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O SERTÃO DESCOBERTO AOS OLHOS DO PROGRESSO: A INSPETORIA DE OBRAS CONTRA AS SECAS (1909-1918)
Kleiton de Sousa Moraes
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.
Orientadora: Profª Dra. Marieta de Moraes Ferreira
Rio de Janeiro Abril/2010
ii
O SERTÃO DESCOBERTO AOS OLHOS DO PROGRESSO: A INSPETORIA DE
OBRAS CONTRA AS SECAS (1909-1918)
Kleiton de Sousa Moraes
Orientador (a): Marieta de Moraes Ferreira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História
Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História
Social.
Aprovada por:
________________________________________ Presidente, Profª Dra. Marieta de Moraes Ferreira.
________________________________________ Profª Dra. Lúcia Lippi de Oliveira ________________________________________ Prof. Dr. Almir Leal de Oliveira
Rio de Janeiro Abril/2010
iii
Moraes, Kleiton de Sousa.
O sertão descoberto aos olhos do progresso: A Inspetoria de Obras Contra às Secas (1909-1918) / Kleiton de Sousa Moraes – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2010.
ix, 168f; 31cm Orientador(a): Marieta de Moraes Ferreira Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ IFCS / Programa de Pós-
Graduação em História Social, 2010. Referências Bibliográficas: f. 183-187 1. Intelectual. 2. Ciência. I. Ferreira, Marieta de Moraes. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. III. Título.
iv
AGRADECIMENTOS
Saber que um trabalho como este nunca é um exercício solitário foi, sem dúvida, uma
das grandes lições que pude aprender no período em que nasceu e se desenvolveu essa
dissertação. Elencar o número de pessoas que diretamente e indiretamente estiveram
envolvidas na sua confecção acabaria por ser um projeto inviável em poucas páginas.
Acredito, porém, que seja um exercício de profunda gratidão citar algumas pessoas que
calorosamente abraçaram minhas angústias nesse período, às vezes com uma proximidade tão
suspeita que eu não saberia dizer se partes significativas deste trabalho não sejam expressões
vivas de suas atenções dispensadas a mim.
Sou grato enormemente à minha orientadora Marieta de Moraes Ferreira, que
acompanhou amavelmente meus passos, sempre atenta a tecer comentários que me pudessem
fazer alçar vôos mais pretensiosos. A ela, que me acolheu com um carinho filial e com uma
confiança em muitos momentos indispensável, ofereço essa dissertação.
Aos professores Almir Leal de Oliveira e à Ivone Cordeiro Barbosa, meus queridos e
eternos orientadores, cuja aposta na minha capacidade, quando eu ainda engatinhava como
historiador, me fizeram crer que por mais tortuoso que seja o caminho é possível trilhá-lo com
olhares confiantes.
Ao professor Manoel Luís Salgado Guimarães, presença constante desde a seleção de
mestrado e cujas palavras incentivadoras me instigaram a superação dos novos obstáculos que
comumente apareciam. À professora Lúcia Lippi de Oliveira, pela acolhida carinhosa e dicas
preciosas no processo de qualificação. Ao professor Leonardo Affonso Pereira de Miranda,
pelas conversas literárias e incentivos encorajadores.
Aos meus queridos professores da Universidade Federal do Ceará João Ernani Furtado
Filho, instigador das poesias e canções do cotidiano e que foi por diversas vezes o amigo-
provocador que fez caminhar este trabalho, e Kênia Rios, cuja amabilidade no trato com os
v
alunos me faz acreditar todos os dias que é possível ser amável mesmo no ambiente sufocante
da academia.
Aos meus queridos amigos-irmãos Aline Medeiros, Thiago Sales e Jorge Henrique,
cujas presenças constantes tornaram (e todos os dias tornam!) menos tortuoso trilhar os
caminhos deste trabalho. Sem eles fatalmente eu não descobriria que o exercício mais
prazeroso da vida acadêmica é sorrir de nós mesmos. Neles espelho o ser humano que venho
tentando ser cotidianamente. Através deles espero que se sintam abraçados todos aqueles que
compactuam conosco deste esforço.
À Lauro Duvoisin e Raimundo Hélio, pelas noites cariocas. À Sandra e Rita, que me
guiaram, mesmo a distância, nos caminhos das burocracias acadêmicas. À Juliana e Eliane,
cujos braços afetuosos acolheram por inúmeras vezes o choramingar de minhas angústias
durante todo o processo de confecção da dissertação. À Ana Amélia e família, pela acolhida
fundamental. À Jacira, pela compreensão de que só estendendo as mãos à amizade é possível
se fazer um mundo melhor.
À Raquel, fonte de inspiração do que resta de beleza nesse texto.
À Tayla e Marcella, as mais preciosas amizades que colhi na longa estrada que me levou
ao Rio. Razões de ser de muitos impulsos para o “lançar-me” por outras praias.
Por fim, aos meus amados José Pereira de Moraes e Beatriz de Moraes, que me deram a
vida, e à Larissa Montenegro que me ensinou a vivê-la e que esteve, de resto, presente como
uma companheira fiel e constante nos primeiros momentos dessa dissertação, dissipando
meus temores com suas mãos e olhares calorosos. À eles um agradecimento constante, eterno
e mais que especial.
vi
RESUMO
O SERTÃO DESCOBERTO AOS OLHOS DO PROGRESSO: A INSPETORIA DE OBRAS CONTRA AS SECAS (1909-1918).
Kleiton de Sousa Moraes
Orientador (a): Marieta de Moraes Ferreira
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
História Social.
Este trabalho pretende estudar a história da Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS)
a partir das relações de poder e de saber que estabeleciam suas práticas intervencionistas no
sertão semi-árido no período entre 1909-1918. O entendimento do sertão como problema a ser
resolvido respaldou inúmeros discursos que construíram uma imagem e uma forma de lidar
com o espaço sertanejo orientando as práticas pretensamente modernizantes da IOCS. Nessa
operação o grupo social dos cientistas teve posição de destaque, construindo sua autoridade e
seus espaços de atuação no Brasil da Primeira República. Partindo da análise de relatórios e
estudos produzidos pelos homens que fizeram a IOCS este trabalho enfatiza a necessidade de
se analisar o processo de construção de um poder que embasou as práticas intervencionistas
no sertão a partir do órgão.
Palavras-chaves: sertão; ciência; IOCS.
Rio de Janeiro Abril/2010
vii
ABSTRACT
NORTHEASTERN BACKCOUNTRY OF BRAZIL UNDER THE EYES OF PROGRESS: THE INSPETORIA DE OBRAS CONTRA AS SECAS (1909-1918)
Kleiton de Sousa Moraes
Orientador (a): Marieta de Moraes Ferreira
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
História Social, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
História Social.
This essay intends to study the History of the Inspetoria de Obras Contra as Secas
(IOCS) from the relations of power and from having knowledge that they established their
interventionist practices on the de semi-arid Northeastern Backcountry of Brazil in the period
comprehended between 1909 and 1918. The understanding of the Northeastern Countryside
of Brazil as a problem to be solved has corroborated numerous speeches which constituted a
way of dealing with the backland space orienting the pretentiously modernizing practices of
IOCS. In this operation the social group of scientists stood out, building up their authority and
their area of action in Brazil during the First Republic. Starting from the analysis of reports
and studies produced by the men that made the IOCS, this work emphasizes the need for
analyzing the process of building a power that supported the interventionist practices on the
backland from the organ.
Keywords: backland; science; IOCS.
Rio de Janeiro Abril/2010
viii
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS ix
INTRODUÇÃO 10
1 A QUESTÃO SERTÃO E A CRIAÇÃO DA INSPETORIA DE OBRAS CONTRA AS
SECAS
1.1 O sertão, a nação 23
1.2 O mal estar da civilização: a construção do sertão como problema 39
1.3 O a(u)tores do sertão 67
2 O PROGRESSO RUMO AOS SERTÕES
2.1 A caminho dos sertões 89
2.2 O sertão é uma viagem ou as regras do dizer 94
2.3 O tempo das águas: o líquido do progresso 121
3 NAS ENCRUZILHADAS DO PODER: AARÃO REIS E AS OBRAS CONTRA AS
SECAS
3.1 Interstício 136
3.2 A ciência e os limites do poder 146
3.3 As obras novas contra as secas 155
CONSIDERAÇÕES FINAIS 174
FONTES 178
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 183
ix
LISTA DE TABELAS
I - Relação de publicações sobre os sertões pela Revista do Clube de Engenharia 48 II - Relação das viagens financiadas pela IOCS 92 III - Relação das Obras a cargo da Comissão de Obras Novas Contra as Secas 16
INTRODUÇÃO
Na segunda metade de 2003 o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
(DNOCS) lançava o primeiro número de sua revista denominada “Conviver” com um
editorial em que os autores salientavam que o órgão passava “por grandes transformações”
que objetivavam “um ajuste de contas com seu passado”. Transformações estas que levariam
o DNOCS a ser uma “instituição do século XXI”. A revista se colocava como “palco dos
embates intelectuais deste tempo de transformações”, uma publicação “sobre a descoberta de
pensar e se emocionar com o nosso sertão”, afinal - se perguntavam os editores - “o que é o
semi-árido senão o nosso sertão?”. Numa insistente simbiose entre passado, presente e devir,
o então novo diretor do órgão assinalava que o DNOCS nascera havia quase 100 anos antes
com o objetivo de “construir uma civilização com as cores da nossa realidade”, portanto
sendo necessário fazer a “retomada dessa visão inicial, de retomar a origem do DNOCS (...)”1.
Recuando um pouco no tempo - mais precisamente 90 anos antes - encontramos o
engenheiro Arrojado Lisboa, o primeiro inspetor do DNOCS – então ainda denominado de
Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS) –, afirmando em conferência na Biblioteca
Nacional princípios norteadores quase similares ao expresso acima. Evocando “autoridades”
tais como Montesquieu, Victor Hugo, Ratzel, dentre outros, Lisboa chamava a atenção para a
necessidade de uma “cultura na ordem scientífica [sic]”2 a par “da moderna concepção dos
phenomenos antropogeographicos [sic]”3 a fim de se resolver aquilo que o mesmo alçava a
problema maior dos sertões: as secas. Lisboa também achava fundamental a compreensão do
passado, pois “o motejo entre os povos é o echo remoto da inimizade mal comprimida gerada
1 Cf: Revista ConVIVER, Revista de estudos avançados do semi-árido. nº 1. Fortaleza: DNOCS/BNB, 2003. 2 Conferência de Arrojado Lisboa denominada “O Problema das Seccas”, na Biblioteca Nacional, em 28 de agosto de 1913. In: ANNAES DA BIBLIOTHECA NACIONAL. O problema das seccas. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas da Bibliotheca Nacional, Vol.XXXV, 1916. P. 19. 3 Idem. P. 28.
11
pelo contraste das terras [sic]”.4 Num ínterim de cem anos o DNOCS absorveu as idéias
transformadoras de diversos intelectuais consagrados dentre os quais Arrojado Lisboa,
Euclides da Cunha, Capistrano de Abreu, Aarão Reis, Guimarães Duque, Djacir Menezes,
Celso Furtado e tantos outros que se incumbiram da tarefa de pensar o sertão, em estudos que
enfatizavam a constituição do “sertanejo nortista/nordestino” e seu trato com a terra.
Este trabalho não alimenta a pretensão de mapear esse vasto pensamento em torno das
secas, embora uma parte significativa dele aqui apareça. Nem tampouco pretende fazer o que
se convencionou chamar de uma “história das secas”, pois que não objetivei tecer uma
narração dos períodos de grandes secas, das convulsões sociais que estas acarretavam etc.
Sobre todos esses temas existem alguns bons trabalhos já publicados. Secas, é bem verdade,
está intrinsecamente ligado à história do órgão que pretendo narrar: a da Inspetoria de Obras
Contra as Secas (IOCS). No entanto, em muitos momentos deste trabalho, se falará menos de
secas do que de sua antítese ― “as chuvas”, “a água”. E, em outros momentos, se falará de
um termo que bem podemos situar imageticamente num lugar equidistante, porém indefinido,
entre secas e chuvas: o sertão. Termo este que, como pretendo demonstrar, ao redor
arregimentou paradoxos tão profundos que se tornou, por diversas vezes, sinônimo de
“indefinição”. Um termo que exatamente por ser assim tão “indefinido” comportou inúmeros
constrangimentos para alguns intelectuais que buscaram definições espaciais no alvorecer do
século XX. Pretendo aqui responder a perguntas, tais: como o “sertão” foi sendo configurado
como problema nacional e quais discursos se construíram para definir práticas que se
pretendiam modernizantes nesse espaço? Como se processou um olhar sobre o espaço
sertanejo na virada do século XIX para o XX que resultou na criação de um órgão para
combater as secas? A par disso, como se estabeleceu na IOCS um discurso científico que veio
a dar ao cientista o papel de “autoridade” para se pronunciar sobre o sertão?
4 Ibidem. P. 14.
12
O deslocamento do olhar, que o historiador tem de permitir-se realizar para conseguir
fazer partir sua análise, engendra algumas opções teórico-metodológicas que devemos
esclarecer desde o início. Tais opções neste trabalho são indissociáveis de uma história da
própria pesquisa. História e vida. Foi através desse concurso ― nem sempre assumido por um
autor de história ― que nasceu esta reflexão.
Ao ingressar como bolsista no projeto de pesquisa Memória Científica e Tecnológica do
Semi-Árido Brasileiro (MECITSAB), em meados de 2004, encontrei-me diante de uma vasta
documentação referente ao DNOCS que me levaram às primeiras incursões no campo da
prática de historiador. Desse encontro fui construindo problematizações em torno da criação
do órgão que me instigavam sobremaneira, mas que, num primeiro momento, é bem verdade,
não me orientavam no sentido de trabalhar em cima da criação de um projeto de pesquisa
futuro.
O longo caminho que me levou a ele ― embora cheia de percalços, que me pareceram,
em muitos momentos, incontornáveis ― trouxe consigo a certeza de que alguns lugares-
comuns acerca do tratamento historiográfico dado especialmente ao tema “secas” me levariam
a um entrave. O primeiro deles, e, sem dúvida, o que demonstraria ser mais ultrajante no
decorrer do trabalho de pesquisa, era a tão comum definição do “problema das secas”
meramente entendido como um constructo das “elites dirigentes” dos estados assolados pela
intempérie. Parecia-me, ao entrar em contato com a documentação da IOCS, que partir desse
(des)entendimento era reduzir a pesquisa a uma hipótese, para não dizer ao senso comum. A
complexidade com que os dados colhidos foram se apresentando à analise fez com que
rapidamente se abandonasse esse a priori. Constatei uma teia de relações que ultrapassava em
muito a dimensão estritamente política ora apresentada. Se, sem dúvida, tratava-se de um
objeto imerso numa batalha política, haveria de se observar que se tratava, sobretudo, de um
viés político que não se restringia à dimensão que historicamente se tentou dar, qual seja, a de
13
“regionalista”, com todas as evocações e restrições que essa palavra pode trazer. Ultrapassava,
em muito, esses limites. Ali observei que havia em um grau bastante elevado uma dimensão
intelectual, ou, se assim podemos dizer, de uma “política intelectual”. Logo entendi que a
análise das imbricadas relações dos intelectuais com o poder - e de como estes foram
construindo a prática deste poder - colaboraria melhor para uma compreensão do objeto.
Ora, as lições cunhadas por René Remond sobre o caráter político das várias dimensões
sociais enfatizam, inclusive, essa dimensão pela qual o termo “política” se espraia: “O próprio
político está em evolução permanente. É preciso ter uma definição ampla deste”, porque “Não
é um fato isolado. Ele está evidentemente em relação, também, com os grupos sociais e as
tradições do pensamento” e, ainda:
[...] o campo do político não é definido de uma vez por todas, ele é mutável [...] o político é também de geometria variável, às vezes retrátil, às vezes extensivo. É verdadeiro nas cabeças e nas mentalidades.5
Essa elasticidade na definição do termo “política” foi de importância fundamental para
que as problematizações fossem orientadas no caminho de uma história da construção de um
poder bastante específico: o poder de um discurso científico que se construiu no interior do
Estado brasileiro e que ia, por conseqüência, o construindo. Daí, como conseqüência, perceber
a IOCS não apenas como um órgão a serviço de interesses oligárquicos na Primeira República
foi um obstáculo logo ultrapassado, pois, como salientam os historiadores Almir Leal e Ivone
Cordeiro:
O que mais dificulta o reconhecimento da Inspetoria [a IOCS] como espaço da experiência científica é a sua estreita relação com o Estado, o que leva a um entendimento das suas ações como órgão público executor e gestor de obras de engenharia [...].6
5 REMOND, René. O retorno do político. In: CHAUVEAU, Agnes; TETARD, Philippe (Orgs.). Questões para a história do presente. Bauru: Edusc, 1999. P. 58-59. 6 OLIVEIRA, Almir; BARBOSA, Ivone Cordeiro. A produção do conhecimento sobre o sertão na Primeira República: a Inspetoria de Obras Contra as Secas como instituição de ciência. In: OLIVEIRA, Almir;
14
Como observam os historiadores citados, o que poderia ser um fator adicional para o
impulso investigativo, qual seja, a proximidade do órgão com o poder, acabou sendo um fator
a mais para negligenciar uma análise detida da IOCS. A complexidade que avulta numa
primeira olhadela para a história do órgão derruba o lugar-comum de vê-lo como expressão
única de um suposto interesse anacronicamente “regionalista”. Muito embora o componente
político estivesse, desde o início, presente na IOCS, outras dimensões do social se faziam
expressar. Logo compreendi que a IOCS era a expressão de um constructo sócio-cultural: o
sertão como problema e, nesse contexto, a construção do sertão como problema da ciência.
Para tanto, haveria de se atentar para uma recomendação sobre a própria ciência, qual seja, a
de que esta: “Não opera, portanto, num vazio social e mantêm, por conseguinte, relações
estreitas de interdependência com as esferas do político, do social, do econômico e do
cultural.” 7 E esse entendimento implicaria, por conseguinte, flertar com diferentes
perspectivas de investigação histórica.
Avançando, constatei ser uma linha de raciocínio satisfatória o fato de que o órgão não
poderia ser compreendido, tal como eu almejava, se não se levasse em conta a mudança de
atitude para com o termo/lugar “sertão” ― e aí não só o sertão semi-árido ou o das secas,
como se tornou comum dizer e persiste ainda hoje ― que acontecia na virada do século XIX
para o XX. A investigação desse corte me pareceu a mais lógica entrada para iniciar a
pesquisa, uma vez que percebi, em muitos dos discursos produzidos pelo órgão, uma
obstinada vontade de acomodar o termo “sertão” ― mesmo percebendo-o como “atrasado” ―
a um discurso de nação “moderna”. De resto, compreendi que a forma de narrar o espaço
sertanejo, operada pelo olhar científico lançado pelos homens da IOCS, não podia ser inscrita
fora da historicidade que lhe dava sentido, sendo necessário estar atento para os debates e
BARBOSA, Ivone Cordeiro; GADELHA, Georgina (Orgs.). Ceará: ciência, saúde e tecnologia (1850-1950). Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008. P. 14. 7 FIGUEIRÔA, Silvia. As ciências geológicas no Brasil: uma história social e institucional. São Paulo: Hucitec,1997. P. 20.
15
convergências que resultavam na sua definição. Foi no período compreendido por esta
pesquisa que o termo “sertão” foi ganhando arestas delimitadoras em torno de um espaço que
se consumou identificar como “assolado pelas secas”.
A partir dessas recomendações, a legibilidade dos acontecimentos que me pusera a
investigar tornava-se compreensível. Ora, desacreditar que uma parte da elite intelectual
brasileira de então flertou com o poder e que este flerte engendrou não só a criação de um
órgão para combater as secas como também de um espaço de atuação onde essa elite pensante
expressava seus constrangimentos e embates era retomar a noção simplificadora ― mas, em
parte, verossímil ― de que a IOCS foi criada meramente para acomodar membros das elites
dirigentes dos estados do nordeste do país. A própria compreensão de uma complexidade
subjacente ao tema me desautorizava a chegar a conclusões precipitadas como esta última.
A ciência que chegou ao Brasil na virada do século XIX para o XX trouxe consigo
inúmeras discussões acerca do caráter moderno da sociedade. Parte significativa da geração
de intelectuais que viveu esse aportar identificava nas assertivas científicas um discurso que
poderia embasar sua autoridade num país cujas relações de caráter pessoal ainda ditavam “o
nível de autoridade” que um sujeito poderia socialmente obter. Esses “intelectuais à
brasileira”, para usar a expressão de Sérgio Miceli em obra consagrada, tiveram muitas vezes
de conviver intensamente com os ditames de um poder “político” para conseguir produzir.
Por outro lado, a compreensão da existência de campos institucionais onde esses
intelectuais exerciam ― ou tentavam exercer ― de forma mais ou menos autônoma o
exercício de suas funções pode ser afirmada quando investigamos o papel da IOCS, o que
quer dizer que essa pesquisa procurou, desde o início, se distanciar de uma abordagem que
coloca em pares opostos dominantes/dominados, dependência irrestrita/autonomia. Manchar
essas barreiras é menos do que um procedimento teórico-metodológico tomado pelo autor do
que um imperativo que se tornou necessário no processo de investigação. Coube mais, aqui,
16
compreender como a IOCS, a partir de seus cientistas, se construiu como um centro de
decisões na política do Estado brasileiro para os sertões semi-áridos. Ademais, esses cientistas
tiveram, como procuraremos demonstrar, de colocar-se diante de decisões a serem tomadas,
inclusive de natureza administrativa, que se mostravam no andamento do órgão. Por outro
lado, projetaram imagens que se tornaram (e assustadoramente ainda são) parte de um
discurso político sobre o espaço sertanejo. Isto criou a necessidade de recorrer, tão logo
achamos indicado, à investigação das formas de construção de um discurso científico dentro
da IOCS.
Assim, logo que entrei em contato com as fontes, compreendi que essas assertivas
tomadas em conjunto acabariam por trazer à tona uma dimensão da IOCS que não fora até o
momento aventada, qual seja, a dimensão desta como projeto científico, porém sem deixar de
lado as discussões políticas inerentes a esse projeto.
Para tanto, achei por bem começar esta Dissertação com uma discussão acerca das
operações que ligaram o termo “sertão” à temática da nação concomitantemente ao advento
de uma camada intelectual sedenta de encontrar seu caminho na nascente República.
República esta que corporificou o advento de uma nova racionalidade modernizante
identificada, aos olhos dos seus idealizadores, como um corte com o passado arcaico e com
uma oportunidade ímpar de colocar o Brasil no caminho do progresso europeu. José Murilo
de Carvalho salienta o caráter da ação primordial do novo regime como sendo o de “Substituir
um governo e construir uma nação, esta era a tarefa que os republicanos tinham de
enfrentar”.8 Nessa tarefa, o novo regime contou com o concurso de intelectuais que,
paulatinamente, foram ganhando espaços de atuação dentro do Estado Republicano.
A busca de uma identidade coletiva para o país, de uma base para a construção da nação, seria tarefa que iria perseguir a geração intelectual da Primeira República
8 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. P. 24.
17
(1889-1930). Tratava-se, na realidade, de uma busca das bases para a redefinição da República, para o estabelecimento de um governo republicano que não fosse uma caricatura de si mesmo.9
É sobre isso que se atém o primeiro capítulo desta Dissertação. Procurei dividi-los em
três tópicos que pudessem, de forma objetiva, tentar explicar a emergência da criação da
IOCS naquele contexto.
No primeiro item, investiguei como o tema “sertão” foi tratado de maneira nova na
virada do século XIX para o século XX, enfatizando o papel singular da obra euclidiana nessa
mudança. Procurei apresentar também um breve histórico acerca de como a questão das secas
havia sido tratada até aquele momento. Essa abordagem se torna necessária para
compreendermos algumas descontinuidades e permanências que, em momentos posteriores,
se fizeram presentes nas discussões levadas a cabo na IOCS sobre o tratamento das secas nos
sertões.
No segundo item, continuando as reflexões do item anterior, o foco recai sobre a
construção do que chamei de uma “questão sertão” na Primeira República. Considero esse
ponto fulcral no entendimento da proposta da Dissertação, pois acredito que o sertão só pôde
se configurar como problema a partir de um certo desconforto de parte do grupo intelectual
urbano que via na existência de um espaço que consideravam atrasado ― o sertão ― um
entrave para as propostas de um país moderno que sinceramente se faziam os arautos. Essa
convicção de “missão” na sociedade fez com que alguns intelectuais retomassem o tema
“sertão” de maneira a encará-lo como um entrave à formação da nação. Procurei observar,
através da análise de trabalhos publicados no período, que havia já uma discussão acerca da
necessidade de se construir um projeto intervencionista a partir do Estado brasileiro para levar
o progresso aos sertões e que os cientistas nacionais, e mesmo estrangeiros, afirmavam o
caráter emergencial de tal medida. Também desenvolvo uma aproximação do discurso das
9 Idem. P. 32-33.
18
elites dirigentes com o discurso científico demonstrando como ambos se articularam quando
da criação da IOCS.
No terceiro item, busco analisar as orientações iniciais do engenheiro Arrojado Lisboa à
frente da IOCS entre os anos 1909 e 1912. A organização administrativa descentralizada do
órgão, escolhida por Lisboa, e suas prioridades como inspetor, bem como os primeiros
embates na delimitação espacial daquilo que se chamou de “sertões das secas” são algumas
das temáticas problematizadas nesse tópico. Expressou-se, nesses primeiros anos, a formação
singular que o engenheiro recebera e daqueles que influenciaram suas concepções. Para essa
compreensão, lancei mão também de uma breve prosopografia daqueles que tiveram, direta
ou indiretamente, influência nos primeiros anos da IOCS. Ali aparecem homens como Orvile
Derby, Casper Branner e Frederic Hartt que influenciariam, com suas idéias, o caráter
científico e investigativo que procurou Lisboa dar ao órgão.
Esse caráter investigativo das ações primeiras da IOCS é o foco do segundo capítulo da
Dissertação. A partir dos relatos de viagens dos cientistas do órgão, procurei compreender a
construção imagética do espaço sertanejo, operação levada a cabo pelos cientistas do órgão e
que respondia a necessidade de construção de um discurso de autoridade sobre o espaço. Esse
período começou com a constatação do engenheiro Arrojado Lisboa de que era necessário,
primeiro, “observar” os sertões, conhecê-los. Daí a IOCS ter patrocinado várias viagens
científicas de reconhecimento do espaço fazendo, posteriormente, publicar os relatos dessas
viagens. Analisei esses relatórios a fim não só de extrair as imagens construídas sobre o sertão
semi-árido, mas, também, para estudar como elas foram produzidas dentro de um discurso
científico que procurava direcionar as futuras intervenções do órgão no sertão.
Intentei aí atentar para trechos dos relatórios em que, apesar da busca incessante por um
discurso considerado neutro, os cientistas se faziam aparecer movidos, muitas vezes, por
19
digressões. Sem dúvida, nessa empreitada, de muito me valeram as leituras do historiador
francês François Hartog e suas reflexões sobre uma retórica da alteridade:
Se a narrativa se desenvolve justamente entre um narrador e um destinatário implicitamente presente no próprio texto, a questão é então perceber como ela “traduz” o outro e como faz com que o destinatário creia no que ela constrói. Em outros termos, tratar-se-á de descobrir uma retórica da alteridade em ação no texto, de capturar algumas de suas figuras e de desmontar alguns de seus procedimentos – em resumo, de reunir as regras através das quais se opera a fabricação do outro.10
Constatei que essas operações se achavam presentes em todo o texto dos relatórios
produzidos pelo órgão. O procedimento de construção de um discurso espacial embasado na
ciência incorporava a tarefa de construir-se como discurso de autoridade ― haja vista a
ciência, naquele momento, procurar afirmar seu papel social ― formulando uma narrativa que
afirmasse o sertão como parte da nação.
O primeiro tópico baliza, de maneira breve, a tarefa a ser apreendida pela análise,
informando sobre as viagens realizadas, os seus agentes e sob quais premissas se embasaram
os relatos produzidos posteriormente pelos cientistas-viajantes. No segundo tópico,
adentramos nas viagens propriamente ditas atentando para as construções imagéticas
formuladas pelos cientistas acerca do espaço e do homem sertanejo. Foi dentro dessa premissa
que elenquei, dentre as várias passagens em que se expressavam esse constructo, aquelas em
que apareciam, de maneira mais clara, as marcas autorais num discurso que se propunha
neutro e de como, apesar da renhida objetividade proclamada, o recurso da imaginação esteve
presente por diversas vezes nessa operação narrativa.
O terceiro tópico foi uma opção minha pensada a posteriori da confecção do capítulo.
Ele é mais um complemento do segundo do que um tópico à parte. No entanto, achei por bem
reservá-lo num tópico em separado a fim de melhor analisar um elemento que se tornou
constante e, inclusive, objeto de disputas representacionais nos discursos sobre o sertão semi- 10 HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. P. 228.
20
árido, qual seja, a água. Seja quanto a sua escassez, seja quanto a sua abundância, a água foi
tomada como referência para definir o espaço sertanejo. A água era a medida a partir da qual
se definia os lugares onde a IOCS deveria priorizar seus combates e assim se definia a área
que, pouco a pouco, foi sendo denominada de “nordeste” e que era vista como assolada pelas
periódicas secas.
No último capítulo desta Dissertação, se confluem os dois anteriores. Explico: se, no
primeiro, atentei para a articulação de um projeto político e intelectual subjacente à criação da
IOCS e, no segundo, para as práticas de construção da autoridade científica a partir das
imagens do espaço que foram sendo construídas, no terceiro capítulo tratei de analisar um
momento de embate ocorrido dentro da IOCS como consequência dos novos direcionamentos
dados pelo seu novo inspetor, o engenheiro Aarão Reis. Sem dúvida, este engenheiro é o
objeto central da análise empreendida nessa parte de nosso trabalho, e esta escolha não foi à
toa. Reis representa um corte não só com relação aos direcionamentos científicos da gestão de
Lisboa à frente do órgão, mas, também, um corte com a isenção de Lisboa em certos
confrontos de natureza política, e isso se explica. Reis era adepto de uma ideologia - o
positivismo – que buscava, a partir de seus adeptos, colocar-se não só como orientador
científico, mas como um guia social. A administração de Reis colocou à vista a quebra entre o
intelectual e as elites dirigentes.
Para a análise de seu papel, procurei introduzir a questão no primeiro tópico fazendo
uma reflexão ao redor da formação diferenciada de Reis, sua ação no Estado brasileiro desde
o Império, sua assumida crença no positivismo com sua consequente fé no progresso humano,
bem como um breve relato sobre sua chegada à IOCS em 1913. Para tanto, lancei mão da
análise de publicações do engenheiro produzidas no período.
No segundo tópico, enfatizo a especificidade das ações de Reis à frente da IOCS e,
posteriormente, como chefe de obras contra as secas de uma comissão avulsa do órgão.
21
Lançando mão de visões acerca dos sertões, o arcabouço colocado por Reis para se pensar o
“problema das secas” entrava em choque com algumas outras concepções sobre o assunto que
conformaram uma certa harmonia de Lisboa com as elites dirigentes. Reis, por exemplo,
diferentemente de Lisboa, era de opinião contrária com relação ao papel da água nos sertões e
não achava que as viagens científicas fossem obras prementes na IOCS.
A chegada da seca de 1915 e a crise que a ela se seguiu, fez com que Aarão Reis
reivindicasse maiores poderes à frente dessa política, o que resultou numa “quebra” no
interior da IOCS, fazendo o engenheiro liderar uma comissão de engenheiros com total
autonomia do órgão ― embora este fosse obrigado a auxiliá-lo ―, que foi denominada
“Obras Novas Contra as Secas”. As diretrizes acionadas por Aarão Reis à frente dessa
comissão é objeto da breve reflexão do terceiro tópico desse capítulo. A fonte principal – mas
não única - que ajudou a descortinar esse momento foi o relatório sobre essa comissão
produzida pelo próprio engenheiro. Também foi de grande valia a descoberta do seu diário
pessoal, onde o engenheiro expõe suas frustrações e desejos à frente das obras contras as
secas.
Por fim, nas considerações finais, estabeleço algumas reflexões acerca do projeto
intervencionista da IOCS nos sertões. Achei por bem ali discorrer acerca do processo que
desembocou na construção de um órgão de combate às secas, observando o quanto as imagens
cunhadas e os conflitos expressos nos primeiros anos do órgão foram expressões de uma
discussão sobre o papel do intelectual-cientista na sociedade. Debate este que absorveu a
temática do problema dos sertões e que definia o próprio caráter da IOCS. Essa temática foi
retomada por interesses tão diversos no período investigado que simplificar a análise
historiográfica constatando, por um lado, serem as secas definidas como um problema
meramente natural e, por outro, entender os entraves para combatê-las como sendo simples
faces de rivalidades criadas por políticas “regionais” seria reificar uma abordagem simplista e
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mistificadora. É exatamente nesse espaço que pretende se colocar este trabalho, qual seja, o da
complexidade da ação humana no tempo e o da desmistificação de conteúdos reificados.
Pretendemos que o trabalho aqui construído com muita dedicação possa contribuir para
manchar um pouco os olhares historiográficos que teimam ainda em separar poder e
intelectuais no Brasil, bem como continuar colocando reticências em pontos finais que
comumente aparecem quando o assunto versa sobre o chamado “sertão”.
1 A QUESTÃO SERTÃO E A CRIAÇÃO DA INSPETORIA DE OBRAS
CONTRA AS SECAS
1.1 O SERTÃO, A NAÇÃO
Defronte à estante da minha pequena biblioteca, ergui os braços e retirei um velho livro.
Era o “O sertanejo”, de José de Alencar, escrito em 1875. Folheava-o e, naquelas rasuradas
páginas ― vestígios de uma anterior leitura extasiante e, ao mesmo tempo, apaixonada ―,
detive-me, por um instante, numa descrição alencarina dos sertões. Conduzido pela
imaginação em ebulição até conseguia enxergar as imagens. De súbito, peguei-me lendo-as
em voz alta, perdendo-me no ritmo dinâmico das palavras:
Esta imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, é o sertão de minha terra natal. Aí campeia o destemido vaqueiro cearense, que à unha de cavalo acossa o touro indômito no cerrado mais espesso, e o derriba pela cauda com admirável destreza. Aí ao morrer do dia, reboa entre os mugidos das reses, a voz saudosa e plangente do rapaz que abóia o gado para o recolher aos currais no tempo da ferra. Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há tantos anos na aurora serena e feliz de minha infância? Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante? De dia em dia aquelas remotas regiões vão perdendo a primitiva rudeza, que tamanho encanto lhes infundia. A civilização que penetra pelo interior, corta os campos de estradas, e semeia pelo vastíssimo deserto as casas e mais tarde as povoações. Não era assim no fim do século passado, quando apenas se encontravam de longe em longe extensas fazendas, as quais ocupavam todo o espaço entre as raras freguesias espalhadas pelo interior da província. Então o viajante tinha de atravessar grandes distâncias sem encontrar habitação, que lhe servisse de pousada; por isso, a não ser algum afouto sertanejo à escoteira, era obrigado a munir-se de todas as provisões necessárias à comodidade como à segurança.1
Restabeleci-me. Fechei o livro. Voltei-me aos papéis jogados à minha volta. Comecei a
tateá-los como quisesse encontrar neles o mesmo prazer que me dera, havia instantes, a leitura
de Alencar. Na minha frente, chamava a atenção a transcrição de um telegrama oriundo do
1 ALENCAR, José de. O sertanejo. São Paulo: Melhoramentos, [19--]. P. 9-10.
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mesmo (ou seria um outro?) sertão descrito por Alencar, só que escrito no começo do século
XX por um engenheiro de um órgão chamado Inspetoria de Obras Contra as Secas. Li-os,
novamente em voz alta:
Operários não permitem eu sahir. Tenho, por conseguinte, chegado a ser considerado como um refém de presente administração (...) e não só não posso sahir que todos os operários vem chorando, mostrando a sua semi-nudez e pedindo para os pequenos, donde pode ver se é possível viver-se mais em lugar nestas condições sem demolir um homem que tem coração [sic].2
Detive-me um pouco mais sobre a leitura do telegrama e senti certo desconforto. Reli-o.
Era-me impossível não comparar o sertão da escrita alencarina e o sertão testemunhado no
telegrama. Não destoavam só de forma: o conteúdo narrativo era outro. Sem dúvida a
construção imagética era um artifício forte em ambas. Silenciosamente me pus a pensar.
Atentava-me a data do telegrama: 26 de março de 1915. Ano de grande seca. Deliciava-me
em imaginar como Alencar, se estivesse vivo, receberia aquela missiva apenas quarenta anos
depois de ter escrito o seu texto. Alguma coisa mudara nos sertões? Ou pior: algo mudara
profundamente em apenas quarenta anos que transformou a vontade de José de Alencar de
voltar aos sertões numa angustiante vontade do engenheiro de sair deles?
Sem dúvida, o distanciamento cronológico entre ambas as escritas (uma de 1875, outra
de 1915) estabelecera um corte difícil de ser entendido por um leitor menos atento. Pus-me a
investigar. E os papéis jogados ao meu redor transformaram-se em fontes. Fontes que
estabeleciam de tal forma limites narrativos que me vi incapaz de disfarçar o mal-estar na
leitura. Ambas se repeliam. A fala do engenheiro da IOCS já não traçava um olhar saudoso
sobre o sertão como na escrita alencarina, pois o engenheiro era um refém daquele sertanejo
que Alencar definira anteriormente como um “afouto escoteiro” a ajudar os viajantes. Alencar
2 Telegrama do eng° fiscal Tomazzo Bertucci à 1ª seção da IOCS, em 26 de março de 1915, citado em telegrama n° 169 de Thomaz Pompeu Sobrinho ao Inspetor de Obras Contra as Secas. In: Arquivo DNOCS/ 2° Distrito Regional. Acervo de Açude Públicos do Ceará. Pasta 3.15. Açude Acarape do Meio. Doc: Telegrama n° 169, ao Inspector. [sic]
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queria encontrar os sertões, o engenheiro desejava escapar deles. Ambos o representavam. É
bem verdade que Alencar temia a “civilização que penetra pelo interior”, mas, ainda aqui, o
caleidoscópio girava: para Alencar, era o sertão que se “sentia” progressivamente coagido
pela “civilização”, para o engenheiro ― homem “civilizado” ―, a coerção é sentida vinda do
sertão. O caminho é invertido.
O olhar romântico de José de Alencar, porém, não me surpreendia. Outros, como
Visconde de Taunay, já haviam descrito assim os sertões. A narrativa romântica no Brasil se
fundou pela descrição pormenorizada e idílica do sertão, dando-lhe um valor de guardião da
nacionalidade. Demarcando de forma concreta origens, historicizando-a em tempos
imemoriais ou em espaços desconhecidos, a literatura romântica se desembaraçava de maiores
solenidades.3 O que me instigava a investigar era o engenheiro ― estranhamente aquele que,
na leitura, não me provocara o prazer, mas o desconforto. Compelia-me a decifrá-lo naquilo
que Michel de Certeau chama de “lugar social”, atentando para a inserção de elementos que
conduzissem ao conhecimento do sujeito na sua historicidade. Historicizá-lo.4 Como e de
onde lançava esse olhar? O que era aquela Inspetoria de Obras Contra as Secas e como se
estabeleceu o processo que veio dar ao relato do engenheiro uma distinção da narrativa
alencarina? De início, vislumbrava entre ambas um corte político: a ascensão da República
em 1889. Uma República que, para muitos, corporificava a apoteose da modernidade no
Brasil. Tudo seria objeto dela. As cidades foram as primeiras a serem submetidas às
ferramentas do chamado “progresso”. As avenidas abertas, as praças remodeladas, os hábitos
e ritos refundados, o olhar domesticado a contemplar o “belo” cujo modelo era importado da
Europa etc. Mas, perguntava-me: e o resto do país? E os sertões? A tal Inspetoria ― parecia-
me ― representava uma pista e centrei-me nela. Era necessário investigá-la e esquadrinhá-la
de maneira tal a entender o olhar do progresso sobre os sertões. Era necessário voltar às 3 Cf: SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui. O narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 4 Cf: CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
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velhas fontes: às publicações, aos mapas, às cadernetas de campo, aos ofícios, aos telegramas
e às cartas. E decretei que seria a partir de uma carta que a investigação começaria: a enfática
carta de setembro de 1909 em que o então ministro da Viação e Obras Públicas Francisco Sá
endereçou ao presidente Nilo Peçanha, com o projeto de criação de um serviço federal para
combater as secas nos sertões:
Não póde a Nação ser indifferente ao aniquilamento de forças produtoras que, em períodos normaes, em regiões dotadas de maravilhosa fertilidade, trasem avultuada contribuição para a riquesa pública e para a elevação de nossos saldos internacionais [sic].5
O ministro não poupava palavras para adjetivar a região, numa tentativa de convencer
pela retórica. A representação que fazia do espaço era construída de maneira a dar relevo a
uma situação de abandono do local, o que servia, afinal, como parte da argumentação. À
imagem de lugar fértil, que contribuiria para a riqueza do país, o ministro contrapunha a
indiferença da “nação” na mobilização de forças para encetar o desenvolvimento do sertão
brasileiro, arrematando, logo em seguida: “Menos justificável ainda seria que [...] se deixem
inhabilitar pela miséria ou perecer de fome compatriotas nossos, de uma raça laboriosa,
paciente e sóbria [sic].” 6
Fazia pouco mais de três meses que Francisco Sá era ministro do fluminense Nilo
Peçanha, que, por sua vez, chegara ao cargo de presidente com a súbita morte do mineiro
Afonso Pena, do qual era vice-presidente. Com um projeto político que buscava alavancar o
status do estado do Rio de Janeiro no contexto da federação, Nilo planejava aproximar-se dos
demais estados, a fim de formar um eixo alternativo de poder frente à relativa hegemonia
política do eixo São Paulo - Minas.7 A criação de um órgão permanente para combater as
5 Carta do ministro Francisco Sá ao Presidente da República Nilo Peçanha em 23 de setembro de 1909. In: Acervo do Arquivo Nacional. Fundo GIFI Caixa: 4B304, Maço 142. Doc: nº 7565. 6 Idem. 7 Cf: FERREIRA, Marieta de Moraes. Em busca da Idade de Ouro: as elites políticas fluminenses na 1ª República (1889-1930). Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.
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secas acarretaria a possibilidade de arregimentação de grupos das elites dirigentes dos estados
do nordeste do país, os mais assolados pela intempérie, que reclamavam, desde fins do século
XIX, maior atenção do Estado brasileiro ao problema das secas.
As periódicas secas nos estados do norte colocavam na pauta de discussões do Brasil da
Primeira República a impossibilidade de se pensar o progresso num país em que parte da
população morria por consequência de um fenômeno climático.
Fato era que o Estado brasileiro interessava-se pelo assunto “secas” desde o Império,
mais especificamente depois da chamada “grande seca” de 1877, que contou com a ampla
cobertura da imprensa sulista. O próprio imperador D. Pedro II promovia discussões no
Instituto Politécnico para ouvir opiniões balizadas de cientistas do período sobre o tema ―
como André Rebouças, engenheiro bastante respeitado no meio letrado de então ― e chegou
até a organizar, em 1878, uma comissão ― que acabou abortada ― para estudar a região,
formada por ilustres como o matemático e físico Henrique Beaurepaire Rohan, o político
Nabuco de Araújo e os engenheiros Lassance Cunha e Júlio Pinkas. Não obstante, as poucas
grandes obras encetadas pelo Império que visavam diretamente ao tratamento do problema
das secas foram a construção da E.F. de Baturité e a construção do açude do Cedro, em
Quixadá, no sertão central do Ceará, a cargo do engenheiro inglês Jules Jean Revy. Esta
última obra, no entanto, só ficaria pronta já na República, em 1902.8
A ampla cobertura dada pela imprensa à chamada “seca de 1877” ficara no imaginário
da elite letrada brasileira e representava para os dirigentes dos estados do norte uma forte
fonte de apelo para barganhar políticas para a região.9 Nelas havia um sentido retórico-formal,
que buscava dar forma ao problema das secas. As imagens criadas ganhavam sempre trágicos 8 POMPEU SOBRINHO, Thomaz. História das secas no Ceará. Fortaleza: Instituto Histórico, 1953. 9 Sobre as secas nos discursos políticos, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. observa: “A seca de 1877-1879, a primeira a ter grande repercussão nacional pela imprensa e a atingir setores médios dos proprietários de terra, trouxe um volume considerável de recursos para as ‘vítimas do flagelo’ e fez com que bancadas ‘nortistas’ no Parlamento descobrissem a poderosa arma que tinham nas mãos, para reclamar tratamento igual ao dado ao ‘Sul’. A seca torna-se a partir daí o problema de todas as províncias e, depois, dos Estados do Norte.” In: ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes. 3ª ed., Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. P. 70.
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contornos, de modo a chocar aquele a quem se está tentando comunicar. Um discurso que,
antes de se valer de imagens, só poderia se fundamentar através delas. Construção discursivo-
imagética em que o tema da “morte” pelo abandono dos poderes públicos era substrato de
forte apelo político na reivindicação de ajudas federais.
Com o advento da República, em 1889, poucas foram as medidas que o novo regime
buscou traçar para combater as secas. Mais importante, porém, foi a vitória obtida pelos
estados com a inclusão no artigo 5º da nova constituição de uma prerrogativa: “Art.5º -
Incumbe a cada estado prover, a expensas próprias, as necessidades de seu Governo e
administração; a União, porém, prestará socorros ao Estado que, em caso de calamidade
pública, os solicitar.”10
Essa inserção no corpo da constituição de um mecanismo de reclame dos estados para
com a União, em caso de calamidades públicas, foi um ponto que, reiteradas vezes, foi fonte
de apelo dos políticos, especialmente os do nordeste do país. Daí em diante, justificava-se as
responsabilidades da União para com as secas baseando-se naquele artigo. Assim foi que, já
em 1909, o presidente do estado da Paraíba, João Lopes Machado, em mensagem à
Assembléia Legislativa de seu estado, assim justificava seu reclame ao governo federal, num
momento de seca:
Diante de tão lamentável e vexatória emergência, é innegavel que se nos abriram as portas de uma verdadeira calamidade pública, pelo que também a Constituição Federal nos permitia recorrer ao Governo da União para assistir-nos, nos termos do art. 5º [sic]. 11
Nesse contexto, a estrutura federalista implantada com o advento da República,
corporificada na “política dos governadores”, fazia com que, comumente, se observassem
disputas por projetos políticos entre os grupos representantes dos estados. A historiadora
10 BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Imprensa Oficial: Rio de Janeiro, 1890. 11 Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa do Estado da Paraíba, em 1º de setembro de 1909, pelo presidente João Lopes Machado. P. 48.
