governo Bush aos ataques de onze de setembro de 2001.

O inimigo da América não são os nossos muitos amigos muçulmanos; não são os nossos muitos amigos árabes. O nosso inimigo é uma rede de terroristas radicais e cada governo que os dá suporte. [...] a nossa Guerra ao Terror começa com a Al Qaeda, mas ela não termina lá. Ela não vai terminar até que cada grupo terrorista de alcance global tenha sido descoberto, parado e derrotado. [...] A nossa resposta envolve muito mais do que retaliação instantânea e ataques isolados. […] cada nação, em cada região, tem agora que tomar uma decisão. Ou vocês estão conosco, ou vocês estão com os terroristas15. (BUSH, 2001a)

Em primeiro lugar, Bush separa, ainda que retoricamente, os muçulmanos daqueles

que cometeram atentados contra o território estadunidense. Para ele, muçulmanos e

árabes são amigos dos Estados Unidos e, portanto, a guerra não será travada contra

eles. Em segundo lugar, ele aponta como inimigos não só os terroristas, mas também

aqueles Estados que lhe dão guarida ou lhes serve de santuário. Desta forma, nomeia

inimigos em dois níveis: no plano das interações estatais, em que a guerra a ser

travada se dá nos termos das regras que regem o conflito entre os Estados; outro no

plano das interações não estatais, o que significa um problema, já que guerras são

travadas entre Estados, e não entre Estados e agentes não estatais. Isto o conduz a

um terceiro fator, ou seja, a declaração de uma guerra diferente daquelas

convencionais – que possui amplitude e objetivos delimitados –, já que só terminará

quando cada grupo terrorista de alcance global for descoberto, parado e derrotado.

Trata-se, então, de uma guerra extensiva a um inimigo onde quer que ele venha a se

manifestar.

Também somos uma nação que está se ajustando a um novo tipo de guerra. Esta guerra que estamos travando não é uma guerra convencional. A nossa é uma campanha que terá de refletir o novo inimigo. Não há ilhas mais para conquistar ou tempestade em alto mar. Enfrentamos a marca do mal, do tipo que não víamos há muito tempo no mundo. Estas são pessoas que atacam e escondem-se,

15 Original: “The enemy of America is not our many Muslim friends; it is not our many Arab friends. Our enemy is a radical network of terrorists, and every government that supports them. [...] Our war on terror begins with al Qaeda, but it does not end there. It will not end until every terrorist group of global reach has been found, stopped and defeated. [...] Our response involves far more than instant retaliation and isolated strikes. […] Every nation, in every region, now has a decision to make. Either you are with us, or you are with the terrorists.”

25

pessoas que não conhecem fronteiras, pessoas que dependem de outros. E não se enganem sobre isso, a nova guerra não é só contra os executores do mal por si mesmos; a nova guerra é contra aqueles que os abrigam, os financiam e os alimentam. [...] Nós temos que entender que, às vezes, veremos nossos recursos mobilizados, e às vezes não. Mas vamos usar todos os recursos à nossa disposição. Vamos usar o poderio militar dos Estados Unidos. [...] Nós faremos tudo o que pudermos para alcançar o nosso objetivo, que é o de derrotar e destruir o terrorismo global16. (BUSH, 2001b)

A guerra a ser travada não é contra o inimigo tradicional, não é de conquista de

territórios, mas uma guerra que deverá ser um reflexo de um novo tipo de inimigo.

Este inimigo é a marca do mal, um mal que há muito não se via no mundo. Ele, ao

contrário dos exércitos tradicionais, não se mostra, é escorregadio, age

multiterritorialmente e personifica o próprio mal. Como personificação do mal ele é o

inimigo absoluto, aquele com quem não se negocia ou se faz concessões. Ele é o

inimigo que se persegue onde quer que ele se manifeste, não para forçá-lo a rendição

ou para realizar a justiça – embora se anuncie também este propósito –, mas para

derrotar e destruir. Ao nomear o inimigo como absoluto, os Estados Unidos procedem

a partir de uma lógica discursiva similar à da Al Qaeda: se declaram em uma guerra

contra o mal e, portanto, se percebem como defensores do bem contra o mal, do certo

contra o errado. Acima de tudo, é uma luta do mundo civilizado contra a propagação

da barbárie expressa nos atentados do World Trade Center, em que não apenas os

Estados Unidos foram atingidos, mas todo um modo de vida.

