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O Segredo dos Girassóis O diário de Anna Goldin Adriana Matheus

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O Segredo dos Girassóis, da autora Adriana Matheus, narra a trajetória de três pessoas distintas entre si: uma bruxa, um monge e um jovem conde. Mas o que poderiam ter em comum três pessoas tão diferentes? Estariam eles unidos pelo amor ou pelo destino? Nessa fantástica trama de ódio, amor e intrigas, a autora transforma os horrores da Inquisição espanhola em uma magnífica estória em que a fantasia, o romance e a magia misturam-se a uma trama de mistério e sedução. Convida-se o leitor a viajar através do tempo astral com a personagem principal, Anna Goldin, em uma fantástica aventura cheia de suspense, bom humor e assassinatos misteriosos. Anna Goldin vai mostrar ao leitor que, mesmo no meio dos horrores da Inquisição, ela ainda conseguiu sonhar e ser determinada em suas ideias de liberdade e de igualdade de expressão e religião, conseguindo manter também a dignidade, honrando o valor de uma verdadeira amizade. Anna descobre que o seu único e verdadeiro amor é também o inquisidor que a condenou à fogueira na vida passada. Ela passa por várias decepções até que descobre que mais uma vez havia sido traída pelas pessoas nas quais ela mais confiava...

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O Segredo dos Girassóis

O diário de Anna Goldin

Adriana Matheus

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CIP. Brasil. Catalogação na Publicação.

M427s - Matheus, Adriana, 1970.

O Segredo dos Girassóis / Adriana Matheus - Juiz de Fora - MG. 410 p. : il.

ISBN: 978-85-7878-028-9

Ficção brasileira. 2. Romance espírita I.Título.

Projeto Gráfico e Impressão: Clube de Autores e Agbook

Edição de capa: Ruy Alhadas

www.alhadasdesign.com Diagramação: Adriana Matheus

Revisão ortográfica: Texto Legal

http://textolegal.weebly.com

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, inclusive através de processos xerográficos, sem permissão expressa da autora. (Lei nº 5.988 14/12/73).

Adriana Matheus [email protected]

2ª Edição

2012

O Segredo Dos Girassóis O Dário de Anna Goldin

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Segredo dos Girassóis O Diário de Anna Goldin

Adriana Matheus Pelo Espírito do Padre Ângelo Wallejo Moralles

“O amor é infinito e solene e quando é verdadeiro atravessa as barreiras do impossível,

para que sempre possamos estar juntos.”

(Padre Ângelo Wallejo Moralles).

Agradecimentos Especiais

Ao senhor Wanderley Luiz de Oliveira, presidente da Associação de Cultura Luso-Brasileira/ JF

- MG, por todo o incentivo dado a esta obra.

Ao Senhor Roberto Dilly, diretor do Museu do Crédito Real/JF - MG, que tão generosamente

cedeu o salão para o lançamento desta obra.

À Drª. Maria Auxiliadora Assis, que é uma das maiores colaboradoras desta obra e, também,

patrocinadora.

Às amigas Átria Maria Alves e Dulcinéia de Assis Teixeira, cujo apoio e participação foram

indispensáveis para que esta obra fosse publicada.

A Stéphanie Lyanie e à equipe da Texto Legal. Sem essa equipe fantástica e incrível, esta obra

não estaria tão lindamente corrigida.

Ofereço esta obra à Academia de Letras da Manchester Mineira/Juiz de Fora - MG, por tanto

homenagear os pequenos e grandes autores de nossa cidade – valorizando, assim, a nossa cultura

literária.

Adriana Matheus À autora

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NOTA DA AUTORA

Nesta incrível história de ficção, a autora convida o leitor a viajar através do tempo astral em

uma fantástica aventura, cheia de suspense, bom humor e sedução. Sua principal personagem, Anna

Goldin, vai mostrar ao leitor que, mesmo no meio dos horrores da Inquisição, ela ainda conseguiu

sonhar e ser determinada em seus ideais de liberdade e igualdade, conseguindo manter, também, a

dignidade, e honrando o valor de uma verdadeira amizade.

Mas o que poderiam ter em comum três pessoas tão diferentes?

Uma bruxa, um monge e um jovem conde, unidos pelo destino nessa fantástica trama de ódio,

amor e intrigas. É isso que o leitor terá que desvendar. E, por isso, Anna Goldin está convidando-os

a participar desta incrível história! Sejam bem-vindos!

Como percebi que teria que escrever esta obra?

Na verdade, depois de um acidente, sonhei com toda essa incrível história durante uma semana,

consecutivamente. Cheguei a comentar com algumas pessoas, que me disseram não passar de meros

sonhos. Confesso que procurei respostas em muitos lugares. Mas esqueci de um lugar muito simples

e particular: dentro de mim. Pois é lá que está a resposta para todas as perguntas frequentes em

nossas vidas. Muitas vezes, somos teimosos e medrosos demais para ouvir aquela voz que está

sempre nos mostrando o caminho. Temos medo do que parece ser imaginário ou sobrenatural, mas

não temos medo de correr o risco de conhecer um desconhecido real da internet. Os espíritos não

podem nos fazer mal algum. Influenciam-nos somente se abrirmos caminho para isso. O poder está

todo em nossa mente, na nossa caixinha de segredos, no nosso computador portátil e inigualável - o

cérebro.

Como descobri que era médium?

Na verdade, como todas as pessoas, sempre fui. Só não aceitava aquela voz dentro de mim.

Como tomei conhecimento da existência do Padre Ângelo Wallejo Moralles?

Oito meses depois do acidente e já bem melhor, um belo dia eu estava sentada na frente da

creche onde costumava deixar meus filhos. O mais novo deles estava em adaptação. Por esse

motivo, tinha que ficar até mais tarde presente neste local. Sentei-me em um banquinho, do lado de

fora. Como não havia nada para fazer, peguei um bloco de notas e um lápis que sempre trazia

comigo. Comecei a rabiscar para ver se conseguia desenhar o rosto que frequentemente aparecia-

me em sonhos. Mas, para minha surpresa, comecei a perder os sentidos, como uma tonteira

irregular. De repente, minha mão começou a escrever sozinha. A princípio, tremi - confesso. Mas,

depois, fui dando asas àquele fenômeno. Quando parei para ler, eram quase duas páginas de

mensagens. Detalhe importante: aquela letra não era minha. Fiquei tão fascinada com aquilo que

comentei erroneamente com várias pessoas, que saíram achando-me uma doidivanas. Hoje, muitas

destas pessoas já receberam mensagens de seus entes falecidos, psicografadas por mim. Graças a

Deus, aprendi a lidar com meu dom com a sabedoria do silêncio. Ganhei credibilidade e respeito.

Descobri minha missão. Sempre que tenho tempo, dedico à caridade espiritual. Mas ainda sou

aprendiz.

Quem foi e quem é Anna Shaara para mim?

Anna foi uma grande mulher que não se rendeu às normas e às vontades dos homens. Na

verdade, Anna Shaara sou eu, é você que está lendo esta obra por mera curiosidade. A Anna são

todas as mulheres que lutaram, que lutam e sempre lutarão por um sonho de igualdade; mas - acima

de tudo - que têm um dom e o usam para o bem. Ela é aquela mulher que faz de tudo para ver seu

homem, seu amor feliz. É a mulher sábia que, ao invés de brigar, cala-se e espera o momento certo

de falar e agir.

A Anna é a voz dentro de cada uma de nós. Ela é o momento, a oportunidade que temos de nos

redimir dos erros e das falhas do passado.

Quando Anna Shaara voltou em minha vida?

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Foi através de uma viagem astral (também chamada de auto-hipnose), onde mostrou toda a sua

sabedoria. Tive certeza de que estava na hora de contar ao mundo minhas experiências com os

espíritos. Espero que esta obra seja de grande valia para todos vocês que, mesmo por curiosidade,

começaram a lê-la. Mais uma vez, deixo minha eterna gratidão.

“Se o homem trabalha em prol da caridade, ele deve tentar entender a verdade, mesmo que a

mesma não seja mostrada pelos olhos do aparelho. Se ele trabalha em prol de si mesmo, continuará

confuso e no escuro constante de seus pensamentos atordoados. Felizes aqueles cuja compreensão

de reconhecer os seus próprios erros torna-os sábios. E essa virtude faz com que eles ajudem o seu

próximo em caridade e abstinência, sem interrogações ou especulações. Pois o maior dom divino

está em ouvir e servir com humildade e perseverança”.

Muita paz e muita luz.

(Padre Ângelo Wallejo Moralles - 1795 a 1838).

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Sumário

Capitulo I - O diário de Anna.........................................................................................9

Capitulo II - A iniciação................................................................................................35

Capitulo III - O Livro das Sombras.............................................................................73

Capitulo IV - O Segredo de Elizabeth........................................................................144

Capitulo V - A Despedida............................................................................................196

CapituloVI - O Mosteiro..............................................................................................224

Capitulo VII - O Segredo dos Girassóis......................................................................252

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Pelo espírito do padre: Ângelo Wallejo Moralles

Prólogo

Estou com vinte e seis anos e vejo que minha vida acabou-se. Vivi nesta curta jornada terrena

tudo o que uma pessoa com seus sessenta anos viveu ao longo de sua existência. Mas é claro que, em

questão de sofrimentos, fui uma expert. Envelheci muito em três anos aqui, enclausurada neste

calabouço frio e escuro, onde fico relembrando os fatos e as situações vividas desde a minha mais

tenra infância. Outro dia, pude ver meu reflexo em uma poça d’água que se acumulou no chão,

causada pelas diversas goteiras que caem do teto. Quase não me reconheci. A maioria dos meus

dentes caiu. Estou tão maltrapilha e suja! Eles quase conseguiram sujar, também, minha alma. Mas

consegui separá-la do meu corpo, para que não fosse maculada pela perversidade humana.

Sinto tanto frio; estou tão cansada e enfraquecida! As dores, antes insuportáveis, agora já

parecem mais brandas. Já quase não sinto mais a minha perna. A corrente presa à minha coxa

esquerda já tinha parado a circulação, e a sensibilidade já não era mais a mesma. Estou presa a este

objeto há um ano ou mais. Não me lembro exatamente de quanto tempo estou aqui. A princípio, para

evitar a loucura e a perda de memória, fiz tracinhos nas paredes. Mas, com o tempo, fui me

esquecendo até de me levantar para comer o pão e a água que me trazem.

Temo não conseguir colocar neste diário tudo o que me ocorreu durante toda a minha existência.

Tenho a esperança de um dia alguém me achar ou se lembrar de mim. Caso isso não venha a ocorrer,

sei que minha amiga Juanita encontrará um meio deste diário chegar até às mãos de Maria. Quero

que meus irmãos de alma saibam o que passei por amar e por não negar minhas origens. Os horrores

e as injustiças que aconteceram em minha vida, envolvendo seres considerados acima do bem e do

mal, deixo aqui registrados. Não aumentei e nem inventei absolutamente nada.

Algumas pessoas que se diziam com o poder de direcionar o destino de outras, só pelo simples

fato de terem nas mãos um documento chamado Bula Papal, tornaram a minha vida e a de outras

mulheres a mais miserável possível. Pessoas que se julgavam Deus ou mensageiros Dele. Seres

humanos como eu, mas que pareciam viver em um mundo mental paralelo ao nosso. Parecia que, ao

olharem uma mulher, viam nela outra forma de vida aparente. Suas formas de manipular a população

eram tão convictas que causavam cegueira e histeria em massa – e, logo, uma espécie de aliança cega

entre a população e os inquisidores. Na verdade, a voz do povo não era a voz de Deus, mas sim a voz

do inquisidor.

Minha história é muito complexa . Se algum dia esse diário for encontrado e lido por outras

pessoas, elas poderão ficar atordoadas e confusas com os relatos registrados aqui. Mas que fique bem

claro que este é o meu diário. O diário da minha vida terrena, onde conto a minha trajetória como

mortal, mulher, bruxa e como um ser humano esquecido pelo mundo contraditório. Nesta história de

vida passada, faço aqui duas regressões e mostro o lado obscuro real da Inquisição. Conto como o

preconceito contra as mulheres era superior ao sentimento maior: o amor verdadeiro. A religiosidade

era usada para encobrir o lado negro dos sacerdotes. O dinheiro comprava e vendia tudo, até a alma

humana. Os sacerdotes e seus monarcas seguidores fanáticos tinham uma única vontade: manter as

mulheres submissas e a população humilde e sem cultura sob os seus pés. Mas, na verdade, os

monarcas também eram marionetes destes discípulos do diabo. Pessoas que se mascaravam com uma

bondade hipócrita, para não mostrarem a verdadeira face escondida debaixo de peles de cordeiros.

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Espero, em nome de Deus, que a humanidade um dia possa evoluir para o seu próprio bem. E

que estas almas, ao encarnarem, também possam redimir-se destes pecados que cometeram contra a

humanidade. Vivi em um tempo muito desequilibrado e hostil, em que mesmo os que tinham certo

estudo viviam na ignorância e no flagelo espiritual. As pessoas não tinham o direito de ir e vir. As

palavras, nem em pensamentos poderiam permanecer. Se eu pudesse, aconselharia todos a refletirem

sobre seus atos e as consequências que podem advir deles. Amem como se hoje fosse a primeira vez.

Esqueçam o passado, deixem as mágoas e quem os magoou para trás. Porque a única coisa que

realmente importa é o amor e o perdão.

Espero, minha querida Maria, que encontre este diário e que esta história da qual fez parte seja

contada para todos os nossos irmãos e irmãs, de geração em geração. Tenho certeza de que não

passei por todas estas coisas em vão. Aprendi muito com a senhora. Sua sabedoria, bondade e

benevolência foram minha fonte de inspiração para eu estar aqui, hoje, lutando em registrar estas

palavras.

Lembra-se, Maria, de quando mais atrás me ensinou a agradecer a Deus por todos os segundos

de nossas vidas, mesmo que eles fossem os últimos? Agradeço, sim, a Ele, mas nunca me esqueço da

senhora. Minhas orações são para você, bem como meu amor e gratidão, minha amiga, minha mãe.

Sim, pois a senhora foi a única mãe que conheci.

Embora minha vida tenha sido tão curta, pude refletir e compreender que nunca devemos parar

de lutar pelo que sonhamos e acreditamos. Sempre lutei e nunca temi ou me arrependo de ter

chegado às últimas consequências. Nunca desisti do meu único e verdadeiro amor, embora ele tenha

me traído e me abandonado. Nunca desejei mal a ele, mesmo sabendo que pode estar nos braços de

outra mulher. Não odeio nem mesmo meus algozes, pois fazem parte da construção da minha

história. Aceitei o dom da mediunidade graças à senhora, Maria, pois aprendi a ser responsável e

mais humana. Sei que são curtos os meus dias aqui, minha cara amiga. Mas morro com dignidade e

orgulho em saber que me assumo como sou: uma bruxa.

A senhora ensinou-me que a responsabilidade de um médium dobra quando ele ensina alguma

coisa a outra pessoa. Espero estar sendo coerente com as palavras aqui. Pois, assim como fui sua

discípula, terei discípulos que ouvirão minha história e far-me-ão de exemplo. Sei desta

responsabilidade e não quero ser uma lenda e nem um exemplo, pois também falhei. Apenas quero

contar como tudo aconteceu comigo. Achei que, por amor, poderia superar os sofrimentos que me

seriam impostos. Mas, agora, tenho certeza de que não sabia o quanto o ser humano pode ser cruel

em arquitetar uma forma de torturar o outro. A maldade do ser humano é infinita e sem igual.

Seguindo com a minha história...

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I - O Diário de Anna

madrugada estava cinza, como o meu coração... Senti o vento frio entrar pela janela,

beijando meu rosto suavemente, como se fosse um cumprimento casual e afetuoso.

Estávamos perto do término do outono. As folhas das árvores caíam como plumas ao

chão! E meus sonhos também.

Sentia-me muito só. Algo em meu coração estava tentando falar, num silêncio descompassado.

Naquela época, eu via beleza em tudo ao meu redor. Mesmo nas horas de tristeza, conseguia ver

coisas boas. Mas alguma coisa parecia estar errada.

Minhas noites sem dormir eram agonizantes. Eu tinha um choro preso na garganta e, às vezes,

sentia raiva de nada aparente. Não sabia explicar o que era e, depois de andar quase a noite toda pelo

quarto, fui à janela observar a rua e senti o vento úmido, que bateu em meu rosto, ainda molhado

pelas lágrimas. Os poucos transeuntes que se atreviam a andar pelas ruas pareciam estar congelados

e enroscavam-se em seus casacos de lã, como caracóis em uma conchinha. Um redemoinho juntava

as folhas caídas ao chão, fazendo-as bailar sobre a calçada, como em uma brincadeira de ciranda.

À medida que a neblina subia, mostrava ao longe o espetáculo e a beleza escondida por trás

daquela cortina acinzentada, criada pelo crepúsculo misterioso da floresta negra. Sentia-me uma

privilegiada por morar no fim daquela ruazinha de pedras calcárias, muito polida pelo tempo. Eu

tinha não só a magia das montanhas ao longe, mas o cenário mais perfeito de todo o mundo!

O lugar onde morávamos, para mim, não tinha preço. Podia ser o mais simples e o mais isolado,

mas, com certeza, era o melhor lugar deste mundo, simplesmente por ser o nosso habitat.

O cenário era mesmo incrível! Eu jamais me cansaria de admirá-lo. Da janela do meu quarto,

podia ver, desde a esquina, a outra extremidade da rua sem saída. Havia uma pequena trilha de terra,

que dava para um misterioso bosque Mal Assombrado, como diziam os viajantes que por ali

passavam - também citado nas cantigas das escravas como Floresta negra, ou ainda chamado de

Bosque dos Mortos pelos supersticiosos do vilarejo.

Muitas lendas foram criadas em torno desse bosque. Na verdade, não sei se poderiam chamar

essas histórias de lendas, pois em certo ponto do bosque não havia nenhum tipo de vegetação ou vida

aparente. Sua terra era seca, e isso se ocasionou depois que os moradores mais antigos queimaram

uma jovem amarrada a uma árvore, petrificada, acusando-a de bruxaria. Eu nunca havia tido a

coragem de ir até lá por medo do que ouvia, mas ficava observando seu estranho silêncio da minha

janela nas noites de solidão. Nunca vi ou ouvi uma ave gorjear por lá.

Ouvira dizer que nenhum ser vivente ou em seu juízo perfeito atrever-se-ia a colocar seus pés

naquele local obscuro e sinistro. Eu, nas muitas vezes em que perdia o sono durante a noite, jurava

ter ouvido gemidos e clamores vindos daquele bosque. Sombras pareciam sair do bosque, ou era

apenas a minha mente que as imaginava? Sempre preferi acreditar que fosse a minha imaginação, e

nunca mencionei isso nem mesmo para minha amada Maria.

À frente de minha casa, logo na esquina, antes de subir a pequena trilha, ficava a mansão dos

Sorancos Del Castilho, gente sisuda, aparentemente orgulhosa e pouco amistosa. Eles eram judeus

convertidos ao cristianismo. Só os víamos nas missas aos domingos e, mesmo assim, sentavam-se

longe de todos. Eram pessoas que pouco se viam transitar pelas ruas. A senhora Del Castilho e suas

filhas vestiam-se mais discretas do que o normal, sempre com roupas austeras e escuras.

Não eram nada sociáveis. Não iam a festas, não convidavam e sempre era possível vê-los

observando as pessoas de soslaio. Eram reservados e isolados. Eu mesma tive a impressão de ter

visto um ou outro me observando pelas costas. Mas, quando me virava, tentando achar o que estava

me incomodando, não via nada. Eles pareciam fantasmas: apareciam onde menos esperávamos, e

sumiam da mesma forma. Gentinha realmente estranha...

A

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Diziam que eles eram muito ricos, e que seus dízimos superavam as expectativas paroquiais. O

Senhor Del Castilho parecia um lorde, com suas botinas e suas abotoaduras de brilhante. Em questão

de status, essa família, por certo, era a mais rica do condado. O restante da vizinhança morava a

muitos metros à frente. Por isso, sentia-me muito tranquila em relação à paz e ao sossego.

Por parte de meus pais, meus avós foram os pioneiros daquele vilarejo. Eles fizeram muitas

benfeitorias, como o belo caminho feito de cerejeiras, que foram exclusivamente trazidas da

Inglaterra para enfeitar as laterais daquela larga ruazinha - o que dava, além de graça e beleza, certo

mistério ao trajeto. Era incrível o enorme tapete de flores que se estendia para passarmos no outono.

O vilarejo ainda era pequeno e mais parecia um labirinto, porque todas as ruas se cruzavam. Todos

se conheciam, mas poucos eram amigos, e os mais jovens de certos recursos financeiros eram

enviados à Europa para estudarem e, na maioria das vezes, não retornavam à casa paterna. A vida no

campo não lhes convinha mais. Mas, por certo, Salamanca cresceria muito com os tempos que

viriam.

Se chegasse qualquer estranho ao vilarejo, em questão de pouco tempo todos os moradores

ficavam sabendo da novidade. Era engraçada a maneira como os habitantes daquele pequeno vilarejo

comportavam-se. Tão primitivos!

Naquele tempo, eu já não era vista com muito bons olhos. Mas era por motivos corriqueiros e

questionáveis, pois as pessoas achavam-me esnobe. Mas eu não o era. Pelo contrário, era uma jovem

medrosa e muito tímida, esquivava-me das pessoas por não saber como me comportar no meio delas.

E também tinha o fato de que a minha madrasta nunca me deixara participar das reuniões do nosso

conselho. Muitas das jovens de minha idade não podiam opinar, mas sempre estavam presentes a tal

evento, pois era uma maneira de se socializar e, claro, de arrumar um pretendente. Quando raramente

eu podia sair, era sempre na companhia da minha ama Alicia ou de minha amada Maria, governanta

da casa. Assim seguiram-se meus dias, sem nenhuma emoção ou aventura - o que era um tédio, pois

meu espírito gritava por aventuras e coisas diversas, que nunca pude realizar na minha curta

existência.

Lembro-me, ainda, de minha casa: era bem grande. Mas não era uma casa acolhedora, porque

faltava paz e harmonia. Fiz uma rápida e breve descrição dos detalhes. Na verdade, o que eu mais

gostava não estava lá dentro. Nunca fui muito detalhista. Algumas coisas deixei passar em vão, não

por falta de percepção, mas porque esta realmente não era a casa dos meus sonhos. Quando somos

crianças, tudo é bom, tudo são flores. Encontramos divertimento até no meio das lágrimas, e luz no

meio das trevas. Fazemos refúgio no silêncio, e nossos corações não guardam rancor.

Vivi até metade de meus dezenove anos a triste e turbulenta história que me trouxe a este terrível

lugar. E no meio do ódio, da inveja e da ambição, consegui criar para mim um mundo imaginário.

No meio de coisas velhas e usadas, vivia minha vida de fantasias.

Cresci amargurada, medrosa, tímida e isolada do mundo. Sem dúvida, minhas roupas eram

caras. Não porque zelavam por mim, mas porque eu não podia aparecer maltrapilha perante as

pessoas da sociedade. E também isso mostraria a real situação financeira da minha família: apesar da

ostentação, a falta de recursos financeiros era escondida a todo custo.

A maioria dos vestidos nunca usei, mas minha madrasta fazia questão de gastar mesmo assim.

Por não ter nenhum amigo com quem pudesse falar, eu ficava a maior parte do tempo no sótão, na

cozinha ou com os criados. Aprendi a fazer muitas coisas domésticas apenas observando, pois os

escravos e criados não me deixavam tocar em nada: tinham medo de uma represália. Eu era a

sinhazinha, um enfeite de porcelana e sem nenhuma utilidade. Eu não gostaria que tivesse sido

assim, mas as circunstâncias e a própria época em que vivi ajudaram muito para isso.

Enfrentei o mundo por amor. Enfrentei os homens e a Igreja para mostrar que também nós,

mulheres, temos o direito à igualdade, a ir e vir. E que somos livres em expressão de religião,

vontade e igualdade. Enfrentei o ódio nos olhos, no coração e nas atitudes de muitas mulheres por

quem lutei. Mas eu as entendia. Na verdade, bem no íntimo, todas aquelas mulheres gostariam de

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estar no meu lugar - não na dor, é claro, mas em coragem e determinação! Coragem de nunca se

negar e de falar o que pensava. E determinação de lutar pelos ideais e também por um lugar ao sol,

entre homens preconceituosos e ditadores.

Não me arrependo do que fiz, mas do que nunca pude fazer. Minhas irmãs de almas sofreram

muito mais do que eu, no cativeiro de uma masmorra fria e sombria. Pois viveram a vida toda sob o

jugo dos homens, que muitas vezes eram seus amados. Embora a maioria delas tivesse escravos, elas

eram escravas do silêncio e da submissão. Ser uma bruxa não foi e jamais será fácil. Eu vivia em um

mundo de falsidades, onde o luxo e o dinheiro encobriam qualquer falha humana.

Minha casa era muito grande, com muitas passagens secretas. Algumas descobri a duras penas,

para me esconder de minha madrasta. Os corredores eram enormes e, ao sairmos do meu quarto,

passávamos pelos aposentos do casal e por mais oito outros, ainda vazios, que às vezes eram usados

pelos hóspedes. Seguindo pelo corredor largo, com uma passadeira cor de carne e desenhos

geométricos, chegávamos ao antigo quarto de minha mãe, cuja porta nunca era aberta. Os motivos

eram desconhecidos e alheios para mim, até então.

Eu sempre sentia certo arrepio naquele corredor, pois era de pouca iluminação e dava-me a

impressão de ter uma pessoa atrás de mim. Aliás, toda a casa me dava certo arrepio. Por fim,

chegava a uma escadaria, que era meio em caracol, toda de mármore branco, com corrimão de

madeira muito encerada. Eu adorava escorregar no corrimão quando não tinha ninguém por perto. À

direita, ao final do corredor, era o sótão onde guardavam quinquilharias - meus tesouros. Na verdade,

toda a memória da minha família estava lá em cima.

As escadinhas eram estreitas e de madeira; o sótão mais parecia uma velha torre onde me

refugiava da bruxa má. Meu esconderijo antissurras, pois, quando minha madrasta se desentendia

com meu pai, era em mim que descontava seu ódio. Como se eu tivesse alguma coisa a ver com

desentendimentos entre eles... Os dois pareciam cão e gato, não conseguiam ficar perto um do outro

por meros segundos sem se engalfinhar. Minha madrasta era muito exigente e só queria saber de

gastar.

Eu tinha mania de ficar no topo da escadaria, encostada no beiral, olhando o andar de baixo e

escutando as conversas e discussões de meu pai. Chegava a ficar tonta, pois os ladrilhos do hall de

entrada davam a impressão de vermos um enorme tabuleiro de xadrez, já que o piso era quadrangular

em tons de preto e branco. À esquerda, seguia-se para o escritório de meu pai, que era quase como

uma passagem secreta, por ficar embaixo da escada. No fim da escada, à direita, existia um grande

salão de bailes, onde tínhamos a mais bela varanda, toda em mármore branco.

No salão, existiam enormes pilares, dando certo ar de templo romano. Por ser tudo muito

branco, quando criança eu pensava ser o céu. Sentia-me uma fada e rodopiava, abrindo os braços. À

esquerda, ainda no final da escadaria, seguia-se para a cozinha, por um enorme corredor de tábua

corrida. Minúsculos quadros familiares foram pendurados em suas laterais. Eu o chamava de

corredor dos espíritos.

Ao chegarmos à enorme cozinha, tínhamos um gigantesco fogão de lenha, onde Tereza criava as

mais deliciosas receitas junto à escrava Joana, sua auxiliar. Havia uma grande e pesada mesa de

carvalho, no centro. Panelas de bronze, muito areadas, foram penduradas por toda parte. Eu ficava

ali, em pé, ao lado das cozinheiras, observando aquela fantástica e misteriosa forma de alquimia. Era

o meu segundo local preferido.

O simples mexer de Joana com a colher de pau nos grandes caldeirões fascinava-me. A magia

simples da mistura dos temperos me fascinava! Nascia em mim o desejo de ter o meu próprio

caldeirão. Por várias vezes, brincando de cozinhar, juntei algumas ervas e coloquei-as dentro de uma

caneca de água quente, dando à pequena escrava Inaynmin, filha de Joana, aquele chá com a minha

mistura de ervas. Dizia a ela que os anjos lhe dariam bons sonhos. O estranho é que a menina dizia

dormir muito bem toda vez que tomava meus chás.

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Adriana Matheus

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A cozinha também era, para mim, um refúgio onde me escondia da minha madrasta. Pois ela me

perseguia por toda a casa, não importando onde eu estivesse. Mas na cozinha ela não entrava, porque

achava indigno do seu status de senhora.

O sótão já estava ficando vulnerável, e a história que Maria contava sobre lá ser mal assombrado

já não estava surtindo muito efeito - o que passou as ser perigoso para mim, pois minha madrasta já

não cria mais nos tais fantasmas. Então, tive de me refugiar nos corredores, dentro das paredes entre

um quadro e outro, como um animalzinho assustado. Algumas dessas passagens davam nos fundos

da cozinha, onde eu aparecia inesperadamente no meio das cozinheiras que, na maioria das vezes,

levavam um grande susto. Tereza colocou-me a alcunha de pequena sombra, pois às vezes, quando

ela olhava para trás, lá estava eu como num passe de mágica.

Tínhamos, ao lado de fora, um enorme pátio com uma fonte d’água e um poço. Da escada dos

fundos da cozinha, que dava para esse pátio, podíamos ver várias montanhas ao fundo. Sem sombras

de dúvida, não existia nada mais lindo do que a visão daquelas montanhas! O cenário era tão incrível

e mágico!

A impressão que eu tinha, ao ver o sol despontando no horizonte, era que ele as fazia mudar de

cor, para um verde quase azulado. Sentia-me especial por estar fazendo parte da obra de um Grande

Mestre. Nenhum pincel pintaria nada tão perfeito! Eu não gostava da minha casa, mas amava o lugar

onde vivia.

Essas lembranças de infância vieram à tona saudosamente. E especialmente naquele dia - vinte e

um de julho de 1819 - acordei muito cedo: exatamente às duas da madrugada. O galo mal tinha

cantado e lá estava eu de pé. Tudo o que eu tinha aprendido até aquele momento foi com os livros.

Em minha solidão, eu lia muito - o que me foi de grande valia em meu aprendizado. Muitos desses

livros foram encontrados no sótão, junto aos pertences de minha falecida mãe. Andei de um lado

para o outro do quarto, como uma galinha que havia perdido seus pintinhos. Algo me estava

incomodando em demasia. Minhas mãos suavam e meus sentidos estavam aguçados. Por causa dos

sonhos confusos e pesadelos - que eram constantes - eu via sombras nas paredes e vultos ao meu

lado, constantemente. Parecia haver pessoas perto de mim, vozes falavam ao meu ouvido

diariamente. Por não ter nenhum conhecimento, sentia medo. Não sabia o que eram e o que queriam

comigo. Eu tampava os ouvidos com as mãos, na tentativa de não as escutar. Outras vezes, eu

respondia e conversava com elas. Às vezes eu as remedava, e tais gestos faziam minha madrasta

pensar que eu era insubordinada.

Apanhei muito por causa das vozes. E elas pareciam ficar cada vez mais irritadas com a

proximidade da minha madrasta. Erroneamente, eu achava que eram fantasmas. Mas o pior de tudo

isso é que eu não podia contar a ninguém, porque as pessoas considerar-me-iam insana. Ou me

entregariam nas mãos de um exorcista - o que anteciparia o meu destino.

Especialmente naquela madrugada, elas estavam muito mais agitadas do que de costume. Antes,

elas eram assustadoras e davam a impressão de estarem muito aflitas. Ora cantavam em línguas

estranhas, ora falavam todas juntas. Isso me confundia.

Deixei aquelas aflitas lembranças para trás um pouco e voltei à janela. Fiquei horas observando

a montanha e sua neblina misteriosa Queria esquecer aquelas almas que desesperadamente me

chamavam. Senti-me um pouco egoísta, mas precisava me distanciar antes que elas voltassem a

querer falar comigo. Pois cada vez que eu pensava nelas, parecia estar atraindo-as para junto de mim.

Além de toda aquela confusão com as vozes, havia também os maus presságios, que estavam

acarretando o meu espírito e, como nuvens, confundiam também os meus sentidos. Eu achava que

era devido à ausência de meu pai, e também pela falta de noticias dele. Mas era uma mistura de

saudade, solidão e devaneios, em uma mente jovem e atordoada por uma mediunidade ainda não

trabalhada.

Algo estava para acontecer. Algo que mudaria a minha vida para sempre. Lembrei-me de Maria,

que dizia que eu havia nascido com dons especiais. E que, ao completar meus vinte e um anos, as

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O segredo dos girassóis

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coisas ficariam melhores. Bom, eu faria vinte no ano seguinte e tinha a esperança de que as coisas

pudessem melhorar a partir dali. E que meus dons, ao aflorarem, trouxessem-me um pouco mais de

paz. Na verdade, não sabia se eu poderia chamar aquelas tormentas de dons. Só sabia que elas eram

espirituais. O meu medo de vê-los era tão grande que, de alguma forma, trazia-os para bem perto de

mim. Às vezes pensava serem coisas da minha mente. Mas, com o decorrer do tempo, meus sentidos

foram aguçando ainda mais; passei a ter estranhas visões de fatos que ainda não tinham acontecido.

Na maioria, eram sonhos que mais pareciam pesadelos. Tudo era uma incógnita para mim. Maria

chamava essas coisas de premonições. Eu via a vida das pessoas e, se alguém mentisse, sabia que

estava mentindo. Não sabia o porquê de estar acontecendo comigo. Eu era totalmente leiga nos

assuntos da magia. E isso era algo agonizante, pois me deixava irrequieta e depressiva. Mas o certo é

que minha vidinha monótona, sem graça e atordoada estava para mudar da água para o vinho. E isso

aconteceu muito rápido.

Quando meu corpo se arrepiava e me dava calafrios, era a forma de os meus sentidos de bruxa

me avisarem que algo ruim estava para acontecer. Mas, por não ter noção, a depressão passou a

tomar conta de mim. Chorava por qualquer coisa e sem motivos aparentes. Algo estava errado

comigo. E ninguém sabia como agir: eu precisava de ajuda, mas o socorro não vinha! Muitas vezes

ansiava por ver o mensageiro, que nunca chegava dando notícias de meu pai. Era mais uma fuga para

escapar da depressão. Estava ficando louca. Meus pensamentos mudavam de direção, como o vento

de lugar.

Onde estaria o mensageiro? Precisava vê-lo. Na verdade, ele só passaria às sete e trinta, seu

horário normal. De quinze em quinze dias, sempre nos trazia uma carta de meu pai, mas eu já não

estava aguentando de tanta ansiedade. Fazia um mês sem notícias; meu coração estava apertado.

Não havia conhecido minha mãe. Meu pai, no entanto, era tudo o que eu tinha naquele

momento. Minha madrasta era perversa e fingia ter um falso afeto por mim. Nunca me pegara ao

colo ou fizera um afago em meus cabelos quando eu ainda era criança. Pelo contrário, humilhava-me

com palavras hostis e sempre me batia por qualquer motivo. Suas ameaças de me colocar em um

convento eram constantes. Era impressionante a falsidade e o fingimento daquela mulher. Na frente

de meu pai, sempre me tratava com sorrisinhos forçados e uma delicadeza inexistente. Aliás, tudo

nela era demasiadamente falso.

Lembro-me de certa vez, depois de ter apanhado muito e ter ficado com o corpo coberto por

hematomas, ter sido trancada dentro do guardarroupa um dia inteiro. Gritei, quase desfaleci, mas ela

não deixou ninguém me tirar de lá. Fiquei em estado catatônico. Maria, naquele dia, ficou do lado de

fora da porta, cantando para mim, tentando mostrar que eu não estava sozinha. Jamais me atrevi a

contar para meu pai, pois Maria dizia que ele não podia ter aborrecimentos, devido à saúde instável.

Ele estava com sérios problemas de coração e bebia muito.

A crueldade de minha madrasta não estava só na forma como ela me tratava. Também era cruel

com os criados e escravos. Ela deixou um escravo, de nome Sandoval, sem comer por dias. E o

mesmo já havia feito comigo. Só que, por ser criança, adoeci e fiquei de cama. Maria convenceu meu

pai a chamar o doutor, e ambos quiseram saber por que eu estava tão debilitada. Minha madrasta

entrou no meio da conversa, dizendo-lhes que eu estava muito angustiada devido às constantes

ausências de meu pai, e que eu havia perdido o apetite de tanta tristeza. Ela sempre encontrava um

meio de se livrar de sua culpa. Ela tinha certo requinte de crueldade e fazia meu pai sentir-se

péssimo. Ele, naquele dia, bebeu até cair em um canto da casa. Eu e Maria o achamos e o colocamos

para dormir em um sofá. Maria não tinha medo dela, mas sabia que, se contasse, ela se vingaria em

mim.

Eu estava completamente indefesa e nas mãos daquela famigerada. Sua beleza e falsidade

seduziram meu pobre pai, que estava carente e solitário, com uma pequena menina recém-nascida

nos braços. Não que Maria não estivesse dando conta do recado. Mas as cobranças entre os amigos e

o preconceito da sociedade, por ele ser um viúvo ainda jovem, pesaram-lhe muito. É claro que sua

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posição socioeconômica e o título de nobreza dela também colaboraram para aquela união de

conveniências.

Não sei o que fizeram de errado, mas ele se viu obrigado a se casar às pressas com a jovem

condessa Marli Del Prat, filha do duque e também viúvo George Von Del Prat. Meu pai foi um rico

comerciante, mas estava passando por muitas dificuldades financeiras, causadas pelos gastos de sua

jovem esposa. Isso tudo pesava em seu bolso e em seu coração. Ele era uma pessoa de pouco se

abrir, o que poderia estar causando os seus supostos problemas de saúde. Alguns de nossos criados

estavam conosco há anos - como Maria, que havia sido praticamente criada em nossa residência.

Seria muito injusto colocá-la na rua de uma hora para outra. Maria, que abdicou de toda a sua vida

para cuidar de mim, por amor e fidelidade a uma promessa feita à minha mãe em seu leito de morte...

Passávamos por uma enorme crise financeira, enquanto a condessa gastava horrores em bailes,

roupas e joias, desperdiçando o pouco que ainda tínhamos.

Por ser muito jovem quando se casou com meu pai, passou a disputar comigo sua atenção. Era

de uma beleza muito rara em meu país. Era filha de alemães e holandeses. E sua união com meu pai,

que também era um fidalgo, embora falido, fora de grande valia política. Com essa união, seus

parentes teriam livre acesso de trânsito dentro da Espanha, entre outros benefícios políticos.