29
Sonia Regina de Mendonça, ao analisar a formação das elites brasileiras no período, evidencia
a existência de disputas políticas intraoligárquicas que faziam com que parte dessas elites
ligadas ao setor agrícola que eram preteridas pelo poder central, denominada pela autora de
Ruralistas, se organizasse como forma de construir espaços de poder. Para isso, criaram
projetos embasados em discursos que pudessem referendar seus anseios de desenvolvimento
agrícola nas suas respectivas regiões.12 Para os estados do nordeste do país, por exemplo,
esses discursos começaram a girar prioritariamente em torno do combate às secas, pois a seca
foi sendo percebida como um fator que arregimentava os dirigentes destes estados, ou, dito de
outra forma, que os “regionalizavam”.
A equação seca e política ganhava contornos nos discursos das elites dirigentes dos
estados que sofriam com as secas. Estas se tornavam a principal justificativa para que o
governo federal concretizasse planos para o estado afetado. Além disso, a barganha se fazia
necessária para que essas elites do norte pudessem rivalizar com projetos políticos que
priorizavam, especialmente, o setor cafeeiro, cujos estados mais poderosos, São Paulo e
Minas Gerais, se beneficiavam hegemonicamente da política republicana.
Por outro lado, a Proclamação da República trouxe em aberto a questão de se construir
uma “nação” com a inclusão do “povo”, pois, como espasmodicamente diagnosticava
Aristides Lobo, ainda em 1889: “O povo assistiu aquilo bestializado, atônito, surpreso, sem
conhecer o que significava [...] Estamos em presença de um esboço rude, incompleto,
completamente amorfo [sic].”13 O “esboço rude” e “incompleto” precisava, portanto, ser
construído à medida que se cooptava o “povo” como cidadão da nova ordem. A identificação
desse “povo” com a nascente República era, para os ideólogos republicanos, tais como Rui
Barbosa e Alberto Torres, a condição sine qua non para que se constituísse a “nação
brasileira”.
12 Cf: MENDONÇA, Sônia Regina de. O ruralismo brasileiro (1888-1930). São Paulo: Hucitec, 1997. 13 Carta ao jornal “Diário da Noite”, de São Paulo, em 15 de novembro de 1889. Apud: Carone, Edgard. A Primeira República. São Paulo: DIFEL: Corpo e Alma do Brasil, 1976. P. 376-377.
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A construção de uma nação moderna foi uma das agendas políticas do nascente poder
republicano em construção. Poder este que, em muitos momentos, corporificou os anseios de
progresso de parte de uma sociedade citadina sedenta de modernização aos moldes de suas
congêneres européias. Na Europa e, mais especialmente, na França ― país hegemonicamente
modelo para os letrados brasileiros ― já em meados do século XIX, o Estado se debruçava
sobre a questão da construção de um arcabouço de auto-identificação entre sua população.
Delimitando as fronteiras, esquadrinhando espaços no território e impulsionando um amplo
desenvolvimento industrial, o Estado subsidiava a eliminação de elementos que eram
considerados antigos e fundava outros de acordo com a norma ditada pela modernidade. A
instituição e a disciplinarização de novos hábitos e rituais cívicos que pudessem alavancar
uma identificação entre pares respondia a uma ideologia fundamentada nos termos de uma
sociedade civilizada e moderna. Ao mundo do saber, caberia corroborar essas práticas e
conduzir a pedagogia das massas. Construir a nação era o pedaço que cabia àqueles que
detinham o conhecimento na nova sociedade. Daí certa mudança no papel do mundo letrado,
que voltava as costas para a formação erudita e se ungia de uma posição militante e
intervencionista na nova sociedade. Do erudito, detentor de uma cultura vasta, enciclopédica,
passava-se a um especialista: o intelectual.14
No Brasil, os intelectuais do período divergiam entre dois modelos de identidade
nacional, à primeira vista antagônicos: um, ainda muito influenciado pelo romantismo,
buscava o caráter de continuidade, com a valorização do passado e das tradições; outro tinha
um viés de ruptura e buscava uma modernização da sociedade através do Estado com a
inclusão neste das novas forças sociais que emergiam.15 A República representava, para estas
14 Sobre a mudança de postura de uma elite pensante, fundamentalmente expressada nos termos erudito e intelectual, Cf: ALBUQUERQUE, Durval Muniz. De amadores a desapaixonados: eruditos e intelectuais como distintas figuras de sujeito do conhecimento contemporâneo. In: Revista Trajetos. Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará. v. 3, nº 6. Fortaleza: Departamento de História UFC, 2005. P. 43-66. 15 Cf: OLIVEIRA, Lúcia Lippi. A questão Nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense, 1990.
31
últimas, a necessidade de uma nova ideologia de nacionalidade que colocasse em ação os
projetos de modernização na sociedade brasileira. Daí uma ênfase no poder da ciência,
fazendo convergir o binômio nação e ciência. A questão da construção de uma identidade para
o Brasil deveria passar pelas mãos do progresso capitaneado pela ciência. Ao mero
reconhecimento do espaço ― como nas narrativas de viajantes do século XIX ― juntava-se o
expediente de intervir neste mesmo espaço. A relação do homem com a natureza sofria um
pequeno desvio: de um olhar contemplativo, herdado do romantismo, para uma postura
atuante, intervencionista e transformadora. Uma intervenção que sucederia ao
reconhecimento.
A incorporação de espaços outrora relegados ao mero conhecimento científico seria a
parte fundamental dessa empresa. Concertar esses espaços dentro de uma lógica
modernizadora era tarefa primordial. Por esse viés, conhecer e intervir em um espaço
desconhecido - os sertões - representaria levá-los ao progresso que se processava nos grandes
centros urbanos. Incorporar o espaço sertanejo foi pouco a pouco sendo encarado como
condição fundamental para se construir a nação. Criar as condições materiais para se fundar
uma comunidade nacional era a tarefa a priori. O reconhecimento de espaços desconhecidos,
portanto, dos sertões, através das ferramentas do progresso era uma premissa básica. Da
afirmação dos sertões como invólucro da nacionalidade, bem ao sabor dos românticos,
passava-se a um questionamento: poderia o Brasil tornar-se, finalmente, uma nação, com a
existência de algo conhecido como “sertão”? Já havia muito que a imprensa carioca discutia
aquela que foi alçada a principal problema do sertão: a questão então denominada “secas do
norte”. Muitos periódicos da capital federal mandavam desde o Império seus representantes
para reuniões que, comumente, ocorriam acerca do assunto. O diagnóstico era que “as secas”
representavam um problema a ser resolvido pela nascente República, sob o risco de entraves
futuros na constituição de uma nação, pois as distintas temporalidades que separavam a
32
“evolução” que ocorria nas cidades em contraste com os sertões secos faziam com que estes
se retardassem “sensivelmente no movimento evolutivo da Nação” por causa de um
“problema physico-social” [sic]: as secas.16
Essa compreensão da existência de diferentes espaços no Brasil resultou, muitas vezes,
em disputas entre projetos políticos estaduais distintos. Foram estas disputas, aliadas com um
mal-estar de viver numa sociedade com profundas distinções sociais, que fizeram com que
certos intelectuais do período denunciassem a existência no Brasil de uma política alheia aos
anseios da maioria da população.17 Para grande parte desses homens, as rivalidades políticas
faziam definhar qualquer tentativa de identificação entre os diversos setores da população,
malogrando a construção de uma nação no país. Como consequência, esses intelectuais
observavam, com espanto, um abismo entre sociedade idealizada e sociedade real,
diagnosticando, não raro, o Brasil como tendo uma sociedade que desconhecia a si própria.
Além do mais, a compreensão da continentalidade do território brasileiro e a percepção de que
a maior parte do país permanecia sob total desconhecimento do Estado alarmavam muitos
intelectuais. O desconforto de muitos deles no período se acentuava por usufruírem as
benesses de uma sociedade citadina ladeada por um imenso território desconhecido que, não
raro, aparecia na imprensa com seu cenário de horrores e tragédias.
Sintomática foi, nesse ínterim, a publicação, no final de 1902, do livro “Os sertões”, de
Euclides da Cunha, em que o autor denunciava, através da narrativa da história da Guerra de
Canudos, o drama que definhava a construção de uma nação no Brasil:
16 Diagnóstico do engenheiro Thomaz Pompeu Sobrinho, na Memória Justificativa do Açude Quixeramobim, em 1912. Pompeu Sobrinho era o chefe do 1° distrito da IOCS com sede em Fortaleza. Um fragmento dessa memória foi publicado na Revista do Instituto Histórico do Ceará em 1912. In: Arquivo DNOCS/2ª Diretoria Regional. Acervo de Açude Públicos do Ceará. Pasta 168.2. Açude Quixeramobim. Doc: Memória Justificativa. Memória Justificativa apresentada ao Exmo. Sr. Inspector das Obras Contas as Secas. [sic] 17 Nicolau Sevcenko estuda, pormenorizadamente, dois intelectuais bem representativos dessa tendência: Euclides da Cunha e Lima Barreto. Ver: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
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Vivendo quatrocentos anos no litoral vastíssimo, em que pelejam reflexos da vida civilizada, tivemos de improviso, como herança inesperada, a República. Ascendemos de chofre, arrebatados na caudal dos ideais modernos, deixando na penumbra secular em que jazem, no âmago do país, um terço da nossa gente. Iludidos por uma civilização de empréstimos; respingando, em faina cega de copistas, tudo o que de melhor existe nos códigos orgânicos de outras nações, tornamos, revolucionariamente, fugindo ao transigir mais ligeiro com as exigências da nossa própria nacionalidade, mais fundo o contraste entre o nosso modo de viver e o daqueles rudes patrícios mais estrangeiros nesta terra do que os imigrantes da Europa.18
Euclides da Cunha articulava na narrativa elementos de ensaio e literatura e, em parte,
por uma construção impecável dos códigos literários processados pelo autor e, em parte, por
ser publicado na então capital federal ― o Rio de Janeiro ―, foi logo alçado a sucesso de
vendagem ― algo surpreendente para um autor relativamente desconhecido e que publicava
seu primeiro livro.19 Euclides da Cunha denunciava na obra não só as barbáries ocorridas nos
sertões de Canudos como as apontava como resultante do desconhecimento do território por
parte dos brasileiros dos centros urbanos. Conferindo ao “sertão” o significado de espaço
desconhecido, pois que abandonado pelas autoridades ― um desconhecimento, portanto,
relativo aos centros de poder ― o autor alçava, de maneira definitiva, o sertão à questão
nacional, uma vez que, para o autor, desconhecer o sertão resultaria ficar alheio a uma grande
parte do país, fazendo definhar qualquer tentativa de construção da nacionalidade.
O sucesso que se seguiu à publicação do livro fez surgir várias discussões que versavam
sobre o tema “sertão”. A tônica era que se tornava necessário o Estado intervir no espaço
sertanejo a fim de incorporá-lo a um modelo de civilização que se fazia nas cidades ― que
eram tidas como medida para outras definições, o parâmetro pelo qual se deveria olhar para
outros lugares. A cidade era a medida de todas as coisas. Para Euclides, no entanto, a
dicotomia sertão-cidade resultava em catástrofe nacional. Dicotomia que se expressava no
vetor de negatividade que Euclides atribuiu especialmente às cidades ― mas que se refletira
18 CUNHA, Euclides da. Os sertões. . Rio de Janeiro: Record, 2007 (1ª ed.: 1902). 9ª edição. P. 208-209. 19 Sobre o sucesso editorial de “Os sertões”, ver: ABREU, Regina. O enigma de “Os sertões”. Rio de Janeiro: Funarte: Rocco, 1998. Sobre a construção do livro, numa perspectiva da literariedade, ver: LIMA, Luís Costa. Terra ignota: a construção de “Os sertões”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
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na formação histórica do sertão, pois que por ser abandonado pelos “vícios das cidades” o
sertão se tornava propício para futuras potencialidades. E o sertão era o Hércules-Quasímodo.
Para o autor, a cidade, no Brasil ― e aí Euclides da Cunha fala especialmente do Rio de
Janeiro ―, era o local onde se criava uma “civilização mirrada que nos acotovela na Rua do
Ouvidor”. 20
A cidade representava, no Brasil do alvorecer republicano, o lócus do progresso, onde
se geravam idéias para se pensar a nação. Se, por um lado, ela era o espaço onde as
sociabilidades burguesas se afirmavam, por outro lado, também era o espaço da crítica. A
experiência recente do moderno tornava a cidade o território de novas experimentações,
desnudando uma vocação para o almejado cosmopolitismo, porém, também, a colocava como
um local de distinção, onde se definia o outro por diferenciação do “eu”, pelo delineamento de
uma série de adjetivações e expectativas sociais para o que se concebia e se esperava de um
“homem da cidade”, forçando um olhar de estranhamento e de distanciamento com relação a
outros espaços e outras relações. Daí, o que a obra de Euclides veio sintetizar foi o mal-estar
de uma sociedade letrada, citadina e cosmopolita, imbuída da missão de construir uma nação
moderna, mas que se via frustrada por velhos vícios que se reproduziam na nascente
República – que, outrora, é verdade, grande parte dela tanto ansiava como sendo a
corporificação do progresso no país. Euclides descortinava as contradições do país definindo-
o como um local em que os moradores se desconhecem mutuamente, atentando que estes
espaços ― sertão e cidade ― eram marcados por uma formação histórica diversa. A fronteira
que separava os sertões e as cidades ― estas vistas como “antenadas com o futuro” ― era
uma fronteira de temporalidades. A medida que os distanciava era o tempo: “Porque não no-
los separa um mar, separam-no-los três séculos.”21
20 CUNHA, Euclides da. Plano de uma Cruzada. In: Contrastes e confrontos. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, Coleção Intérpretes do Brasil, 2002. (1ª ed. 1907). P. 135. Este artigo foi publicado, originalmente, no Jornal O Paiz, do Rio de Janeiro, em 8 de maio de 1904. 21 CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 2007 (1ª ed. 1902). 9ª edição. P. 209.
35
À comoção pública que se seguiu a publicação do livro “Os sertões” seguiu uma série
de discussões e estudos acerca da resolução da “questão sertão”. Foi no meio dessas
discussões que se foi dando ao termo “sertão” o epíteto de espaço do atraso em contraposição
ao espaço do progresso, reservado às cidades, e, consequentemente, todo um arcabouço de
adjetivações, dependendo do olhar e do espaço que se elegia considerar como tal.
Essas construções imagéticas dariam o respaldo a um discurso posterior que embasaria
diversas práticas e atitudes para com o sertão, delineando políticas e ações para resolver o seu
problema. O termo sertão foi, paulatinamente, deixando de ter seu caráter de adjetivação do
espaço para, cada vez mais, tornar-se um sujeito, surgindo, daí, outras denominações: o sertão
da borracha, o sertão do café, o sertão indígena e o sertão das secas.
Quando as secas foram, por Euclides da Cunha, em “Os sertões”, elencadas como um
problema nevrálgico para avaliar o atraso de um trecho desses sertões ― os sertões do norte
―, o debate em torno destas já herdava um amplo leque de discursos e imagens que se
construíram no decorrer do século XIX. Euclides, porém, traduzia o fenômeno como um
elemento de entrave na construção de uma nacionalidade e, portanto, o alçava a problema
nacional. Para Euclides, haveria de se cuidar da resolução desse problema sob o risco de
definhar a construção de uma nação moderna, pois eram “as secas” a causa imediata do atraso
nos sertões.
Embora a obra de Euclides da Cunha não possa ser vista como o momento de origem
dos discursos sobre o sertão, confere a este um tópico seminal nos debates sobre a nação. O
sertão tornava-se, em Euclides, problema nacional por excelência e, portanto, problema do
Estado no seu esforço de nation-building de forma crucial. A fala do literato, aliada aos seus
argumentos de homem de ciência ― pois que Euclides era também engenheiro ―
corroborava suas impressões sobre o lugar “sertão” diante de um público letrado. A força da
obra euclidiana se expressou no amplo debate que se seguiu sobre o sertão do país.
36
O fato de terem surgido após a publicação de “Os sertões” tanto estudos que versavam
sobre os sertões quanto discursos políticos que os remetiam a uma suposta “questão nacional”
foi sintomático do impacto da obra. Sintomático também foi que, só em 1903, no rastro
provocado pela denúncia de Euclides da Cunha, um chefe do novo regime se pronunciou
sobre a possibilidade da criação de um serviço para o combate sistemático às secas. Em
mensagem apresentada na abertura dos trabalhos do Congresso Nacional, pela primeira vez
um chefe do executivo, o presidente da República Rodrigues Alves, assim se referia ao
assunto:
Prevendo a hypotese de novas calamidades pela secca no Norte e emquanto não é possível crear um serviço systemático e desenvolvido para combater os effeitos periódicos desse terrível flagello, cuidou o Governo de aproveitar os trabalhos e despezas já feitas no açude não acabado de Acarahú-Mirim, mandando proceder alli aos estudos necessários á barragem e serviços começados, como inicio de trabalhos de tal natureza autorisados pelo Congresso Nacional [sic].22
Nos anos posteriores, a alusão à necessidade de se combater as secas no norte foi
reiteradas vezes lembrada nas mensagens do presidente da República. Assim, os discursos que
reclamavam a intervenção do Estado nos sertões foram se apropriando de diagnósticos
científicos e reafirmando o espaço sertanejo como lugar do atraso, buscando, com isso, sua
legitimação, pelo argumento da necessidade de construir-se uma nação através do combate a
um fenômeno considerado natural, as secas. O senador Coelho Lisboa, da Paraíba, assim se
pronunciava da tribuna do Senado Federal ao discutir uma solução para problema dos sertões
das secas no norte do país:
O nortista lembra á República, como lembrou ao Império, que a resolução deste problema, que se impõe neste momento, reclama a attenção desses governos como a resolução do mais urgente problema econômico [...] Não é um problema regional, é um problema nacional! [sic]23
22 Mensagem apresentada ao Congresso pelo presidente da República Francisco de Paula Rodrigues Alves, 1903. P. 36. 23 BRASIL. Annaes do Senado Federal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,V. III, 1908. P. 367. Esse discurso também pode ser encontrado no livro: Sublime Dea: problemas urgentes, oligarchias, seccas do norte e
37
Em 1909 ― passados sete anos da publicação de “Os sertões” ―, a problemática sertão
enveredaria por uma nova etapa. Agindo, muitas vezes, dentro de temáticas próximas, citando
uns aos outros mutuamente, intelectuais e políticos acabaram dando um lugar para o sertão na
discussão sobre a nação e foram fundamentais na criação de um órgão para combater as secas.
Há de se observar que esses segmentos, muitas vezes, transitavam nas duas esferas ― tanto
política, quanto intelectual ―, num palco de discussões que se restringia ao mundo letrado
brasileiro de inícios do século XX, ainda em formação. Um senador piauiense, já em 1909,
dava o tom salvacionista da empreitada para ele necessária:
[...] permitta-me V. Ex. que, desta tribuna, eu appelle também para o Congresso Nacional, para o Senado e para a Câmara dos deputados, pedindo-lhes que, de mãos dadas com o chefe do Poder Executivo, salvem o norte, salvem o norte, porque também elle faz parte da federação brazileira [sic].24
Também o discurso político sobre as secas imiscuía-se por terrenos de uma
problemática, por excelência, intelectual ― a nação. Os representantes dos estados do norte se
apropriavam de produções intelectuais que afirmavam as secas como problema nacional para
balizar uma antiga demanda política. Aproximavam-se e se mesclavam discursos, à primeira
vista, díspares de intelectuais imbuídos na construção de uma nação moderna e políticos,
muitos comprometidos com a manutenção das velhas estruturas sociais locais.
Em meio às discussões que se desenvolviam acerca dos sertões, foi-se construindo
projetos distintos para solucionar aquele encarado como o problema maior da região: as secas.
Euclides da Cunha retomaria essa problemática em seus escritos posteriores a “Os sertões”.
Em artigo no jornal O Paiz de 8 de maio de 1904 ― não à toa intitulado “Plano de uma
Cruzada” ―, o escritor esboçava uma ideia para o Estado combater as secas, asseverando que
clericalismo. Discursos pronunciados pelo senador Coelho Lisboa. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1909. P. 130. 24 BRASIL. Anaes do Senado Federal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Vol. V, 1909. P. 77.
38
“é o mais belo ideal da nossa engenharia neste século [...] Aí está a nossa verdadeira
missão.”25 Para que essa “missão” finalmente fosse levada à cabo com o concurso de
intelectuais, tal como Euclides pensava, uma maneira de perceber o sertão foi refundada sob
as bases dos pares moderno/atrasado.
Vale uma análise pormenorizada do caminho até se efetivar a corporificação de um
plano de combate às secas nos sertões, pois seus apologistas, dentre eles, sem dúvida,
inúmeros intelectuais, buscaram delimitar o campo semântico do termo “sertão” numa
operação processada à guisa da sua construção como problemática. Uma problemática que
bem podemos definir como “questão sertão”.
25 O Paiz, 8/05/1904.
39
1.2 O MAL ESTAR DA CIVILIZAÇÃO: A CONSTRUÇÃO DO SERTÃO
COMO PROBLEMA
São antigas e frequentes as apropriações do termo “sertão” como denotação de um
espaço desconhecido. Desde o Brasil colônia, o termo já era usado por cronistas.
Historicamente, o termo acentua não só um desconhecimento óptico-sensorial, mas um
estranhamento para com um espaço que possui características distintas do comumente
reconhecido pelo sujeito que o observa. Sobre isso, o famoso naturalista francês Saint-Hilaire
já se pronunciava, na primeira metade do século XIX, quando dava a definição de sertão
como sendo “as áreas despovoadas do interior do Brasil” e concluía: “Quando digo
‘despovoada’, refiro-me evidentemente aos habitantes civilizados, pois de gentios e animais
bravios está povoada até em excesso”.26 Sertão, para o francês, era o local onde ele não
reconhecia uma cultura civilizada, medida a partir do seu ponto de vista de viajante
estrangeiro. Sertão era o espaço da alteridade. Da mesma forma, o viajante inglês Henry
Koster assustava-se com o lugar fora da estrada que vinha do Recife (PE), no nordeste
brasileiro: “Entrava eu para o sertão e este merecia o nome...”.27 A literatura romântica
brasileira, por sua vez, concebia os sertões como algo a ser reconhecido, como lugar de
origem da nacionalidade. Literatura esta que, por sua vez, se valia dos relatos de viajantes
para dar verossimilhança à narrativa.
O não-reconhecimento, em determinado território, de elementos da cultura do
observador sofre uma alteração em fins do séc. XIX no Brasil, impulsionada pela emergência
de uma urbanidade e de uma nova forma de conceber a “civilização” a partir das cidades. Os
parâmetros civilizatórios mudam e, em consequência, a forma de conceber, definir e sentir
26 Apud: AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. In: Revista de Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 8, nº 15, 1995. P. 148. 27 KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942. [orig. 1816]
40
esse “sertão”. A mudança no termo sertão, embora não polissêmica, ocorreu de maneira a
incorporar na definição anterior mais um elemento de estranhamento, inchar o seu
significado.
No Brasil de fins do século XIX, o termo “sertão”, no rastro da construção de uma
possível “civilização” aos moldes europeus, passa a ser encarado como o lugar da “não-
civilização”, da barbárie, em contraposição ao espaço urbano. O significante “sertão” passou a
ser definido a partir dos significados dados à cidade urbanizada. Entender essa transformação
nos obriga a pensar o lugar do observador no espaço colocando-o como um sujeito que
observa a partir das cidades. No Brasil, as cidades eram territórios onde se criavam novas
sensibilidades no final do século XIX. A partir da segunda metade do séc. XIX, as alterações
de cunho sócio-culturais que ali se processavam já apontavam para mudanças que ocorreriam
na forma de viver o espaço citadino. À nova maneira de perceber-se como cidadão da polis
veio juntar-se um difuso ponto de vista em relação ao outro. As cidades tornaram-se o
epicentro, o cosmos, onde interagiam as ideias modernas importadas e os subprodutos das
sociabilidades burguesas via Europa. Na cidade cosmopolita, era construída uma visão de
sociedade por exclusão de elementos entendidos como antigos e selvagens que pudessem pôr
em risco a nova racionalidade. O espaço urbano era encarado como o lócus da civilização, do
moderno, do progresso. O outro era o bárbaro. Tomando como parâmetro o espaço urbano
idealizado, lançava-se o olhar a outros lugares. Definindo o que era cidade, definia-se o que
não era. Definia-se o outro: o sertão. Sem o entendimento de um espaço ― sertão ―, tornava-
se impossível definir o outro, tornado seu oposto ― as cidades.
Uma vez que a cidade era representada pelos seus apologistas como a constatação do
triunfo do homem sobre a natureza, o sertão tornava-se o lugar do selvagem, lugar onde a
humanidade se curvava diante de uma natureza grandiosa. Especialmente no Brasil da virada
do século XIX para o XX, o tema homem-natureza assume proporções dramáticas. A alusão
41
de muitos estudiosos e viajantes ao território brasileiro recaía num pessimismo diante de uma
natureza que, segundo se pensava, tudo podia e de um homem pequeno demais diante de
tamanha grandiosidade natural. As teorias científicas deterministas, muitas vezes, julgavam a
civilização no Brasil como algo impossível por conta de questões geográficas. O historiador
inglês Thomas Buckle era o mais proeminente defensor dessa ideia, sendo um autor bastante
consumido entre os letrados brasileiros de então. Buckle assim se referia ao caso brasileiro:
O Brasil, quase tão grande como toda a Europa, está coberto de uma vegetação cuja profusão é incrível. Realmente, é tão fecunda e vigorosa a sua vegetação, que a natureza parece entregar-se a uma desregrada orgia de pujança [...] Porém no meio d’essa pompa, d’esse esplendor da natureza, não há logar para o homem. Fica reduzido á insignificância pela magestade que o cerca. Tão formidáveis são as forças que se lhe opõem que nunca pôde fazer-lhes frente, ou resistir á sua immensa pressão. Todo o Brasil, apezar das grandes vantagens que parece possuir, tem permanecido sem a menor civilisação[...] De tal combinação resultou essa incomparável fertilidade, que, no que toca ao homem, frustrou seu próprio fim, detendo o seu progresso por uma exuberância que menos excessiva, o auxiliaria [sic].28
Contra esse pessimismo, surgiram, no Brasil, grupos de intelectuais imbuídos da missão
de construir uma civilização nos trópicos e, portanto, refutar a parte desse determinismo que
negava uma possível civilização ao país.29 Formou-se no seio da comunidade letrada
brasileira um verdadeiro “mal estar da civilização” em que viviam. A par disso, aliada à
necessidade de refutar tais ideias pessimistas quanto ao futuro do país, subjazia, já no início
do séc. XX, uma descrença na política republicana, que, outrora, para parte considerável dessa
comunidade letrada urbana, representava a ascensão de uma nova racionalidade moderna. Às
desilusões que os intelectuais brasileiros comungavam juntava-se o descrédito num regime
republicano que tanto apoiaram. Sintomático é o desabafo de um desses intelectuais de início
do século, o crítico literário Silvio Romero:
28 BUCKLE, Henry Thomas. História da civilização na Inglaterra. São Paulo: Typografia da Casa Eclectica, 1900. P. 88-90. 29 Cf: SCHWARCZ, Lília Mortiz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
42
Como quer que seja, a República é agora e por emquanto, a última desilusão do povo brazileiro. Sua constituição espúria, copiada da constituição dos Estados Unidos por alguns rethoricos que andaram sempre a confundir phrases e palavreados com idéias; sua loucura financeira por ocasião do famoso encilhamento; suas revoltas da Armada, do Rio Grande, de Canudos, e outras acarretando tremendas despezas ao Thezouro, e dando lugar ás mais repugnantes scenas de cruel ferocidade [...] o despotismo das oligarchias estadoaes, oprimindo todas as classes; a desorganização de todos os serviços administrativos; as roubalheiras nas instituições fiscaes [...] todas estas chagas visíveis a olhos nus, que andam a afectar o corpo da República, levantaram um tão formidável côro de imprecações, como se não tinha ouvido outro igual em toda a existência da nação. [sic]30
Alberto Torres, por seu turno, expressava sua desilusão com a civilização no Brasil
atestando o descompromisso do brasileiro citadino em conhecer o seu país. Ele denunciava o
“espírito romântico” do brasileiro. “Romântico” era um adjetivo que comumente era usado no
período para delimitar tudo aquilo que não fosse embasado por um olhar considerado
“racional”:
Nenhum outro povo tem tido, até hoje, vida mais descuidada do que o nosso. O espírito brasileiro é ainda um espírito romântico e contemplativo, ingênuo e simples, em meio de seus palácios e de suas avenidas, de suas bibliotecas e de seus mostruários de elegâncias e de vagos idealismos. Com uma civilização de cidades ostentosas e de roupagens, de idéias decoradas, de encadernação e de formas, não possuímos nem economia, nem opinião, nem consciência dos nossos interesses práticos, nem juízo próprio sobre as coisas mais simples da vida social.31
Os engenheiros foram, dentre esses desiludidos, os que mais viveram esse drama. A
geração de engenheiros que viveu o final do século XIX assistiu a dois momentos cruciais
para o entendimento do Brasil de então e, por conseguinte, da sua posição nesta sociedade: o
alvorecer da República e o desenrolar de toda uma política oligárquica que frustrou seus
anseios por um lugar eminente nos quadros republicanos. Na frase do engenheiro André
Rebouças ecoa a mesma desilusão de Silvio Romero: “[...] Ah, meu bom Deus, não será inútil
e baldado tanto esforço, é impossível fazer caminhar este país! Protegei-me; dai-me coragem
30 Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil. Tomo LXIX, 1908. P. 130. 31 TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro. São Paulo: Ed. Nacional, 1978. P. 14-15. (1ª ed. 1914).
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e resignação”.32 Tanto Silvio Romero quanto André Rebouças falavam a partir do mesmo
espaço de onde Euclides da Cunha, em “Os sertões”, construiu a sua crítica: as cidades e,
talvez, o mais sintomático, falavam a partir do Rio de Janeiro, a capital da República, palco
principal onde se desenrolava a política republicana que tanto criticavam.
Vivendo em um país cujos grandes empreendimentos promoviam-se no terreno da
agricultura, esses engenheiros viam frustradas suas expectativas de participar como força
ativa na construção de uma nova sociedade, num país em que o caráter personalista e
hierarquizante ainda ditava as normas das relações entre indivíduos e adentravam no mundo
do poder. O engenheiro na administração pública era, muitas vezes, preterido ao bacharel com
ligações familiares mais próximas com chefes políticos, além do que, como as políticas se
voltavam preferencialmente para a agricultura ― o calcanhar de Aquiles de um país
eminentemente agrário como o Brasil ―, isto relegava a engenharia, com sua formação
pautada mais na técnica, a um papel secundário.
Por outro lado, com o advento das cidades, a profissão de engenheiro foi paulatinamente
sendo valorizada, pois estes passaram a ser vistos como uma espécie de demiurgos do
progresso. Ao engenheiro cabia, pelo caráter pragmático do seu ofício, transformar o cenário
do país a fim de colocá-lo a par das suas congêneres européias no concerto das nações. Esta
missão era assumida pelos próprios engenheiros, que se viam com um papel de trazer as luzes
a uma sociedade atrasada. A fundação do Clube de Engenharia, em 1887, representou, como a
historiadora Maria Alice Rezende de Carvalho salienta, o início da ideologia de
“domesticação da natureza pelo trabalho e pela afirmação das técnicas”.33 À engenharia
caberia o papel de transformação de uma sociedade agrária para uma sociedade urbana,
armada com as ferramentas do progresso. O perfil do engenheiro começava a ser delineado a
32 André Rebouças. Diário e Notas Autobiográficas. Citado em: CARVALHO, Maria Alice. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994. P. 72. 33 In: CARVALHO, Maria Alice Rezende de Carvalho. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994. P. 66.
44
partir da função que a eles caberiam numa nova sociedade gerida pela República: o de
divulgadores do progresso no mundo letrado e com os olhos voltados para a construção de
uma nação civilizada nos trópicos. Talvez nada melhor resuma o papel desse novo grupo
social na administração pública do país do que a indagação do poeta e revolucionário
Abelardo Leiva, personagem criado por Lima Barreto em “Recordações do escrivão Isaías
Caminha”:
Como se pode acreditar que, na nossa época científico-industrial, um homem que não conhece como se fabricam os encanamentos d’água, as propriedades do ferro e o seu tratamento industrial, as teorias hidráulicas, poderá aquilatar e dirigir os serviços de uma cidade moderna, cuja primeira necessidade é um seguro e farto abastecimento d’água?34
As reformas urbanas implementadas nas grandes cidades35 e as obras de engenharia pelo
interior afora ― como as estradas de ferro ― eram alguns dos lugares na administração
pública reservados aos homens de engenharia. Essas obras modernizantes estavam dentro da
agenda política do Estado republicano e representavam a criação de um ambiente propício
para a construção de uma nação moderna, obsessão da República. O lócus dessas
transformações eram as cidades e o engenheiro, o demiurgo. Muitos destes engenheiros, aliás,
formados no ideário positivista, cujo cerne encontrava-se na crença do progresso da
humanidade. Ideário este que “contaminava” as escolas de engenharia de então, cujo modelo
maior era a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, cuja tradição remontava a da Escola Central
― de formação eminentemente militar. Ademais, foi pela via militar que o positivismo e sua
34 BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Publifolha, 1997. P. 113. 35 Existe uma vasta literatura sobre as implicações do progresso modernizante nas cidades no período da Primeira República, das quais cito: CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar: 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; CHALHOUB, Sidney. Cidades febris. Cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque: reforma urbana e controle social (1860-1930). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001; FERNADES, Ana e GOMES, Marco A. (Orgs.). Cidade e História: a modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX. Salvador: UFBA; ANPUH, 1992. SEVCENKO, Nicolau. Introdução. O Prelúdio republicano, astúcias da ordem ilusões do progresso. In: SEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada no Brasil 3. República: da Belle Époque a era do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
45
ideologia do progresso aportaram no Brasil em fins do século XIX e que influenciaram,
durante um longo tempo, a formação dos engenheiros no país. A primeira missão desses
homens foi a de tentar dar uma face moderna a um país que se ressentia de costumes e hábitos
antigos. O palco eram as cidades. Esquadrinhá-las no compasso do moderno era a ação
emergencial.
Nas esquinas e bulevares, construídos nas cidades, os engenheiros se defrontavam com
vestígios da antiga cidade num mundo novo que construíam. No entanto, a experiência do
moderno se processava longe do objetivo traçado nas cadernetas de engenharia. A cidade
ideal, assustada com o novo, teve de conviver com a cidade real. O progresso também tinha os
seus limites. Isto resultava em frustração para os letrados da cidade. Euclides da Cunha, que
era engenheiro de formação militar, vivia sob esses dois mundos: o antigo e o moderno. A
estes o engenheiro-escritor acrescentou o desconhecido, o selvagem: os sertões. Para
Euclides, era preciso ultrapassar os limites da cidade. O progresso deveria conquistar também
os sertões. Só com esse expediente o Estado construiria uma nação moderna e esta só se
efetivaria se os sertões fossem incorporados ao progresso das cidades, com uma vantagem: os
sertões não estavam contaminados pelos vícios daquelas. Voltar-se para os sertões seria uma
maneira de reiniciar algo que dera errado nas cidades, pois a própria situação de abandono
que as populações daquele espaço se encontravam os credenciariam para absorver o mundo
moderno de forma original. Originalidade advinda de uma nova nação, a brasileira, pois ali se
encontrava, no dizer do autor, a “rocha viva da nacionalidade”.
Esse “voltar-se para os sertões” recolocava o dilema de transformar um espaço onde a
natureza mantinha-se irredutível, reinando soberana. Travar-se-ia ali mais uma batalha
homem versus natureza. Batalha encarada como ganha nas cidades, com as ferramentas do
progresso e, paradoxalmente, perdidas com os vícios da urbanidade. A ênfase do escritor
Alberto Rangel a este ponto é sintomático:
46
A alta funcção moral do sertão é a de ser um isolador ás trepidações da faixa que se achando mais próxima ao espumejo do oceano, por isto é mais sujeita aos espasmos e vícios transmitidos nas trocas do commercio e pensamentos internacionais. O seu papel preeminente é o de conservador de nossos traços ethnicos mais fundos, como povo vencedor de uma adaptação estupenda. Se os sertões não fossem algo de estorvo passivo ás fáceis desnaturalizações da beira-mar, seriamos nós descaracterizados; na salsagem do contacto marinho dar-nos-ia um uniforme toral a civilização dos paquetes e couraçados [sic].36
Ademais, a construção discursiva produzida sobre os sertões no período, como já
ressaltado, se consumia de imagens que possuíam um profundo apelo para as elites dirigentes
interessadas em criar uma política para os sertões. O tema das secas, que, comumente, já
aparecia nos discursos das elites dirigentes do nordeste do país, começa a sobressair-se nesse
momento também nos meios letrados da capital federal, o Rio de Janeiro. Retomando a
perspectiva do historiador José Honório Rodrigues, que salienta uma suposta vocação
nacional para o Rio de Janeiro,37 compreendo que os temas discutidos nessa cidade por suas
elites intelectuais devem ser entendidos por esse viés, qual seja, um tema esboçado naquele
espaço logo era alçado à questão nacional. Reconhecer a existência de um problema como os
sertões e discuti-lo no Rio de Janeiro de então os alavancaria ao status de problemática
nacional. O Rio de Janeiro era o vórtice das discussões políticas e das transformações sociais.
Não à toa as produções em torno dessa problemática se excederam depois do sucesso da obra
euclidiana. Há de se compreender esse viés nesta análise sobre uma suposta “questão sertão”
para que se possa avançar no entendimento da dimensão que a questão pôde se configurar até
a criação da IOCS. Nesse contexto, o sertão virou temática de inúmeros estudos intelectuais.
A Revista do Clube de Engenharia, principal órgão dos engenheiros do país, que era
publicada na capital federal desde 1887 ― e que reservara até 1909 apenas seis páginas para a
36 Conferência de Alberto Rangel denominada “Os sertões brasileiros”, na Biblioteca Nacional, em 17 de junho de 1913. In: ANNAES DA BIBLIOTHECA NACIONAL. O sertões brasileiros. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas da Bibliotheca Nacional, V. XXXV, 1916. P. 115. 37 Cf: RODRIGUES, José Honório. Vida e História. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. P. 126-146.
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discussão do problema das secas nos sertões38 ―, só nos anos 1909 e 1910, por exemplo,
produziu nada menos do que quatro trabalhos, reunidos em um dossiê, que versavam sobre os
sertões, dando ênfase ao problema das secas nos estados do norte como fator de entrave ao
progresso da nação.
Se há em todo Brasil [...] um problema que mereça e reclame o estudo de todos os brasileiros, que não limitam os horizontes da pátria ás divisas do município ou mesmo do estado em que nasceram, é por sem dúvida esse vasto problema do Norte ― freio que, desde a origem da nossa nacionalidade, a natureza oppõe ao nosso progresso [...] [sic].39
Alguns desses trabalhos resultavam de discussões promovidas pelo próprio Clube em
anos anteriores. Em todos esses estudos, o tema das secas aparecia na discussão sobre os
sertões como equivalente a problema nacional, sendo que, em um deles, de autoria de
Raymundo Pereira da Silva, os sertões são entendidos também para além da região das secas,
pois o engenheiro entende serem as secas nos sertões um “problema do norte” e “norte” seria
a região que vai do Amazonas até a Bahia. Raymundo Pereira via os sertões de ambos ―
tanto do nordeste quanto do norte ― intrinsecamente ligados pelo retardamento recíproco. O
elemento que os ligaria dentro de uma mesma espacialidade era o atraso, pois:
Vê-se que duas causas principaes retardam o seu povoamento e actuam como um freio no desenvolvimento do seu progresso; as seccas periódicas nos Estados do Nordeste e a malária e outras endemias nos Estados do Noroeste. Por effeitos das estreitas relações econômicas existentes entre as duas regiões, trabalhadas e habitadas em geral pela mesma gente, os males produzidos por aquellas causas influem recíproca e alternativamete em ambas [sic].40
Aqui cabe citar os títulos dos trabalhos publicados pelo Clube de Engenharia com os
respectivos anos e autores: 38 Refiro-me ao artigo do engenheiro Newton Burlamarque intitulado “Seccas”, em que o autor propõe medidas técnicas para resolução do problema. In: REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA. V. 2, ano 2. Rio de Janeiro, 1889. P. 17-23. 39 Acta da Sessão do Conselho Director do club de Engenharia , em 16 de maio de 1907. In: REVISTA DO CLUBE DE ENGENHARIA. Nº 19. Rio de Janeiro, 1909. 40 SILVA, Raymundo Pereira da. O problema do Norte – parecer apresentado ao Conselho Director na sessão de 1 de junho de 1907. In: Revista do Clube de Engenharia. Nº 19. Rio de Janeiro, 1909. P. 107.
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TABELA I – Relação de publicações sobre os sertões pela Revista do Clube de Engenharia Trabalho Ano Autor
O Problema do Norte
1909
Engº Raymundo Pereira da Silva
Conferência sobre as seccas
1909
Engº J. S. Castro Barbosa
Dos meios efficazes para prevenir e
attenuar os efeitos das secas periódicas
1909
Engº J. S. Castro Barbosa
Liga Nacional Contra as Seccas do Norte
1910
Engº J. S. Castro Barbosa
(Fonte: Revista do Clube de Engenharia.Nº 19 e 20. Rio de Janeiro, 1909-1910)
O fio condutor que une os diversos artigos é a questão do abandono de uma região cujo
clima submete o homem, revestindo-o de uma problemática a ser resolvida pelo progresso,
que no sul já houvera chegado. É novamente o engenheiro Raymundo Pereira que reporta:
É sabido ainda que no Sul as condições de trabalho, quanto ao clima e quanto ao apparelhamento industrial, principalmente no que diz respeito a vias de transporte, são incomparavelmente mais favoráveis. [...] Existe, pois senhores, um grande problema a resolver no Norte, revestindo o caracter ao mesmo tempo humanitário, social, econômico e político; problema eminentemente nacional, não só porque interessa intimamente á maior parte da superfície do território da República, como, principalmente, porque resolvê-lo é assegurar dentro de poucos annos no Brasil uma situação privilegiada entre as nações do globo, que mais o forem [sic].41
O engenheiro Castro Barbosa, autor dos outros três artigos, apresenta a questão sob o
mesmo ponto de vista. O engenheiro-autor apresentou também um trabalho sobre o problema
41 SILVA, Raymundo Pereira da. O problema do Norte – parecer apresentado ao Conselho Director na sessão de 1 de junho de 1907. In: Revista do Clube de Engenharia. Nº 19. Rio de Janeiro, 1909. P. 11-16.
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das secas nos sertões no 4º Congresso Médico Latino-Americano, realizado em 3 de julho de
1909, no Rio de Janeiro, em que insistia numa ideia que será, posteriormente, bastante
retomada: a de que o problema do atraso nos sertões era devido à falta de água. Para tanto,
afirmava o autor que:
A engenharia precisa de grande liberdade para a escolha dos meios com que domine o phenomeno complexo do regimen das águas interiores; não devem desembaraçal-a quaesquer peias jurídicas, filiadas a uma jurisprudência obsoleta, em desacordo possível com as exigências da hygiene ou das applicações modernas desse precioso elemento de riqueza nacional [sic].42
Ao mesmo tempo em que os engenheiros estudavam os meios mais eficazes de combate
às secas, se formava a noção de campo, delineando funções e responsabilidades da engenharia
dentro de um mundo com os olhos voltados para o progresso. Dar à engenharia a liberdade de
escolhas dos meios era medida de fundamental importância para que esta adentrasse de
maneira cabal no seu papel de orientador do progresso. Transformar o país em um imenso
canteiro de obras, dando ao engenheiro o status de administrador público, era, para esses
intelectuais, condição sine qua non para que se extraísse a riqueza para a nação.
Nesse contexto, as discussões sobre o espaço “sertão”, entendido como um problema a
ser contornado, foram ganhando arestas delimitadores na questão das secas de forma tal que a
palavra “sertão” foi sendo remetida diretamente ao ideário das secas.
Esse constructo social foi se aprofundando herdando tanto a discussão euclidiana sobre
os sertões ― fundamentada especialmente na questão das secas ― como pela chave da
demanda política dos estados do nordeste do Brasil ― que tinham nas secas um elemento
capital para angariar fundos federais. É desse encontro que se nota a tentativa de uma precisão
semântica da palavra “sertão” imediatamente voltada a um imaginário das secas, absorvendo
todo um discurso de nacionalidade ― construída por uma intelectualidade ― para afirmar o
42 CASTRO BARBOSA, J. S. de. Dos meios efficazes para prevenir e attenuar os efeitos das secas periódicas. In: Revista do Clube de Engenharia. Nº 22, Rio de Janeiro: 1910. P. 69.
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desregramento dos sertões como parte de um problema econômico resultante da instabilidade
climática. 43
Mas não era só a engenharia que escolhia como tema o sertão. Vários segmentos
sociais se pronunciavam sobre a “questão sertão” buscando contribuir para a compreensão do
pensamento social sobre os sertões naquele contexto. A intelectualidade, movida pelo ideal da
nação moderna e frustrada com os vícios do espaço urbano, volta-se para o interior do país.