Esse quadro de referência desloca o sentido da guerra interrompendo seu significado

original de continuação da política por outros meios, transformando-a em uma missão

civilizatória de destruição do mal. Nesta perspectiva, os Estados Unidos conferem a Al

Qaeda o mesmo status de inimigo que esta lhe conferiu. Ao mesmo tempo, ao

afirmarem que estão empreendendo uma guerra contra este inimigo o reconhecem

como ator diferenciado, não como um criminoso comum, mas um agente que mesmo

sendo não estatal, será combatido nos mesmos termos de um Estado, mas sem as

prerrogativas e as regras que regulam o conflito interestatal. Decorre desta condição o

aprisionamento de militantes da rede em Guantánamo em condições que contrariam

16 Original: “We're also a nation that is adjusting to a new type of war. This isn't a conventional war that we're waging. Ours is a campaign that will have to reflect the new enemy. There's no longer islands to conquer or beachheads to storm. We face a brand of evil, the likes of which we haven't seen in a long time in the world. These are people who strike and hide, people who know no borders, people who are -- people who depend upon others. And make no mistake about it, the new war is not only against the evildoers, themselves; the new war is against those who harbor them and finance them and feed them. […] We must understand that sometimes we will see our resources deployed, and sometimes we won't. But we will use every resource at our disposal. We will use the military might of the United States. [...] We will do everything we can to achieve our objective, which is to rout out and destroy global terrorism.”

26

as Convenções de Guerra, como também sem as garantias constitucionais

estadunidenses, inerentes àqueles privados da liberdade e sob a custódia do Estado.

O mesmo se pode afirmar em relação aos abusos cometidos em prisões como a de

Abu Ghraib, no Iraque, ou em outros países para os quais foram conduzidos militantes

aprisionados para interrogatório.

Esta forma de entender o inimigo produz uma estratégia também diferente de se

combatê-lo. O documento intitulado Estratégia de Segurança Nacional dos Estados

Unidos da América, aprovado pelo Congresso em 2002, sintetiza as principais

mudanças na política de segurança estadunidense visando adaptá-la à ameaça

representada pelo terrorismo global. Entre as várias medidas para combater o

terrorismo, introduz uma nova modalidade de guerra, a guerra preventiva. (WHITE

HOUSE, 2002) O pressuposto é o de que diante de um novo inimigo, como a Al

Qaeda, os Estados Unidos não poderiam se limitar a reagir aos incidentes perpetrados

pela organização, mas teriam que antecipar-se e agir no sentido de prevenir-se contra

os ataques a serem cometidos.

A percepção é a de que a estratégia de contenção, utilizada durante a guerra fria com

a União Soviética, era inútil contra o terrorismo global, já que este não se comportava

de acordo com as regras que orientam o conflito entre Estados. Dever-se-ia, então,

substituir a estratégia de contenção por aquela de prevenção, isto é, antecipar-se às

ameaças, prevenindo-as antes que fossem deflagradas. Em outras palavras, trata-se

de neutralizar remotamente o inimigo antes deste executar suas ações. A

neutralização aparece, por exemplo, na fundamentação do discurso estadunidense em

relação à invasão do Iraque, pois se tratava de impedir um eventual ataque aos

Estados Unidos por parte do governo de Saddam Hussein, já que este possuía armas

de destruição em massa e poderia utilizá-las contra aquele país.

Mas se do ponto de vista internacional a nova doutrina de segurança expandiu o

espaço vital estadunidense, do ponto de vista doméstico ele reafirmou a soberania

vatteliana ao transformar o controle sobre o território e do que ocorre em sua jurisdição

política no elemento central do provimento de segurança interna. Em resposta à

presença inimiga em seu território, o governo dos EUA criou, em 2001, um conjunto de

medidas destinadas a aumentar o controle sobre o espaço nacional e prevenir ataques

como aqueles ocorridos em 11 de setembro. Por meio do que ficou conhecido como

Ato Patriótico – USA Patriot Act, acrônimo para Uniting and Strengthening America by