Minha madrasta era uma mulher esbelta, com formas muito bem definidas e fartas. Cabelos

muito negros e olhos azuis; sua voz tinha um tom suave e aveludado. Deixava os fidalgos, por assim

dizer, abobalhados. Sua pele era rosada como o pêssego, seus lábios eram finos e havia uma pequena

pinta sobre eles. Vestia-se sempre com as melhores roupas, embora exagerasse no brilho.

E as joias, então? Eram sempre as mais caras! Não poupara o seu dote, esbanjando até as

economias que meu pai fez no decorrer dos anos. Por isso, chegamos quase à beira da miséria.

Com os gastos irregulares da condessa, meu pai passou, então, a fazer longas viagens, na

tentativa de fazer novos investimentos para salvar as finanças. A Europa era promissora e, por isso,

ele ficava por meses fora de casa.

Porém, minha madrasta não dava trégua com os gastos e continuava a esbanjar as poucas

economias que nos restavam. Às vezes, ela parecia fazer aquelas coisas na tentativa desesperada de

obter a atenção do meu pai – pois, devido à sua rara permanência em casa, estava deixando de lado

as obrigações como esposo.

Mas, na minha cabeça, era por maldade mesmo que a senhora esposa de meu pai fazia todas

aquelas coisas terríveis! Cheguei a flagrar meu pai soluçando pelos cantos da casa. Mas, a qualquer

proximidade e tentativa de ajudá-lo, ele se esquivava e saía à francesa.

Por dias trancava-se em seu escritório. Ele aparentemente não tinha muita alternativa, pois, se

colocasse os pés para fora de seu refúgio, sua esposa o seguia tagarelando, exigindo e reclamando

coisas corriqueiras e sem muita importância. Eram visíveis, vergonhosas e humilhantes as discussões

dos dois perante a criadagem, que ficava debochando às escondidas. E quando ele não aguentava

mais, a agressão passava da verbal para a física. Minha madrasta tinha seus defeitos, por certo, mas

eu não suportava ver meu pai espancando-a. Vi aquela mulher muitas vezes ter que ficar sem poder

colocar o rosto para fora de seus aposentos por causa dos visíveis hematomas. A desculpa usada era

que ela estava indisposta ou com uma constipação muito forte.

Os amigos de meu pai, por assim dizer, só o procuravam para farras e bebedeiras. Ele era um

fraco e não sabia dar um rumo à sua vida. Estávamos vivendo em uma guerra fria e silenciosa. Um

jogo de interesses e mágoas, em que a mais prejudicada era eu. Com tanta repressão, também aprendi

a abaixar a cabeça para tudo o que eles dissessem. Cheguei a pensar em suicídio, mas era covarde

demais para isso. E por não conseguir me imaginar longe de meu pai e de Maria, sempre me calei,

escondendo comigo suas tramoias. Os anos foram passando e a condessa não tomava jeito mesmo;

passou a viver de armações para arrancar dinheiro de meu pai e outros fidalgos, que frequentavam

minha casa na ausência de meu pai. Nunca tive voz ativa, meu pai só fazia presença e a pobre Maria

não passava de um capacho, como o resto da criadagem. A autoridade-mor da casa era mesmo de sua

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majestade Marli Del Prat. Entre outras coisas, ela queria tudo só para si. Inclusive, o meu lugar como

herdeira única.

Seu comportamento era detestável e nauseante, pois às vezes, para chamar atenção, ela se

comportava como uma menininha, fazendo trejeitos e mesuras irritantes. Mas era só meu pai virar as

costas que sua personalidade aflorava, dando lugar à verdadeira pessoa escondida atrás daquela

aparência frágil e ingênua que a condessa criara como personagem, para engambelar a todos do sexo

masculino.

Mediante tudo isso, eu sabia que era improvável meu pai acreditar em mim. Eles não se

suportavam, mas tinham que manter as aparências e cumprir seus deveres perante a sociedade. Se eu

não morasse naquela casa e se todos os dias não estivesse presenciando tanta falsidade e falta de

caráter, certamente também não acreditaria! Pois aquela doce e jovem senhora e aquele tão elegante

cavalheiro eram, na verdade, duas pessoas repletas de artimanhas.

Quando meu pai viajava - além das festas constantes, que iam até altas horas -, a condessa

também se embriagava pelos cantos, enquanto eu era obrigada a ficar trancada em meu quarto, para

não ver o que realmente acontecia. Suas risadas altas e histéricas no corredor incomodavam-me e,

por várias vezes, tive que tampar meus ouvidos, colocando chumaços de algodão para não ouvir as

atrocidades que saíam ecoando pelo corredor. Como desejava ter tido outra vida...! Não podia ver,

mas sabia que ela estava com outros homens. Não seria difícil flagrá-la nas proximidades do nosso

jardim com os lordes e os fidalgos, frequentadores de suas constantes festas noturnas. E se alguém a

visse, ela se justificava, dizendo que fazia aquilo para o bem de todos e das finanças.

Se não tivesse vindo de uma família de nobres, eu a consideraria uma cortesã, devido à sua

conduta leviana e vulgar. Minha vida naquela casa foi triste, sem sentido. Estava a me transformar

em uma pessoa revoltada. Minha luta era comigo mesma, eu não poderia me transformar naquela

pessoa vazia e sem vida que eles queriam que eu fosse. Maria ensinou-me que, quando alguém deixa

morrer os sonhos, a vida acaba. Ela dizia que só não sonhava quem não tinha a capacidade para

realizar. Eu tinha sonhos... e eram muitos. Só não sabia onde eles estavam naquele momento.

Nunca frequentei escola, mas estudei em casa. Tive aulas de língua estrangeira, piano e

literatura. Minha professora, a Senhorita Ludmila Lavenier, era minha única companhia, depois de

Maria. Tinha mais ou menos trinta anos, embora aparentasse ser mais jovem. Era de origem

holandesa e herdou o sobrenome de seu avô paterno, que era francês. E por ter sido criada e educada

na França, seu sotaque era encantador. Por muitas vezes desejei que ela tivesse conhecido meu pai

antes de minha madrasta. Ela era culta, simpática e divertida. Sua cultura era consequência de suas

muitas viagens pela Europa. Sempre muito elegante, discreta e muito ponderada ao se dirigir às

pessoas. Tinha um tom de voz paciente e educado. Era admirável ver uma mulher muito além do

século XVIII, conhecedora de várias culturas e mestre em disciplina familiar.

Comentavam as más línguas que ela tinha vários amantes, e que era uma mulher com ideias

muito opostas. Alguns chegavam a dizer que ela não era nada feminina em seu jeito de pensar. Mas

eram apenas boatos maliciosos. Ela mesma me contou que amou apenas uma pessoa em toda a sua

vida e que, por proibição dos pais dele, não puderam se casar, por causa de sua inferioridade

financeira. Por isso, ela resolveu seguir em frente como educadora particular de finas senhoritas.

Suas histórias eram incríveis! Contou-me que certa vez almoçou com o próprio rei, sentou-se à

mesa real como sua convidada de honra. Não era o tipo de pessoa que desse ouvido a comentários e

mexericos dos outros. Era livre e independente, como eu gostaria de ter sido. Também me cotou

sobre as damas da corte para quem já tinha ensinado suas aulas de piano, e sobre os romances

secretos no palácio real. Ríamos muito. Senhorita D'Lú - era como gostava de ser chamada - foi

altamente recomendada pela Senhora Carllota Gonzalez, uma governanta amiga de Maria, que

trabalhava na mansão do Marquez de Miqueias. Foi uma pena quando meu pai teve de dispensar seus

serviços por causa dos ciúmes da condessa e, é claro, por causa da nossa situação financeira, que não

ia nada bem. O resto, aprendi por conta própria.

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Assustei-me quando Maria entrou em meu quarto sem bater, com a bandeja de café. Maria era

uma mulher gentil, educadíssima e extremamente respeitável. Podia-se dizer qualquer coisa sobre

Maria, menos duvidar de sua conduta, inabalável. Era uma mulher de estatura baixa, rechonchuda

como um empanado de frango. Fazia questão de manter seus cabelos negros presos em um coque

perfeito. Tinha os olhos grandes e negros, lábios largos e era muito severa com os seus subalternos.

Usava luto constantemente em sinal de respeito à memória de minha mãe. E ficou muito aborrecida

quando papai casou-se novamente, embora nunca se atrevesse a dizer.

Nunca se exaltava e constantemente usava de ironia em suas conversas. Acho que herdei sua

maneira de ser. Ela nunca conseguiu dizer-me não. Mas, às vezes, colocava-me de castigo, o que era

pior do que levar chineladas. E ali, naquele momento, observando-a de costas, percebi que seu peso,

embora não condizente com sua estatura, dava-lhe certo charme, porque mantinha uma postura

elegante e ereta. Deveria ter sido muito bela quando ainda jovem. Por certo, foi desejada entre os

homens. A pobre mulher não se casou, não tinha filhos, passou a vida toda se dedicando a mim e a

meu pai.

Era filha de espanhóis ciganos. Tinha o estranho costume de prever o futuro através das cartas

do tarô. Por várias vezes, às escondidas, abriu o baralho para mim, sempre usando um ritual. Certa

vez, quando abriu o tarô para mim, depois de muito fitá-lo, começou a chorar. Fiquei sem saber o

porquê daquele pranto incessante. Minhas tentativas de interrogação foram em vão, e de nada

adiantava tentar consolá-la, pois seu pranto era incessante. Maria abraçou-me e disse:

_ Tem um triste futuro, minha filha! Precisa comer alguma coisa.

Abriu as janelas e afastou as cortinas de organza e seda cor-de-rosa. Ajeitou a bandeja com o

desjejum na mesinha de lanches, que era de cristal e cobre decorado, trazida da Inglaterra por minha

mãe. Em seguida, saiu enxugando as lágrimas e dizendo, entre dentes, que os afazeres a esperavam,

deixando-me com as respostas ao vento mais uma vez. Sempre tão atenciosa e dedicada, mas muito

meticulosa e misteriosa quando se tratava das cartas. Detalhei a mesinha novamente naquele

momento nostálgico de minha vida e lembrei-me de meu pai, que certa vez contou-me que minha

mãe ficava horas escrevendo suas receitas e seus poemas ali. Ele dizia que ela era cheia de mistérios.

Interrompi novamente meus pensamentos, pois a copeira entrou, trazendo uma ânfora com água

morna e colocando-na na bacia de porcelana chinesa.

_ Não vai comer menina? - perguntou a copeira.

_ Daqui a pouco, estou meio sem fome agora.

Ela saiu, fazendo-me ameaças de que, se eu não comesse tudo, chamaria o doutor. Só de pensar,

senti arrepios! Ele era um velhote horrível, com cara de louco. Fumava um charuto fedorento, o seu

cheiro pessoal dava-me náuseas. Sua barriga salientava-se por cima daquela roupa encardida, que já

não via água há séculos. Sem contar que metade de seu rosto ocultava-se em algum lugar entre a

barba e o tenebroso bigode. Se olhássemos muito, víamos uma saliva escorrendo no canto externo

dos lábios. Eu ficava doente só em pensar que o teria perto de mim, colocando-me aquelas mãos

amareladas pelo tabaco. Nunca o vi lavar as mãos para me examinar. Toda vez que ele ia me visitar

quando criança - para exames rotineiros ou qualquer outra coisa -, se eu estivesse doente, ficava pior.

E se eu não estivesse, aí ficava mesmo. Arregalei os olhos de pavor! Sentei-me na cama, coloquei a

bandeja no colo e comi tudo o que havia no desjejum, pois, com certeza, ela cumpriria sua promessa.

Ela, sorrindo, parecia ter lido meus pensamentos. Aliás, sempre fazia isso. Dei uma espreguiçadela

gostosa no ar e empurrei a bandeja vazia. Voltei para a janela, fiquei por horas observando o

jardineiro Joseph, enquanto ele cuidava das rosas com dedicação e minúcia. Vi Maria levando para

ele café e sequilhos. Ele sempre estava próximo dela e pareciam tão felizes! Maria sorriu e saiu em

seguida, toda faceira.

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Não demorou muito e logo estava de volta para buscar a bandeja. Tinha nos lábios um sorriso

que não era habitual. Definitivamente, Joseph a fazia muito bem. Deu um suspiro profundo antes de

me fazer um convite para passar sua folga com ela:

_ Senhorita Anna, gostaria de passar o fim de semana comigo na casa da minha irmã que mora

no interior?

Perguntei se tinha avisado à senhora minha madrasta, o que confirmou entusiasmadíssima com a

cabeça. Pediu que me apresasse e saiu toda satisfeita porta afora.

Fazia muito tempo que eu não a via daquele jeito. Maria sempre tivera permissão para ir visitar

seus parentes no interior e, por certo, não era essa a causa de sua súbita alegria. Daria tudo para saber

o que Joseph tinha-lhe falado. Tomei um banho caprichado, com os sais que ela fizera para mim.

Escolhi um dos meus mais lindos vestidos. Mas este era adorável, em tom areia, todo rendado e com

muitos babados. Seu decote deixava meus ombros à mostra. Olhei-me no espelho e senti-me bem

ousada, mas mantive a discrição quanto aos exageros. Gostava de ficar admirando-me ao espelho e

ali, olhando o retrato de minha mãe, comecei a fazer comparações entre nós duas. Naquele momento,

percebi o quanto me parecia com ela.

Meus olhos eram cor de mel, puxando para verde. Meus cabelos tinham cachos largos e eram de

um tom castanho quase dourado. Minha pele, morena clara, era perfeita e sem nenhuma mácula.

Meus lábios eram grossos. Definitivamente, eu a mistura perfeita das raças. Minha mãe era inglesa,

de pele muito clara e olhos muito azuis. Seus cabelos eram de um tom castanho-claro, quase louro.

Fitando-a naquela fotografia, achei-a parecida com um anjo. Eu havia herdado dela não só a beleza,

mas também a elegância e o tom polido na fala. Minha cintura era extremamente fina e eu só usava o

espartilho por mero capricho. Esse tipo de arrogância e vaidade foi uma coisa das quais me arrependi

de ter tido.

Embora ela tivesse morrido quando nasci, esses eram os comentários a seu respeito. Na

aparência, achava-me igual à minha mãe, e sentia muito orgulho disso! Meu pai não ficou atrás. Ele

era um espanhol muito alto, olhos cor de mel, pele bronzeada e cabelos claros e lisos, ombros largos

e fortes. Lembro-me de vê-lo, quando eu era criança, depois de chegar de suas caçadas, montado em

seu cavalo baio. Ele se parecia com um personagem de contos de fadas. Ficava louca, esperando que

ele me colocasse em sua garupa e me levasse para cavalgar em seu colo. A sensação de proteção e

liberdade era um misto formidável. Que pena não podermos voltar atrás no passado, no exato

momento em que fomos mais felizes... Neste momento, mediante tanto sofrimento, é que percebo

como eu tinha uma vida fútil e, por certo, poderia ter feito mais pelo meu semelhante.

Às vezes ele tentava ser durão com os empregados, mas seu coração era bom e acabava voltando

atrás. E quando sorria... era perfeito! Seu olhar era penetrante e sedutor. Aposto que mamãe, ao vê-

lo, apaixonou-se imediatamente. Esse era o tipo de amor que eu queria para mim: eterno e

verdadeiro. Eu tinha certeza de que ele ainda a amava, pois sempre trazia consigo, dentro do relógio

de bolso, um retrato dela. Mesmo casado com minha madrasta, ele ainda, às escondidas, ficava

fitando com ternura aquele retrato.

Ao se casar com a condessa, meu pai tornou-se carrancudo e grosseiro, afastando-se de mim dia

após dia. Passei a me sentir culpada por minha mãe ter falecido durante o parto. E minha madrasta,

ao perceber meus temores infundáveis, passou a agredir-me, chamando-me de pequena maldição.

Dizia ser eu a culpada pela morte da minha mãe e pelo fato de ela nunca ter engravidado. Mas, um

dia, meu pai a ouviu e interveio por mim. Disse-lhe que nunca mais queria vê-la fazer-me tais

acusações levianas. A condessa engoliu seu ódio por mim naquele dia, e subiu para seus aposentos,

fingindo estar se sentindo mal. Não me lembro de ter visto meu pai procurar por ela e pedir-lhe

desculpas, como sempre estava acostumado a fazer. Essa foi a única vez, desde que me entendia por

gente, que vi meu pai manifestar-se a meu favor.

Usei uma fita negra de veludo ao redor do meu pescoço, com um camafeu de marfim de minha

mãe. Agora só faltava a sombrinha cor de palha, com delicadas rosinhas azuis e outras com cor de

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damasco. Seu cabo era todo talhado à mão, e havia sido meu avô quem o fizera para mim. Agora sim

estava pronta para meu passeio naquele final de semana, que seria praticamente um dos últimos com

Maria.

Havia meses que eu não saía de casa. Por isso, não poupei esforços e caprichei naquela

manhã. Levei uma maleta com tudo que julguei ser necessário. Não me esqueci de colocar alguns

mimos para presentear os donos da casa onde passaríamos o final de semana. Levei comigo minhas

economias. Achei que seria o momento exato de gastá-las.

Maria entrou no quarto, de repente, e fitou-me de cima abaixo. Ironizou, ao perguntar onde

seria o baile. Senti-me encabulada e corei de imediato. Ela ainda continuou a brincar, dizendo que,

daquela forma, eu iria arrumar pretendentes com muita facilidade. Sorri meio sem graça e falei que,

se fosse somente para desfilar ao lado de um homem triste e carrancudo como meu pai, só para

mostrar à sociedade que eu era capaz de arrumar marido, preferiria acabar solteirona e comendo

bolachas com chá.

_ Minha nossa! Pensei que eu iria poder descansar um dia! Mas, pelo que vejo, vou ter que

cuidar de uma solteirona carrancuda - disse Maria, dando uma sonora gargalhada.

_ Ah, Maria! Jamais me apaixonarei! Somente se o amor for verdadeiro e duradouro. Mas sei

que isso será impossível de acontecer, pois a nossa sociedade só visa o materialismo. E, levando em

conta a situação financeira atual de minha família, isso será praticamente impossível, pois meu dote

não é considerado tão valioso como o de algumas jovens do condado! Também temos que levar em

conta outro fato não menos importante.

_ E qual seria? - perguntou Maria, curiosíssima.

_ O fato de que a senhora minha madrasta pode ter furtado meu mísero dote antes mesmo de eu

ter tido a chance de usá-lo.

Dessa vez, nos duas caímos em risos. Mas ela ainda prosseguiu, tentando corrigir o meu

pensamento de depreciação para comigo mesma:

_ Não quero que diga sandices, criança tola. Por certo, um jovem mancebo irá se apaixonar por

ti do jeito que é. Não podemos julgar todas as pessoas somente por conhecermos uma. Afinal, os

dedos das mãos não têm o mesmo tamanho.

_ Hummm... E quem seria essa pessoa tão escrupulosa e tão pouco materialista, que vê uma

moça pelo que ela é, e não pelo dote que ela possui? E quanto aos dedos das mãos, Maria, eu já os

observei. Não são iguais, por certo, mas têm o mesmo tamanho, só estão posicionados de forma

diferente. Basta observá-los e verá que estou correta. Ah, Maria, nós fazemos parte de uma grande

peça teatral, na qual só mudam os personagens! E o cenário? Às vezes! Mas a história é sempre a

mesma. Principalmente para nós, mulheres, que somos nada mais nada menos do que meras

marionetes nas mãos dos nossos senhores. Não existe casamento sem conveniência, Maria. Valemos

o dote que possuímos, ou seja, o dote que levamos como bagagem. Ouso dizer que a própria

condessa foi uma dessas vítimas.

_ Agora sei que a senhorita já não está mais em seu juízo perfeito! A senhora Del Prat? Uma

vítima? Nunca!

_ Maria, acha que ela também não foi obrigada por seu pai a casar com um homem viúvo, que

ainda trazia de bagagem uma filha nos braços? Pense bem, não deve ter sido fácil para ela, ter que se

casar só porque já estava com vinte e oito anos. Temos nossas diferenças, isso é certo. Mas não

posso culpá-la por ser como é. Ela é mais uma vítima de nossa sociedade. Já pensou o que é ter que

ver seus sonhos sufocados? E se ver aprisionada a uma vida infrutífera e sem volta? Não é a senhora

mesma quem disse que, quando os sonhos morrem, morremos com eles? Por isso ela desconta toda a

sua ira em mim. E ainda deve, por certo, sentir-se completamente frustrada por não poder ter tido

filhos. Até agora, com quarenta e oito anos, isso deve ser horrível! Imagine só como a sociedade em

que ela vive cobra dela o tempo inteiro. Todos nós temos problemas. Os delas são ainda piores que

os meus. Acredite!

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_ A senhorita está completamente certa. Mas isso não quer dizer que ela deva sair por aí,

pisando nas pessoas menos favorecidas.

_ Concordo com a senhora! Mas não somos ninguém para julgá-la. Ela foi criada com tudo do

bom e do melhor, nunca soube o que é sequer trocar a própria roupa. Ela foi mimada em demasia.

Tornou-se prepotente, ou quer que a vejamos assim. Já a flagrei muitas vezes, depois de suas festas,

fitando o horizonte, visando sabe-se lá Deus o quê! Ela, de fato, não ama meu pai, mas ainda prefere

ficar com ele a voltar para sua casa na Alemanha. Imagine o que diriam de uma mulher, com o título

de nobreza que ela possui, se alguém soubesse que ela saiu da casa de seu marido? Não a veriam

com respeito. E o que ainda é pior, não se casaria novamente, principalmente por não poder dar

futuros herdeiros. Tenho certeza de que a severidade do conde, seu pai, e ainda as cobranças da

sociedade repressora são piores do que os apertos e a solidão que tem passado aqui. Ou a senhora

acha que uma pessoa como ela não é solitária?

_ Por certo tem razão, minha querida e doce Anna, mas não consigo entender como consegue

achar qualidades em pessoas como essa senhora.

_ Não é questão apenas de ver qualidades nela; é questão de entendê-la, como mulher e como

ser humano. E ela só é maldosa porque é revoltada. Prefiro ver as pessoas por outro ângulo. Caso

assim não fizesse, odiaria mais gente do que a quantidade de cabelos que tenho em minha cabeça.

Não me importo com o que ela faz comigo. Vai ver ela está certa, nunca encontrarei um bom homem

para mim.

_ Pois lhe digo que isso acontecerá em breve, e rezo para que Deus lhe perdoe pelo passo que

terá que dar. Sinto não poder interferir em seu destino, minha filha. Pois, caso pudesse, garanto-lhe

que ele seria muito mais ameno do que o previsto. E agora pare com suas ideias mirabolantes e

inocentes a respeito do ser humano. Para mim, pessoas más escolhem ser como são.

E saiu, olhando os dedos das mãos.

_ Por que, Maria? - gritei. Viu isso em suas cartas de tarô?

Estiquei meu pescoço, tentando achar sua face. Quando ela se virou abruptamente para mim,

notei profunda tristeza em seu olhar.

_ Por que nunca me responde a essa pergunta tão simples? - indaguei insistente.

_ Talvez porque esta resposta seja simples demais, e só possa ser respondida pela senhorita!

Lembre-se: todas as respostas estão dentro da gente. Agora chega de conversa e siga-me, pois vamos

acabar nos atrasando.

Segui-a, em silêncio e cheia de controvérsias mentais. Se todas as respostas estavam dentro

de nós, por que sempre errávamos em nossos julgamentos?

Ao descermos a escadaria, Maria foi até a cozinha para dar as ordenanças finais à criadagem.

Fiquei entre os dois últimos degraus, observando tudo à minha volta. A mobília, embora fosse muito

cara e exuberante, era de extremo exagero e de um mau gosto imperdoável. Observei tudo a meu

redor e fechei os olhos para me lembrar até dos mínimos detalhes. Estranhas a sensação de perda e a

saudade antecipada que tomaram conta de mim naquele momento. Era como se eu não fosse mais

ver aquilo tudo de novo. Senti medo e tristeza.

Minha madrasta observava-me do alto da escada. Ela era como uma sombra constante em minha

vida. Às vezes, tinha a impressão de tê-la em frente a mim enquanto dormia. Não resistindo, ela disse

algo para me ofender.

_ Desse jeito voltará casada, com um plebeu. Aliás, é bem o seu tipo. Nunca se parecerá comigo,

não conseguirá um bom partido e jamais terá um homem a seus pés. Acha mesmo que pode copiar-

me? Criança tola! Não tente, não sou sua mãe, nunca quis ser. Não vê que sou a mulher do seu pai, e

que ele já a esqueceu há muito tempo? O seu reinado acabou, minha querida - se é que um dia

existiu!

A condessa disse essas coisas enquanto descia a escada, cambaleando. Dessa vez, excedeu-se

em sua soberba, arrogância e presunção. E a maneira com a qual falava a respeito de meu pai ferveu

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meu sangue. Mas Deus me deu forças para não perder a paciência. Levei em consideração que ela

não estava sóbria naquele momento. Na verdade, senti pena dela. O cheiro da bebida era tão forte

que me tonteou, devido à pouca distância que ela fez questão de manter para me assustar - o que

conseguiu. Em seus olhos, percebi um ódio aterrorizante.

Fiquei tão nervosa e indignada – e, ao mesmo tempo, assustada -, pois não sabia o porquê de

ela realmente me odiar tanto. Eu sabia que eu poderia ter respondido à altura. Mas não o fiz.

Desvencilhei-me dela o mais rápido possível, e saí porta afora, às pressas. Pude, ainda, ouvir seus

gritos histéricos e rompantes pelo lado de fora.

_ Vê se arruma um plebeu, velho, gordo e fedido por lá e suma com ele para bem longe das

minhas vistas. Assim, vai poupar-me o trabalho de ter que eu mesma despachá-la para o inferno!

Ergui minha a cabeça e fui até o jardim, onde estava nosso jardineiro Joseph. Aproximei-me

dele e abaixei-me para cumprimentá-lo melhor. Eu estava tremendo tanto que ele, parecendo ter

percebido, mas também não querendo deixar transparecer para que eu não ficasse ainda mais

constrangida, cortou um botão de rosas com um gesto de delicadeza, dando-me em seguida. Por fim,

disse, ainda de cabeça baixa:

_ Uma rosa para uma linda flor! Sabe, senhorita, a patroa ladra mas não morde. No fundo, ela

sente tanto medo da senhorita quanto a senhorita dela.

Sorri em agradecimento e aproximei-me, inclinando-me e segurando sua cabeça com as mãos

para lhe dar um beijo na testa. Na verdade, eu compreendia o que ele estava tentando me dizer.

Imagine só: minha madrasta com medo de mim! Embora parecesse hilário, era a mais pura verdade.

Só que, naquele momento, eu só conseguia ver o medo que eu sentia dela.

Joseph era um velhinho simpático e muito agradável. Quando eu era criança, sempre me contava

histórias e contos folclóricos sobre o povo cigano, e era fantástico ouvi-lo. Levantei-me para olhar ao

redor e admirar o esplendor do magnífico jardim. Eram tantas flores! Rosas de todas as cores e

tamanhos, margaridas, gerânios, florzinhas do campo, violetas, dálias, cravos, jasmins, orquídeas,

papoulas, plantas ornamentais... Tudo aquilo tinha cheiro de amor e fazia-me muito bem. Toda

aquela beleza misturava-se ao perfume da hortelã, da alfazema e do alecrim.

A condessa tentou fazer com que meu pai acabasse com o jardim por várias vezes. Mas ele

sempre ficou em cima do muro e nunca deu uma resposta positiva a ela. Aliás, seria novidade se ele

fosse negativo a alguma coisa relacionada a ela. Para essa questão, ele apenas disse que iria pensar.

Minha madrasta continuou insistindo com esse assunto por muito tempo. Mas, depois de nunca ouvir

um sim conclusivo, acabou desistindo por certo tempo.

Quando se casou, trouxe consigo toda uma decoração pavorosa, inclusive as estatuetas

monstruosas e sem nexo que passaram a decorar o belo jardim da minha família. O pior é que ela as

fixou no centro, próximo à janela do meu quarto. Lembro-me de quando eu era pequena: ao

escurecer, sempre que olhava pela janela, tapava os olhos com as mãozinhas, pois me davam muito

medo. Elas eram como pessoas decepadas e, na minha mente frutífera e infantil, mexiam-se e

pareciam estar caminhado em minha direção. Eu corria para debaixo das cobertas, deixando de fora

somente o pequenino nariz para respirar. Eu suava e tremia tanto que, quando Maria vinha dar-me

boa noite, tinha que trocar minhas roupinhas molhadas. Ela sempre me acalentava com suas cantigas

de ninar, na tentativa de me acalentar até que eu dormisse.

O cavalariço Sr. Lorenzo aproximou-se de mim por trás, assustando-me.

_ Calma, senhorita Anna! Só vim saber se está tudo bem, pois ouvi quando a Senhora Del Prat

estava a gritar com a senhorita exasperadamente. Ela fez algum mal à senhorita?

_ Não, Sr. Lorenzo, ela apenas ladrou um pouco além da conta. Foi só, juro!

Ele pareceu não crer; então reforcei, olhando em seus olhos.

_ Sim. Está tudo bem. Deve ser a astenia causada pela ausência de meu pai, ou o excesso de

licor de jenipapo.

_ Ah, por certo a Senhora deve estar precisando de uns calmantes em dosagem maior.

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_ Oh, não diga isso! Não se pode misturar calmantes a licores.

Começamos a dar gargalhadas. Lorenzo conseguiu descontrair-me, afinal. Maria veio em

seguida e disse:

_ Imagine só, esses criados jovens não fazem nada direito!

_ Maria, Maria! Não estaria sendo a senhora exigente demais com os pobres coitados? Não está

tentando tirar o lugar da senhora Del Prat, está?

Maria fez-me um ar de desaprovação pelo meu comentário esdrúxulo. Lorenzo já havia

colocado nossas bagagens na carruagem. Abriu-nos a porta para entrarmos. Seguimos, então, nosso

caminho em direção ao enorme portão verde musgo, com pontas em formato de lança e pintadas em

dourado. O enorme brasão da família Del Prat estava logo à frente. A passarela toda, de pedras

grandes e polidas pelo passar dos anos, dava à entrada um ar de realeza. Pude ver a estufa onde

Joseph cultivava as mudas; era logo na lateral do jardim. Quatro bancos foram colocados no decorrer

do caminho, dois de cada lado.

Um escravo veio abrir o portão. E, pela primeira vez, senti-me em liberdade, longe daqueles

muros de medo e tristeza. Suspirei aliviada. Mas era estranho, pois a sensação de que nunca mais

veria tudo aquilo novamente não me largava.

Minha sombra olhava-nos às escondidas, por trás das cortinas da grande janela de vidro da sala

de estar. Parecia uma ave de rapina. O que será que se passava naquela cabeça louca e cheia de

luxúria? Sacudi minha cabeça, rindo comigo mesma. Maria pareceu ler os meus pensamentos - aliás,

ela era a minha sombra mental e era constrangedor, às vezes, ter os pensamentos invadidos. Como

que em um impulso, Maria disse:

_ Pare de criar caraminholas nessa cabecinha, menina!

Dei de ombros, virando o rosto para o outro lado, mas percebi que ela também sorria. Maria era

uma mulher muito perspicaz e, por isso, achei melhor centralizar meus pensamentos na paisagem ao

meu redor.

As ruazinhas eram estreitas e encantadoras, com suas belas e elegantes casas, todas decoradas

com jardins repletos de flores, pois era a moda trazida da Europa. As árvores frondosas, que

cercavam de um lado a outro as calçadas, pareciam ter sido colocadas ali naquele momento, só para

passarmos numa passarela harmoniosa.

Muitas pessoas afoitas já transitavam para lá e para cá. Senhoritas pareciam ocupadíssimas em

desfilar seus modelitos muito comportados e elegantes, num flerte compulsivo para atrair a atenção

dos cavaleiros, que desfilavam na outra calçada. Afinal, ficar solteira poderia se tornar uma coisa

escandalosa e dispendiosa para os pais. Estes juntavam dinheiro durante toda a vida para que suas

filhas não se casassem sem um dote adequado.

Moçoilas em época de se casar só frequentam bailes em companhia de suas aias ou de seus pais.

Jamais sozinhas, por medo dos mexericos. Sendo que a irmã mais velha é quem deveria se casar

primeiro, e a irmã mais nova, caso houvesse uma, tinha que ficar cuidando da mãe. Se o namoro

firmasse, deveria durar um ano na sala da moça, que tinha que estar acompanhada de seus pais e

outras pessoas. Então, o próximo passo seria o noivado, que deveria durar apenas o tempo de o

enxoval ficar pronto - isso queria dizer na semana seguinte, pois a maioria das mães fazia o enxoval

das filhas assim que as meninas nasciam. Claro que as jovens enamoradas também tinham que

bordar grande parte do enxoval, logo que estivessem em fase casadoura. As meninas já estavam

prontas para o casamento a partir dos doze anos, caso fossem nobres, e a partir dos quatorze a

dezoito anos, caso não tivessem título de nobreza. Isso significava que eu estava passando do tempo

de arrumar um marido.

Todos procuravam um bom partido para suas filhas. Não se importavam com os sentimentos

delas. Na esperança de um futuro seguro, o amor era o de menor valor. Isso não era o que eu queria

para mim. Sempre me esquivei de senhores mais velhos.

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Certa vez, em um jantar de que fui obrigada a participar em minha casa, meu pai apresentou-me

a um fidalgo com o triplo de minha idade, sendo que eu tinha dezesseis anos nessa época. O velhote

rodeou-me a noite toda e não consegui desvencilhar-me dele. O cheiro da bebida misturou-se ao

cheiro da roupa velha, que devia ter estado guardada desde o século XV. Isso era nauseante! Suas

mãos eram oferecidas demais. O único jeito foi dizer que estava me sentindo muito mal. Com

certeza, era mais uma que a condessa havia aprontado para se livrar de mim, pois pude vê-la com seu

olhar de deboche às escondidas. Mas, graças a Deus, a falsa dor de cabeça que forjei salvou-me mais

uma vez. E, nesse dia, apertei os olhos ao passar na direção da condessa, constatando a minha vitória

- o que causou uma torcida em seu leque de estimação.

Voltei a observar a paisagem de Salamanca, enquanto Lorenzo contornava a praça central.

Então, pude ver a linda fonte de águas no meio da praça. Depois de algumas horas, chegamos ao

nosso primeiro destino. Paramos à frente de uma enorme mansão cor-de-rosa. Era a mansão e o

ateliê de madame Hortência Vigald.

Ela era uma senhora rechonchuda, de olhos grandes e amendoados. Seus seios eram fartos e

salientavam-se por cima de suas vestes, repletas de rendas e outras mesuras. Para completar o visual

exótico, ela ainda usava uma peruca loura cheia de cachinhos. Isso a fazia parecer uma boneca de

trapo mal feita e assustadora de se ver à noite, sentada em uma cadeira no escuro.

Ao ver-me, sempre me abraçava fortemente e melava-me com seus beijos babentos. Como era

difícil ser uma jovem educada e de boa índole, meu Deus! Tinha vontade de sair correndo. Às vezes,

tinha a impressão de que ela poderia me morder com aqueles dentes enormes e escurecidos pelo

tempo. Mas também poderia correr o risco de ser engolida por aqueles lábios extremamente grandes

e lambuzados de açúcar, pela quantidade diária de doces degustados. Ao chegarmos, ela estava de pé

à soleira da porta, comendo uma brevidade. Ao ver-nos, correu em nossa direção, dizendo:

_ Oh, querida, como está linda! E cada vez mais parecida com Elizabeth! Veio ver alguns

modelitos para si, meu bem?

_ Não - salvou-me Maria. Viemos buscar a encomenda da Senhora Del Prat. Estávamos partindo

de viagem e, como não teremos tempo de buscá-la na volta, levaremos desde já a encomenda

conosco.

_ Oh, entrem! Pedirei a Gülia que lhes busque a encomenda. Sentemos, por favor! Aceitam uma

xícara de chá com biscoitos? Façam-me companhia, queridas, nunca recebo visitas para o chá!

Até parece, pensei comigo. Todas as clientes que por ali aparecessem por certo seriam motivo

para madame Hortência tomar chá com biscoito - o que explicava sua forma rechonchuda.

_ Não, senhora! Estamos com muita pressa e, além do mais, já fizemos nosso desjejum matinal.

_ Oh, ficarei um tanto ofendida! Sabe como gosto da menina, embora quase não a tenha visto

ultimamente.

Por fim, aceitamos uma xícara chá para que ela não tivesse uma síncope.

_ Então, querida, como está seu pai? Já retornou de viagem?

_ Não, ainda não. E já fez um mês hoje. Confesso que estou bastante preocupada com a ausência

de notícias por parte dele. Isso anda me tirando o sono.

_ Não diga! Mas com certeza não aconteceu nada de grave com Sir Juan. Nisso eu aposto! Sabes

como são os homens... Fique despreocupada, querida! Noticia ruim corre rápido. Ele é mesmo um

homem lindo! - suspirou ela. Um verdadeiro colírio para os meus olhinhos cansados! Se não fosse

casado... e se eu tivesse um pouquinho menos de idade, candidatar-me-ia como sua madrasta! Uma

madrasta boazinha, é claro! - fez esse comentário sorvendo, em seguida, um gole de chá.

Por certo, ela teria que ter muito menos idade mesmo. Ela usava termos antigos, como se ainda

estivesse no século XV, e forçava um falso francês. Na verdade, seus vestidos eram cópias exatas de

luxo da moda francesa. Suas costureiras, sim, eram as verdadeiras artistas, pois madame Hortência

nunca sequer colocou suas mãos em uma agulha para coser.

Eu e Maria nos entreolhamos, contendo uma sonora gargalhada.

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_ Ah, mas aposto que existe algum jovem mancebo para consolar essa ausência!

Olhei novamente para Maria, em busca de socorro. E suspirei quando pude ver que Gülia

entrava, trazendo um enorme pacote nas mãos, que foi direto para as mãos do lacaio. Este o entregou

para Lorenzo, que nos aguardava pacientemente do lado de fora. Todo aquele movimento foi um

alívio, pois me salvou de ter que responder às tolas interrogações de madame Hortência. Embora eu

não tivesse uma vida social ativa, Madame Hortência fazia-me parecer que eu levava uma vida

agitada e pública, pois eu sempre tinha a obrigação de ter algo para contar a ela.

Maria, percebendo meu constrangimento, apressou-a, dizendo que realmente precisávamos ir.

Ufa, graças a Deus!, pensei comigo.