Necessário que se diga que o tema do sertão herdava toda uma tradição literária romântica que
inchava as figurações do sertanejo em termos pueris, pois o sertão já era, como demonstrado,
um eixo literário na construção tipológica de uma nacionalidade desde José de Alencar,
passando por Visconde de Taunay chegando, de maneira, sem dúvida, distinta, ao relato de
Euclides da Cunha. Se, em vários pontos, estes autores se aproximam, este último se distancia
dos demais pela observação dos malefícios dentro do espaço sertanejo, praticamente ausentes
nos relatos anteriores. O olhar de Euclides é o daquele que ressalta o sertão como espaço
ainda a ser transformado. O sertão seria o espaço do ainda possível.
Esse excesso de sertão é marcante na construção literária do Brasil de inícios do século
XX, a ponto de Lima Barreto, já em 1919, através de seu personagem Gonzaga de Sá, afirmar,
extasiado: “A nossa emotividade literária só se interessa pelos populares do sertão,
unicamente porque são pitorescos e talvez não se possa verificar a verdade de suas
criações”.44 Verificar verdades sobre o sertão foi uma tarefa tomada por parte da
intelectualidade brasileira no período.
43 A historiadora Kênia Rios observa, ao analisar o caso do estado do Ceará a partir da seca de 1877, que “o progresso que impulsionava a idéia de uma nação forte e pronta para a indústria encontrava no Ceará o problema da instabilidade climática” 43. Este diagnóstico era o mote para as elites da região semi-árida impulsionarem suas queixas políticas ao Estado brasileiro. RIOS, Kênia Sousa. Seca e Identidade Nacional. Prefácio. In: CAPANEMA, Guilherme Schurch; GABAGLIA, Raja. A seca no Ceará. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006. P. 14. 44 Apud: BARBOSA, Francisco de Assis. Prefácio. In: BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Publifolha, 1997. P. 16.
51
Em 1907, três acontecimentos traduziram bem esse movimento. Um deles foi a
publicação de “Capítulos de História Colonial”, do historiador Capistrano de Abreu, em que o
autor constrói, em um capítulo específico, e o maior do livro, a história do sertão, um sertão
delineado historicamente pelo avanço dos bandeirantes cuja história era, para o autor, uma
“corrente interior, mais volumosa e mais fertilizante que o tênue fio litorâneo” 45. A
visibilidade que Capistrano procurou dar ao sertão, construindo para este uma história em
separado do resto do Brasil, expressava a tentativa de criar uma especificidade na formação
histórica da região, bem como de dar um rosto para esse espaço, de afirmar sua complexidade
e chamar a atenção para a sua existência. De criá-lo como lugar.46
Apropriar-se do espaço dando-lhe uma imagem seria o primeiro passo para a sua
conquista. Enquanto na Europa a nação era construída através da instituição de símbolos
cívicos, aqui ela teria de ser construída primeiramente pela conquista dos espaços. Do voltar-
se a si. Sobre isto, o escritor Alberto Rangel reportava que “é o estímulo da nação, que nada
tem de conquistar lá fora. É o problema nacional por excelência, o que se achava inscrito no
frontão de Delphos: ― Conhece-te a ti mesmo.” 47 Por conseguinte, construir um discurso
histórico do país remetia a uma das faces dessa conquista geográfica para a efetivação da
nação. Por isso, geógrafos como Friedrich Ratzel, que primava o entendimento do meio como
explicação do homem ― como na fórmula “dai-me o espaço que eu te darei o homem” ―, foi
uma literatura bastante consumida no meio letrado brasileiro de então. O próprio Capistrano
de Abreu fora um dos primeiros a chamar a atenção para os estudos da antropogeografia de
Ratzel, em artigo publicado em periódico de grande circulação no mundo letrado brasileiro.48
45 ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 5ª edição, 1963. P. 121. 46 A noção de “lugar”, aqui esboçada, remete ao sentido que o geógrafo Yu Fu Tuan compreende em várias de suas obras, especialmente em: TUAN, Yu Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL, 1983. Lugar seria o espaço onde o tempo repousa, onde há uma estabilidade de imagens criadas, um espaço definido. 47 Conferência de Alberto Rangel. Op. Cit. P. 115. 48 Cf: ABREU, Capistrano de. A Geographia no Brazil. Almanaque Brazileiro Garnier. Rio de Janeiro, 1904. P. 210-212.
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Outro trabalho a que reporto é o estudo do médico higienista Antônio Martins de
Azevedo Pimentel, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
intitulado “O Brazil Central: Estudos Pátrios”, sobre a mudança da capital do país para o
sertão central, onde o autor objetivava, segundo suas palavras:
tornar conhecida uma parte extensa do interior do Brazil, onde ao agradável aspecto physionomico da região se juntam a excellencia de um clima salubérrimo; a grande fertilidade do solo (...) a facilidade de communicações com as regiões do littoral(...)a sua riqueza mineral e vegetal; e a pureza de um bello céo azul, sempre sereno e calmo e recamado á noite de estrellas do mais vivo fulgor. [sic]49
No trabalho do médico Antônio Martins, a proximidade do Planalto Central com o
litoral corroborava seus argumentos de mudança da capital. O sertão, ali, estaria apto ao
desenvolvimento pela proximidade com os grandes centros. Tendo como temática a descrição
do Planalto Central, o autor alude a essa proximidade com o litoral como sendo um elemento
para a afirmação dos seus argumentos posteriores, onde iria acrescentar um plano:
É ahi que deve, um dia, levantar-se a nova capital da florescente República Brazileira. A minha expressão é simples e singela, e á simplicidade da narração allia a verdade do exposto Por isso, com maior sinceridade, procurei dar ao Brazil. [sic]50
Plano antigo, a mudança da capital para o sertão do Brasil ganha novo impulso, nesse
momento, onde pululam estudos descritivos de uma região desconhecida e, como bem
salienta o médico, que era preciso tornar “conhecida”. O fato de o próprio autor ter ido ao
sertão e o “observado” era comumente traçado como um argumento de autoridade para
corroborar as assertivas sobre o lugar do qual falava: “Embora pequena seja a somma dos
meus conhecimentos todavia o puro sentimento do patriotismo que me levou a tão longíquas
49 PIMENTEL, Antônio Martins de Azevedo. O Brazil Central (Estudos Pátrios). In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico brasileiro. Tomo LXVIII, parte II. Rio de Janeiro, 1907. Prefácio, s/p. 50 Idem, s/p.
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paragens fel-a avultar deante da farta messe de elementos de observação [sic].” 51 Criar esse
estatuto de observador era o fundamento inicial para se falar sobre o lugar.
O terceiro acontecimento de bastante importância foi a criação, em 1906, do Serviço
Geológico e Mineralógico do Brasil (SGMB), sediado no Rio de Janeiro. Sob a chefia do
cientista estadunidense Orvile Derby esse serviço foi criado com um intuito tácito de:
realizar o estudo científico da estrutura geológica, dos meios e recursos minerais da República, e a coleta de informações sobre a natureza dos terrenos, que sirvam de base a projetos de vias de comunicação e outras obras públicas, especialmente as de prevenção contra os efeitos das seca. 52
Derby, já, havia bastante tempo, um profundo conhecedor da geologia brasileira,
afirmava ser a causa principal dos sertões a ausência de água.53 O cientista tratava de afirmar
a questão das secas como matéria de estudo importante para as ciências no Brasil, pois essas
representavam um empecilho ao desenvolvimento dos sertões ― especialmente a sua
agricultura. Para tanto, Derby indicou ao ministro da Viação Miguel Calmon os nomes de
técnicos que pudessem ajudá-lo na empreitada. Dentre estes, estavam nomes tais como o do
engenheiro Miguel Arrojado Lisboa e do geólogo estadunidense Horace Williams ― futuros
quadros da IOCS. Estas ligações entre cientistas estadunidenses e intelectuais brasileiros
representaram uma interessante troca de experiências que não pode ser desprezada para se
entender a IOCS e mesmo a visão que se tinha do sertão brasileiro nesse período. Retornarei a
isto mais adiante.
A ênfase de Derby no problema das secas, e de como estas seriam um empecilho para o
desenvolvimento da região e da nação, deu as diretrizes do SGMB nos primeiros anos.
51 Idem, P. 261. 52 BARBOSA, Francisco de Assis (Org.). Idéias econômicas de Miguel Calmon. Brasília – Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa – MEC, 1980. P. 278. 53 Cf: DERBY, Orville. O regimen das chuvas nas regiões das secas do Norte do Brasil. Fortaleza, Revista da Academia Cearense, t. XII. Fortaleza: Typografia Minerva, 1907. Este estudo foi remodelado e publicado posteriormente no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, com o título “Regime das águas no centro do Ceará”, em 1º de janeiro de 1910.
54
Sintomático foi o fato de o geólogo direcionar seus comandados fundamentalmente para os
estudos de reconhecimento da estrutura geológica dos sertões do norte, como forma de
compreender os seus efeitos sobre o problema das secas.54 Vale salientar que o conhecimento
geográfico era visado por Derby como uma empresa fundamental para o desenvolvimento do
país, o que, muitas vezes, fez questão de afirmar, como num discurso lido na sessão do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), do qual era sócio, em 31 de agosto de
1909, e que depois viria a ser publicado na revista da mesma instituição sob o título de
“Contribuições recentes para a Cartografia do Brasil”.55 O IHGB era, vale dizer, o lócus de
uma intelectualidade que pensava a nação e, já no projeto de sua fundação, priorizava o
conhecimento dos sertões, dando-lhe bastante importância na construção da nação, tendo, no
Império, subsidiado muitas viagens para o seu reconhecimento.56
Foi nesse ínterim que as secas começaram a virar problema do Estado e, dentro deste,
começou a se pensá-las como problema nacional. Em 1904, foram criadas as primeiras
iniciativas mais amplas do governo federal para resolver o problema das secas: a “Comissão
de Açudes e Irrigação”, com sede no Ceará, sob a chefia do engenheiro Piquet Carneiro, e, no
mesmo ano, a Comissão de Estudos e Obras Contra as Secas, com sede no Rio Grande do
Norte, sob a chefia do engenheiro João Matoso Sampaio. Em 1906, essas comissões se
fundiram e foi criada a “Superintendência de Obras Contra os Efeitos da Seca”, com sede em
Fortaleza, sob a direção do engenheiro de minas Antônio Olinto dos Santos Pires. Em 1908,
esta superintendência foi suprimida e restaurou-se a “Comissão de Açudes e Irrigação”, com
54 Sobre isso, Silvia Figueirôa faz uma interessante análise em que salienta o desejo de Derby de dar um enfoque científico no reconhecimento do espaço assolado pelas secas, como o primeiro passo para resolver o problema. In: FIGUEIRÔA, Silvia. As Ciências Geológicas no Brasil: uma história Institucional. São Paulo: Hucitec, 1997. 55 REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO. Tomo LXXII, V. II, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909. P. 36-48. 56 Cf: FERREIRA, L. M. Ciência nômade: o IHGB e as viagens científicas no Brasil Imperial. In: História, ciência e saúde – Manguinhos. v. 13, nº 2, 2006. P. 271-292.
55
sede em Fortaleza, sob a chefia de Piquet Carneiro, que foi substituído, em setembro de 1909,
pelo engenheiro José Ayres de Souza.57
Se, por um lado, o caráter efêmero destas comissões lança luz para o problema de
políticas que beneficiassem outros projetos ― haja vista um Estado comprometido com a
política de seu principal produto de exportação (o café), não vendo com bons olhos, assim, o
despejar de seus recursos em outros empreendimentos ―, por outro, atenta para o fato de que
a questão dos sertões das secas estava sendo discutida no seio desse poder republicano. À
força econômica da indústria cafeeira se contrapunha um discurso que enfatizava o benefício
que traria para o país o incremento de outras culturas, sendo, por esta leitura, papel
fundamentalmente do Estado o desenvolvimento desses novos ramos no país. Foi por esse
viés que a “questão sertão” começou a ser encarada também como questão econômica, sendo
elencado no norte do país o problema das secas como o principal empecilho para o atraso da
região no setor agrícola.
Indício desta afirmação foi a postura de Affonso Penna, que foi o primeiro a colocar na
sua plataforma política a questão da resolução das secas. Ainda em 1905, em um banquete
que lhe foi oferecido no Rio de Janeiro, quando ainda era candidato, Afonso Penna leu sua
plataforma política, em que a questão das secas nos estados do norte comparecia da seguinte
forma:
A desigualdade que se nota no desenvolvimento econômico entre diversos estados da República, é facto que impressiona a quem estuda a situação econômica do Brasil. Assim é que vastas regiões do norte, outrora tão opulentas e fontes abundantes da produção nacional, passam desde muitos annos por intensa crise quanto aos principais ramos da sua agricultura. [...] Da acção combinada da União e dos Estados muito se pode esperar para limitar as desgraças provenientes do flagello [...]. Não serei eu quem contesto que muitos dos males que sofremos podem e devem ser removidos por esforços da iniciativa individual; mas , attentos as nossas tradições e a exemplo do que se pratica em Estados de adeantada civilização, cumpre ao poder
57 POMPEU SOBRINHO, Tomaz. A História da secas. Coleção Instituto do Ceará: Fortaleza, 1953. P. 191-213. O autor traça um rápido histórico dessas comissões.
56
público secundar e favorecer esses esforços, dentro da esphera de suas atribuições [sic].58
Por outro lado, as promessas de campanha do mineiro Afonso Penna respondiam às
suas próprias demandas como presidenciável, pois sua candidatura fora construída numa
articulada coligação entre os estados de menor poder político na federação para fazer frente à
progressiva ascensão de São Paulo ― articulação organizada em torno do poderoso Serviço
Nacional da Agricultura (SNA), associação que primava por uma política de diversificação
agrícola que fugisse do monopólio restrito em torno do café. Articulação esta que tinha em
seu vice, Nilo Peçanha, e no apoio do senador gaúcho Pinheiro Machado as pedras de toque
fundamentais. Tomar como projeto político o combate às secas angariaria o apoio de outras
oligarquias estaduais para compor um forte bloco de oposição.59
Eleito em 1906, Penna incumbiu seu ministro da Viação, o engenheiro baiano e membro
da SNA Miguel Calmon, de organizar um serviço permanente de combate às secas. Esse, por
sua vez, pediu ao deputado potiguar Eloy de Souza, naquele momento um dos mais
destacados líderes políticos na questão das secas, que redigisse um regulamento para esse
novo serviço. Em poucos dias, Eloy de Souza entregou-o para Calmon, que achou por bem
consultar alguns especialistas no assunto, tais como o geólogo Orville Derby, os engenheiros
Francisco Sá ― então senador pelo Ceará ―, Paulo Queiroz, Sampaio Corrêa e o escritor-
engenheiro Euclides da Cunha.60
A possibilidade de sistematização de um serviço para combater as secas recorria às
opiniões de intelectuais estudiosos do assunto para afirmá-lo. A aprovação científica ao plano
daria o respaldo para que se advogasse a favor da implementação do plano esboçado nos
58 Plataforma Política de Afonso Penna, candidato à Presidência da República. Lido em 12 de outubro de 1905, no Rio de Janeiro, em banquete com a presença de representantes de vários estados. In: Acervo do Arquivo Nacional. Fundo Arquivo Pessoal Afonso Penna. 31.1. AP 14 Caixa 17. Doc: Dr. Affonson Pena - Candidato à presidência da República - Seu Programa Político. P. 57-60. 59 Ver: FERREIRA, Marieta de Moraes. A República na velha província: oligarquias e crise no estado do Rio de Janeiro (1889-1930). Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1989. 60 Sobre essas consultas, o próprio Eloy de Souza conta em livro sobre as secas. In: Souza, Eloy. O calvário das secas. Natal: Fundação José Augusto, 1983. (1ª ed. 1938). P. 103-104.
57
meios políticos. A autoridade da ciência em poder se posicionar sobre o assunto era um forte
elemento de argumentação na proposição de políticas para a nação. A autoridade de cientistas
era constantemente evocada nos meios políticos. Aproximar, por exemplo, o problema das
secas do norte ― uma forte fonte de discurso para as elites dirigentes daqueles estados ― de
uma problemática como a da construção da nação ― tarefa que parte de uma intelectualidade
brasileira se imbuía ―, tecendo uma ligação que o incluiria diretamente como problema do
Estado brasileiro, era um bom artifício de retórica para os políticos afirmarem suas ideias para
os sertões das secas. Circunscrever e apropriar-se desses sertões de modo a decifrá-lo pelo
casamento de poder e saber eram procedimentos que balizariam a demanda, decifrando o
problema em suas múltiplas possibilidades.
Progressivamente, as fronteiras entre política (strictu sensu) e intelectualidade se
afrouxam, compartilhando temas, criando um espaço de auto-referencialidade entre pares e,
diversas vezes, chamando a autoridade de uns e outros para colocar-se acerca da resolução do
problema dos sertões. A força desse discurso sobre os sertões ganhava peso na articulação
entre ambas as maneiras de se pensar a questão: a científica e a política, manchando fronteiras
que pudessem delimitar abordagens díspares.
No Congresso, reiteradas vezes, a ligação entre problema das secas e problema nacional
foi colocada na pauta das discussões. Especialmente nos meios políticos, a questão “sertão das
secas” foi ganhando contornos se valendo de todo um turbilhão de imagens do sertanejo.
Imagens que, se não foram originadas naquele momento, iam sendo traduzidas em questão da
nação e, por isto mesmo, uma questão de política nacional. O senador paraibano Coelho
Lisboa, em uma das suas constantes defesas de combate às secas, num momento em que
defendia a criação de um órgão para combatê-las ― reclamando o cumprimento da promessa
do presidente Afonso Penna ― preenchia seu discurso com imagens do “homem do norte”,
58
pintado-o de forma dramática, articulando na sua fala elementos tais como sertão, nação,
progresso e secas. Vale a citação:
O nortista, Sr. Presidente, não pede auxílio. A altivez do filho do norte é conhecida no sul. Bravo soldado na guerra, laborioso operário na paz, o nortista luta contra a natureza, há séculos e guarda o seu lar, o seu roçado ou a sua fazenda com amor que só o nortista mesmo póde comprehender. Expulso do lar, abandonando suas roças, as suas fazendas ou as suas terras, perseguido pelas calamidades das seccas, vêm ao sul, contempla a grandeza deste mundo de progresso e desenvolvimento mas...a sua única preocupação é voltar para o seu norte para o encanto da sua terra querida, que ama, como árabe nômade ama seu corsel [sic]. (...) Não é um problema regional, é um problema nacional [...] Para citar de passagem a autoridade dos que estudaram a secca, satisfazendo o amor próprio de nortista, que a ama a sua terra, lembro Rebouças, quando estuda o problema da agricultura nacional, nos seus Estudos Econômicos e, abrindo de propósito, no ponto em que elle fala a respeito de minha terra [sic].61
Como bem atesta o trecho citado, havia a tentativa de construir-se um discurso que
salientasse uma representação do “nortista” como um forte, que só abandonava o seu lar por
conta da seca ― numa aproximação inevitável com a visão euclidiana. No lugar onde se
operava esta representação se constituía uma “geografia imaginativa”, onde os lugares
ganhavam definições pelo código imagético construído nos discursos. Operacionalizar
palavras não resultava apenas na construção de um discurso semântico para falar do espaço,
mas também na atribuição de fronteiras visuais, de códigos culturais representacionais que
delimitassem limites para se pensá-la.
Para muitos sujeitos que se imbuíam da missão de pensar o sertão, as secas delimitavam
o território a ser pensado. Houve uma sobreposição semântica entre as palavras “sertão” e
“secas” delineando os contornos fronteiriços de definição do espaço: sertão é o palco da secas
e as secas ocorrem nos sertões.
61 Discurso do senador Coelho Lisboa, em 13 de julho de 1908. In: BRASIL. Annaes do Senado Federal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. V. III, 1908. P. 367. Este discurso foi publicado ainda em 1908, num livro que reunia os discursos deste senador no Congresso. In: LISBOA, João Coelho Gonçalves. Sublime Dea: problemas urgentes, oligarchias, seccas do norte e clericalismo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1907. P. 130.
59
A seca, por conseguinte, seria um problema que afetaria, primordialmente, a agricultura
da região e, portanto, também um problema econômico. Esta aproximação do problema das
secas com problema econômico visava a construir, como já salientado, uma brecha que
direcionasse as discussões em medidas para o desenvolvimento da agricultura na região que
sofria com o fenômeno. Sendo o Brasil apresentado por muitos teóricos daquele período como
um país com um futuro agrícola promissor, negar a ajuda para o seu desenvolvimento na
região das secas era negar o desenvolvimento da principal força da economia do país àquela
região. Era solapar a região das secas dessa ideia. Os defensores de um projeto
intervencionista do Estado na região assimilavam esta noção enfatizando nos discursos as
potencialidades da sua agricultura e, por conseguinte, os prejuízos decorrentes do desastre
econômico ocasionado pelas secas. Este entendimento das secas como desastre econômico
ficou claro quando a vida humana nos sertões passou a ser medida em cifras para o país:
Desprezando o lado moral, encaro a questão, Sr. Presidente, sob o ponto de vista econômico, applicando, aliás com propriedade, o mesmo processo dos hygienistas contemporâneos, que, para tornarem mais positivos os prejuízos causados á sociedade pelas doenças evitáveis, attribuem um certo valor monetário á vida humana, calcullando por Ella a perda soffrida. [...] Em valor de riqueza pública, isto é, cada pessoa vale a riqueza nacional dividida pelo total dos habitantes do paíz. Assim, figuraremos a idade útil de 16 a 60 annos como 84%. Destes, 50% são homens e 50% mulheres, o que equivalea 42% em condições de produzirem utilmente. Na secca de 1877 a 1879, o Ceará e o Rio Grande do Norte perderam 270.000 habitantes; 42% de 270.000 é igual a 113.400 homens de utilidade productora. O prejuízo total é igual a 113.400. Tomarei outro número, preferindo por sua simplicidade o salário valorisado em 1$000 (mil réis). Assim em 250 dias úteis do anno , cada um terá ganho 25$000 ou seja o total de 113.400 homen a somma de 28.350:000$000. Si considerarmos um accrescimo da população de 4% temos no período de 1879 a 1905 uma perda de trabalho em valor de salário correspondente á fabulosa somma de 1.105.650:000$000 [sic].62
Aqui, novamente, era evocado um saber técnico-científico, resultando daí uma
compreensão de que a mudança para a região na sua saga para o progresso deveria passar
62 Discurso do senador Eloy de Souza, em 28 de novembro de 1906. Op. Cit. P. 801-802.
60
pelas mãos da ciência. O senador do Piauí Ribeiro Gonçalves assim pronunciava-se ao tentar
conclamar a união da bancada dos estados do norte:
Mas, Sr. Presidente, quaes os meios a empregar para salvar as populações dos Estados periodicamente acossados pela secca? Eu não sei dizer ao Senado. Falta-me a competência, faltam-me os estudos especiaes para isso. Mas Sr. Presidente, os nossos scientistas, os que teem se dedicado a este assumpto, que teem procurado as lições recebidas da experiência e, mais ainda, com os exemplos de outros paizes, dizem que o problema da secca será definitivamente resolvido, desde que se organize um trabalho permanente, systematizado, para o levantamento de açudes á beira dos rios, protegido por arvores plantadas ao redor, por irrigações, por poços, por cultura extensiva; finalmente, como disse, sob o regimen de um trabalho permanente e systematizado, de tal ordem que os governos futuros sejam obrigados a mantel-os e a continual-os. [...] Pareceu-me, porém, a mim, que, não sendo o Estado do Piauhy o único representante flagellado pela secca, poderia parecer egoísmo nosso, si não nos entendêssemos com os representantes dos outros Estados igualmente flagellados. Então resolvemos convidal-os a que nos acompanhassem para, em um esforço conjunto, conseguirmos dos poderes federaes que iniciassem as medidads que os Estados necessitam para a resolução do probelam das seccas [sic].63
Tais discursos evocavam o embasamento científico na questão das secas e
sedimentavam o enorme apelo que estas tinham quando colocadas dentro da questão de
construção da nação.
Foi nesse contexto que, na tarde de 19 setembro de 1909, no segundo andar da sede do
Centro Paraibano, na rua do Ouvidor, nº 50, centro do Rio de Janeiro, reuniu-se um grupo de
intelectuais e políticos a fim de discutir a questão das secas no norte do país. Depois da fala
do presidente do Centro, o coronel Jonathas Barreto, que discorreu sobre os objetivos da
reunião, foi combinada a criação de uma Liga para “colaborar” com os poderes públicos no
combate às secas no norte. Ficou assentada a criação da Liga Nacional de Combate as Secas.
Na sala de reuniões, estavam presentes representantes congressistas de vários dos estados do
nordeste do país (especificamente do Maranhão à Bahia, excetuando-se Alagoas) e de
representantes de todos os grandes periódicos do Rio de então que, além de cobrir o evento,
63 Discurso do senador Ribeiro Gonçalves, em 15 de setembro de 1909. In: Annaes do Senado Federal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. V. V, 1909. P. 76.
61
foram incumbidos de ajudar na Liga, formando comissões da imprensa na empreitada que ali
se formava. O jornal O Paiz, no dia seguinte, noticiava o evento:
Em todos os discursos, como nos debates calorosos ou nas trocas íntimas de idéias, foram observados ponderadamente as questões econômicas, tendo sempre longas discussões quaesquer assumptos finaceiros ou scientíficos, tornando o caracter mais prático possível o louvável coronel Jonathas Barreto, presidente daquele centro [sic].64
Entre os presentes, encontravam-se nomes ilustres como os dos senadores-literatos
Coelho Neto e Ruy Barbosa, que aceitaram estar à frente das comissões de seus respectivos
estados de origem ― Maranhão e Bahia. O paraibano Epitácio Pessoa, então um respeitado
ex-ministro da República, não estando presente nessa reunião, justificava sua ausência por
meio de um telegrama lido para os presentes em que reiterava o apoio no combate às secas e
arrematava que aquela Liga seria o “primeiro passo decisivo contra a maior desgraça do norte.
Desgraça que começa a ser também vergonha para a República”. 65
Na Liga também participavam tanto personagens políticos de expressão quanto
segmentos da imprensa carioca e engenheiros estudiosos da temática. Dentre estes
engenheiros, o já citado Raymundo Pereira da Silva, que, na segunda reunião da Liga, admitiu
“que a Liga devia tomar em consideração todo o norte do Brasil”66, afirmando, assim, seu
ponto de vista quanto à definição dos sertões como espacialidade específica, qual seja, o de
que esses deveriam ser compreendidos desde a Bahia até o Amazonas.
Essa delimitação de uma espacialidade entendida como sertão e, posteriormente, como
seca foi um tópico que mobilizou grande parte daqueles indivíduos interessados na resolução
do problema dos sertões. As fronteiras se dilatavam e comprimiam-se de acordo com os
64 O Paiz, 20/09/1909. 65 Idem. 66 Citado em O Paiz, 28/09/1909. Mais tarde, Raymundo Pereira da Silva vai tornou-se chefe do Serviço de Proteção à Borracha, mas, antes, passou um tempo como chefe de seção da IOCS.
62
interesses que estavam sendo colocados em jogo. Fronteiras que recortavam o espaço
reivindicando um tratamento específico.
A criação da Liga, em setembro de 1909, pode ser encarada como o desembocadouro de
uma articulação entre discursos vários que construíam um problema. Nesse ínterim ― que
balizamos com a publicação de “Os sertões”, em 1902 ―, a temática “sertão” passou a ser
objeto de conhecimento. Conhecimento que era um primeiro passo para a intervenção
humana. As armas do progresso guiariam a transformação de um espaço sem rosto, numa
visualidade que não provocasse angústia, que cessasse o desembaraço provocado pela
existência de um espaço não “civilizado” num país que se propunha moderno. O Estado
iniciaria seu trabalho nos sertões sob a égide do progresso para construir a nação. A velha
queixa dos dirigentes do norte e dos intelectuais citadinos de que o Estado deveria criar as
condições para o progresso dos sertões, pouco a pouco, foi ganhando forma e espaços,
constituindo-se em questão central na construção da nação.
Para tanto, um fato político acelerou a corporificação dessas idéias. No dia 14 de junho
de 1909, falecia o presidente Afonso Pena, em meio à crise que se estabeleceu na escolha de
seu sucessor. Seu vice, o fluminense Nilo Peçanha, que, agora, já fazia oposição ao seu
comando, resultado das constantes brigas políticas por interesses setoriais na Primeira
República, assumiu a presidência, tentando conciliar os interesses divergentes para afirmar a
força política do seu estado na federação. Nilo era o principal porta-voz de um dos estados
que mais buscava resgatar o seu poder político na federação: o Rio de Janeiro. Para tanto,
procurou formar um ministério que contivesse o maior número de forças estaduais, buscando
dar uma base política de sustento a seu governo. Governo este que ficaria conhecido pelo
lema “Paz e amor” ― forma pela qual alguns jornais resumiam de maneira caricata sua
política de reconciliação com os diversos interesses políticos.
63
Foi Nilo Peçanha quem criou, ainda em 1909, o Ministério da Agricultura, que voltava
suas políticas especialmente para culturas que não fossem a do café. Em síntese, um
ministério criado especialmente para abarcar os interesses dos grupos ruralistas. Nilo Peçanha
também criou o Serviço de Proteção ao Indígena, a cargo de Cândido Rondon, com o objetivo
de fazer o reconhecimento das populações indígenas dispersas nos sertões, além do Serviço de
Proteção à Borracha, para desenvolver economicamente a região Amazônica.
Nilo Peçanha, desde quando presidente do estado do Rio de Janeiro, buscou dar ênfase
ao conhecimento científico como guia para o desenvolvimento da agricultura no país. Ele era
um apologista do casamento entre agricultura e ciência e um continuador, naquele estado, da
política de Alberto Torres, que houvera também passado pelo governo fluminense e que já
naquele período era o principal doutrinador da política da “vocação agrícola”. Tal doutrina
enfatizava o papel da agricultura como impulsionadora do desenvolvimento do país. Só
através dela, segundo seus defensores, o país entraria no rol dos países modernos.67
O Ministério da Viação e Obras Públicas, principal responsável pelas obras
modernizantes no Brasil e onde, desde o governo de Rodrigues Alves, se concentravam os
esforços para o combate às secas, era considerada uma pasta técnica importante. A escolha do
engenheiro Francisco Sá, senador pelo Ceará e genro do oligarca cearense Nogueira Accyoli,
para comandar esse ministério ilustra bem o caráter conciliador e objetivo do breve governo
de Nilo Peçanha na sua tentativa de aproximar-se de grupos políticos dos estados
considerados secundários.
67 Essa ideologia perpassava as políticas do Estado na Primeira República de tal forma que virava matéria de humor na imprensa do período. A revista O Malho, por exemplo, no aniversário de vinte anos da República, de maneira caricata, propõe algumas frases que estivessem mais de acordo com a realidade de então e que substituíssem a denominação oficial de “República dos Estados Unidos do Brasil”. Entre objeções, tais como “Poética República do Brasil” ou “República dos Desfalques Unidos do Brasil”, aparecia a “República Essencialmente Agrícola do Brasil”, com a seguinte argumentação: “com a idéa chistosa da phrase popular e com a recente creação do Ministério da Agricultura, podia-se muito bem fazer este emblema agrícola [sic]”. Cf: Revista O Malho de 15 de novembro de 1909.
64
Desde há muito um dos defensores da ação do Estado no combate às secas e um dos
representantes do estado mais interessado nessa ação, Francisco Sá precisou de apenas três
meses para colocar em ação o velho projeto das elites do norte de criar um órgão permanente
para combater as secas. Três dias após a reunião que selava a criação da Liga Nacional de
Combate as Secas, em que a mais importante discussão girava em torno da pressão ao
governo para combater as secas, o ministro Francisco Sá encaminhou uma carta ao presidente
com o projeto regulamentado de um órgão para sistematizar uma ação de combate às secas
onde reverberavam todos os pedidos dos representantes dos estados do norte:
Senhor Presidente da República, A freqüente renovação das secas, que devastam uma extensa região do Norte do país e que ainda neste momento enchem de angustiosas apprehensões o espírito de uma parte de sua população, reclama dos poderes públicos providências immediatas que acudam ás emergências presentes e attenuem os effeitos das calamidades futuras. [sic]68
Juntamente com a carta, o ministro anexara o antigo projeto do senador potiguar Eloy
de Souza, a cujo esboço o próprio Francisco Sá dera seu parecer, e que, devido às muitas
discussões ativadas, foi-se protelando a execução. Alguns elementos nessa carta sintetizam
uma maneira de lidar com o assunto que viraria praxe, como o fato de os discursos darem-lhe
um caráter histórico, atenuando a emergência pelo fator tempo. Ora, se havia tanto tempo, era
uma demanda política criar um órgão para proceder ao combate às secas, necessário era,
assim se pensava, o novo governo finalmente executá-la, pois que “desde o Império, se tem
preocupado o governo da Nação, de acudir a esse grande infortúnio, já distribuindo socorros
na hora da crise”69. Para Sá, deveria o governo mudar de atitude, porque os auxílios
“prestados em distribuição de esmolas, não produzem benefícios duradouros, nem impedem
68 Carta do ministro Francisco Sá ao Presidente da República Nilo Peçanha, em 23 de setembro de 1909. In: Acervo do Arquivo Nacional. Fundo GIFI Caixa: 4B304, Maço 142, Doc: nº 7565. 69 Idem.
65
abusos prejudiciaes ao Thesouro e às classes sofredoras [sic]”. 70 Foi aí que se introduziu
outra ideia-guia para as futuras obras contra as secas, já esboçadas nos discursos
parlamentares de então, e perfeitamente sintonizada com o caráter do progresso: a ideia de
que a ajuda só poderia advir de um plano que priorizasse o trabalho. Sá, apontando a
existência já de um serviço de combate às secas de caráter não sistemático ― se referindo à
Comissão de Açudes e Irrigação, anteriormente citada ― arremata:
É premente, porém, a necessidade de dar maior impulso e desenvolvimento aquele serviço, afim de proporcionar TRABALHO ás populações que a seca está açoitando dos seus lares, e de dotar de melhoramentos úteis, permanentes as regiões periodicamente sujeitas á calamidade [sic].71
A consideração do elemento “trabalho” como propulsor de “melhoramentos” na região
foi uma marca indelével dos discursos acerca da incorporação da região no concerto da nação.
Seria o esforço do trabalhador que alavancaria o progresso da nação e não as esmolas, como
no tempo do Império, assim salientava Francisco Sá.
Embasado em toda uma legislação que autorizava o presidente da República a
implementar uma sistematização dos serviços contra as secas, esboçado, em grande parte, na
presidência de Afonso Pena, e citando engenheiros como Raymundo Pereira da Silva, o
ministro encorajava na carta o presidente Nilo Peçanha na consignação desse plano. No que
foi prontamente atendido.
Em 21 de outubro de 1909 ― data festiva para a comunidade intelectual comprometida
com a construção da Nação, pois, naquele dia, o IHGB completava 71 anos de existência ―,
foi criada a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), que sistematizava os serviços de
combate às secas e encetava um plano de modernização dos sertões do norte para incorporá-
los, pelo progresso, à nação. Nos jornais, onde os intelectuais faziam sua “profissão de fé”, o
70 Idem. 71 Idem.
66
novo órgão foi festejado em uníssono. Na edição de 26 de outubro de 1909, o Jornal do
Comércio, um dos principais periódicos do Rio de Janeiro, então a capital federal, saudava a
criação da IOCS com a seguinte alerta:
Não é obra para cinco nem para dez anos, mas custasse, embora, o esforço de uma geração, sería ridículo que o paiz dezanimasse de vencer a terrível calamidade e entregasse ao destino inclemente uma população heróica e forte, que póde vir a ser um excelente elemento de progresso para nós [sic]. 72
Com a criação da IOCS se corporificou a ideologia euclidiana de intervenção do Estado
sobre os sertões do Brasil. O novo órgão nascia do encontro entre uma preocupação
intelectual ― a construção da nação, agora impulsionada pelo advento do regime republicano
― com uma antiga demanda política das elites dirigentes de alguns estados do nordeste do
país. Sob as bênçãos de intelectuais e políticos a “questão sertão”, pelo menos no nordeste do
país, entrava em um novo momento.
72 Jornal do Comércio, 26/ 10 /1909.
67
1.3 OS A(U)TORES DOS SERTÕES
À efetivação de uma nacionalidade no Brasil se contrapunha um desconhecimento do
território. Desconhecer era um empecilho para pensar sobre e, sobretudo, para construir algo.
Nesse contexto foi que, em outubro de 1909, com a criação da IOCS, escolheu-se como
inspetor-chefe o engenheiro Arrojado Lisboa que consignava os objetivos do novo órgão
como sendo de, inicialmente, “ajuntarem-se as nossas grandes divisões physicas, para
promover [...] o progresso compatível com cada uma [sic]”.73 Integrar as diversas regiões pelo
progresso era uma idéia encarada por muitos intelectuais, como Lisboa, como a condição
prioritária para se efetivar a construção de uma “nação” no Brasil. Esta necessidade premente
de construir exigiria do Estado o poder de interventor e não só o de promovedor, de mecenas
― como fora no Império. O Estado deveria corporificar a civilização, o progresso. Esse poder
transformador de que se revestia o Estado republicano fez com que a ação no espaço ganhasse
status privilegiado. Era a técnica, as ferramentas modernas, que alavancariam e dariam o
respaldo necessário para a afirmação desse poder. Por conseguinte, os papéis na sociedade em
construção seriam distribuídos a partir desse projeto e, nele, o engenheiro teria um papel de
destaque na administração pública.
Não foi à toa que, para encetar o plano de intervenção nos sertões das secas, o ministro
Francisco Sá ― ele também engenheiro formado na Escola de Minas de Ouro Preto ―
convidou para assumir como inspetor-chefe da IOCS Arrojado Lisboa. Lisboa era seu colega
e fora formado na mesma instituição de Sá. Lisboa, que, naquele momento, encontrava-se nos
sertões do nordeste à serviço do SGMB, antes de assumir o cargo de inspetor, já vaticinava,
em telegrama para Francisco Sá, como andavam as obras contra as secas no nordeste do país:
73 Conferência de Arrojado Lisboa denominada “O Problema das Seccas”, na Biblioteca Nacional, em 28 de agosto de 1913. In: ANNAES DA BIBLIOTHECA NACIONAL. O problema das seccas. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas da Bibliotheca Nacional, Vol.XXXV, 1916. P. 34.
68
“Aproveitei demora [para] visitar açude Acarahú-Mirim. Este evidencia inconvenientes obras
feitas sem systematização [sic]”.74
Contra esta “não-sistematização” foi que Arrojado Lisboa assumiu a IOCS. Aliar a
técnica de engenheiro à sede de conhecimento de um cientista era encarado como fundamento
da IOCS. Ora, sendo o sertão um espaço desconhecido, antes de intervir, era preciso
reconhecê-lo, estudá-lo, dar ciência de seu espaço para “não ficarem abandonadas as zonas
dos sertões”.75 Arrojado Lisboa assumiu a IOCS, em 25 de novembro de 1909, colocando em
ação um plano de reconhecimento do espaço através da ciência. Para Lisboa, a apropriação
dos sertões teria de ser direcionada pelo olhar da ciência, que, por sua vez, respaldaria as
futuras ações.
Miguel Arrojado Lisboa nasceu no Rio de Janeiro, no dia 18 de agosto de 1872,
membro de uma família que guardava uma tradição de servir ao Estado. Em junho de 1888,
matriculou-se na Escola de Minas de Ouro Preto, formando-se engenheiro de minas e civil,
em 1894. Em 1895, Arrojado Lisboa, depois de trabalhos nas propriedades do Barão de
Capanema, então diretor da The Gurupi Gold Mining C, realizou estudos geológicos no norte
do Brasil, na região do rio Gurupi, divisa natural entre os estados do Maranhão e Pará e, no
ano seguinte, dirigiu a Comissão Geográfica do Estado do Rio de Janeiro, trabalhando nas
obras de saneamento de Barra do Piraí. Em 1900, foi à Europa, onde visitou vários países,
levantando dados sobre suas indústrias. Lá, frequentou o curso de filosofia da Universidade de
Berlim. De volta ao Brasil, fez diversas viagens pelos sertões e foi nomeado diretor de várias
empresas no país, como das companhias inglesas The New Zeeland Brazilian and Prospecting
Co., The Rio das Mortes Gold Dredging Co. e da Companhia de Dragagem Aurífera do Rio
74 Telegrama de Miguel Arrojado Lisboa para o Ministro da Viação e Obras Públicas, Francisco Sá, de 4 de novembro de 1909. In: Arquivo DNOCS/ 2° Distrito Regional. Acervo de Açude Públicos do Ceará. Pasta 1.1. Açude Acarahú-Mirim. Doc: Telegrama n°2, ao Ministro da Viação e Obras Públicas. 75 Jornal do Comércio, 1º/12/1909. Resoluções tomadas no dia da posse de Arrojado Lisboa como inspetor-chefe que foram reportadas pelo citado periódico.
69
das Velhas, esta organizada pelo próprio Arrojado Lisboa e por um grupo de amigos no Rio
de Janeiro.
Ser engenheiro de minas no Brasil de fins do século XIX era exercer uma profissão
arriscada financeiramente, pois, num país cujos investimentos eram alocados
hegemonicamente na indústria cafeeira, a profissão de alguém que trabalha com mineralogia
era bastante conspícua. Inicialmente ligados ao espaço urbano, os engenheiros começavam a
expandir seus papéis sob outras paragens. O processo civilizador deveria conquistar todos os
espaços. A humanidade seria o fim de tudo, não importando fronteiras nacionais nessa
expansão. No Brasil, o positivismo comteano dava as cartas nas escolas de engenharia sob o
modelo da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, cuja única rival no país era, seguramente, a
Escola de Minas de Ouro Preto. Esta tinha uma formação distinta da Politécnica, pois que
primava mais pelo ensino de base científica, formando, além de engenheiros civis,
engenheiros de minas. Nessa escola o positivismo era abafado por certo evolucionismo
darwinista e uma distância do utilitarismo. O primeiro diretor da escola, o francês Henri
Gorceix, era um cientista adepto da ciência como fim e tratou de imprimir esse caráter à sua
escola. Uma ciência fundamentalmente voltada para o utilitarismo sofria certa repulsa no
ensino estabelecido por Gorceix. Por isto, muitos dos seus alunos tinham dificuldades de
entrar na administração pública num país que pouco primava pela ciência geológica ― o
ponto forte da instituição. A criação do SGMB, em 1907, no entanto, com seu projeto de
estudar o solo dos sertões brasileiros, absorveu grande parte dos quadros provenientes da
escola.76
O geólogo estadunidense Orvile Derby foi um dos poucos incentivadores da abertura de
espaços institucionais para a promoção da geologia no país e, por isto, um dos mais
importantes chefes da administração pública que absorveu os estudantes provenientes da
76 CARVALHO, José Murilo de. A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glória. Belo Horizonte: Humanitas, 2002. TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da Engenharia no Brasil (séculos XVI a XIX). Rio de Janeiro: Clube de Engenharia, 1994. P. 467-539.
70
Escola de Minas. Lisboa já era um respeitado engenheiro quando Orvile Derby o encarregou
de fazer viagens ao nordeste do país a fim de coletar dados mineralógicos da região a serviço
do SGMB.
Foi quando estava a serviço do SGMB que Lisboa foi convidado para assumir a IOCS,
em 1909, lá permanecendo até 1912, quando se dirigiu à Universidade de Ciências de Paris,
onde frequentou um curso. Na Sorbonne, fez diversas palestras sobre o meio físico brasileiro.
De volta ao Brasil, ainda em 1912, assumiu diversos outros cargos, entre eles, o de diretor da
importante Estrada de Ferro Central do Brasil, em 1914, onde se envolveria num escândalo de
superfaturameto. Em 1920, então, voltaria a assumir a chefia da Inspetoria Federal de Obras
Contra as Secas (herdeira da IOCS). Recebeu inúmeras homenagens e distinções, entre elas, a
medalha de prata da Academia de Ciências da Baviera (1923), em função dos trabalhos
botânicos realizados no semi-árido brasileiro durante a sua gestão na IOCS. Arrojado Lisboa
foi membro de diversas entidades científicas nacionais e estrangeiras, como a Royal of Arts,
de Londres, a Societé dês Ingenieurs Civils, da França, o Instituto Politécnico Brasileiro, o
Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, o Institute of Mining and Metalurgy, de Londres, o
North of England Institute of Mining and Mecanical Engineers, de Newcastle, o American
Institute of Mining Engineers, de Nova Iorque e o American Geological Society, além de
publicar inúmeros trabalhos sobre o estudo geológico, sempre preocupado com a divulgação
das potencialidades do conhecimento do solo do país. Foi, ainda, um dos primeiros sócios da
Sociedade Brasileira de Engenharia ― criada em 1929 ―, que militava pela regulamentação
da profissão de engenheiro. Era amigo pessoal do historiador Capistrano de Abreu, o que
atesta as inúmeras cartas trocadas entre os dois, sendo um dos fundadores do Centro
Capistrano de Abreu. Faleceu em Petrópolis (RJ), em 1932.77
77 Informações básicas acerca da biografia de Arrojado Lisboa, em: SANTOS, Cláudia Penha dos. As comisões científicas da Inspetoria de Obras Contra as Secas na gestão de Miguel Arrojado Ribeiro Lisboa (1909-1912). Dissertação (Mestrado em História das Ciências da Saúde).Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. P. 36-46.
71
A trajetória profissional de Arrojado Lisboa, bem como sua formação caracterizada por
primar o trabalho de pesquisa, fez com que seus interesses pelo solo brasileiro convergissem
com os interesses de vários cientistas estadunidenses que vieram ao Brasil na esteira de Hartt.