Providing Appropriate Tools Requires to Intercept and Obstruct Terrorism – as

medidas visavam: reforçar a vigilância nacional; controlar e reduzir a lavagem de

27

dinheiro e com isto o financiamento ao terrorismo; reforçar a proteção fronteiriça;

melhorar o compartilhamento de informações entre as agências governamentais de

inteligência e de segurança; reformular os instrumentos legais de combate ao crime,

com ênfase na repressão ao terrorismo; e oferecer assistência às vítimas dos ataques

de 11 de Setembro de 2001, bem como a seus familiares. (USA, 2001)

A estratégia estadunidense consiste, então, em nomear uma ameaça existencial em

dois planos distintos: no plano externo, o inimigo é absoluto e deve ser combatido até

a sua completa aniquilação; no plano doméstico o inimigo é o inimigo verdadeiro,

aquele suspeito de terrorismo ou de ligações com o terrorismo, o que confessa uma

crença religiosa específica ou é hostil ao modo de vida americano. No primeiro caso,

trata-se de garantir a proteção contra uma ameaça exógena às fronteiras nacionais,

mas que se encontra em todos os lugares; no segundo caso, justamente por estar em

todos os lugares e em lugar nenhum, o inimigo pode infiltrar-se no espaço doméstico e

ameaçar endogenamente os nacionais. O duplo movimento estadunidense expressa,

dessa forma, uma dupla decretação de exceção: a) ao exigir que os Estados devam

decidir se estão contra ou a favor dos Estados Unidos e se imputar a prerrogativa de

combater unilateralmente todos aqueles considerados apoiadores do terrorismo, ele

suspende a normalidade das interações internacionais; b) ao criar o Ato Patriótico e as

medidas que lhe deram sequência ele restringe os direitos e as garantias individuais, o

que significa suspensão da normalidade doméstica.

O resultado foi aquilo que ficou conhecido como uma guerra infinita ao terror! Na

percepção da nova política de segurança dos Estados Unidos tratava-se de identificar,

tanto do ponto de vista interno como externo, o inimigo difuso e seus aliados em

qualquer ponto do globo, e escudados em seu poderio bélico, dar-lhes um ultimato e,

caso não atendessem ao solicitado, destruí-los ou destituir-lhes, pela força. Ao se

atribuir a incumbência de guerrear essa ameaça, recorrendo a todos os meios de que

dispõe para lhe dar combate multiterritorial, o governo estadunidense, ainda que os

ataques tenham ocorrido em seu território, não limita a luta aos seus objetivos de

defesa. O propósito é o de derrotar e destruir aquilo que percebe como ameaça a

todas as nações do mundo civilizado, já que morrera outros nacionais de outros

Estados. Ora, a ameaça existencial, desta forma, é uma ameaça à sociedade de

Estados, logo, é esta sociedade que se encontra em risco. Ao assim proceder, e tendo

em vista a natureza multiterritorial da rede Al Qaeda, os Estados Unidos ampliam o

teatro de operações em nome da defesa da sociedade internacional, mas o que

empreende, de fato, é a projeção de seu poder para além de suas fronteiras nacionais,

se transformando em ameaça potencial a todo sistema de Estados.

28

6. Considerações Finais

A estratégia decorrente da nova doutrina de segurança nacional estadunidense

reafirma a nomeação da rede Al Qaeda como um inimigo absoluto que personifica o

mal por si mesmo, portanto um inimigo moral. Isto levou os Estados Unidos a

identificar o terrorismo global como uma ameaça a toda sociedade internacional e

responder a esta ameaça nos mesmos moldes multiterritoriais de seu inimigo. Assim,

a Guerra ao Terror, ao ser entendida como uma guerra infinita ao terrorismo

internacional com o intuito de antecipar-se às suas ações e neutralizá-las

remotamente em qualquer unidade política em que elas se manifestassem, implicou

ampliação e afirmação do poderio bélico-estratégico dos Estados Unidos e

transformou, em princípio, qualquer região da terra em inimigo potencial. A captura

dos militantes da Al Qaeda emerge, então, como uma guerra contra o mal em uma

escala passível de atingir várias unidades políticas, algumas delas classificadas como

o Eixo do Mal – Irã, Coréia do Norte e Iraque – reproduzindo, em outros termos, lógica

similar àquela que orienta os inimigos que se deseja combater.