_ Porque não escolhe um dos modelitos? – insistiu, ainda, na saída.

_ Tenho tantos que acabaria tendo que dividir meu pouco espaço com eles!

_ Entendo... Mas realmente sei que não precisa do brilho das lantejoulas e paetês para ser feliz.

Tem o seu próprio brilho, e isso é nato.

Disse isso num tom engraçado e baixo. Rimos todas ao mesmo tempo, pois nos lembramos de

que, certa vez, a senhora Del Prat encomendou um vestido tão espalhafatoso e reluzente que mal

dava para ver suas caríssimas joias penduradas ao pescoço. Foi uma noite difícil aquela, pois minha

madrasta chamou mais atenção do que a noiva ou a própria rainha.

A noiva era uma pupila de muita estima de Sua Majestade. Por isso, esta fez questão de estar

presente entre os convivas. A condessa só foi convidada por causa de seu titulo de nobreza, mas

tinha que aparecer a todo custo. A rainha, ao vê-la, disfarçava e educadamente esquivava-se a cada

proximidade da Deusa do sol. Naquele dia, minha madrasta superou-se em seus exageros. Doía a

vista de todos ao olhar para aquela figura brilhante. Meu pai e eu ficamos em um canto distante dela,

é claro. Percebi seu constrangimento mediante tantos sussurros zombeteiros.

Já dentro da carruagem, não sabíamos se ríamos das lembranças reluzentes da condessa ou se

nos deliciávamos dos fuxicos de Madame Hortência.

O dia estava lindo e o sol resolveu dar o ar de sua graça naquela fria manhã de outono. Ao

pegarmos a estrada, contemplávamos a paisagem magnífica. Eu estava encantada com tantas

novidades que vinham surgindo à beira do caminho. Conversamos muito sobre coisas banais do dia-

a-dia. Não tocamos em assuntos que não nos eram convenientes ao espírito.

Durante todo o trajeto, cantarolamos canções ciganas e ríamos por qualquer coisa. Maria fez de

tudo para que eu me desligasse dos problemas corriqueiros e domésticos. Depois de uma rápida

parada para nos refrescar à beira de uma velha mina d’água, comemos o delicioso lanche que Maria

havia trazido em uma cesta. E seguimos a nossa longa jornada pela empoeirada estrada do norte da

Espanha. Afinal, pela altura do sol, já devia ser meio dia. Dentro da carruagem, adormeci

profundamente, encostada aos ombros de Maria. Só despertei quando a carruagem passou por uma

pedra saliente. Maria bateu no teto e gritou para que o cocheiro tomasse mais cuidado. Depois

daquele susto, perguntei se já havíamos chegado.

_ Quase! - respondeu-me Maria - Continue a dormir! – prosseguiu, com um tom na voz que

mais parecia um bocejo.

Não conseguia dormir mais e comecei a olhar as folhas das árvores caídas ao chão, formando

uma espécie de tapete celestial. Casinhas de colonos ao longe, muitos gados a pastar. O cheiro do

mato e o silêncio ensurdecedor fizeram-me adormecer novamente. Uma voz ao longe parecia

chamar-me Anna, Anna! Sinto sua falta... Encontre-me, por favor!

Meus olhos foram ficando cada vez mais pesados e, por fim, caí no abismo dos sonhos. Sonhei

que estava em um mosteiro, todo feito em pedras calcárias de cor escura. O lugar mais parecia uma

ruína. Havia um enorme jardim, totalmente abandonado, onde só os girassóis sobreviviam. Muitos

monges trabalhavam nas plantações, tentando salvar o pouco que lhes restava da seca, que era

eminente. Outros cuidavam dos animais magros e doentes. Alguns, ainda, varriam incessantemente o

patíbulo, cuja terra havia invadido todo o mosteiro. Aquilo me pareceu mais um ato de loucura

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coletiva. Ao longe, ouvi um coro com música gregoriana - misturada às orações, pareciam lamentos

e suplícios.

No patíbulo do mosteiro, logo na entrada, havia um monge, que me olhava de um jeito hostil,

quase humilhante. Parecia ser uma espécie de abade. Ele era sério, atarracado, baixo e corcunda. Sua

pele era avermelhada, manchada e descamada por causa do mau tempo. O que o diferenciava dos

demais monges era apenas uma enorme cruz na frente de suas vestes, encardidas e rasgadas.

Algumas freiras circulavam de um lado para o outro, como que hipnotizadas. Vi-me descer de uma

carruagem, e seguraram meus finos braços, empurrando-me aos safanões para dentro do mosteiro.

Tentei fugir, mas as mãos que me seguravam eram fortes e severas. Eu olhava para trás, tentando

pedir socorro à Maria. Ela nada parecia poder fazer. As lágrimas desciam incessantes dos olhos de

minha amada amiga, que ficava cada vez mais para trás.

Tentei fugir inutilmente. Gritei por socorro e deixei o pranto rolar. Chamei por Maria, até que a

vi cair por terra, como que sem forças. Meu corpo tremia. O desespero tomou conta de mim, por

saber que estava ficando longe de meus familiares. Tentei agarrar-me onde dava. Todos ao redor

olhavam-me e viravam seus rostos, numa repulsa sem explicação.

Uma jovem freira ainda tentou desgrudar-me daqueles braços e mãos, mas outras a puxaram e só

ouvi dizerem-me para ter fé. Outra freira, bem mais velha, veio receber-nos à porta do convento. Era

uma senhora carrancuda e com ares de perversidade. Provavelmente, a madre superiora.

Sua expressão de algoz conseguiu gelar minha alma. Mandou-me calar a boca aos berros,

advertindo-me que ali não era lugar para toda aquela histeria. Por fim, levaram-me para dentro,

forçosamente. Virei para trás, dando uma última olhada para meu pai, que ficou na entrada,

conversando com a suposta madre.

Deixaram-me só, em um corredor onde havia um enorme banco, uma mesa, uma cadeira e um

armário antigo, onde pareciam guardar arquivos e documentos. A sala era escura e não tinha sequer

um vaso de plantas.

De repente, ouvi um barulho e a porta se abriu. Estremeci como vara de bambu ao vento. Mas,

ao contrário de quem pensei que fosse, entrou um monge de hábito marrom e cabeça baixa e

encapuzada. Aproximou-se de mim lentamente, ajoelhou-se e fitou-me os olhos. Seus olhos eram cor

de mel, sua pele, muito branca, e seu rosto angelical escondia-se por trás de uma fina e rala barba

ruiva.

Aqueles olhos meigos passaram-me segurança e calor. Abaixou o capuz, esticando para mim

suas brancas mãos. Seus dedos eram logos e finos; sua pele tinha uma maciez que arrepiou todo o

meu corpo. Sua proximidade era tamanha que pude ver as pequenas sardas por baixo dos pelos

ruivos de seus braços. Embora a barba estivesse por fazer, ela lhe dava um ar de intelecto. Seus

traços eram finos e ele mais parecia um lorde.

E, por certo, era de origem inglesa ou holandesa. Fiquei gelada e catatônica, e cheguei a pensar

ser um dos loucos que havia visto ao chegar. Mas ele me passou tanta paz e tranquilidade ao pegar

novamente em minhas mãos, trêmulas e geladas, que novamente acalmei. Então, disse simplesmente:

_ Estou à sua espera há tanto tempo, Anna. Perdoe-me por tê-la deixado! Nunca mais nos

separaremos, prometo!

De repente, num piscar de olhos, estávamos sem mais nem menos em um despenhadeiro, onde

se via todo o mar da Espanha, lindo e de um azul inigualável! A areia, muito branca, completava

aquela paisagem. O vento soprava forte, como se estivesse me dizendo algo que eu não consegui

decifrar naquele momento. Podia sentir o cheiro da maresia nas minhas narinas. Fiquei muito

agoniada com aquela sensação. Meus cabelos estavam soltos e voavam com as minhas vestes, toda

em algodão fino e transparente. Ele segurou minhas mãos, e comecei a me sentir segura e feliz

novamente, como nunca havia sentido antes em toda a minha vida.

O vento era forte demais e frio. A estranha sensação voltou. Comecei a tentar desesperamente

soltar minhas mãos das dele. O cheiro da maresia foi se transformando em cheiro de medo. Por fim,

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o monge soltou minhas mãos e senti seus dedos desprendendo-se dos meus. Caminhou em direção ao

despenhadeiro.

Meu coração disparava ao ver a agonia em seus olhos. O brilho daquele olhar feliz transformou-

se em súplicas. O musgo viçoso daquele olhar agora era nada mais do que escuridão. De repente, a

escuridão tomou conta de tudo ao meu redor e vozes tenebrosas cercaram-me. Ele me deu um sorriso

triste, com os lábios fechados. Virou-se de costas, caindo no despenhadeiro, gritando o meu nome

num apelo desesperado.

Seu corpo caiu nos rochedos e o mar revolto ficou batendo nele, já sem vida. Gritei como louca

e percebi que eu não estava mais ali, que era só mais um sonho.

Vozes chamavam-me, misturando-se ao barulho das ondas. Tudo começou a virar fumaça e

acordei suada e chorando muito, com Maria ao meu lado, chamando-me:

_ O que houve, filha? - perguntou Maria, passando as mãos no meu rosto, tentando enxugar as

lágrimas que ainda desciam como fonte de tristeza. Entre soluços, disse-lhe:

_ Sonhei com o monge novamente, Maria, aquele dos meus sonhos de criança! Já fazia tanto

tempo que não sonhava mais com ele! O engraçado é que sempre sei que estou sonhando, sei que a

qualquer momento irei acordar. Às vezes chego a ouvir meus suspiros dormindo, e até vejo meu

corpo em seu estado de repouso. Por que isso está acontecendo comigo de novo, Maria? Ele se

matou? Pois o vi caindo no mar! Não consigo entender o que realmente houve com ele. Tentei salvá-

lo, mas já era tarde demais, juro! Ele se foi muito rápido. Quem é ele, Maria? Por que esses sonhos

incessantes?

Maria aproximou minha cabeça do peito, na tentativa de me acalentar, pois eu já não conseguia

falar. Apenas soluçava.

_ Calma, querida, vamos resolver tudo isso hoje. Minha irmã Helena saberá ajudá-la. Não existe

pessoa melhor neste mundo que entenda mais sobre este assunto do que ela.

Olhei-a, espantada.

_ Pensei que fosse a senhora a entender desses assuntos?

_ Não. Abandonei o meu povo e agora não faço nada mais além de por cartas e fazer meus chás.

Agora enxugue essas lágrimas. Chegamos ao nosso destino. Devemos nos preparar para descer com

discrição. Afinal, não queremos que ninguém veja seus olhos inchados. Ou vai querer que pensem

coisas de uma mocinha tão fina?

Embora soubesse que Maria só estava ironizando, não me incomodava nem um pouco com o

que os outros pensariam de mim. Só queria uma explicação plausível para tudo o que estava

acontecendo comigo. Queria que aqueles sonhos parassem logo e que eu pudesse dormir

tranquilamente alguma vez na vida.

Eram seis horas da tarde quando paramos em frente a uma casa grande, toda feita de pedras

escuras, com portinholas duplas e largas de madeira, pintadas com tinta azul envelhecida e

desgastadas pelo tempo. Abriam-se de cima para baixo. Suas janelas eram estreitas e muito altas,

dando a impressão de ser uma igreja. Alguns cipós teimavam em subir por toda a parede do lado de

fora, dando a ela um ar de casa medieval. Observei várias mulheres colocando suas roupas - muito

alvas - nos grandes varais que estavam na lateral. Outras trabalhavam em fiares e, ainda, teciam

tapeçarias. Crianças corriam e gritavam como loucas, brincando umas com as outras, sujando-se de

terra e de barro, sem ninguém para lhes privar a liberdade.

Todos estavam tão ocupados em seus afazeres que não deram a menor importância para a nossa

chegada. Avistei um celeiro a uns cem metros, onde deveriam guardar seus cavalos e outros animais

de grande porte.

Um pouco mais ao longe, via-se um moinho d’água - com sua enorme pá girando sem parar – e,

do outro lado, havia uma mata fechada, que parecia guardar todos os segredos daquele povo

misterioso.

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Animais domésticos circulavam por toda parte. Árvores frondosas e gigantescas cercavam toda a

casa. A mata, constituída por cedros, pinheiros, oliveiras e árvores frutíferas, formava uma cerca

viva. Por isso, não dava para vê-la ao longe ou mesmo da parte mais próxima da estrada. A própria

floresta era o muro que guardava toda aquela beleza e simplicidade.

Senti no ar uma grande manifestação de bondade e respeito em todos à minha volta, embora não

tivessem manifestado seu interesse por nós. A energia era tão viva que quase podíamos tocá-la.

As flores do campo cercavam toda a casa. Um beiral de pedras, feito pelos moradores da

floresta, cercava um canteiro com ervas para chá, muito bem cuidado. O lugar era mesmo mágico,

pois uma enorme paz tomou conta de mim assim que pisei lá. A terra era fértil e viam-se seus frutos.

E muitos gatos circulavam por todo o lugar. Fomos recebidas por uma senhora grisalha e uma jovem

muito bonita, aparentando ter a mesma idade que eu. A senhora era a irmã de Maria, e a moçoila era

sua sobrinha. Vieram correndo, pois fazia muito tempo que não se viam. Abraçaram-se com um

calor fraternal.

_ Seja muito bem vinda à nossa humilde floresta!- disse Dona Helena, olhando em minha

direção.

A mocinha apresentou-se, esticando a mão e dizendo:

_ Meu nome é Bernadete e aquela, como já sabe, é Helena, minha tia. Sou filha de Dolores e

Guiñllo, mas tia Helena me criou, pois ambos faleceram em um trágico acidente. Não falemos sobre

coisas ruins! Venha, entre! Não fique aí em pé, parada. Entre, conheça a casa e minhas outras irmãs.

- disse Bernadete, percebendo que eu havia ficado para trás.

Ao entrar, apresentou-me à outra senhora com olhar gentil, que estava sovando a massa para os

pães na cozinha. Em seguida, apresentou-me às suas outras duas irmãs: Loylla, a mais jovem, e

Emanuelle, a mais velha.

_ Fique calma! Estou achando-a um tanto tensa. Deixe que meu noivo Magald cuide de suas

malas. Aqui ninguém mexe em nada.

_ Imagine, não pensei nisso! É que estou tendo problemas para dormir. E estou com um pouco

de dor de cabeça.

_ Então venha se refrescar e tomar um chá de camomila com hortelã.

Bernadete levou-me para seu quarto, onde me refresquei e também troquei de roupas. Coloquei

um vestido simples, de algodão azul, que ela me emprestou, pois meus vestidos não eram adequados

para o campo. Trocamos presentes. Dei-lhe uma caixinha de música de cristal e bronze, onde um

casal de bailarinos dançava ao som de uma valsa vienense.

_ Era de minha mãe - disse a ela, estendendo as mãos.

_ É lindíssima! Mas não sei se posso aceitá-la.

_ Ficarei muito ofendida se não aceitar. Tenho certeza de que ficará perfeita na mesinha de

cabeceira do seu novo quarto! E ela tem um segredo, veja. - mostrei-lhe uma abertura falsa no fundo.

Poderá guardar suas economias aqui dentro sem que seu marido perceba.

Ela corou e disse:

_ Se é assim... Abraçou-me e depois seguiu em direção ao criado mudo, de onde tirou um livro,

cujas páginas eram de papiro e a capa era de couro, todo trabalhado à mão, com desenhos em relevo.

Disse que tinha sido seu avô que lhe havia dado. Foi uma troca que ele fizera com um cigano amigo

dele. Ela ainda disse que suas páginas eram mágicas, e como não levava o menor jeito para escrever,

gostaria que eu ficasse com ele.

_ Na verdade, meu avô contava essas histórias para eu adormecer. O que eu quero é me casar

com Magald o quanto antes, ter muitos filhos, e ser feliz enquanto vivermos.

Sabia que Bernadete e seu noivo estavam passando por muitas dificuldades, pois Maria

comentou comigo enquanto vínhamos pela estrada. Então, tentei ajudá-los, dando-lhes minhas

economias. O obséquio não era muito, mas sei que daria para ajudar na festa de casamento.

Bernadete agradeceu-me tanto que me deixou encabulada. Sua vida não era nada fácil, mas, mesmo

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O segredo dos girassóis

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assim, não poupara esforços para me agradar. Emanuelle, a irmã mais velha de Bernadete, veio nos

chamar para o jantar. Apressamo-nos em ir ao encontro de Maria e Helena. A mesa era toda de

madeira bruta, e dois enormes bancos a cercavam. Muitas guloseimas nos esperavam. Durante o

jantar, Dona Helena olhava demais para mim. Por fim, falou:

_ Fiquei sabendo do problema que a senhorita tem passado.

Olhei para Maria com desaprovação, mas ela continuou.

_ Não culpe Maria, ela fez o que era certo. Tem um dom lindo, menina!

_ Tenho o quê? - olhei para Maria, tentando receber uma resposta plausível.

_ Maria me contou de seus sonhos sequenciais e sobre tudo o que tem passado com sua

madrasta. Mas também me falou de sua benevolência e humanidade para com seu próximo. Iremos

ajudá-la, sei bem o que deve estar passando.

Bernadete deu-me um cutucão com o pé por debaixo da mesa e sorriu, abaixando a cabeça em

sinal à nossa cumplicidade no seu quarto.

_ E o que devo fazer? Quem é esse homem com quem tenho sonhado tão frequentemente?

_ Calma, menina! Uma pergunta por vez. Primeiro, tem que aflorar e doutrinar seu dom, Depois,

precisa fazer a viagem.

_ Fazer o quê? Teremos que viajar novamente, Maria?

As duas entreolharam-se e riram de mim. Senti-me uma tola e resolvi apenas esperar os

resultados e as respostas. Por fim, Helena falou:

_ Não, criança. A viagem não é como pensa! Nem mesmo sabemos se irá conseguir. Primeiro,

farei uma pergunta muito simples. Tem certeza de que quer conhecer esse homem? É isso o que

realmente quer? Pois não terá volta. E pode não voltar bem da viagem... O que é ainda pior: pode não

querer retornar ao seu corpo físico; ficará desacordada e correrá risco de vida.

_ Sim. É o que mais quero na vida. Não tenho dúvida se isso for me dar as respostas de que

preciso.

As duas entreolharam-se por instantes, concordando entre si.

_ Ótimo, então não temos muito tempo a perder, por causa da curta estadia da senhorita aqui.

Amanhã bem cedo começaremos com os preparativos - disse Dona Helena.

_ Como assim? A senhora o conhece? Ele mora por aqui? Quem é ele? Por favor, eu suplico,

digam-me quem ele é! - foi inevitável, embora eu tivesse prometido a mim mesma calar a boca!

_ Acalme-se, senhorita Anna! Uma pergunta por vez. Precisa saber que, embora não tenha a

mínima ideia do que está acontecendo, essas repostas só poderão ser dadas pelo seu coração. Com

certeza estão todas aí dentro. Todas as dúvidas, todas as ansiedades, só a senhorita tem a resposta. E,

com paciência, na hora certa saberá responder, podendo até nos esclarecer também. Por certo, ele

deve ter sido alguém muito importante para a senhorita. Tem alguma coisa que ainda está pendente;

esse espírito ainda continua interligado à senhorita. Pode ser que ele esteja encarnado ou não.

_ Então isso significa que ele está morto?

_ Não, de forma alguma. Estou tentando lhe dizer que essa pessoa fez parte do seu passado, de

outra vida. Mas também pode estar encarnado nesta vida. Resta saber se a senhorita terá estrutura

para encontrá-lo. Ele pode ter vindo de diversas formas, pode muito bem ser um parente muito

próximo. Quando falamos em espíritos, necessariamente ele não precisa estar desencarnado. A

senhorita também é um espírito. Porém, está encarnada. Sei que é muito difícil, no início, tentar

aprender sobre as coisas que lhe foram ocultadas a vida toda. Principalmente tendo a senhorita vindo

de uma família tão tradicional e rígida quanto a esses assuntos. Mas acredite: mesmo para nós, que

nascemos e seguimos a tradição a fio, ficamos confusas no início. É muita informação e, no seu caso,

muito pouco tempo também. Tenha calma, é só o que pediremos. Confie em nós e nas forças da

natureza. Tentaremos fazer o que for melhor para ajudá-la. Largue a ansiedade de lado, pois ela é sua

inimiga. Apague essas interrogações da sua cabeça. Aprenda a rezar - não as rezas tradicionais, mas

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as que o seu coração lhe ensina. Confie em si e em Deus que tudo lhe será respondido ao seu devido

tempo.

Fiquei calada o restante do jantar, observando-as conversar por entre lábios. Não estava com

medo, mas muito curiosa.

Eu e Bernadete sentamos perto da lareira, na sala, pois a noite estava fria. Maria e Helena

passaram o resto da noite cochichando. Não consegui ouvir uma só palavra do que Bernadete estava

me falando, pois fiquei o tempo todo de orelhas em pé, tentando ouvir o que as duas irmãs estavam

falando, e se era sobre mim.

Às oito e meia, eu e Bernadete fomos nos deitar, pois, por algum motivo, tínhamos que acordar

cedo. No quarto, conversamos muito. Contou-me como conheceu Magald. Era adorável ouvi-la, pois

fazia o amor parecer uma coisa muito simples.

_ Quando eu encontrar alguém, desejo que esse amor seja para sempre, por toda a eternidade.

Ela disse, exasperada:

_ Não diga isso nunca! - foi como se eu tivesse dito algo muito abominável.

_ Por quê? – perguntei, curiosa.

_ Porque o amor é livre. Não podemos prender um espírito encarnado ou desencarnado. Esse

tipo de jura ou atitude inconsequente e egoísta pode perseguir o espírito por toda a sua vida, e até por

várias outras encarnações. Anna, o espírito jurado pode passar a vida procurando um amor e nunca

encontrá-lo. E o que fez a jura pode nunca mais conseguir ter sossego. Até que, por si, comece a

aceitar a ajuda dos irmãos desencarnados espíritos de luz. Mas isso pode levar muito tempo, Anna,

até séculos! Quando meu espírito desencarnar, quero que Magald seja muito feliz, que encontre uma

boa mulher que o ajude em sua jornada terrena. O amor é liberdade, Anna... o amor é liberdade! Se

conseguir fazer a viagem, voltará com novos pensamentos. Agora durma, pois teremos um dia bem

agitado amanhã.

_ Então, pretende esquecer Magald?

Virou-se brava para mim.

_ Nunca nos esqueceremos, pois nos encontraremos em outras encarnações, e nossas lembranças

sempre nos acompanharão, pois temos a obrigação de nos lembrar de nosso passado. Só que, na

maioria das vezes, somos tão egoístas e estamos tão preocupados com nossas vidas terrenas que não

ouvimos os irmãos desencarnados nos falarem e nos darem bons conselhos. Caímos, então, nas

garras dos afins e, antes que me pergunte quem são os afins, eles são espíritos sem luz. Podemos ser

orientados por espírito bons ou maus - depende muito da nossa sintonia espiritual. É a lei do

universo. Viemos a esta vida para aprender e praticar o bem comum. Não é fácil, mas cada um deve

aprender ou, pelo menos, tentar fazê-lo.

_ Como podemos ajudar?

_ Dando bons conselhos, livrando uma pessoa de se prejudicar. Não é importante a quantidade

de vezes que praticamos o bem, mas a qualidade com que praticamos. Ou seja, devemos sempre

saber a forma como nos dirigir à pessoa em questão, para não ofendermos ou invadirmos o espaço

físico e mental dessa pessoa. É muito importante deixar as pessoas à vontade e, principalmente, não

devemos convencê-las de tomar o caminho que muitas vezes só é melhor para nós – mas, sim, elas

devem seguir o caminho que lhes for indicado por Deus. Essa é a diferença entra uma bruxa e uma

feiticeira. Nós estudamos o universo e aprendemos a usar sua força em prol da humanidade,

enquanto as feiticeiras usam essas mesmas forças de maneira mercenária e leviana para prejudicar

inocentes. Vivemos em um mundo muito atrasado e cruel, mas estamos aqui como aprendizes

temporários. Devemos aproveitar nossa estadia para crescermos espiritualmente. Lógico que tudo

isso deve ser feito com ponderação e muito cuidado para não interferir no destino de outra pessoa.

Pois, caso contrário, podemos virar de cabeça para baixo a vida de um consulente inocente. Tudo

isso é muito bonito, mas muito perigoso. Pense nisso! O poder está em nossas mãos, e cabe a nós

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sabermos como usá-lo. E existe outra coisa muito importante que a senhorita precisa saber antes de

fazer a viagem.

_ Então me diga, estou muito interessada sobre os assuntos relacionados à magia. Sempre ouvi

histórias sobre as bruxas. Ficava tão fascinada!

Ela deu um sorriso por perceber que eu era leiga e inocente no assunto da magia.

_ Anna... A magia não tem nada a ver com as historinhas que você ouviu quando era criança, e

muito menos encontrará coisas sérias sobre as bruxas em livros como esses. Existem livros que não

valem sua capa. Cada bruxa tem sua história pessoal; a magia é uma história pessoal. Preste bem

atenção: a bruxaria não é um culto, porque culto é um grupo de pessoas que segue um líder. Uma

bruxa não tem um líder. E deve saber que as bruxas estão sempre sozinhas e solitárias,

principalmente por causa do preconceito. Uma bruxa só se relaciona com pessoas pertencentes à

ordem, pelo mesmo motivo que citei antes. Deve saber que muitos homens se fazem de

compreensivos e, quando conseguem o que realmente querem, entregam-nos à inquisição. Então,

cuidado com as paixões levianas. Bruxas não cultuam o diabo. Buscamos reviver as crenças de um

período que remonta aos primórdios da humanidade, um período muito anterior ao Cristianismo. O

diabo é, na verdade, uma criação do Cristianismo e não tem absolutamente nada a ver com nossas

crenças. Obviamente, atribuíram as práticas das bruxas ao diabo porque é conveniente, visto que as

religiões cristãs recriminam qualquer ato não-cristão como um ato do diabo. Há cultos ao diabo por

todas as partes do mundo, mas eles nada têm a ver com a bruxaria, tratando-se apenas de pessoas que

praticam uma inversão do cristianismo. Cada um tem as suas crenças, mas, felizmente, esta não é a

nossa. Celebramos os deuses antigos na natureza. E lutamos para que isso seja um direito nosso.

_ Os deuses antigos não são demônios?

Respirando fundo, ela prosseguiu:

_ Deixe-me continuar, por favor? Alguns cristãos fundamentalistas afirmam que qualquer

pessoa que não pratique a forma de cristianismo deles é um satanista por definição, e incluem sob

essa denominação os judeus e os sodomitas. As bruxas e os bruxos apenas celebram a natureza, só

isso. Nós, bruxas, não assassinamos pessoas ou animais, embora haja diversos atos maléficos de

pessoas que pratiquem esses rituais. Na verdade, são doentes mentais e deveriam ser punidos pelos

mesmos rigores das leis que nos acusam. Acredito que algumas feiticeiras, por dinheiro, realmente

pratiquem esse tipo de abominação para provarem o quanto são poderosas. Anna, ninguém tem o

direito de tirar uma vida. O tão chamado diabo não tem esse poder. Por certo, quando um ato de

feitiçaria como esse é praticado, alguém usou as próprias mãos para fazê-lo. Ou por envenenamento

ou por prática corporal. Logicamente, quem pratica essa arte, por assim dizer, são pessoas muito

inteligentes e maldosas, pois sempre deixam vestígios no local de seus crimes para nos acusarem.

Nunca faça de sua religião uma arma contra alguém. Somos responsáveis pelos poderes que nos são

incumbidos. E devemos saber que eles também se voltam contra nós quando não praticamos

corretamente.

Afofando o travesseiro, Bernadete continuou:

_ Ame nossos Deuses e celebre os ciclos da Lua e a Roda do Ano como você puder. Ninguém é

dono de seus pensamentos, nem de sua alma. Você é livre! Somos livres! Mas tome cuidado em

quem confiar: o ser humano é inconstante e infinitamente cruel.

A viagem que fará é, na verdade, um culto aos antepassados - no caso, aos seus. Reuniremos muitos

irmãos, entre homens e mulheres, em uma grande celebração. Seu espírito será levado ao seu local de

origem. Invocaremos as forças da natureza e enviaremos seu espírito ao seu passado, com a ajuda do

elemento fogo, que caminhará nas asas do vento.

Puxou as cobertas e, num bocejo, prosseguiu a explicação:

_ Antepassado, em genealogia, é o nome que normalmente se atribui a um ascendente já morto,

ou que se localiza a várias gerações anteriores na representação gráfica da árvore genealógica. Na

Bruxaria, os antepassados representam gente do nosso sangue, que resultaram no que somos hoje.

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Por isso, as bruxas e bruxos realizam muitos rituais em honra aos seus antepassados, pois eles

trabalharam para o mundo chegar onde está. Todo o conhecimento que é passado para nós está

conosco graças a eles. Sempre respeitamos o que não podemos tocar. O mundo invisível está sempre

presente no nosso dia-a-dia. Além desse espaço físico, que estamos vendo, tem muitas coisas vivas à

nossa volta. Por isso, não excomungamos quando ouvimos ou vemos alguma coisa que não está sob

o nosso conhecimento. Pelo contrário, oramos e pedimos sabedoria e auxílio aos nossos irmãos

desencarnados, que já estão na luz.

Apagou as velas do castiçal, deixando apenas uma para iluminar o ambiente, e terminarmos a

nossa conversa.

O mais importante de tudo isso é que as bruxas não são anticristãs, nem querem acabar com o

cristianismo. Bruxas, acima de tudo, respeitam as demais religiões, assim como exigem o mesmo

respeito pela religiosidade deles. É claro que há muitas mágoas, guardadas por tudo o que foi feito e

ainda é feito na história da humanidade. Mas não nos prendemos a isso, e sim a atos do presente.

Queremos simplesmente viver e praticar a nossa religião em paz. As bruxas têm crenças que

remontam aos primórdios da humanidade, muito anteriores ao cristianismo. O cristianismo tentou

suprimir crenças, mas nós não queremos fazer o mesmo. Anna, na verdade, nada sei ainda, mas

espero ter esclarecido suas dúvidas com o pouco que me ensinaram.

_ Sim, querida Bernadete! Nem mesmo Maria teria tido tanta sabedoria para me falar dessa

tradição, que é tão linda! Prometo honrar meus compromissos como bruxa. Estou muito grata pela

sua paciência comigo.

_ Agora podemos dormir?

_ Sim, é claro!

Aquelas palavras, de alguma maneira, faziam todo sentido para mim. Era como se eu já as

tivesse ouvido em algum lugar. Elas pareciam estar no meu inconsciente. Muitas vezes, senti uma

presença misericordiosa perto de mim quando era criança. Outra me fazia sentir mal, quando a

condessa estava se aproximando. Ouvia, de vez em quando, passos em minha escada, à noite,

seguindo em direção ao quarto de mamãe. E quantas vezes eu tive a certeza de ter dormido sem me

cobrir e, ao acordar, estava coberta! Isso sempre acontecia quando meu pai estava viajando e, por

certo, não era Maria, pois ela negava sempre que a interrogava.

Nunca consegui explicar a sombra por trás de mim no espelho, aos dez anos. Gritei tanto! Mas

Maria disse que, por certo, era um anjo que esteve por ali para me proteger. Talvez fosse minha mãe,

pois parei de sonhar com ela de vez. Conformei-me com as respostas, virei para o canto e adormeci

profundamente.

Naquela noite, voltei a sonhar que estava com o monge, só que dessa vez estávamos em outra

época. Ele me beijou e suas mãos eram muitos impacientes e percorriam meu corpo. Seus olhos

estavam fixos em meu rosto. Depois, apareceram várias mulheres, desconhecidas ainda para mim.

Pegaram-me apressadamente pelas mãos e me levaram a outro lugar. Era uma vila - não consegui

definir, pois tudo era como o relâmpago. De repente, encontrei-me numa floresta, onde muitas

mulheres corriam e gritavam como loucas, de um lado para o outro. Em uma fração de segundos,

meu corpo já estava queimando e, no meio da fumaça, vi o monge tentando tirar-me

desesperadamente, sem êxito. Os demais presentes seguravam-no pelos braços. Senti meu o corpo

sendo desfalecido pelas chamas. Meus sonhos, minhas esperanças, meu amor...

Aquelas chamas estavam devorando tudo o que eu ainda não tinha vivido. Eu nada podia fazer, e

ninguém movia um músculo para evitar aquela dor insuportável. Senti meu espírito deixar a matéria.

Acordei agitada e chorando muito. Cheguei a urinar na cama, de tão real que havia sido o pesadelo.

Dona Helena estava sentada ao meu lado e me acalentou. Então, contei-lhe tudo o que havia

sonhado, nos mínimos detalhes. Ela ouviu cada palavra, sem pestanejar.

_ Por que o amor dói, Dona Helena? Como posso amar alguém que nem conheço, e que me

pareceu ser tão covarde a ponto de me deixar morrer cruelmente?

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Abaixei a cabeça e me senti envergonhada pelo meu estado lastimável. Dona Helena pareceu

perceber e me disse:

_ Não se sinta mal. Às vezes, vivemos nos sonhos uma realidade que não podemos explicar - e

foi isso o que aconteceu com a senhorita.

_ Mas estou suja!

_ Dizem que isso acontece quando a dor ou o medo são muito intensos. Seu sonho foi tão real

que a senhorita viveu uma experiência intrassensorial, o que acabou em uma reação espontânea. É a

lei das causas e efeitos. Na verdade, teremos que correr com a sua viagem. A senhorita está viajando

sem sequer entrar no círculo - é por isso que está tão confusa.

E depois de muito analisar-me, perguntou-me:

_ A senhorita o ama mesmo, não é?

_ Se o que estou sentindo é considerado amor, sim, eu o amo. Antes eu tinha receio de dizer isso

a alguém, por receio de que me achassem louca. Mas aqui, com vocês neste lugar mágico, posso ser

eu mesma. Nessa floresta, nesta casa! Vocês fazem as coisas ficarem tão simples e fáceis que não

sinto mais vergonha! A cada sonho, tenho a certeza de que irei encontrá-lo. Mas, ao mesmo tempo,

tenho medo.

Ela continuou fitando-me os olhos, como se estivesse lendo minha alma.

Passei a mão pelo rosto para enxugar uma lágrima, que estava prestes a cair. Dei um pequeno

sorriso, ainda meio sem graça, para tentar disfarçar a tristeza no meu peito, pois Dona Helena parecia

estar esperando outra resposta de minha parte, ou qualquer coisa que descrevesse detalhadamente

meus sentimentos. Sempre tive certeza, mas expressar sobre o que sentia, abertamente, ainda me era

sufocante e constrangedor.

Depois de muito me fitar, ela disse:

_ Levante-se, está na hora das preparações. Tem tanto a fazer e tão pouco tempo.

_ Jura? Que horas são?

_ Duas da manhã, e o galo já fez sua primeira chamada. Teremos que entrar no bosque, e está

bastante frio. Prepare-se para se lavar e continuar molhada, pois o orvalho por aqui é muito intenso.

Enquanto a senhorita dormia, eu e as outras trabalhávamos para deixar tudo prontinho para vossa

majestade.

Riu largamente.

_Sinto estar causando tanto transtorno...

_ Não é transtorno algum! Tudo isso é em prol de uma alma atordoada. Tentaremos fazer o que

estiver ao nosso alcance. Anna, só quero que seja feliz, encontrando seu caminho onde for e com

quem quer que seja. Está com medo?

_ Não, só assustada e curiosa. É tudo novo para mim. Imagine, nunca fui a lugar nenhum e agora

estou aqui, preparando-me para fazer uma viagem mágica. Acho que sou uma mulher de sorte por ter

Maria como amiga. Senão, como poderiam saber de minha existência?

_ É, Maria sempre foi assim mesmo. Praticar o bem comum é também a sua missão, senhorita

Anna. Assim como Maria ajuda-a agora, um dia deverá retribuir-lhe o favor. Sabia que quando

Maria ainda era muito pequena, um dia, do nada, ela se virou para todos e disse que sua missão seria

cuidar de uma irmã, cujo destino era só de penitências e sofrimentos? Aquelas premunições

deixaram todos atordoados, por causa da pouca idade de Maria que, na época, só estava com seis

anos.

_ É mesmo?

_ Sim. Ela sempre teve dom de prever o futuro através das cartas. Nossa mãe, se estivesse viva,

teria muito orgulho dela. Já eu nasci com o dom de conhecer as ervas. Faço chás, cataplasmas e curo

as enfermidades. Mas não consigo ler as cartas ou ver o futuro em qualquer outro lugar. O seu dom,

por certo, é muito especial. Deve ter sido uma bruxa muito poderosa no passado. Quando voltar de

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sua viagem, não deve contar a ninguém seu nome ancestral. É um segredo solene, praticamente uma

regra. Se cair em mãos erradas, a senhorita poderá prejudicar-se.

_ Como assim?

_ Fica mais fácil fazer um sortilégio para prejudicá-la. É como se entregasse sua alma às mãos

dos inimigos. O segredo do seu universo passará para suas mãos. Então, não revele para ninguém seu

nome de batismo espiritual. Lembre-se de uma regrinha básica: dê a todos os seus ouvidos, e a

poucos suas palavras. Se Deus quisesse que falássemos mais do que ouvíssemos, não nos teria dado

uma só boca e dois ouvidos! Tudo o que falamos vira energia, desde a hora em que levantamos até a

hora em que dormimos. Conseguir calar a mente para que ela não vire pensamento desnecessário não

é um dom ou uma virtude: é um privilégio, levando em consideração que a mente nunca se cala.

Olhou para o meu estado lastimável e continuou:

_ Não se preocupe, não contarei para ninguém sobre o seu incidente. Prometo! Levante-se, já é

hora. E você faz muitas perguntas!