Contando com sugestões de homens tais como Capistrano de Abreu, Pandiá Calogeras,
Antônio Olinto dos Santos Pires (que já havia, anteriormente, dirigido uma comissão de
combate às secas) e Orville Derby, Lisboa iniciou a organização do novo órgão dando-lhe um
caráter científico. Para trabalhar ao lado de Lisboa, o ministro Francisco Sá convocou o
engenheiro cearense José Ayres de Souza para exercer o cargo de subinspetor da IOCS. Ayres
de Souza era já um conhecedor do problema das secas, pois trabalhara até aquela data na
“Comissão de Açudes e Irrigação”, antecessora da IOCS no combate às secas, chegando
mesmo a dirigi-la por um breve momento, imediatamente anterior à criação da IOCS.
Como era proveniente do SGMB e conhecia de perto o trabalho de Derby, Lisboa tratou
de firmar um acordo com esse serviço, que ficaria incumbido de mandar seus cientistas sob os
auspícios da IOCS para que fizessem o reconhecimento dos sertões semi-áridos. Esse olhar
científico daria o primeiro passo na conquista dos sertões. A falta de profissionais nacionais
especializados em estudos geológicos fez com que essas demandas por especialistas fossem
buscadas também no exterior, especialmente nos Estados Unidos. Ademais, os cientistas
estadunidenses vinham trazer suas experiências de modernização de espaços semi-áridos, uma
vez que o projeto da IOCS era, comumente, comparado ao Reclamation Service, órgão do
governo estadunidense que subsidiava o desenvolvimento do oeste semi-árido daquele país.
Essa aproximação com o projeto de um país tido como desenvolvido como os Estados Unidos
foi, por diversas vezes, evocada como um fator de afirmação para a existência da IOCS. A
premissa era: se estava dando certo num país moderno por que não haveria de dar aqui?
Por outro lado, os quadros científicos que foram sendo alocados no novo órgão
expressavam as matizes intelectuais que influenciavam a nascente comunidade científica
72
nacional. Dentre estes matizes, há de se salientar a presença estadunidense a partir da
influência dos geólogos John Casper Branner e de Orvile Derby na indicação de cientistas
para compor os quadros da IOCS.
É certo que a presença de cientistas estadunidenses no território brasileiro era uma
constante desde, pelo menos, a expedição de Louis Agassiz, que viera ao Brasil em 1865,
acompanhado de diversos cientistas, dentre eles o ainda jovem Frederic Hartt (1840-1878)
que, anos depois, em 1875, criaria a Comissão Geológica do Brasil, primeira iniciativa com o
apoio do Estado brasileiro para o estudo da geologia no país. Hartt, por sua vez, com o apoio
de Agassiz, galgaria sua trajetória intelectual a partir da Cornell University, em Nova Iorque,
e formaria, ao seu redor, uma gama respeitável de futuros cientistas tais como Orvile Derby e
John Casper Branner, que viriam com ele, em diversos momentos, ao Brasil, como seus
assistentes. Esses dois cientistas tiveram um trânsito bastante frequente na comunidade
intelectual do Brasil de inícios do século XX e suas trajetórias profissionais estiveram
diretamente imbricadas com a formação de uma comunidade científica no Brasil da virada do
século, bem como suas sugestões para a criação da IOCS foram, reiteradas vezes, evocadas.
O estadunidense John Casper Branner (1850-1922) veio ao Brasil, pela primeira vez,
em 1874, como assistente do cientista e seu então professor na Universidade de Cornell (Nova
Iorque), Friederick Hartt. Em 1875, ajudou a formar a Comissão Geológica do Brasil, do qual
fora um dos assistentes e intérprete, além de trabalhar como agente do Departamento de
Agricultura dos Estados Unidos no Brasil. Em território brasileiro, Branner permaneceu até
1880 e, nesse período, foi explorar as regiões diamantíferas de Minas Gerais como assistente
de James Mills. Em 1885, assumiu a cátedra de Geologia da Universidade do Estado de
Indiana, tendo sido, depois, geólogo nomeado a serviço do estado de Arkansas (1887-1891).
Em 1891, ingressou como professor de geologia na recém criada Universidade de Stanford
(Califórnia), no extremo oeste dos Estados Unidos. No ano seguinte, assumiu a chefia do
73
Departamento de Geologia e, em 1913, chegou ao cargo de reitor da citada universidade.
Branner era um intelectual que circulava por várias academias científicas ao redor do mundo e
tornou-se membro da Sociedade de Geologia da América, da Sociedade de Geologia de
Londres, da Academia Nacional de Ciências (EUA), da Sociedade Filosófica Americana, da
Sociedade Americana de Sismologia (da qual foi presidente), membro correspondente do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sócio honorário do Instituto Histórico do Ceará e
membro honorário da Academia Brasileira de Ciências. Branner publicou vários estudos
referentes à geologia do Brasil, entre os quais destaca-se “Geologia Elementar”, manual
preparado para estudantes brasileiros.78 Segundo consta, Branner veio por diversas vezes ao
país e manteve contato constante com vários intelectuais brasileiros, como Guilherme Studart
(o Barão de Studart), Capistrano de Abreu e Miguel Arrojado Lisboa. Geólogo respeitado,
tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, seu raio de influência nos estudos de Geologia por
terras brasileiras podem ser expressos nas correspondências assíduas trocadas entre
intelectuais brasileiros até a sua morte, ocorrida em 1922. Seu interesse pelo território
brasileiro ― herdado de seu mestre Frederic Hartt ― fez com que os estudos acerca da
geologia do país fossem motivo de bastante curiosidade entre os estadunidenses,
especialmente da Universidade de Stanford, onde lecionava. Vários de seus alunos foram, por
ele, indicados para trabalhar na IOCS, como Roderic Crandall, Horatio Small e Ralph Sopper.
Sintomático foi que, em 1911, a mesma universidade ― juntamente com a Commonwealth
Exploration Company, da Filadélfia, interessada na incidência de cobre no Brasil ―
patrocinou uma viagem científica ao nordeste do Brasil, sob a chefia de Branner.79
Orvile Adalbert Derby (1851-1915), por sua vez, viera ao Brasil em 1870 e em 1871,
acompanhando Friederic Hartt nas “Expedições Morgan”, realizadas para melhor conhecer o
78 Informações acerca da biografia de John Casper Branner. Cf: STUDART, Guilherme. Extrangeiros e o Ceará. In: REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ. Fortaleza: Tipografia Econômica, 1918. P. 261-267. 79 GUIMARÃES, Lúcia Paschoal; ARAÚJO, Valdei Lopes de. O sistema intelectual brasileiro na correspondência passiva de John Casper Branner. In: GOMES, Ângela de Castro (Org.). A escrita de si, a escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. P. 93-109.
74
território brasileiro, financiadas por agências privadas estadunidenses. Daqui não sairia até a
sua morte, em 1915. Em 1874, fez parte, juntamente com Branner, da Comissão Geológica do
Brasil e, com a extinção desta, em dezembro de 1877, foi trabalhar no Museu Nacional. Em
março de 1886, ajudou na criação da Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, criada
para estudar as terras paulistas que prestassem ao incremento agrícola. A comissão criada por
Derby absorvia vários quadros provenientes da única escola existente no Brasil especializada
em estudo do solo: a já citada Escola de Minas de Ouro Preto. De lá, vieram Gonzaga de
Campos e Francisco de Paula Oliveira. De seus contatos com a Universidade de Stanford,
trouxe vários estudantes de geologia discípulos de Branner, seu colega desde a graduação em
Cornell. Em São Paulo, logo Derby entrou em confronto com os princípios de aplicabilidade
dos cafeicultores paulistas, que colocavam em xeque a sua formação profundamente voltada
para a pesquisa científica, vindo a sair da Comissão em 1905 e provocando uma autodemissão
em massa dos colaboradores da Comissão, dentre eles, Horace Williams, Gilles Lane e David
Macknight. Nesse mesmo ano, recebeu o convite de Miguel Calmon, então secretário da
Agricultura da Bahia para dirigir o serviço de terras daquele estado. Com a ascensão de
Calmon ao Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, em 1906, Derby foi incumbido
de criar o Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil (SGMB), trazendo consigo muitos
daqueles que lhe ajudaram na Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, como Horace
Williams, futuro quadro da IOCS.80
O prestígio de Derby e Branner sobre a comunidade científica nacional de inícios do
século XX faz com que a compreensão das redes de relações destes nomes com intelectuais
brasileiros sejam de fundamental importância no estudo da inserção do Brasil nas discussões
científicas do período. Ademais, comumente, como foi no caso da IOCS, as opiniões
abalizadas desses dois cientistas eram levadas em conta na construção de projetos e mesmo na
80 Dados biográficos de Derby. Cf: FIGUEIRÔA, Silvia. As ciências geológicas no Brasil: uma História Social e Institucional (1875-1934). São Paulo: Editora Hucitec, 1997. P. 163-228.
75
indicação de cargos de confiança. Exemplo sintomático foi Arrojado Lisboa que, quando
indicado para o cargo de inspetor-chefe da IOCS, fazia parte do corpo de engenheiros do
SGMB e mantinha laços muito fortes com os princípios norteadores da postura científica de
Orvile Derby, especialmente no que concerne à compreensão da ciência como resultado de
profunda investigação e sem interesse imediato na sua aplicabilidade. Princípio este que se
contrapunha à outra que entendia a ciência como simples ferramenta de intervenção sobre a
realidade, ou, dito de outra forma, uma ciência que estivesse a serviço de fatores externos à
própria produção científica. Por consequência, a aproximação que Arrojado Lisboa tinha com
Derby fez com que, através deste, tecesse uma amigável relação com Branner.
No SGMB, Lisboa entrou em contato com o hidrólogo estadunidense Horace Williams
e com o geólogo, também oriundo dos Estados Unidos, Roderic Crandall (ambos formados na
Universidade de Stanford). Williams estava no Brasil desde 1892, quando foi membro da
Comissão Geológica de São Paulo, e, aqui, fixou residência quando casou com a filha do
diretor do Mackenzie College de São Paulo81 Suzie Lane, em 1900. Crandall viera ao Brasil
em 1907 para estudar o solo do estado do Sergipe e da Bahia, acompanhado de John Casper
Branner, e aqui ficou como membro do SGMB, a convite de Derby. Era essa formação
investigativa que os estrangeiros vinham trazer ao Brasil, bem como suas experiências de
pesquisa científica provenientes de seus países de origem. Abramos aqui um parêntese.Os
Estados Unidos, em sua expansão para o Oeste, criaram vários departamentos, com o objetivo
de estudar o solo conquistado dos indígenas para ali alocar pequenos proprietários que
trabalhassem numa agricultura moderna. Os surveys geologicals, como eram denominados
esses departamentos, respondiam a esse projeto modernizador e representavam o braço do
81 O Mackenzie College, segundo Moniz Bandeira, era uma instituição de ensino privada que tinha como modelo as escolas americanas e, em 1896, passou a formar, também, engenheiros civis, através de uma doação de John Mackenzie para a implementação do curso. Os diplomas eram emitidos pela Universidade de NewYork. Como espécie de inspetor estadunidense na escola figurava Orvile Derby. In: BANDEIRA, Moniz. Presença dos Estados Unidos no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da Engenharia no Brasil (Séc. XX). Rio de Janeiro: Clube de Engenharia, 1984. P 10-12.
76
Estado com seu embasamento científico na exploração das novas terras, sabidamente as do
oeste dos Estados Unidos, em expansão no século XIX. Um dos surveys mais conhecidos foi
o Bureau of Reclamation Service, que tinha como sua área de jurisdição o extremo oeste
daquele país, exatamente onde, em 1893, foi criada a Universidade de Stanford, de onde
saíram vários cientistas que viriam para o Brasil. Esse survey era responsável pela exploração
econômica do país, sabidamente a sua agricultura. Frederic Hartt, especialista nessa área, e
que, inclusive, lecionava a disciplina de Geologia Econômica e Agrícola em Cornell, diria
mais tarde sobre o oeste dos Estados Unidos: “lá não se espera uma população para explorar
uma região. O geólogo precede o imigrante”.82 Essa forte importância devotada aos estudos
agrícolas foi um dos responsáveis pela curiosa aproximação dos intelectuais brasileiros e
estadunidenses na virada do século, uma vez que o Brasil era um grande exportador de
produtos agrícolas. Diferentemente da tradição de engenharia francesa, que priorizava a
engenharia civil, a tradição americana, que influenciaria, por algum tempo, a formação de
parte dos engenheiros no Brasil, se ligava à agricultura. O casamento de pesquisa e agricultura
no Brasil, porém, galgaria por outros caminhos.
A Escola de Minas, criada em 1876, representou o primeiro esforço de construção de
uma comunidade científica voltada para a pesquisa do solo, porém a demanda por esses
profissionais era ínfima, contrastado com a ascendente demanda por engenheiros civis, bem
mais preparados, por exemplo, para a aplicação técnica da ciência, especialmente nas capitais
do país que, na virada do século, se modernizavam rapidamente, buscando o concurso desses
profissionais. A rivalidade que existia entre a Escola de Minas e a então principal escola de
formação de engenheiros civis no Brasil, a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, era, antes de
tudo, entendemos, uma rivalidade entre concepções sobre a ciência. Enquanto a primeira
priorizava a pesquisa detida do território, a outra enfatizava a técnica e o imediatismo da
82 Apud: FIGUEIRÔA, Silvia. Op. Cit. P. 149.
77
aplicação científica. Esse imediatismo, entendemos, respondia mais às demandas de uma
sociedade sedenta de resultados mais rápidos, sejam os cafeicultores e sua sede pelo triunfo
econômico rápido, sejam os grandes modernizadores das cidades que, sem dúvida, não viam
com bons olhos um trabalho que se detivesse por demais na pesquisa. Ao conhecimento
deveria juntar-se tão logo a intervenção sobre o espaço. Essa relação de imediatismo ― da
relação utilitária com o tempo, deve-se dizer ― aproximava as reflexões intelectuais de
estadunidenses e brasileiros na construção da nacionalidade a partir da expansão espacial das
fronteiras do mundo “civilizado” ― seja como síntese pacífica entre desconhecido e
conhecido, seja numa posição de confronto onde o conhecido (o civilizado) subjuga o
desconhecido (o selvagem).83 A IOCS se direcionava pela primeira opção.
As ações do novo órgão orientar-se-iam sob a direção de Arrojado Lisboa, no sentido do
sistemático conhecimento científico da região semi-árida. A concepção de engenharia
ganhava, inclusive, um sentido bem diferente, aliando pragmatismo a uma pesquisa científica.
Essa (re)definição do engenheiro também como cientista refletia, portanto, a formação do
próprio Arrojado Lisboa e aparece de maneira sintomática em uma publicação da IOCS de
autoria do engenheiro Flávio Ribeiro de Castro que, para afirmar seus estudos científicos,
asseverava:
Dir-nos-hão: o estudo d’essa questão não compete ao engenheiro, e sim ao scientista. Eis uma affirmação que está bem de accordo com as condições do nosso meio. Assim não pensam, porém, os engenheros do outro lado do Atlântico, d’onde importamos quase tudo que é de sciência e de arte [sic].84
A engenharia, em contato com outros espaços que não as cidades, reorientaria seus
esforços, não só embasada na técnica, mas aliada a um profundo senso de que era necessário
83 Sobre um estudo comparativo entre narrativas de fundação da nação a partir de um discurso que priorizava a fronteira no Brasil e nos Estados Unidos, ver: OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. Representações da identidade nacional no Brasil e nos Estados Unidos. Belo Horizonte: UFMG, 1997. 84 CASTRO, Flávio Ribeiro de. Typos de perfis para barragens de alvenaria. Rio de Janeiro: IOCS, 1913, P. 10.
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também pesquisar o espaço. Daí a relevância dada por Lisboa para que se estabelecesse tal
regime na IOCS, recaindo as escolhas de seus membros em nomes provenientes da Escola de
Minas de Ouro Preto.
A IOCS abria um espaço para absorver os alunos desta escola e esta, por sua vez,
disponibilizava alguns dos seus especialistas, como o professor de Astronomia Gastão
Gomes, para ajudar na confecção de mapas da região a serviço do novo órgão. Vale salientar
que tanto a Escola de Minas quanto o SGMB estavam diretamente ligados ao Ministério da
Agricultura. Esse trânsito e ligações que se estabeleciam entre IOCS e Ministério da
Agricultura pode ser compreendido como uma chave para entender os objetivos da IOCS no
seu momento inicial. Ao novo órgão caberia modernizar a agricultura da região, pois seria só
a partir desta agricultura que a região se desenvolveria. Dessa ideia surgiu a ênfase de que o
problema nos sertões residiria na falta de água para irrigar suas terras. Daí, o novo órgão
deveria
dar preferência ás obras que offerecerem vantagens mais consideráveis sob o ponto de vista agrícola e aos açudes que permitam o aproveitamento de maiores áreas de irrigação, tornando estas effectivas [sic].85
Administrativamente, o engenheiro Arrojado Lisboa tratou de dividir a IOCS em
distritos: o 1º distrito teria sua sede em Fortaleza (CE) e estaria a cargo do engenheiro Carlos
Pinto de Almeida, já o 2º distrito se localizaria em Natal (RN), ficando a cargo do conhecido
engenheiro e estudioso dos problemas do norte Raymundo Pereira da Silva e, só em fins de
1910, instalou-se o 3º distrito, com sede em Salvador (BA), sob a chefia do engenheiro de
minas José Pires do Rio. Cada um deles ficaria encarregado dos estudos e projetos para a
construção de obras no semi-árido. Segundo o decreto baixado para a criação da IOCS, o
novo órgão estaria incumbido das seguintes funções:
85 Jornal do Comércio, 1º/12/1909.
79
I. Estradas de rodagem e outras vias de communicação entre os pontos flagellados e os melhores mercados e centros productores; II. Açudes e poços tubulares ou artezianos e canaes de irrigação; III. Barragens submersas e outras obras destinadas a modificar o regimen torrencial dos cursos de água IV. Drenagem dos valles desaproveitados do littoral e melhoramento das terras cultiváveis no interior; V. Estudo systematizado das condições meteorológicas, geológicas, topographicas e hydrológicas das zonas assoladas; VI. Instalação de observatórios meteorológicos e de estações pluviométricas; VII. Conservação e reconstituição das florestas: VIII. Outros trabalhos cuja utilidade contra os effeitos das seccas a experiência tenha demonstrado [sic].86
Cada obra estaria a cargo de um dos distritos da Inspetoria através de seus engenheiros
espalhados nos sertões. Eles deveriam enviar os projetos das obras estudadas à seção central
da IOCS, com sede no Rio de Janeiro, para sua aprovação pelo inspetor-chefe, que, por sua
vez, passaria pela aprovação do ministro da Viação. As funções da IOCS foram
paulatinamente sendo entregues nas mãos de engenheiros. A eles caberia guiar a construção
da nação nos sertões.
A delimitação da área que se propunha chamar de “sertões da seca” e, portanto, aquela
em que o novo órgão deveria encetar seus trabalhos, acarretou alguns problemas para se
definir. No decreto que criou a IOCS, esse espaço não era delimitado, aludindo apenas que as
obras se realizariam em “alguns Estados do Norte do Brazil [sic]”87. As disputas por fronteiras
eram, acima de tudo, uma disputa por um imaginário. Reconhecer um determinado estado
como “flagelado” carregaria sobre ele todo o peso de uma representação dos sertões
historicamente construída que daria o respaldo ao estado para reclamar a ação da IOCS dentro
dos seus limites territoriais. Essa premissa era parte do regulamento da IOCS, que estipulava
no seu artigo 7º que “O estado que pretender o auxílio da União deverá requerel-o ao Ministro
86 In: Artigo 1° do Decreto n° 7.619, de 21 de outubro de 1909. Dos Serviços contra os effeitos da secca. In: Colleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909. P. 565. Com exceção da construção de estradas de ferro, que, segundo o artigo 59 do mesmo regulamento, “ficarão sob o regimen especial estabelecido para as outras estradas de ferro da União.” P. 571. 87 Idem.
80
da Viação e Obras Públicas, comprovando que é periodicamente assolado pela secca [sic]”.88
A questão era: como comprovar?
Para Arrojado Lisboa, as fronteiras prioritárias naquele momento inicial se restringiriam
a três estados: o Rio Grande do Norte, o Ceará e a Paraíba, consignando que eles são
“justamente os mais flagelados”. 89 Não à toa, foram exatamente esses três estados que se
beneficiaram das primeiras obras da IOCS, como se constata nas “Memórias e Projectos de
Açudes”, um dos primeiros relatórios publicados pelo novo órgão. Sintomático foi que os
trabalhos da IOCS, em 1910, se resumiam a dois açudes em construção no Rio Grande do
Norte, um no Ceará e um na Paraíba. Só em 1911 ficaria estabelecida ― pelo menos,
provisoriamente ― a fronteira a se chamar sertões da seca. Já no primeiro artigo de um novo
regulamento da IOCS, de 28 de dezembro de 1911, especificava-o dizendo que:
Art. 1º Continuarão a cargo da repartição federal denominada Inspectoria de Obras Contra as Seccas os serviços relativos aos estudos e obras contra os effeitos das seccas que assolam alguns Estados do Brazil, comprehendidos entre o Piauhy e o norte de Minas Geraes [sic].90
Fato foi que esses limites fronteiriços não poderiam ser marcados apenas pelo viés do
desastre. Era preciso, também, demonstrar-lhes as potencialidades. Dar ao fenômeno “seca”
um caráter de efemeridade era essencial para que se pudesse pedir o auxílio do Estado,
afirmando, com isso, que havia saída para o atraso da região.
A seca era encarada como uma quebra no tempo, momento no qual o atraso da região
que é atingida ganhava avultosos contornos. Por isso, o atraso dos sertões apareceria de
maneira mais visceral no período de secas, solapando a economia na região. Sendo assim uma
88 In: Artigo 7° do Decreto n° 7.619, de 21 de outubro de 1909. Dos Serviços contra os effeitos da secca. In: Colleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909. P. 566. 89 Conferência de Arrojado Lisboa, denominada “O Problema das Seccas”, na Biblioteca Nacional, em 28 de agosto de 1913. In: ANNAES DA BIBLIOTHECA NACIONAL. O problema das seccas. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas da Bibliotheca Nacional, V. XXXV, 1916. P. 22. 90 Artigo 1º do Capítulo I do decreto nº 9256, de 28 de dezembro de 1911, que reorganizou os serviços da Inspectoria de Obras Contra as Seccas.
81
das saídas era demonstrar a que prestariam utilitariamente os serviços da IOCS nos sertões.
Para justificar essas obras, o engenheiro estudava a região e criava o que se chamou de
“Memória Justificativa”, onde colocava os “porquês”, “como” e “para quês” se deveriam
encetar determinadas obras. Tais justificativas recaiam, comumente, no potencial agrícola ou
pecuarista da região. Em agosto de 1910, assim se reportavam os engenheiros da IOCS, Costa
Barros e o subinspetor Ayres de Souza, sobre o porquê de se construir um açude em
Itapipoca, sertão do Ceará: “A zona circumvizinha é bastante flagelada pelas secas; nela,
porém, existem boas terras de cultura, e cria raízes a indústria pecuária [sic].”91 Em outra
memória, de 1912, a do açude Cariaçá, em Monte Santo, sertão da Bahia, exatamente onde
ocorrera Canudos, a justificativa foi assim colocada:
A zona em que se pretende construir esse açude é uma das mais necessitadas de reservatórios d’água no Estado da Bahia, por ser constantemente devastada pelas seccas, sendo quasi por completo desprovida de aguadas. Apesar disso, a indústria pecuária procura desenvolver-se nella com admirável tenacidade. E o seu florescimento vigoroso poderá ser attingido com a construcção do açude “Cariaçá”, cuja capacidade é sufficiente para resistir a três annos de secca [sic].92
Em Sergipe, a construção do açude Mucambo, em Campos, era justificada pelo que
“constituirá uma boa aguada, em zona muito criadora e secca [sic].” Na memória que
justificava a construção de um açude em São Raymundo Nonato, nos sertões do Piauí, o
contraste que a seca avultava aparece determinando as ações da população emigrante, que, por
consequência, acarretaria prejuízos para a indústria da região, pois faltariam os braços para o
trabalho. A população, nesse contexto, novamente era encarada também como um importante
fator econômico:
91 IOCS. Açudes públicos e particulares: Piauhy e Ceará. Rio de Janeiro: IOCS, 1912. P. 29. A memória é datada de 2 de agosto de 1912. 92 IOCS. Açudes públicos e particulares: Pernambuco, Sergipe e Bahia. Rio de janeiro: IOCS, 1912. P. 37. A memória é datada de fevereiro-outubro de 1912.
82
O único reservatório d’água natural existente na zona onde está projectado o açude Caracol é uma lagoa que se conserva, com volume represado, somente nos annos de inverno normaes. Nas quadras de secca, porém, a população é obrigada a emigrar, e a indústria pastoril, que é ahi bem desenvolvida, soffre os inevitáveis prejuízos, aos quaes procurará remediar o barramento do riacho Caracol [sic].93
As “Memórias Justificativas” procuravam ajustar a ação da IOCS àquela que seria a
pedra de toque da economia brasileira: a sua indústria agrícola. Nos sertões do norte, à
agricultura viria juntar-se a economia pecuarista, cuja tradição já era cantada desde há muito
tempo, forjando, inclusive, uma figura símbolo daquele espaço: o vaqueiro, que virava o
representante acabado do herói dos sertões, ponto de encontro de construções imagéticas de
onde se constituiria uma identidade do sertanejo.
Ademais, o morador dos sertões também precisava ser reconhecido pela ciência. Foi
com o objetivo de fazer o reconhecimento dessa população sertaneja que Arrojado Lisboa
tratou, também, de firmar um acordo com o Instituto Oswaldo Cruz (IOC), instituição que
denotava grande respeito no começo daquele século pelos trabalhos internacionalmente
premiados dos seus cientistas. Por este acordo, ficou estabelecido que o IOC mandaria seus
médicos aos sertões para fazer o levantamento das condições sanitárias daquelas populações,
receitando, por conseguinte, as medidas propedêuticas a serem tomadas. Estabelecer em quais
condições se encontravam aquelas populações era uma condição a priori para se construir a
nação naquelas paragens e essa foi, desde o início, uma preocupação da IOCS. Os braços dos
trabalhadores deveriam estar em boas condições sanitárias para tal empreendimento no sertão.
Braços fortes, nação forte.
A modernização chegava ao espaço semi-árido brasileiro. A letargia dos sertões, com
seu consequente descompasso das cidades modernas, seria, assim se pensava, paulatinamente
concertada, através das ferramentas do progresso. O otimismo dos “cruzados” da IOCS na
força do poder do progresso comumente aparecia em digressões nos seus relatórios. Assim,
93 IOCS. Açudes públicos e particulares: Piauhy e Ceará. Rio de Janeiro: IOCS, 1912. P. 18. A memória é datada de setembro de 1912.
83
por exemplo, se entusiasmava o médico Léo Zehnter, ao falar sobre os benefícios do Horto
em Quixadá”: “[...] muito vai contribuindo para o bom êxito e efficácia da propaganda da
agricultura naquele estado. E iniciou, também, uma série de conferências semanaes sobre
palpitantes assumptos de agronomia [sic].”94
Assim, os diversos saberes começavam a demarcar e justificar seu plano de ação, ao
mesmo tempo em que expandiam suas fronteiras intervencionistas para além das cidades. O
saber técnico corroborava seu campo de ação embasando-o em proveito da indústria agrícola.
Os sertões também apareciam como um palco propício para a apoteose modernizante do
progresso. A engenharia achava seu lugar no plano de modernização nacional sobrepondo
numa economia, cujas bases encontravam-se nas mãos de latifundiários, as receitas
modernizantes importadas de países europeus. O engenheiro da IOCS Pompeu Sobrinho, na
“Memória Justificativa” para a construção do açude público em Quixeramobim, sertão central
do Ceará, arrematava afirmando o caráter de “questão” da empreitada do progresso nos
sertões:
O Problema do nordeste brasileiro, que na verdadeira, acepção, já não é um problema, porém uma questão cuja solução foi encontrada graças á irrigação systemática de todas as bellas e riquíssimas terras capazes desse benefício nesta região do paíz – comquanto em theoria apresenta praticamente difficuldades de várias naturezas. Entre estas, cumpre notar, como uma das mais importantes, a maneira por que convém iniciar as obras de defesa contra as secas, isto é, os reservatórios destinados ao armazenamento da água precisa á irrigação dos campos. [...] Não me parece necessário insistir mais sobre esta questão tão acessível á comprehensão vulgar, mas que merece toda a attenção dos que se acham á testa do movimento empenhado contra as secas, com dedicação e amor [sic].95
Na medida em que o saber avançava pelos sertões, eram publicados os estudos relativos
a essa empreitada. Do período que data da criação do órgão até 1918 foram publicados nada
mais, nada menos, do que 44 obras, entre mapas, estudos, relatórios e dissertações acerca dos
94 Idem. P. 38. 95 Thomaz Pompeu Sobrinho, na Memória Justificativa do Açude Quixeramobim, em 1912. In: Arquivo DNOCS/2ª Diretoria Regional. Acervo de Açude Públicos do Ceará. Pasta 168.2. Açude Quixeramobim. Doc: Memória Justificativa. Memória Justificativa apresentada ao Exmo. Sr. Inspector das Obras Contas as Secas.
84
trabalhos subsidiados pela IOCS na região. A publicidade dos trabalhos obedecia a uma
lógica que primava por dar a conhecer o espaço investigado, o que, por outro lado,
corroborava a existência da IOCS no seio do Estado, servindo, assim, como uma espécie de
prestação de contas. Novamente, é Pompeu Sobrinho que esclarece a necessidade de tornar
público o conhecimento sobre os sertões:
Cumpre ter em consideração, ao lado da opinião pública leiga porém poderosa, os esclarecimentos dos legisladores nesse particular objeto que constitúe um assumpto inteiramente novo entre nós e , por isto mesmo, sujeito a controvérsias dos que, apenas superficialmente se entregam ao seu estudo [sic].96
O intelectual assumia a posição de esclarecer a sociedade e, fundamentalmente, seus
legisladores, numa concepção pedagógica herdeira do iluminismo. Publicações festejadas,
inclusive por cientistas estrangeiros, como o já citado geólogo estadunidense e grande
colaborador da IOCS John Casper Branner, que, em carta ao engenheiro da IOCS José Ayres
de Souza (que este fez publicar em periódico de grande circulação no Rio de Janeiro), assim
se expressava:
Recebi e agradeço-lhe os exemplares dos últimos relatórios da Inspectoria de Obras Contras as Secas. Vai sem dizer que estas publicações muito me interessam, não sómente por ser a Inspectoria a repartição do Governo que trata de melhorar as condições nas regiões das seccas, mas também por ter ella muito acertadamente baseado as suas operações e suas esperanças sobre as sciências. È bem verdade que as esperanças da sciência muitas vezes não se realizam com promptidão, mas o governo e o povo não devem jamais perdeel-las, e não devem deixar de fazer esforços para o bom êxito das experiências, que promettam resultados [sic].97
A conquista dos espaços pela ciência objetivava enterrar a leitura romantizada dos
sertões feita anteriormente. A ciência orientaria certa forma de perceber o espaço. O sertão
passou a ser encarado como espaço para a expansão modernizante. A mediação do saber
96 Idem. 97 Carta do geólogo e professor da Universidade da Califórnia John Casper Branner a José Ayres de Souza, que este fez publicar no Jornal do Comércio, em 15/07/1913.
85
elencaria as representações que seriam partilhadas na sociedade. Ainda é Branner que avulta
essa pretensão:
O relatório do botânico Dr. Loefgren, sobre a questão florestal do Norte do Brasil, é mais interessante que um romance. Está cheio de informações úteis e suggestivas, desde a primeira página até a última. Este relatório parece apontar caminhos certos pelos quaes a inteligente direcção por parte do Governo há de guiar o povo e as indústrias agrícolas do Norte [sic].98
Fazer publicar a carta de um geólogo já respeitado nos meios científicos brasileiros era
uma forma de corroborar o plano encetado. Uma vez que os engenheiros da IOCS tratavam de
acentuar o caráter pioneiro dos seus serviços nos sertões, as marcas representacionais que eles
faziam do espaço ganhavam status de “verdade”. A “pura e real observação”, dogmatizada
nas orientações primeiras do seu inspetor-chefe, orientaria os planos da IOCS durante o
período em que Arrojado Lisboa esteve à frente do órgão. A articulação de um projeto
político fortemente embasado na crença científica de Nilo Peçanha com as premissas de
progresso e luzes que ecoavam na formação dos engenheiros brasileiros tornou possível que,
num primeiro momento, reinasse certa estabilidade no plano científico de Arrojado Lisboa.
Isso foi possível a despeito das receitas orçamentárias anuais da República que não
privilegiavam um plano que buscava a diversificação agrícola no país, encaradas como
medidas secundárias frente à política cafeeira que rendia, sem dúvida, maiores lucros na
balança comercial.
No período de quase três anos à frente da IOCS, Arrojado Lisboa conseguiu colocar em
ação um plano amplo de reconhecimento do espaço com a ajuda de cientistas nacionais e
estrangeiros, sendo festejado, inclusive, pela comunidade científica internacional. Entre
estudos e obras de açudagens, de perfuração de poços e instalação de hortos, o caráter
científico orientado pelo inspetor foi ganhando corpo, ainda que travados por
98 Idem.
86
constrangimentos orçamentários. Em 1912, Lisboa deixou o órgão com 19 obras de
açudagens em construção, 66 poços perfurados e 221 estações pluviométricas instaladas pelos
sertões semi-áridos do nordeste brasileiro, além da instalação de dois hortos florestais e
inúmeros estudos publicados sob o patrocínio da IOCS.
Os trabalhos nos sertões, embora se possa perceber nos discursos dos membros da IOCS
uma retórica entusiasmada, ressentiam-se de vários problemas. O sertão aparecia como um
lugar de dificuldades, de ausência. Lugar onde adentrar levando o progresso nem sempre era
glorificante. A natureza coibia o homem infligindo a este enormes sacrifícios para submetê-la.
A distância espacial dos sertões em relação aos grandes centros obrigava àqueles que
ousassem desafiá-los a enormes sacrifícios. A velocidade, que transformava o espaço urbano,
nos sertões teve, muitas vezes, de se resignar diante de um tempo cuja cadência era controlada
pela natureza.
Assumindo, com a saída de Lisboa, interinamente, as funções de inspetor, o engenheiro
José Ayres de Souza, em relatório das obras executadas em 1912, assim exprimiu as
dificuldades enfrentadas, fazendo um balanço do que era a IOCS, de maneira bem realista:
[...] De certo, não é ainda o que, noutras condições poderia ser: a expressão de um serviço perfeitamnete organizado, em que tudo andasse normalmente. Também, para uma obra, como a da Inspetoria, tão vária e grande, ainda não há tempo nem sufficientes tem sido os recursos votados. Neste particular, até seria lícito dizer que a Inspetoria começou em 1912, primeiro anno de verba razoável e, ao contrário da do exercício anterior, sem o obstáculo das previas e taxativas discriminações orçamentárias. Sabe-se que os trabalhos da Inspectoria se fazem no interior, nos ásperos sertões. Sabe-se também que ahi tudo é diffícil, desde os próprios meios de subsistência até os de comunicação qualquer. Quando estes não faltam de todo, a regularidade do trabalho, ainda assim, não é desejável, porque as estradas de rodagem, por exemplo, não tem conservação, os simples caminhos são impraticáveis, e a travessia, que o serviço obriga, tornou-se penosíssima, sem , ás vezes, nenhum resultado dele [sic].99
Aí se estabelecia um corte entre a racionalidade arrivista dos novos tempos, diante de
uma realidade cujo espaço e tempo eram regulados por outras forças. Cruzar a fronteira que
99 IOCS. Relatório dos trabalhos executados durante o anno de 1912. Rio de Janeiro: IOCS, 1912. P. VII.
87
separava sertão e cidade, adentrando naquele, era como abrir as portas de um mundo que não
se submetia ao progresso, um território onde esse “ente” da modernidade era usurpado pela
natureza dominante. A “civilização” passava de atacante a atacada. A queixa do engenheiro
não era tanto pelos homens, mas por uma força impessoal que ele não consegue dar nome,
força cujo sentido só poderia ser dado pela imprecisa palavra “sertões”. Todas as ferramentas
e novas tecnologias levadas pelo progresso aos sertões pareciam perder as forças quando
deslocadas do seu lugar de origem:
Uma perfuração de poços, de cuja engrenagem se quebra uma roda, que não resistiu ás depressões da estrada mal conservada não póde ser reparada no sertão. Tem que ser desmontada e carregada, ás costas de animal, em extensas caminhadas, até as capitaes. Tenta-se ahi o concerto. Como não foi possível fazê-lo, fica-se á espera que do estrangeiro, vencendo muita distância e muito tempo, venha a peça que, de novo, com os mesmos riscos leve a perfuratriz ao sertão. Projecta-se a construcção de um açude em dois annos. Conclue-se, porém, em três ou mais. No local, há, por acaso, o braço operário. Outro tanto não se pode dizer do material de construção, que, mesmo nas capitaes, não é abundante. Importa-se também, e quando, depois de uma viagem morosa, salteada de acidentes, chega ao pé da obra, se não está em grande parte estragada, está sensivelmente diminuído [sic].100
As impressões do engenheiro que se via, muitas vezes, frustrado diante da
incompreensão do que observava pode ser entendida como um traço marcante do encontro de
um mundo citadino, onde os acordes do progresso ditavam de maneira uníssona as ações dos
homens, diante de um mundo virgem, cujo progresso humano quando se debruçava sobre ele
sentia-se coagido diante do novo. O descobrimento de uma parte do país abandonada ― para
retomar o diagnóstico de um Euclides da Cunha ― por uma ciência arrivista ― expressa de
maneira sintomática nas palavras perplexas de Ayres de Souza ― denota o quanto o tema da
construção de uma nacionalidade no Brasil teria de lutar antes com a repulsa dos espaços, das
distâncias temporais e espaciais que os afastavam. Embora o citado engenheiro afirmasse que
“num certo sentido o trabalho foi novo, integralmente novo” 101, o esquadrinhar os sertões do
100 Idem. P. VII-VIII. 101 Idem . P. VIII.
88
Brasil fora tarefa que, durante todo o século XIX, fora tentada pelos viajantes. O olhar
intervencionista mediado pela ideologia do progresso, esse sim, se constituía em novidade e,
em muitos relatos dos homens da IOCS, é possível enxergar certo constrangimento quando do
contato com os “sertões reais”.
Recriou-se uma forma de perceber os sertões para, então, estabelecer as arestas com que
se pudesse balizar um novo pensar sobre eles. Daí Arrojado Lisboa enfatizar o papel das
viagens como forma de construção de um saber pela observação acurada do espaço. Viagens
que ocorreram, dessa forma, num momento em que se estabeleceu uma tensão perceptiva,
resultado de um olhar científico que construía, não sem certo mal-estar, uma nova
representação do espaço sertanejo. Formulação esta que se embasava numa nova experiência
histórica construída sob as ruínas do velho sertão romantizado, resguardando-o em certos
momentos e negando-lhe em outros, mas, principalmente, mediada por uma nova concepção
de ciência que se queria promovedora do progresso.
2 O PROGRESSO RUMO AOS SERTÕES
2.1 A CAMINHO DOS SERTÕES
Em dezembro de 1909, um grupo de cientistas, sob o comando dos geólogos Roderic
Crandall e Horace Williams, todos do SGMB, partia do Rio de Janeiro com destino a
Fortaleza, a serviço da IOCS. O objetivo imediato era “abranger, em conjuncto, as condições
differentes das regiões flagelladas sob os seus vários aspectos geographico, climaterico,
botânico, social e econômico [sic]”, pois pensava-se que só assim a IOCS poderia “traçar o
programma dos seus serviços apoiado em factos de pura e real observação (grifo meu) no
terreno [sic]”1.
A necessidade expressa nas palavras do inspetor-chefe Miguel Arrojado Lisboa, de
fazer o reconhecimento científico do espaço sertanejo antes de “traçar o programma” de ações
da IOCS, mobilizou diversos cientistas nacionais e estrangeiros que produziram uma gama de
estudos e memórias relativos à região semi-árida do Brasil. Estes estudos eram publicados
pela IOCS e obedeciam ao critério de fazer “ver” o espaço, ou seja, dar a conhecer ao maior
número possível de pessoas por meio da pura e real observação uma região que era
considerada desconhecida. Embasado nesta premissa, a forma didática como eram escritos os
estudos foi motivo de preocupação constante, como se pode depreender na fala do geólogo
estadunidense Horatio Small, que estudou a região do Ceará e do Piauí entre 1913 e 1914:
No relatório que agora apresento, cuidei de tratar as questões geológicas do modo mais simples e, sempre que possível illustrar as feições geológicas por meio de photographias e secções geológicas (...). O trabalho foi feito especialmente para
1 LISBOA, Arrojado. Preâmbulo. In: CRANDALL, Roderic. Geographia, geologia, suprimento d’água, transportes e açudagem nos estados orientaes do norte do Brasil: Ceará, Rio Grande do Norte, Parahyba. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 2ª ed, 1923. (1ª ed. 1910).
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aquelles que não conhecem os princípios e applicações da geologia, e é de esperar que estas notas sejam sufficientementes claras e fáceis de comprehender [sic].2
A emergência do encontro com a geografia do país foi, como já salientado
anteriormente, uma temática que mobilizou o mundo letrado brasileiro desde o século XIX.
Debruçar-se sobre o espaço significava, antes de tudo, descobri-lo, com o intuito de
conquistá-lo para o projeto de nação moderna do Estado brasileiro. O discurso que construía o
outro concomitantemente construía referências para o “eu”, dando-lhe uma identidade que o
distinguisse, ou o aproximasse, no tempo e no espaço, daquele do qual se falava. Foi assim
que, como bem salienta Antônio Cândido, o romance brasileiro do século XIX se constituiu
― “o nosso romance tem fome de espaço e uma ânsia topográfica de apalpar todo o país” 3.
Com o advento da República, o reconhecimento do espaço foi retomado não mais como uma
finalidade em si, mas como um meio para intervir neste mesmo espaço. Foi com esse objetivo
que as expedições patrocinadas pela IOCS adentraram nos sertões.
A tônica era que a nação não deveria ser somente reconhecida, mas também construída,
conquistada. Colocava-se um papel fundamental na técnica como ferramenta de construção,
pois o espaço passou a ser encarado como um feixe de ações humanas transformadoras
fundadas na ciência, onde não haveria lugar para a “contemplação”:
O conhecimento geographico de um paiz é, pois, uma das maiores necessidades políticas. Felizes seremos nós se penetrarmos toda a extensão dessa verdade. Muito frequentemente gastamos em gárrula contemplação o tempo que devêramos despender em analyse apurada [sic].4
2 SMALL, Horatio. Geologia e suprimento d’água subterrânea no Ceará e parte do Piauhy. IOCS: Rio de Janeiro, 1923 (1ª ed.1914). P. 14. 3 CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). V. 2 (1836-1880). Martins Editora: São Paulo, 1965. P. 104. 4 Conferência de Arrojado Lisboa denominada “O Problema das Seccas”, na Biblioteca Nacional, em 28 de agosto de 1913. In: ANNAES DA BIBLIOTHECA NACIONAL. O problema das seccas. Rio de Janeiro: Officinas Graphicas da Bibliotheca Nacional, V. XXXV, 1916. P. 11.
91
Sob a responsabilidade da IOCS, o reconhecimento dos sertões do nordeste do país
acarretou o concurso de profissionais especializados nos mais variados ramos da ciência de
então. Arrojado Lisboa, como já dito, firmou um acordo com o diretor do SGMB, Orvile
Derby, em que este emprestaria os serviços dos seus cientistas para que a IOCS pudesse fazer
o reconhecimento da região. Do SGMB foram enviados aos sertões das secas os geólogos
estadunidenses Roderic Crandall e Horace Williams, o alemão Hans Baumann e os cientistas
nacionais Gilles Williams Lane, Francisco Coutinho, Francisco Boa Nova, Eusébio Paula de
Oliveira e Alberto Betim Paes Leme.
Em 1910, viajou por duas vezes ao Ceará, sob os auspícios da IOCS, o botânico sueco
Alberto Lofgren, que vinha de uma série de trabalhos desenvolvidos no estado de São Paulo,
tendo sido, durante três anos, diretor do Museu Paulista. Na primeira viagem ao Ceará, fora
acompanhado de seu filho, o engenheiro Luiz Lofgren, e, na segunda viagem, veio em
companhia do seu ajudante, o italiano Carlos Pasinato. Lofgren trabalhou como chefe
botânico da IOCS até 1913, quando passou o cargo ao seu assistente, o botânico alemão
Phillipp Von Luetzelburg.
Ainda em 1910, foi designado chefe-hidrólogo da IOCS o geólogo estadunidense,
formado na Universidade de Stanford, Gerald Waring, enviado por John Casper Branner.
Posteriormente, em 1912, foram contactados junto a mesma Universidade de Stanford os
jovens geólogos Ralph Sopper e Horatio Small. Todos eles estiveram incumbidos de fazer
viagens aos sertões a serviço da IOCS na administração de Arrojado Lisboa e, depois da saída
deste, na interinidade do engenheiro Ayres de Souza.
Em 1912, o já respeitado Instituto Oswaldo Cruz enviou, ainda a pedido de Arrojado
Lisboa, três expedições aos sertões, sob o comando dos médicos Adolfo Lutz, Astrogildo
Machado, João Pedro de Albuquerque, José Gomes de Faria, Arthur Neiva e Belisário Penna,
92
para que estudassem “as suas condições sanitárias e as medidas prophyláticas applicáveis a
cada uma dellas [sic]”.5
As viagens mais importantes empreendidas pela IOCS, nesse primeiro momento, foram
as seguintes:
TABELA II – Relação das viagens financiadas pela IOCS
Ano (s) da viagem Responsáveis Região estudada
1910 Roderic Crandall e
Horace Wiliams -
geólogos
Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio
Grande do Norte
1910 Alberto Lofgren -
botânico
Ceará
1910 Raimundo Pereira da
Silva - engenheiro6
Paraíba e Rio Grande do Norte
1910-1911 Geraldo Waring -
hidrólogo
Paraíba, Rio Grande do Norte,
Ceará e Piauí
1912-1913 Daren Crandall7 e Ralph
Sopper - geólogos
Sergipe e Bahia
1912-1913 Ralph Sopper - geólogo Paraíba e Rio Grande do Norte
1912-1913 Horatio Small - geólogo Ceará e Piauí
1912 Belisário Penna e Arthur
Neiva - médicos
Bahia, Pernambuco, Piauí e Goiás
5 BRASIL. Mensagem apresentada ao Congresso Nacional na abertura da 2ª sessão da oitava legislatura pelo presidente da República Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca. Imprensa Oficial: Rio de Janeiro, 1913. P. 11. 6 Chefe da 2ª seção da IOCS. 7 Daren Crandall foi vítima de grave enfermidade em visita aos sertões da Bahia, falecendo logo depois.