Na acepção schmittiana o jihadismo global não pode ser designado nos termos de um

inimigo verdadeiro. Ao contrário do Estado, que se pode identificar espacialmente e

nomear publicamente, estabelecer objetivos e traçar estratégias de lutas orientadas

pelas regras do jus bellum e do jus in bellum, compartilhadas e reconhecidas pelos

contendores, o mesmo não ocorria em relação a Al Qaeda. A organização não é um

Estado e, portanto, não reconhece e nem se submete às convenções de guerra, não

possui prerrogativas soberanas sobre um território e uma população. Assim, não é

reconhecida como portadora do monopólio legítimo da força no plano doméstico e

também, no âmbito da sociedade internacional, não se lhe confere atributos referentes

ao uso da força e o direito de ir à guerra na defesa de seus interesses e demandas.

Mesmo assim, a Al Qaeda reclama o uso da força e a emprega, independentemente

da soberania vatteliana, fundamento da jurisdição territorial dos Estados, em diferentes

unidades políticas e em defesa de uma causa. Causa esta que, no seu entender, se

lhe apresenta como um imperativo divino, já que o fiel islâmico tem o dever de lutar, e

inclusive o de matar, o opressor, principalmente se o mesmo é um não crente ou traiu

o poder que lhe foi conferido por Allâh. Ora, a nomeação do inimigo verdadeiro não é

um problema de natureza moral, de certo ou errado, mas de perceber o outro como

estranho, de tal modo que as diferenças atinjam um nível tal que o transformam em

inimigo público e desencadeia o conflito. A organização Al Qaeda se considera em

uma luta de natureza moral – a luta da verdade e da fé contra o erro e a incredulidade

29

– e, portanto, não suscetível de ser entendida nos termos de um inimigo verdadeiro, o

que a exclui do quadro de referência em que os Estados normalmente elegem o

inimigo.

Tampouco a Al Qaeda é o tradicional inimigo interno de que fala Carl Schmitt. Apesar

de a organização recorrer às estratégias de guerra irregular, comum entre os

guerrilheiros que lutavam por projetos revolucionários ou pela libertação colonial, o

escopo e o âmbito de sua causa extrapola àquele destes grupos. Os guerrilheiros,

ainda que recorressem ao terrorismo, lutavam em uma guerra com objetivos bem

precisos e delimitados que poderiam ser a implantação de uma nova sociedade, como

no caso de socialistas e comunistas, ou a independência política de um povo, como no

caso das campanhas anticoloniais. Trata-se de uma guerra, que apesar de irregular, é

uma guerra limitada à consecução de um objetivo específico, em que a violência é

somente um dos recursos para se alcançar este objetivo específico. Objetivo este,

ainda que pudesse se dar em várias frentes não locais de luta, era pensado em termos

de um marco territorial de um Estado.

O deslocamento semântico da ideia de inimigo, tanto no caso de sua designação pela

Al Qaeda e pelos Estados Unidos, vai incidir diretamente na gramática da guerra na

medida em que altera a natureza da própria guerra. Para Schmitt (2001) as guerras

podem ser classificadas como guerras de ação e guerras de status. No primeiro caso,

o inimigo é o verdadeiro, aquele que se apresenta como adversário no campo de

batalha, ele é o participante das operações militares no teatro imediato do conflito.

Cessando-se as hostilidades, desaparece o adversário e, portanto, também o inimigo.

No segundo caso, o fim das hostilidades não implica no desaparecimento da condição

de inimigo, ela persiste ao conflito imediato, o que significa que entre os beligerantes

irá permanecer o que Schmitt denomina como estado de guerra. A guerra total é,

simultaneamente, uma guerra de ação e uma guerra de status já que nela, estas duas