Levantei, meio preguiçosa e encabulada. Nunca havia acontecido nada assim comigo, nem

mesmo quando eu era criança. Dona Helena saiu e voltou com um caldeirão com água para eu me

banhar. Depois de tudo pronto, disse-me:

_ Faça uma oração, para que seu espírito entre em sintonia com todo o universo. Lembre-se de

sempre agradecer por tudo o que o Pai Maior fez por você, desde o nascimento até agora. Estar viva

é a maior dádiva que Deus nos deu. Lembre-se também que não vivemos sozinhos, mesmo quando

achamos que sim. Compartilhamos este mundo não só com os irmãos encarnados, mas também com

os desencarnados. Por isso, devemos estar sempre com bons pensamentos, para que os espíritos de

luz venham nos orientar. Nem sempre isso é fácil. Por isso, aconselho que feche seus olhos e

imagine um pequeno triângulo mental. Faça desse triângulo um ponto de fixação, e não deixe

nenhum pensamento infrutífero penetrar-lhe a mente. Você terá que aprender a esvaziar o

pensamento depois das palavras mal ditas, ele é o nosso pior inimigo. Logo verás que os

pensamentos mudam, pois inconstante é o pensamento. Eles mudam de direção tão rápido quanto o

vento. Por isso, chamamos o vento de alma do mundo ou anima mund - pois ele compartilha nossas

ideias e nossos segredos mais íntimos, entrando e saindo de dentro do nosso corpo. Ele é um dos

elementos mais respeitados da natureza. Deus sabe os nossos segredos por causa do vento, que leva e

traz de volta nossas vidas em detalhes. Ele é como um mensageiro. Respiramos o mesmo ar que

nossas antepassadas respiravam. O mesmo ar que entra em nossas narinas já entrou em várias outras.

E a cada sequência ele se renova, levando e trazendo sabedoria e experiência. Mas, assim como Deus

ouve nossos pensamentos, o diabo também o faz. Pois ele escuta o pensamento que sai de nossas

bocas. Ele faz parte dos detalhes que sempre ignoramos. Ele é o detalhe. Por isso, devemos calar o

pensamento, para que não se transforme em palavras que poderão nos prejudicar. Basta um

pensamento nosso para estragar três coisas boas em nossas vidas, porque nem tudo o que dizemos é

ouvido por pessoas de boa índole. A inveja é uma má energia, criada pela súbita alegria do próximo.

Por isso a necessidade de nos calarmos. Nem tudo o que é bom para nós pode ser divulgado, por

causa desse sentimento tão baixo que existe nas pessoas, que não conseguem ser felizes. O ser

humano, de tanto pensar e fazer o mal, criou o diabo. Deus lhe deu o nome de Lúcifer. Não devemos

temê-lo, mais evitá-lo. Então, esvazie seu pensamento, para revigorar todas as suas forças ainda

mais. Ficamos assim por horas, meditando com os olhos físicos fechados, mas com os olhos do

espírito bem abertos.

Naquela espécie de transe consciente, vi formas, símbolos e coisas extremamente pessoais.

Depois de alguns minutos, duas outras moças entraram, despertando-nos, e Dona Helena me disse:

_ Agora que já fez suas orações e limpou seu corpo físico e mental, precisará de banho de

purificação espiritual. Preparei-lhe algo muito especial: deverá permanecer inerte por algumas horas,

até que a água esfrie por completo. Não quero perguntas, por favor, sei exatamente o que pensa.

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Embora já tenha tomado banho, hoje será o dia dos banhos, acredite! Agora retire suas roupas

novamente, levante-se dessa cadeira.

Fiquei meio zonza com tanta coisa acontecendo. Era muita informação de uma só vez. Dona

Helena, vendo a minha inércia, disse:

_ Levante-se, menina, e pare de fazer corpo mole. Estamos preparando-lhe para um ritual

sagrado, não deve demonstrar tanto desinteresse.

Ela estendeu as mãos e ajudou-me a levantar. Retirei minhas roupas e entrei na banheira, cuja

água estava deliciosa. Dona Helena e as duas moças jogavam em cima de mim pétalas de girassóis e

óleos perfumados. Algumas ervas especiais também foram salpicadas por cima de mim. Depois de

todo esse ritual, ela falou:

_ Hoje não será um dia comum: terá uma dieta adequada e outros banhos de purificação como

esse. Purificará seu espírito com orações, e deverá esvaziar a mente consciente. Não poderá pensar

muito em coisas mundanas ou futilidades. E, como sei que isso é impossível em sua idade, preparei-

lhe um chá especial, que também terá que tomar - e sem caretas! Após cada refeição, tome um copo

deste chá. Irá dormir a maior parte do tempo. Não se preocupe com isso - no seu caso, isso não é

mal, pois sei o quanto tem andado esgotada, devido aos sonhos atordoados. Não deverá falar com

mais ninguém além de mim. Não tente puxar conversa com as moças que entrarão no quarto, elas

estão em estado de purificação e não falarão com você. Converse com seu coração, isso lhe fará bem.

Faça-lhe perguntas. Aposto que ele estará cheio de repostas.

Que bom!, pensei comigo. Voltei à minha vidinha cotidiana e tediosa de antes. E ainda tinha que

falar com o meu coração - logo com ele, que vivia tão atormentado, coitado...! Precisava mais de

repostas do que eu, mas, mesmo a contragosto, fiz tudo o que me foi determinado.

Depois de ter ficado de molho por quase uma hora, saí da banheira. Dona Helena saiu em

seguida, e eu fui para a janela. Pude ver todas aquelas mulheres, correndo de um lugar para outro.

Pareciam muito determinadas em terminar seus afazeres. Confesso que estava muito curiosa para

fazer aquela viagem.

Horas depois, Dona Helena retornou ao meu quarto e trouxe-me o desjejum. Então, rompendo o

silêncio - que já estava me deixando louca -, disse:

_ Não iremos levá-la à floresta agora pela manhã, como havíamos planejado. A pessoa

responsável por abrir o ritual está um pouco distante daqui, fazendo um parto. Então, sairemos daqui

ao entardecer. Para mim, foi um presente dos deuses, pois assim nos dará mais tempo de preparar o

ritual do fogo. Por favor, senhorita Anna, não se esqueça de tomar seu chá.

Falou essas palavras e saiu, deixando-me novamente. Depois que fiz meu desjejum e tomei meu

chá, cujo gosto era de água suja, fui para cama, na tentativa de ler um pequeno livro que achei

perdido em cima de um caixote de madeira. Mas foi em vão, pois, ao sentar-me à beira da cama,

comecei a cochilar e acabei por cair em sono profundo, como já era de se esperar. Dormi tanto que

nem sonhei! Aquela mistura amarga de ervas, cultivadas secretamente pelas colonas, deixava-me

tonta cada vez que eu tentava colocar os pés no chão. Dona Helena deve ter me falado, em algum

momento que não conseguia lembrar, sobre os efeitos do chá. Estes eram entorpecentes e nauseantes.

Diziam que seu poder era curativo, depurativo e que abria todos os chácras espirituais do nosso

corpo, de maneira que tirava tudo de ruim que existia dentro de nós. Novamente, fui deitar-me, pois

minhas pernas bambeavam.

Acordei às onze e refresquei-me para o almoço. O sol estava quente e o quarto ficava monótono,

não tinha nada o que fazer. Uma moça, com o rosto coberto por um fino véu, trouxe-me o almoço.

Mais tarde fiquei sabendo que seu rosto estava coberto para evitar que eu a interrogasse.

Voltei à janela e vi uma multidão indo na direção da clareira, que dava para o outro lado do

pequeno ribeirão. Acabei por contar pétalas de flores e adormeci, sentada em uma cadeira e

debruçada no beiral da janela. Quando acordei, às duas da tarde, outro banho de purificação

esperava-me; repeti o ritual como pela manhã. Após o banho, retornei à janela. E, novamente, perdi-

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me em pensamentos, que teimavam em me passar perguntas e dúvidas. Lutei contra mim mesma,

como me foi determinado, e voltei meus olhos para as colonas, mudando, assim, o rumo que estavam

tomando. Notei que a pequena clareira reunia uma grande multidão. As mulheres não estavam

sozinhas: havia homens também, e muitos idosos, e todos estavam entrando mata adentro, deixando-

me sozinha. Por instantes, essa foi a impressão que tive.

Comecei a ficar com medo, pois a solidão sempre me apavorava. Foi quando escutei uma voz a

sussurrar ao meu ouvido. Cheguei a pensar que poderia ser o vento e arrepiei-me. Poderia estar

ficando louca. De repente, senti atrás de mim uma presença muito forte. Era como se fosse um anjo,

pois me transmitiu muita paz e calma, e sua voz, macia e nítida, voltou a sussurrar em meu ouvido,

dizendo baixinho:

_ Acalme-se, Anna...

Era a voz de uma mulher. Olhei rapidamente para trás para ver quem era, mas não tinha

ninguém, somente eu e o resto da mobília. Não tive medo, mas fiquei sem conseguir dar explicações

ao fato acontecido. Mudei meus pensamentos rapidamente, para não ficar paranóica. Os pensamentos

são realmente como o vento, voam rapidamente. E, como em um passe de mágica, distraí-me. Parei,

então, para olhar o horizonte, observando a natureza. E, novamente, a calmaria instalou-se dentro de

mim.

Vi aves que nunca sonhara ver na cidade. Senti o cheiro da terra fresca, do mato molhado e das

flores. Poderia identificá-las só pelo cheiro. O vento soprava em meus cabelos, parecendo beijá-los.

Senti a força da natureza, de maneira mágica. Era como se o Criador tentasse me mostrar como era

perfeita sua obra. O amor estava em toda parte, o lugar era mesmo incrível! As coisas falavam de

maneira silenciosa. Uma paz indescritível e sublime tomou conta de todo o meu ser. E quis voar

como um pássaro, pois minha alma estava totalmente livre!

Três toques à porta despertaram-me de meu sonho acordada. Era Dona Helena novamente;

entrou com mais duas moças, trazendo outro banho e roupas, muito brancas e transparentes, para que

eu vestisse. Colocaram velas por todo o quarto. Despiram-me e, dessa vez, Dona Helena fez questão

de me banhar. Embora não dirigissem a palavra a mim, cantarolavam baixinho em uma língua

estranha. Defumaram todo o ambiente e todo o meu corpo, num ritual estranhíssimo. Dona Helena

dizia palavras na mesma língua em que cantavam as moças. Depois de apenas banharem-me de pé,

puseram em mim as vestes brancas e transparentes, sem enxugar meu o corpo, que se arrepiou com o

vento frio que entrou pelo quarto. Em minha cabeça, colocaram uma pequena tiara de flores do

campo, e Dona Helena agradeceu aos deuses e fez-me ajoelhar em sinal de humildade, para

consagrar minha cabeça com um óleo sagrado. Pôs-me de pé novamente e deu-me mais um pouco

daquele chá horrível, que já estava me deixando cada vez mais tonta. Por fim, depois de terem

terminado o ritual de consagração e agradecimento, abriram a porta do quarto. De onde...

“O saber só depende da quantidade de experiências vivenciadas e adquiridas pelo espírito

encarnado ou desencarnado. E, vivendo um dia de cada vez, conseguiremos alcançar todos os

nossos objetivos. A calma e a paciência nos fazem cada dia mais capazes de chegarmos a um estado

de paz interior. Devemos trabalhar muito para isso - muita paz e muita luz.” (Padre Ángelo Wallejo

Moralles).

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

35

Capitulo II - A Iniciação

ete mulheres vestidas de azul entraram silenciosamente pelo recinto. Uma delas pegou

minhas mãos, levando-me para o centro do quarto. Todas me respingaram óleos

aromáticos. Fui despida novamente de minhas vestes e colocaram-me um fino véu sobre o

corpo. Não entendi nada daquele estranho ritual e preferi não comentar.

Depois de rezarem muito, conduziram-me até a saída. Quando, por fim, chegamos do lado de

fora da casa, doze donzelas vestidas de céu esperavam por nós. De início, fiquei envergonhada por

elas estarem despidas e tentei esconder também minhas vergonhas, porque meu traje era muito

transparente e deixava à mostra todo o meu corpo. Quase cambaleei, ainda entorpecida pelo chá

mágico que Dona Helena havia me dado durante as sessões de purificação espiritual e mental.

Vagarosamente, meu raciocínio foi começando a fluir, e tudo aquilo começou a parecer tão normal!

Mudei imediatamente meus pensamentos e concentrei-me no pequeno triângulo imaginário que

Dona Helena havia me ensinado para o caso de pensamentos tolos invadirem minha mente.

Saímos numa espécie de procissão silenciosa, só de mulheres. Tirando as doze donzelas que

estavam vestidas de céu, todas as outras vestiam camisolas de algodão branco. Somente eu usava o

fino véu sobre o corpo nu. Mas, por uma estranha lógica insana, eu não me importava com aquela

situação que, tempos atrás, poderia parecer despudorada.

Fui levada ao extremo da floresta, onde havia uma aglomeração de pessoas no meio do enorme

campanado. Logo se juntaram a nós. Caminhamos por mais meia hora a pé e descalças. Depois de

muito caminhar, conseguiu-se avistar uma graciosa casinha de pedras polidas. Ela estava

parcialmente tomada por trepadeiras, tornando sua existência quase invisível a olhos nus. Seu

telhado era avermelhado. A porta principal era estreita, em tom marrom. Suas janelinhas pareciam

com as de uma capelinha. Vasinhos com ervas cercavam suas laterais. Parecia ter sido criada pelos

contos de fadas que liam para mim quando eu era criança.

Quase não se podia ver o sol, pois as gigantescas árvores que cresciam ao seu redor tampavam a

incrível visão. As árvores que cercavam o bosque e a casinha pareciam falar conosco, como se nos

saudassem. Meu corpo e meus sentidos respondiam àquilo tudo de maneira inexplicável. O

misticismo tomou conta de todo aquele lugar. Os pássaros cantavam alto, dando ecos que

confundiam meus ouvidos. Ora imitavam gritos humanos, ora pareciam clamores. Talvez estivesse

entorpecida e sonolenta, devido ao efeito causado pelo chá - ou ainda estava meio confusa, absorta

com tanta magia. Juntamo-nos aos que ali também esperavam por nós. Em instantes, aquele pequeno

grupo tornou-se uma centena de pessoas, mas já não eram pessoas comuns: seus rostos, à luz da

clareira que se formava em torno do campanado, davam a impressão de eles serem anjos ou seres

místicos. Eu não sabia identificá-los, porque minha cabeça começou a rodar novamente.

As mulheres do campanado que se juntaram ao nosso grupo trajavam-se com cores muito

exuberantes, como as ciganas. Fitas trançadas e coloridas, enlaçadas em volta da cintura. Dançavam

e rodopiavam, deixando-me cada vez mais tonta. Flores diversas enfeitavam seus cabelos soltos.

Usavam enormes argolas douradas nas orelhas e muitas pulseiras. Tocavam pandeiros e castanholas,

rodopiando como borboletas. Aquele frenesi deu-me a sensação de haver luzes saindo de seus

corpos. As crianças estavam presentes - porém, só participavam as mais velhas. Ao nos

aproximarmos mais da pequena casinha, veio-nos receber uma senhora de idade muito avançada,

aparentando uns oitenta anos ou mais. Ao aproximar-se de mim, senti-me fraca e cairia, se não fosse

por Loylla e as outras jovens a me ampararem. A anciã mais parecia uma bruxa, de tão enrugada.

Seus olhinhos já estavam sem brilho, devido à idade muito avançada, mas eram piedosos e cheios de

carinho. Seu nome era Andélia. Todos diziam que ela tinha poderes extraordinários e era, realmente,

a bruxa mais poderosa e antiga do condado. Ao passar, todos baixaram a cabeça, em respeito e

reverência à anciã.

S

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

36

Ao se aproximar de mim, observou-me minuciosamente de cima abaixo, como se eu fosse uma

escrava que está prestes a ser adquirida em leilão. Senti-me muito constrangida por ser observada

daquela forma, pois a anciã até em minhas pupilas olhou. Por fim, falou:

_ Pelo que vejo, trouxeram a menina! Levem-na para dentro e coloquem-na em meus aposentos,

pois parece não estar bem.

Disse isso com um sorrisinho matreiro nos lábios. Duas moças carregaram-me, cada uma

apoiando meus braços em seus ombros. Já nos aposentos da anciã, colocaram-me sobre uma caminha

feita de carvalho e colchão de palha. Os lençóis eram extremamente brancos! A mobília não era

muito farta: havia apenas uma mesinha com uma bacia e uma ânfora para o asseio, uma cadeira e um

armário com oratório, onde tinha muitas imagens de santos da Igreja Católica. Surpreendi-me, pois

fiquei imaginando o que uma bruxa fazia com tantas imagens de santos. Cheguei à conclusão de que

meu conceito sobre as bruxas não passava de ilusão. Eu as tinha como personagens de contos de

fadas. Imaginava-as de uma maneira totalmente contrária do que elas eram na realidade. Seus deuses

pagãos não eram tão diferentes dos que conheci no meu dia-a-dia. Alguns até pareciam com os

santos da Santa Madre Igreja.

Ao me deixarem sozinha naquele aposento, tremia tanto que meus órgãos internos pareciam

balançar. Estava completamente gelada, embora não estivesse fazendo o menor frio. Tentei voltar os

meus pensamentos para o ritual do qual eu faria parte. Mas isso, naquele momento de aflição, foi

quase impossível, pois minha cabeça começou a doer insuportavelmente. Foi aí que, como em um

passe de mágicas, deparei-me com a anciã bem à minha frente. Foi como se ela tivesse sentido meu

momento de agonia. Dona Andélia aproximou-se mais de mim e tocou-me suavemente na face, com

seus dedos longos e unhas muito pontiagudas, que mais pareciam garras. Por fim, exclamou:

_ Acalme-se, minha criança! Não há motivos para tanto nervosismo. Diga-me: o que está

sentindo?

Era inexplicável saber como ela poderia ter adivinhado meus pensamentos.

_ Sinto minha visão turva e, às vezes, dá vontade de vomitar. Sem contar que minha cabeça dói

demais.

Ela riu, e prosseguiu a falar:

_ É normal, sua mediunidade está muito aflorada. Sem contar que suas perguntas e os seus

pensamentos são muitos - típico de jovenzinhas de sua idade. Ah, querida... Em sua idade eu era tão

ansiosa que minha mãe, às vezes, tinha que me dar um chá para dormir! Caso contrário, eu

especulava mais do que o normal. A ansiedade é a inimiga do tempo. Tenha calma: para tudo nesta

Terra tem o tempo exato. Correr só atrapalha os sentidos, sem contar que faz muito mal ao corpo

físico.

Dizendo isso, Dona Andélia tocou em minha testa e, pedindo para eu fechar os olhos, fez em

seguida uma oração naquela estranha língua em que Dona Helena também já havia feito.

Imediatamente, não senti mais ansiedade e nem mais nenhum tipo de dor física ou tremores pelo

corpo.

Dona Andélia, ao terminar com as orações, pediu-me para abrir os olhos e prosseguiu, dizendo:

_ Pude perceber sua energia brilhando de longe, enquanto vinha caminhado pela clareira. A

senhorita tem um brilho tão forte que quase cegou minha visão. Tenho certeza de que essa viagem

lhe fará muito bem. Trará em seu retorno uma grande experiência de vidas passadas.

_ Dona Andélia, tenho tantas perguntas! Por exemplo, o que é realmente essa viagem? Como

poderei fazer uma viagem se não vou a lugar algum além deste campanado? E por que minha cabeça

doía tanto e, quando a senhora a tocou, a dor desapareceu?

Novamente ela sorriu, mas me respondeu seriamente, como que não queria mais saber de

especulações daquele tipo de novo.

_ É o efeito do chá. Ele desperta a natureza humana, colocando para fora tudo o que existe

dentro de nós, de bom ou de mau. Se tivermos boas energias, ele as faz fluírem com mais força. Se

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tivermos energias negativas, ele faz uma limpeza nos chácras. Não se preocupe, que tudo isso

passará. E, no seu caso, como a senhorita está com a mediunidade muito aflorada, o chá causou-lhe

essas visões e tonteiras.

Depois daquelas explicações, Dona Andélia pediu-me que repousasse em sua cama. Quando eu

já estava deitada, ela ajeitou minha cabeça em um travesseiro feito com paina e deu-me um beijo no

rosto, fazendo-me sentir segura. Pensei que Dona Andélia ficaria ali comigo um pouco. Porém,

assim que ela passou o dedo polegar sobre a minha testa, tecendo uma espécie de sinal mágico, não

consegui ver mais nada.

Já era noite quando despertei. Fui à janela e perdi-me em pensamentos novamente. Fiquei por

horas olhando os homens da vila trabalhando; pareciam estar montando uma fogueira. Não entendia

muito bem, talvez fosse parte do ritual. Eles usavam, além de vestes brancas, um capuz que cobria

todo o rosto, deixando à mostra somente os olhos. Todos estavam rezando, e aquela oração foi

ficando mais forte. Havia umas cem pessoas ou mais em volta da fogueira, já armada. Não vi Maria

ou Bernadete, devido à pouca luz e à escuridão da noite.

Sentei-me, então, na beirada da cama para olhar a Lua, que estava alta no céu e clareava todo o

quarto escuro. Acabei adormecendo novamente. Era alta noite quando me acordaram de supetão.

Levaram-me para fora, ainda meio adormecida. Observei que, no meio do enorme pátio de terra,

estava a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe, pois haviam construído uma capela para a santa.

Todas aquelas mulheres dançavam, rodopiavam em volta de mim sem parar, girando no ar uma

espécie de varinha, fazendo movimentos circulares e irregulares. Loylla, a irmã mais velha de

Bernadete, dançou sozinha. Depois, todas as outras, muito perfumadas, a seguiram, balançando suas

saias muito rodadas. Algumas me molhavam com galhos cheios de um líquido com alfazema,

jasmim e canela. Outras me traziam flores. Outras, ainda, me davam o chá mágico. Por fim, tiraram

minhas vestes. Fiquei, então, no meio de toda aquela gente vestida de céu.

No princípio, senti-me envergonhada por causa dos homens à minha volta. Tentei cobrir meu

corpo nu com as mãos. Mas eles não pareciam estar olhando para mim, porque também estavam em

completo transe.

Ao me aproximar, percebi que a fogueira era, na verdade, um enorme pentagrama feito por toras

de madeiras - o que explicava o motivo pelo qual os homens passaram a tarde toda cerrando árvores.

Fui guiada ao centro do pentagrama, onde fiquei imóvel, sem saber o que fazer. Havia muitos

símbolos antigos desenhados em suas pontas. No meio, tinha também um círculo feito no chão,

como se alguém o tivesse milimetricamente desenhado. Foi nesse círculo que algumas daquelas

pessoas se posicionaram, enquanto as outras ficavam de fora, de olhos fechados e em estado de

transe. De repente, uma estranha luz brilhante circulou em volta daquele círculo mágico, que se

formou pelas pessoas que estavam de mãos dadas. Um homem encapuzado com uma grande tocha

nas mãos ateou fogo nas toras, que formavam as pontas do pentagrama. As chamas, num instante,

assumiram o seu lugar. Assustei-me por um segundo, dando um pulo, mas percebi que as chamas

não conseguiriam me tocar. A fumaça era intensa e, por pouco, não sufoquei. Uma jovem vestida de

céu veio até mim e passou um bálsamo em minhas narinas, para evitar que eu me sufocasse.

Vi, ainda, quando algumas jovens atearam ervas dentro da fogueira - o que aumentou mais ainda

aquela intensa fumaça. Todos gritavam palavras em línguas estranhas, ao mesmo tempo. Uma mão

apareceu no meio da fumaça e deu-me algo para beber: parecia uma espécie de vinho misturado ao

chá mágico. A voz que acompanhava a mão dizia que era para não deixar a minha garganta ressecar.

Mas, logo que tomei aquele líquido, fiquei completamente entorpecida e senti meu corpo caindo em

uma imensa escuridão. Não conseguia mais abrir meus olhos, mas meus ouvidos estavam atentos a

tudo. A voz da anciã tornou-se nítida e perceptível. Ouvia sua oração, que dizia:

_ Estamos aqui, presentes neste local sagrado, para prestarmos auxílio espiritual a esta irmã

atormentada pelo espírito da sua antepassada. Devemos todas dar as mãos e, como em uma ciranda,

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girar em torno da fogueira. Depois soltem calmamente as suas mãos e acompanhem-me, dizendo as

seguintes palavras:

_ Que a mãe terra, que nos dá permissão para fincarmos nossas tendas sobre seu ventre, nos dê

sua força em espírito hoje. Que a mesma mãe, que nos fornece seu alimento para matar nossa fome,

nos dê alimento para nosso o espírito. Que o fogo, que por anos foi nosso inimigo temeroso, hoje

possa ser nossa espada, para combatermos os inimigos de nossa alma. Que o vento, que nos traz o

cheiro e a mensagem de nossos companheiros quando os perdemos na dor da batalha, venha hoje

ser o portador de boas novas, levando nossa irmã a seu lugar de origem. Que a água, que mata

nossa sede, seja hoje a purificadora de nossos pecados. Que a Virgem Maria Imaculada, que nos

deu a maior benção do mundo - que foi seu filho humanizado -, venha hoje nos ajudar em nossas

dificuldades, amparando-nos e protegendo-nos de todo o mal que fizeram contra nossas

antepassadas. Que a Virgem hoje nos auxilie em nossas buscas ao interior de nossas almas. Que

nosso Pai celestial venha em nosso socorro. Muito obrigada, meu Deus, por esse dia maravilhoso e

produtivo. Muito obrigada pelas nossas dificuldades, pois aprendemos com elas. Muito obrigada

por todos os obstáculos que aparecem em nossos caminhos, pois aprendemos a crescer com eles.

Muito obrigada por nossos inimigos, visíveis e invisíveis, pois aprendemos com eles a termos

mansidão e paciência. Mas os ajude, Senhor, a enxergarem Sua luz, para que possamos viver todos

em paz. Muito obrigada pelos anjos e arcanjos que nos fazem companhia, dando-nos orientação

para o caminho que devemos seguir com segurança. Muito obrigada aos espíritos de luz,

encarnados e desencarnados, que nos orientam, nos amparam e nos guiam em nossa jornada

terrena.

Em seguida, foi rezado o Pai Nosso:

_ Pai Nosso, que estais no Céu, santificado seja o vosso Nome. Venha a nós o vosso Reino. Seja

feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai

as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E não nos deixeis cair

em tentação, mas livrai-nos do mal.

Dona Andélia prosseguiu com o ritual, só que, dessa vez, usou outro tipo de oração:

_ Pelo poder da terra (palmas viradas para baixo). Pela força do fogo (palmas viradas para

frente). Pela alma dos ventos (palmas em movimentos circulatórios em direção a si). Pela pureza das

águas (palmas juntas e para cima, como se estivesse tomando banho de cachoeiras). Que o portal se

abra e nossa irmã possa seguir seu caminho em paz. Que nossas ancestrais a guiem com segurança

e tragam-na, calma e serena, de volta para nós.

Naquele momento, eu já não sentia mais o calor da fogueira, nem a fumaça que me sufocava.

Não ouvia mais as vozes cantando ao meu redor, nem sentia vergonha por meu corpo estar nu. Fiquei

completamente catatônica e não mais consegui me mexer. Senti o meu corpo levitar.

De repente, eu estava em outro lugar, no meio de uma floresta fechada, onde ouvi nitidamente

um enorme alvoroço de mulheres gritando. Meus olhos foram abrindo lentamente e as pude ver

correndo de um lado a outro. Coloquei-me de pé, ainda meio tonta, tentando entender onde eu

estava. A floresta pareceu-me a mesma, mas onde estavam todos que estavam em volta de mim no

ritual? Onde estava Maria e Bernadete? Eu queria fugir, mas não tinha como e nem para onde. As

pessoas que estavam ali eram completamente diferentes das que estavam comigo no campanado.

Seus trajes eram bem medievais. Fiquei inerte mediante tamanha calamidade que observei.

O pânico era tamanho que pude sentir o choro invisível da mãe terra. Mulheres eram chutadas,

criancinhas eram pisoteadas. Crianças inocentes eram decapitadas brutalmente pelos soldados. Pelos

cabelos e pelos pés, as mulheres eram lançadas em carroças com cela, espremidas e trancadas como

animais. Algumas foram amarradas pelas pernas e arrastadas por toda a floresta. Jovens eram

defloradas na frente de seus pais. Bebês que nem andavam eram lançados pelas perninhas aos cães

ferozes e famintos, já treinados e acostumados com a carnificina humana.

Um verdadeiro holocausto foi criado em meio à paz e à harmonia.

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Indaguei uma jovem que passou por mim, desesperada, querendo saber dela o que estava

havendo. Ela simplesmente respondeu-me entre soluços, parecendo não querer parar:

_ Tudo por causa da ignorância e do preconceito das pessoas que não nos entendem, senhorita.

Somos tratadas como animais por não termos o direito de escolher o que fazer do nosso destino.

Uma senhora, que parecia ser a mãe da jovem, veio aflita em nossa direção, e puxou-a pelo

braço, dizendo-me:

_ Fuja para se salvar, ou esses cães imundos vão trucidá-la.

Não as vi mais daquele momento adiante. Elas sumiram em meio à multidão, aterrorizada. Eu

não podia acreditar no que estava acontecendo mediante meus olhos. Aquelas pessoas estavam sendo

massacradas somente por pertencerem a outra religião, por pensarem diferente e quererem ser livres.

Meus olhos encheram-se de lágrimas. Caí por terra de joelhos, sem forças para rezar ou pronunciar

qualquer palavra. Chorei desesperadamente. Se Deus existia, naquele momento tinha certamente se

esquecido de que nós, mulheres, também éramos Sua criação.

Olhei para frente e vi, saindo de uma casa branca medieval, uma mulher alta, com cabelos

longos e cacheados e vestes de camponesa. Ela era uma mulher com um porte de nobreza, e seu

olhar era firme. Levantou o rosto e encheu o peito de ar. Parecia estar tentando criar coragem para

enfrentar aquela situação. Pude perceber que ela era uma líder, e que todos os soldados estavam

procurando por ela. Outras mulheres tentaram protegê-la, mas ela não queria proteção: simplesmente

saiu andando em direção ao chefe da guarda. Seu ar de imponência fazia com que alguns dos

soldados se afastassem enquanto ela passava. Foi quando ouvi um soldado dizer, em tom de

desprezo:

_ Eis que se rende a bruxa-mor, capitão!

Quando a mulher líder aproximou-se do capitão da guarda, pude notar sua semelhança comigo.

Então entendi que estava fazendo a viagem. Aquela mulher era a minha ancestral, e aquele não era o

meu mundo: era o mundo astral, onde eu iria descobrir quem eu havia sido e o que me fazia sofrer

tanto.

Resolvi ficar quieta e observar tudo o que estava acontecendo à minha volta. Eu sabia que, por

mais duro que fosse, não poderia interferir no meu passado.

A mulher olhou tudo e todos a seu redor. Fixou os olhos no capitão e, mesmo mediante todo

aquele sofrimento, em momento algum ela parecia se intimidar. Por fim, ela disse, em tom supremo:

_ Sim, sou eu. Agora não maltrate mais o meu povo com os seus soldados ignorantes e

carniceiros. Leve-me e deixe essa pobre gente em paz, pois eles nada lhes fizeram de mal. O seu

problema é comigo, capitão.

Um jovem guarda, querendo mostrar serviço, retrucou:

_ A bruxa-chefe está pedindo um castigo, capitão Edward. Devemos acorrentá-la junto às

outras? Com um olhar de ironia, o chefe da guarda respondeu:

_ Não, quero interrogá-la primeiro.

Os olhos do capitão pareciam estar grudados naquela mulher. Por fim, ele falou, em tom de

impaciência:

_ Então nos encontramos de novo, senhorita Shaara, ou devo dizer feiticeira Shaara!?

_ Sim, senhor. - respondeu-lhe, sem tirar os olhos dos dele.

_ Ora, ora... Estou vendo que nem o medo fez-lhe perder a arrogância.

_ E quem disse ao senhor capitão que estou com medo? Pode fazer medo em seus subalternos,

mas nunca em mim. Nem eu e nenhuma de minhas irmãs fizemos nada demais para que o senhor nos

ponha medo. O senhor não é Deus! Portanto, não vejo porque temê-lo, capitão! Além do mais, sua

aparência cansada é digna de pena, pois vejo no senhor um homem confuso, em um estado débil de

cólera. E quem é o senhor para falar de arrogância ou de qualquer outro defeito que exista nas

pessoas? Tem um coração tão arrogante que não admite que esteja apaixonado e errado. Arrogante,

vingativo, sanguinário e infeliz. É assim que vejo o senhor: uma pessoa sem chão, perdida, entre uma

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falsa razão e o próprio coração. Olhe pra dentro de si, senhor Edward! Veja-se! Vai chorar, em

breve. Estou a pagar pelos ciúmes de sua mãe, pela ignorância e pela mentira de tantos que se

escondem por trás das máscaras de uma sociedade hipócrita e com ideias distorcidas sobre o caráter

e a moralidade das pessoas. Os senhores falam o nome sagrado de Deus, mas são pessoas que nada

sabem sobre Ele. Os senhores fazem justiça à maneira que lhes convém, e pregam verdades ditadas

por uma ordem já em decadência. Traduzem a palavra do Cristo para educarem seus adeptos, seus

filhos e seus parentes. São como ovelhas no pasto, sendo tocadas de um lado para outro, por um

pastor tão sem rumo quanto. E, assim, envoltos na própria ignorância, seguem todos de mãos dadas.

Que triste, capitão... Encobrem seus próprios pecados e crimes, tentando achar defeito nos menos

favorecidos, como eu e minhas irmãs. Ou acham mesmo que as mulheres de sua sociedade são todas

santas?

Shaara baixou a cabeça e sorriu, parecendo decepcionada, continuando aquele diálogo, que mais

parecia uma afronta.

_ Se suas senhoras fossem santas, não estariam vivas, e sim em um plano muito superior a este.

Bando de hipócritas, desumanos, falsos profetas, monstros! Todos estes homens aqui, incluindo o

senhor, são piores do que animais. Acusam-nos de possessão, mas o demônio está dentro da sua

alma. Tenho pena do senhor, capitão Edward, com toda a força do meu ser. Pois sei que as irmãs que

o senhor e seus homens mataram estão em paz agora. Mas e o senhor? Não terá um dia de sua vida

em que não se lembrará desse massacre. Sabe por que, capitão? Lembranças ruins perseguem-nos

durante os nossos sonhos à noite. Elas são chamadas de consciência inconsciente, e mesmo o mais

ignorante dos seres viventes tem consciência. E é isso que me deixa feliz: sei que o senhor nunca terá

paz enquanto viver.

O capitão, com um olhar furioso, ergueu a mão para esbofetear Shaara no rosto. Mas Shaara não

se fez de rogada e disse:

_ Vá em frente, senhor Edward. Não pode me ferir mais do que já me feriu. Não seria a primeira

vez a usar violência contra mim. Ah, capitão... O senhor tem razão. Eu quase ia me esquecendo:

quem bate esquece, mas quem apanha tem que conviver com as cicatrizes. E as minhas estão tão

profundas que o senhor não as consegue ver, não é, capitão?

O capitão segurou o rosto de Shaara e, olhando-a fixamente nos olhos, disse:

_ Se eu fosse a senhorita, ficaria bem boazinha. Afinal, sou o homem que tem nas mãos o seu

destino. Posso queimar todas essas bruxas aqui mesmo, nesta floresta, sem a menor piedade, e alegar

que estavam praticando rituais de magia negra e que, ao nos verem chegar, os demônios ferozes que

as possuíam tentaram nos atacar, sem nenhuma explicação. Isso, logicamente, foi o que me fez tomar

tamanha atitude contra as pobres mulheres, que estavam, embora inconscientes, possuídas por

espíritos malignos. Portanto, se não quer que eu mate o restante dessas desgraçadas queimadas vivas,

cale-se e fique com essa maldita boca fechada o restante do tempo que lhe resta. E sabe o que mais?

Faço isso deixando-lhe como única testemunha. Mas, logicamente, não terá língua para contar tais

fatos a ninguém quando for interrogada em tribunal - o que me será bastante útil em minha própria

defesa, quando eu for interrogado sobre os fatos acontecidos nesta floresta, sem nenhuma testemunha

que lhe possa ser útil, é claro. Pense bem, então, antes de tomar alguma atitude insensata. Não que

sua língua possa lhe valer muito, mas as pessoas, durante seu julgamento, ao perceber que a

senhorita não pode falar, dirão que o demônio lhe impede a fala. Isso, para os leigos - como a

senhorita mesmo diz - é incontestável.

O capitão deu uma gargalhada sarcástica e seu olhar gelou até a minha espinha, mas Shaara

manteve-se em posição de defesa. Ela sabia que o capitão cumpriria o que estava prometendo, mas

prosseguiu mesmo assim:

_ Faça o que o senhor tem que fazer, capitão. Que se cumpra o meu destino. Seja a mão de

Deus, mas seja breve, não me deixe sentir dor!

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Shaara não estava falando apenas da dor física, mas também da dor da alma. O mundo dela

estava todo nas mãos daquele carrasco, do algoz, do homem que um dia foi o mais importante da sua

vida. O capitão Edward era a única pessoa que jamais poderia tê-la traído. Shaara estava só, sem

perspectivas, e sabia o quanto aquele homem poder-lhe-ia fazer mal. Um homem com um sentimento

de mágoa, fúria ou ciúmes pode se tornar perigoso, principalmente se estiver se sentindo rejeitado ou

traído.

Minha ancestral somente abaixou a cabeça e deixou que seu destino se cumprisse. Embora ela

não demonstrasse medo, pude ver nos seus olhos que, até certo momento, tinha esperança de que o

capitão, seu amor, voltasse atrás. Mas, na verdade, Shaara já sabia qual seria seu destino e sabia que

isso seria impossível de acontecer. É impressionante o quanto a Inquisição era cruel e mentirosa,

principalmente quando se tratava de nós, mulheres. Os inquisidores praticavam as mais cruéis formas

de torturas. E se uma mulher fosse alvo da Inquisição, logo era enclausurada. Pior seria se caísse nas

mãos de algum padre ou sacerdote, pois esses santos homens certamente a violariam e dariam um

jeito para que a pobre mulher não contasse nada a ninguém, cortando-lhe a língua e praticando os

mais cruéis tipos de torturas.

Muitas das vítimas eram deixadas nuas, em praças públicas ou em algum lugar deserto, a mercê

do destino. Isso ocorria depois de terem sido torturadas publicamente, ou violadas privadamente.

Todas nós, mulheres, sentíamos um medo especial da Inquisição. Se alguma de nós fosse acusada de

bruxaria, ficaria logo eminente que sofreríamos uma tortura muito especial por parte do clero,

sedento por sexo e sangue. Qualquer mulher era culpada de algum crime, mesmo que nunca tivesse

cometido crime algum. Nós, mulheres, éramos a porta aberta para espíritos impuros. Qualquer

mulher com um comportamento que desagradasse a sociedade masculina sofria perseguição como

prováveis bruxas.

Havia vários tipos de torturas antes de a vítima morrer. A morte por afogamento era uma das

formas mais cruéis. Amarravam-se as mãos e colocavam uma pedra presa aos pés das vítimas. Em

seguida, lançavam-na dentro d’ água. Se a vítima não afundasse, era inocente. Se afundasse, era uma

bruxa - o que significava que ninguém era inocentado...