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1912 José Gomes de Faria e
João Pedro de
Albuquereque - médicos
Ceará e Piauí
1912 Adolpho Lutz e
Astrogildo Machado -
médicos
Minas Gerais e Bahia (região do
Vale do Rio São Francisco e alguns
afluentes)
(Fonte: IOCS. Relatório dos trabalhos executados durante o anno de 1912 apresentado ao ministro da Viação e Obras Públicas – pelo sub-inspetor em exercício José Ayres de Souza. Rio de Janeiro: IOCS, 1913.)
A maioria dessas viagens resultou em estudos publicados pela IOCS, que embasariam
não só os direcionamentos posteriores do novo órgão, mas construiriam uma nova forma de
perceber e, por conseguinte, de sentir os sertões, partilhando entre o mundo letrado uma visão
fundada no olhar científico corroborada pelas viagens e “viagens” de seus autores, como
procurarei demonstrar nos tópicos seguintes.
Essas viagens aconteciam num momento em que se construía um discurso científico no
Brasil onde, por vezes, se expressavam, nos relatórios, digressões que apontavam para um
“não entendimento de todo” dos sertões, uma dúvida acerca da definição do espaço que
beirava à estupefação ou, por que não dizer, um encantamento. O saber, que procurava se
desvencilhar da imaginação e desencantar o mundo, terminava envolto em encanto. Diante da
“razão”, se espelhava um algo sedutor que surpreendia o olhar científico em movimento. O
exame dos relatórios produzidos pela IOCS nos conduzem, juntamente com o cientista-
viajante imbuído da tarefa de racionalizar o espaço, a um período em que houve uma tentativa
de afirmação da categoria intelectual do cientista desembocando na formulação de um
arcabouço imagético para o sertão, que teria resultados bastante duradouros na sua percepção
espacial.
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2.2 O SERTÃO É UMA VIAGEM OU AS REGRAS DO DIZER
“Il faut beaucoup de mots pour détruire un seul mot (ou plutôt pour faire de ce mot non plus un concept, mais un conceptacle)”
La Table (Francis Ponge)
“A narrativa de viagem traduz o outro, e a retórica da alteridade constitui o operador da
tradução: de fato, é ela que faz o destinatário crer que a tradução é fiel”. Assim François
Hartog expressa a forma pela qual um discurso produz seu caráter de verdade dentro da
narrativa.8 Essa busca pela alteridade constitui uma característica basilar e criadora tanto do
narrador quanto do destinatário que crê na narrativa. É, de fato, esse jogo do que é dito ― ou
melhor, de como é dito ― aliado às expectativas do destinatário, que funda a autoridade
daquele que comunica.
No Brasil da virada do século XIX para o XX, o discurso da ciência se pretendia o
discurso de autoridade por excelência, na premissa de que seria esse o discurso que embasaria
as formas de lidar com o real. O profissional da ciência, participando de um contexto de
profundas transformações sociais e políticas, via-se diante de uma oportunidade ímpar de
colaborar com ferramentas próprias nessa transformação e, como um sábio dentre os antigos,
evocava sua capacidade de intervenção para constituir-se em autoridade na nova sociedade.
Assim era que o inspetor da IOCS Arrojado Lisboa, em uma conferência na Biblioteca
Nacional, em 1913, iniciava sua palestra:
Em um de seus discursos Renan relata a inquietação de uma sociedade que aguardava a falla de um engenheiro recipiendário. Estavam todos receosos de que o profissional se julgasse na obrigação de produzir uma arenga litteraria. Eu não sei se nutro agora igual temor. O meu é o da possibilidade de exhibir aqui, ante vós, uma importante composição technica [sic].9
8 HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. P. 273. 9 LISBOA, Arrojado. O problema das seccas. In: ANNAES DA BIBLIOTHECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, V. XXXV, Rio de Janeiro: Officinas Graphiacas da Bibliotheca Nacional, 1916. P. 11.
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A IOCS, por sua vez, envolvida no projeto inicial de reconhecer os sertões
cientificamente, foi um dos espaços dentro do Estado brasileiro que absorveram uma nova
elite técnico-científica que surgia. A proeminência do intelectual cientista já mudara de feição
aos olhos da sociedade brasileira desde meados do século XIX. As comissões científicas de
exploração com o patrocínio do Estado avultavam desde o século XIX a sede de reconhecer o
território brasileiro. O olhar do mero viajante estrangeiro era substituído pelo olhar do poder,
que buscava esquadrinhar o país, no intuito último de construir uma nação. O próprio
Imperador Dom Pedro II, nesse período, encetou uma viagem às chamadas “províncias
desconhecidas”, chegando, com seu séquito, até o estado do Sergipe.
Ir ao encontro de espaços desconhecidos com um intuito de identificar laços identitários
que fizesse do Brasil um só povo era uma tarefa que o Estado se propunha como horizonte. O
temor de que um possível desmembramento do território se tornasse realidade por conta do
desconhecimento mútuo dos espaços sertão-cidade era evocado por aqueles que apoiavam um
empreendimento de intervenção nos sertões, tais como o da IOCS. As palavras do inspetor do
órgão, Arrojado Lisboa, consideravam essa hipótese de desmembramento, ao passo que o
mesmo via essa preocupação como algo que impulsionava e corroboravam as ações
intervencionistas sobre os sertões do nordeste do país, colocando-as, também, como parte do
projeto republicano de construção de uma nação:
Ora, senhores, o sentimento da unidade nacional ainda é bastante forte hoje em dia, para impedir qualquer idea germinadora de desmembramento, amanhã talvez não o seja. Uma política se impõe agora, capaz de neutralizar os effeitos da differenciação anthropogeographica, no interesse da integridade política da nação(...). Ela deverá ter por objeto ajuntarem-se nossas grandes divisões physicas, para promover (...) o progresso compatível com cada uma. O problema das secas é, pois, na sua mais alta expressão, o problema mesmo da nossa integridade nacional. Os estadistas beneméritos que, observando a evolução da idea, assignaram o decreto nº 7.619, de 21 de outubro de 1909, tiveram disto a perfeita comprehensão [sic].10
10 LISBOA, Arrojado. Op. Cit. P. 28.
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Fora com esse intuito de conhecimento ― ou, quiçá, mais com esse temor de
desmembramento ― que se iniciariam as viagens da IOCS aos sertões semi-áridos. As
andanças por regiões inóspitas e consideradas retrógradas começariam embasadas num
diagnóstico a priori: o sertão era uma patologia dentro de um país que se queria moderno.
Seria, para os apologistas da IOCS, inadmissível que o país ainda compartilhasse a mesma
nacionalidade com “irmãos” que viviam em um estágio retrógrado de civilização do que se
consumava nas grandes cidades, daí o caráter de missão civilizatória que ganha a IOCS. O
presidente da República, Nilo Peçanha, confirma o caráter de missão do novo órgão,
colocando o empreendimento da IOCS como o último e definitivo no combate às secas:
Organisando, de um modo systhematico, os serviços destinados à obtenção dos dados scientíficos e technicos, que interessam ao problema das sêccas, e executando as obras de utilidade, conveniência e exequiblidade (...) pensa o Governo ter dado ao assumpto a sua verdadeira solução [sic].11
O esforço prometéico dos cientistas do órgão visaria a duas tarefas: afirmar a ciência
como tradutora do real e reafirmar a sua inserção em uma política para as secas. É bem
verdade que, para que um projeto como o da IOCS no Brasil da Primeira República fosse, de
fato, concretizado, tornava-se importante demonstrar-lhes as potencialidades ― e, como tal,
queria-se dizer as vantagens para a prosperidade do país. Nessa empreitada, os cientistas da
IOCS, muitas vezes, tiveram de fazer inúmeros “contorcionismos”, a fim de abarcar seus
olhares naquelas demandas, para que, socialmente, fossem mais bem quistas. Colocar, por
exemplo, a importância de seus estudos como parte importante no desenvolvimento
econômico do país respondia a essa demanda. O geólogo Ralph Sopper confirma esse
direcionamento na apresentação do texto de seu relatório de viagem:
11 BRASIL. Mensagem apresentada ao Congresso Nacional na 2ª sessão da 7ª legislatura pelo presidente da República Nilo Peçanha. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1910. P. 59.
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Deve-se dizer, antes de tudo, que o principal objetivo deste trabalho foi antes econômico do que scientífico. O autor teve em vista colligir úteis materiaes capazes de favorecer a causa do sertanejo, que, anno após anno, vem soffrendo falta de conveniente alimentação e d’água. Votou-se particular attenção ao aspecto da terra, à sua geologia, ao meio prático de torná-la apta a cultura e à possibilidade de obter água em poços. Há vários problemas vivamente interessantes na região, em relação dos quaes, porém, o autor não se pôde deter, problemas que aqui são apenas indicados, mas não discutidos [sic].12
Outro cientista que seguiu a mesma assertiva expositiva em seu estudo foi o geólogo
Horatio Small:
Apresentando este relatório, é necessário dizer que elle visa mais o ponto de vista econômico que o scientífico, o que explica as lacunas existentes quanto a este útimo [...] Comquanto vise mais o ponto de vista econômico, é este relatório uma exposição sumária das diferentes condições geológicas, e bem pode, por isso, servir de referência quando para o futuro se tentarem estudos mais acurados [sic].13
Oriundos do modelo dos geological survey - de acentuado caráter prático de aplicação
do trabalho científico - os cientistas estadunidenses acima citados trouxeram à IOCS a
experiência dos seus países de origem.14 Esse encontro entre abordagens díspares que
priorizavam a economia da região ajudava a formular uma pedra basilar no entendimento do
sertão para o progresso do país: o de que ele era parte também do empreendimento que
buscava a prosperidade econômica da nação. Valiam, portanto, as duras caminhadas pelos
sertões adentro. Não valia mais, no entanto, o recurso da imaginação e sim o da observação
segura de um cientista. Só a observação de um especialista poderia ser levada em conta para
se encetar a resolução do problema das secas. A narrativa sobre os sertões não poderia,
portanto, adentrar em “floreios romanceados”, mas deveria se embasar em metodologias
científicas. Desqualificar o discurso literário era um passo primordial para se refundar um
olhar sobre os sertões. Os médicos Belisário Penna e Artur Neiva, ao percorrerem a região
12 SOPPER, Ralph. Geologia e Suprimento d’água subterrânea no Rio Grande do Norte e Parahyba. Rio de Janeiro: IOCS, 1913. P. 17. 13 SMALL, Horatio L. Op. cit. P. 15. 14 Sobre o modelo dos geological surveys, Cf: DANTES, Maria Amélia M. Espaços da ciência no Brasil (1800-1930). Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999.
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semi-árida, em 1912, assim o fazem, salientando a necessidade de um deslocamento do olhar
romântico para o científico, contrastando o olhar da imaginação e o olhar da ciência e
responsabilizando a imaginação pelo desconhecimento que se tinha, até aquele momento, do
território que observava:
Concorre muito para esse estado de cousas, as falsas informações dos que viajam por essas rejiões, pintando em liguajem florida e imajinosa quadros de intensa poesia da vida bucólica, feliz e farta. Nós, se fôramos poetas, escreveríamos um poema trajico, como a descrição das misérias, das desgraças dos nossos infelizes sertanejos abandonados. A poesia das paisajens e dos panoramas, ficaria apagada pela trajedia, pela desolação e pela miséria dos infelizes habitantes sertanejos, nossos patrícios. Os nossos filhos, que aprendem nas escolas que a vida simples de nossos sertões é cheia de poesia e de encantos, pela saúde de seus habitantes, pela fartura do solo, e generosidade da natureza, ficariam sabendo que nessas rejiões se desdobra mais um quadro infernal, que só poderia ser majistralmente descrito pelo DANTE imortal [sic].15
Essa desqualificação da narrativa romanesca ia de encontro a uma tradição literária
herdeira do século XIX que logrou, por algum tempo, retratar, espacialmente, o país. Quando
os médicos do Instituto Oswaldo Cruz colocavam-se à distância dessa leitura, estavam, de
fato, afirmando um relato que diferia daquele dos romances. A “poesia” e os “encantos” do
sertão desapareceriam e os sertões ganhariam contornos menos “enobrecedores” na análise.
Há de se salientar que os do Instituto Oswaldo Cruz eram, de longe, os mais inclinados
a afirmar a inferioridade racial da população sertaneja. Um fato importante de se frisar,
quando se constata que nos relatórios dos demais cientistas da IOCS ― inclusive os
estrangeiros ― inexiste essa temática racial. Em outro momento, os mesmos médicos
arrematavam suas denúncias:
A nação não tem conciência do verdadeiro estado das zonas flajeladas pelas secas, mesmo os filhos daquelas parajens e que a fortuna guindou ás altas posições políticas, em geral, não tem conhecimento do solo nativo porquanto se criaram nas capitais do Estado ou então do sul do paiz; de qualquer modo a única lembrança que
15 NEIVA, Arthur; PENNA, Belisário. Viajem científica pelo norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauhí e de norte a sul de Goiaz. In: Memória do Instituto Oswaldo Cruz. Tomo VIII. Fascículo II. Rio de Janeiro: IOC, 1916. P. 222.
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persiste é a da meninice e nesta idade, tudo é facilmente portentoso. O ritmo a que obedece as secas acabou por deixar indiferentes os compatriotas distantes; a solidariedade humana facilmente se esbota quando o mal é contínuo e a distância em que vivem as populações flajeladas, só permite interesse sincero, por parte dos próprios conterrâneos [sic].16
Esse jogo de enunciação do outro se sustentava, fundamentalmente, em dois elementos:
o olhar especializado e o discurso de autoridade. Se, por ventura, o primeiro vacilasse, a
autoridade do cientista era buscada em outros que viram e contaram sobre o lugar, ou (e isso
era importante) na retórica argumentativa, através da citação de especialistas estrangeiros. Em
uma Memória que justificava o porquê de se construir um açude em Quixeramobim, sertão do
Ceará, o engenheiro da IOCS Thomaz Pompeu Sobrinho arrematava diversas citações de
exemplos de açudagem pelo mundo ― Espanha, Argélia, Estados Unidos, Peru, Chile, China
― e, ao final, fazia constar uma extensa bibliografia de nada mais, nada menos, do que 39
cientistas estrangeiros e três nacionais, como F. H. Newell (diretor-chefe do Reclamation
Service ― espécie de serviço de irrigação dos Estados Unidos), Charpentier de Cossigny
(cientista francês do séc. XVIII), Senador Pompeu (senador cearense do tempo do Império
com várias obras que versam sobre seca no Ceará, avô de Pompeu Sobrinho), dentre outras
“autoridades” no assunto.17
Ademais, nas descrições que se faziam do lugar sertão, mesmo o olhar da ciência, que
se propunha neutra, ganhava um caráter subjetivo. Os médicos higienistas do Instituto
Oswaldo Cruz, em visita aos sertões, comumente tratavam de expressar um olhar de espanto
diante da natureza, personificando-a, como na passagem em que tentavam construir uma
imagem da natureza:
16 Idem, P. 179. 17 In: Arquivo DNOCS/ 2° Distrito Regional. Acervo de Açude Públicos do Ceará. Pasta 168.2. Açude Quixeramobim. Doc: Memória Justificativa. Memória Justificativa apresentada ao Exmo. Sr. Inspector das Obras Contas as Secas. Existe outra versão desta Memória na pasta 168.1, também referente ao Açude Quixeramobim. Uma versão resumida dessa Memória foi publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará, instituição da qual Pompeu Sobrinho era sócio.
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[...] seca, arida, agreste e desoladora, estende-se até Joazeiro. É um taboleiro enorme, coberto duma vegetação raquítica, em que predominam os cactos. A linha férrea passa muito próximo á serra do Salitre, pedregosa e coberta tão somente de cactos colossais, semelhando mãos com dedos enormes, estendidos para o Céu a implorar a misericórdia divina [sic].18
O cientista, comumente, adentrava na narrativa dos relatórios com expressões de
dúvidas, tais como “parece-me muito com o arenito”19 ou de assumida subjetividade, como “a
meu ver, a explicação do facto de que me occuppo é [...] [sic]”20, o que atestava o caráter
autoral das informações colhidas. No entanto, nem sempre só o caráter autoral autorizava as
assertivas. Era preciso construir a narrativa de forma a colocar-se como fazendo parte de um
restrito grupo de autoridades, de pluralizar os enunciados que se colocavam. Nesse contexto,
era comum, nos textos, a 1ª pessoa do singular ser substituída pela 1ª do plural para dar um
caráter consensual às assertivas (como na expressão “Nosso fim nesse folheto vem a ser o
estudo do phenomeno [sic]”21, com “nosso” querendo dizer um grupo de cientistas, com o
autor colocando-se entre eles), ou, mesmo, pela 3ª do singular, dando-lhe um caráter
impessoal como referência (como na expressão “fizeram-se reconhecimentos visando a
procura de um local adequado para o açude”22).
Embora as memórias e estudos das viagens dos homens da IOCS tratassem de questões
científicas, os cientistas, comumente, não deixavam de expressar seus sinais de estupefação
diante do sertão. Uma possível “neutralidade” era substituída pela assumida subjetividade
fazendo, por isto, aparecer o caráter autoral do relato.
Por diversas vezes, nas narrativas que se propunham objetivas e definidoras do objeto
estudado, se expressavam sinais de indefinição. Quase sempre esses sinais faziam aparecer o
cientista, o sujeito que, insistentemente, tentava se “neutralizar” no texto para corroborar suas
18 NEIVA, Arthur; PENNA, Belisário. Op. Cit. P. 185. 19 SOPPER, Ralph. Op. Cit. P. 19. 20 ZEHNTNER, Léo. Estudo sobre as maniçobas do estado da Bahia em relação ao problema das secas. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. 37. 21 DINIZ, Alberico. Creação de peixes larvópagos nos açudes. Rio de Janeiro: IOCS, 1912. P. 8. 22 WARING, Gerald. Suprimento d’gua no nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: IOCS, 1912. P. 51.
101
assertivas. Um exemplo sintomático dessa operação ambígua na construção do discurso
científico surgia nas palavras de Roderic Crandal, quando este tentava definir a “série
geológica” a qual pertencia o Ceará dentre as por ele conhecidas, onde, por, pelo menos, duas
vezes o indefinível termo “parece” se faz presente:
A ordem da sucessão das camadas que constituem a série Ceará não póde ser dada com segurança. Onde são vistas na Serra de Santa Catharina, um duro arenito quartzitico se apresenta por cima dos schistos argilosos, e na Serra do João do Valle o calcareo forma uma massa lenticular no meio dos schistos. Estes parecem constituir a mais grossa e mais importante parte da série, sendo possível que attinjam a espessura de 1000 metros de espeçura, porém em parte alguma houve opportunidade de medir uma secção. [...] Se os calcareos formam uma camada regular e contínua, ou não, não poude ser determinado, ma parece mais provável que se apresentem num grande número de pequenas massas lenticulares [...] [sic].23
Outros que faziam sobressair nos relatórios as marcas de subjetividade eram os médicos
Adolpho Lutz e Astrogildo Machado, que, quando, de frente ao rio São Francisco,
observavam, estupefatos, a região, salientando um contraste presente na natureza, que
oscilava entre bela e voraz:
Saímos ás cinco da manhã. A temperatura tinha baixado a 16-17º e o ar humido do rio dava a impressão do frio. O aspecto do rio era muito bonito, sendo a vejetação bastante luxuriante como tivemos ocasião de apreciar de perto porque, numa volta difícil, chegamos em contato com o barranco, sendo o tombadilho da proa varrido pelos galhos e seu corrimão demolido [sic].24
Aqui a constatação da força da natureza na região sertaneja desembocava na idéia de
que o atraso que reinava no local era o resultado da ausência de progresso humano. Ser
humano que, segundo os cientistas constatavam, nos sertões se dobrava diante daquelas forças
naturais acarretando todas as implicações negativas que isto resultaria: a falta de educação, a
23 CRANDALL, Roderic. Geographia, geologia, supprimento d’água, transportes e açudagem nos estados orientaes do norte do Brasil. Ceará, Rio Grande do Norte, Parahyba. Rio de Janeiro: Imprensa Ingleza, 1923 (1ª ed. 1910). P. 22. 24 LUTZ, Adolpho; MACHADO, Astrogildo. Viajem pelo rio S. Francisco e por alguns dos seus afluentes entre Pirapora e Joazeiro. In: Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Tomo VII, v. 7, Rio de Janeiro: IOC,1915. P. 23.
102
escassez d’água, as doenças e, mesmo, a pouca fé na solução dos problemas. Quanto ao
último ponto, é revelador o testemunho de Ralph Sopper, que buscava exemplificar seus
diagnósticos contando uma história que ouvira em sua viagem:
É facto positivo que o homem do sertão não é preguiçoso. Em geral, é sóbrio e laborioso; mas, foi subjugado por um sentimento de impotência e abandono diante da natureza; está desanimado de tentar resolver problemas modernos por meio de processos antiquados. Característica foi a resposta de um pequeno, em Bom Conselho, quando lhe perguntaram o que faria quando fosse homem: “ Fica pra Deus determinar”. Essa resposta define o povo por completo. Prive-se o homem da confiança que deposita em si, para se conservar diante de condições adversas, e deixará de agir, fazendo com que sua pátria forçosamente tenha de estacionar. De geração em geração, o povo do sertão vae-se convencendo de que seu destino está inteiramente nas mãos arbitrárias da Providência, e que esforços individuaes podem somente encontrar resultados indifferentes [sic].25
O cientista define o morador do sertão a partir de um relato cujo olhar é definido por
seus pré-conceitos. A necessidade de afirmar um traço positivo do sertanejo (“não é
preguiçoso”) contrastava com a constatação negativa de uma resignação do mesmo diante da
força da natureza (“subjugado por um sentimento de impotência e abandono diante da
natureza”). Esse contraste era um traço importante do que o cientista chamava de “povo”
sertanejo e foi um traço característico do discurso sobre o sertão no período. A oscilação do
discurso sobre o sertanejo correspondia à constatação, pelos cientistas da IOCS, dos limites
enunciativos em que se encontrava o morador do sertão – ou seja: entre a “civilização” e a
“natureza”. Munido dessa constatação, observava-se que a instabilidade climática do sertão se
expressava na instabilidade do povo que vivia entregue a essa natureza. Sendo assim, essa
flutuação de caracteres definidores desse “povo” era a expressão do próprio meio em que
vivia o sertanejo. “Povo” que o próprio cientista buscou definir, bem como achou necessário
delimitar o espaço o qual estava denominando de “sertão”, em seu relatório:
25 SOPPER, Ralph. Geologia e suprimento d’água subterrânea em Sergipe e nordeste da Bahia. Rio de Janeiro: IOCS, 1914 . P. 2.
103
Comprehende-se que por povo me refiro à grande maioria, o soldado raso, por assim dizer, o qual não dispõe de meios de viajar e que geralmente não lê, nem escreve. E fallando de área, refiro-me ao território em conjuncto. As condições econômicas de que trato não se referem com igual intensidade aos terrenos que ficam ao lado da costa, e particularmente às cidades maiores [sic].26
Small afirmava sua visão de uma maneira mais direta, definindo o que entendia por
“sertanejo”:
Covém dizer que as condições atrazadas da população a que nos referimos só se entendem com a classe pobre. Encontram-se nas grandes cidades e fazendas homens instruídos, mas não é a estes que há grande necessidade de auxiliar, é ao sertanejo, homem de pouca ou nenhuma instrução, cuja vida se prende a um pequeno tracto de terra que mal pode ser chamado de fazenda e sobre o qual toda a nossa attenção deve ser concentrada, porque elle constitue grande parte da população do nordeste do Brazil [sic].27
O cientista tratava de expor alguns pontos de caráter social do sertão. Não condenava
essa divisão social, mas a constatava. O ponto a transformar não era a estrutura sócio-
econômica dos sertões. Fundamental seria dar condições para a prosperidade do espaço na sua
estrutura física e de afirmar a “classe pobre” como parte do esforço modernizador. Por isso,
tende, muitas vezes, a absolver o sertanejo da condenação de regenerado ― comum em teses
racialistas ― para indicar nele uma sede por um tipo de conhecimento que não teria acesso:
Pensam muito que este povo não quer aprender, nem interessa-se por aquilo que se está fazendo em seu benefício, mas não concordo com elles. Ouvi muitas vezes falar nas pragas que atacavam as suas culturas e nas difficuldades com que lutava para preparar os productos da lavoura para a venda, e sempre affirmava que se houvesse um meio de remediar a sua situação, elle teria muita satisfação em aprendê-lo [sic].28
Diferentemente desse discurso, os pareceres dos médicos do Instituto Oswaldo Cruz,
não se acanhavam em proclamar a inferioridade da raça sertaneja, condenando qualquer tipo
de ação civilizatória para aquela sociedade que, segundo diziam, era, por si, “inaproveitável”:
26 Idem. 27 SMALL, Horatio. Op. Cit. P. 69. 28 Idem. P. 79.
104
A raça atual dessa rejião é inhaproveitável. É habitual dizer-se, e nós mesmos já temos cometido esse pecado, que o povo sertanejo é indolente e sem iniciativa. A verdade porém é outra. A ausência de esforço e iniciativa dessa pobre gente, é proveniente do abandono em que vive, e da incapacidade física e intelectual, resultante de moléstias deprimentes e aniquiladoras [...] [sic].29
Essa distorção dentro de um discurso uníssono - que pairava especialmente sobre a
força da população sertaneja – fatalmente causaria certo mal-estar entre aqueles que
comandavam a IOCS. De fato, os relatórios produzidos pelos médicos do Instituto Oswaldo
Cruz não seriam publicados dentro das séries que o órgão fez publicar. Pensamos que a
condenação do sertanejo pela leitura racialista colocaria em xeque o próprio projeto da IOCS,
pois acarretaria desistir de qualquer projeto civilizatório. Mostrá-los como degenerados
implicaria desistir de acreditar na mudança dos sertões a partir da “civilização” dos sertanejos.
Por sua vez, o inspetor Arrojado Lisboa entendia que o meio ajudava a formar o caráter
de um povo, sendo, no sertão, o fato de a população ser “inculta” um elemento que o ajudava
a classificar a população sertaneja como sendo aquela que estaria em um patamar
evolucionista retrógrado. Afinal, para Lisboa, seria o abandono do espaço sertanejo pelas
forças do progresso que os impeliria a ficar a mercê de uma natureza instável. Atestando que
“o typo representativo do homem da região das seccas é o sertanejo cearense [sic]”, Lisboa
lançava impressões bastante subjetivas para definir o caráter do sertanejo, numa tentativa de
afirmar a relação homem-natureza, com esta influenciando nas características daquele:
Sobriedade, perseverança, atilado espírito de observação, engenho ou astúcia e actividade, são attributos que o cearense possue em alto grau. Resultam da terra semi-árida e também a condição pastoril. Perseverante para aguardar a irregularidade das chuvas, sóbrio, econômico, por necessidade, observador e analytico, porque a caatinga secca e rala o habituou a perscrutar o gado e os movimentos à distância O sertanejo, como todos os filhos do deserto, é astucioso não só por necessidade de defesa do meio hostil, como principalmente para prevenir-se contra os régulos que o meio e o regimen colonial implantaram e ainda perduram no nosso interior [sic].30
29 NEIVA, Arthur; PENNA, Belisário. Op. Cit. P. 221. 30 LISBOA, Arrojado. Op. Cit. P. 24.
105
O engenheiro, na sua argumentação, buscava, inclusive, citar exemplos estrangeiros, o
que ajudava na retórica e, sem dúvida, mostrava sua erudição para que seus diagnósticos
fossem referendados pelos seus pares. Para afirmar o caráter retrógrado do sertanejo, lançava
mão de autoridades, tais como Euclides da Cunha. Não à toa, essas leituras se aproximam
tanto da de “Os sertões” que esta foi, por diversas vezes, citada como referência nos relatórios
da IOCS. Seu olhar especializado ajudava a afirmar as observações científicas. Ademais,
evocar a consagrada obra euclidiana era torná-la referência basilar no que se propunha ― o
que creditava a IOCS para o amplo público leigo conhecedor de “Os sertões”. Vale a citação
de Arrojado Lisboa:
Na ordem moral, uma notável conseqüência da aridez do clima, a Arábia, o comprova, é o nascimento do fanatismo e da intolerância. A região semi-árida fornece exemplos notabilíssimos dessa influência do meio sobre uma população ainda inculta. Por ignorarmos de facto a sua origem e a sua força, engastamos na nossa história a memorável tragédia que foi relatada em um livro immortal. O fanatismo de Canudos se explica pelo effeito psychológico da aridez do meio. A observação demonstra que o ar puro e secco estimula as faculdades do homem, mas, se o meio árido e monótono não lhes pode fornecer o trabalho necessário, o espírito torna-se então contemplativo, assegura Mrs. Sample, e a actividade intellectual fica restricta ou improdutiva. Só a imaginação se expande livremente [sic].31
A definição do “outro” por oposição ao “eu” era um artifício de retórica fundamental
para que se compreendesse o que se propunha mostrar. É certo que taxar o outro com cargas
de negatividades extremas não seria, de fato, um bom artifício, pois excluiria, por
consequência, a possibilidade de construção de uma nação forte e, por conseguinte, romperia
profundamente os laços que ligavam sertão-cidade em uma só nação, fadando o projeto da
IOCS, que era justamente aproximar esses dois “mundos”. A saída enunciativa era: uma vez
diagnosticado elementos negativos aos sertões, imediatamente os cientistas tratavam de
elencar uma série de adjetivações e possíveis potencialidades que pudessem afirmar uma ação
transformadora no espaço sertanejo. Mais importante do que buscar no outro ― o sertão e o
31 Idem. P. 26.
106
sertanejo ― elementos que os afastassem e os diferenciasse de si, os homens da IOCS
buscaram ― concomitantemente ao elenco de negatividades que corroborassem uma
intervenção ― inventariar as possibilidades e as positividades do homem daquele espaço,
para afirmar suas presenças como arautos na transformação do espaço que, afinal, era tarefa
que deveria ser parte da nação moderna que se propunham construir. O “outro” era o “eu”,
porém mais atrasado. Daí certa tensão que perpassa pelos relatórios produzidos e uma retórica
da alteridade que se fundava dentro de uma dicotomia possível em que o outro se apresenta ao
mesmo tempo como igual e diferente. A inversão do “outro”, por si só, não conseguiria
abarcar dentro de um discurso um plano que se propunha transformador como o da IOCS. Ao
contrário, recorrer à simples operação de inversão colocaria em xeque não só a ação do órgão,
pois resultaria na condenação definitiva do sertão, como acarretaria fadar mesmo a
possibilidade de construir-se uma nação brasileira, já que resolver o problema dos sertões era
considerado um pré-requisito dessa tarefa.
Quando a inversão aparecia na narrativa ― e, aqui, não se trata de negá-la, mas de
analisar seu aparecimento a partir de uma operação específica ―, vinha ela, comumente,
acompanhada de potencialidades que se arrolavam, expressando uma construção tensa que
respondia à necessidade de afirmar o concurso da ciência no projeto nacional.
Por estas razões, a narrativa repousava numa descrição em que o sertão semi-árido era,
comumente, definido como um lugar de futuro promissor, e, como tal, uma região cujas
riquezas poderiam contribuir para a prosperidade futura da nação que se almejava construir
embora se constatasse seu atraso. Isso deve ser entendido, inclusive, como um recurso para a
afirmação de espaços de atuação da ciência no poder. Ora se há de existir um futuro para os
sertões o projeto científico da IOCS estava justificado. Nesse sentido, a contribuição da IOCS
para o futuro da nação era, não raro, salientada, afirmando que os estudos visariam à
transformação e não só o conhecimento dos sertões:
107
Tendo despendido dois annos no estudo das condições geológicas geraes do interior dos Estados do Ceará, Piauhy, Pernambuco e Bahia, interesso-me naturalmente por esta parte do Brasil e tenho esperança de que os trabalhos que apresentei sejam de interesse e valor para o futuro [sic].32
O geólogo Ralph Sopper atestava que a observação das condições do sertão seria de
fundamental importância para a missão que a IOCS propunha, pois:
É fácil cahir no erro de, com fito de desprezo, dizer que a região é atrazada e seu povo indolente. Deve-se, comtudo, lembrar que o sul do Brasil, particularmente o Rio de Janeiro e o estado de S.Paulo, teve as vantagens das idéas, do capital, e do braço adestrado dos estrangeiros. O nordeste nada disto teve [sic].33
Percebe-se que a própria construção de uma imagem do sertão nos relatórios da IOCS
respondia a uma necessidade de afirmação do saber como detentor de um poder de
transformar. Implicitamente, a narrativa articulava temáticas, imagens e referenciais que iam
construindo o lugar da ciência no projeto intervencionista do Estado brasileiro nos sertões.
Importante foi, portanto, elencar diferenças entre espaços e analisar os sertões a partir
de uma ausência de civilização e não numa condenação racialista. Era dentro desse esforço
que Ralph Sopper salientava as disparidades que separavam sertões- cidades, medindo os
espaços que os distanciavam pela referência do capital e do trabalho. A temporalidade distinta
que separava certas regiões do nordeste do país era medida pelas idéias que fundavam o
progresso sob o par trabalho-capital. Atraso resultado de um abandono por parte do poder. E,
por consequência, abandono que, se continuasse a existir, fadaria o sonho de se construir a
nação, pois, como registravam os médicos Belisário Penna e Arthur Neiva nos sertões:
Raro o indivíduo que sabe o que é Brasil. Piauí é uma terra, Ceará outra terra, Pernambuco outra assim os demais estados. O governo é, para esses párias, um homem que manda na gente, e a existência desse governo conhecem-na porque esse homem manda todos os anos cobrar-lhes os dízimos(impostos). Perguntados se essas
32 SMALL, Horatio. Op. Cit. P. 11. 33 SOPPER, Ralph. Op.Cit. P. 2.
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terras (Piauí, Ceará, Pernambuco etc.) não estão ligadas entre si, constituindo uma nação, um país, dizem que não entendem isso. Nós éramos para eles gringos, lordaços (estrangeiros fidalgos). A única bandeira que conhecem é a do Divino.34
O mesmo registro de abandono se percebe na declaração de Ralph Sopper, mas um
abandono que, paradoxalmente, heroificava o sertanejo:
Os estados da Parahyba e Rio Grande do Norte são muito pouco habitados, e a luta pela vida, deste povo, durante os últimos 200 anos, constitue uma da páginas épicas da América do Sul. Expellido de seus lares de tempos em tempos, forçado a fugir à fome e à sede, elle tem voltado sempre, e no sertão ainda se acha, supportando indizíveis privações, e esperando, com quase tácita paciência, a vinda de melhores tempos [sic].35
A simbiose formulada entre homem-natureza trazia consigo tanto a imagem do homem
confundido com esta natureza, quanto a personificação da natureza, humanizando-a. Ralph
Sopper, por exemplo, observava, quase que com espanto, o abandono da própria terra pelo
homem, numa passagem em que afirma que “a terra permanece solitária, sendo conhecida
como uma picada, um mato inextricado e feroz”.36 Assim, o cientista personificava a natureza
dando a ela, também, o estatuto de sujeito no sertão. Era, pois, a “ferocidade” da natureza que
fazia com que o homem se resignasse, fazendo com que a terra permanecesse “solitária”. Essa
mesma natureza, por sua vez, tanto agiria sobre o espaço quanto sobre o homem,
determinando suas ações. Essa personificação era uma constante na construção narrativa dos
sertões desde o séc. XIX. Nas narrativas de viajantes, tais como Saint-Hilaire e Henry Koster,
a natureza já ganhava um estatuto de persona. Já no séc. XX há de se pensar numa
aproximação entre a leitura euclidiana dos sertões e os estudos produzidos pela IOCS.
Euclides da Cunha, em “Os sertões”, por exemplo, construiu durante todo o primeiro capítulo
um personagem fundamental para a história que iria contar: a Terra. Ademais, esse
34 NEIVA, Arthur; PENNA, Belisário. Op. Cit. P. 191. 35 SOPPER, Ralph. Geologia e supprimento d’água subterrânea no Rio Grande do Norte e Parahyba. Rio de Janeiro: Impresa Inglesa, 2ª ed, 1923 (1ª ed. 1913). P. 18. 36 Idem. P. 51.
109
determinismo geográfico era um método analítico bastante usado pelos cientistas daquele
período que consumiam obras de geógrafos, tais como o inglês Thomas Buckle e o alemão
Friedrich Ratzel, que tratavam de afirmar a influência do meio sobre o homem.
A postura arrivista dos cientistas nos sertões lançava mão dos argumentos de Ratzel ―
qual seja, que o concurso do homem e da natureza ajudaria na resolução futura dos problemas
dos sertões semi-áridos ― com o intuito de dar ao plano da IOCS credibilidade. Se os sertões
podiam ser identificados como um espaço em que homem e natureza conviviam em constante
instabilidade, expressão dos próprios caracteres climáticos instáveis ― e esse era um
diagnóstico de, por exemplo, Euclides da Cunha ―, o hidrólogo Gerald Waring atestava essa
dependência do homem em relação a natureza na luta pela sobrevivência nos sertões, citando
Euclides e outros considerados autoridades quando o assunto era o sertão:
Antes de tudo, trata-se de socorrrer uma população pastoril que, desde muito, occupa a terra e vive em renhida lucta pela existência, durante os períodos de escassez d’água, sem ter recursos para construir obras capazes de fazer face ás seccas. Nos logares onde a água não dá para resistir a dependência da quantidade e regularidade das chuvas. Soffre muitas vezes pelo rigor de cheias, que destroem os pastos e as roças e, muitas vezes, pelo das seccas que impedem o crescimento das pastagens e o plantio dos roçados. Melhor apreciará tal dependência quem ler algumas narrativas já publicadas – Destacam-se entre elas as seguintes: Os Sertões, por Euclydes da Cunha (1901) e Seccas Contra a Secca, por Phelippe Guerra e Theophilo Guerra [sic].37
Essa mescla da natureza com o homem ― ou da natureza sujeitando esse mesmo
homem ― era o ponto de partida pelo qual se, comumente, classificava o estágio de evolução
de determinada sociedade naquele contexto, de maneira tal que o pensamento social
produzido no Brasil naquele período consumia suas análises embasado neste horizonte
analítico evolucionista. Por esse viés, a geografia da região era um elemento determinante na
organização social. Para o inspetor da IOCS Arrojado Lisboa, confessadamente adepto da
antropogeografia do alemão Friedrich Ratzel, não haveria progresso se não se levasse em
37 WARING, Gerald. Supprimento d’água no nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: IOCS, 1912. P. 4.
110
conta esse fator, pois acreditava ele que “os fatores geographicos são o elemento constante na
formação do Estado, o homem retarda ou accelera a sua adaptação, isto é, a sua marcha
[sic]”.38 Para tanto, a transformação do espaço sertanejo, para Lisboa, deveria se fundar numa
ação coordenada homem-natureza no combate às secas, sendo o sertanejo parte dessa natureza
virgem, onde o progresso não havia tocado suas mãos transformadoras. Nesse contexto,
tratava-se, para Lisboa, de civilizar a população sertaneja, de fazer com que o conhecimento
que se corporificava nas cidades ― a “civilização” ― se expandisse e alcançasse os sertões.
As secas corroboravam a distância entre sertão “bárbaro” e cidade “civilizada”. O sertão
era o espaço onde o homem se dobrava diante da natureza em oposição às cidades, lócus do
triunfo do homem sobre o meio. No entanto, se, nas cidades, se salientava o triunfo do homem
diante dessa natureza, no sertão o homem era cantado pela sua capacidade de resistência. Os
sertanejos eram muitas vezes adjetivados como hábeis e resistentes. Há de se salientar que a
construção dessa imagem sofria fluxos e refluxos nos discursos, expressando, em muitos
momentos, a tensão descritiva que oscilava entre olhares de condenação e de admiração. O
geólogo Ralph Sopper exemplifica bem essa tendência numa passagem em que condena a
falta de critério do sertanejo, pois o que “o de mais impressionador posso me referir no meu
trabalho(...) é o facto de ter o povo escolhido deliberadamente a peior terra para viver nella”39,
ao passo que, em outro momento, o mesmo geólogo enaltecia o sertanejo, adjetivando-o
como um forte que é abandonado, exaltando-o de maneira tal que faz lembrar as mais trágicas
páginas de “Os sertões”. Vale a citação:
O sertanejo perdeu o espírito de iniciativa, perdeu quase toda a ambição, e anda ‘morrendo em pé’. Quando, porém, um homem de meia edade pode recordar sua própria existência, em que por três vezes elle abandona a casa, a terra, o gado, e fugiu á sua verdadeira vida, quem lhe há de censurar a perda da iniciativa e a convicção de que os esforços humanos são vãos? E também quem há de censurar o
38 LISBOA,Arrojado. Op. Cit. P. 11. 39 SOPPER, Ralph H. Geologia e suprimento d’água subterrânea no Rio Grande do Norte e Paraíba. Rio de Janeiro: IOCS, 1913. P. 80.
111
capitalista que recusa applicar dinheiro em semelhante terra? Tal é o problema do sertão [sic].40
Em outro momento, Sopper descreve a terra que observa, atentando para a sua riqueza e
beleza que, contrasta com a escassez humana:
A região acima referida é prodigiosamente rica, e póde-se tornar muito productiva com excepção de uns poucos logares expostos, onde sólidas Lages de pedra calcárea affloram, toda área de pedra calcarea é coberta por denso matto e um cerrado de copadas árvores. Não sei de melhor indicação do que essa para revelar a riqueza do solo. Nos poucos pontos onde a terra tem sido cultivada evidentemente tudo dá bem. Para exemplo, temos as visinhanças do Riacho Grande e da Fonte Vertentes, umas três léguas ao noroeste de Mossoró. Pode-se citar também uma fazenda chamada carrapateira 9 kilometros, mais ou menos, ao nordeste da serra Mossoró. Em ambas essas paragens, havia bonitas colheitas de algodão, favas, milho, fumo, mandioca, melões e frutas onde existisse água. Chove ordinariamente bastante para proporcionar boas colheitas; a terra é commumente plana e será fácil de lavrar; mas nos mezes seccos não há uma gota d’água, e finalmente há a terrível secca periódica. Assim, esta grande região permanece desolada, inhabitada e deserta [sic].41
Abandonada, hostil, forte, rica, inóspita: adjetivos que conformavam uma geografia
imaginativa para o espaço sertanejo e ajudavam a formular uma percepção sobre o sertão. Às
múltiplas características positivas do espaço juntavam-se seus múltiplos problemas a serem
resolvidos. Resolução onde vários elementos eram considerados, pois “Assim encarada a
secca é um phenômeno muito vasto, de natureza tanto physica como econômica e social
[sic]”42, mas o significante “social” com um significado bem definido:
A ordem social fica profundamente affectada. A caminho da cidade já os famintos vinham derrocando as leis. O retirante na estrada não respeita a propriedade. O proprietário não a pode defender com efficácia e, afinal, desesperado, também avoluma o êxodo [sic].43
Da leitura romântica do meio passava-se à leitura romantizada do homem, ele mesmo
em íntima relação com o meio. As narrativas científicas que tanto buscavam afastar-se da
40 Idem. P. 85. 41 Idem. P. 79-80. 42 LISBOA, Arrojado. Op. Cit. P. 12. 43 Idem. P. 13.
112
literatura aproximam-se do estilo literário desta. Percebe-se uma espécie de desorientação de
olhares sobre o espaço. O botânico Léo Zehtner, num estudo de campo publicado pela IOCS,
em dezembro de 1914, quando viajou pelos sertões baianos, assim expressou suas
observações sobre os trabalhos dos maniçobeiros, numa passagem em que tenta descrever o
movimento destes trabalhadores:
Segui os maniçobeiros nas suas picadas na Serra de Tiririca durante muitos dias e posso afirmar que a circulação cotidiana já é por si só bastante trabalhosa, sem fallar dos incommodos occasionados por certos insectos, como as mutucas, que sugam o sangue, e, principalmente, os mundurys, que se agarram aos cabelos e se obstinam por entrar no nariz, nos ouvidos e nos olhos do homem que se arrisca nestes inhospitos recantos. Quem não tem o costume de uma forte dose de exercícios physicos, não é capaz de seguir, dia a dia, o maniçobeiro trabalhoso nos seus afazeres. Às vezes, os maniçobeiros se dão ao trabalho de fazer picadas: “mergulham” no carrasco, arrastando-se no chão e passando por baixo dos arbustos, troncos e galhos mortos, para reaparecerem ao pé das maniçobas e lhes tirarem o látex [sic].44
Como etnógrafos, os cientistas descrevem os “estranhos” hábitos sertanejos, como o
fato de que “muito pouco se canta por aquelas paragens e quando alguém o faz, é viajante ou
tropeiro que freqüenta outras terras menos tristes [sic]”.45 Tristeza que se deslocava do
homem para a natureza e desta para o homem, pois, com o advento da chuva, assim se
expressava num diário de viagem o mesmo cientista ao chegar em Juazeiro, no sertão baiano:
O tempo, todo dia, foi chuvoso e, com o vento contínuo, tornou-se pouco agradável. Depois de tantos dias de tempo bom tivemos, realmente, uma recepção bastante fria [...] Dia 27 de junho – O tempo hoje foi um pouco melhor, mas ainda bastante triste.46
Curiosamente, os cientistas, munidos de um saber que se queria objetivo, se colocavam
numa posição de estupefação diante do espaço, fazendo-se aparecer na narrativa. Quando
menos se esperava o aparecimento do narrador, numa narrativa que prezava por ser objetiva, é
44 ZEHNTNER, Léo. Estudo sobre as maniçobas do Estado da Bahia, em relação ao problema das seccas. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. 28-29. 45 NEIVA, Arthur; PENNA, Belisário. Op. Cit. P. 177. 46 LUTZ, Adolpho; MACHADO, Astrogildo. Op. Cit. P. 42-43.
