Ó serdespanto de cecim por manuel de freitas crítica no jornal expresso de lisboa.pdf

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Crítica literária sobre Ó Serdespanto, ficção de Vicente Franz Cecim integrante do ciclo literário do autor Viagem a Andara oO livro invisível

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  • Serdespanto de Vicente Franz Cecim

    Jornal Expresso, suplemento Cartaz

    Portugal, Lisboa, 15 maro 2002

    Dizer a negro o que se diz A literatura ainda pode ser inquietao e desmesura

    Por Manoel de Freitas

    Vicente Franz Cecim

    - o fulgor de um escritor brasileiro

    H livros assim, que dispensariam - num mundo ideal - o lgubre

    ofcio da crtica. Livros que comeam por dizer que algum vive, algum

    escreve// Esse o ponto de partida, o ponto de chegada. Alarmada, a

    nossa competncia literria pode, quando muito, balbuciar o nome de

    Mallarm e o seu maisculo projecto: O Livro a vida? No, o Livro no

    a vida. a outra vida (diz Cecim na pg. 9 de Serdespanto).

  • Mas permaneceremos incapazes de verbalizar o inconfundvel fulgor

    desta obra de Vicente Franz Cecim. E, no entanto, chega a parecer to

    simples: um ninho de texto em que vm pousar, sem aviso, a ave

    Novalis (pg. 24), a ave Hlderlin (pg. 94) e as aves de Kant (pg.

    52). Estamos, mais precisamente, em presena de um texto que fez seu

    ninho entre runas de linguagens, que se partem. Em silncio. Ouvem?

    Por uma vez, como no inimaginvel princpio da literatura ou do

    mundo, dir-se-ia que, em Serdespanto, indeterminao e demiurgia se

    confundem: estaria recomeando o mundo?// No se sabe. Mas

    demiurgia aqui indissocivel do prprio acto de escrever. No apenas por

    sabermos que no incio sempre o verbo, o vento (pg. 119), mas

    tambm por este livro ter como matria sombria e irradiante issos// que

    Ele escreve com homens-caligrafia, bichos-caligrafia, cu-terra caligrafias

    (pg. 277). No se pode, portanto, fugir da linguagem. Resta, se possvel,

    procurar saber de que linguagem falamos, perguntar por isso que nos fala

    nesta fbula indiferente frvola questo dos

    gneros.

    Uma primeira anlise levaria a pensar que a escrita de Cecim

    reclama a luz dessa aura dada como perdida em Baudelaire e reaparecida,

    quando ningum ousava esper-la, no ofcio cantante de um Herberto

    Helder: Mas sobretudo o magnfico Estrangeiro de olhos meditativos e

    passos flutuantes,/ os lbios frementes de canto.// Eu, porm, me inclino

    para a Noite/ sagrada, plena de mistrios ( Serdespanto, pg. 24). Sero,

    sem dvida, nocturnos os textos fragmentrios que compem o livro. Mas

    nocturnos sem onde, uma vez que o prprio territrio mtico da escrita de

    Cecim - Andara - se assemelha s vezes a um no-lugar, ao deserto de onde

    tudo brota: Andara s vezes no nada, no mesmo nada (pg. 263).

    Houve j quem falasse em Amaznias, transfiguraes natais de um

    paraense, quando uma voz destas excede qualquer regionalismo bsico.

    Tambm Herberto no a ilha em forma de co sentado ou Pessoa a Rua

    dos Douradores. O cosmos, esse, fica-lhes demasiado bem. E Andara

    sempre desmoronamentos, figurao reticente da exultante runa da

    linguagem, ausncia soberana dos mapas tericos que inventamos. Cabe

    quele que escreve semear de mos vazias, na esperana de um dia

    colher o fruto do jbilo obscuro.

    Incontornvel, e porventura fundadora, neste livro a questo do

    mal: Diz-se disso O homem o mal, o amor o mal (pg. 167). Mas h

    armas para isso, para conviver com o mal, sendo uma delas - negra como

    convm - o humor: (...) nada temam: imaginar o mal. Pois coisas ainda

    piores viro e til, para aprender a resistir ao mal, aprender a conviver

  • com ele, o negro negro// enquanto ainda pequenino (pg. 148). Como se,

    em ltima anlise, o mal presidisse prpria criao, uma vez que, dando

    eco a certas tradies herticas, algum afirma que Deus=O Mal.

    Pouco importa, afinal, se a literatura disso (desse mal) o resgate, a

    consumao ou a escura reiterao. So raros os livros que, como

    Serdespanto, elidem perguntas e respostas, abrindo-se desmesura e

    estranheza: Benvindo ao estranho mundo (pg. 129). Poderamos, no

    entanto, esboar (e no mais do que isso) a genealogia em que este livro

    entronca. Nesse caso, teramos de evocar essa espcie de comunidade de

    que fazem parte os nomes de Henri Michaux, Herberto Helder ou Maria

    Gabriela Llansol. Contudo, a escrita de Vicente Franz Cecim no se

    confunde, prossegue amanhedescendo e torna subitamente mais

    verdadeira a certeza de que no h nada a dizer de um poema, pois ele

    mesmo o dizer supremo (Eduardo Loureno). Podemos, to-s, ouvi-lo:

    As pginas, muito brancas, no cantam. No so aves, no cantam, no

    cantam// A menos que o vento da voz, isso de lbios de limo que sempre

    sopra dentro de um homem,/ se ponha a agitar as folhas, s vezes tristes, s

    vezes alegres,/ de um sonho./ Diz-se disso: A rvore dos sonhos/ Diz-se

    disso: literatura ( Serdespanto, pg. 193).