Se uma mulher fosse meramente lançada de um precipício, podia chamar a si mesma de

afortunada por ter uma morte relativamente rápida e com pouca dor. Na maioria das vezes, éramos

obrigadas a dizer que estávamos possuídas por espíritos demoníacos, com a falsa promessa de termos

uma pena mais branda ou uma absolvição. O espírito demoníaco de obsessão era, nada mais nada

menos, que um desvio sexual da luxúria encoberta pelos sacerdotes. Houve certo tempo que ecoou

por toda a Europa a epidemia chamada O Malleus Maleficarium. Isso ocorreu em cinco de dezembro

de 1484, quando o papa Inocêncio III emitiu a bula papal. Estabeleceu-se esse documento como

padrão segundo o qual a Inquisição deveria ser conduzida, como ditadora das leis da Igreja Católica.

O celibato clerical já estava em vigor havia 361 anos. Foi tempo suficiente para tornar os sacerdotes

verdadeiros desviados sexuais. Essa obsessão sexual tomou tamanha proporção que as mulheres

viviam com medo de que um dia, a partir do nada, alguém as acusasse de serem bruxas, visto que

qualquer acusação seria equivalente à culpa.

As mulheres podiam esperar qualquer coisa vinda de um homem que as desejasse. Por isso, a

maioria vestia-se de forma austera e sem nenhuma vaidade aparente, pois qualquer indício de

vaidade poderia levá-la a ser acusada de sedução demoníaca ou algo assim. Geralmente, não

conhecíamos nossos acusadores, que poderiam ser homens, mulheres e até mesmo crianças. Isso

dependeria de quem as acusasse de algum crime, pois os manipuladores usavam pessoas inocentes e

desprovidas de recursos financeiros.

Do processo de acusação ao julgamento, seguindo até a execução, podia ser rápido ou não. Isso

dependeria muito da pessoa que estivesse sendo acusada. Mas uma coisa era certa: não existiam

formalidades ou direito a defesa. A única alternativa do réu era confessar e retratar-se, renunciando a

sua fé, seus bens, seus familiares, e aceitando o domínio e a autoridade da Igreja em ascensão. Os

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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direitos de liberdade e de livre escolha nunca foram associados a tais leis. Os acusados eram feitos

prisioneiros e mantidos constantemente sob torturas. Muitos eram inibidos de dormir, e isso

acontecia segundo revezava-se o horário de seus carrascos. Todos eram obrigados a confessar uma

condição herética. As mulheres, que eram a maioria, comumente eram vítimas de violação. A

execução era realizada geralmente em praças públicas, sob os olhos de todos os moradores, que

faziam de tal barbárie uma festividade bizarra. Punir publicamente era uma forma de coagir e

intimidar a população. A vítima podia ser enforcada, decapitada ou, na maioria das vezes, queimada

viva. Entre as torturas, as mais usadas eram: o tronco, a roda de despedaçamento, o berço de Judas,

a dama de ferro, o garfo, as garras de gato, a pêra, a máscara da vergonha, a cadeira das bruxas, o

pêndulo e o esmaga joelho - entre tantos outros instrumentos que, além de monstruosos, eram

criativos, dependendo do carrasco a executar a sentença. Os métodos de execução também eram

bastantes variáveis, sendo os mais usados a guilhotina, o serrote, a espada, a forquilha do herege, o

garrote, a gaiola suspensa, a submersão, a empalação, a cremação e o fura-bruxas, que nada mais

era que uma faca falsa para enganar a população leiga.

O fura-bruxas era a forma mais repulsiva e fraudulenta, pois tal faca de exame nunca perfurava

coisa alguma. O que acontecia, na realidade, era que os carrascos cortavam a língua das vítimas e

usavam o fura-bruxas ou athame falso para espetá-las perante a população leiga. Como a vítima não

podia falar, pois estava sem a língua, eles diziam a todos, em alto tom: Viram-na? Está possuída

pelo demônio! E, mediante tal espanto por parte da população, os acusadores aproveitavam-se para

condenar a pobre vítima, mutilada.

O nascimento de uma criança também era motivo para que a Igreja interviesse, enviando um de

seus sacerdotes para examinar o rebento. Se na pobre e inocente criança houvesse algum tipo de sinal

ou anomalia, imediatamente ela seria retirada de dentro da casa de seus pais e levada para dentro de

um convento ou mosteiro, onde passaria o resto de sua infeliz vida sendo observada e até torturada

por seus superiores.

Procuravam, também, marcas do Diabo no corpo das mulheres consideradas hereges, pois,

segundo a Igreja, o diabo deixava sua marca em algum lugar no corpo de uma bruxa. A mais óbvia

era o mamilo supranumerário. Certamente, os sacerdotes celibatários e castos estariam muito

interessados em examinar tais mulheres e, com isso, uma depravada compulsão por torturas e sexo

violento surgiu com a chegada das normas morais da Santa Madre Igreja. Por parte dos sacerdotes

celibatários e castos, essa praga emocional atingiu sexualmente indivíduos não funcionais, incapazes

de sentir prazer na prática natural do sexo e, com isso, começaram a aliviar sua sexualidade

reprimida, cortando, dilacerando e queimando as causadoras de toda aquela volúpia reprimida - ou

seja, nós, as mulheres.

Uma esposa não podia sentir prazer com o seu esposo, nem beijá-lo. Ela somente lhe serviria

para a reprodução. Caso ela descumprisse tais preceitos - como, por exemplo, beijar o esposo -, ele

poderia arrancar seus lábios, para que não se tornasse uma depravada do demônio. Essa regra só se

aplicava às mulheres, pois seus maridos podiam procurar outras em prostíbulos, para satisfazer seus

desejos carnais incompletos. O homem era o senhor - a mulher, um enfeite de estimação que nada

mais servia para ele, além de ser a sua procriadora e zelosa dona de casa.

Com a Santa Inquisição, foi fácil para satanás invadir a Igreja Católica, pois ela já tinha se

movido para a prática da feitiçaria desde o ano trezentos e vinte e um, quando o imperador

Constantino afirmou seu comando sobre a Santa Madre Igreja. Foi quando, finalmente, esse período

da Inquisição começou a se separar da verdadeira videira de Jesus Cristo. Isso aconteceu há mais de

oitocentos anos. Portanto, a madeira estava muito seca e suscetível ao fogo do Inferno. Foi assim

que Satanás se aproveitou e soprou, usando a Inquisição como seu maior instrumento.

Enquanto milhares de pensamentos invadiam minha mente, dei-me conta que Shaara estava

sendo levada para um vilarejo, onde seria posta sob cárcere privado até seu julgamento. Olhei para

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aquelas mulheres em desespero e meu coração apertou-se dentro do peito. Eu sabia que nada podia

fazer por elas, mas me senti uma covarde e impotente por apenas ser uma sombra.

Procurei por Shaara, que estava de mãos atadas, cabisbaixa e encostada em um canto, perto de

um carvalho. Ela não dizia mais nada, estava imóvel. Parecia estar querendo apagar da mente todo

aquele holocausto. Seu semblante era de dor e agonia. As pálpebras de Shaara estavam baixas,

inertes. Ela praticamente já estava morta, somente seu corpo ainda estava de pé - talvez por uma

questão de ela mesma não poder se desligar da vida material.

Os soldados levaram-na para perto do capitão, amarrando-lhe as mãos à sela do cavalo do chefe

da guarda. O senhor Edward ocupava três postos de muita responsabilidade e conveniência: o de

chefe da guarda, o de capitão, e o posto mais alto, o de inquisidor. Logicamente, tais funções não lhe

foram impostas por ele ser simplesmente tão merecedor ou competente. Ele era também outra vítima

da Inquisição, que se aproveitou do seu ódio por Shaara para fazer dele um caçador de bruxas. Dessa

forma, sabiam que poderiam confiar nele cegamente, pois varreria também, da face da Terra, os

inimigos de Sua Majestade e da Santa Madre Igreja.

Acompanhei aquele cortejo fúnebre de longe, para que Shaara não percebesse minha presença

espiritual - ou poderia ser ainda mais catastrófico para ela. No mundo transitório onde me

encontrava, nada poderia me acontecer, ou seja, nenhum mal físico. Mas de nem uma forma eu

poderia interferir no mundo de Shaara. Era como se eu estivesse em um espelho às avessas: eu podia

falar com eles e interrogá-los, mas não podia tocá-los ou ser tocada. Apenas o meu perispírito estava

lá - o meu corpo, não, pois ele estava no século XVIII, em que se encontrava minha querida Maria e

as outras irmãs, que pacientemente aguardavam meu retorno daquele transe astral. Era como se fosse

uma janela imaginária, mas, ao mesmo tempo, real.

Não soube descrever com palavras exatamente o que era aquilo tudo que estava acontecendo.

Mas o certo é que eu estava lá. Presenciei aquelas coisas todas sem sair do lugar onde me

encontrava. Fiz a viagem e sabia, naquele momento, que era algo muito especial e individual, pois

cada pessoa que fizesse a viagem teria a sua forma pessoal de descrevê-la.

Vi quando o capitão Edward olhou com ódio para Shaara, que estava presa à sua sela. Mas

também vi o olhar de tristeza de Shaara, por parecer não reconhecer aquele homem. A engolida seca

de minha ancestral demonstrou que estava sem força e fôlego para prosseguir todo aquele trajeto a pé

e descalça.

Depois de mais de três horas caminhando em trilhas áridas e pedregosas, Shaara, por fim, falou

em um tom de voz, quase um sussurro:

_ Dê-me água, pelo amor de Deus! Eu suplico: tenha misericórdia, apenas me dê água!

O capitão olhou-a com desprezo e respondeu:

_ Agora está se lembrando de Deus, bruxa maldita? Por que eu deveria ter misericórdia de uma

discípula de satã? A senhorita e suas comparsas deveriam ter pensado na misericórdia Dele antes de

terem se juntado a satã. Agora é tarde demais. Seus destinos estão em minhas mãos, e logo verei o

fim de toda a sua raça amaldiçoada. Eu mesmo selarei seus destinos em nome de Deus e de todos os

Santos dos céus. Faço isso sem nenhuma piedade, pois sei que todas são um caso perdido para a

Santa Madre Igreja, levando em conta que o diabo já tomou conta de seus corpos e almas.

Ao dizer tais palavras amargas, o capitão Edward olhou para Shaara de tal forma que a desnudou

apenas com o olhar. Eu poderia estar enganada, mas, a meu ver, ainda existia paixão por parte do

capitão Edward em relação à Shaara. Talvez fosse uma paixão doentia e corrompida pelo ódio e pela

vingança - mas, mesmo assim, ainda existia um sentimento dentro daquele homem. E isso poderia

ser muito mais prejudicial à minha ancestral.

Shaara, percebendo o olhar de lobo selvagem do capitão, tentou modificar o rumo que poderia

tomar aquela conversa. Tirando forças de dentro de si, respondeu, ainda num sussurro:

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_ Ninguém é dono do destino de ninguém, capitão, nem mesmo do próprio - embora essa fosse a

sua vontade, não é mesmo, senhor Edward? Sempre quis controlar-me a qualquer preço, nunca

pensou que eu poderia fazer o que o senhor quisesse?

Shaara deu um sorriso triste, abaixando e sacudindo a cabeça negativamente. Depois olhou para

ele, como que suplicando por socorro, e prosseguiu:

_ Bastava que me pedisse! O senhor nunca soube o que é o amor de verdade e, pelo que vejo,

nunca vai saber. Julgou-me pelos pecados dos nossos pais. Eu era inocente, senhor Edward. Mas,

infelizmente, não quis perceber isso: o seu ódio era tanto que o senhor não me deu sequer o direito a

defesa. Eu não sabia de nada. Para mim, foi uma surpresa descobrir o envolvimento de nossos pais

no passado. Mas de que adianta? O senhor está senil pela sede de vingança que ainda lhe persegue.

Por Deus, Edward! Como eu poderia saber de tais coisas? Meus pais esconderam de mim toda aquela

história, eu juro por...

Shaara parecia querer dizer mais alguma coisa, mas deu outro rumo àquelas palavras, que

preferiram não sair de sua boca. Isso, para mim, foi uma incógnita. Mas fiquei quieta, observando

minha ancestral desviar o assunto:

_ O mais importante para o senhor sempre foi ver a sua vingança concretizada. Já se vingou de

meu pai, tirando-lhe a vida. Já me fez pagar pelo pecado que ele cometeu no passado, conseguindo

banir-me para o exílio, a viver longe da civilização. O que mais quer agora, senhor Edward? O que

mais ainda falta? Por favor, senhor Edward, suplico em nome de Deus, a quem diz tanto amar! Pare

agora, enquanto ainda lhe resta um pouco de civilidade. O senhor não sabe o que está fazendo, e vai

se arrepender amargamente. Acredite: sempre lhe fui fiel, mesmo no exílio.

O capitão olhava para Shaara com ódio mortal e não parecia ouvir o que dizia. Mas Shaara

parecia decidida a fazê-lo voltar atrás por algum motivo, ainda oculto para mim. Então, ela

continuou, enfraquecida e quase sem fôlego:

_ Vejo dentro de sua alma. Vejo uma grande infelicidade bem lá no fundo. Mas sei que ainda há

alguma coisa de bom aí dentro do senhor, capitão. Basta deixá-la vir à tona.

O capitão, em um inesperado ímpeto de insanidade e ódio, esbofeteou Shaara, finalmente. Em

suas faces alvas escorreu a dor. O capitão rangia todo o seu ódio por entre dentes, em um êxtase de

vitória. Com a força da mão do capitão, Shaara escorregou e ficou pendurada à sela do cavalo

daquele homem cruel, que ainda a arrastou por alguns metros. Até que parou, finalmente, e disse:

_ Isso é para que não fale mais o nome do meu Deus em vão, sua bruxa! E que também lhe sirva

de lição, para que aprenda a nunca mais mentir para mim com suas infâmias. Acha mesmo que eu

acreditaria em uma só palavra do que estava dizendo? Fui treinado para lidar com bruxas e

demônios; sei muito bem quando uma bruxa está tentando me seduzir, usando de encantamentos para

me desvencilhar do meu objetivo. Sou um servo do Divino Deus Criador de todas as coisas. Não tem

poder sobre mim, Satanás!

Entre lágrimas, Shaara levantou-se do chão, secando com as mãos atadas o sangue que escorria

das têmporas. Disse, entre soluços:

_ Em seus olhos, vi um sentimento perfeito e puro. Mas era a máscara do seu ódio. Vocês,

cristãos, acham que as bruxas sabem de tudo, não é? Mas também nos enganamos, como pode ver. O

amor confunde-nos, assim como me confundiu. Sou mesmo uma tola: ainda teimo em acreditar na

essência humana. Tento olhar no fundo da alma do ser humano, mas me esqueço que não adianta

tentar. Pois quando alguém se perde na ignorância, na incompreensão e no ódio, está morto de alma.

Para falar a verdade, nem mesmo sei se é humano. O ódio cegou-o, Edward. Ainda não percebeu

isso?

O semblante do capitão Edward transfigurou-se. Era como se outra pessoa estivesse ali, junto a

ele. Senti medo daquele rosto. Percebi que Shaara também viu o mesmo que eu estava vendo. Meu

coração parecia dizer que ele queria estrangulá-la. Ele estava completamente tomado por um espírito

de revolta e vingança e, ainda aos gritos, ordenou:

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_ Cala essa sua boca imunda, bruxa maldita! Guardas, levem essa mulher infeliz da minha

frente, antes que eu perca a minha cabeça!

O jovem soldado correu ao encontro do capitão Edward, indagando-lhe:

_ Devo trancá-la com as outras, senhor capitão?

_ Não, quero que a algeme do lado de fora da carroça. Ela vai a pé até o vilarejo. Isso lhe servirá

de penitência, fazendo-a se lembrar de quem é que está no poder aqui.

O guarda empurrou Shaara abruptamente, como um animal. Amarrou-a pelos pulsos na parte

traseira da carroça, onde estavam as outras mulheres. Shaara estava com as vestes rasgadas, e os pés

e joelhos esfolados. O sangue descia na sua face, misturando-se com as lágrimas e os soluços. Isso

pareceu incomodar o capitão Edward, pois ordenou que o soldado a amordaçasse. O soldado não só

obedeceu à ordem do seu superior, como também bateu na cabeça de Shaara com um pedaço de

madeira.

A situação da minha ancestral não era nada agradável. A cada metro percorrido, seus pés

sagravam mais, pois se cortavam com as pedras e os galhos espinhentos que existiam à beira do

caminho. Shaara sufocava seus gemidos através da mordaça, que cortava seus lábios.

O capitão Edward olhava para trás, uma vez ou outra, para se certificar de que Shaara estava

sofrendo o suficiente com o tratamento imposto por ele. Naquele momento, as irmãs de Shaara não

olhavam sequer para sua mestra. Pareciam repudiá-la e acusavam-na por tudo o que lhes ocorreu na

floresta. Shaara estava só, à mercê daquele destino infeliz.

Vi naquela mulher uma grande guerreira e, com o passar dos meus anos, aquela foi uma lição

que segui a fio. Pois, mesmo naquele momento de flagelo, percebi que Shaara se preocupava com

suas irmãs. A dor daquelas mulheres parecia ser mais importante do que a sua própria dor. Aquelas

famílias estavam sofrendo com a morte de seus entes queridos. As cordas e os gravetos que cortavam

o corpo de Shaara não eram nem a metade do que a dor na alma daquelas mulheres.

Causava-me angústia não poder fazer absolutamente nada. Por várias vezes, contive as lágrimas

que estavam prestes a cair. Não podia fraquejar; senão, minhas visões seriam interrompidas. Tentei

manter meu coração em oração, buscando auxílio Divino e emanando energia positiva a todas elas.

Depois da morte do pai de Shaara, ela se integrou ao grupo de auxílio de Mercedes, sua tia por

parte de mãe. Mercedes era uma mulher de muitos princípios, e decidiu nunca se casar ou ter filhos

para se dedicar somente aos pobres e necessitados. Mercedes foi considerada a maior bruxa daquele

condado e, com o seu falecimento, Shaara passou a ser sua sucessora. Mas, naquele momento de dor

e revolta, aquelas mulheres na carroça não conseguiam discernir o certo do errado e passaram, então,

a vê-la como uma inimiga. O que elas não sabiam é que Shaara jamais as abandonaria ou as trairia

por qualquer motivo que fosse. Shaara nunca recusou ou abandonou alguém que a procurasse

pedindo abrigo ou caridade - mesmo sabendo que, a qualquer momento, poderia um daqueles

necessitados ser um espião e vir a traí-la. E foi exatamente isso o que ocorreu: um senhor a quem

Shaara havia dado abrigo e comida, curando-lhe também uma enfermidade, era um espião da

Inquisição. O homem era um velho soldado, enviado disfarçadamente para descobrir o esconderijo

de Shaara.

Shaara nunca praticou bruxarias. Apenas curava os doentes com a ajuda das ervas, como lhe

havia ensinando sua tia Mercedes. Durante anos, as duas exerceram esse trabalho árduo, mas

gratificante. Em três anos, aquele pequeno grupo havia se tornado quase uma pequena vila. E a

fama de Mercedes e Shaara espalhou-se à revelia por todo o condado. Isso incomodou os aldeões, o

rei e, principalmente, a Igreja, que julgava estar perdendo muitos fiéis.

Elas nunca precisavam ir à cidade e quase nada as faltava, pois de tudo a mãe terra produzia.

Também contaram com a ajuda de alguns comerciantes, que lhes vendiam sal e açúcar às escondidas.

Os feitos das duas bruxas cresciam a cada dia. Com isso, os boatos e mexericos maldosos foram

surgindo em torno de ambas, que passaram a ser perseguidas pela Inquisição, confundidas com as

feiticeiras de Salém.

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Elas criam no mesmo Deus que eles, sangravam com feridas e morreriam como qualquer um.

Mas não eram vistas como parte da sociedade: eram vistas como a escória. A única coisa diferente

entre aquelas mulheres e os demais era a forma simples e bela como levavam a vida. Não tinham

culpa por terem nascido com um dom especial de ver e sentir coisas que não eram perceptíveis a

olhos nus. Mas a ignorância, o autoritarismo e o preconceito faziam com que se parecessem

monstros, diante de uma população que, além de cega, era também fácil de ser corrompida.

A política dominava, mas a corte foi totalmente dominada e induzida pela Igreja em ascensão,

que fazia os monarcas assinarem por todos os crimes e barbáries ditados por essa emissora de satã.

Todos estavam completamente cegos ou em completo transe hipnótico, criado pelas falsas

histórias dos inquisidores, das velhas beatas e adeptos das grandes leis ditadas pela Santa Madre

Igreja. Na verdade, ninguém sabia quem emitia tais leis, mas elas chegavam à população em uma

fração de segundos. Parecia que a maldade tinha asas, pernas, olhos e ouvidos. Qualquer mexerico

era motivo para sermos perseguidas pelo povo fanático. Bastaria algum aldeão dizer ter visto fumaça

na floresta para que a população, em massa, acreditasse ser alguém sendo vítima de algum sacrifício

de magia negra. Se um lobo matasse uma criança, com certeza foi devorada por nós, as megeras.

Quando alguém quiser identificar uma bruxa, basta associá-la à natureza e tudo o que dela vier.

Se for necessário, fazemos os nossos rituais, mas optamos, na maioria das vezes, por nunca fazê-

los - a não ser em caso de extrema necessidade. Nunca tomamos bebidas alcoólicas. De forma

alguma usamos sacrifícios animal ou humano, como contam as lendas. Nunca fomos adoradoras do

diabo: criaram esse mito em torno de nós como pretexto para poder acusar-nos de crimes que nunca

sequer pensamos em cometer. Deus nos deu um dom e cada uma de nós o exercíamos em prol da

humanidade. O dom da visão, o dom de falarmos com os espíritos, o dom da cura pelo toque das

mãos ou pelas ervas, o dom de ver as coisas através das cartas e das xícaras de chás, entre tantos

outros dons. Sempre usamos esses objetos como instrumentos da magia - mas isso não é uma regra,

pois cada um de nós tinha o seu método pessoal de prever o futuro de um consulente.

Deus era o nosso único mentor espiritual, mas também críamos em deuses e deusas,

considerados deuses pagãos. Eram deuses cornudos e deusas aladas. Talvez por terem formas meio

pitorescas - e até mesmo bizarras -, causavam repulsa e abominação aos leigos, que nada entendiam

de nossa escolha religiosa. Nossos deuses tinham chifres porque eram metade homem e metade

animal. Eram protetores das matas e da natureza. Mas isso nada tinha a ver com a magia negra,

praticada às escondidas nos calabouços dos grandes palácios. Quem praticava tais abominações eram

as feiticeiras, que, para se manterem vivas, aliavam-se aos monarcas, secretamente. Era como uma

troca de favores bizarros: alguns monarcas conseguiam seus benefícios e, em troca, mantinham-nas

vivas - enquanto lhes fosse conveniente, é claro.

Interrompi meus pensamentos, pois os soldados pararam depois de quase seis horas de trajeto.

Uma carroça havia quebrado o eixo e demorou quase uma hora para que fosse consertada. Depois,

seguiram viagem. A noite já havia chegado e a Lua era a única forma de luz. Os soldados e o capitão

não pareciam querer parar para descansar ou dormir, pois queriam chegar o mais rápido possível à

cidade. Shaara caiu por várias vezes no meio do caminho, mas o soldado que escoltava a traseira da

carroça dava-lhe chicotadas, para que ela se levantasse imediatamente. Ela estava parecendo um

farrapo humano.

O dia estava amanhecendo quando, por fim, chegaram ao vilarejo. O capitão Edward, ao descer

do cavalo, fitou Shaara demoradamente. Eu poderia jurar que havia piedade naquele olhar, mas seria

desejar demais de um soldado com cargo de inquisidor.

De repente, senti que Shaara iria desmaiar. Deu-me certo pânico e desespero por nada poder

fazer. Vi um homem gordo com uma peruca amarelada. Parecia ser um lord. Ele veio ao encontro do

capitão Edward e perguntou:

_ Senhor, esses são os prisioneiros?

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_ Sim, senhor, estas são as bruxas capturadas. E elas estão sob minha escolta, até segunda

ordem.

_ E por que esta mulher está caída ao chão, capitão? - quis saber o homem, percebendo que

Shaara não estava consciente.

_ Deve ter desmaiado, senhor. Ao passarmos pela Igreja, ela começou a passar mal. Bem sabe

Vossa Excelência que o demônio não aguenta o poder do Senhor Nosso Deus.

_ Sim, senhor capitão. Sei bem como essas bruxas valem-se dos poderes de satã. Mas quero

saber em detalhes o que houve com esta mulher, pois amanhã o bispo virá aqui pessoalmente para

interrogá-la. Creio que o senhor já deva ter o relatório pronto em mãos, capitão - ou melhor dizer

senhor inquisidor?

Capitão Edward deu um sorrisinho matreiro, como quem entendeu o que quis dizer o lord Del

Soares. Em seguida, fez-lhe um cumprimento com a cabeça e seguiu em direção à prisão, onde

ficariam Shaara e as outras trinta e cinco prisioneiras.

Muitas horas depois, Shaara acordou, jogada ao chão de uma masmorra, assustada e meio sem

noção ainda de onde se encontrava. Suspirou aliviada por perceber que ainda estava viva. O lugar era

muito escuro e sujo, e cheirava a morte.

Ela apertou os olhos, contou até dez e, lentamente, abriu-os de novo. Com aquele estranho ritual,

Shaara pôde enxergar melhor no escuro. Então, percebeu que estava em uma masmorra cheia de

ratos e com uma espécie de mina d’água, que escorria e molhava todo o ambiente. Shaara entendeu

que estava abandonada à mercê do destino que lhe impuseram. Sabia que, se não a julgassem logo,

morreria de qualquer forma e ainda seria devorada pelos ratos.

Não conseguindo conter o choro, caiu em pratos desconsolados. Shaara urrou de ódio naquele

momento, tentando demonstrar toda a sua decepção e o seu desespero por se sentir impotente. Um

guarda, ao ouvir seus gritos, foi até a cela dela e jogou um pedaço de pão duro e água por debaixo da

porta, dizendo:

_ Coma e beba, sua cadela imunda, pois, se está urrando, deve ser de fome!

Ao se retirar, empurrou uma vela acesa, também por debaixo da porta da cela. Shaara arrastou-

se, tentando alcançar a vela. Então, viu-se acorrentada à parede. Com a vela, iluminou o recinto e

pôde pegar o pedaço de pão e a água, pois precisava manter-se forte. Depois de comer, deitou-se

encolhida a um canto menos molhado e tentou adormecer. Mas foi em vão, pois os ratos passeavam

de um lado a outro, tentando se aproximar dela.

Então Shaara começou a orar, pedindo forças e paciência aos seus mentores espirituais. Em suas

orações, disse:

_ Senhor, eu nunca fiz mal a ninguém. Nunca matei, mas perdi minha liberdade. Deus! - pôs-se

de joelhos e prosseguiu:

_ Peço: não me abandone, oh mestre, nesta hora de sofrimento. Não me deixe pecar, rogando

pragas em meus algozes. Dê-me mansidão e sabedoria, para que eu possa aprender a aceitar o meu

destino com dignidade.

Shaara fechou os olhos e colocou-se em transe. Começou a fazer a viagem naquele momento.

Aproveitei o seu momento de silêncio e fui naquela viagem, junto à minha ancestral. Sentei-me ao

lado dela e fechei meus olhos. Pedi aos mentores espirituais presentes que me permitissem ver o que

Shaara veria. Então, mais uma vez, como em um passe de mágica, eu estava em outro lugar.

Estava dentro das lembranças da minha ancestral. Isso era fantástico e quase impossível de

acontecer. Ninguém nunca havia indo tão longe. Poderia considerar-me uma pessoa de muita sorte.

Shaara estava em um tempo de dez anos antes de aquela tragédia acontecer. Seu coração estava,

com suas lembranças, no capitão Edward. Ela estava feliz e parecia ser uma jovem muito bem

humorada. Era tão cheia de planos, o coração tão puro! E o olhar dos dois parecia ter cristais quando

estavam juntos.

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Eu não conseguia, até aquele momento, entender por que duas pessoas, que pareciam ter se

amando tanto, de uma hora para outra, passaram a se desprezar daquela forma. Eu estava translúcida

naquela viagem: nem mesmo como um fantasma Shaara poderia ver-me. Então, pude estar bem junto

a ela. Eu me sentia meio morta, mas estava adorando entender mais sobre minha ancestral. Sabia que

aquilo seria muito útil para mim no futuro. Shaara seguiu mais à frente em sua viagem. Ela era muito

poderosa e de muita experiência, pois, em fração de segundos, levou-nos mais à frente, ainda em seu

passado. Fiquei admirada por perceber que poderíamos estar em tantos lugares ao mesmo tempo,

dentro do mundo astral. É incrível o que a mente consciente pode fazer quando temos domínio sobre

ela. E Shaara tinha esse domínio totalmente.

Quando ela abriu os olhos, estava deitada em uma cama rodeada de mulheres que não eram suas

irmãs da floresta. Pareceu um pouco assustada, tentando entender o que estava acontecendo. Eu

estava ao seu lado o tempo todo, de pé à cabeceira de sua cama, mas ela sequer desconfiava da

minha presença. E o motivo pelo qual Shaara ficou atordoada foi a maneira muito rápida com que

havia se transportado de uma época a outra. Isso poderia ter resultados catastróficos, e era uma coisa

que eu não arriscaria, mesmo porque eu era só uma aprendiz.

Acompanhei os olhos de Shaara, que parecia estar matando a saudade de seu lar. Ela olhou

minuciosamente cada cantinho daquele quarto, que parecia ter sido decorado para uma princesa. Era

um quarto grande, com uma decoração contemporânea lindíssima, muitas cortinas, uma cama muito

grande e mobílias muito polidas. Isso sem contar o cheiro bom de comida, que estava vindo de

algum lugar daquela casa. Foi quando uma jovem magra e simpática entrou no quarto de Shaara,

com uma bandeja contendo chá, biscoitos de nata, torradas, suco, bolinhos e frutas. Tanta fartura que

me senti satisfeita somente de olhar para tantas guloseimas! Shaara já estava reconhecendo o

ambiente. Deu uma larga espreguiçada sobre a cama e, em seguida, perguntou:

_ Onde estou? - parecendo apenas querer se certificar que estava a alguns passos atrás, em seu

passado feliz.

_ A senhorita está bem? - perguntou uma das senhoras, que parecia ser de confiança da família.

Está em seus aposentos, em sua casa. – respondeu, parecendo preocupada, mas mantendo um tom de

simpatia. Onde mais poderia estar a menina? Trouxemo-la para seu quarto, depois daquele súbito

desmaio que a senhorita teve logo após o jantar de ontem. Agora, por favor, arrume-se! Seu pai está

à sua espera.

Shaara levantou-se às pressas. Parecia querer recuperar o tempo perdido ao lado do pai.

Arrumou-se tão rapidamente que mal se preocupou com a vaidade. O que ela mais queria, naquele

momento, era estar com o seu velho pai e poder dizer-lhe o quanto o amava. Pois, quando Shaara se

exilou na floresta com sua tia Mercedes, para se esconder da Inquisição e do capitão Edward, não

pôde se despedir de seu pai, que havia sido condenado à forca por traição contra a corte.

Shaara sentiu-se uma traidora por nada ter podido fazer a respeito. Tentou fugir várias vezes

para poder ajudar o pai, mas, devido à frágil condição em que ela se encontrava, Mercedes e as

outras irmãs não a deixaram sair. Shaara, desde então, mantinha em sua cabeça que seu pai não a

perdoou por isso. Portanto, aquela viagem para Shaara era de extrema importância. Para ela, era

como fosse um resgate: mesmo que ela não pudesse mudar em nada o seu destino, era uma forma de

rever e ficar um tempo a mais com o pai.

Shaara atravessou vários corredores daquele enorme casarão. Não consegui ver muita coisa e

nem detalhar nada, pois ela estava com pressa e tudo parecia espelhos às avessas. Era como se

fossem flashes em minha mente. Quando Shaara estava parada ou calma, eu via claramente as coisas

ao meu redor. Mas se Shaara corresse, era como se o tempo acelerasse. Então, embaçava tudo ao

redor, deixando-me impotente em relação aos detalhes. Ao chegar a um grande saguão, de mobília

refinada e muito rica, pude ver um senhor de costas olhando pela janela, enquanto fumava cachimbo.

Ele estava de costas e usava um roupão. Parecia ter acordado havia poucas horas.

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Shaara estava com tantas saudades que nem se preocupou com a etiqueta: correu e abraçou o pai

pelas costas.

_ Que saudades, pai! – disse-lhe entre lágrimas.

O homem virou-se lentamente, segurou Shaara pelos braços e perguntou:

_ Querida, está se sentido bem?

O homem, meio confuso por toda aquela estranha situação, passou as mãos no rosto de Shaara,

tentando acalmá-la e, enxugando suas lágrimas, prosseguiu:

_ Sou seu velho pai e sempre estive aqui!

Ela pareceu perceber aquele erro e tentou acalmar-se, dando-lhe um sorriso confuso.

Senti minhas pernas tremerem quando fitei o rosto daquele homem. O pai de Shaara era também

o meu pai. Eu não conseguia entender como isso seria possível. Uma parte de mim quis sair correndo

e encontrar Dona Helena, para esclarecer tudo aquilo. Outra parte queria ficar, para ver onde meu pai

se encaixava naquela louca história. Eu queria abraçá-lo também, pois estava morrendo de saudades.

Mas sabia que, embora a semelhança fosse gritante, seria impossível, pois meu pai não fumava

tabaco de espécie alguma. Senti-me completamente confusa: queria respostas, queria tocá-lo a

qualquer custo. Confesso que foi uma das partes mais difíceis da viagem.

Respirei fundo, tentando acalmar a minha ansiedade. Foi quando percebi que algo estava errado

com a minha ancestral: ela estava ficando pálida e, de repente, desmaiou. Só não caiu ao chão porque

seu pai a amparou pelos braços. Que confusão... Eu não sabia, afinal, pai de quem ele era naquele

momento. Imediatamente, as empregadas foram chamadas e uma ordem foi dada para que o médico

da família fosse localizado.

Algumas horas depois, Shaara voltou a si. Parecia meio atordoada, e logo perguntou, por se ver

deitada em um divã:

_ O que houve comigo?

_ A senhorita teve outro desmaio. Tem se alimentado bem, querida? - perguntou o médico.

_ Foi só um desmaio, doutor! Por certo deve ser o calor. - disse o pai de Shaara, interrompendo

aquela conversa.

_ Deixe que ela me responda, senhor Gonzáles. Preciso certificar-me dos sintomas para poder

dar o diagnóstico. Há quanto tempo a senhorita tem tido esses sintomas?

_ Há algumas semanas - respondeu Shaara, ainda confusa e preocupada.

_ E isso ocorre antes ou depois das refeições?

_ Varia, doutor. Sinto muitas tonteiras e enjoos.

_ Entendo!

_ O que há com a minha filha, doutor Sanches? Ela está muito doente? - indagou o pai de

Shaara, pondo uma das mãos no ombro do médico.

Dr. Sanches levantou-se calmamente. Tirou os óculos e levou o pai de Shaara a um canto onde,

em particular, deu-lhe o diagnóstico.

_ Sua filha esta grávida, senhor Gonzáles. E os lapsos de memória que ela vem tendo são

provavelmente porque está muito preocupada em como contar-lhe o fato. Isso acontece muito

quando as pessoas estão cansadas ou passando por problemas. O senhor deve ter uma conversa mais

franca com a senhorita Shaara. Mas tenha cuidado, pois a situação é delicada.

O pai de Shaara ficou pálido. Tansfigurou-se, parecia ter perdido o rumo de onde estava. Era

uma situação muito constrangedora e delicada para ele. O médico não deu nem mais uma palavra

com o pai de Shaara. Apenas pediu às criadas e à senhora que deixassem os dois a sós. O pai passou

as duas mãos sobre as faces pálidas, tentando recompor o ânimo. Por fim, perguntou:

_ Quanto tempo mais achava que poderia me esconder tal fato? Esperava tudo de qualquer um,

menos uma traição vinda da minha própria filha.

Shaara arregalou os olhos, parecendo realmente não entender o que estava acontecendo.

_ Como assim? Não estou entendendo o que o senhor está tentando dizer, pai!

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_ Não me faça perder a cortesia e esbofeteá-la, menina! Há quanto tempo perdeu-se com aquele

crápula? Deus do céu, o que vão dizer? Devem casar-se de imediato. Não quero que fique mal

perante a sociedade. A Igreja pode excomungá-la e bani-la para longe de mim. O que faço? - o

homem parecia desnorteado; mal podia manter-se de pé.

Shaara levantou-se e foi na direção do pai. Tentou abraçá-lo, mas ele se afastou. Então, ela

abaixou a cabeça e disse:

_ Perdoe-me, pai, eu amava muito Edward. Sei que traí o senhor, não lhe contando a verdade.

Mas senti medo da sua reação. Não quis magoá-lo, juro! Eu o amo muito, pai, não sabe o quanto...

Não pode imaginar tudo o que passei para estar aqui com o senhor. - Shaara referia-se à viagem.

_ Deveria ter confiado em mim, Shaara. Quero que me conte exatamente como e onde aconteceu

o fato, para que eu saiba qual providência tomar. - tomou Shaara pela mão e a fez sentar em uma

cadeira. Puxou um banquinho para perto dela e disse:

_ Estou esperando. Comece.

Shaara respirou profundamente, ergueu a cabeça e começou a contar:

_ No dia em que o senhor foi chamado para visitar mamãe em seu leito de morte, Edward tinha

vindo aqui para me fazer o pedido de casamento. Eu não sabia se ficava feliz por ter sido pedida em

casamento por ele, ou se me desesperava com a situação de mamãe.

Shaara começou a contar em detalhes aquela história de amor e ódio.

_ Foi exatamente da forma como vou narrar. Não vou mentir em uma só vírgula.

_ Espero que não!

Shaara finalmente prosseguiu:

_ Fomos ao jardim caminhar e Edward, naquele dia, estava perfeito!

_ Poupe-me de certos detalhes, por favor! - retrucou o senhor Gonzáles, enfurecido.

_ Estávamos no jardim e ele disse simplesmente quero me casar. Sei que seu pai não dará

permissão até que complete dezoito anos, mas não estou aguentando mais. Fui promovido por

ordens do próprio bispo. O que ganharei será suficiente para sustentá-la. Fuja comigo esta noite, eu

imploro. Então, quando voltarmos, seu pai não poderá nos impedir de ficarmos juntos, pois

estaremos casados. Foi quando Madalena interrompeu-nos, dizendo que o senhor solicitava minha

presença de imediato.