113
que vacilavam os cientistas em digressões e as impressões subjetivas do autor se mostravam.
A “tristeza” do sertão, citada na passagem acima, expressa, de maneira sintomática, o caráter
autoral da narrativa. De fato, em vários momentos, os cientistas se colocavam, sejam em
expressões de caráter profundamente subjetivo, como a citada, seja sem conseguir entender de
todo o fenômeno a que assistiam. Assim foi que os médicos Belisário Penna e Arthur Neiva
observavam, sem conseguir entender, o caráter bondoso do sertanejo que, no entanto,
repentinamente, se transformava em rudeza:
A índole dos habitantes é pacífica, contudo certos fatos, deixam transparecer um fundo de crueldade inexplicável. [...] A criminalidade deve ser elevada; a maioria dos criminosos facilmente foje, pois em geral, os crimes são cometidos premeditadamente e surpreendem a vítima quase traiçoeiramente.47
Território sem lei, triste, de criminosos: eis alguns dos problemas do sertão que para
parte daqueles cientistas deveria a IOCS resolver. Todos esses “malefícios” para Arrojado
Lisboa só seria resolvido se antes se resolvesse “o mais grave de todos os problemas: o da
educação”.48 Nesse sentido, o fosso que separava o homem sertanejo da civilização seria a
instrução. Assim foi que, mesmo atentando para a hospitalidade do sertanejo, o tom de
denúncia voltava-se para a ignorância desse mesmo sertanejo, como atestava o geólogo
Horatio Small, em sua visita aos sertões do Piauí e do Ceará:
[...] Como sempre, na maior parte do sertão do nordeste do Brasil, o povo, em geral, se bem que ignorante, é muito hospitaleiro, facilitando, de todos os modos, a missão do explorador. Quando falo de ignorância, não generaliso a todos; refiro-me às classes pobres que formam a grande maioria da população, pois, além dos fazendeiros ricos, há, nas cidades, negociantes inteligentes e educados.(...). O problema da melhoria das condições do povo e da transformação desta região em zona produtiva, é, portanto, puramente uma questão de instrucção [sic].49
47 Idem. P. 172-173. 48 Idem. P. 27. 49SMALL, Horatio. Geologia e suprimento d’água no Piauhy e parte do Ceará. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. 158.
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A superação do atraso do sertão brasileiro, assim entedia-se, seria dada pela educação,
pois, negando as teses racialistas tão em voga no período, os estudiosos a serviço da IOCS ―
excetuando, sem dúvida, em algumas passagens, os médicos higienistas do Instituto Oswaldo
Cruz ― comungavam com um ponto que tratavam de deixar bem claro: a irretocável força do
sertanejo e a sua disposição para o trabalho. Mesmo no diário da expedição comandada pelos
médicos Arthur Neiva e Belisário Penna, se via, por exemplo, desenhado um quadro bastante
enobrecedor desse sertanejo:
Apesar de rústicos e analfabetos quase todos [...], serviram-nos com dedicação, concorrendo efizcamente para a marcha excepcional que realizamos. Eles eram os primeiros que se levantavam, geralmente as 4 e meia da madrugada, ás vezes mais cedo e os últimos que se acomodavam quando chegávamos aos pouzos. Realizaram todo o percurso a pé, utilizando-se algumas vezes dos animais adestros. Em resistência, duvidamos que haja raça igual á do sertanejo do nordeste. Dê-se-lhe carne do sol, farinha e rapadura e ele caminhará, á pé, sem desfalecimento, mezes a fio, por quasquer rejiões [sic].50
Os cientistas estrangeiros não destoavam desse diagnóstico e comungavam com o
mesmo olhar. Em 1910, o geólogo da IOCS Roderic Crandall empreende uma das primeiras
viagens do novo órgão nos sertões brasileiros. Faz observações sobre a nomenclatura dos
nortistas, avultando o fato de serem chamados de “cearenses”, e surpreende-se com o que
encontra e observa:
Os nortistas, todos conhecidos como cearenses, são notáveis por sua energia, habilidade, faculdade de resistência e actividade, quando há alguma coisa a fazer. São realmente gente de muito melhor qualidade do que são comummente considerados. Embora rudes e pouco civilizados, é verdade, em todos elles encontra-se o estofo de que se fazem os bons e úteis cidadãos para o paiz [sic].51
Como exemplifica Roderic Crandall, a tensão entre positividades e negatividades no
olhar lançado ao sertão era constante. Ao morador do sertão eram reservadas tanto críticas
50 NEIVA, Arthur; PENNA, Belisário. Op. Cit. P. 220. 51 CRANDALL, Roderic. Geographia, geologia, suprimento d’água, transportes e açudagem nos estados orientaes do norte do Brasil. Rio de Janeiro: IOCS, 1910. P. 78.
115
pela sua pouca civilização quanto exaltações por sua capacidade de resistência. A não
civilidade do sertanejo, muitas vezes, implicava um fator positivo, pois atestava que era parte
de uma sociedade que apenas precisava ser orientada, instruída. A imagem de um espaço
idílico com um povo ainda puro e de fácil organização para o trabalho de construção da nação
ganhava um conteúdo positivo, pois “não se conhecem greves, não há socialistas nem, muito
menos, anarquistas, os agricultores nem de política se occupam [sic]”.52
Nesse contexto, foi ganhando força um discurso que traduzia o atraso do espaço
sertanejo como ausência de educação civilizadora. Em 1912, o geólogo Ralph Sopper, em
viagem pelos sertões de Sergipe e da Bahia, afirmava sobre as secas:
O problema da água não é o único a ser encontrado no sertão. Há, também, o problema do transporte, da alimentação, da higyene e da cooperação; e todas estas coisas dependem da educação. Por educação o autor não entende tanto a cultura, como saber ler, escrever, contar [...]. Se no Brasil a educação ocupasse um lugar de primeira no espírito público, em vez de quarto ou quinto lugar, a transformação dos moldes das escolas e do progresso de certas partes do país seria depressa sensível. Existe alguma corporação grande no Brasil e particularmente no nordeste, estudando e procurando constantemente methodos aperfeiçoados de instrucção para o bem público? Consideram 150$000 ou 200$000 por mez como salário sufficiente para pagar os trabalhos do homem ou da mulher incumbidos da educação dos filhos do povo – os brasileiros de amanhã [sic].53
A constatação de uma incivilidade como resultado da falta de uma educação ampla
permeava os relatórios de estudos científicos da IOCS. Ademais, o termo “educação” era,
comumente, usado para designar diferentes concepções. Os homens da IOCS se dividiam
entre aqueles que viam na ampla educação o objetivo principal e outros que a entendiam
como educação estritamente técnica, no trato com a terra. Sobre este último ponto há de se
salientar que a ideologia do país com uma “vocação agrária”, tão em voga naquele contexto,
era retomada nos discursos das elites dirigentes do nordeste do país, como já demonstramos,
52 Engenheiro C. Wauters, citado por Pompeu Sobrinho na Memória Justificativa do Açude Quixeramobim em 1912. In: Arquivo DNOCS. Acervo de Açude Públicos do Ceará. Pasta 168.2. Açude Quixeramobim. Doc: Memória Justificativa. Memória Justificativa apresentada ao Exmo. Sr. Inspector das Obras Contas as Secas. 53 SOPPER, Ralph. Geologia e suprimento d’água subterrânea em Sergipe e no nordeste da Bahia. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. 89-92.
116
que reclamavam para si esse dito, assegurando que a indústria agrícola da região também
prosperaria se houvesse um combate sistemático às secas. A IOCS, afinada com este discurso,
criou, em 1913, sob a orientação do botânico Albeto Lofgren, um Horto Florestal em
Juazeiro, no sertão da Bahia, e outro em Quixadá, no sertão do Ceará, para fomentar o cultivo
de diversas plantas na região e, dentro do Horto de Quixadá, uma escola que tinha como
objetivo fundamental administrar “as noções mais exactas e convenientes acerca das culturas
agrárias até mesmo rudimentos de agrimensura e zootechnia [sic]”.54 Portanto, uma escola
voltada para o ensino prático da agricultura. A educação no sertão se pautaria pela educação
no trato da terra, na educação agrícola. Os cientistas se colocavam na tarefa de esclarecer a
sociedade, embasados nos métodos da “ciência moderna”, numa investida que os aproxima de
um ideal iluminista do homem de saber. Divulgar os seus saberes e, especialmente, as técnicas
modernas de trato com a natureza para uma população que ainda não os conhecia era um meio
de elevá-los à dita “civilização moderna”:
Destas observações e do acima exposto, deprehende-se que as condições naturaes talvez não sejam tão desfavoráveis como admittido até o presente, e que o desenvolvimento econômico do Estado depende, sobretudo, da divulgação lata entre a população das acquisições da sciência moderna em matéria agrícola e econômica, afim de iniciar medidas preventivas e outras, por meio do ensino e do exemplo pelas demonstrações experimentaes e práticas [sic].55
Essa insistente fé no poder da educação foi matéria de grande mobilização nos relatórios
da IOCS no período da administração de Arrojado Lisboa. Nas entrelinhas, o cientista
colocava-se como o intelectual apto a educar a sociedade com suas ferramentas modernas.
Também colocar-se na tarefa de “civilizar” era uma postura de autoafirmação diante da
sociedade e resultava num insistente chamado aos poderes políticos para que ele pudesse,
enfim, subsidiar essa tarefa. Sintomática dessa postura é uma passagem no relatório de
Horatio Small, em que se retornava ao tema da instrução, de maneira a reclamar o concurso 54 IOCS. Hortos Florestaes – de Juazeiro, na Bahia, e do Quixadá, no Ceará. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. 38. 55 LOFGREN, A. Op. Cit. P. 29.
117
da política do Estado brasileiro para com as populações sertanejas. Para Small, o papel
civilizador do Estado era, antes de tudo, um dever daqueles que detêm o poder nesse Estado,
pois:
Nessa região a difficuldade que se encontra, quando se pretende melhorar as condições, reside não só em dar á população os meios indispensáveis, mas também em ensinar-lhe o emprego que se lhes deve dar quando forem entregues ao gozo público. O sertanejo desta parte do paiz nunca teve a oportunidade de observar os progressos do mundo e as vantagens e economias que se podem obter com o emprego dos modernos methodos. A sua vida restringiu-se, durante algumas gerações, á pequena parte do país em que vivia, e sempre seguia a trilha já pisada pelos seus antepassados. Não é, pois, de admirar que adopte tardiamente os methodos mais modernos ou que o Governo, querendo melhorar suas condições, tenha de enfrentar muitos problemas diffíceis [sic].56
Esses objetivos também eram compactuados pelo inspetor-chefe Arrojado Lisboa
quando afirmava a ausência de educação como o mais grave problema para o atraso dos
sertões:
Só ella, unicamente ella, permitirá que o povo goze de sã hygiene, aprenda e aperfeiçoe a irrigação, promova a indústria compatível com a ambiência, adopte a fenação e use o silo, não abandone o gado, melhore-lhe a raça, facilite-lhe a água não contaminada, desenvolva as culturas intensivas nas grandes várzeas irrigadas, abra por si poços, faça os pequenos açudes, comprehenda emfim a importância desse grande esforço que está sendo empregado em prol do seu bem estar [sic].57
De acordo com as diretrizes traçadas pelos homens da IOCS, a educação deveria
responder à demanda econômica da região, ou seja, à agricultura. Era esta que alavancaria o
desenvolvimento dos sertões, pois se incorporaria a agricultura sertaneja ao projeto de “nação
agrícola” apregoada pelos apologistas de tal ideologia no país. O ensino agrícola seria o
primeiro passo para a educação dos braços aptos para o trabalho.
Seria a instrução agrícola a tarefa primordial na modernização dos sertões, como
também afirmava o geólogo da IOCS Horatio Small:
56 SMALL, Horatio. Op. Cit. P. 78. 57 LISBOA, Arrojado. Op. Cit. P. 27.
118
A população de parte do nordeste do Brazil precisa de muito auxílio e por auxílio entende-se não sómente as coisas materiaes como os poços e açudes pra suppril-a de água, mas também a instrucção. A Inspectoria de Obras Contra as Seccas está provendo aquella região dos primeiro; mas além disso, há grande campo de proteção em outros ramos. O plano que o Governo Federal está executando será amplamente recompensado em poucos annos sem a menor duvida; mas, se se desse a instrucção, os resultados viriam muito mais depressa [sic].58
A nação, por essa visão, encontraria nos sertões os indivíduos mais aptos para a tarefa
de sua construção, pois que, ali, reinava um “vácuo” de educação em contraste com os
arroubos de malefícios do habitante citadino. Fazia-se dos sertões uma tabula rasa, um espaço
do vazio, cujo loteamento caberia ao progresso preencher. Progresso este que o programa da
IOCS elegia como prioridade. Os sertões sendo descobertos aos olhos do progresso.
Descortinar esse espaço para um mundo que se abria para a cultura escrita ― como era o
mundo citadino ― era tarefa premente. Os desenhos de um lugar alhures da cidade se
construíam dentro de uma narrativa científica onde, não raro, adentravam elementos da
imaginação dos cientistas.
O movimento de mostrar o sertanejo ao público letrado obedecia a dois movimentos
distintos: salientava, por um lado, a sua capacidade física (aliada a uma natureza hostil) e, por
outro, seu estado retrógrado diante do “moderno”, o que lhe imprimia um caráter de
“incivilidade” diante da sociedade citadina.
O hidrólogo estadunidense Gerald Waring, que visitou a região durante quatro meses a
serviço da IOCS, publicou, nos Estados Unidos, em 1912, parte das suas observações sobre os
sertões brasileiros, em que ladeado pelas observações estritamente científicas, há, em muitas
digressões, o olhar do viajante estupefato, numa visão que chega a aproximar-se dos
romancistas do séc. XIX e da própria literatura euclidiana.
O povo do interior é, na maior parte, de descendência negra, misturada com os índios nativos e com os portugueses, e, como regra geral, não são trabalhadores enérgicos. É corretamente afirmado, até um certo ponto, que sua condição de atraso
58 SMALL, Horatio. Op. Cit. P. 67-68.
119
se deve à preguiça e à ignorância; porém, na maior parte da região a vida para eles é uma luta contra as condições usualmente adversas de uma região árida, ampliadas por períodos de fome devido a prolongadas secas. De maneira nenhuma, desinteressadas quanto as coisas melhores, e quando as condições naturais o permitem, eles melhoram as chances de aprimoramento, tem que ser distintamente compreeendido que não se trata de um povo incapaz, mas sim dependente de cuidados do governo para sua existência.59
Especialmente ao lançar o olhar para o sertanejo, Waring salienta, de maneira
sintomática, um contraste que, senão diagnosticado apenas por ele, ajudou a formar um
imaginário para a região não só entre letrados nacionais, mas também entre estrangeiros. O
espaço ia sendo construído como “lugar” de acordo com a experiência social daqueles que
viveram tal projeto.
Essa necessidade de descrição do meio nos relatórios era considerada necessária para
aqueles cientistas, uma vez que os sertões eram considerados terras desconhecidas. Na prática,
foram esses cientistas que deram um rosto para a região e, uma vez que estes representavam a
ciência, suas observações foram tomadas como verdades irrefutáveis e, portanto, aptas para
tornarem-se lugares-comuns nas discussões posteriores sobre os sertões. Seus diagnósticos
tinham um poder de verdade, um olhar de autoridade, pois corroborados pelos seus saberes.
Gestava-se um pensamento social sobre aquele espaço e construíam-se, assim, as balizas que
pudessem ajudar a fundamentar as opiniões sobre a região. As 41 publicações da IOCS no
período de 1909-1914 eram comercializadas nas grandes capitais, o que ajudava a sociabilizar
tais olhares sobre os sertões. Publicações cujo teor literário e didático procuravam fazer com
que o leitores pudessem “ver” o lugar, daí tamanha fartura de fotografias que, muitas vezes,
respondiam por, pelo menos, 1/3 do conteúdo do relatório de estudos publicados.
De fato, esses diagnósticos criavam certa predisposição ao lançar-se o olhar para os
sujeitos do local. Uma forma de ver o mundo que buscava racionalizar as ações dentro dos
cânones preestabelecidos, de modo que as ações que destoassem dessas visões eram colocadas
59 WARING, G.A. Irrigation in Northeastern Brazil. San Francisco: From Western Engineering, 1912. P. 9-10.
120
de lado. Uma vez que a IOCS se propunha ao combate às secas, só a seus membros era dada a
autoridade para corroborar ou anular tais representações do espaço.
Ademais, como dito, socialmente, o olhar da ciência buscava deter um poder de
enunciação sobre o objeto, o que conferia-lhe a autoridade para se pronunciar e, sendo a IOCS
um órgão formado fundamentalmente por cientistas, isso lhe conferia o crédito para poder
falar sobre. Era a partir de um discurso que enfatizava o poder transformador da ciência sobre
a sociedade que se podia afirmar as práticas da IOCS nos sertões e chegar à conclusões tais
como a do botânico Alberto Lofgren:
O que, porém, é fora de dúvida é que os effeitos destas seccas, quer normaes, quer anormaes, poderão, em largo âmbito, ser muito attenuados pelo engenho humano e, talvez, com o tempo, inteiramente eliminados. É para esse fim que devem convergir os estudos e os esforços, de preferência [sic].60
Do contexto ao texto, os olhares se encontravam amarrados e construídos por uma
instituição que nascia ― assim se pensava ― apta a ser socialmente aceita como neutra: a
ciência. Foi nela que se fundamentou um olhar sobre os espaços e foi nela que se construiu
uma parte considerável do imaginário das secas.
60 LOFGREN, Alberto. Notas Botânicas (Ceará). Rio de Janeiro: IOCS, 1910. P. 8.
121
2.3 O TEMPO DAS ÁGUAS: O LÍQUIDO DO PROGRESSO
Uma imagem é comumente imposta ao sertão do nordeste do Brasil: a falta d’água.
Desvencilhar a leitura dos sertões dessa constatação importaria derrubar um lugar-comum, o
que provocaria uma sensação de desconforto, senão de frustração. Quando da criação da
IOCS, a discussão acerca de qual seriam as reais causas dos problemas nos sertões semi-
áridos ainda não haviam sido de todo definidas. Haviam teses ― a maioria delas, aliás ― que
defendiam a escassez d’água como principal problema dos sertões do nordeste do país; outras
defendiam serem as manchas solares, algumas apontavam ser a ausência de vegetais e existia,
ainda, aquelas que indicavam a falta de educação do sertanejo, dentre outros diagnósticos.61
Inegável foi, pois, que, embora se salientasse que o problema dos sertões tinha um
caráter múltiplo, a questão que envolvia a água fora sempre aquela em que se mobilizaram
mais defensores. Em 1909, quando a IOCS começou a financiar as viagens aos sertões,
evocava-se a necessidade de observá-los como forma de atestar ou negar o fator água como
problema dos sertões:
O público ledor destes paiz está hoje bem familiarizado com as condições de irrigação no Egypto, Índia e nos Estados Unidos, provavelmente muito mais do que com as condições actuaes dos estados septentrionaes do seu próprio paiz [sic].62
61 Esses diagnósticos plurais foram elencados nas discussões travadas, quando do período da seca de 1877, no Instituto Politécnico. As opiniões dos vários cientistas sobre o caso das “secas do norte” podem ser conferidas na edição fac-símile do estudo empreendido por Thomaz Pompeu de Souza Brasil sobre participação do Ceará, na exposição de Chicago, em 1893. Cf : Documentos: Revista do Arquivo Público do Ceará. Série Ciência e Tecnologia, nº 1. Fortaleza: Arquivo Público do Ceará, 2005. Do mesmo autor, existem duas publicações, uma anterior à seca de 1859 e outra de 1877, em que o autor discute a influência do clima e das matas na configuração de secas no Ceará: BRASIL, Thomaz Pompeu de Souza. O clima e as seccas do Ceará. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1877. BRASIL, Thomaz Pompeu de Souza. Memória sobre a conservação das matas, e arboricultura como meio de melhorar o clima da província do Ceará. Ed. fac-sim. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997b. [1ª ed. 1859]. Guilherme Capanema defendia as manchas solares como causadoras da seca, tese contestada mais tarde pelo médico Rodolpho Teófilo. Cf: CAPANEMA, Guilherme Schurch. Estudos sobre seca. Fortaleza: Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, Museu do Ceará, 2006. 62 CRANDALL, Roderic. Op. Cit. P. 79.
122
Se as imagens dos sertões semi-áridos se justapunham e, por vezes, até se contradiziam,
o papel central dado à água como problema maior do sertão (influenciando, inclusive, no
caráter social do sertanejo) foi uma tônica na administração de Arrojado Lisboa.
O geólogo da IOCS Ralph Sopper assim salientava: “O autor não hesita em dizer que a
causa principal da maior parte das perturbações no norte vem a ser a água”.63 Tese esta que
alavancava, por conseguinte, uma série de imagens do sertanejo a partir do seu contato com a
água. Ademais, demarcar o “problema dos sertões” dentro desses pressupostos aproximava-se
da leitura feita historicamente pelas elites locais de que a falta d’água, com suas
consequências nefastas para a agricultura da região, acarretariam as secas na área sertaneja.
Progressivamente, as fronteiras semânticas do termo “secas” foram se definindo a partir de
um olhar científico que corroborava a idéia da falta d’água na região. Esta temática seria
desenvolvida posteriormente, sendo, inclusive, tomada como um índice para a delimitação das
fronteiras em que iria intervir a IOCS. A fórmula era simples: onde faltasse a água no sertão a
IOCS poderia intervir.
Assim foi que, quando Arrojado Lisboa afirmou que “conforme o sertão, diferentes os
estados de civilização”, o engenheiro tratou de demonstrar essas diferenças a partir do trato do
sertanejo com a água. O Cariri ― sertão sul do Ceará ― o inspetor classificava como sendo
uma região adiantada, ressaltando o “espírito de cooperação” do sertanejo no usufruto da
água, o que dispensava, inclusive, a regulação por meio de uma autoridade:
Não se póde negar que existe verdadeira tendência para o espírito de cooperação no homem do Nordeste. Elle se manifesta francamente nas serra, na distribuição d’água. A região dos Carirys está nas fraldas da Chapado do Araripe, onde brotam de falhas de rocha, fontes poderosas. Nesse singular altiplano, um uso tradicional, que regula a distribuição d´água para a irrigação, é rigorosamente mantido sem o prestigio de autoridade alguma [sic].64
63 SOPPER, Ralph. Op. Cit. P. 86. 64 LISBOA, Arrojado. Op. Cit. P. 25.
123
Diferenciações que não só colocavam dicotomicamente pares, tais como sertão-cidade,
em lugares opostos, mas, também, a partir de uma classificação no interior do sertão,
hierarquizavam o nível de civilização dos lugares através do trato com a água. A água
tornava-se um índice de classificação da civilidade no sertão.
A partir dessas representações relacionais “homem-água”, se construía a idéia de que
um projeto de irrigação e açudagem na região era a matéria primordial para a modernização
dos sertões semi-áridos e, na esteira disso, se definiam os caracteres definidores do termo
“sertão”. A premissa de que a água era fator de civilização em lugares onde o homem teve de
lutar contra elementos naturais era evocada para aproximar práticas implementadas alhures:
“A água em todos os paízes necessitados de irrigação, tanto no Egypto, como na Índia ou na
China, foi um factor de política e civilização. Aqui também será assim [sic]”. 65 O valor de
“exemplo” dado por outros países aparecia como um fator a mais que corroborava a água
como “factor de política e civilização[sic]”. O engenheiro da IOCS Thomaz Pompeu Sobrinho
arrematava desta forma, em estudo para a IOCS datado de 1912, depois de citar vários
exemplos ao redor do mundo acerca da irrigação das terras: “A questão, portanto resume-se
em, imitando os povos adeantados na civilização, proporcionar a água necessária ao
desenvolvimento da vegetação [sic]”, pois era de “água em abundância que precisamos”.66
Dentre os relatos de viagens científicas da IOCS, o tema da “escassez de água” foi o que
conformou as mais profundas convergências. Da escassez de água ao mau uso da mesma,
tudo girava ao redor do problema do precioso líquido. Assim como em boa parte das
representações do sertanejo, a tensão de opiniões também se fazia presente quando o tema era
a água. Ademais, a escassez não era enfatizada tanto pela falta de chuvas, mas pela
65 Idem. P. 26. 66 In: Arquivo DNOCS/ 2° Distrito Regional. Acervo de Açude Públicos do Ceará. Pasta 168.2. Açude Quixeramobim. Doc: Memória Justificativa. Memória Justificativa apresentada ao Exmo. Sr. Inspector das Obras Contas as Secas.
124
irregularidade destas, pelo tempo da natureza.. O hidrólogo Gerald Waring expressa essa
idéia:
A opinião generalisada é a de que essa região soffre principalmente pela falta de chuvas; mas, o exame de poucos dados pluviométricos até agora registrados indica que o mal procede da irregularidade destas. No sentido de obviar esse mal, o trabalho a ser executado é a conservação e regular distribuição da água que existe presentemente [sic].67
Fazer com que as águas ficassem armazenadas no sertão era, para Waring, portanto, a
saída para se resolver as secas. As obras da IOCS, neste sentido, embasadas na necessidade de
armazenar a água, deveriam prezar pela açudagem, com o intuito de dar a certos locais nos
sertões a água suficiente para subsidiar a organização da agricultura na região. Construir
reservatórios de água nos locais onde se pudesse florescer a indústria agrícola era encarado
como a medida prioritária a ser estabelecida. Daí a ênfase de Arrojado Lisboa na construção
de açudes, mobilizando o maior número de trabalhadores nas obras, sob o comando de
engenheiros profissionais, o que absorveria, como consequência, o sertanejo no plano de
modernização dos sertões. Para Ralph Sopper, seria essa relação entre água e modernização
que orientaria a IOCS no desenvolvimento econômico da região, pois “qualquer producto de
mercado dará em qualquer estação do anno, se houver água [sic]” e, como efeito,
impulsionaria o progresso da região enterrando de vez os problemas causados pelas secas.
A fé nessa crença fez com que se encetasse um plano de açudagem na região que
beneficiasse a agricultura. A certeza de que desenvolvimento econômico seria o carro-chefe
para a prosperidade da região das secas foi um tópico que mais pontos de convergência se
construiu dentro do ideal do novo órgão. A água era encarada como o elemento fundamental
para o progresso da região e como cicerone deste progresso naquelas paragens. As
implicações de um plano que primasse pela alocação de água nos sertões semi-áridos
67 WARING, Gerald. Suppimento dágua no nordeste do Brasil. Rio de Janeiro: IOCS, 1912. P. 4-5.
125
responderia às demandas de construção de uma nacionalidade tanto pelo viés do econômico
quanto numa noção mais “moralizante”, uma vez que o progresso era encarado, também,
como fator moral, como se depreende das palavras do engenheiro da IOCS Thomaz Pompeu
Sobrinho:
Assim, pois fica estabelecido que, em caso de uma secca calamitosa, cerca de cento e cinco mil pessoas encontrarão refúgio ás margens do açude ou da bacia de irrigação. [...] Teria feito muito mais ainda: salvaria á morte milhares de brazileiros. [...] De facto funcionando como um optimo regulador, manteria magnífico estado de equilíbrio as condições financeiras de uma vasta zona que, por seu mesmo effeito, seria densamente povoada. A riqueza pública alli garantida contra as eventualidades de um clima vario, cresceria sempre. Estabelercer-se-ia um bem desconhecido até então, que elevaria o nível intellectual e moral da população [sic].68
Quando do surgimento da IOCS, em 1909, o inspetor Arrojado Lisboa cercou-se de
diversos cientistas, proclamando que “O problema das seccas é, portanto, um problema
múltiplo [sic]”. Embora salientasse essa multiplicidade de fatores, as análises de Arrojado
Lisboa afinavam ainda mais a unanimidade com relação à água como “causadora das secas”.
Mas não era a ausência dela que causariam as secas e, sim, a sua escassez. A irregularidade é
que seria preocupante: “Nos estados mais flagellados, do Ceará à Parahyba, nunca houve anno
sem chuva: ellas são apenas irregulares e sempre escassas. Na Bahia, menos flagellada, há
muito menos chuva [sic]”.69 Lisboa buscava quebrar, mais uma vez, aquilo que, para ele,
representava um olhar ainda romantizado e redutor sobre as secas:
Repitamos: o caracter das seccas ou dos invernos chuvosos é a irregularidade, sempre a irregularidade. Catalogar as seccas, ommitindo as grandes invernadas, concluir sem exame detalhado das circumstancias no tempo e no espaço, é obra de romancista [sic].70
68 Memória Justificativa do açude público “Poço dos Paus”, na cidade de S. Matheus, sertão do Ceará, apresentada ao sub-inspetor da IOCS José Ayres de Souza, datada de 30 de junho de 1912. In: IOCS. Açudes no Ceará. Estreito – Riacho do Sangue – Poço dos Paus. Rio de Janeiro: IOCS, 1912. P.57. Pompeu Sobrinho assumira a chefia da 1ª seção da IOCS em Fortaleza desde 1911, depois da saída do engenheiro Carlos Pinto de Almeida do cargo. 69 Idem. P.16. 70 Idem. P.17.
126
Em conferência na Biblioteca Nacional, em 1913, em que tratou de demonstrar as secas
sob vários vieses, Lisboa salientou a finalidade fundamental a se resolver: a retenção de água
no local. E, assim, chegava à seguinte conclusão:
A solução naturalmente indicada para a retenção d’água é a açudagem. Guardar a água cahida no inverno para distribuil-a na secca; guardal-a nos annos chuvosos para distribuíll-a nos escassos, que raramente são geraes, raramente são contínuos, se excepcionalmente chegam aqui, como nas Índias, a reproduzir-se por três annos sucessivos. Mas a açudagem depende das condições locaes e só ellas decidirão pela grande, média, ou pequena açudagem [sic]. 71
A solução da açudagem como um meio de prevenir as secas, por sua vez, correspondia a
um ideário que se estabeleceu desde o séc. XIX. Retomá-la como medida a ser encetada
afirmava um grande número de estudos pré-IOCS que viam na necessidade de retenção
d’água o meio mais eficaz de resolver o problema dos sertões da seca. Sabido é que a
hegemonia das obras de açudagem na IOCS colocou os demais pontos de vista sobre o
problema das secas em posição secundária. A água ― ou melhor, a escassez dela ― era
considerada o propulsor de todas as mazelas advindas com as secas. Os sertões eram
encarados como o oposto das cidades litorâneas, onde a estabilidade do meio dava as
condições para o desenvolvimento do país. Onde o tempo da natureza era regulado pelo
tempo do homem. A diferenciação espacial era considerada o resultado de um afastamento
temporal, medido, nas cidades, pelo tempo do homem e, nos sertões, pelo tempo da natureza,
mais especificamente pelo tempo das águas. Mesmo no interior do “nordeste” do país essa
diferenciação tinha fundamento para um cientista como Ralph Sopper, pois, na orla marítima
de Sergipe, por exemplo, o cientista afirmava que “Não há a falta d’água que o pleno sertão
soffre, e a população densa [sic]”.72
71 LISBOA, Arrojado. Op. Cit. P. 20-21. 72 SOPPER, Ralph. Geologia e suprimento d’água subterrânea em Sergipe e no nordeste da Bahia. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. 85.
127
Algumas vezes, mesmo quando a análise retornava para o sertão, o diagnóstico da falta
d’água como problema era relativizado, expressando, nas entrelinhas dos relatórios
científicos, um problema que ultrapassava o mero caráter natural da escassez do líquido, mas
adentrava na constatação de uma diferenciação social nos sertões:
Há actualmente alguma utilidade nas cacimbas superficiaes, e provavelmente haverá sempre necessidade de suas águas, mas como taes cacimbas só podem servir a um ou dois “fazendeiros”, ou quando muito a meia dúzia deles não deve caber na alçada do governo federal abril-as, pois seu custo não é excessivo a quem necessita de uma cacimba pode, por si próprio, abril-a [sic].73
Ralph Sopper tratava, no entanto, ainda, de afirmar que “quanto ao desenvolvimento do
sertão [...] depende elle, na sua opinião, de um bom número de causas além da água [sic]”,
para, logo depois, arrematar:
Em conclusão, o autor não hesita em dizer que a causa principal da maior parte das perturbações no norte vem a ser a água. Há muito que o governo sabe disso. Mas o que não sabe é que o estabelecer-se suprimento d’água depende, acima de tudo, do próprio povo do sertão, venham de onde vierem o dinheiro e os engenheiros.74
Tendo em vista esta constatação, o cientista da IOCS fazia necessário afirmar o
concurso de uma ciência nesse empreendimento, pois “poços dessa natureza não deviam,
comtudo, ser emprehendidos sem a direcção de um geólogo capaz, do contrário poder-se-ia
perder muito tempo e dinheiro [sic]”.75
As arestas que delimitavam quais seriam os problemas fundamentais das secas se
desdobravam em torno do problema da água, ao mesmo tempo em que afirmavam o papel do
cientista na sua resolução. Os cientistas da IOCS trabalhariam sob esse direcionamento, de tal
forma que era impensável falar do novo órgão sem salientar suas obras de açudagem ― que
73 CRANDAL, Roderic. Op. Cit. P. 36. 74 SOPPER, Ralph. Geologia e suprimento d’água subterrânea no Rio Grande do Norte e Parahyba. Rio de Janeiro: IOCS, 1913. P. 86. 75 CRANDALL, Roderic. Op. Cit. P. 37.
128
se sobressaíam enormemente nos sertões, naquele período, com o advento do órgão. A tônica
dos discursos era que a água daria as condições para a produção agrícola, o que acarretaria
riquezas para a região, pois “no que se refere à solução específica do problema da água [...] o
que se visa agora não é uma exportação em larga escala, porém produzir para o consumo
local”.76 Foi essa premissa da ativação da indústria agrícola local que motivou os projetos de
açudagem dentro da IOCS e que, por consequência, objetivavam dar trabalho para o
sertanejo.77
Essa conformação em torno da ideia de escassez d’água fez com que os serviços da
IOCS, num primeiro momento, priorizassem quaisquer obras que objetivassem reter o líquido
na região, fosse através de poços ou de açudagem. Mesmo o botânico Alberto Lofgren
atestava esse intuito, quando tratava de defender o cultivo de novas culturas na região, que,
com “a construção de grandes açudes, o Governo já dispõe do elemento principal para o
início, porque é ao pé destes açudes que devem ser estabelecidos os primeiros campos de
experiência e demonstração”.78
Como consequência, as construções das obras de açudagem, segundo o regulamento da
IOCS, se conformaram em dois tipos: açudes públicos (construídos diretamente pelo órgão,
que poderia lançar editais para contratar empreiteiras especializadas para fazê-lo, ficando a
IOCS responsável, no entanto, pela fiscalização destas obras) e açudes particulares
(construídos por indivíduos ou sindicatos agrícolas que pudessem arcar com as despesas das
obras, sendo que, ao fim delas, receberiam como prêmio do Estado 50% do que fora gasto nas
obras do açude construído).
76 Idem. P. 90. 77 Tão fortemente os discursos se impregnavam de tal ideologia que, em 1911, surgiu um projeto na Câmara dos Deputados, de autoria do deputado potiguar Eloy de Souza, que pretendeu mudar a denominação da IOCS para Inspetoria de Irrigação, ligando-a diretamente ao Ministério da Agricultura. Cf: Souza, Eloy. O calvário das secas. Natal: Fundação José Augusto, 1983. (1ª ed. 1938). 78 LOFGREN, Alberto. Op. Cit. P. 8.
129
A açudagem particular se baseava na crença de que seria através da iniciativa individual
que se lançariam as bases do progresso. Tal ideologia da proteção do Estado à iniciativa
individual norteou o trabalho de vários pensadores sociais no período, tais como Alberto
Torres e Aarão Reis, futuro inspetor de obras contra as secas. Sendo assim, era embasado
nessa premissa que os grandes fazendeiros da região pediam o auxílio da IOCS para estudar o
local onde se propunham construir um açude. No Rio Grande do Norte, no município de
Flores, só em 1911 a IOCS estudou dezesseis locais diferentes requeridos por fazendeiros
locais, sendo que só para certo Laurentino Theodoro da Cruz foram encetados três estudos nas
suas fazendas.79 As “Memórias Justificativas” dessas obras não destoavam quando a questão
era o desenvolvimento agrícola ou pecuarista da região. No município de Sant’Anna dos
Mattos, no Rio Grande do Norte, os estudos para a construção de açude nas terras do
fazendeiro Manoel Pereira de Medeiros era assim justificado:
A zona onde está localisado o açude, sobre ser uma das mais seccas do Estado, é muito habitada e n’ella todo o trabalho de açudagem se ajusta plenamente. Além da canna e algodão, fazem-se ahi as culturas habituaes do sertão [sic]. 80
Na fazenda denominada “Lameiro”, propriedade de José Ivo, no município de Caetité
(BA), o engenheiro responsável pelo estudo justificava a construção de um açude ali por ser
“um importante centro de criação, cujas pastagens servem de engorda para o gado de diversos
fazendeiros”.81
Os açudes públicos, por sua vez, podiam ser requeridos pelas autoridades locais à IOCS
mediante a justificativa de que a obra beneficiaria a região. Nestes pedidos, o chefe local ―
ou chefes ― se pronunciava sobre o assunto, buscando o convencimento do inspetor da
IOCS. Como num abaixo-assinado de Villa da Palma, sertão do Ceará, onde um grupo de 79 Cf: IOCS. Açudes particulares na 2ª secção: Rio Grande do Norte e Parahyba. Rio de Janeiro: IOCS, 1912. P. 88-92. 80 Idem. P. 11. 81 IOCS. Açudes particulares. Ceará, Rio Grande do Norte, Parahyba, Alagoas e Bahia. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. 78.
130
moradores locais pedia a construção em nome do “povo” do município, clamando pelo
“amor” do inspetor da IOCS em 1912, o cearense José Ayres de Souza:
Ex mo Sr. Doutor Ayres de Souza M.D. Director Geral dos serviços contra as seccas dos Estados do Norte da República Os abaixo assignados, munícipes da Villa Palma, vêem muito respeitosamnete perante S. Exª, e confiados no vosso acendrado amor a esta terra, terra querida de vosso berço – o Ceará – pedir-vos encarecidamente um grande favor para este município, é que providenciais no sentido de ser iniciado e levado a termo e trabalho o açude ‘da Volta’ [...] O POVO deste município representado pelos abaixo assignados muito confia no grande patriotismo e grandeza da alma de V. Exª pelo que desde já se confessa eternamente agradecido. Villa da Palma, 16 de maio de 1913. Jerônimo Emeliano de Aguiar, intendente municipal Antonio Francisco de Souza, Presidente da Câmara Leopoldino Lindolpho de Aguiar, Viriador Vigário José de Andrade Custódio Carneiro de Albuquerque, Supplente do Delegado em exercício Joaquim Antônio, delegado de polícia Roberto Ximenes de Albuquerque, 1º suplente de juiz substituto em exercício Raymundo Silvério, escrivão da colecteria José Pessoa (manuscrito não legível) Francisco Enéas Aragão, 3° suplente de delegacia de Pulisça. Leonardo Telles Cavalcanti, Secretário da Câmara Joaquim Fernando, vereador da câmara Francisco Joaquim de Albuquerque, viriador Joaquim Silvério de Aguiar, adjunto ao promotor de justiça José Manuel de Araújo Lopes, trabalhador do serviço público João Joaquim D. Albuquerque, 1º suplente do delegado de Pulisça [sic]82
A propaganda agrícola também representava, como se depreende dos relatórios, uma
das pautas fundamentais para a absorção desse “povo” ao projeto modernizador. Instruir os
moradores do sertão no seu trato com a água e as plantas ― e com a natureza, de uma
maneira geral ― foi uma demanda que a IOCS tratou de colocar em ação. Em Quixadá, a
propaganda agrícola se estabeleceria pela instalação, sob a responsabilidade do engenheiro
agrônomo Alfredo Benna, chefe de culturas do horto botâncio instalado pela IOCS, da Escola
Popular de Agricultura e pela criação, em 1912, de um jornal intitulado Lavrador Cearense.
82 In: Arquivo DNOCS. Acervo de Açudes Públicos do Ceará. Pasta 218.2. Açude Várzea da Volta. Doc: Abaixo-assinado. Ex.mo Sr. Doutor Ayres de Souza, M.D. Director Geral dos serviços contra as seccas dos Estados do Norte da República.
131
A instalação de hortos botânicos pela Inspetoria em 1911 veio confirmar a pretensão agrícola
que marcava o projeto da IOCS. Modernizar a agricultura era tarefa premente e o botânico da
IOCS, o sueco Alberto Lofgren, criou dois hortos: um em Quixadá, no sertão do Ceará, e
outro em Juazeiro, no sertão da Bahia. O encarregado do horto de Juazeiro, o médico Léo
Zehntner, estabelecia que os hortos se prestariam ao “fomento da cultura de árvores florestaes
e, concomitantemente, á propaganda, pelos meios mais práticos, dos serviços de agricultura e
lavoura [sic]”. O objetivo desses empreendimentos era, afinal, ir “ampliando mais o círculo
dos seus intuitos e a área da sua acção [sic]”, o que conduziria “ao cultivo das terras semi-
áridas, aplicando, para melhor êxito delle, os modernos systemas de cultura daquele gênero
[sic]”.83
Esse trato com a natureza ― ou uma forma diferente de lidar com ela ― era matéria
de profunda perturbação para os cientistas a serviço da IOCS. Como os médicos Arthur Neiva
e Belisário Penna notavam, os sertanejos tinham arraigado tão diferentes maneiras de lidar
com a água, que, mesmo ela estando suja ― como assim atestavam os mesmos médicos ― a
tratavam de maneira preciosa, sendo “inútil lembrar os perigos de tal promiscuidade, pois é
crença arraigada que ‘na água nada pega’”.84 Os mesmos médicos expressaram suas
preocupações com a água da região em vários momentos de suas memórias. Eles
diagnosticaram o sertão das secas como sendo um local de doentes, que, em grande parte,
contraíam moléstias pelo mau estado da água na região:
A água barrenta tinha cor de charuto escuro. Ficamos verdadeiramente aterrados quando nos informaram os moradores do logar, que era aquela água que tínhamos para beber e para todos os usos e que era muito boa. Felizmente conseguimos de um dos moradores, que nos fornecesse para beber a água duma cacimba particular, a única que havia então aberta. Essa era menos
83 IOCS. Hortos florestaes (do Joazeiro, na Bahia, e do Quixadá, no Ceará). Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. 12. 84 NEIVA, Arthur; PENNA, Belisário. Viajem científica pelo Norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauhí e de norte a sul de Goiaz. In: Memória do Instituto Oswaldo Cruz. Tomo VIII. Fascículo II. Rio de Janeiro: IOC, 1916. P. 166.
132
barrenta, tinha a cor de charuto claro, e embora escura e lijeiramente salgada, bebemol-a com sofreguidão e prazer, tão sequiosos estávamos [sic].”85
Essa preocupação com o estado e a existência da água se expressou em vários
momentos dos estudos. A forma como o sertanejo estava lidando com o líquido era matéria de
preocupação constante para os médicos, de onde se pode atestar, pelas observações dos
mesmos médicos acima citados, que a água era encarada com uma importância, inclusive,
moralizante no plano da IOCS, sendo o mau uso dela adjetivada como “promiscuidade”. Vê-
se o médico adentrar numa descrição dos costumes do sertanejo para afirmar suas assertivas:
Nas fazendas, em geral, o líquido é fornecido pelos açudes; os habitantes da vila de Parnágua se abastecem da lagoa do mesmo nome ou, o que é mais comum, de cacimbas cavadas em determinados lugares. Em Caracol a água existente para todos os misteres procede de lagoa raza; procurando os habitantes utilizal-a de uma das marjens para lavajens de roupas, abeberar os animais, emquanto a outra fica para a população beber. Nem sempre,porém, é este cuidado tomado; podemos verificar em grande número de localidades, no único deposito d’água existente, a separação por uma cerca de madeira, ficando aparte interna reservada para os moradores e a parte externa para os outros usos. Logo adiante de Petrolina começa-se a observar esta pratica. A separação, como facilmente se compreende, é perfeitamente teórica e de fato o que se dá é o rejime da aguada comum para homens e animais; é inútil lembrar os perigos de tal promiscuidade pois, é crença arraigada, que “na água nada pega” [sic].86
Essas digressões nos relatórios científicos eram comuns para salientar costumes rústicos
que entravariam o projeto de modernização do Estado nos sertões. De um lado, compreendia-
se que o problema não seria tanto a escassez d’água, mas o mau uso desta, acarretando
doenças na população.87 Por outro lado, afirmava-se a ausência d’água como fator
preponderante nos problemas dos sertões. Sopper salientava esse viés quando afirmava que “o
suprimento dágua nesta região é, ao mesmo tempo, o problema mais importante e mais diffícil
85 Idem. P. 187. 86 Ibidem. P. 166. 87 Mais tarde, embasados em viagens como essa, promovida pela IOCS, o Instituto Oswaldo Cruz iria encabeçar a campanha higienista pelo Brasil, salientando ser o país “Um imenso hospital”. Cf: MAIO, Marcos C.; SANTOS, Ricardo V. (Orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, CCBB, 1996.