últimas modalidades, alcançam sua maior intensidade. Segundo Saravia (2012) para

Schmitt a qualificação de total ao conflito pode assumir quatro significados:

a) o termo total pode significar o desdobramento extremo das forças e a mobilização, em forma completa, de todos os recursos bélicos com os quais se conta. Ainda também pode ser entendido como total no sentido dos efeitos que tem para o inimigo; b) uma guerra pode ser total por ambos oponentes ou apenas por um deles. Isto se deve à faculdade que tem os contendores de limitar, racionar e dosar a intensidade do enfrentamento em virtude de sua situação geográfica, técnica bélica ou por questões políticas; c) o caráter de guerra total pode sobrevir no curso mesmo da guerra porque o ímpeto da luta pode debilitar-se ou bem acrescentar-se; d) por último, ao pós-guerra pode suceder situações próprias de guerra total tais como represálias militares, imposição de sanções econômicas, ou a aplicação de

30

certos métodos para testar forças em território alheio ao conflito. (SARAVIA, 2012, p. 160)17

Ainda que muitas das ideias acima possam estar relacionadas à situação da

Alemanha após o Tratado de Versalhes e às pretensões bélicas do governo nazista,

esta modalidade de guerra induz à percepção do inimigo em outros termos daqueles já

aventados. A qualidade de total associada à ideia de inimigo decorre do fato de que a

mobilização geral para a guerra total implica a não separação entre soldados e

paisanos, já que todos são obrigados a se engajar em um conflito em que, cada vez

mais, desaparece a distinção clássica entre combatentes e não combatentes.

(SARAVIA, 2012) Aquilo conhecido como esforço de guerra nada mais é do que a

mobilização de todos os recursos disponíveis, produtivos ou não, para a sustentação

do conflito. Assim, o campo de batalha é toda a sociedade, já que todo aquele que a

ela pertence é, por definição, um combatente. O que pode incorrer na matança

indiscriminada do inimigo, pois o fim da distinção entre combatentes e não

combatentes, por implicação, é a transformação de todos em inimigos, portanto objeto

legítimo de ataques e retaliações.

Diante desse novo inimigo interno que se transnacionaliza multiterritorialmente a

reação personificada pelos Estados Unidos altera os termos da gramática da guerra,

pois ao substantivar a inimizade também substantiva o seu combate. Ao assim

proceder, o inimigo se torna o inimigo total, e a maneira de se combatê-lo assume as

características de uma guerra total. Na mesma proporção em que a organização Al

Qaeda universalizou o combate aos opressores do mundo islâmico, os Estados

Unidos, ao transformar cada unidade política suspeita de apoio ao terrorismo em

inimigo potencial, também universalizou o seu combate. Ou seja, para ambos,

independentemente do consentimento dos acusados de inimizade, qualquer um

classificado como expressão do mal é considerado um combatente e, por esta razão,

passível de sofrer represálias. Mergulha-se, assim, em uma guerra total em que não

se impõe ou se reconhece limites de qualquer natureza aos combates, advenham as

mortes de atentados indiscriminados ou de bombardeios aleatórios.

17“[...] a) el término total puede significar el despliegue extremo de las fuerzas y la movilización, en forma completa de todos los recursos bélicos con los que se cuenta. Aunque también puede ser entendido como total en el sentido de los efectos que tiene para el enemigo, b) una guerra puede ser total por ambos oponentes o sólo por uno. Esto se debe a la facultad que tienen los contendientes de limitar, racionar y dosificar la intensidad del enfrentamiento en virtud de su situación geográfica, técnica bélica o por cuestiones políticas, c) el carácter guerra total puede sobrevenir en el curso de la guerra misma porque el ímpetu de lucha puede debilitarse o bien acrecentarse, d) por último, la posguerra ha dado lugar a situaciones propias de guerra total tales como las represalias militares, la imposición de sanciones económicas o la aplicación de ciertos métodos para probar fuerzas en territorio ajeno al conflito.”

31

O jihadismo global, por meio da Al Qaeda, ao deslocar semanticamente a designação

do inimigo deslocou, também, as relações entre a lógica da política e a gramática da

guerra. A resposta estadunidense, ao designar a organização Al Qaeda como inimigo

substancial, transformou um problema de natureza política – o terrorismo – em um

problema restrito de segurança, passível de solução recorrendo-se apenas ao poderio

bélico. A inimizade perde, assim, sua natureza relacional, o que isola a lógica da

política da gramática da guerra, reduzindo a segunda ao puro aniquilamento da guerra

total.

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