_ Esse canalha, juro... - Gonzáles interrompeu Shaara, apertando o pulso. Ela pediu ao pai que a

deixasse prosseguir com a conversa:

_ Deixei Edward sozinho no jardim, sem lhe responder ao pedido ou me despedir, pois fiquei

preocupada com o senhor.

_ Filha... - ele caiu aos prantos, pois se lembrou do fato ocorrido.

_ Sim, pai. E depois que o senhor me deu a notícia de que mamãe estava morrendo, Edward

entrou e ainda lhe trouxe água para beber. Enquanto o senhor se arrumava para ir ao encontro de

mamãe, Edward afirmou o desejo de se casar comigo. Então, disse: Sei que posso parecer um pouco

frio e precipitado, mas não abro mão de você, meu amor. Vá com seu pai, mas volte para mim.

Assim que as notícias forem melhores, escreva-me. Despedimo-nos e nada havia acontecido entre

nós antes daquele dia.

Shaara e o pai ficaram horas recordando a mãe de Shaara. Os dois estavam nostálgicos e

chorosos. A mãe havia sido uma bruxa. Foi uma mulher muito amada por todos da sociedade por sua

bondade. Por amor a Gonzáles, nunca praticou a bruxaria - com a condição de, às escondidas, poder

sempre estar perto de seus instrumentos de magia. Por anos, durante a súbita doença, Efigênia

Gonzáles foi mantida em um bangalô, afastada da população por causa da lepra, que já estava em

estado avançado. Shaara, então, deu prosseguimento àquela conversa, perguntando ao pai:

_ O senhor lembra-se de quando mamãe pediu para falar comigo a sós?

_ Sim, lembro-me. - disse Gonzáles, passando a mão sobre os olhos, envoltos pelas lágrimas.

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_ Sim, pai, foi naquele momento que ela me contou que era uma bruxa. Mamãe pediu-me para

pegar alguns objetos que estavam em cima de uma mesinha. Então, depois de desembrulhar,

mostrou-me algo que guardara por anos. Entregou-me uma varinha, um athame, um livro de receitas,

um cálice de prata e um caldeirão. Depois, explicou-me como eu usaria cada um daqueles objetos,

pai. Confesso que fiquei muito assustada e incrédula também. Mas ela, parecendo perceber essas

coisas em mim, contou-me a seguinte história:

_ Quando conheci seu pai, eu tinha dezesseis anos. Era uma camponesa e morava em uma

humilde casinha no meio da floresta. A carruagem em que seu pai estava perdeu o eixo, e ele e seus

criados quase sofreram um sério acidente. Seu pai precisou consertar uma roda da carruagem antes

que a noite caísse e os lobos viessem, famintos e furiosos. Os lacaios de seu pai mal sabiam guiar os

cavalos. Eram totalmente despreparados para uma situação de emergência. E foi aí que, naquele

momento, por uma artimanha do destino, seu avô, que passava por ali, vendo a dificuldade de seu

pai, resolveu oferecer-lhe ajuda. Devido à alta hora, seu avô também ofereceu-lhes pousada. Seu

pai foi levado para a nossa humilde cabana, mas foi muito bem recebido por minha mãe, que logo

tratou de matar um ganso para o jantar. A casa era pequena, mas todos se acomodaram bem.

Quando os meus olhos e os de seu pai cruzaram-se, percebemos que não conseguiríamos ficar um

sem o outro. Minha mãe observou-nos atentamente. Seu pai permaneceu em minha casa mais tempo

do que o previsto. Quando ele partiu, deixou a certeza de que iria voltar, pois me deu o anel com seu

brasão. Meu pai não acreditou muito, mas minha mãe viu em seu tarô que ele voltaria para se casar

comigo.

_ Seu tarô, como assim? – perguntei à mamãe. Sim, sou uma bruxa, uma cigana ou como queira

chamar-me. O mais intrigante foi ver a pequena marca que ela me mostrou: era um sinal, uma flor,

pai. A flor de lótus, a marca das condenadas. Mas mamãe era surpreendente. Antes mesmo que eu a

perguntasse, explicou-se:

_ Consegui fugir de um inquisidor pouco antes de conhecer seu pai. Esse homem cruel

perseguiu-me muito tempo. Quis me possuir como mulher antes mesmo que eu tivesse dezesseis

anos. Estive escondida no meio da floresta, na casa de minha irmã Mercedes, que é uma feiticeira

muito temida. Depois de muito me esconder, recebemos a notícia que esse homem perverso veio a

falecer, devido a uma doença desconhecida. Quando seu pai voltou para mim, contei-lhe tudo a meu

respeito. Ele simplesmente aceitou-me como sou, pois seu amor foi muito maior do que o

preconceito da sociedade que nos cerca. Prometi que nunca praticaria meus feitiços, mas nunca

prometi que não os usaria às escondidas. Seu pai fez olhos de mercador quanto a isso. Prometemos

nunca mentir um para o outro, e achamos melhor não contarmos tal assunto à família dele.

Casamos e fomos felizes. Logo de princípio, confesso que não foi fácil, pois sua bisavó era uma

condessa de muitos modos e etiquetas. Tive que aprender boas maneiras e foi-me incumbida uma

educadora familiar, que me ensinou etiqueta em casa. Logo a sociedade aceitou-me, pois eu era

muito aplicada e dediquei-me ao máximo. Seu pai, durante toda a sua vida até agora, nunca me

traiu, mas deixou alguns amores para trás. Certa jovem de nome Escarlate Mennellet, uma francesa

muito ambiciosa, que não se conformou por seu pai ter-me escolhido. Fez de nossas vidas um

inferno enquanto ela viveu. Ela e a mãe procuraram uma velha feiticeira, que também se tornou

inimiga de nossas famílias. Essa jovem, minha filha, perseguiu-me durante toda a sua existência.

Ela seguia a mim e a seu pai quando saíamos, fazendo escândalos. Várias vezes jurou matar-me.

Essas três mulheres fizeram um sortilégio com o intuito de trazer seu pai de volta. Só que elas se

esqueceram de que um sortilégio só funciona se a outra parte tiver algum sentimento pela primeira.

Seu pai não amava a senhorita Mennellet. Com o passar do tempo, essa jovem teve vários outros

amantes. Deitava-se com homens, na esperança de conseguir status e poder, para se aproximar de

nós através da sociedade. Só que, minha querida filha, senhorita Mennellet engravidou. Foi aí que

ela planejou uma artimanha, na tentativa de comprometer o seu pai. Eu ainda não tinha

engravidado. Não fazia a menor ideia do que estava acontecendo comigo. E um herdeiro era muito

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importante para seu pai. Tentamos várias vezes, e a única vez em que engravidei de um menino, ele

nasceu morto - o que deixou seu pai muito frustrado. Mas ele nunca deixou de me amar por isso.

Sempre foi muito compreensivo: para ele, não importava se viesse um menino ou uma menina.

Como eu estava dizendo, a senhorita Mennellet planejou contra seu pai: aproveitou tal gravidez

e, como ainda estava no início, convidou seu pai para ir até a casa dela, dizendo que seria a última

vez que o procuraria. Seu pai contou-me e eu disse que ele deveria ir para ver o que ela queria. Ele,

muito relutante, aceitou o convite da senhorita Mennellet. Ao chegar ao bangalô dela, toda uma teia

já estava tecida, esperando por ele. Ela o convidou para um drinque e o embebedou com uma

poção, preparada por uma feiticeira. Seu pai adormeceu. Ela, então, o levou para a sua cama.

Quando seu pai acordou, estava nu e ela estava sorrindo ao lado dele. Seu pai vestiu-se correndo e

saiu daquele quarto.

Em casa, Gonzáles contou-me tudo. Chorei muito por achar que meu esposo havia me traído - o

que era pior, eu era a única culpada por isso. O tempo passou. Mennellet procurou seu pai, dizendo

que estava grávida dele. Ele entrou em desespero, mas, como homem honrado, ajudou aquela

senhorita, dando-lhe tudo o que ela precisou para ter seu filho. Eu, a cada dia, me sentia frustrada

por não poder dar a seu pai um filho legítimo. Com o tempo, seu pai resolveu ouvir a minha mãe,

que dizia que sua irmã Mercedes poderia nos ajudar. Fomos até ela e, assim como minha mãe havia

dito, ela nos ajudou. Ela também previu que a senhorita Mennellet não estava grávida de seu pai, e

que o verdadeiro pai da criança frequentava sua casa e ainda a explorava, tirando toda a ajuda de

custo que seu pai lhe enviava. Seu pai colocou um investigador e pegou-a em flagrante. O

menino, nunca soube o nome, mas já tinha feito quatro anos quando engravidei. Mas não pense que

Mennellet aprendeu a lição: aquela jovem enlouqueceu e procurou novamente a feiticeira. Fez um

sortilégio contra mim, lançando-me essa maldição. Ela jurou que, assim que a minha criança

nascesse, eu cairia de cama sob uma peste que nada no mundo desfaria.

Com o passar do tempo, seu pai e eu ficamos cada vez mais unidos. Então, você nasceu.

Ficamos tão felizes que pensamos que nada ou ninguém poderia nos separar ou nos prejudicar. De

repente, caí de cama, com febre alta. Manchas horríveis apareceram em todo o meu corpo. O

médico da família foi chamado e, em alguns dias, o diagnóstico foi dado: era lepra. Tentaram de

tudo, mas não descobriram a cura.

Minha mãe procurou a velha feiticeira para tentar dar-lhe mais dinheiro. Assim, talvez pudesse

inverter o feitiço. Só que a feiticeira havia morrido subitamente e, com ela, a esperança de uma

cura. Por sete anos, seus avós cuidaram de mim aqui, neste lugar escondido e isolado, até

falecerem. Alguns empregados corajosos e fiéis têm cuidado de mim nos últimos anos.

_ Segurei sua mão pálida e magra, pai. Perguntei se eu era uma bruxa também.

_ Sim, e da mais alta linhagem, querida. Tudo o que precisa saber está dentro desse livro que

lhe dei. Todos os meus segredos estou-lhe entregando. Guarde-o... E, se algo acontecer-lhe um dia,

enterre-o. O diário tem tudo o que precisa saber sobre mim e tudo que nunca pude compartilhar

com você durante toda a minha vida. É a minha história, ou o que restou dela. A colher de pau é

uma herança de família. Há muitos anos tem passado de geração em geração. Agora ela é sua. Essa

é a sua varinha. Nunca a perca, pois tudo e todo o feitiço que vier a fazer deve ser mexido somente

com essa colher de pau. Nunca faça o mal a ninguém, filha. Nunca revide um feitiço, nunca deixe

que as pessoas matem sua essência. Não faça sortilégios para segurar um homem, nem use seus

poderes para o mal dos outros. Lembre-se da lei do retorno e de que o destino de ninguém é

brinquedo. Lembre-se também de que, se rezamos a Deus pedindo o mal de alguém, estamos

fazendo um feitiço. Deus nunca nos nega nada que pedimos em oração. Porém, se um dia lhe

fizerem um sortilégio, e o mal que lhe laçarem não achar maldade em você, Deus lhe protegerá,

dando permissão para que o mal se volte contra quem lhe enviou. Quando fazemos mal para uma

pessoa inocente, Ele permite que o mal se volte contra nós da mesma maneira. Todo o mal que

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desejamos ao próximo, desejamos contra nós mesmos. Não devemos estar em débito com Deus. Ele

rege o universo, e é a força do universo que rege os nossos destinos.

O mesmo se sucederá a alguém com o anjo da guarda forte: quando o mal que fazemos a essa

pessoa chegar até ela, encontrará uma espécie de barreira protetora. Então, virá atrás de quem o

mandou, com a sua cobrança cega. O mal é mercenário e carrasco. Inclusive contra quem o pratica.

Por isso, pense muito antes de ajudar alguém com sortilégios. Investigue para saber se a pessoa está

falando a verdade e, principalmente, se é merecedora. Caso contrário, o mal vem como uma fera

cega em cima de você. No livro que lhe dei, encontrará o segredo das ervas que curam. Como usar

sua clarividência, como usar as cartas, como usar a bola de cristal, ou mesmo como fazer a viagem.

A viagem é essencial para conseguir entender a si mesma.

_ Perguntei-lhe o que era a viagem.

_ É uma espécie de sono profundo, onde se consegue viajar no tempo, encontrar respostas no

passado para coisas que podem lhe parecer absurdas e sem sentido no presente.

_ Pai, como eu gostaria de ter estado ao lado de minha mãe e aprendido tudo sobre aquela

cultura misteriosa... Queria ter participado de todas as coisas que foram importantes para ela. Meu

coração doeu tanto, pai, por ter que vê-la partir... Senti muito mais do que piedade: o sentimento era

uma mistura de nostalgia, perda e amor. Naquele momento, tudo isso estava ali na minha frente, indo

embora. Ela estava morrendo. E não pude fazer nada, porque isso também estava nas mãos de Deus,

e Ele regia o destino de nós duas naquele momento. Era como se fôssemos um brinquedo e

estivéssemos sendo manipuladas. O livre arbítrio não funciona realmente, pois, caso funcionasse,

tenho certeza de que minha mãe teria escolhido ficar conosco para sempre.

Shaara parecia sincera em relação àquela observação. Suas lágrimas escorreram de suas faces

como um mar procurando abrigo por entre as rochas. O pai de Shaara entendeu que a filha

estava havia muito guardando aquela dor e disse:

_ Não lamente, não fomos culpados pela morte de sua mãe. Fomos vítimas também.

Os dois abraçaram-se fraternalmente e Shaara contou-lhe sobre Edward:

_ Depois que voltamos do velório de mamãe, Edward procurou-me no cemitério. Ele estava

lindo, em um casaco de veludo preto, calça bege e botas. Todos os nossos criados estavam presentes,

por isso nos afastamos. Edward puxou-me para um canto, debaixo de uma árvore, e beijou-me

ardentemente. Tentei empurrá-lo, mas ficou difícil, pois ele estava frenético e muito sensual. Edward

estava muito mudado, não consegui controlar seus impulsos. Queria tentar entendê-lo. Foi então que,

num sussurro, ele disse: quero vê-la. Tentei adiar aquela suposta fuga, respondendo claro, assim que

tudo isso passar, iremos nos encontrar para conversarmos. Mas Edward não queria aceitar e

respondeu-me: Não, de jeito nenhum! Acho que não me entendeu, quero encontrá-la hoje à noite.

Disse-lhe que minha mãe havia acabado de falecer, que ele estava perdendo a noção do certo e do

errado. O senhor jamais permitiria que nos encontrássemos aquela noite. Estávamos de luto. Seu pai

não precisa saber – respondeu-me Edward. Quero que me encontre na taberna, perto do vilarejo.

Direi ao taberneiro que estarei esperando minha noiva, e ele não fará interrogações quando lá

chegar. Por favor, preciso tê-la, a sós. Não acontecerá nada demais, prometo-lhe. Para que se sinta

mais segura, casaremos no dia seguinte. Assim, seu pai não poderá nos impedir de ficar juntos.

Quero contá-la como fui promovido. Não me negue isso! Seus olhos eram suplicantes, e sua voz

deixou-me totalmente tonta e sem razão. Embora eu soubesse o risco de estarmos sozinhos, confesso

que também o queria. Mesmo sabendo da imprudência do momento, eu disse sim... Foi quando o

senhor chegou e flagrou Edward beijando-me. Pai, o senhor ofendeu-me e esbofeteou-me. Fiquei

magoada por não ter sequer me deixado explicar. Eu quis me vingar. Perdoe-me! Fui uma tola.

Shaara baixou a cabeça, envergonhada e triste. Mas seu pai compreendeu que ela havia agido

por impulso e que ele também poderia ter agido diferente em relação àquela situação tão delicada.

Depois de muito pensar, ele disse:

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_ Parece que o senhor Edward sabe bem como funcionam as coisas na Inglaterra. Mas aqui, na

Espanha, com certeza ele terá que aprender a duras penas. Creio que precisarei conversar em breve

com ele.

_ Pai, por favor, ainda não terminei. Preciso que o senhor saiba o que houve comigo, antes que

faça uma tolice e ponha em risco a sua vida.

Shaara estava tentando mudar o triste destino de seu pai. Meu Deus, fiquei muito assustada

porque meus sentidos de bruxa avisavam-me o quanto ela poderia estar enganada. Ela nunca poderia

ter tomado aquela atitude, mesmo que estivesse tentando salvar uma vida. Nunca podemos interferir

no destino de alguém, e muito menos usar a viagem para tal propósito. Shaara, em seu momento de

dor, tentou mudar o passado, mas se esqueceu de uma coisa: isso era impossível. Senti muita pena de

Shaara, pois entendia sua dor. Fiquei quieta, ouvindo-a prosseguir com aquela conversa insana de

uma pessoa desesperada. Shaara contou o seguinte a seu pai:

_ Naquela noite, uma escrava ajudou-me. Ela não teve culpa, pai, praticamente a obriguei a me

ajudar. Chamei-a e pedi que me trouxesse um vestido de camponesa e um capuz vermelho, para que

não fosse reconhecida por ninguém na cidade. Disse que eu e Edward iríamos fugir aquela noite,

que ela não poderia contar a ninguém, muito menos ao senhor. Caso contrário, eu mandaria puni-la

por isso. Ela ainda disse, com olhos arregalados:

_ Credo em cruz, Sinhá! Não sou de fazer mexericos, não. Só acho que a senhorita está muito

enganada em relação a esse capitão. Afinal, sua mãe nem esfriou ainda. Luto é coisa sagrada!

_ Ela não estava errada, pai. Mas, mesmo assim, passei por cima de tudo e disse-lhe: Acredite,

Joaquina, minha mãe iria aprovar isso. Eu o amo muito e essa decisão já está para ser tomada há

muito tempo. Meu pai só fez antecipar os fatos. Ela benzeu-se, num ar de desaprovação. Eu estava

cega de ódio do senhor naquele momento, pai. Não ouviria nem mesmo mamãe. Joaquina ainda

tentou argumentar:

_ O pai da Sinhá é um homem bom. Se fez o que fez é porque está com a cabeça quente e o

coração amargurado. Ele amava muito sua mãe, e a dor da perda fundiu os miolos dele. Acho que a

menina deveria pensar mais um pouco antes de tomar qualquer decisão.

_ Meu pai nunca poderia ter me batido, Joaquina – eu lhe disse. Se ele sofre, tem que saber que

sofro também. Ela era minha mãe. Fui privada de vê-la a minha vida toda. Nunca pude ter os seus

carinhos. Quando eu chorava por ter caído, não tinha ninguém para me pôr no colo ou afagar meus

cabelos. Ele nunca teve tempo nem para me contar histórias de dormir. E agora está se sentindo no

direito de espancar-me? Vou mostrar-lhe em quem ele bate.

_ Está bem, sinhá. Tomara que o patrão não me castigue por causa de sua cabeça dura. É mió a

Sinhá andar depressa, que o cocheiro já está aguardando onde foi combinado. É... água morro

abaixo, fogo morro acima: muié moça, quando quer desembestar, ninguém segura.

_ Joaquina disse isso entre dentes, quando me viu saindo porta afora. Na saída, dei uma olhada

em tudo e ainda respondi a velha escrava, desaforadamente: Ouvi isso, sua insolente! Não sei onde

eu estava com a cabeça, pois nunca tratei nenhum de nossos escravos daquela maneira. Muito menos

Joaquina, que praticamente me criou. Ninguém me viu saindo. Fui muito cautelosa. Dei ao cocheiro

o endereço e seguimos para o vilarejo. Ao chegarmos à taberna, o cocheiro perguntou-me se eu tinha

certeza de que era ali. Respondi-lhe meio assustada e curiosa pela pergunta: Sim. Algum problema?

_ Senhorita, desculpe-me pela intromissão, mas aqui não é lugar para alguém de finos modos...

Quer que eu entre com a senhorita? – ofereceu-se o cocheiro.

_ Não será preciso, meu noivo está me esperando. Obrigada! Escutei quando ele falou noivo,

hein? Sei... Perguntei enfurecida se ele havia dito alguma coisa, no que me disse Não, senhorita. Só

pensei alto. O cocheiro virou o rosto e parecia antipatizado comigo, mas me disse para aguardá-lo

ali, que não se demorava. Entrou na taberna sozinho. Parecia querer se certificar se havia alguém

esperando por mim lá dentro. Quando de lá ele voltou, disse-me para entrar pela porta dos fundos,

para não chamar muita atenção dos homens que estavam lá dentro. Desci da carruagem e entrei na

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taberna pelos fundos, como sugeriu o cocheiro. Procurei pelo taberneiro. Ele me olhou atônito, como

se me reconhecesse, mas nenhuma palavra disse. Colocou o copo, que estava enxugando com um

paninho encardido, em cima do balcão, pegou uma lanterna e guiou-me em direção à porta dos

fundos, novamente. Da portinhola, mostrou-me um celeiro. Olhou-me de cima abaixo, parecendo

não acreditar que eu iria ter coragem de ir até lá. Mas o olhei desafiadoramente e não lhe dirigi mais

a palavra. Segui, tentando mostrar-me corajosa. A noite estava fria e senti minhas pernas tremerem.

Vacilei e quase caí. Somente a luz da Lua me guiou. Abri a enorme porta do celeiro e vi não vi

ninguém. Vários lampiões estavam acesos e, no meio, tinha uma mesa com vinho, taças, queijo,

frutas, e pães. Logo à frente, encontrei um colchão feito com feno. Alguns cobertores estavam

dobrados ao lado. Sorri sozinha, pois sabia que Edward havia preparado tudo nos mínimos detalhes.

Edward, você está aí?, chamei mais alto e ninguém respondeu. Comecei a ficar assustada e, de

repente, ele chegou por trás de mim, abraçando-me e beijando-me. Virei para olhar para ele e fui

beijada na boca, com paixão. Depois, empurrou-me pelos os ombros e fitou-me toda.

_ Não quero mais ouvir tais detalhes. - disse o pai de Shaara, com o semblante que era pura

decepção.

Mas Shaara pediu para que terminasse aquela conversa:

_ Por favor, pai, preciso de resposta e, para isso, o senhor terá que ouvir toda a minha versão

dessa história.

Então, Shaara prosseguiu:

_ Edward olhou-me de um jeito que nunca havia me olhado antes e disse-me que eu estava

linda, que me amava loucamente, que não conseguia pensar em sua vida sem mim. Seus olhos eram

ternos, mas também cheios de luxúria. Fitei-o de cima abaixo, enquanto foi buscar-me uma taça de

vinho. Estava com uma camisa branca muito fina, aberta, que deixava o peito másculo e peludo à

mostra. As mangas, longas, estavam dobradas até o antebraço. Calça de couro, com um cinto largo, e

botas, lembrando os famosos corsários. Seus cabelos estavam soltos, e sua barba muito bem feita.

Ele usou sândalo naquela noite. Aquele cheiro despertou em mim um lado adormecido até então.

Como eu disse, pai, também tive minha porção de culpa.

E Shaara prosseguiu com aquela história, que me surpreendia a cada segundo:

_ Edward trouxe-me uma taça e brindamos a nossa felicidade antes de bebermos. Sentamos no

colchão improvisado, comemos queijo com fruta e pães, e contamos histórias antigas. Ríamos como

loucos por qualquer coisa. Edward fitou-me, de repente, e beijou-me novamente com ternura. Seus

beijos foram ficando mais frenéticos e ardentes. Suas mãos começaram a abrir caminhos

desconhecidos no meu corpo. Já entorpecida pelo vinho e pela luxúria, deixei-me render. As mãos de

Edward foram ágeis demais e, em instantes, conseguiu abrir meu corpete. Percebi que estava

completamente indefesa e em suas mãos. Pude perceber sua experiência com as mulheres, e senti um

ciúme infindável. Como num passe de mágicas, ele tirou o restante de minhas roupas. Queria falar-

lhe algo, mas seus beijos e suas mãos ficaram cada vez mais insistentes e impacientes. Meu corpo

tremeu ao sentir sua boca escorregando em meus seios, jovens e inexperientes. Sua mão desceu e

alcançou meu local mais secreto. Senti tontura e um devaneio sem fim. Sua boca percorreu todo o

meu corpo, até levar-me a um frenesi angustiante. Quando percebeu que eu estava totalmente

indefesa, fez-me implorar para ser possuída. Como um louco, beijou-me na boca novamente e levou-

me a lugares jamais sonhados por qualquer ser humano. Naquela noite, vi que o meu frágil corpo de

mulher foi levado a um paraíso nunca sonhado pelos anjos. Quando acordei, fiquei olhando-o

dormir. Como era lindo ver seu corpo masculino e nu completamente vulnerável ao meu lado! Nada

se comparava à felicidade que estava sentindo ao lado de Edward. Eu estava plena da certeza do

nosso amor. Mas, de repente, senti uma pontada no peito, como se algo estivesse errado. Sabia que

deveria contar a Edward sobre o meu atual segredo. Comecei a chorar, abafadamente. E se ele não

me aceitasse como eu era? - pensei comigo. Talvez fosse bobagem e eu estivesse sofrendo por

antecipação. Comecei a beijá-lo nos lábios, tentando afastar aquele temor da minha mente. Ele

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O segredo dos girassóis

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acordou e perguntou-me, tentando ser natural e fazer-me sentir à vontade: Bom dia, meu amor!

Como passou a sua primeira noite como uma refugiada? Tentei não deixar transparecer que eu havia

chorado, pois não queria que Edward se aborrecesse comigo. Então, continuei aquela brincadeira,

tentando também ser irônica: Bom dia, minha vida, tirando a hora em que senhor me deixou dormir,

pode-se dizer que eu tive uma excelente noite. Ele respondeu Eu?! A senhorita é que não me deu

sossego. Parecia possuída por uma fera selvagem. Rimos os dois ao mesmo tempo. E o senhor quer

sossegar? - rocei minhas pernas entre as dele. Ele olhou para debaixo das cobertas e falou, com voz

rouca: Hum! Não, de jeito nenhum. Fizemos amor novamente. Desculpe por lhe contar tão

vulgarmente, pai, todos os detalhes de meu envolvimento com Edward. Mas eu precisava que o

senhor soubesse que eu não sou santa e que também permiti que as coisas fossem longe demais.

Mais tarde levantamos e tomamos o nosso desjejum. Ele tirou, para mim, leite de uma vaca que

estava naquele celeiro. Tudo estava perfeito, até mesmo o pão dormido. Edward contou-me sobre

seus planos de se casar comigo. Falamos da quantidade de filhos que teríamos. Ríamos com coisas

banais e, se o mundo acabasse, não teria naquele momento a menor importância para nós, pois

éramos a própria felicidade encarnada. Eu havia esquecido completamente dos meus temores, até

que fiz a pergunta que não conseguia se calar dentro de mim: Edward, posso perguntar-lhe uma

coisa? Ele, ainda deitado ao meu lado, enrolando na boca um pedaço de feno, disse Sim meu amor,

pode me fazer quantas perguntas você queira, enquanto fitava o teto, parecendo não se interessar

muito por aquele assunto. Por fim, virou-se para mim e perguntou, percebendo que eu me mantinha

calada: Então, meu amor, o que quer saber de mim que ainda não saiba? Disse-lhe que precisava

saber se ele me amava verdadeiramente. Na verdade, queria testar o amor de Edward, queria saber se

ele me amava tanto quanto o senhor amava minha mãe. Edward, naquele momento, pareceu-me tão

seguro do nosso amor... Fui uma tola e estraguei tudo. Achei que nada importaria ou estragaria

aquele sentimento. Edward virou-se e segurou meus ombros. Fitando-me, disse: Nunca duvide disso,

vou me casar contigo. Nada nesse mundo poderá intervir nos meus sentimentos por você. Mas por

que tem essa dúvida a meu respeito? Então, aproveitando aquele momento de felicidade, abusei da

minha sorte e perguntei: Se eu for diferente de todas as outras mulheres que conheceu, vai me amar

mesmo assim? E se eu fosse uma bruxa, amar-me-ia do mesmo jeito? Edward soltou uma

gargalhada sonora. Mas, depois, fitou-me seriamente, pois pareceu perceber em mim tristeza e

sinceridade. A fisionomia de Edward mudou. Afastou-se de mim, parecendo querer que eu dissesse

que era uma brincadeira. Mas me mantive séria e firme. Meus olhos não desgrudavam dos dele.

Então, levantou-se, passou as mãos nos cabelos e perguntou: Está falando sério, não é? Pai, Edward

mudou por completo. Correu a vestir suas roupas e mal olhava para o meu rosto. Ficou enfurecido.

Nunca imaginei vê-lo daquela forma. Agitava-se de um lado para o outro, como se estivesse

procurando uma solução ou algo para fazer, que lhe livrasse daquele peso. Por fim, jogou em cima

de mim as minhas roupas e pediu que eu me vestisse. Quando eu já havia me vestido, Edward - que

não parava de me observar um só segundo – perguntou, por fim: Não brincaria com uma coisa séria

dessa, não é? Sua voz estava trêmula e confusa. Claro que não, por que eu faria isso? Acabou de

dizer-me que nada poderá intervir entre nós, Edward! Juntos seremos invencíveis, fortes. Mas,

separados, não seremos ninguém – eu lhe disse. Fui muito ingênua, pai. Achei que o amor pudesse

vencer qualquer barreira. Também tinha um conceito diferente e fantasioso do que é ser uma bruxa

de verdade. Eu achava que eu tinha poderes mágicos, que podia usá-los para fazer qualquer coisa.

Pela primeira vez durante aquela viagem, vi minha ancestral chorar como uma criança precisada

de colo. Comecei a entender por que ela queria tanto mudar o destino de seu pai: não por ela, mas

para tentar ajeitar as coisas e não ver seu pai ser torturado até a morte por causa de um deslize dela.

Na vida, temos que ter muita certeza do que estamos por fazer, pois, no futuro, as consequências

podem ser drásticas devido a erros que nunca poderão ser consertados.

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O segredo dos girassóis

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Observei Shaara chorando com as mãos no rosto e percebi que seu pai, embora a amasse, estava

indignado e decepcionado com tudo que ouvira da boca da própria filha. Confesso que não teria

coragem de ousar tanto em relação às minhas intimidades com meu pai.

Minha ancestral cometeu três pecados graves: a ira, pois se vingou de seu pai sem ao menos

tentá-lo compreender; a luxúria, pois, embora amasse Edward, deitou-se com ele somente por

vingança; e o mais grave: invadiu o passado e tentou ser mais que Deus, tentando mudar o destino de

outra pessoa. Com isso, o universo irou-se contra ela da maneira mais cruel possível. Continuei em

silêncio e a deixei terminar aquela história, que já estava me assustando, pois temi por mim naquele

momento. Temi por perceber que eu é quem iria ter que resgatar aqueles erros de Shaara. Ela

continuou a história:

_ Edward olhou-me nos olhos como se fosse um mostro e disse: Shaara, lembra-se de que lhe

disse que fui promovido a um cargo de extrema confiança? Respondi-lhe Sim, amor, eu me lembro,

mas não vejo em que isso poderia intervir entre nós e o nosso amor. Ele anunciou: Recebi ordens

vindas do vaticano de ficar no lugar do novo chefe da guarda, sou o novo capitão da guarda real.

Fui à sua direção para abraçá-lo, pois queria que ele soubesse o quanto eu estava feliz por ele. Mas

ele me empurrou para longe de si e prosseguiu: Não é só isso. Também recebi outro cargo de muita

confiança por ter sido sempre devotado à Santa Madre Igreja. Que bom, eu agora era a noiva de um

homem de poder - tentei ironizar. Fui até ele, tentando abraçá-lo. Edward afastou-se de mim

abruptamente e, naquele momento, não me pareceu mais tão seguro do nosso amor. Em um tom de

voz áspero, falou: Shaara, nem de brincadeira fale uma coisa dessas. Pois eu teria que mandar

prender você e seu pai, e todos os seus bens teriam que ser confiscados. Seus criados teriam que ser

torturados e mortos por ordem da Inquisição. Eu disse que não o estava entendendo. O que teria

minha família, meus bens e meus criados a ver com o seu novo cargo? Sou o novo inquisidor. Até

que o vaticano envie um inquisidor substituto para este condado, serei o responsável por manter a

lei e a ordem nesta região, ele me respondeu. Senti como se tivesse perdido o chão, pai. Nunca

imaginei passar por uma situação como aquela: eu havia me entregado ao meu algoz. É realmente

incrível o quanto as coisas mudam da noite para o dia. Meu sonho de amor tornou-se um pesadelo.

Eu estava sem saber o que fazer. Fiquei ali em pé, na frente de Edward. Hoje percebo o quanto errei.

Vejo que nada somos quando tentamos ser arrogantes e passar por cima de Deus, tentando antecipar

o nosso destino. Depois de algum tempo calados, apenas perguntei: O que um inquisidor iria querer

aqui em San Marino? O que há de tão especial em um pequeno condado como o nosso? Creio que a

Inquisição tem coisas muito mais importantes para investigar. Ele me explicou que havia boatos de

que bruxas fugitivas de Salém estavam escondidas no grande bosque e que, em nome do demônio,

estavam praticando feitiços e abominações. O último inquisidor havia morrido e diziam ter sido obra

de um feitiço poderoso, praticado pela bruxa Mercedes. Essa lhes estava dando muito trabalho para

ser capturada, pois se escondia no meio da mata virgem. O último feitor que tentara ajudá-los

desapareceu misteriosamente. Então, eu lhe disse: Porque as pessoas são diferentes não quer dizer

que estão possuídas pelo demônio. Já ouvi falar dessa tal Mercedes, dizem que veio de Salém, no

Norte da Inglaterra. Para mim, tudo nunca passou de mexericos e sandices de pessoas ignorantes.

Eu mesma sempre gostei de ler livros místicos. Confesso já ter consultado uma cigana. Edward

parou e fitou-me como se não mais me reconhecesse: Está realmente falando sério? Sabe que eu

posso levar isso como uma confissão. Não quero mais ouvi-la. Cale-se, é melhor irmos embora.

Pensei que o seu amor por mim fosse muito mais importante do que essas lendas criadas por pessoas

supersticiosas e fanáticas! Confessei-lhe que minha mãe contara-me, em seu leito de morte, que era

uma bruxa, e que também vi em suas costas a flor de lótus, o sinal das renegadas. Esse sinal tinha

sido marcado pelo inquisidor do qual ele acabara de me falar. Esse homem, Edward, não era um

homem íntegro. Ele colocou esse sinal em minha mãe depois de torturá-la por horas, tentando

obrigá-la a fazer tudo o que ele quisesse. Como ela não se entregou a ele, foi marcada como um

animal. Minha mãe só tinha doze anos, era apenas uma menina e nada sabia de feitiçaria. A família

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de minha mãe segue uma tradição muito antiga, mas nunca fizeram mal a ninguém nesta vida. Ele

quis saber como eu sabia disso, se não convivia com minha mãe, se só estive com ela por algumas

horas durante toda a sua vida. Ele quis saber como eu poderia ter tanta certeza de que ela nunca

praticara feitiçaria. Minha mãe era uma mulher honesta, Edward, de muito boa índole. Nunca fez

mal a ninguém. Quem a conheceu contou-me como ela era. Sabe, Edward, posso não ser experiente,

mas sei muito bem ver nos olhos de uma pessoa quando ela está sendo honesta comigo. E acredite:

vi isso nos olhos da minha mãe. Espero que tudo o que acabei de lhe contar não mude nada entre

nós, Edward; eu o amo demais. Ele insinuou que fiz amor com ele, mas com quantos mais? Disse

que eu não passava de uma mulher mimada, que só quis se vingar do próprio pai por mera pirraça.

Acha mesmo que eu confiaria em uma pessoa que, além de trair a confiança paterna, deita-se assim,

facilmente, com qualquer homem que lhe convide? Acha mesmo que vou acreditar em uma filha de

bruxa?Foi o que ele disse. Acusei-lhe de louco. Disse-lhe que ele havia sido o único homem que tive

em toda a minha vida. E que sempre seria único. Aquilo não faz o menor sentido, eu nunca havia

sido praticante de feitiçaria. Só soube do segredo de minha mãe no seu leito de morte. Disse-lhe que

não levaria em consideração tais palavras rudes, pois sabia que ele estava sendo guiado por uma

revolta insana. Sei como as malditas bruxas agem: enfeitiçam os homens para que não as vejam

como são, demônios de saias – ele concluiu. Perguntei-lhe por que odiava tanto o meu povo. Seu

povo? Então agora confessa também que é uma bruxa? Pois que seja. Sabia que essa raça maldita

destruiu minha mãe? – disse-me, segurando o meu rosto com uma das mãos. Prosseguiu, enfurecido:

_ Quando minha mãe era jovem, uma maldita bruxa enfeitiçou o noivo dela. Minha avó fez de

tudo para mostrar a verdade ao meu pai, mas o pobre homem estava tão cego e enfeitiçado que se

mudou da França, largando minha mãe grávida ao vento. Mas é claro que a senhorita bonequinha

de luxo não sabe o que são essas coisas, não é verdade? Não consegue imaginar o que é estar

grávida aos dezoito anos e ser abandonada à própria sorte, não é? Minha mãe não perdeu o bebê,

como praguejou a maldita bruxa, porque minha avó fez uma promessa de que eu serviria ao Senhor

de alguma maneira. Minha mãe foi uma mulher sofrida e viveu às escondidas, porque ficou mal

afamada perante o povo. Depois de certo tempo, minha mãe conheceu o coronel Sebastian. Embora

o coronel fosse bem mais velho que minha mãe, ele cuidou de nós enquanto viveu. Ele deixou para

minha mãe um pequeno obséquio, que ela guardou para me ajudar nos estudos, mais tarde. O

coronel era um homem de muitos conhecimentos, embora não tivesse muitas posses. Foi graças a ele

que estudei no melhor colégio militar da Europa. E foi com muito esforço que me tornei, mais tarde,

o capitão da guarda real na Inglaterra, até ser transferido para cá. E, por fim, caí aqui em San

Marino. Nesse pequeno vilarejo, cheio de contos e lendas sobre as bruxas fugitivas de Salém. No

início, não dei ouvidos, pois pensei serem apenas histórias contadas pelos aldeões. Mas, com o

passar dos meses, pude observar que coisas estranhas estavam acontecendo com frequência. Como,

por exemplo, mulheres que se esfriavam no leito conjugal; pessoas que desapareciam no meio da

floresta, sem deixar rastro. O leite do gado de alguns fazendeiros começou a talhar, e isso acontecia

a cada Lua cheia. As crianças de Salamanca estavam nascendo com deformidades, ou morriam na

hora do parto. Algumas mulheres não conseguiam gerar um filho homem, como é o desejo de todo

patriarca. Foi então que a Igreja resolveu investigar minuciosamente, em sigilo, todos esses fatos

ocorridos. Depois de uma detalhada investigação, foi descoberto que tais fatos eram verídicos.