133
que se tem de enfrentar [sic]”.88 Problema não só higiênico, mas estético: “O habito de usar
água do rio para beber é certamente deplorável, tanto pelo lado estético como pelo lado
hijiênico. Até agora é difícil de abandoná-la, porque, se não falta completamente outra água,
esta, quando existe, muitas vezes não é de boa qualidade ou menos salobra [sic]”.89
A confirmação dessa preocupação com a água implicava adentrar numa linha que
colocava a IOCS como um primeiro passo no sentido de impulsionar a produção de riquezas
na região. A água ganhava características de propulsor estético, físico ― pois seria a água
suja o principal fator das doenças que definhavam fisicamente a população sertaneja ― e
econômico ―, pois a água tinha a potencialidade de efetivar os sertões como centro produtor
de riquezas agrícolas através da açudagem. Esta última proposição remonta a uma ideologia
do país da indústria agrícola, comum no período. O Brasil se incluía no mercado internacional
como um país exportador de matérias-primas e, para muitos intelectuais do período, como
Alberto Torres e Oliveira Viana, com uma suposta “vocação agrícola”. Seria a indústria
agrícola o horizonte para a produção de riquezas no país. Nos estados do norte não seria
diferente, e é esse objetivo que o geólogo da IOCS Horatio Small afirmava peremptoriamente
no início do seu estudo: “É ao desenvolvimento dos recursos agrícolas aqui que se deve dar
maior atenção. A riqueza mineral será tratada mais adiante, bastando dizer, agora, que os
recursos agrícolas são muito mais importantes”.90
Ao focalizar a agricultura como o ponto forte da economia na região das secas,
conduzia-se a um plano que favorecia primordialmente a execução de um projeto de irrigação
das terras. A água era, notadamente, evocada como o elemento que traria progresso à região.
Para Ralph Sopper, essa relação entre água e modernização orientaria a IOCS no sentido de
88 SOPPER, Ralph. Geologia e suprimento d’água subterrânea em Sergipe e no nordeste da Bahia. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. 48. 89 LUTZ, Adolpho; MACHADO, Astrogildo. Op. Cit. P.7. 90 SMALL, Horatio L. Geologia e suprimento d’água subterrânea no Piauhy e parte do Ceará. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. 159.
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estabelecer a açudagem na região como a primeira ação a ser efetivada pelo órgão, pois
“qualquer producto de mercado dará em qualquer estação do anno, se houver água [sic]”.91
Roderic Crandall, inclusive, salientava a fertilidade do solo sertanejo com o advento das
chuvas:
É simplesmente espantoso observar-se a fertilidade prodigiosa deste solo sertanejo, que a primeira vista parece completamente estéril, mas que com pouca e bem distribuída chuva produz com extraordinária abundância como se verifica com o preço dos cereaes, que em annos regulares não tem quase cotação e em geral pouca oscilação, porque si não há chuvas sufficientes e regularmente distribuídas aqui pelo alto sertão as há em outras regiões donde nos vem cereaes em abundância como por exemplo no extenso vale do Cariry, região fertilíssima, verdadeiro celeiro não só do Ceará como também dos sertões de Pernambuco [...] [sic].92
E, de fato, foi embasado nessas considerações científicas que a IOCS assegurou um
amplo plano de açudagem na região, deslocando todos os seus esforços para encetar medidas
que salientassem esse plano, desde a perfuração de poços até o projeto de arborização, que
objetivaria aumentar a umidade da região, o que, por sua vez, acarretaria amenizar o clima da
região, fazendo com que se atraísse a incidência de chuvas nos períodos secos. Se havia uma
preocupação com arborização na IOCS, por exemplo, ela comparecia no sentido de ser “um
factor auxiliar (grifo meu) para os seus trabalhos”.93 As mãos da ciência buscavam regular o
tempo da chuva dentro de uma lógica da previsibilidade e controlar, por conseguinte, a
cadência com que se desenvolvia o sertão.
Focar o problema da água como o elemento principal do atraso dos sertões, dentre
tantos, tratava-se, em última instância, de constatar uma fronteira temporal que separava
sertão-cidade medida a partir da falta d’água e uma vez constatado que o tempo sertanejo era
regulado pela natureza - e que esta era cadenciada pela intermitência das águas na região ―,
tornou-se comum salientar que solucionar o problema da água implicaria construir um fio
91 SOPPER, Ralph H. Geologia e suprimento d’água subterrânea no Rio Grande do Norte e Paraíba. Rio de Janeiro: IOCS, 1913. P. 85. 92 CRANDALL, Roderic. Op. Cit. P. 50. 93 LOFGREN, Alberto. Op. Cit. P. 3.
135
civilizatório que ligava duas realidades distintas que conviviam em mesmo território: o sertão
e a cidade. Um fio imaginário que aparecia como um atalho para a condução rumo à
constituição de uma nacionalidade em processo. A partir de torrentes de água, o intelectual
cientista conduziria triunfante um povo que adormecera em águas escassas e que surgia, como
bem queria Euclides da Cunha, como um Hércules, conduzindo a bandeira da nação forte com
sede pelo moderno.
3 NAS ENCRUZILHADAS DO PODER: AARÃO REIS E AS OBRAS CONTRA
AS SECAS
3.1 INTERSTÍCIO
Em agosto de 1912, Arrojado Lisboa deixou o cargo de inspetor da IOCS nas mãos de
seu sub-inspetor, o engenheiro civil Ayres de Souza, a fim de fazer uma série de palestras
sobre o meio físico brasileiro na Sorbonne, em Paris, sob as bênçãos do Barão do Rio Branco.
Sobre o seu afastamento, assim se pronunciou o historiador Capistrano de Abreu, em carta a
Lisboa: “Um jornal já disse que a repartição (a IOCS) está acéfala. Sei que tens outros meios
de vida, mas não se trata de ti, trata-se da obra que criaste, que bem pode periclitar”.1 Nas
palavras de Capistrano ecoava o sentimento de parte considerável da comunidade intelectual
do período que julgava as obras nos sertões quase que como uma “missão”. Homens tais
como Alberto Rangel, Capistrano de Abreu e Casper Branner não economizavam em elogios
às medidas encetadas no sertão pelo engenheiro. No mesmo tom, os políticos representantes
dos estados do nordeste do país exultavam a obra comandada por Lisboa. O Jornal do
Comércio, do Rio de Janeiro, de 18 de agosto de 1912, assim salientava o ânimo dos
representantes políticos estaduais logo depois da saída de Lisboa:
Temos razões para afirmar que os representantes federaes dos estados do norte no Senado e na Câmara, embora respeitando as razões que levaram o governo a conceder ao dr. Arrojado Lisboa, a demissão que insistentemente pediu do cargo de inspetor das obras contra as seccas, se mostram muito penalisados com o facto, lastimando sinceramente a retirada de tão laborioso e competente profissional, cuja solicitude se distribuía por igual em todas as zonas flagelladas de cuja orientação científica e technica era a melhor para a solução do importante problema. Não é impossível que apareça um documento firmado pelos representantes a que acima aludimos, agradecendo o profícuo esforço do dr. Arrojado Lisboa em benefício das regiões assoladas pela secca [sic].2
1 Carta do historiador Capistrano de Abreu a Arrojado Lisboa, no dia 29 de junho de 1912. Cf: RODRIGUES, José Honório (Org.). Correspondências de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, INL, 1975. P. 423. 2 Jornal do Comércio, 18 de agosto de 1912.
137
Satisfação que acompanhava um progressivo aumento no orçamento do órgão e fazia
com que, paralelamente, o crédito dado a Lisboa fosse cada vez mais renovado. O engenheiro
cearense Ayres de Souza, que serviu como inspetor interino por quase um ano após a saída de
Lisboa, assistiu às diminuições sensíveis ocorridas no orçamento do órgão.3 Apesar disso,
Ayres de Souza procurou seguir as linhas gerais traçadas por Lisboa e, de acordo com elas,
continuou os estudos de reconhecimento da área sertaneja.
Depois de aventados vários nomes para dirigir o órgão, em julho de 1913, foi chamado,
pelo então presidente Hermes da Fonseca, para assumir, em definitivo, o cargo de inspetor, o
engenheiro Aarão Reis. Reis já era um aclamado engenheiro, reconhecimento que vinha
especialmente por ter sido um dos planejadores da construção da cidade de Belo Horizonte.
Ademais, Reis, desde o Império, já atuava em obras públicas a serviço do Estado brasileiro e,
quando da sua nomeação para o cargo de inspetor da IOCS, já era considerado um veterano
― o que não seria demais considerando os seus 60 anos de idade e seus 40 anos de serviço
público. Trazidas para dentro da IOCS, suas concepções científicas e seu modo de encarar a
realidade brasileira sob uma leitura positivista ― e Reis era positivista confesso ―, mudariam
sensivelmente a forma como a IOCS seria orientada na resolução do problema das secas nos
sertões.
O engenheiro Aarão Leal de Carvalho Reis nasceu em Belém do Pará, em 1853, tendo
sido seu pai membro do Partido Liberal do Maranhão, professor e funcionário público. A
mudança para o Rio de Janeiro, acontecida ainda quando era criança, fez com que Reis tivesse
a oportunidade de frequentar escolas de renome, como o Ateneu e a Escola Central, que, em
1874, passaria a denominar-se Escola Politécnica. Em 1873, aos vinte anos, Reis já era
3 O quadro orçamentário da IOCS durante os primeiros anos foi o seguinte, em réis: em 1909, de 1000000$; em 1910, de 1.100.000$; em 1911, de 3.336.000$; em 1912, de 7.000.000$; em 1913, de 7.200.000$; em 1914 ― no primeiro orçamento da gestão Aarão Reis ―, de 4. 200.000$ e, em 1915, de 2.200.000$. In: POMPEU SOBRINHO, Thomaz. A História das secas no Ceará. Fortaleza: Instituto Histórico, 1953. P. 224.
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diplomado em Ciências Físicas e Matemáticas e, no ano seguinte, em Engenharia Civil pela
Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Provavelmente foi nesse tempo que Reis tomou contato
com os ideais positivistas propostos por Auguste Comte, que foram adotados na formação de
engenheiros durante um longo tempo no Brasil. Envolveu-se na causa republicana, embora,
como um bom administrador público ― e assim o próprio Reis se julgou em inúmeras
publicações ―, tenha se mantido fiel e “disciplinado” nos cargos que o Império lhe incumbiu.
Leitor voraz dos franceses ― entre seus autores preferidos, figuravam Condorcet e Saint-
Simon ―, Reis podia ser considerado um intelectual atuante no início do século XX no
Brasil. Nas suas palavras, ao longo da vida, se expressou um profundo ressentimento, embora
nunca resignado, da sua posição dentro de uma sociedade que fechava os olhos para o papel
do intelectual. Com o advento da República, foi chamado para ocupar o importante cargo de
engenheiro-chefe das obras de construção de Belo Horizonte, cidade que seria o espelho do
progresso no Brasil, mas demitir-se-ia desse mesmo cargo mais tarde por divergências com
alguns auxiliares. Reis dividia o seu tempo de encargos públicos com o de professor na Escola
Politécnica, onde formaria inúmeros engenheiros. Envolveu-se, por diversas vezes, nos
debates travados no Clube de Engenharia chegando a ser seu diretor-secretário. Ali se
articulavam calorosas discussões em torno da modernização da sociedade brasileira de então.
Os inúmeros cargos e títulos que Reis ocupou na administração pública4 foram sempre
evocados nas obras mais maduras do engenheiro, evocação que não pensamos ser apenas uma
enumeração involuntária dos cargos exercidos, mas um exercício de demonstração para o
leitor daquelas publicações de certa experiência no tema a ser tratado, ou, por outras palavras,
parte de um discurso de autoridade que se construía. Reis também foi eleito deputado federal
pelo estado do Pará por três vezes, sendo, na segunda vez, em 1912, “degolado” pelas mãos
4 Para conferir esses inúmeros cargos ocupados, indico a ótima biografia sobre Aarão Reis organizada por Heliana Angoti. Cf: SALGUEIRO, Heliana Angoti. Engenheiro Aarão Reis: o progresso como missão. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1997. Esses cargos foram por inúmeras vezes citados por Reis nos frontispícios de relatórios, o que pensamos ser uma forma de colocar-se como autoridade no assunto.
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da Comissão Verificadora – acontecimento este que depreciará, por inúmeras vezes, em vida
– e professor da Faculdade de Direito do Rio de Janeiro.
Aarão Reis deve ser entendido neste novo contexto à frente da IOCS como um
representante acabado do grupo de técnicos que se formou no Brasil de fins do século XIX,
com sua ideologia positivista impregnada de um saber interventor e classificador da
sociedade. Tendo sido, como já dito, formado na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, Aarão
Reis participou de um momento de profunda efervescência do positivismo entre os
engenheiros. O positivismo no Brasil, em parte, “orientou ideologicamente a formação da
categoria do cientista”.5 Os princípios orientadores do positivismo comteano trouxeram uma
visão etapista da evolução social humana, que alcançaria sua plenitude com a fase positiva da
humanidade, livre de conflitos sociais, resultado de uma sociedade organizada em torno do
lema “ordem, progresso e amor”. Reis se impunha a tarefa de civilizar a sociedade através das
ferramentas do progresso e, numa postura herdeira do iluminismo, de elevá-las às luzes
através da educação. Numa publicação datada de 1918, assim o engenheiro se exprimia:
A educação [...] deve de ter, sempre, por escopo estimular, ao mesmo tempo, o vigor e a formosura do corpo e da alma, de modo a determinar as qualidades pessoais que, elevando gradoal e progressivamente o ente humano, e, com ele, o meio social, vão tornando o trabalho cada vez mais eficiente; donde a mútua reação recíproca que vai, por sua vez levantando o nível médio geral da civilização humana [sic].6
O positivismo surgiu, também, como uma alternativa para o estudo do social que
correspondesse às verdades científicas de uma ciência como a matemática, tida como a mãe
das ciências. A exatidão, a previsão e o experimento eram elementos que trariam um
conhecimento mais próximo de uma verdade absoluta do social, tal como se pensava. Para
tanto, era necessário estudar a humanidade como um todo, assim como se dissecava um
5 FERREIRA, Luiz Otávio. Os politécnicos: ciência e reorganização social segundo o pensamento positivista na Escola Politécnica do Rio de Janeiro (1862-1922). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1989. P. VI. 6 REIS, Aarão. Economia política, finanças e contabilidade. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918. P. 266.
140
corpo, para conhecer-lhes as leis que a regiam. Em um compêndio de economia política,
assim Aarão Reis observava:
Composta de indivíduos – na aparência independentes entre si, - fórma, entretanto, a sociedade humana, na realidade, verdadeiro organismo harmônico, cujos elementos converjem todos para fim comum. Involvídos por esse meio e cegos, pelo hábito, para observar convenientemente os fenômenos complexos que nele se manifestam, - dificílimo nos é analizar e bem compreender – com a necessária nitidez – o complicadíssimo jogo completo dos inúmeros órgãos que ajem para a vida social [sic].7
Daí surgia a ideia de corpo social, que deveria se organizar tal qual o corpo humano
sadio. As células do corpo representariam as pessoas, as veias seriam as vias de comunicação,
a doença era vista como resultado do mau funcionamento de uma determinada parte do corpo.
O organismo social reagiria através do bom funcionamento de suas partes corporais. A
prosperidade social só adviria se existisse uma sadia relação entre os diversos órgãos,
consequência de vias de comunicação bem estruturadas ― ou, como era comum dizer, um
sistema circulatório normal, pois seria emergencial o “[...] rápido desenvolvimento dum bom
SISTEMA CIRCULATÓRIO, bem traçado, bem aparelhado, na terra, na água, no ar [...] isto
é: larga, ampla e fácil circulação para pessoas, couzas, pensamentos e ordens [sic]”.8
A metáfora do corpo humano como corpo social, tão comum em análises positivistas
foi, por diversas vezes, colocada por Reis quando à frente da IOCS. Assim era que surgia
analogias tais como as expressas por Aarão Reis de que as vias de circulação trabalhariam
para o corpo social assim como as vias circulatórias faziam seu trabalho no corpo humano,
pois:
Rezulta, sempre, inútil e improfícua a alimentação dum organismo qualquer – por mais substancial que ela seja – desde que não disponha ele dum sistema circulatório apropriado e funcionando normalmente. E, para que a própria assimilação se opere em boas condições de prosperidade orgânica crescente, não basta que a circulação favoreça e facilite essa operação secundária definitiva; mister se faz que o sistema
7 REIS, Aarão. Economia política, finanças e contabilidade. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918. P. 3-4. 8 REIS, Aarão. As secas do nordeste. Op. Cit. P. 230.
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circulatório favoreça e facilite, também, a operação primária – essencial – da apropriação e da transformação dos alimentos injeridos. Tal, análogamente, sucede no complexo e complicado processo de manutenção e da prosperidade do organismo social, cuja vida econômica está dependendo da circulação da riqueza, sem a qual rezultaria, por completo, insuficiente a produção, por mais variada e abundante que fosse [sic].9
Em meados de 1913, quando assumiu a IOCS, Reis encontrou o órgão com algumas
obras em andamento e 26 relatórios publicados, contendo estudos científicos, mapas e
pareceres técnicos sobre a região das secas. Esse rigor científico no preparo das ações
intervencionistas que, de resto, foi herdado da administração de Arrojado Lisboa, foi, num
primeiro momento, aclamado por Reis como a parte fundamental para o início do
empreendimento do órgão nos sertões. Em entrevista ao jornal A Época, do Rio de Janeiro,
em 2 de setembro de 1913, assim se pronunciava o engenheiro:
E quando se tornarem patentes esses resultados, o nome do illustre Dr. Arrojado Lisboa será inscripto nos fastos da nossa história techinica e econômica como o do profissional competente e patriota que soube concretizar o pensamento e a confiança do governo da República na organização de uma útil e fecunda usina de trabalho official [sic].10
Embora a fundamentação das ações da IOCS em estudos científicos fossem,
inicialmente, aclamada por Reis ― e este se colocasse propriamente como o herdeiro destas
ações ―, fato foi que, com a diminuição sensível das verbas da IOCS em 1913, o novo
inspetor priorizou ações mais práticas e, para isto, reclamava ele, em seu primeiro relatório
como chefe da IOCS:
Desde que, em 1909, deliberaram os poderes públicos, enfrentar – de modo sistematizado e com a continuidade indispensável à eficiência – a solução do grave problema de encorporação normal à produção da riqueza nacional desta vasta rejião do nordeste brazileiro, que é periódicamente flagelada pela seca, dêvera esperar-se que, num decurso de 10 anos ou mais anos consecutivos, a verba anual consignada aos estudos, e projetos dele decorrentes, fossem passando à fase da construção sem, todavia, poder dezaparecer – embora reduzida – a despeza exijída por novos estudos
9 Idem. P. 226. 10 Jornal A Época, 2 de setembro de 1913.
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e novos projetos, e, ainda pela continuada perfuração de poços, que muito convém espalhar, às centenas, pelo árido sertão que se procura beneficiar. Não se compreende que – assim iniciada, com tão patriótica deliberação, essa salutar campanha – vacilem, cada ano, os poderes públicos diante da necessidade imperioza de manter o rumo escolhido [sic].11
Mantendo-se sempre na posição de herdeiro de um plano, Reis buscava, nas entrelinhas,
marcar suas divergências com relação à administração de Arrojado Lisboa, sem, no entanto,
romper com aquilo que foi conquistado por este. Pesava, nas expressões de Reis, uma sempre
obstinada escolha pela técnica que ultrapassasse o estudo, argumentado na necessidade de
melhor operacionalizar as obras contra as secas. Essa marca balizadora do trabalho de Reis
era expressão de uma formação científica que destoava, fundamentalmente, daquela imposta
por Arrojado Lisboa à frente do órgão. Se Lisboa priorizava os estudos científicos ― e tentou
assim proceder absorvendo, ao seu redor, toda uma gama de cientistas devotados aos estudos
e viagens científicas ―, Aarão Reis fazia parte de uma tradição diferente: a tradição dos
politécnicos, engenheiros devotados especialmente aos trabalhos urbanos e, por isto mesmo,
avessos aos trabalhos em torno da agricultura do país. Esse grupo era mais preocupado com a
aplicabilidade imediata dos conceitos do que com o estudo pormenorizado ― e que levaria
tempo ―, do local a sofrer intervenção. Se assim podemos dizer, os politécnicos tinham um
viés mais urbano na sua formação e, sem dúvida, mais imediatistas na aplicabilidade de
conceitos.12 No mesmo relatório citado acima, Reis, porém, contemporizaria:
O que não obstante é fato – que não póde sofrer contestação séria – é que o rezultado prático da ação da Inspetoria não se tem limitado, felizmente, à divulgação impressa dos seus valiozos estudos; o que, aliaz, por si só, bastaria para tornal-a credora do
11 IOCS. Relatório dos trabalhos executados durante o ano de 1913 apresentado ao Ministro da Viação e Obras Públicas, Dr. José Carlos Barboza Gonçalves, pelo inspetor, Aarão Reis. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. IX. 12 Sobre a formação dos engenheiros no Brasil da virada do século XIX para o XX, existem dois bons estudos: TELLES, Pedro C. da Silva. História da Engenharia no Brasil. Rio de Janeiro: Clube de Engenharia, v. 1 e 2, 1984 e FIGUEIRÔA, Silvia. As Ciências Geológicas no Brasil: uma história Institucional. São Paulo: Hucitec, 1997.
143
respeito público, si não fora o máo vezo nacional da crítica daqueles que folheam sem ler, e menos estudar, os livros que se publicam [sic].13
A chegada de Reis à IOCS deu expressão a outro foco de observação do sertão. Se, num
primeiro momento, as construções imagéticas se aproximavam de um apelo à agricultura (tais
como o debruçar insistente sobre o problema da escassez da água priorizando, com isso, a
açudagem e irrigação, como procuramos demonstrar no capítulo anterior), com a chegada de
Reis ao órgão, esse procurou imprimir uma marca diferente aos sertões semi-áridos. Movido
pela ideologia do progresso, quase por um télos positivista, o novo inspetor traduziria os
sertões em termos de incorporação do organismo social ao corpo da pátria. Nesse
entendimento, a água perderia seu posto de líquido do progresso, ficando numa posição
secundária em relação a, segundo Reis, um problema ainda mais grave, que seria a falta de
comunicação com os centros produtores, sendo para o engenheiro necessário e urgente
construir vias de comunicação nos sertões:
Erro, pois – e erro, mais do que impatriótico, porque dezumano, - pretender proporcionar à respetiva produção o sistema circulatório duma qualquer rejião, quando é, ao contrário, deste que depende o dezinvolvimento normal daquela; e, com ele, a prosperidade correspondente, determinando gradoal e progressiva elevação generalizada do nível médio do conforto e do bem-estar humano, isto é, da civilização [sic].14
Há de se salientar que essa mudança não pode ser entendida apenas como um mero
desvio no caráter científico, mas também uma mudança que imprimia um novo olhar sobre o
espaço, expresso numa forma diferente de se conceber o sertão.
A partir dessas orientações, a IOCS passaria por uma fase de tensão, expressa não só
nos debates entre Reis e os grupos políticos que se contrapunham à sua orientação
administrativa no novo órgão, mas entre os próprios membros do órgão, uma vez que, com a
13 IOCS. Relatório dos trabalhos executados durante o ano de 1913 apresentado ao Ministro da Viação e Obras Públicas, Dr. José Carlos Barboza Gonçalves, pelo inspetor, Aarão Reis. Op. Cit. P. X. 14 REIS, Aarão. As secas do nordeste. In: Obras Novas Contra as Secas. Relatório de Obras Novas Contra as Secas. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1920 (Anexo B). P. 226.
144
saída de Arrojado Lisboa, muitos que ali foram indicados por este continuaram a fazer parte
da IOCS. As contraposições de imagens do sertão ganhavam força, naquele momento, nos
discursos, buscando, comumente, numa retórica científica, a afirmação de suas assertivas.
Sem dúvida, ainda seria o discurso científico que daria o respaldo também a uma retórica da
alteridade construída, um respaldo que era acompanhado por debates calorosos que, de certa
forma, buscavam criar novas balizas que pudessem fazer pensar o espaço “sertão” e sua
inserção no projeto de nação moderna que se esboçava.
Por consequência, se observava, nesses debates, dois pontos de tensão nevrálgicos: de
um lado, uma discordância entre projetos científicos e projetos políticos estaduais no Brasil
republicano e, de outro, um embate entre projetos científicos de modernização da sociedade
díspares e conflitantes que se questionavam sobre o papel do cientista na sociedade. Sobre o
primeiro ponto, os discursos sobre o sertão foram sendo especialmente à partir da seca de
1915, paulatinamente, obsedados por discursos de representantes políticos que, para fazer
frente a um discurso científico que, não raro, enveredava por uma crítica da própria política
― como foi a postura de Aarão Reis ―, tentava se colocar à frente do projeto de intervenção
no sertão, enquanto o discurso científico de Reis reivindicava ― agora mais imperativamente
― a inserção do intelectual da ciência no processo de modernização dos sertões. Para Reis, a
autoridade da ciência não se faria apenas no seu saber, mas, também, na sua capacidade de
comandar a sociedade. Daí ressurgiu uma estreita ligação entre saber-poder que resultaria
numa busca pela afirmação da ciência, não só a partir do discurso científico, mas na sua luta
por espaços de poder.
A tradição positivista defendida por Reis expressava a posição de um grupo que, mais
do que definir sua posição na sociedade, buscou expandir seus espaços de poder como forma
de guiar as transformações rumo ao progresso dentro da ordem. Essa especificidade brasileira
na leitura positivista foi afirmada, anos depois, por Tasso Silveira:
145
O positivismo no Brasil se transformou, de visão científica do mundo que, principalmente, é em Augusto Comte e sua escola, numa regra de moralidade individual, política e administrativa, e essa transformação é profundamente reveladora.15
Essa postura resultaria, dentro da IOCS, numa tomada de posição de forma mais,
digamos, ousada por parte de Aarão Reis e daqueles que o mesmo escolheria para ajudá-lo
nessa empreitada.
O que se expressou na chegada de Reis à IOCS foi a retomada de um debate que, se,
num primeiro momento da IOCS, pareceu sofrer uma síntese, a partir da chegada de Aarão
Reis se expressou de maneira latente: o debate entre idéias dos representantes políticos para o
sertão e as ideias intelectuais para a sociedade. Ponto este que procurarei desenvolver a partir
de imagens que foram mobilizadas nesse contexto para dar forma ao espaço sertanejo e ao
Estado que, por sua vez, se construía num processo nem sempre pacífico como supôs a
historiografia acerca da Primeira República durante bastante tempo.
15 Tasso Silveira apud: LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ: UCAM, 1999. P. 49.
146
3.2 A CIÊNCIA E OS LIMITES DO PODER
Sobre os primeiros seis meses na direção da IOCS, assim confidenciava Aarão Reis
suas impressões ao então ministro da Viação e Obras Públicas, José Barboza Gonçalves:
Acredito que o prezente relatório revelará, aos que têm grave responsabilidade da direção dos públicos negócios que esta INSPETORIA tem procurado corresponder, honesta e lealmente, aos intuitos da sua organização, apezar das múltiplas dificuldades que se orijinam – da vastidão da zona flagelada pelas secas, - de escassez de dados positivos que orientem convenientemente sua ação técnica, - do considerável afastamento em que ficam, sem meios normais de comunicação, as bacias hidráulicas aproveitáveis dos centros de onde é mister levar tudo quanto é necessário para as obras a realizar, - da disseminação e natural indolência da população válida desta zona, onde rareia o trabalhador,sem hábitos de trabalho regular, da deficiência de profissionais que aliem a técnica o tino administrativo, sem o qual os trabalhos se anarquizam e encarecem sempre, - da má contabilidade pública, agravadas pela ignorância demaziado generalizada de seus comezinhos princípios, - da falta, quazi absoluta, de bons e capazes empreiteiros que auxiliem lealmente a administração pública, - do conjunto, emfim, de circumstancias que concorrem para travar a marcha normal de qualquer serviço público no nosso paiz [sic]. 16
Neste relatório, que se inicia com uma considerável introdução, Aarão Reis
enumerava o que, para ele, seriam os graves problemas que sofria a IOCS. A par disso,
construía uma imagem do sertão que respaldasse suas críticas: a sua falta de comunicação
com os grandes centros, resultado da falta de “meios normais de comunicação” e a “natural
indolência” do trabalhador sertanejo. Fora isso, faz criticas à falta de capacidade de
administração pública dos técnicos e empreiteiros envolvidos no projeto, resultado da
“ignorância” de seus “comezinhos princípios”. Sobre este último ponto cabe uma reflexão.
Ora, de uma administração anterior que, aparentemente, conviveu pacificamente com os ―
sem dúvida ― diferentes princípios orientadores que se instalavam no órgão, passou-se, com
a ascensão de Reis ao órgão, a um confronto direto entre os diversos princípios norteadores
das obras contras as secas a fim de construir um discurso norteador unívoco.
16 IOCS. Relatório dos trabalhos executados durante o anno de 1913 apresentado ao ministro da Viação e Obras Públicas, Dr. José Barbosa Gonçalves, pelo inspetor, Aarão Reis. Rio de Janeiro: IOCS, 1914. P. XI.
147
O descontentamento dos grupos dirigentes do nordeste do país com Reis era latente
e tornou-se um conflito aberto na conjuntura que se seguiu com o advento da seca de 1915, o
primeiro teste de fogo da IOCS.
A reorganização da IOCS levada a cabo por Aarão Reis começou eliminando os cargos
de especialistas voltados para a pesquisa do solo sertanejo, daí serem extintos os cargos de
chefe topógrafo, chefe botânico e chefe hidrólogo, ficando a Inspetoria com um corpo
substancialmente técnico. Usando de seu tino de administrador, Reis buscava imprimir um
ritmo ao órgão que fizesse com que as obras não ficassem comprometidas com as sucessivas
baixas orçamentárias que se seguiram ano a ano.
Com a ascensão de Aarão Reis, os distritos estaduais da IOCS também tiveram uma
significativa diminuição de encargos, pois Reis passou a controlar essa distribuição
sobremaneira, além do que inchou a seção técnica, com sede no Rio de Janeiro, de
engenheiros que pudessem elaborar pessoalmente os projetos das obras a serem construídas.
Daí em muitos momentos à frente do órgão Reis ter sofrido críticas abertas por parte de
membros dos distritos estaduais da própria IOCS. Um dos críticos mais ferrenhos de Reis era
o engenheiro-chefe do 1º distrito da IOCS, com sede em Fortaleza, Thomaz Pompeu
Sobrinho. Pompeu Sobrinho, vale dizer, era oriundo da família do oligarca cearense Nogueira
Accioly e fora formado engenheiro de minas pela Escola de Minas de Ouro Preto, tendo
trabalhado em obras contras as secas antes da criação da IOCS. Em 1909, foi convidado por
Arrojado Lisboa para fazer parte dos quadros da IOCS e de lá só sairia em 1938, aposentado
por invalidez.17
Em inícios de 1915, Pompeu Sobrinho foi designado como chefe do 1º distrito da IOCS
em Fortaleza. Em 26 de março de 1915, o agora engenheiro-chefe enviou um telegrama para o
17
Existem poucos dados biográficos acerca de Pompeu Sobrinho. O engenheiro morreria em 1952 como presidente de honra do Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará. Para uma breve biografia do engenheiro, ver: PAIVA, Melquíades Pinto. Os naturalistas e o Ceará. Instituto do Ceará, Fortaleza, 2002. P. 215-255.
148
inspetor Aarão Reis pedindo providências para o combate às secas que se avizinhavam: “Este
districto se sente amesquinhado deante desgraça população que morre [...] effeitos da secca
que tens obrigação prevenir-vos [sic]”.18
Iguais a este telegrama foram, ainda, enviados vários, pelo mesmo Pompeu Sobrinho,
endereçados à seção central da IOCS .19 Em março de 1915, quando muitos já davam as secas
como declaradas, Aarão Reis era entrevistado pelo Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, e,
assim, vaticinava seu parecer:
A seca só poderá ser considerada definitivamente declarada si, até o início de abril, não caírem chuvas regulares, seus efeitos, porém, que poderão ainda não prosseguir já se tem feito sentir no alto sertão, determinando o natural pavor que se vai traduzindo nos telegramas alarmantes aqui recebidos.20
A racionalização da seca em determinado momento (abril) e em determinado regime de
chuvas (regulares) abria espaço para a inclusão de um elemento de regularização científica do
fenômeno. As secas ― assim definidas ― só poderiam ser declaradas depois de observadas
certas premissas balizadas por um saber científico. Por consequência, o alarme que se
expressava nos telegramas recebidos não poderiam ter credibilidade, porquanto não se
consumasse certa forma de ação natural que se acreditava ser, de fato, o advento de uma seca.
Para a afirmação dessa premissa, a desqualificação de outro tipo de saber era fundamental:
“Demais, é crença no nordeste que a falta de chuvas no Piauhy, até o equinócio de março é
indício fatal que haverá seca geral, e é naturalmente essa crença que já está apavorando as
populações sertanejas [sic]”.21
18 Telegrama nº 169 do engenheiro-chefe do 1º distrito, com sede em Fortaleza, Thomaz Pompeu Sobrinho, ao engenheiro Aarão Reis, inspetor de obras contra as secas, em 26 de março de 1915. In: Arquivo DNOCS/ 2° Distrito Regional. Acervo de Açude Públicos do Ceará. Pasta 3.15. Açude Acarape do Meio.Doc: Telegrama n° 169, ao Inspector. 19 Na série de pastas inventariadas pelo projeto Memória Científica e Tecnológica do Semi-Árido Brasileiro (MECITSAB), encontram-se inúmeros desses telegramas oriundos dos locais em que se faziam obras contra as secas no Ceará. Esta documentação hoje aguarda transferência para o Núcleo de Documentação (NUDOC) da Universidade Federal do Ceará (UFC). 20 Jornal do Comércio, 28 de maio de 1915. 21 Idem.
149
A efetividade de ação da IOCS deveria, para Reis, pautar-se no saber científico,
observadas certas leis que regulavam a natureza e que eram traduzidas numa linguagem
racionalizante do tempo. Ademais, uma vez que Reis mantinha-se fiel aos pressupostos
positivistas que elencavam as leis que governavam o mundo natural, bastava, portanto, seguir
certa forma de lidar com o fenômeno para poder, num momento determinado pela ciência,
combatê-lo. A forma de lidar com o fenômeno a partir de leis preestabelecidas era um
elemento comum na ideologia positivista.
Arrojado Lisboa e Aarão Reis sintetizaram, ambos de forma sintomática, uma forma
científica de lidar com o fenômeno natural no período. No entanto, o regime de cientificidade
reivindicado por esses personagens eram díspares e conflitantes. Se Lisboa acreditava que a
formação do cientista prescindia de uma observação do fenômeno em suas particularidades,
Reis, por outro lado, apesar de não negligenciar a observação, era adepto de uma ideologia
que acreditava já ter descoberto as leis que regiam o universo. As categorias de observação da
natureza já teriam sido decifradas pelos positivistas, cabendo ao homem agir sobre o universo
de acordo com os vetores sinalizadores da ideologia. Foi a partir desse olhar que a percepção
sobre os sertões ganhou nova roupagem e, por conseguinte, as ações sobre o espaço sertanejo.
Essas concepções de ciência, que, ora se aproximavam, ora se distanciavam, atentam
para um momento de definição do termo “ciência” no Brasil do período. A construção de um
saber científico era tangenciado por múltiplas formas de conceber o mundo natural, cada qual
obedecendo às suas leis e, por conseguinte, informando uma forma de perceber e perceber-se
diante do universo, pois, como nos informa Keith Thomas, em livro célebre:
[...] toda observação do mundo da natureza envolve a utilização de categorias mentais com que nós, os observadores, classificamos e ordenamos a massa de fenômenos ao nosso redor, a qual de outra forma permaneceria incompreensível; e é sabido que, uma vez apreendidas essas categorias, passa a ser bastante difícil ver o
150
mundo de outra maneira. O sistema de classificação dominante toma posse de nós, moldando nossa percepção e, desse modo, nosso comportamento. 22
Essa crença no poder de previsão da ciência sobre o fenômeno foi afirmado por Aarão
Reis ainda quando este esteve à frente das obras de combate às secas quando dizia, em um
compêndio para alunos de Direito, que “Não podem os fenômenos sociais, como todos os
demais fenômenos da natureza, estar isentos da subordinação fatal a leis determinadas”.23 Os
sertões, por conseguinte, por serem encarados como um espaço em um estado de natureza
latente, podiam ser compreendidos ― seja nas suas manifestações físicas ou sociais ― a
partir de leis que governariam sua temporalidade distinta das grandes cidades. Colocar o
sertão a par do regime de temporalidade das cidades e, portanto, ligá-los às cidades, era, para
Reis, o objetivo fundamental:
É admissível que – em uma nação que tem a deliberação firme de prosperar rápidamente no caminho, por que enveredeou como felicidade, da civilização – haja o desfalecimento de deixar sem remédio eficaz um tal dezequilibrio funcional, que fatalmente comprometerá a normalidade do funcionamento de todo o complexo conjunto do organismo social ?![sic]24
Foi com esse investimento na força da inevitabilidade da previsão científica que a IOCS
foi comandada por Reis entre 1913 e 1915. Em 1915, o Brasil passava por uma crise no setor
cafeeiro, consequência da Primeira Guerra Mundial e da diminuição das exportações, e o
orçamento dos diversos órgãos do governo federal foi sendo diminuído sensivelmente, o que
foi sentido de forma dramática pela IOCS.
Em janeiro, o presidente Wenceslau Brás fez baixar um decreto em que extinguia o
cargo de inspetor da IOCS e o colocava em comissão.25 Na prática, isso diminuía os custos
22 THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 62. 23 REIS, Aarão. Economia política, finanças e contabilidade. Op. Cit. P. 5. 24 REIS, Aarão. As secas do nordeste. Op. Cit. P. 232. 25 Decreto 11.424, de 8 de janeiro de 1915. BRASIL. Coleção das Leis da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1917.
151
com o salário de inspetor, bem como o tornava “demissível”. Aarão Reis recebeu essa notícia
com profundo ressentimento, como se denota no seu diário pessoal: “Creio que, a dar
cumprimento a essa lei, o Governo terá de declarar-me inspetor extinto, pois o cargo que
exerço foi, desfeito, extinto [...].26
Nesse mesmo ano, o advento da seca colocou, de forma latente, as fraturas que já se
faziam expressar dentro da IOCS. A relutância de Aarão Reis ― agora com o cargo de
inspetor extinto pelo decreto baixado, mas ainda assim chefe das obras contra as secas ― em
declarar a seca batia de frente com outros servidores do órgão que reclamavam do chefe do
serviço uma solução mais urgente e, por outro lado, os interesses estaduais se digladiavam
para obter os recursos e ações intervencionistas da IOCS que pusessem fim ao drama da seca
em seus respectivos estados.
Aarão Reis, porém, mantinha-se irredutível diante de sua crença no poder de previsão
da ciência e, além do mais, possuía uma visão bastante negativa das possibilidades de socorro
da IOCS diante da seca. Reis reclamava da falta de liberdade de ação que possuía à frente do
órgão:
Vivemos num meio bastante atrazado ainda para comportar a nítida compreensão, por parte de todos, dirijentes e dirijidos, de que a liberdade de ação concedida aos altos auxiliares da administração pública deve corresponder à responsabilidade com que têem estes de arcar [sic].27
Reis reinvidicava uma maior liberdade dele, como chefe de obras contra as secas.
Culpava, sobretudo, a política no Brasil que, segundo entendia, desdenhava qualquer ação no
sentido “patriótico”:
[...] A pressão do interesse particular é tamanha entre nós, onde a má politicajem tem permitido que os cargos públicos se transformem, muita vez, em pretexto para
26 Museu da República. Arquivo/ Coleção Aarão Reis. Código AR 1911.08.00. Série Produção Intelectual. Livro 5. Manuscrito do Diário de Aarão Reis datado do dia 31 de agosto de 1915. P. 177. 27 Jornal do Comércio, 28 de maio de 1915.
152
pensões desfarçadas, que os próprios espíritos elevados do Congresso não escapam à preocupação nefasta de ver em cada chefe de serviço, não o colaborador patriótico de medidas acertadas, mas apenas o interessado mesquinho em acrescentar honorários e defender bolsas particulares [sic]28
A passagem acima expressa, de maneira sintomática, o desabafo de um intelectual
imerso no Brasil de inicio do século XX, que se via frustrado diante dos embates políticos
que, muitas vezes, confundiam os limites que separavam o público e o privado, o “patriótico”
e o “mero interesse mesquinho”, no dizer do engenheiro Aarão Reis. A baliza que sustentava
o discurso desse tipo de intelectual era sua crença no poder da ciência. Acreditavam esses
homens que, por serem detentores de um saber que possuía a faculdade de perceber o mundo
com os olhares da razão, eram os melhores testemunhos dos fatos. Se, por um lado, se
colocavam a serviço do poder ― muitas vezes resignando-se diante dele como forma de obter
seu espaço de ação ―, por outro, constantemente, se viam na necessidade de colocar-se a
certa distância desse mesmo poder, provando a sua neutralidade, e, em alguns momentos,
reivindicando, de forma extrema, sua inserção dentro do poder. A relutância de Reis em
admitir a chegada da seca, por exemplo, impôs um debate caloroso que se desenrolaria
enquanto esta durou.
Nessa conjuntura – e após assumir a chegada da seca - Aarão Reis enfatizou a
necessidade de se dar maior liberdade a um administrador que organizasse as ações naquele
momento:
Dada, porém, nova situação de fato anormal, em que avulte consideravelmente a responsabilidade da administração superior, fôrça é que ao administrador dê o Governo, com amplitude de confiança, a mais ampla liberdade de ação. Assim como em tais cazos, deve ser lícito ao Governo pôr de lado o chefe superior do serviço, para confiá-lo, na nova situação especial deteminada pelos acontecimentos, a quem possa ajir com mais decizão e mais eficiência, assim também deve o Governo de permitir que esse chefe, si mantido por julgado apto para a situação, procure seus auxiliares livremente de acordo com a responsabilidade acrecída e avultada, e sem estreitas preocupações de política partidária [sic].29
28 Idem. 29 Idem.
153
Nas entrelinhas, Reis reivindicava maior poder de mando dentro da IOCS, objetando,
inclusive, que ele próprio deveria escolher seus auxiliares. Se, porém, o regulamento do órgão
não permitia tamanhos poderes, Aarão enfatizava que os regulamentos
São feitos para a normalidade da vida burocrática; mas, não podem regular a vida de um momento ajitado em que a ação preciza ser pronta para ser profícua. O que não quer dizer que se aproveite o ensejo para aplicar o método confuzo, desprezando as boas regras da contabilidade pública, sem o respeito das quais se torna iluzória a fiscalização dos dinheiros da Nação, que são sagrados. Atender, porém, num momento de calamidade pública a interesses mesquinhos da politicajem, permitindo que o interesse particular pretira o público, não é só erro, - é crime, e, como tal, deverá ser julgado e punido [sic].30
Nesse ambiente, quando consultado pelo Ministro da Viação sobre quais as obras que
ele, como chefe da IOCS, poderia acionar no combate as secas, Reis definia o espaço que,
para ele, deveria ser entendido como a zona flagelada pelas secas: Ceará, Paraíba, Rio Grande
do Norte e Piauí, mas vaticinava que
mais algumas obras poderia esta Inspetoria indicar como já com condições de serem iniciadas, pois estão estudadas , projetadas e orçadas, e algumas até aprovadas pelo governo. Como, porém umas se acham localizadas nos Estados da Bahia, Serjípe, Alagoas e Pernambuco, que não estão, como os demais do nosso nordeste semi-árido, sob o flajêlo direto da atoal seca [...] abstenho-me de mencionál-as, nesta exposição, na qual só julgo dever incluir trabalhos que possam ser executados como o MINIMO dispêndio de MATERIAL e o MÁXIMO de PESSOAL [sic].31
Assim foi que esses limites geográficos definidos por Reis causaram muitos protestos
por parte dos representantes estaduais dos estados do nordeste do país que se sentiam
preteridos. Em setembro de 1915, com a liberação de um crédito especial de 5 mil contos de
réis para o combate às secas, Aarão Reis objetava algumas mudanças nos planos. Objeções
essas que afirmavam suas idéias elencadas acima, tais como o maior poder de autonomia para
o chefe do serviço. Essas objeções lhe dariam, pensava Reis, autonomia com relação à IOCS e
o afastaria daquilo que ele chamava de uma “burocracia malsinada”. Mais do que isso, essas 30 Idem. 31 REIS, Aarão. Relatório de Obras Novas Contras as Secas. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1920. P. XXVIII.
154
ideias colocariam em evidência de maneira hegemônica sua visão acerca das secas e suas
delimitações espaciais do lugar onde deveriam ser encetadas obras no sertão. Sobre esse
último ponto, Reis teve de capitanear verdadeira batalha contra os grupos políticos locais que
reivindicavam “a seca” para seus respectivos estados. Essa batalha resultaria numa quebra de
harmonia que, ainda ali, imperava entre interesses dos representantes políticos com relação às
secas e interesses científico-intelectuais. Era preciso investigar e, finalmente, voltar à minha
primeira fonte.
155
3.3 AS OBRAS NOVAS CONTRA AS SECAS
O ano era 1915. A seca se avizinhava. O sertão se enchia de famílias pobres fugindo da
fome. O engenheiro-fiscal Tomazo Bertucci, encarregado da construção do açude Acarape do
Meio, no interior do Ceará, a serviço da IOCS, assim observava em telegrama à sede da
IOCS: “[...] operários não permitem eu sahir tenho, por conseguinte, chegado a ser
considerado como um refém de presente administração [sic]”.32 A cada dia, o número de
operários na construção do açude aumentava, com a chegada de sertanejos famintos, e o
inspetor continuava alertando: “e não só não posso sahir que todos os operários vem
chorando, mostrando a sua semi-nudez e pedindo para os pequenos, donde pode ver se é
possível viver-se mais em lugar nestas condições sem demolir um homem que tem coração
[sic]”.33
A chegada da seca, em 1915, encontrou o Estado brasileiro em grave crise econômica e
a IOCS sofrendo progressivamente cortes em seu orçamento. Quando a situação começou a
virar notícia na capital federal – e telegramas, como o citado acima, eram diariamente
enviados para o Rio de Janeiro - Reis elaborou um plano que se baseava na constatação de
que o mundo do trabalho estava se desorganizando pela própria falta de boa organização da
IOCS nos sertões e cabia, portanto, a um hábil administrador ― o “chefe”, segundo suas
palavras ― organizar a caótica situação do mundo do trabalho naqueles tempos.