Vários suspeitos estão sendo mantidos sob investigação, e alguns são interrogados constantemente

para que confessem seus crimes. No corpo de algumas mulheres, já foi achada a marca do demônio.

Um especialista em desvendar fatos como esse está aqui, em sigilo, investigando os hereges. Houve,

também, alguns suicídios misteriosos e sem causa aparente. Até mulheres com três mamilos foram

encontradas e estão sendo interrogadas diariamente em masmorras. Ainda não conseguimos

encontrar a feiticeira Mercedes, mas é só uma questão de tempo. Escravos fugiram e jamais foram

encontrados. Soubemos que uma velha senhora presenciou um ritual no meio da mata enquanto

juntava lenha. Ela teve sorte de não ter sido capturada pelas feiticeiras. Tudo isso que acabei de lhe

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contar é prova de que o demônio tem usado as mulheres de San Marino. A Inquisição não perdoa,

Shaara.

_ E o que isso tudo tem a ver com nós dois? – perguntei-lhe, pai. As pessoas têm problemas

todos os dias. Algumas não conseguem superar as suas dificuldades e acham que o suicídio é a

solução. Essas pessoas são doentes, carentes e solitárias, Edward. Escravos fogem e vão para os

quilombos, porque já estão fartos de serem torturados por seus senhores. Eles fazem isso na ânsia

de acharem a liberdade. Todos já ouvimos boatos que há quilombos por toda a Europa. Quanto ao

leite que azeda, é devido ao calor e a falta de cuidados. Pessoas com deformidades nascem todos os

dias, Edward. Isso não quer dizer que sejam marcadas pelo diabo só porque são defeituosas. E se as

mulheres estão esfriando com seus maridos, creio que eles deveriam começar a tratá-las melhor.

Somos mulheres, Edward, não somos seus animais de estimação. E se os bebês estão morrendo na

hora do parto, talvez algumas mulheres devessem parar de usar espartilho durante a gravidez. Não

estou dizendo que são todas, mas sabemos que algumas senhoras não tiram nunca os espartilhos.

Isso pode ser o preço da vaidade. E de que marcas estranhas está falando, afinal? De pintas ou

manchas? Ora, Edward, francamente... Pensei que fosse um homem mais inteligente. Não entendo

como isso tudo está relacionado com a nossa vida. A vida que nós planejamos durante esses dois

longos anos juntos. E quanto às bruxas, Edward, elas são pessoas normais como nós. Nada têm a

ver com os contos e fábulas que circulam em torno delas. Acho que deveria mudar esses conceitos

antigos e preconceituosos sobre as pessoas. Só porque algumas são diferentes de nós, não quer dizer

que sejam seguidoras do diabo. Se cada um - não apenas nesta cidade, mas neste mundo em geral -

deixasse de querer obrigar as pessoas a serem iguais a elas, o mundo seria muito melhor. Viver,

Edward, é aprender a conviver com as diferenças - sejam quais forem.

_ Shaara, quando a minha mãe faleceu, ela me fez prometer que acharia a bruxa que enfeitiçou

o meu pai. Aquela mulher destruiu a vida da minha mãe, e a minha também. Ela destruiu os sonhos

da minha mãe de ser mãe de novo. Minha mãe faleceu durante o parto, junto ao meu irmão, de uma

doença misteriosa e sem explicação. Eu tinha apenas seis anos, Shaara, e vi minha mãe gemendo de

dor, suplicando pela morte. Ela me fez jurar, em seu leito de morte, que a vingaria, procurando e

matando a bruxa que fez aquilo com ela. Não sou homem de quebrar uma promessa.

_ Isso é uma tolice, Edward! Creio que nem deva saber o nome dessa suposta bruxa!

_ Pai, no fundo eu não queria ouvi-lo mencionar o nome de minha mãe. Pois, depois que me

contou que estava perseguindo a tia Mercedes, eu me recusava a acreditar que alguém pudesse

mentir sobre minha mãe daquele jeito. Mas deixei que ele continuasse.

E Shaara prosseguiu, contando ao seu pai o diálogo que teve com Edward, como se o estivesse

revivendo. Seu pai apenas a ouviu, sem interferir:

_ Sim, eu sei, Shaara. - disse Edward, com os olhos fixos nos meus. Seu nome é Elizabeth

Méquiz. Essa foi a mulher que enfeitiçou meu pai e amaldiçoou minha mãe, para que ela morresse

como morreu.

_ Fiquei ouvindo-o sem mais conseguir falar. Pasmei-me ao ouvi-lo pronunciar o nome de

mamãe, daquele jeito tão cruel e fraudulento. Por fim, depois de engolir a seco aquelas palavras,

perguntei:

_ Sua mãe é Escarlate Mennellet?

_ Sim, esse é o nome da minha mãe. Como sabe o nome dela? Não me lembro de ter

mencionado seu nome para ninguém, pois tenho evitado lembrar-me de minha mãe. Ainda dói na

minha frente a forma com a qual ela morreu. Onde ouviu mencionar o nome dela?

_ Edward ficou curioso e trêmulo. Então, falei:

_ Estive por horas no quarto de minha mãe antes que ela partisse, como já mencionei. Foi ela

quem me contou sobre a sua mãe.

_ Edward empalideceu e encostou-se em um monte de feno. Tapou a boca com as mãos. Ele

parecia não querer acreditar, mas prossegui:

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_ Sim, Edward, sou a filha de Elizabeth Méquiz, a bruxa que mencionou em sua suposta versão,

ainda há pouco. Esse era o nome de solteira de minha falecida mãe. Agora que me contou a sua

parte da história, espero que ouça também a minha.

_ Antes que Edward tivesse uma reação inversa a que estava tendo, prossegui com a conversa,

pois percebi que ele estava sem voz. Aquele era o momento de saber alguns fatos e tentá-los

encaixar. Então, perguntei-lhe:

_ Como exatamente sua mãe faleceu, Edward? Diga-me sem mentir para mim.

_ Nunca minto. O que te contei é o que aconteceu.

_ Edward estava meio tonto, mas prosseguiu:

_ Os doutores não conseguiram identificar a doença dela. Eu só sei que seu corpo encheu-se de

tumores horríveis. Seu sofrimento foi inigualável, ela não merecia aquilo. Como lhe contei, minha

mãe morreu com o meu irmão, durante o parto. Por causa de uma bruxa maldita, perdi minha

família. Fui criado por minha avó e pelo coronel Sebastian. Não tem ideia do que é ser criado por

um homem que não é o seu pai, e que vive o tempo inteiro ditando regras militares. Eu vivia mais

interno em um colégio do que dentro da casa materna. Tenho gratidão ao coronel Sebastian, mas

confesso que ele era cruel comigo. Fui um rapaz solitário e não tive amigos. Meu único objetivo era

vingar minha mãe.

_ Ouvindo aquelas palavras amarguradas de Edward, eu disse, muito entristecida: Meu Deus, é a

lei do retorno. Minha mãe estava certa. Ele desconhecia a lei e tive de contar a minha história:

_ Minha mãe me contou que, antes de se casar com o meu pai, ele tinha se envolvido com várias

outras mulheres. Entre elas, uma jovem ambiciosa dançarina, cujo nome era Escarlate Mennellet.

Sinto muito por tudo que tenha vindo passar.

_ Percebi o desgosto de Edward, e o desespero dele por pensar que éramos irmãos. Mas, antes

que ele abrisse a boca, prossegui:

_ Meu pai terminou com a sua mãe assim que conheceu a minha mãe. Sinto muito, Edward, mas

a sua mãe mentiu muitos fatos. Sua mãe perturbou a vida de meu pai e de minha mãe enquanto ela

viveu. E foi a sua mãe quem jogou um feitiço na minha. Logo depois que eu nasci, minha mãe caiu

de cama com lepra, Edward. Minha mãe passou vinte anos em cima de uma cama, isolada do mundo

por causa da maldita doença. Ela nunca pôde pegar-me no colo, nunca pôde ver-me dando os

primeiros passos. Sinto muito, mas sua mãe mentiu, pois foi ela e sua avó quem recorreram a um

terrível sortilégio para matar minha mãe. A lepra de minha mãe, Edward, era um feitiço feito por

uma bruxa que morreu misteriosamente, logo após fazer o sortilégio. Foi sua família a causadora do

sofrimento da minha. Eu podia odiá-lo por isso e muito mais, mas o meu amor por você faz-me ver

que não somos culpados pelos erros de nossos pais. Estamos tendo uma chance de mudar todo esse

mal com o amor que sentimos um pelo outro; a chance de viver feliz e corrigir tudo o que nossos

pais fizeram de errado.

_ Mas Edward estava cego e não ouviu uma só palavra do que eu disse. E prosseguiu:

_ Do que está falando? Você quer tentar confundir-me com sua bruxaria maldita. Jurei que

destruiria toda a sua raça desgraçada. Não vou voltar atrás. Meu Deus, você sabia quem eu era e

nem se importou de sermos irmãos?

_ Edward, não somos irmãos. Sua falecida mãe havia se envolvido com outro homem antes de

tramar contra o meu pai.

_ Contei-lhe exatamente o que mamãe me havia dito. De repente, vi cair de joelhos aquele

homem que parecia ser de ferro. Ele chorou incessantemente, pai, e gritava como se sentisse ódio e

dor ao mesmo tempo. O desespero de Edward era tamanho que eu não soube como ajudá-lo. Percebi

que ele estava guardando aquela mágoa dentro dele há muito tempo, e que precisava pôr para fora de

alguma maneira. Tentei tocá-lo, mas ele me empurrou abruptamente. Fiquei sem saber como agir.

Por fim, ele disse, entre dentes:

_ Por que, Shaara? Por que você me enganou? Como pôde fazer isso comigo?

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_ Seus olhos eram tristeza e dor. Tentei dizer-lhe, novamente, que não tinha culpa e que só

soube dos segredos de minha mãe em seu leito de morte. Mas todas as minhas tentativas foram

inúteis. Ele parecia estar com nojo de mim. Era como se eu tivesse contraído uma doença. Então, ele

me expulsou da frente dele. Foi o momento mais difícil da minha vida:

_ Vá embora da minha frente! Preciso pensar no que farei com você. Quero ficar sozinho.

_ Amor, sou a mesma pessoa... Podemos lutar juntos e não contar nada. Ninguém saberá. Foi

assim com o meu pai: ele aceitou minha mãe, e o amor dos dois superou tudo - até mesmo a doença

dela. Se quiser, nem mesmo leio o livro que minha mãe me deixou. Posso renegar tudo por você,

Edward. Nada me importa, só o nosso amor. Eu o amo! Faça o que quiser, mas não me tire de sua

vida, pelo amor de Deus. Não me deixe. Eu não saberia viver sem você, não mais.

_ Eu a desprezo, sua bruxa mentirosa. Sei que nunca deixará de ser uma bruxa.

_ Nisso ele estava certo. Eu nunca deixaria de ser eu mesma. Mudamos com o passar dos anos,

adquirindo experiência, sabedoria e rugas com a idade. Mas nossa essência nunca muda. Ele estava

exaltado e cada vez mais rude com as palavras, e continuou a me ofender:

_ Como você quer que eu ame a filha da mulher que matou a minha mãe? E seu pai, um maldito

canalha sem coração. Nada que me contou vai mudar o desprezo que sinto por sua família. Verdade

ou mentira, agora os odeio mais ainda. Desprezo você e toda a sua raça. Sei muito bem que está

tentando me iludir, para salvar seu pai e a você mesma. Saiba, Shaara, que estou preparado para

enfrentar seus feitiços. Arrede-se de mim, satanás! Esconjuro-a em nome de Deus!

_ Edward, acabamos de fazer amor! Não quero ouvir isso. Sei que está fora de si, que ficou

enfurecido e louco pelo ódio que o consome. Não são sinceras essas palavras. Sei que irá pensar

com calma e cair em si.

_ Tem razão: deitei-me com uma mulher, mas fui iludido. Pois, na verdade, eu estava me

deitando com o próprio diabo disfarçado. Você usou o seu próprio corpo para tentar me enfeitiça. -

olhou-me de cima abaixo, com desprezo. Edward estava transtornado, parecia outra pessoa. Nunca o

havia visto daquela forma antes. Ele continuava falando como um louco. Eu só queria fugir para bem

longe:

_ Usou-me! Fui um tolo e ainda acreditei em sua castidade.

_ Ele começou a revirar os lençóis e disse:

_ Não era mais virgem! Não há sangue nos lençóis. Sua bruxa maldita! Queria que eu me

casasse com você para amaldiçoar a minha vida. Você já era usada, sua imunda! Acha mesmo que

me casaria com uma mulher já usada?

_ Esbofeteei-o; ele me revidou. Coloquei a mão no rosto e o olhei-o nos olhos: eram puro ódio.

Nada mais pude fazer em relação a Edward. Senti o sangue jorrar em minhas narinas e disse:

_ Juro por tudo que há de mais sagrado nesta vida, Edward: um dia hei de vê-lo chorar

lágrimas de sangue, como as que escorrem de minha face agora. Está cometendo uma injustiça e, o

que é pior, não quer ver que sua mãe é que é a culpada por isso tudo. Aquela maldita, mesmo depois

de morta ainda consegue perturbar a vida da minha família! Mas hei de vê-lo ajoelhado e

arrependido. Há alguns minutos, dizia que me amava, que eu era a mulher da sua vida. Agora me

trata como qualquer mundana. Não o conheço mais, Edward, não sei quem é. Imaginei uma pessoa

completamente diferente, mas eu deveria saber que de um maldito inglês não poderia vir boa coisa.

Principalmente quando esse inglês traz consigo o nome Mennellet.

_ Limpe a sua maldita boca quando mencionar o nome da minha família. Se a senhorita tivesse

tido uma mãe, ela lhe teria ensinado que não deveria acreditar em tudo que ouve, principalmente de

um homem quando quer conseguir o que eu consegui. Por Deus, mulher, achou mesmo que eu iria

me casar com você? Deito-me todos os dias com mulheres do seu tipo. Ora, Shaara, sabe que nunca

foi a santinha que se dizia ser. Você foi ágil demais para uma primeira noite com um homem. Tê-la

em meus braços foi como ter uma simples meretriz.

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_ As lágrimas começaram a escorrer e saí correndo como louca, para não deixá-lo perceber

minha fraqueza. Eram oito da manhã e o cocheiro estava me esperando, no mesmo lugar de antes.

Estava sem ar e tonta. Subi na carruagem, sem olhar para trás. Queria esquecer que Edward existia.

O cocheiro veio à janela da carruagem e perguntou-me se estava tudo bem. Pedi-lhe que me levasse

a uma pensão. Não podia voltar para casa do meu pai, não poderia lhe causar tamanho desgosto.

Mas, com o passar do tempo, comecei a me sentir mal e a dona da pensão, contra a minha vontade,

chamou o senhor. Voltei para casa a contragosto, o senhor sabe. Deixei-o pensar que estava doente

até ontem, quando desmaiei novamente e o doutor contou-lhe a verdade. Agora o senhor sabe toda a

verdade, pai. Não quero que tome nenhuma atitude drástica. Não quero que se vingue de Edward.

Ele também é uma vítima dos erros do seu passado.

_ Sim. Eu deveria ter eliminado essa maldita família quando tive a oportunidade. Nada do que

você me disse muda o ódio que sinto por esse homem e a mãe dele. Penso que ele se fez de vítima

para você. No fundo, ele já sabia que era a filha de Elizabeth. O tempo inteiro ele fez tudo pensando

em vingança. Esse mau caráter seduziu-a de caso pensado. Não posso deixar isso da forma como

está. Tenho que tomar uma atitude em relação a isso tudo.

_ Pai, por favor, contei-lhe tudo exatamente como aconteceu para que o senhor tivesse uma

noção de que a nossa família também teve culpa de tudo o que houve com Edward.

_ Shaara, em que tivemos culpa? Só porque cometi o erro de me envolver com aquela mulher

em minha juventude, agora tenho que pagar o preço pelo resto da minha vida? Olhe só para você

agora: está grávida daquele bastardo! Acha mesmo que posso deixar tal situação no esquecimento? E

onde fica a minha postura de homem? Sinto muito, Shaara, não posso atender ao seu pedido dessa

vez. Prometo lavar sua honra com sangue - e isso é indiscutível.

_ Pai, pelo amor de Deus, não faça isso! Edward é um homem poderoso. Vai trucidá-lo.

Shaara tentou modificar o seu destino e salvar a vida de seu pai, contando-lhe tudo na tentativa

de que, se ele soubesse a verdade, perceberia que ela foi a culpada por tudo o que Edward lhe fizera.

Só que Shaara se esqueceu de uma coisa: não se pode mudar o destino.

Fiquei ali, em pé, percebendo o desespero de Shaara. Seu pai saiu daquele aposento, deixando-a

sozinha e chorando desesperada. Parecia que todo o peso do mundo havia caído sobre ela. A dor

tinha-a transformado em um verdadeiro flagelo humano. Os erros de Shaara foram muitos e, naquele

momento, todo o universo estava de costas para ela. Compreendi que Shaara foi a única responsável

por toda a sua desgraça.

Os valores que nos são impostos por nossos pais deveriam ser encarados como uma aula básica,

e não como um martírio constante. Mas só percebemos isso quando os problemas surgem para nos

pesar o pensamento.

Shaara desceu e tentou uma última conversa com o pai, que estava apeando o cavalo.

_ Pai, por favor, eu lhe imploro: não faça essa loucura! O senhor não tem ideia do que vai lhe

acontecer.

O pai de Shaara fitou-a nos olhos e disse:

_ Soube desde o instante em que ouvi no vilarejo, pela primeira vez, que ele era o procurador do

rei, e que ficaria no lugar de inquisidor até que Mercedes fosse capturada. Desse dia então, soube que

os dois jamais poderiam ficar juntos, porque nem todo mundo a entenderia, Shaara. Desde que você

nasceu, sabíamos que seria diferente, por causa da origem de sua mãe. Sonhava uma vida de

felicidades para você ao lado de um bom homem, mas o capitão Edward apareceu nem sei de onde, e

foi impossível evitar que ficassem juntos. Sua mãe e eu conversávamos sobre seu futuro. Ela sempre

dizia que não cabia a mim mudá-lo, pois já estava traçado no dia em que foi concebida em seu

ventre. Então, está feito. Parece que sua mãe estava certa mais uma vez.

_ Pai, por que não me contou antes?

_ Você nunca me deu tempo. Depois, fugiu na calada da noite, sem explicações. Só Deus sabe o

quanto eu sofri, procurando-a por todos os lugares.

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

63

_ Pai, perdoe-me!? Fiquei furiosa por ter me batido. Queria me vingar. Estava confusa, e

Edward parecia me amar tanto... Naquela hora, pareceu que era o certo a se fazer. Pensei que nos

casaríamos e que, quando voltássemos, o senhor nada poderia fazer para nos separar. Fui uma tola e

insensata!

_ Não, filha, eu não deveria ter perdido a cabeça com você. Eu estava furioso comigo mesmo,

pois não pude salvar sua mãe e estava perdendo-a para um homem estranho. Eu deveria ter me

controlado e conversando com você. Por isso, tenho que consertar esse erro à minha maneira agora.

_ Pai, pela última vez, escute o que estou lhe dizendo: Edward está louco. Prometeu se vingar de

mim e do Senhor.

_ Não se preocupe, Shaara, esse canalha não lhe tocará enquanto eu estiver vivo. Ele vai pagar

por tudo que lhe fez. Eu já deveria ter extinguido essa raça maldita há tempos.

Shaara percebeu que não importava o quanto ela argumentasse: não adiantaria, seu pai estava

decidido a vingar a sua honra a duras penas. Ele montou em seu cavalo e saiu em disparada,

deixando Shaara desesperada e aos gritos.

Ela voltou para dentro da casa e subiu para seu quarto. Parecia não querer ver ninguém naquele

momento de aflição. Ela agora sabia que era a culpada pela morte de seu pai, e não tinha mais como

voltar atrás. Abriu o quarto e trancou-se. Em seguida, aproximou-se da cama, deixou o corpo cair

pesado. Esticada na cama, com os braços abertos, sentiu algo e levantou-se para ver o que era: o

livro das bruxas. Shaara, então, começou a folhear aquele livro e caiu em si. Percebeu o enorme erro

que havia cometido. Ela havia ido contra todos os princípios da magia, quando tentou interferir no

destino de outra pessoa e no seu próprio. Com isso, ela gerou um grande conflito com o universo.

Isso lhe causaria uma catástrofe maior do que a que ela já haveria de passar.

Naquela hora, o vento entrou pelo quarto de Shaara e ela soube que algo de errado havia

acontecido. Os olhos de Shaara percorreram o quarto, em busca de alguma resposta invisível. Foi à

janela e respirou, de olhos fechados. O cheiro que o vento trazia era de morte. Ela pôs as mãos nos

olhos e chorou profundamente. Era como se ela quisesse que sua alma pedisse perdão ao universo.

A criada de Shaara que se chamava Gina estava na varanda e olhava o horizonte, como se

estivesse muito preocupada. Mesmo quem não tivesse uma mediunidade formada sabia que algo

estava errado, pois o tempo estava demonstrando suas alterações.

As horas tornaram-se um suplício, e os minutos pareciam não passar. Shaara já estava na

varanda havia horas, esperando pelo retorno de seu pai, até que ao longe conseguimos avistar um

homem. Ele estava arriado sobre o cavalo e parecia muito ferido. Gina, a governanta, deu um grito

de pavor. Ambas correram para socorrer o pobre homem. As indagações começaram:

_ Quem é o senhor, onde está meu pai?

_ Corra, Gina, vá chamar Tobias, o nosso capataz. Peça para chamar o doutor Tostes.

_ Sim, senhorita.

Quando o médico chegou, horas depois, examinou o homem minuciosamente e disse:

_ Sinto muito, minha filha. Este homem não tem muito tempo mais de vida. Parece que algum

instrumento agudo perfurou-lhe o pulmão. É um verdadeiro milagre que ele tenha conseguido chegar

até aqui.

Shaara olhou fundo nos olhos do homem, segurou o rosto dele com as mãos e falou:

_ Preste muita atenção, caríssimo senhor: tem que me dizer onde está o meu pai. O que o senhor

veio fazer aqui?

O homem mal conseguia abrir os olhos, mas parecia ter a necessidade de contar o paradeiro do

pai de Shaara. Ele levantou a cabeça lentamente e apenas pronunciou as seguintes palavras:

_ O senhor Gonzáles está preso para prestar depoimentos. O capitão Edward enviou-lhe o

seguinte recado: que a senhora se entregue, ou o senhor Gonzáles irá sofrer as consequências em seu

lugar.

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Shaara perdeu a cor e só não caiu porque foi amparada pelo capataz. Era difícil de acreditar que

Edward havia chegado a tanto. Em seguida, o homem entregou nas mãos de Shaara uma carta, onde

estava escrito:

San Marino, 20 de agosto de 1814 - Espanha.

Shaara, minha filha, ao ler este bilhete estarei em perigo, mas confio em você e sei que irá

tomar as providências para me tirar desta prisão em que me encontro. Vá até o meu quarto e veja

debaixo de minha cama. Lá irá encontrar uma tábua solta, onde guardo uma pequena quantia em

dinheiro. Pegue este dinheiro e arrume homens de confiança. O resto deixarei em suas mãos. Envie

uma carta à sua tia Mercedes. Para isso, deve ir até a casa do sapateiro e apenas dizer-lhe que

preciso de ajuda. Não se preocupe, filha. Ele saberá como proceder.

Arrume os suprimentos e pague os criados. Se alguns quiserem ir com você, será melhor. Mas

os avise do que se trata, para que por si possam tomar suas próprias decisões. Não tenho a menor

intenção de deixar nada para esses porcos covardes. Que fiquem com minhas terras e todo o resto.

Não me importo, quero apenas que você fique bem.

Confio em você. Sei que não irá me decepcionar.

Juan Gonzáles.

Shaara olhou para o homem que estava em seus braços e ele havia falecido. Sem saber o que

fazer, minha ancestral entregou o corpo para que o capataz tomasse as providências cabíveis. Em

seguida, Shaara levantou-se e foi ao quarto de seu pai, onde achou o dinheiro guardado no exato

lugar mencionado. Procurou pelas joias da família e pelas suas. Guardou esse pequeno tesouro em

um pequeno baú. Shaara foi até o armário de seu pai e vestiu umas roupas dele. Em seguida, desceu

as escadas e pediu que chamassem todos os criados, onde lhes passou todo o fato ocorrido, como lhe

havia pedido seu pai.

Pediu ao capataz que juntasse alguns escravos e fosse com ela até a cidade. Enviou um bilhete

através de um dos escravos para sua tia Mercedes. Feitas todas essas coisas, seguiu com o capataz

para a cidade.

Shaara tentou invadir, durante a noite, a prisão onde se encontrava seu pai, mas, não

conseguindo, prometeu que voltaria no dia seguinte com mais reforços.

Ao chegar à sua casa, a Lua já estava alta no céu. Shaara estava exausta, mas se surpreendeu

com a visita inesperada que havia recebido. Com um sorriso que mais parecia de alívio, disse:

_ Tia Mercedes!

Shaara abraçou aquela mulher como se quisesse proteção. Ambas conversaram muito durante

toda a noite. Não poderiam dormir, tinham muitas providências a serem tomadas. O dia estava

raiando quando o capataz veio avisar que tudo já estava pronto para a viagem. Ele prosseguiu,

dizendo:

_ Senhorita, quero falar em nome de todos os criados e escravos de sua fazenda.

_ Bom, homem, diga! - disse Shaara, parecendo surpresa e curiosa.

_ Por tudo que sua família foi para nós, não queremos ficar, queremos partir com a senhorita.

_ Não sei se posso deixar que venha, meu querido Jorge. O risco é muito grande e ainda temos

que salvar meu pai da prisão. Isso pode ser muito perigoso. O inquisidor poderá acusá-los também de

traição por complô junto a mim.

_ Se ficarmos, senhorita, seremos todos trucidados. A Inquisição não vai nos ouvir. Seremos

culpados e correremos risco de morte. Preferimos correr o risco de fugir e poder lutar por nossas

vidas.

_ Sendo assim, agradeço-lhes. Sejam bem vindos! Agora temos que nos preparar para irmos

resgatar meu pai.

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_ De jeito nenhum! Não permitirei que parta em uma missão perigosa dessas, no estado em que

se encontra. - disse Mercedes, preocupada com a gravidez de Shaara.

_ Senhorita, não gosto de me intrometer em assuntos de família, mas sua tia está certa. Se algo

der errado e uma bala atingir a senhorita, pode colocar não só as nossas vidas em risco, mas também

a vida da pequena criança que está por vir. Creio que seu pai não concordaria com isso. Acho que

devemos todos nos colocar em segurança e, depois sim, voltaremos para fazer o resgate de seu pai.

Pense um pouco, senhorita Shaara. Creio que o inquisidor não fará nada com o seu pai. Afinal, ele

deu um prazo e espera que a senhorita se entregue de livre e espontânea vontade. Isso nos dará tempo

de agir.

Muito a contragosto, Shaara concordou em fugir com a tia, os criados e escravos. Foi assim que

Shaara nunca mais viu ou teve notícias do pai. Mercedes e os demais não deixaram Shaara sair da

floresta. Com isso, Dom Gonzáles morreu sob tortura, acreditando que a filha o havia traído. Shaara,

naquela viagem, tentou mudar este fato, mas sua atitude conseguiu piorar a situação do pai.

Shaara, então, resolveu voltar daquela viagem. Ao despertar, chorou como louca ao se ver em

um calabouço sujo e molhado.

A porta da sela abriu-se, mas Shaara estava tão triste que parecia não ouvir nada à sua volta. Ela

sequer levantou a cabeça quando um homem, encapuzado e acompanhado por dois soldados,

aproximou-se dela. Por fim, ele, percebendo que Shaara não o havia notado, disse:

_ Gostando das acomodações? Responda-me, bruxa maldita!

Depois de ter recebido um chute nas costelas, Shaara levantou a cabeça para olhar o seu algoz e

falou:

_ O que foi que eu lhe fiz para me tratar deste jeito? Já não me humilhou o bastante, capitão?

Quer que eu confesse? Creio que isso não seja necessário, pois já sabe que sou uma bruxa e não

tenho a menor intenção de negar minhas origens.

O capitão puxou Shaara, fazendo com que ela ficasse de pé abruptamente. Ela deu um gemido

de dor, pois seu corpo estava todo machucado. O capitão Edward puxou Shaara para junto de si e

tocou-a intimamente. Ela tentou recusar, mas o capitão era muito mais forte. Ele parecia um animal

enfurecido e, depois de dispensar seus soldados, disse:

_ Eu sei do que e como gosta de ser tocada, sua imunda.

O capitão estava com a mão no pescoço de Shaara, impossibilitando-a de reagir. Depois de

rasgar-lhe as vestes, violentou-a da maneira mais repulsiva já imaginada. Depois, jogou-a como um

monte de trapos velhos para o lado, e chorou como uma criança desorientada. Shaara ficou em um

canto, tremendo e apavorada, sem saber o que fazer. Por fim, o capitão falou:

_ Quando foi decretado o pedido da sua prisão, fiquei desesperado em saber que poderia perdê-

la para sempre. Então, corri como um louco para tentar resgatá-la antes que os meus soldados a

levassem. Mas chegando à sua casa, percebi que já havia fugido. Fiquei louco e enfurecido. Pensei

que havia fugido com outro homem. Procurei-a por todos os cantos desta terra, mas foi em vão. Eu

mesmo disse a seu pai que a filha o tinha abandonado e o traído, na esperança que ele a entregasse.

Então, depois de muito torturá-lo, seu pai suicidou-se dentro da prisão. Sim, Shaara, seu pai morreu

acreditando que era uma traidora. Eu queria que ele odiasse a filha por traição e que sentisse na pele

o que é ser abandonado por alguém que se ama. Seu pai confirmou-me a sua história em relação à

minha mãe. Eu estava louco pelo ódio e pela vingança, Shaara.

Eu não conseguia sentir pena do capitão. Ele era um covarde, mas percebi que Shaara estava

comovida, porque sentia arrependimento naquele homem. Ela estava muito fraca, mas prosseguiu

com aquela conversa, dizendo:

_ Edward, nunca o traí, nunca. Você foi um covarde em punir meu pai daquela forma. Não sabe

o que fez! As pessoas cometem erros na vida, e o meu maior erro foi ter fugido e não ter lhe contado

toda a verdade.

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O capitão Edward parou e ficou olhando Shaara, parecendo não entender o que ela estava

tentando dizer. Era como se uma espécie de transe tivesse tomado conta daquele rosto enfurecido.

_ De qual verdade está falando?

_ Do nosso filho, Güillian. Ele está na cela junto a uma das mulheres.

De carrasco e inquisidor, tornou-se vítima de si mesmo. Depois, caiu em desespero, chorando

sem cessar. Num tom de desabafo, ele disse:

_ O que foi que eu fiz com a gente? Perdoe-me, Shaara... Agi como um insano e agora nada

posso fazer para reverter essa história.

_ Eu já o perdoei, Edward, nada mais me deve. Só lhe peço que salve nosso filho! Como lhe

disse certa vez, a nossa consciência é nosso próprio algoz. Somos os únicos responsáveis por nossos

atos. Ninguém nos obriga a fazer nada.

_ Machuquei-a, Shaara, e isso não tem perdão.

_ Machucou-se a si mesmo, Edward. Quando me violentou agora há pouco, era com você que

estava fazendo aquilo. Todo o mal que fazemos contra nosso próximo fazemos contra nós mesmos.

Prova disso é só olhar para você e ver como está se sentido péssimo.

_ Perdoe-me, suplico!

O capitão pôs-se de joelhos na frente de Shaara. Mas ela lhe respondeu, friamente:

_ O perdão pertence somente a Deus. Minha palavra só serviria de consolo, nada mais. Terá que

dormir todos os dias com isso em sua consciência. Mas sabe o que foi pior nisso tudo, Edward? É

que você fez tudo sabendo que estava errado. Quem sabe se algum dia, quando meu aparelho

reencarnar em algum lugar próximo a você, terá a oportunidade de me rever para que, juntos,

possamos resgatar esse sentimento de maneira mais verdadeira e humana. Até lá, espero de você

apenas uma coisa: salve o nosso filho.

_ Acredita mesmo que haja outras vidas, não é?

_ Sim, é claro que sim. Vivi esse tempo todo por causa da minha esperança de que um dia

iremos ter a chance de resgatar essa história. Não podemos, Edward, acreditar que exista apenas uma

vida e nenhuma chance de corrigirmos nossos erros. Se eu não acreditasse em reencarnação, eu o

odiaria por tudo que já me fez sofrer nesta vida.

_ Se isso for verdade, então prometo que lhe encontrarei onde quer que seja. Nunca mais amarei

outra mulher. Será sempre minha e serei seu. Mesmo que demore séculos, nunca a deixarei até que,

um dia, seja permitido que estejamos juntos.

_ Meu Deus, Edward, não faça isso. Não nos castigue de tal maneira. Temos que seguir em

frente. Não nos amaldiçoe, ou nenhum de nós poderá ser feliz. Liberte nosso espírito agora mesmo

dessa promessa; imploro-lhe, Edward. O universo e os deuses são muito rígidos quanto a tais

promessas. Não pode prender nossos espíritos nessa jura inconsequente. Como sempre, está

precipitando as coisas, seguindo o seu emocional.

_ Não quer que nos encontremos para sermos felizes? Achei que ainda me amasse!

_ Sim, quero, mas não com uma jura. Está impedindo a si mesmo de ser feliz. Não poderemos

sempre nos encontrar, não é assim que funciona. Você pode ficar ate séculos procurando-me e

tornar-se um espírito obcecado por tal ideia. Não quero que fique a vagar sem luz.

_ Não me importo. Se assim for, farei isso até que eu possa reparar o meu erro com você e poder

viver o nosso amor em paz.

_ Desfaça agora essa promessa e essa jura, Edward, ou nunca poderemos realmente ser felizes.

Não vê o absurdo que está fazendo, prendendo meu espírito ao seu por toda a eternidade? Nunca

seremos realmente livres. Pode acontecer de ficar no vale dos esquecidos, sem que ninguém se

lembre de você. Ou poderá vagar sobre a Terra, perturbando por centenas de anos, atrás do meu

espírito e impedindo-me de ser livre em escolhas. Isso me trará frustrações. Serei uma infeliz por não

saber o motivo de não ser amada. Temos que seguir o nosso destino, Edward. O nosso tempo nesta

vida já passou.

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_ Nunca farei isso. Só de pensar que poderei não vê-la de novo enlouqueço. Não dividirei você

com mais ninguém. Fui um louco em fazer tudo que fiz. Pensei que, se a acusasse, poderia achá-la e

tê-la de novo só para mim, mas as coisas saíram do meu controle. Não vou arriscar perdê-la para

sempre. Se essa for a única maneira, juro por toda a eternidade procurá-la e nunca a deixarei até que

estejamos juntos novamente.

_ Não sabe as consequências de suas palavras. Elas são piores do que qualquer um dos erros

cometidos pela sua ignorância ou pela falta de esclarecimento no assunto em questão.

Nada do que Shaara fizesse ou falasse faria o capitão Edward voltar atrás. Qualquer argumento

foi em vão. Por meses, capitão Edward visitou Shaara no cativeiro. Ele também tentou revogar a

sentença, mas seus apelos não foram ouvidos e nem suficientes para apaziguar o que ele próprio fez.

Ele havia ido longe demais e os mexericos cresceram como bola de neve. Nem mesmo uma

contraordem do Papa mudaria o destino de Shaara naquele momento.

Engraçado como a maioria das pessoas só conseguem enxergar seus erros quando eles não têm

mais solução... Nos últimos meses, o capitão Edward cuidou de Shaara, tentando aliviar a sua culpa

por sua amada estar passando por todos aqueles sofrimentos. Durante os interrogatórios, ele também

não a deixava sozinha, pois sabia que Shaara seria massacrada pelo carrasco e pelo interrogador.

Houve horas em que o capitão já não falava coisa com coisa, ele parecia estar certo de que Shaara

não seria condenada, mas isso era só mais uma fantasia em sua mente. O capitão estava realmente

ficando louco.

Foram feitas inúmeras perguntas a Shaara e às outras prisioneiras. Algumas negaram tudo, para

morrerem e serem perdoadas de seus pecados. Pude observar nos rostos daquelas mulheres uma

tristeza maior do que a dor de serem torturadas. Elas estavam perdendo a essência - isso, para uma

bruxa, é a própria morte. Havia horas em que as pobres mulheres colocavam-se em uma espécie de

transe e pareciam estar em outra dimensão. Era como se a vida já tivesse esvaído de seus corpos e só

aguardavam serem enterradas, pois já estavam praticamente mortas. Perder a identidade é perder a

verdadeira essência da alma para uma bruxa, e ter que mentir sobre a sua origem é como entregar ao

fogo toda a história de suas ancestrais.

Para algumas, o perdão foi concedido depois de jurarem nunca mais serem praticantes da magia.

Mas elas não tinham a liberdade de saírem à rua sem uma escolta. Houve muitos suicídios por causa

desse tipo de sentença, pois uma bruxa jamais pode viver sem a sua liberdade.

Uma das mulheres do grupo, mesmo depois de ter perdido seu marido e filhos para a Inquisição,

negou o próprio nome de batismo. Casou-se com um homem de posses com o triplo de sua idade,

apenas para não morrer sob tortura. Mas o preço que ela pagou foi muito mais alto do que própria

morte, pois o homem a ofendia e a esbofeteava diariamente, obrigando-a a comer as próprias fezes

para provar que ela não era mais uma de nós.

As torturas e as humilhações para quem não morria pela Inquisição eram as mais abomináveis e

cruéis possíveis. A morte era só um consolo. Era como se o castigo pudesse purificar a alma

daquelas mulheres. Algumas se tornaram concubinas e eram mantidas sob cárcere privado. Outras

foram obrigadas a trabalhar em tabernas, prostituindo-se com os piores elementos já vistos. As mais

jovens foram vendidas para as beatas e faziam os mesmos serviços que os escravos. Ainda eram

obrigadas a manter relações sexuais com seus senhores às escondidas de suas esposas. Quando

descobertas, eram torturadas até a morte e acusadas de sedução e luxúria através da magia. Algumas

perderam parte dos membros, como dedos dos pés e das mãos, como a prova de que a parte

endemoniada fora arrancada para sempre.