Nesse contexto, sob a direção de Reis, o projeto intervencionista da IOCS ganhava nova
orientação, gerada por um novo olhar que se lançava sobre o espaço denominado “sertão”. Tal
espaço perdia, com Reis, a imagem de região promissora, onde a natureza é também “sujeito”,
e ganhava um conteúdo de lugar ainda a se realizar por um sujeito bem mais capaz que ainda
32 Telegrama do engº fiscal Tomazzo Bertucci à 1ª seção da Inspetoria de Obras Contra as Secas, em 26 de março de 1915, citado em telegrama nº 169 de Thomaz Pompeu Sobrinho ao Inspetor de Obras Contra as Secas. Op.Cit. 33 Idem.
156
não existia, nem começava ainda a existir naquelas paragens: o homem positivo. Homem que
caberia ao Estado criar. Daí a insistência de Reis no trabalho sob quaisquer outros pré-
requisitos.
Naquele momento, em junho de 1915, quando da votação para a liberação de crédito de
5 mil contos de réis para combater as secas, o deputado baiano Pires de Carvalho subia à
tribuna da Câmara Federal para fazer severas críticas ao ainda então chefe da IOCS Aarão
Reis:
[...] Lamento que sejam só 5.000 contos, porque só nós nortistas é que podemos avaliar o que seja essa calamidade, a situação de miséria em que se encontram as populações flageladas. Só quem atravessou os sertões do norte, quem parou nas estações ferro-viarias que cortam essa região, e observou a miséria que avassala tudo, sabe qual a extensão do mal e quão insufficiente é o auxílio que vai ser votado. [...] Mas se o Ministro da Viação, dirigindo-se ao Congresso, refere que seis Estados já estão empolgados pelas conseqüências detrimentosas do flagello, o Sr. Inspetor da secca se refere, dizendo que Pernambuco, Bahia, Alagoas e Sergipe nada soffrem. Isto aqui está escripto [...] Não posso deixar de mostrar que o Sr. Inspetor das Obras contra as Seccas ignora, desconhece as regiões que estão directamente dependentes do seu serviço, do serviço que dirige [sic].34
Inúmeras declarações como esta foram pronunciadas na Câmara Federal nesse período.
Delas participavam, inclusive, parlamentares de outros estados que não aqueles diretamente
interessados na ajuda governamental. Nomes como os de Cândido Mota, Gustavo Barroso,
Justiniano de Serpa e Alberto Maranhão acorriam calorosamente aos debates travados. Se
expressavam nos discursos os ressentimentos do grupo de representantes dos estados do
nordeste do país que se viam preteridos nas delimitações espaciais da região das secas
entendidas por Aarão Reis como sendo, naquele momento, do Piauí à Paraíba. O engenheiro,
por sua vez, permaneceria impassível diante de tais críticas, acompanhando-as, no entanto,
aguçadamente. No seu diário pessoal, ao lado de vários recortes de matérias que saiam sobre
essas discussões nos jornais, Reis se mostrava impassível diante das críticas recebidas. Ao
34 BRASIL. Annaes da Câmara Federal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, v.6, P. 807-813.
157
passo em que ecoava nas confissões de Aarão Reis uma frustração por ter tantos anos de
serviços prestados ao Estado e não possuir neste uma posição de liderança de fato. Em fins de
agosto e começo de setembro, ao saber da notícia de que seria enviado ao Ceará para instalar
os novos serviços contra as secas, um Reis ressentido assim confidenciava:
O Governo deliberou que eu siga até o Ceará afim de instalar, de mais perto, os novos trabalhos a iniciar contra a seca, organisados diretamente subordinados a Inspetoria de Obras Contra as Secas, com dependência dos distritos. Nunca fiz maior sacrifício na minha vida profissional de mais de 40 anos35 Sigo para o norte pelo paquete Bahia do Lloyd Brazil. Nunca fiz maior sacrifício... Deixo apreensivo minha velha e querida mulher e meus filhos [sic]36
Sua posição pessimista com relação à política e, mesmo, suas concepções de ciência
embasadas no positivismo o deixavam numa posição peculiar no Brasil da Primeira
República. Mesmo aos olhos de outros membros da IOCS, a posição de Reis diante do
combate às secas era criticada. Diante da situação de crise pela qual o país passava, Reis
conseguiu o aval do presidente da República para, à frente do combate às secas, criar uma
comissão avulsa da IOCS onde pudesse escolher seus próprios auxiliares ― mesmo que estes
fossem escolhidos fora dos quadros da IOCS ― e centralizar as decisões em torno da sede
central no Rio de Janeiro, deixando os distritos estaduais do órgão como meros lugares de
apoio para decisões que seriam tomadas pelo chefe das novas obras contra as secas, ou seja, o
próprio Aarão Reis. As “obras novas contras as secas”, como assim foi denominada a
comissão que Reis foi incumbido de formar no período em que durou a seca, teve um tempo
útil de três anos ― entre 1915 e 1918 ― e foi objeto de inúmeras discussões nesse ínterim.
Para ajudar na empreitada o engenheiro se cercou de vários outros engenheiros oriundos,
35 In: Museu da República. Arquivo/ Coleção Aarão Reis. Código AR 1911.08.00. Série Produção Intelectual. Livro 5. Manuscrito do Diário de Aarão Reis datado do dia 31 de agosto de 1915. P. 25. 36 In: Museu da República. Arquivo/ Coleção Aarão Reis. Código AR 1911.08.00. Série Produção Intelectual. Livro 5. Manuscrito do Diário de Aarão Reis datado do dia 10 de setembro de 1915.
158
principalmente, da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e mudou seu gabinete para uma saleta
da Repartição Geral dos Telégrafos, quartel-general dos politécnicos e que
[...] compartilhavam concepções segundo os quais o telégrafo elétrico deveria desempenhar funções de ‘precursor do progresso’, de uma ‘sonda’ a perscrutar regiões desertas e desconhecidas, auxiliando nos trabalhos de exploração e, principalmente, como instrumento de administração e governo.37
Na repartição dos telégrafos, o engenheiro Aarão Reis centralizava as ações das obras
contra as secas confeccionando projetos de obras ladeado por homens como Flávio Torres
Ribeiro de Castro, Arthur Enoch dos Reis, Jayme Leal da Costa, Arrigo Werneck Rossi, José
Maria de Vasconcelos, José Rodrigues Ferreira e Tasso Benjamin da Mota, todos eles
formados na Escola Politécnica. Cercar-se de engenheiros politécnicos ajudaria a compor um
pensamento unívoco no interior do projeto intervencionista para os sertões, que priorizaria, na
sua formulação, os preceitos positivistas. Ademais, sendo quase todos jovens recém-
formados, o engenheiro Aarão Reis comumente tratava afirmar sua posição de comando, de
professor, à frente daqueles. Assim sendo, Reis agradecia, em seu relatório ― onde se
expressava a hierarquia que impusera à frente da “Comissão de Obras Novas Contra as Secas”
―, afirmando-se com termos que salientavam sua experiência em três níveis: na liderança de
políticas do Estado ― o “velho administrador” ―, à frente dos jovens engenheiros por ele
escolhido ― o “velho professor”, inclusive marcando espaço desses engenheiros chamando-
os de “mocidade” ― e como engenheiro ― o “velho profissional”. Vale a citação:
É com a mais viva satisfação, com verdadeiro desvanecimento de velho professor, profissional e administrador, que nesta pájina de honra, destaco, reunidos, os nomes – que espero refuljam, ainda laureados, na história técnica e administrativa do paiz – dos jovens patrícios a cuja promissória mocidade recorri e que – auxiliando-me na execução das obras novas contra as secas, que fui incumbido de realizar, de 1915 a
37 MACIEL, Laura Antunes. A Comissão Rondon e a Conquista ordenada dos sertões: espaço, telégrafo e civilização. In: Projeto História. São Paulo: PUC, 1999. Nº 18. P. 168.
159
1918, no nosso nordeste semi-árido – corresponderam, além da expectativa, à confiança e às esperanças da minha escolha [sic].38
Com o esvaziamento do poder dos distritos, muitos foram os membros da IOCS que
criticaram a administração de Reis. Thomaz Pompeu Sobrinho, o engenheiro-chefe do 1º
distrito, com sede em Fortaleza, assim contava a história das ações de combate às secas:
Finalmente foi criada a Inspetoria de Obras contra as Seccas, pelo Ministro Francisco Sá no Governo do Dr. Nilo Peçanha, em 1909. Deu-se-lhe um plano vasto, e procurou-se systematizar a lucta contra as sêccas, racionalmente. Infelizmente, a falta de profissionaes, a acção dissolvente da politicagem e o prestigio esdrúxulo de certo funcionário ignorante e autoritário fizeram burlar as boas intenções do Governo [...] [sic].39
Há de se salientar que, naquele contexto, dois vieses de crítica entravam em ação: o
Aarão Reis administrador batia de frente com interesses políticos que se fizeram presentes ―
como já demonstrado em capítulos anteriores ― desde a criação de um órgão de combate às
seca e, por outro lado, o mesmo era criticado por manter um entendimento científico distinto
sobre o sertão. Sobre o primeiro ponto, o próprio Reis reafirmava o seu distanciamento com
relação à política de maneira irônica, em entrevista ao Jornal do Comércio, em fins de 1915:
“Mesmo sem essa formalidade “do enterro” o meu lugar está já vago na administração pública
por decreto e na política militante por invencível e crescente aversão aos que, como tal,
imperam na República”.40
A postura devotada à ciência de Reis, por sua vez, trazia outros tipos de embates como
se pode analisar numa comparação entre a postura de Pompeu Sobrinho e Aarão Reis. Se, por
um lado, a posição de Pompeu Sobrinho e de Aarão Reis convergiam com relação à política,
por outro lado, a posição de Reis como cientista, com uma ideologia embasada no
38 REIS, Aarão. Op. Cit. P. XLIX. 39 POMPEU SOBRINHO, Thomaz. O problema das secas no Ceará. Fortaleza: Eugênio Gadelha & Filho, 1920 (1ª ed. 1916). P. 13. 40 In: Museu da República. Arquivo/ Coleção Aarão Reis. Código AR 1911.08.00. Série Produção Intelectual. Livro 5. Recorte do Jornal do Comércio do dia 6 de novembro de 1915, incluso no Diário de Aarão Reis. s/nº.
160
positivismo, o colocava numa posição de confronto diante dos demais tipos de visões
científicas que se aglomeravam no órgão desde a administração de Arrojado Lisboa. Essa
posição de confronto no interior da comunidade científica à frente do órgão era o resultado de
olhares divergentes sobre os sertões das secas no Brasil, bem como de posições contrárias
acerca do lugar da ciência na sociedade. Assim sendo, se, para Thomaz Pompeu Sobrinho, o
problema dos sertões era a falta de água (“Luctar efficiente e deffinitivamente contra as
seccas no Ceará seria construir açudes [...] com as respectivas obras de distribuição de águas
[sic]”41), para Reis, o atraso seria por falta de estradas, opinando este último pelo
“dezenvolvimento dos meios de fácil CIRCULAÇÃO dos produtos e da água, garantida por
estradas de penetração e açudes disseminados [sic]”.42Administrativamente, Pompeu
Sobrinho era a favor da descentralização (“Parece que as funcções do inspetor devem ser mais
de fiscalização do que de administração, uma vez que é quase impossível no Rio de Janeiro
ter-se oportunamente conhecimento dos factos mínimos dos serviços [sic]”43), Aarão, por sua
vez, era, como já salientado, a favor de uma maior centralização no combate às secas.
Adepto da antropogeografia de Ratzel, Pompeu Sobrinho compreendia que a natureza
nos sertões ajudaria no combate às secas:
Resolver definitivamente o problema das secas não é somente um acto de suprema caridade e bem entendido patriotismo. É muito mais que isto, pois significa criar para a Nação novas e poderosas fontes de riqueza, elevar consideravelmente o índice econômico do paiz, elevar moralmente uma população intelligente e laboriosa a um estado superior de civilisação e, finalmente, auxiliar a natureza a augmentar o rendimento dessa officina gentium que espalha por todo o Brasil seus filhos sequiosos de actividade [sic].44
Por sua vez, Aarão Reis acreditava no enfrentamento direto com a natureza, no poder da
arte humana como meio de fazer desaparecer gradualmente os efeitos das secas “desde que
41 POMPEU SOBRINHO, Thomaz. O problema das secas no Ceará. Op. Cit. P. 64. 42 REIS, Aarão. As secas do nordeste. Op. Cit. P. 236. 43 POMPEU SOBRINHO, Thomaz. O problema das secas no Ceará. Op. Cit. P. 44. 44 Idem. P. 39.
161
persistente e rezoluta a ação intelijente e dilijente da arte humana no sentido de enfrentál-o e
de combatêl-o [sic]”.45
A distinta formação ideológica desses dois cientistas representa, de forma sintomática, a
complexidade da comunidade científica brasileira do período. Se ambos os engenheiros
acreditavam no poder do progresso como elemento civilizatório, a forma como definiam o
que viria a ser o “progresso” e mesmo a maneira como encaravam o caráter de sua
intervenção na sociedade eram díspares. Ademais, se, tanto Aarão Reis quanto Pompeu
Sobrinho, constantemente, imiscuíam-se numa crítica à política, não convergiam quanto à
forma como essa deveria ser administrada. Se Reis era positivista e primava por uma
administração hierarquizada, onde um chefe orientaria a sociedade em suas ações, por seu
turno, Pompeu Sobrinho aproximava-se profundamente de um liberalismo. Liberalismo que
era professado por grande parte daqueles que, como Pompeu Sobrinho, eram remanescentes
da administração de Arrojado Lisboa. Este, em muitos momentos, expôs seu pensamento ao
salientar que acreditava ter a ciência também uma política que possuía “interesse na
integridade política da nação, uma política sem eivas e preconceitos, política liberal que possa
evitar o choque com interesses econômicos contrários”.46
Essas reflexões nos conduzem àquilo que Foot Hardman constatou sobre a formação de
engenheiros nacionais na virada do século XIX para o XX:
[...] a cabeça dos engenheiros brasileiros da segunda metade do século XIX [...], combinava exemplarmente elementos do positivismo e do liberalismo, disciplina do trabalho e visão transformadora da paisagem, parcimônia de gastos e modernidade urbano-industrial.47
45 REIS, Aarão. As secas do nordeste. Op. Cit. P. 245. 46 LISBOA, Arrojado. O problema das seccas. In: ANNAES DA BIBLIOTHECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO, V. XXXV, Rio de Janeiro: Officinas Graphiacas da Bibliotheca Nacional, 1916. P. 28. 47 HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 93.
162
Esses enfrentamentos de natureza política e ideológica fizeram criar uma distância entre
Aarão Reis e grande parte dos membros da IOCS alocados nos distritos estaduais do órgão.
Ademais, o próprio Reis trabalhava no sentido de minar a força dos distritos em detrimento de
seu próprio poder de mando como chefe de obras contra as secas. Suas opiniões com relação
ao papel dos distritos da IOCS eram extremamente negativas. Inúmeras vezes, Reis embasou
seus pontos de vista na contiguidade que possuía como chefe de repartições públicas, tirando
daí sua autoridade para pronunciar-se sobre o assunto:
Em geral, o Inspetor deveria de ajir, sem preocupações de ordem subalterna pessoal, na distribuição do pessoal pelos diversos distritos em que se divide a ação da Inspetoria; sería, porém, afirmar uma inverdade pretender que assim é. A minha prática de comando é, porém, muito longa, e experimentada em ambos os rejimens político-administratívos que se sucederam, para que eu leve tais dificuldades a conta das que, de fato, anulam a ação diretora, embora a prejudiquem bastante. Quem não tem cachorro, cáça com gato, lá diz o ditado popular; e não há remédio sinão a...rezignação evanjélica [sic].48
Ao erigir-se em autoridade pelo fator “tempo de serviços prestados”, o engenheiro
buscava daí afirmar suas assertivas sobre a necessidade de mudanças na IOCS. Assim foi que
na nova situação criada pela seca de 1915, Reis conseguiu colocar em marcha essas idéias
quando foram aprovadas, em setembro de 1915, juntamente com o crédito especial para
combater as secas, as instruções para as “obras novas contra as secas”. De fato, a primeira
instrução era a expressão clara dessa busca incessante pela autoridade como chefe de obras
contra as secas:
Essas obras serão executadas sem dependência alguma da direção do distrito em cuja zona estiverem localizadas; mas, o distrito deverá de prestar, aos profissionais que delas estiverem encarregados, como estes ao distrito, os auxílios conducentes á boa marcha dos serviços e á harmonia conveniente a trabalhos públicos a cargo do mesmo Ministério.49
48 REIS, Aarão. Relatório de Obras Novas Contras as Secas. P. XIII. 49 Instruções para a execução das Obras Contra as Secas, a que se refere à lei nº 2.974, de 15 de julho de 1915, e que tinham de ser executadas por intermédio da Inspetoria. In: REIS, Aarão. Relatório de Obras Novas Contra as Secas. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1920. P. XXXII.
163
A partir de setembro de 1915, cada vez mais se aprofundou o fosso que separou os
distritos da IOCS e o chefe de obras contra as secas (ou, como Reis fazia questão de se
autodenominar, o “inspetor extinto de obras contra as secas”50). De fato, era como se,
paralelamente à existência da IOCS, se formasse um serviço paralelo, a “Comissão de Obras
Novas Contra as Secas”. De resto, esta comissão foi uma forma encontrada pelo então
presidente Wenceslau Brás para dar maior autonomia a Reis e para que este pudesse, num
momento de emergência, como era aquele de seca, encetar seus objetivos sem os entraves
burocráticos que o engenheiro atestava existir na IOCS. Nela, Reis indicou as obras, os
engenheiros e distribuiu, entre seus escolhidos, o orçamento necessário dentro dos créditos
especiais que o governo federal fez abrir.51 As Obras Novas Contra as Secas representaram,
nesse contexto, uma quebra dentro do projeto científico inicial da IOCS, o agravamento de
tensões que colocariam em lugares opostos o chefe das obras novas e as elites políticas, como
já demonstrado.
A querela político-ideológica que se seguiu ao advento da seca de 1915 também
resultou num rompimento entre o chefe das obras contra as secas e seus subordinados da
IOCS. Tal atitude pode ser compreendida, se analisarmos as posições antagônicas que
tomaram os seus partícipes. Porém, desviar-se de fazer uma análise de uma conjuntura que
pressionava o poder brasileiro a agir de maneira mais rápida, como era o momento de seca no
nordeste brasileiro, seria desdenhar a compreensão de um ponto fundamental no processo de
construção do Estado.
50 Essa expressão aparece na capa do Relatório de Obras Novas Contra as Secas. Reis voltaria a expressar-se assim em inúmeras vezes. Em carta ao amigo, o Dr. Jº Coelho, datada de 9 de julho de 1916, Reis confidenciava: “Do retiro a que me mandaram recolher como funcionário os altos poderes da Nação, julgando-me, ao que parece, inapto para continuar ao serviço dela e declarando-me, por isso, extinto [...]”. In: Museu da República. Arquivo/Coleção Aarão Reis. Código AR 1911.08.00. Série Produção Intelectual. Livro 5. Manuscrito do Diário de Aarão Reis datado do dia 9 de julho de 1916. 51 No período em que existiram as “Obras novas contra as secas”, ou seja, entre 1915 e 1918, foram autorizados sete créditos especiais para ajudar o combate às secas, chegando, no final do período, a um total de 12.350.000 contos de réis. Cf: REIS, Aarão. Relatório de Obras Novas Contra as Secas. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1920. P. XLI.
164
Ora, uma vez que a seca de 1915 pegou o país em plena crise fazia-se necessário, assim
Reis pensava, que, diante de um problema como o advento das secas, fosse dada a rápida e
imediata solução, a fim de que as secas não resultassem em maiores embaraços para o
governo central. A solução trazida por Reis ao então presidente Wenceslau Brás, qual seja, a
de dar ao chefe do serviço maior autonomia para empreender as medidas necessárias,
convergiu com a ideia do governo federal de resolver de forma imediata as secas.
Em setembro de 1915, foram iniciadas as obras que, sob as ordens diretas de Aarão
Reis, se fariam nos sertões. De 1915 a 1918, Aarão estaria à frente das seguintes obras
indicadas por ele mesmo a se proceder nos sertões das secas:
TABELA III – Relação das Obras a cargo da Comissão de Obras Novas Contra as Secas
OBRA LOCAL
Açude Serra dos Cavalos Pernambuco
Açude Bodocongó Paraíba
Açude Cajazeiras Paraíba
Estrada de Rodagem Campina Grande - Soledade Paraíba
Estrada de Rodagem Cajazeiras - Sousa Paraíba
Açude Arapuá Rio Grande do Norte
Açude 25 de Março Rio Grande do Norte
Açude Pessoa Rio Grande do Norte
Açude Saco Rio Grande do Norte
Estrada de Ferro Mossoró-Alexandria Rio Grande do Norte
Melhoramentos da Estrada de Rodagem Macau-Assú Rio Grande do Norte
Aterro da lagoa do Própria Rio Grande do Norte
Açude Mulungu Ceará
165
Açude Parazinho Ceará
Açude Guayuba Ceará
Açude Bahu Ceará
Açude Caio Padro Ceará
Açude Patos Ceará
Açude Riacho do Sangue Ceará
Estrada de Rodagem Baturité-Guaramiranga Ceará
Estrada de Rodagem Sobral-Meruóca Ceará
Açude Velame Ceará
Açude Várzea da Volta Ceará
Estrada de Rodagem Quixadá ao açude Riacho do Sangue Ceará
Açude Anajás Piauí
Estrada de Rodagem Floriano-Oeiras Piauí
Estrada de Rodagem Rio Branco-Buique Pernambuco
(Fonte: Obras Novas Contra as Secas. Relatório de Obras Novas Contra as Secas. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1920)
Em todas as obras acima citadas, ficou Aarão Reis encarregado de indicar o chefe de
serviço que achasse mais competente para dirigir. Este, por sua vez, teria de responder
diretamente ao chefe das Obras, no caso, Aarão Reis, ficando os distritos como auxiliares nas
obras a serem feitas.
O engenheiro, por sua vez, deixava claro que seu maior objetivo como chefe, naquele
momento, seria o de acionar obras que “sem a necessidade da importação e do transporte de
pezados e caros materiais, poderão ocupar muitos braços, ser realizados com relativa rapidez e
determinar pronta eficiência [sic]”.52 Dar ao sertanejo algum trabalho para que este não
migrasse do sertão era encarado por Reis como matéria fundamental. Suas assertivas sobre o
52 REIS, Aarão. Relatório de Obras Novas Contra as Secas. P. XI.
166
trabalho como elemento de moralidade nos sertões foi posto inclusive nas instruções que fez
baixar sobre o funcionamento das obras novas contra as secas: “Nem um fornecimento em
gêneros para alimentação, ou artigos de utilidade qualquer, será feito dirétamente aos
trabalhadores [sic]”53, pois, para Reis, o trabalho “nobilita, em vez da esmola, que avilta”54.
Essa ênfase no valor do trabalho ― já discutido, aqui, em outro momento55 ― era parte de
uma ideologia do progresso que entendia também o homem como valor econômico. Num
estudo sobre as secas, Reis, como para exemplificar o que defendia, fez citar um trecho do
estudo do então ministro da viação Tavares de Lyra em que este enfatizava:
A nosso ver, e para chegar quanto antes a semelhante rezultado, podemos e devemos ir, em épocas normais, até á realização de uma grande operação de crédito, para cuja justificação bastaria considerar o valor homem como fator econômico e ter em vista que, com ela, seriam salvas, de prezente e de futuro, muitas centenas de brazileiros aos quais as hostilidades ambientes deram uma corajem e uma rezistência excepcionais [sic].56
Também à frente dos serviços contra as secas, Reis colocou em prática seu plano para a
construção de vias de circulação. Foi na administração do engenheiro, que pela primeira vez,
a IOCS construiu estradas de rodagem na região como meio de atenuar as secas. Aí se
expressava o pensamento de Reis de que o principal problema a se resolver nos sertões não
era bem dar à sua agricultura os meios necessários para se desenvolver, mas, antes, fazer
circular ideias e bens, coisas que, no sertão, eram ainda escassas. Daí a preferência por obras
que pudessem impulsionar essa tarefa, pois “sem CIRCULAÇÃO fácil, acelerada e ampla,
rezultarão inúteis quantos esforços dezinvolvidos no afan de alargar e intensificar a nossa
PRODUÇÃO DE RIQUEZA [sic]”.57 Dessa forma, marcava Reis distância de um olhar que
entedia a seca como um problema fundamentalmente da agricultura e, por consequência,
53 Idem. P. XXXIII. 54 REIS, Aarão. As secas do nordeste. Op. Cit. P. 235. 55 Ver p. 65 desta Dissertação. 56 Idem. P. 242. 57 REIS, Aarão. As secas do nordeste. P. 229.
167
entrava em choque não só com aqueles que tinham concepções diferentes da sua sobre o
problema das secas, mas, também, com as elites locais que se viam favorecidas com os
incrementos agrícolas na região, que advinham da ampla construção de açudes, até aquela
data priorizados.
Para Aarão Reis, haveria de se repensar as teses que avaliavam o Brasil como sendo um
país essencialmente agrícola. A posição de Aarão Reis ia de encontro a esta ideologia. O
engenheiro, quanto a isto, era inflexível e enfatizava:
Erro, pois, foi – e erro de funestíssimas conseqüências – ter-se arvorado no Brazil, o lema de paiz essencialmente agrícola, que subjugou os espíritos mais lúcidos de nossos tranqüilos 60 anos de monarquia liberal ao ponto de tornar-se preocupação nacional obsecante fomentar a produção numa rejião miraculozamente fértil. [...] E, apoz mais de meio século de tranqüilidade interna e de integridade nacional – que fuljem, devidamente, no ativo império bragantino – deixou-nos ele, neste gigante territorial, sem sistema circulatório, tanto mais imprecindível quanto mais extenso o organismo [sic].58
Novamente usando a metáfora do corpo humano, ia Aarão Reis interpretando o
fenômeno das secas no Brasil de forma a dar-lhe um sentido e uma imagem.
A ideia de Aarão Reis de “desfederalizar” a ação contra as secas era acompanhada de
um projeto que desfocava o fomento da indústria agrícola ― que desaparecia dos seus
relatórios ― em prol da ênfase na circulação de ideias, de mercadorias, de água. Daí sua
insistente defesa na construção de estradas de rodagem no semi-árido antes mesmo do
fomento à produção no local. O lugar “sertão” ganha uma nova roupagem, uma nova
construção imagética, onde não é mais possível falar de lugar de futuras riquezas
proporcionadas por uma agricultura racional, mas, antenado com aquele momento de crise
que era a seca, o sertão era, agora, o lugar onde se deveriam circular as riquezas que eram
escassas, espaço onde, através das estradas, deveria vir o Estado a trazer a civilização. Sertão
58 Idem. P. 227.
168
era território da escassez e seria assim até que o desenvolvimento dos centros civilizados o
alcançasse através das vias de circulação.
O sertão semi-árido não era encarado mais como o lugar da pujança ― do futuro
agrícola próximo ―, mas território do atraso, da desorganização e, mesmo, da imoralidade. O
presente era desalentador e o futuro dependia unicamente da comunicação com os centros
produtores mais civilizados.
Erro, pois, - e erro, mais do que impatriótico, porque dezumano, - pretender proporcionar à respectiva produção o sistema circulatório duma qualquer rejião, quando é, ao contrário, deste que depende o dezenvolvimento normal daquela; e, com ele, a prosperidade correspondente, determinando gradoal e progressiva elevação generalizada do nível médio do conforto e do bem-estar humano, isto é, da civilização [sic].59
Para Aarão Reis, as estradas levariam a civilização onde esta ainda não existisse. Só
essa civilização trazida de alhures poderia salvar o sertão de si. Nesse contexto, não era a
açudagem e os possíveis incrementos agrícolas que, a priori, iriam desenvolver a região, pois
ela não tinha esse potencial em si. Embora essa açudagem fosse afirmada como necessária
para evitar um êxodo maior dos braços da região no momento de seca, de nada adiantaria se a
“civilização” não alcançasse aqueles locais. As estradas, estas sim, seriam fundamentais para
“civilizar” o local, afim de o organismo social alcançar certa salubridade através da circulação
das mercadorias:
Estradas [...] que ponham em contínua comunicação, rápida e barata, os centros produtores com os mercados de consumo, depois de facilitarem o acesso áquêles dos variadíssimos elementos naturais a modificar e transformar para a conveniente adaptação aos uzos de vida [sic].60
Essa inquebrantável crença de Reis no poder da civilização afirmava as obras contra as
secas como projeto civilizador e, como consequência, elevava as obras a algo como um
59 Idem, P. 226. 60 Idem. P. 245.
169
“dever nacional” e de “patriotismo”, como bem tentou o engenheiro esclarecer. Reis
reafirmava o caráter nacional das obras nos sertões, mas, é preciso observar, embasava as suas
argumentações naquilo que considerava uma “obra da civilização humana” e não só um
problema nacional:
Não é só, portanto, o sentimento que torna imperiozo o dever nacional de amparar o nosso nordeste semi-árido contra os efeitos – calamitozos, ali – da má CIRCULAÇÃO NATURAL DAS ÁGUAS; é o próprio interesse derivado dessa inquebrantável solidariedade humana, que reúne num só organismo milhões de indivíduos e dá a cada povo assim constituído – uma alma como sinteze desse miraculozo sentimento que é o PATRIOTISMO [sic].61
Colocava o engenheiro os limites do “sentimento” em prol de um “dever” derivado de
um “interesse”, assegurando ser o combate às secas uma obra que era devotada à razão
humana ― e não mero produto das paixões humanas. Esse humanitarismo cosmopolita62 era
cantado em prosa e verso por muitos intelectuais do período e pode ser entendido como um
sintoma de uma comunidade intelectual que buscava seus espaços na sociedade, a justificativa
política de seus atos diante do social. É fácil perceber no discurso de Reis uma narrativa que
oscila entre ver as secas com olhos da razão e, concomitantemente, percebê-la como obra da
alma nacional munida por um sentimento de comunhão. Paixão e razão se mesclam dentro de
um discurso científico expressando os limites de enunciação pelo qual tiveram os cientistas
brasileiros de passar. A lógica é simples: a “nação” ― entendida como laços fraternais que
ligavam os indivíduos, portanto, algo como uma “subjetividade coletiva” ― seria construída
por ato de “dever” governado pela razão. Daí o papel da ciência nesse concurso. A
substituição progressiva de um sentimento por um impulso racional era considerada inevitável
na marcha positivista pregada por Reis. Vale a citação:
61 Idem. P. 245. 62 Essa expressão era usada por Nicolau Sevcenko para designar as ações intelectuais que na denominada “belle èpoque” que priorizavam a questão social aliado ao que entendiam como sendo “civilizador”. Cf: SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
170
O exame atento da evolução da sociedade humana evidencía que tende ela, normalmente, para o predomínio da fôrça intelectoal sobre a força bruta, do saber sobre a ignorância, das idéias gerais sobre as idéias particulares, da razão sobre as paixões e das noções de justiça sobre as de interesse, no contínuo dezinvolvimento das faculdades superiores do ser humano, embora impossível inversão completa, por serem sempre mais poderozos os impulsos do egoísmo das paixões das necessidades do que os do altruísmo dos corações bem formados[...] [sic].63
Essa busca por verdades era entendida por Reis como algo natural, “[...] ináta à
inteligência do ente humano [sic]”, sendo um desenrolar também natural do “progresso
firmado na ordem e estimulado pelo amor”.64 Se, por um lado, as secas obedeciam a leis
imutáveis, sendo o homem impassível diante desta lei, por outro, a evolução de suas
faculdades mentais o tornaria potencialmente apto a retirar do espaço assolado pelo fenômeno
climático a riqueza para a nação. A natureza seria o dado ― o previsível por leis que seriam
descobertas pela faculdade humana. O processo ― a história ― estaria no homem positivo,
este sim em “evolução” para um caminho que levava, inevitavelmente, à razão. Ao definir o
homem sertanejo, reverberava também em Reis um imaginário herdeiro da leitura euclidiana
dos sertões. Os elementos elencados para definir homem e espaço comungavam com uma
imagem do sertão que se tornou durante muito tempo lugar-comum na narrativa sobre os
sertões. Assim foi que Reis exprimiu o sertão semi-árido como sendo um espaço de
potencialidade, pois
E basta, para imaginál-o, oboservar ali o que ali acontece quando, durante alguns anos consecutivos, deixa de manifestar-se o impiedozo fenômeno da seca bem caracterizada. Em tais períodos, infelizmente raros e curtos, os cearenses – porque são eles as principais vítimas desse flajélo, que estende por todo o território do Estado sua lúgubre mortalha de crueldades, não lhes deixando quázi refújio algum – os cearenses lembram formigas de incansável laboriózidade, alegres, fecundas, dilijentes, sóbrias e previdentes. Toda essa faina – graças á qual tem logrado relativa prosperidade essa terra abençoada, apezar do açoite periódico – dezaparece inopidamente desde que se accentúa a seca; e, si esta se prolonga além do ano, o cenário se transforma, crestada a vejetação, dizimados os rebanhos, dezaparecidas as crianças menos aptas para a
63 REIS, Aarão. Economia política, finanças e contabilidade. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918. P. 43-44. 64 Idem. P. 39.
171
rezistência, envelhecidas de improvizo as mulheres e esterilizadas pelo depauperamento precoce e convertidos os homens, cuja robustez se traduzia hontem numa produção abundantíssima de couzas e de pessoas , em esqueletos ambulantes de lamentável impotência... [sic]65
A citação é longa, mas vale para a compreensão de uma pré-disposição do cientista
quando em confronto com o sertão. Embora o discurso de Reis destoasse, em muitos pontos,
das ideias daqueles engenheiros remanescentes da administração Arrojado Lisboa ― e, como
já demonstramos, destoava inclusive do ponto de vista da organização administrativa dos
serviços contra às secas ―, a representação do sertanejo aproximava-os. Ambos o encaravam
como um homem em completa interação com a natureza e, portanto, expressão dessa
instabilidade. Se as concepções para a superação das secas os distanciavam, o imaginário,
ironicamente, os aproximava. O papel desempenhado por essas aproximações fazia com que o
sertanejo fosse representado como um “retrógrado” e “fraco” diante das secas, definição que
afirmava, assim, para aqueles que estavam à frente das obras contra as secas, as ações do
progresso sobre os sertões.
Fato foi que as ideias de Aarão Reis só puderam reverberar hegemonicamente no
momento de crise representada pela seca de 1915. Com Aarão Reis, se expressou uma política
francamente de acordo com os parâmetros positivistas de direção da sociedade. A força dada a
Reis como chefe faria a IOCS desaparecer sob o véu da “Comissão de Obras Novas Contra as
Secas”.
Ao final do período à frente das obras contra as secas, Aarão Reis deixou dezessete
obras concluídas, sendo três delas de estradas de rodagem (de Baturité a Guaramiranga, de
Sobral a Meruoca ― ambas no Ceará ― e de Campina Grande a Soledade ― em
Pernambuco). O relatório que fez publicar em 1920 atesta as concepções de um profissional
ciente de seu “lugar” em uma sociedade que se modernizava, embora expresse, diversas
vezes, neste relatório, sua insatisfação diante da situação política no Brasil.
65 Idem. P. 232.
172
A compreensão do problema dos sertões como sendo irremediável sem o concurso da
modernização e que esta só viria, por conseguinte, com a modernização das práticas políticas
do Estado brasileiro foi uma marca indelével de Reis, e isto se expressou na sua postura como
chefe de obras contra as secas. Fazendo parte de um grupo de engenheiros que entendiam suas
práticas não só como ferramentas da política, mas ela mesma detentora de uma política
específica a ser encetada, Aarão Reis teve de bater de frente com as próprias amarras de um
poder do qual fazia parte. Ademais, analisar a ação de Reis nos coloca diante dos jogos de
poder que constroem e compõem a ciência. A expressão dessa face da ciência fica nítida
quando nos debatemos com as querelas nas quais se envolveu o engenheiro quando à frente
das obras contra as secas. A definição de espaços de luta dentro das discussões acima
analisadas nos coloca num entrave para definir em que espaços se desenrolavam as disputas:
eram elas de natureza meramente científica ou também política?
A resposta nos é indicada quando percebemos que os postos de definição de ambas as
áreas não eram tão nítidos naquele momento. Aqui, o analista menos atento ― ou menos
afeito às ferramentas historicizantes ― chegaria, talvez, a uma aporia. Seja porque não atesta
que os sujeitos envolvidos nos debates transitam nas duas áreas, seja porque pré-concebe que
a ciência não adentra no campo da política. Descartando essa análise, que, para o estudo aqui
empreendido, não resultaria numa compreensão muito clara do que pretendemos desde o
início, entendemos que devamos estar atentos para o caráter político das ações científicas no
projeto de um órgão para o combate às secas. A emergência do técnico na sociedade brasileira
que se queria moderna construiu pólos de atrito entre um grupo social que emergia, resultado
de uma demanda social cada vez maior por seus serviços, e uma classe dirigente que
precisava do concurso de um discurso científico para se autoafirmar nos novos tempos. Por
outro lado, o próprio processo de construção desse discurso científico contribuiu para que esse
173
grupo, em muitos momentos, não tivesse, para a afirmação de seu papel social, uma opinião
homogênea sobre os limites de sua prática.
A comissão criada por Aarão Reis no momento da seca de 1915 representa essa última
assertiva, uma vez que coloca em debate não só pares tais como político/cientista,
expressando o quanto uma ideologia que se queria tão profundamente embasada na ciência e
com um projeto social amplo (como era o positivismo) pôde conviver numa sociedade ainda
marcada por traços de interesses particularistas diversos, mas, também, faz pensar como se
colocaram, frente a essa mesma ideologia, outras formas de conceber o papel do par
intelectual/cientista na sociedade brasileira.
Esses embates trouxeram para o projeto de combate às secas, como analisado nas
páginas anteriores, não só inúmeros constrangimentos, mas, principalmente, uma forma ― em
alguns aspectos, nova ― de perceber o sertão das secas, mediado por uma visão científica
diferente daquela direcionada na administração anterior de Arrojado Lisboa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Informados por um saber que se propunha moderno, os cientistas que dirigiram seus
esforços para decifrar os sertões a serviço da IOCS estabeleceram, comumente ― como
procuramos demonstrar ―, uma relação ambígua com aquele espaço. As definições dos
problemas a serem combatidos e das imagens cunhadas sofriam descontinuidades dependendo
do sujeito que analisava os sertões. Essa descontinuidade foi expressão das ambiguidades do
profissional de ciência no Brasil ― sedento por uma posição de destaque na sociedade e, ao
mesmo tempo, detentor de um saber crítico ―, resultando, daí, em práticas múltiplas dentro
da IOCS e em olhares distintos sobre os sertões. Se, por um lado, houve, por parte daqueles
que estiveram a serviço da IOCS, uma necessidade de afirmar seus papéis como produtores de
um saber necessário na sociedade, por outro, os mesmos encontravam-se alocados num órgão
do Estado brasileiro, fazendo parte, portanto, do processo de construção do poder desse
mesmo Estado. Essa posição, um tanto quanto curiosa no Brasil da Primeira República,
comportou inúmeras especificidades de ações por parte dos cientistas desse órgão.
Sob essa constatação, logrei investigar a ligação entre saber e poder que se efetuou no
processo de construção da IOCS. Esse casamento se estabeleceu, como observei, num
momento em que a categoria intelectual de cientista estava se delineando no Brasil e
comportou inúmeros debates sobre seu papel social.
Se, na primeira administração da IOCS, houve um equilíbrio entre as concepções
defendidas por Arrojado Lisboa e as demandas políticas das elites dirigentes, a gestão de
Aarão Reis colocou-se, por diversas vezes, em confronto direto com essas elites. Em parte
esses confrontos, como tentamos afirmar, foram o resultado de discursos de diferentes
matrizes construídos sobre o espaço sertanejo. Demonstramos que esses discursos devem ser
compreendidos como narrativas que possuíam uma natureza política, fossem elas formuladas
175
para reafirmar o papel do intelectual-cientista diante da sociedade, fossem para defender uma
visão de ciência ― que, de resto, ainda engatinhava no Brasil ― para seus pares. Por fim,
fundamentalmente, respondia pela consolidação de um discurso de autoridade. Essas
operações, que se expressavam, por vezes, no interior de uma narrativa sobre sertões, diziam
das tensões que existiam na própria construção desses espaços de poder da ciência no,
também, ainda em construção, Estado republicano.
Esses discursos questionavam comumente a forma não-científica de compreender o
espaço, colocando-se em posição contrária aos discursos construídos pelos “não-especialistas”
e pelos “românticos”, palavra que designava um amplo leque de indivíduos que produziram
visões acerca do sertão nos séculos anteriores e que, para o novo olhar científico, deveriam ser
consideradas obsoletas.
A forma como esse processo de construção de um saber-poder se colocou no projeto
intervencionista da IOCS, tendo de lidar com as elites políticas ― ora em posição antagônica,
ora tendo de reafirmar certas práticas historicamente construídas para assegurar hierarquias
sociais ― não resultou em um discurso único que apagasse as enormes disparidades das
distintas formas de se fazer ciência no Brasil. Positivismos, liberalismos, utilitarismos,
federalismos e outros tantos “ismos” foram algumas das ideologias professadas por aqueles
que compunham os quadros da IOCS, encenando, no órgão, uma complexa rede de olhares
que conformaram e orientaram práticas intervencionistas nos sertões semi-áridos.
Aproximava-os uma fé irrestrita no progresso e uma crença na sua “missão” como guia na
modernização social. Utopia essa que nascia nos centros urbanos do país e era embasada
numa ciência arrivista que pretendeu adentrar em outros espaços que não as cidades.
Esquadrinhar e racionalizar esses espaços dentro de uma lógica ditada pela ciência obedecia a
um plano de conquista do território, algo tão profundamente arraigado numa intelectualidade
brasileira desde meados do século XIX.
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Deve-se dizer que esse movimento rumo aos sertões não foi um empreendimento único
no Brasil de então. Basta lembrarmos-nos da Missão de Cândido Rondon nos sertões do
centro-oeste ou mesmo da Superintendência para a Defesa da Borracha, criada justamente
para alavancar o desenvolvimento da Amazônia. Sempre tendo à frente cientistas, neles
reverberavam a pretensa sede de um grupo intelectual que buscava se colocar diante das
questões de seu tempo. A autonomia buscada por esses intelectuais esbarrava, porém, por
algumas vezes, nos entraves advindos da necessária convivência que tiveram de ter com
interesses político-partidários. Sobre isto, assim Heliana Angotti Salgueiro observa:
Diante da distância entre o projeto e as condições de possibilidade de realizá-lo, entre as injunções político-adiministrativas e os ideais da elite científica a que pertence, o desmantelamento das utopia [...] torna-se inevitável.1
Por outro lado, a força das imagens construídas por sujeitos como Arrojado Lisboa,
Roderic Crandall, Pompeu Sobrinho e Aarão Reis conduziu a uma geografia imaginativa do
lugar sertões ao mesmo tempo em que reintroduziu figuras do imaginário coletivo para que
fossem consumidas pela sociedade de então. Esses constructos eram afirmados por um
discurso científico que se colocava como autoridade no conhecimento do social. Discursos
que, se pretendendo “verdades irrefutáveis” sobre o espaço, impulsionavam a criação de
imagens e reafirmavam algumas já existentes sobre os sertões. Esses constructos, no entanto,
tangenciavam temáticas cujo teor político já eram evidenciadas desde fins do século XIX,
como foi o problema das secas. A própria idéia de criação de um órgão para combater as
secas, como procuramos demonstrar, foi fruto também de um projeto político das elites
dirigentes dos chamados estados do norte bem antes da sua efetivação, em 1909. O fato foi
que, concomitantemente a essa tarefa, a sociedade brasileira viu nascer uma espécie de
intelectual que buscava autonomizar-se diante de interesses políticos partidários e declarar sua
1 SALGUEIRO, Heliana. Op. Cit. P. 180.
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neutralidade e “missão” diante do mundo, tendo de, para isto construir seus espaços de
atuação na sociedade através da afirmação de seu status na construção do país moderno.
Foi do encontro desses impulsos que nasceu e se desenvolveu a IOCS. A compreensão
da história inicial deste órgão só pode ser encetada avaliando as múltiplas facetas que
compuseram as idéias que se estabeleceram ― ou não ― no órgão. Encontro, porém, que,
como vimos, nem sempre ocorreu de forma pacífica, tamanha diversidade de interesses em
jogo que se chocavam, inclusive no interior do grupo de cientistas que buscava, com isso,
consolidar uma suposta “identidade intelectual”:
A construção de espaços, instituições e rituais próprios de legitimação de seu discurso e de suas atividades é uma etapa decisiva para a consolidação do poder dos intelectuais na sociedade capitalista e para a própria consolidação da identidade do intelectual.2
Identidade que, aliás, deve ser compreendida também como um lócus de disputas, pois
que a operação que constrói sua afirmação se processa com o prejuízo de outros olhares que
são sobrepujados ― ou que se tenta sobrepujar ― diante daquilo que se quer afirmar. A partir
desses expedientes é que são, por fim, afirmadas instituições sociais: seja a IOCS, seja a
noção de ciência, seja a idéia de Nordeste, seja a de sertões. Todos elas devendo ser
entendidas, pelo historiador que pretenda compreender seus estatutos, como localizados
dentro do domínio de uma cultura, desnaturalizando formulações que são, sem dúvida,
sociais.
2 ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. De amadores a desapaixonados: eruditos e intelectuais como distintas figuras de sujeito do conhecimento contemporâneo. In: Revista Trajetos. Revista do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará. V. 3, nº 6. Fortaleza: Departamento de História UFC, 2005. P. 50.
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