Shaara estava com os dias contados. Por isso, entregou a sua alma a Deus. Passava horas a orar e

todo dia pedia auxílio aos espíritos de luz, para que a guiassem para perto do esclarecimento quando

o seu espírito tivesse que deixar o aparelho transitório.

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Shaara nunca negou suas origens e, vendo aquela tão devotada fé, o capitão Edward passou a

crer no espiritismo, mas não abriu mão da jura de me encontrar e não me deixaria ficar com mais

ninguém em outra encarnação.

A preocupação de Shaara com o capitão Edward era porque ela sabia que ele não a deixaria em

paz e sofreria com a sua morte mais do que o esperado. O capitão não conseguia perceber que só

Deus era o dono do destino e que ele, fazendo tal jura, poderia ficar preso entre dois mundos, caso

não a desfizesse antes que Shaara fosse morta.

Lembrei-me das palavras de Cristo quando disse Pai, perdoa-lhes porque não sabem o fazem...

O inquisidor, a pedido do bispo, foi deposto de seu cargo de origem, pois foi considerado

incapaz de julgar e dar a sentença de Shaara. O novo inquisidor, nomeado para ocupar o lugar do

capitão Edward, chamava-se Cerenzo de La Pena. Um homem gordo e muito alto, cuja presença

lembrava a própria morte e seu olhar fulminava-nos vivos. O senhor Randolf de La Concita,

nomeado como carrasco, tinha mais crimes do que o próprio diabo tinha almas.

Um vigário também foi mandado para a prisão por suspeita de manter contato com bruxas. O

pobre homem era um senhor de quase oitenta anos. No mínimo, já não tinha mais nenhum serviço a

prestar à ordem do vaticano. Durante seu interrogatório, ele disse que não precisava do perdão da

Santa Madre Igreja, pois não havia cometido crime algum.

Naquele mesmo ano, pouco antes de Shaara morrer, cento e cinquenta pessoas, entre homens,

mulheres e crianças, foram condenadas à morte por tortura. Durante o julgamento de Shaara, ela

também disse que não tinha nada por que pedir perdão, e que não havia cometido nenhum crime para

que fosse condenada à fogueira - o que causou alvoroço dentro do tribunal do júri. Indignado, o juiz

disse:

_ Como pode uma bruxa achar que não tem que se redimir dos seus crimes?

_ Padre, curei os doentes com lepra e outras doenças que os seus doutores não se atreviam a

examinar, porque achavam que as suas mãos eram limpas demais para tocá-los. Existiam pessoas

entre nós que sua sociedade excluiu, simplesmente por serem pobres mal cheirosos e maltrapilhos.

Pessoas como os judeus, que vieram de outro país, procurando fugir de gente como o senhor, que se

diz homem de Deus, mas cuja piedade afastou do próprio coração.

_ Cale-se, sua insolente! Com que mérito curou os tais doentes? Usou, por certo, os poderes que

o demônio lhe ofereceu para cegar esses pobres coitados. Ande, bruxa infeliz! Confesse logo para

que eu vá atender a quem realmente merece.

_ Não precisa mais perder o seu tão valoroso tempo comigo, excelência. Tem razão de chamá-

los de pobres coitados, pois são mesmo. Afinal, foram banidos do meio da sua sociedade. E quanto a

confessar, só confesso a Deus. Mas se quer que eu diga quem sou, digo sem o menor problema: sou

uma bruxa e morrerei afirmando isso, mas nunca serei hipócrita de me fantasiar com uma batina para

me posar de santa diante dos meus fiéis.

_ Blasfêmia! Seu Deus é Satã. Levem essa maldita filha do diabo daqui! Que queime em uma

fogueira em praça pública, para que todos saibam que ela mesma aceitou o demônio como o seu

único Deus.

No dia vinte e nove de abril do ano de 1725, às seis horas da tarde, Shaara foi declarada bruxa

pela Inquisição e a sua sentença foi a fogueira. Sem poder questionar o menor argumento para a

defesa, Shaara baixou a cabeça e manteve-se em silêncio.

No meio da grande praça, as pessoas gritavam como loucas. Algumas atiravam objetos

pontiagudos, como pedras. Outras pronunciavam palavras de baixo calão.

Shaara olhou tudo ao redor e percebeu que era muito grande o número de pessoas que assistiria à

sua morte. A maioria delas era praticamente a mesma que a conhecia desde criança.

Um homem que estava entre o júri sussurrou ao ouvido de Shaara, pedindo que ela gritasse por

clemência, para que pelo menos a sua alma se salvasse. Ela, porém, nada disse ou murmurou.

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Shaara, em seu momento de dor, sentiu piedade dos que estavam à sua volta e, em pensamento,

pediu perdão por eles.

O inquisidor leu toda a sentença e acusou Shaara de traição, conspiração, bruxaria e de práticas

demoníacas. Um homem encapuzado levou-a pelos cabelos para um tronco, no meio da fogueira.

Os direitos de Shaara foram citados em voz alta, como se ela tivesse direito a alguma coisa de

verdade... Os direitos citados foram:

_Tem o direito de dizer uma última palavra antes de ser executada. Diga rápido, antes que eu

resolva antecipar seu destino em alguns minutos.

_ Quero falar com o capitão Edward. Chamem-no para mim, por favor!

O inquisidor e o carrasco entreolharam-se, mas concordaram em chamar o ex-capitão e ex-

inquisidor. Enquanto isso, Shaara pronunciou:

_ Se sou culpada por tantos crimes, por que não conseguiram achar em mim culpa suficiente

para me condenarem? Precisaram da ajuda de um inquisidor para dar minha sentença? Por que

precisaram tirar proveito dos mexericos de senhoras mal amadas para me acusarem de algo leviano e

fictício? Por que Sir Edward foi afastado do cargo de inquisidor? Será que foi por que ele próprio

percebeu que estava cometendo um grave erro?

_ Ele estava enfeitiçado, sua bruxa suja - gritou uma voz no meio da multidão.

_ É, sou mesmo uma bruxa, e estou muito suja porque me negaram todos os direitos de um ser

humano. Até o direito de tomar um banho para morrer com dignidade, sabe, Sir Williams? - disse

Shaara para aquela voz.

Shaara prosseguiu seu discurso:

_ Quando o senhor contraiu certa doença, por viver andando em bordéis, foram as minhas ervas

que o salvaram da morte. Não lhe cobrei uma única prata sequer. Assim como o senhor Williams,

muitos de vocês foram à floresta em busca de sortilégios e curas. Muitas vezes me neguei a fazer

seus sortilégios, porque jamais uso minha sabedoria para separar pessoas ou matar alguém. Só quis

viver em paz. Todos aqui presentes, principalmente as mulheres, não são vistas com bons olhos, pois

não podem expor livremente suas emoções. Todas as mulheres aqui vivem de cabeça baixa e são

humilhadas pelos homens desta maldita sociedade. Acolhi, sim, malfeitores, mulheres espancadas e

até prostitutas. Por que eu não faria isso? Curei as feridas de todos os doentes que me procuraram,

até mesmo dos leprosos. Fiz um trabalho de humanidade e caridade e amei o próximo, como Jesus.

Lembram-se? Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei. E vocês, o que estão fazendo consigo

mesmos? Assassinam pessoas inocentes todos os dias só por elas não serem como vocês querem.

Seus amigos, vizinhos e parentes estão sendo exterminados de maneira brutal e desumana. Haverá

um dia em que não terá mais ninguém para que apresentem em praça pública esse espetáculo de

horror.

_ Blasfêmia! - gritaram do meio da multidão, de novo.

_ É, pode ser uma blasfêmia mesmo. Afinal, é mais fácil achar que seja uma blasfêmia do que

aceitarem que estão errados. Mas e a senhora, Dona Esmeralda, que deixou seu único neto ser

amarrado a quatro cavalos e ser partido ao meio só porque ele gostava de poesias? Ser uma pessoa

gentil o torna afeminado?

_ Ele era afeminado e estava sob o efeito do poder maligno do demônio. Fiz isso para libertar a

alma dele. – respondeu Dona Esmeralda.

_ Meu Deus, ele só tinha quatorze anos! Era uma criança que gostava de ler romances e contos

de fadas. Quem vai fazer agora o serviço da sua casa, já que está em idade avançada? Sei que não é

uma mulher de posses e não pode ter o luxo de comprar um escravo para ajudá-la. Será que também

os demais aqui não lhe queimarão viva? Afinal, em que uma senhora com idade avançada pode

ajudar a sociedade?

A velha senhora baixou a cabeça com tristeza e retirou-se do meio da praça. Shaara prosseguiu:

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_ Se um filho nasce defeituoso, é mais fácil afogá-lo do que amá-lo? Quem são os demônios

aqui? Onde está o mal? Eu digo: está nos corações amargos e revoltados de pessoas covardes, que

preferem se esconder por trás de histórias e mexericos para encobrir o próprio erro. Não seria hora de

sanar toda essa loucura e começar a amar a seu próximo, sem tentar achar seus defeitos ou

qualidades em demasia? Quando amamos alguém, devemos amá-lo como é. Se tentarmos mudar as

pessoas, quando discutirmos com elas, estaremos discutindo com o reflexo que criamos de nós

mesmos. Somos responsáveis por tudo aquilo que praticamos ou criamos. Brigamos ou condenamos

o próximo porque é mais fácil do que olhar para dentro de nós mesmos e achar nossas próprias

falhas. Deveríamos olhar o mundo de uma maneira mais inocente, como as crianças. Mas estamos

transformando, cedo demais, meninas em mulheres, querendo que elas se casem com homens mais

velhos e cheios de posses, para garantirem o nosso próprio futuro e nossa velhice. Queremos que

nossos filhos se tornem doutores ou soldados, e estamos esquecendo que estamos separando nossa

família de maneira discreta e sutil. Entre vocês, morrerão sozinhos por causa desse egoísmo e

ganância. Lógico, todos nós temos que seguir o nosso caminho um dia. Mas devemos também ter o

direito à escolha. Seus Natais solitários poderiam ser repletos de alegria, se houver mais

concordância e união. Suas vidas poderiam ser muito melhores se cumprimentassem seus vizinhos

sem os desdenhar. Se ao invés de tomarmos conta da vida alheia, fizéssemos um bolo, estaríamos

muito bem de vida. Todos nós viemos nesta vida para aprender e temos por obrigação deixar

algumas coisas para que alguém também aprenda conosco. As pessoas não são lixo, ou coisas velhas

que jogamos fora quando não nos servem mais. Quando me queimarem, vai doer e sangrarei como

sangraria qualquer um de vocês. Talvez eu só tenha jogado pérolas aos porcos, e nem tenha feito por

todos o que eu deveria ter feito. Só sei de uma coisa: com certeza, nunca mudei minha essência.

Nunca deixei de acreditar nos meus sonhos, e sempre lutei pela igualdade de liberdade de todos. Até

dos que me condenam.

_ Está tentando nos ludibriar! - gritaram novamente.

_ Não estou. Muito pelo contrário, prefiro ser queimada a ter que viver no meio de uma

sociedade hipócrita e ignorante como essa. Só não esqueçam que, assim como aconteceu comigo,

pode acontecer com qualquer um que se julgue perfeito. Se o marido de uma de vocês, mulheres,

resolver trocá-la, é mais fácil que ele invente fuxicos e digam que são bruxas. Assim, enquanto

forem queimadas, eles se deleitarão com as amantes.

Muitas pessoas saíram, principalmente mulheres.

_ Calasse, queimem-na! - gritou o restante da multidão. O inquisidor leu rapidamente a sentença,

já lida antes. O carrasco jogou-lhe um líquido, parecia querosene, e ateou fogo.

_ Queime rápido, bruxa! Meus cães estão esperando por seus ossos para o desjejum - gritou o

dono da taberna.

_ A fumaça sufocava Shaara. Seus pés começaram a ser atingidos pelas chamas. A dor era

inigualável. E, do meio das chamas, Shaara viu quando o capitão Edward levantou o pequeno

Güllian no meio da multidão. Dos olhos de Shaara escorreram o mar da sua alma. E ela

simplesmente sorriu, por saber que seu filho estaria salvo. Com o filho nos braços, o capitão Edward

gritava, desesperado:

_ Vou me encontrar com você, Shaara.

Os gritos do capitão foram levados com Shaara, junto aos últimos pensamentos. Pude sentir

cada pedaço do corpo da minha ancestral sendo queimado. Aliás, foi muito difícil manter-me inerte

durante toda aquela viagem. A dor que Shaara sentiu era tanta que vi quando o seu espírito implorou

para ser desligado do aparelho dela. Então, parei de sentir frio e o calor que queimava Shaara ao

mesmo, e pude perceber que ela havia deixado o plano terrestre. Os gritos de Shaara ecoaram com o

vento. Toda a multidão foi, aos poucos, desfazendo-se. A vida voltaria ao normal, mas aqueles

habitantes teriam muito o que comentar durante muito tempo.

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

71

O capitão Edward voltou para a Inglaterra e lá viveu, levando uma vida modesta com o filho

Güllian. Como prometeu a Shaara, nunca parou de tentar encontrá-la.

Chorei como uma criança e fui acalentada por Dona Helena, que estava ao meu lado, segurando

a minha mão. Todos os que estavam na floresta vieram me saldar. Alguns estavam apagando a

fogueira, mas acenavam para mim, com satisfação.

Então disse, orgulhosa e em lágrimas:

_ Shaara Méquiz era o nome de minha ancestral. Ela foi uma bruxa, considerada assim por ter

recebido um dom divino. Foi diferente de todas as outras mulheres e não deixou nenhum homem ou

ninguém roubar sua essência. Foi a mulher mais corajosa e capaz de qualquer coisa que eu já havia

conhecido. Como ser humano, abriu mão de todo o poder e fortuna para cuidar dos pobres e doentes

de seu tempo. Filha da condessa Elizabete Dornellas Méquiz e do conde Juan Gonzáles, mortos por

causa da ganância, da inveja e do ódio. Ela teve um grande amor, que foi o capitão e inquisidor

senhor Edward III, morto em batalha contra a Inquisição, onde defendeu o direito das bruxas de

serem livres. O capitão Edward III arrependeu-se dos erros que cometeu contra o seu único amor, e

passou a lutar ao lado dos rebeldes, em prol da liberdade dos escravos e de outros que considerasse

injustiçados. Shaara era uma pessoa incrivelmente forte e dedicada a causas consideradas

impossíveis. Ela foi o que eu quero ser agora. Edward III foi o ancestral do monge dos meus sonhos,

pois durante a viagem o reconheci. Agora sei porque ele me persegue nos meus sonhos. Foi por

causa da jura que ele fez no passado de me encontrar onde quer que eu esteja. De alguma maneira,

sei que iremos nos encontrar nesta vida. De alguma maneira, tenho certeza de que iremos nos

encontrar muito em breve.

Dona Ana estava atenta a tudo que eu contava e, por fim, perguntou:

_ Por que acha que esse homem a persegue até em seus sonhos?

_ Porque ele fez a única coisa que não nos é permitido pela lei da natureza. Jurou-me amor

eterno, prometendo-me procurar por toda a eternidade. Disse que jamais me deixaria em paz,

enquanto não pudéssemos viver verdadeiramente nosso amor.

Falei aquelas palavras olhando para Bernadete, pois passei a entender perfeitamente o que ela

havia me dito antes. E dei continuidade àquele assunto, dizendo:

_ Estou selada por toda a minha vida. Tenho que o encontrar e fazê-lo entender que isso nunca

poderia ter acontecido. Só espero que ele seja uma pessoa com mais esclarecimentos, pois o capitão

Edward sofreu muito com suas lembranças tortuosas. Ele foi o único culpado por seu amor ter sido

queimada na fogueira. Após sua morte, jamais aceitou a orientação dos espíritos de sabedoria. Por

fim, desejou reencarnar-se de novo. Mas isso foi só um protesto, pois manteve a sua jura no coração.

Sei que ele anda por aí, procurando-me de alguma maneira. Por isso, nunca consegui gostar de

ninguém. Por isso eu achava que o amor verdadeiro não existia. Minha vida nunca iria ter sentido.

Sou grata a todas por compartilharem comigo todos os seus segredos, por me encaminharem ao

mundo onde descobri minha verdadeira identidade. Realmente voltei muito mais madura e confiante

em mim mesma. Sei agora que ninguém pode mais me humilhar, a não ser que eu permita. Não vou

deixar mais ninguém ser mais do que eu, pois sou parte do universo.

Todos os que estavam à minha volta, inclusive minha amada Maria, deram um sorriso de

alegria. Dona Ana, depois de ouvir atenta e satisfeita tudo o que eu contava, prosseguiu:

_ Meus parabéns, minha filha! Aprendeu muito em sua viagem. Agora tem que se preocupar

com seus compromissos espirituais e deve preparar para conhecer o seu amor. Saiba que não será

fácil, pois ele é um monge, e o amor de uma mulher, ainda mais com dons como o seu, nunca lhe

será permitido.

_ Sim, eu sei. Também não será nesta vida que viveremos o nosso amor com liberdade. Mas o

mais importante é fazê-lo ver que precisa retirar a jura, para que possamos seguir nossos caminhos

em paz.

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Fizemos uma oração para nos preparamos para a minha volta à casa do moinho. Sentia-me

renovada espiritualmente. Eu havia recebido um compromisso do universo. Eu tinha que vigiar os

meus pensamentos para que não se tornassem palavras, pois palavras mal direcionadas machucam as

pessoas.

Muitas vezes, devemos conter nossos impulsos antes de sermos sinceros, porque as pessoas nem

sempre estão preparadas para a verdade. A sinceridade está dentro de nossos corações. Na verdade, a

sinceridade de alguns é pura maldade e só serve para machucar o próximo. O silêncio é sempre um

sinal de sabedoria e respeito. Isso foi o que aprendi com a minha viagem.

Saímos em direção à casa do moinho. A noite estava silenciosa e, no caminho, fui aprendendo a

respeitar o silêncio da floresta: era um sinal de individualidade e oração. Engraçado saber que tudo

ao meu redor tinha o seu momento de falar... A floresta ensinou-me a lei do respeito e do silêncio; os

animais, a obediência e a liberdade. As flores ensinaram-me que o amor pode estar em todos os

lugares, na forma mais simples e bela possível. As pessoas ensinari-me-am todos os dias, com sua

inconstância e individualidade, que vale a pena lutar por uma maneira de viver melhor. Aprendi

comigo mesma que, todos os dias, tínhamos coisas para aprender. Ao chegarmos à casa do moinho,

tomei um bom banho para tirar o cheiro de fumaça e a fuligem que estavam impregnados em mim.

Maria entrou e ajudou-me a vestir. Como estávamos sozinhas, ela perguntou:

_ E então, como está a mais nova discípula da confraternização da Lua?

_ Estou muito bem, não poderia estar melhor. Estou apenas um pouco ansiosa para começar o

meu trabalho como aprendiz de bruxa.

Maria acompanhou-me até a cama e, depois de me cobrir, falou:

_Tenha calma, minha amiga. Sua viagem foi perfeita e bastante reveladora. Daqui para frente,

tudo será apenas consequência de suas novas experiências e de seus atos. Por isso, lembre-se sempre

de refletir antes de tomar qualquer decisão. Pense bem antes de falar alguma coisa sem ponderação.

Pois palavras também se transformam em atos, e alguns atos catastróficos são o resultado de atitudes

impensadas, levianas, incoerentes e revoltosas.

Maria baixou a cabeça, em sinal de agradecimento. Com um sinal ainda misterioso para mim,

abençoou-me. No mesmo instante, senti que o sono havia chegado de imediato. Foi quase como uma

hipnose. Simplesmente não pude ver mais nada. Naquela noite, dormi como nunca havia dormido em

toda a minha vida.

“Felizes aqueles que tiveram compreensão de reconhecer os seus próprios erros. Essa é uma

virtude que faz o ser humano grandioso. A caridade é também uma forma de bem comum, mas tudo

isso deve ser feito sem interrogações ou especulações. Pois o maior dom divino está em ouvir e

servir com humildade, sem querer saber a quem fazemos o bem.”

(Padre Ângelo Wallejo Moralles).

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Capitulo III - O Livro das Sombras

spreguicei na cama, esticando bem os braços. O Sol entrava pela janela

harmoniosamente. Percebi movimentos no quarto e levantei a cabeça para ver quem era.

Maria estava arrumando as malas para o nosso retorno para casa. Decidi ficar mais um

pouco na cama, pois precisava pôr as minhas ideias em andamento.

Durante aquela noite, tive sonhos que mudariam minha vida. Sonhei com todas aquelas bruxas

que estiveram presentes na minha viagem, inclusive a minha ancestral. Elas vieram em meus sonhos

para me mostrar os símbolos e a história da magia. Eu precisava contar para Maria, mas teria que ser

prudente, pois as bruxas do meu sonho não me deram permissão para que eu contasse alguns

segredos que elas me revelaram.

O sonho que tive deu-me a sensação de ser real. Participei de uma espécie de cerimônia

religiosa, e as bruxas fizeram-me jurar que guardaria segredo de algumas coisas que me foram

reveladas. Sonho ou realidade, eu não poderia trair minhas irmãs de alma, pois me tornei parte de um

grande clã. Nunca me arrependi de ter escolhido o caminho da Lua como uma opção de vida. Ter-me

tornado uma bruxa foi uma grande honra. Eu estava pronta para assumir qualquer responsabilidade

que surgisse.

Mas, por outro lado, tinha a certeza de que, se eu traísse as leis da ordem, pagaria um preço

muito alto. A minha maior preocupação naquele momento foi de, sem querer, trair a mim mesma.

Porque conseguimos esconder segredos das outras pessoas, por uma questão de ética, moral e

fidelidade – mas, sem querer, por causa da nossa vaidade, traímos a nós mesmos. Isso acontece

porque, atrás da nossa felicidade, sempre vem o exibicionismo de querer parecer melhor do que os

outros. O meu sangue jovem corria em minhas veias como as larvas de um vulcão pronto para

explodir. Minhas emoções estavam à solta - isso poderia ser perigoso, caso a vaidade tomasse conta

de mim.

Sabia que, se contasse a Maria, poderia com certeza contar com a sua discrição. Mas eu havia

feito um juramento de silêncio e não poderia nunca quebrá-lo. Isso sem contar que Maria poderia

falar sobre o meu segredo com o meu pai, caso ela fosse interrogada. Pois, assim como eu, ela fez o

juramento de nunca mentir. Portanto, de jeito algum eu poderia colocar a vida da minha melhor

amiga em risco. O meu maior objetivo, então, passou a ser como proteger Maria sem que ela

soubesse e ficasse magoada comigo, por estar lhe escondendo um segredo.

Meu tempo estava curto, pois meu destino estava pronto a se consumar. Senti-me como o mestre

Jesus, que soube exatamente quando iria ser entregue nas mãos de seus algozes. A traição é uma

ferida que chega antes que o coração pare de funcionar, e faz doer na alma por toda a eternidade.

Não sabia quem iria me trair, mas sabia que seria alguém muito próximo a mim. Porque sempre

quem nos trai são as pessoas mais próximas de nós, as que mais amamos e em quem confiamos.

Pessoas como Judas Escariotes, que traiu Jesus com um beijo. Geralmente, os traidores são pessoas

que só conseguem ver um lado da moeda, e cuja ambição é o único valor que conseguem enxergar.

O traidor é individualista: maquina sozinho e não pede ajuda para enfiar o athame do ódio no

coração do seu alvo. E é egoísta porque não vê que o seu próximo também é um indivíduo e que

merece respeito por ter suas próprias ideias.

De repente, senti-me frágil e indefesa por ter me descoberto tão perto da morte. Esse seria o meu

preço a pagar: teria que viver no silêncio e na solidão para o resto da minha vida. Embora sempre

tivesse sido uma pessoa solitária, agora era diferente. Pois eu guardava segredos que, se

pronunciados em voz alta, colocariam em risco a vida de todos que eu amava e também de todos que

me cercavam.

E

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Tinha muitas ideias a serem colocadas em prática, mas tinha que ser cautelosa, porque, além de

o tempo estar curto, poderia acabar sendo mal interpretada pelas pessoas próximas a mim. Quando

nossas ideias e opiniões tornam-se diferentes das ideias e opiniões dos demais, podemos ser

considerados loucos. O que não quer dizer que temos que seguir a regra da mesmice - afinal, a única

opinião importante é a da nossa consciência.

Sabia que teria que trabalhar também o meu ego. Não poderia deixar a vaidade tomar conta de

mim. Mas, principalmente, teria que dominar o medo do que as pessoas poderiam dizer a meu

respeito, pois sabia que elas diriam que eu estava possuída por um espírito imundo e maligno. Na

verdade, as pessoas fazem esse tipo de coisa para tentar encobrir os seus próprios delitos, e sempre

encontram alguém para lhes servir de Cristo. Pois é muito mais fácil seguir um padrão ético e moral

para não contradizer os ditadores de regras, do que aprender a pensar por si próprio.

Pensando em todas aquelas consequências, estava decida definitivamente a proteger Maria.

Sabia que minha melhor amiga também não seria poupada pela Inquisição e por todos aqueles que se

julgavam sem mácula. Se os adeptos da Santa Madre Igreja colocassem as mãos em Maria, por certo

a fariam confessar coisas que ela nunca havia feito, deixando para ela apenas a morte como opção de

salvação.

Fiquei olhando-a, em silêncio, enquanto ela arrumava as malas para o nosso retorno. Ela era

mesmo muito especial, pois sempre se dedicou à minha família e cuidou de mim, sem nunca sequer

pensar em nos abandonar. Maria abdicou de toda a sua juventude e de seus sonhos. Sabia que ela era

merecedora de toda a felicidade do mundo e, por isso, senti-me na obrigação de ajudá-la de alguma

maneira. Nunca poderia pensar em deixar Maria ser prejudicada pela decisão que eu teria de tomar

em um futuro próximo.

Ela terminou de arrumar as malas e saiu do quarto. Parecia não ter percebido que eu estava

acordada - o que me deu tempo para escrever, no meu diário, todas as coisas que eu havia aprendido

com as bruxas durante o sonho. Assim que Maria fechou a porta do quarto de Bernadete, peguei o

diário e fui folheando aquelas páginas aparentemente vazias, para que a inspiração me fluísse à

mente. Ao abri-lo, fiquei maravilhada com a luz que saiu de dentro dele e que quase me deixou cega.

Por certo Bernadete não sabia, mas seu avô estava com razão ao dizer que o diário era mágico.

A cada página que eu ia folheando, ele me dava, por si só, as figuras e os desenhos que ajudaram

com que eu me lembrasse do meu sonho quase acordada da noite anterior. Era como se ele lesse as

imagens que estavam na minha mente. O diário era pequeno, mas suas páginas pareciam nunca

acabar. Por trás daquela aparência singela e humilde, ele respondia todas as minhas perguntas de

uma maneira sábia e simples.

Na verdade, todos aqueles segredos que me foram revelados em sonho já estavam guardados

dentro do meu inconsciente. Apenas se afloraram quando regressei da viagem. Aprendi, com isso,

que todos temos dentro do nosso inconsciente as memórias das nossas vidas passadas. Todos temos,

por obrigação, que tentar lembrar ao menos alguns desses fatos que nos ocorreram, pois eles nos

ajudam muito no nosso presente.

No meu sonho, as bruxas também me mostraram o maior de todos os livros já escritos pelas

mãos de um místico: o livro das bruxas, também conhecido como o livro das sombras ou livro dos

feitiços. O meu diário era mágico e, na medida em que ia me tornando mais íntima dele e merecedora

de sua confiança, ele ia me mostrando alguns dos segredos que existiam dentro do grande livro das

sombras. Tais segredos nunca haviam sido revelados a nenhuma outra bruxa antes.

O livro das sombras havia sido escrito por um dos magos mais poderosos de todos os tempos,

cujo nome nem mesmo em meus sonhos tive autorização para pronunciar, pois era um nome tão

poderoso que poderia abrir as portas do tempo. A capa do grande livro era feita de madeira de lei, e

ossos polidos foram usados para fazer a sua fechadura. O livro era forrado por uma couraça

misteriosa, parecia couro de um dragão. Suas folhas eram feitas de papiro e já estavam muito

amareladas e sensíveis devido ao tempo. Foi de grande valia ter descoberto que esse livro - também

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um documento histórico - desapareceu misteriosamente. Com o passar dos anos, muitos de meus

ancestrais desistiram de procurá-lo, porque, em torno do seu desaparecimento, sugiram lendas de que

o grande livro era protegido por forças ocultas malignas, e seu conteúdo só poderia ser lido por

alguém muito especial e de coração muito puro.

O livro das sombras era a coisa mais incrível que os meus olhos já poderiam ter visto. A chave

do grande livro foi feita toda de ouro maciço, cuja forma era de uma estrela de seis pontas. Esse livro

tinha oitocentas páginas de pura sabedoria e cultura milenar. Seus muitos símbolos e a sua tradução

eram quase impossíveis de serem lidos, pois era escrito em uma língua muito antiga e estranha,

chamada aramaico. Uma língua somente usada nos tempos de Jesus Cristo. Os símbolos e fórmulas

que a mim foram revelados, embora muito antigos, não me eram totalmente estranhos. Aliás, o livro,

de alguma maneira, pareceu-me muito familiar. Talvez em alguma outra de minhas encarnações ele

já tivesse sido manuseado por mim.

Naquela manhã, especificamente, considerei-me uma pessoa especial por ter recebido das

minhas ancestrais tanta informação e tanta sabedoria, e por também ter ganhado aquele diário

maravilhoso. Só tinha a agradecer aos céus e aos deuses por terem me cedido a honra de ter

conseguido tantos amigos especiais e generosos.

Precisava contar aquele fato novo sobre o diário a Bernadete. Não queria esconder da minha

mais nova amiga que o presente que ela havia me dado com tanto carinho tinha aqueles poderes

extraordinários. Sentir-me-ia uma traidora se escondesse esse fato dela.

Escrevi no meu diário tudo o que achei necessário contar para as minhas gerações futuras.

Mesmo que houvesse mudanças no tempo, minhas irmãs também precisavam saber que, no meio de

tanta dor e preconceito, ajudamos de alguma maneira a escrever a história de uma nação. Queria que

elas soubessem, também, o valor de uma amizade verdadeira e que, embora não pudéssemos voltar

no tempo, sempre temos a obrigação de encontrar o nosso verdadeiro amor - mesmo que, para isso,

tenhamos que nos abdicar de uma vida feliz ao lado dessa suposta pessoa. Pois, como já citei,

ninguém pode ser obrigado a nos amar. Ressalto, ainda, que o amor pode aparecer em nossas vidas

de várias maneiras, podendo ser ele um parente próximo, um grande amigo ou até um desconhecido

que por nós tenha uma grande afinidade. Mas uma coisa é certa: temos que aprender a reconhecê-lo e

aceitá-lo da maneira com que nos for encaminhada, sem tentar forçar nada através de um sortilégio.

O maior perigo de um sortilégio é não pensar nas consequências que pode ocasionar: talvez uma

verdadeira catástrofe futura na vida de uma pessoa que, muitas vezes, é inocente. Convenhamos: se

uma pessoa nos fez algum mal, por que temos que pagar tudo com a mesma moeda? Estamos nesta

vida para nos aperfeiçoar. Tudo na vida tem um preço. Por isso, não é necessário usar magia para

fazer uma vingança. Ao consultar uma bruxa, tenha certeza do que realmente seu coração quer. A

magia não pode e não deve ser usada para vingança, vaidade, ou um mero capricho. É por isso que

uma bruxa só deve fazer um feitiço para um consulente que realmente saiba o que quer - o que

raramente acontece, pois os seres humanos são muito indecisos e inconstantes em suas vontades e

decisões.

O preço para quem usa a magia inadequadamente é a solidão. É aconselhável nunca fazer um

sortilégio de amor, porque, muitas das vezes, os consulentes podem simplesmente estar envolvidos

pela emoção passageira. Ou o que é pior: pelo capricho e pela arrogância de terem sido desprezados

por seus supostos companheiros. Toda pessoa que pede um sortilégio é uma pessoa incapaz de

conquistar por si só qualquer coisa ou alguém. Ou o que é ainda pior: pode estar com o seu orgulho

ferido. Pode, também, ser uma pessoa muito ansiosa - o que atrapalha o sortilégio, em todos os

sentidos. Portanto, a bruxa deve ser conhecedora de todos os poderes da magia, e também deve tentar

sondar para saber se o consulente é uma pessoa apenas movida pela vingança ou se é uma pessoa

sincera e realmente necessita ajuda.

Qualquer sortilégio é muito perigoso, pois devemos nos lembrar de que estamos interferindo no

destino de alguém. Ressalto, ainda, que, se não houver um pouquinho de sentimento da outra parte, o

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sortilégio não funciona. Sem contar que a pessoa pode estar muito bem amparada espiritualmente -

ou seja, pode ter uma fé inabalável. Esse tipo de situação pode atrasar o sortilégio, ou o

relacionamento que o consulente já tenha com o seu suposto parceiro pode ser desmoronado.

Na hora em que um feitiço é feito, a paciência do consulente é testada. Um sortilégio pode

demorar até anos a se realizar, mas nunca falha. Basta que o consulente saiba que o tempo dos

espíritos não é o mesmo que o nosso. Com isso, o consulente pode acabar achando que, pelo fato de

o feitiço estar demorando, ele não irá funcionar. Não devemos nunca nos esquecer que um fiel

consulente pode se virar contra a própria bruxa de quem pediu ajuda - por simplesmente achar que

ela nada fez por ele, ou simplesmente por medo de ser considerado um adorador do diabo pela

Inquisição. Portanto, todo cuidado é pouco. Tudo é um risco.

Na verdade, toda e qualquer pessoa tem que ser esclarecida de que mexer com o destino de

alguém, além de ser perigoso, é arriscado. Pois, com isso, estamos aprisionando o anjo da guarda

dela. Não creio que aprisionar anjos seja uma boa ideia, pois os anjos são generosos e bons, mas

podem ser vingativos quando irados. Como já disse antes, toda moeda tem seus dois lados. Isso se

aplica fielmente à magia.

Um consulente nunca deve, por si, tentar fazer um feitiço - seja ele para o bem ou para o mal.

Deve sempre pedir ajuda de uma bruxa ou de um mago, pois são pessoas preparadas para lidar com

as forças ocultas.

As pessoas dizem algo muito peculiar da fé: que ela, aliada à coragem, pode mover montanhas.

Já eu, digo que o medo muitas vezes nos impede de cometer um terrível engano. Ser corajoso nem

sempre é o caminho. Pois, no ímpeto e na ansiedade de vencer, o consulente não percebe que a faca

afiada do inimigo o espera na retaguarda. Acredito que até mesmo os grandes heróis tiveram medo, e

isso com certeza os fez pensar em uma estratégia de vitória. Nesta vida, temos que ter a ciência de

que há tempo para tudo, inclusive o tempo de refletir sobre as nossas prováveis ações. Prejudicar

espiritualmente uma pessoa é garantir que ela, após sua morte, se torne nosso algoz. A mesma pessoa

pode nos perseguir até a nossa próxima encarnação.

Embora não tivesse me permitido contar sobre todas as coisas que me foram ensinadas pelas

bruxas do meu sonho, espero ter conseguido passar para as minhas irmãs uma rápida ideia do que

realmente é ser uma bruxa. E que elas passem para as suas futuras gerações a grandeza e a honra de

terem nascido com um dom especial. Espero que minhas irmãs façam uso dos poderes que lhes

foram dados com muita sabedoria, e que elas sempre lutem pelo direito de liberdade de expressão e

de religião.

Algumas das coisas que aprendi com a minha ancestral e com as bruxas, através do meu sonho,

estão nessas linhas. São coisas como os símbolos tradicionais da boa magia e os seus significados,

entre outras coisas que achei serem muito úteis para as futuras bruxas. Achei interessante começar

pelo livro das sombras, pois muitas bruxas não sabiam como usá-lo e para que realmente ele servia.

O Livro das Sombras é um diário usado por praticantes da magia em rituais místicos. É como o

diário de bordo de um navio: indispensável, irrevogável, individual e intransferível. É o manual da

bruxa, o seu tricô, a sua essência. Só deve ser escrito pela própria mão do praticante e deve ser

escolhido com carinho e seriedade. Eu havia ganhado o meu, e estava extremamente satisfeita, pois,

na verdade, ele me escolheu.

A flor de lótus foi muito usada na época da Inquisição como a marca das condenadas,

principalmente na França do século XV. Mas algumas bruxas dos séculos XVI ao XVIII

continuaram a usar esse símbolo desenhado em seus corpos, como uma forma de respeito pelas irmãs

que morreram queimadas na fogueira. Da flor de lótus era extraído um chá poderosíssimo que,

diziam, enlouquecia os homens. A flor de lótus também era conhecida como nelumbo nucifera,

lótus-egípcio, lótus-sagrado e lótus da Índia. É nativa do sudeste da Ásia. Muitas pessoas morreram

por causa dela, inclusive grandes homens ligados à ciência.

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A taça é o símbolo da deusa. Representa o ventre da mulher, o princípio da vida feminina. Sua

energia está relacionada ao elemento água e à pureza. É muito usada nos rituais e sabás, como

recipiente para água ou para o vinho consagrado. É um instrumento que nunca perde o seu lugar no

circulo mágico, e é posicionada ao leste. A taça pode ser feita de vários materiais, como prata,

bronze, ouro, barro, alabastro, cristal, entre tantos outros. Porém, é recomendado que seja de prata.

Seus desenhos ou símbolos variam de bruxa para bruxa.

A espada desempenha o corte simbólico ou psíquico, especialmente quando é usada para

desenhar o círculo mágico, isolando o espaço imaginário dentro dele. Além de traçar círculos,

exorciza o mal e as forças negativas. Também é tradicional que seu cabo tenha símbolos mágicos de

força e de luta. A espada é um sinal de reverência à Santa Joana D’Arc: é o respeito dos homens aos

mortos em batalhas travadas pela Igreja em ascensão.

O athame é uma adaga, obrigatoriamente de cabo preto, usada em algumas linhas de bruxaria.

Ele também é utilizado para lançar o círculo mágico, para traçar emblemas mágicos no ar, para

direcionar a energia e para controlar e banir espíritos que não devem invadir nosso mundo físico. As

origens da palavra athame foram perdidas na história: alguns diziam ter vindo de a chave de

Salomão, que se refere à faca como arthana, enquanto outros afirmam que athame vem da palavra

árabe al-adhamme, ou seja, é uma faca sagrada usada na tradição mourisca. Em qualquer um dos

casos, há manuscritos datados do século XI que abordam o uso de facas em rituais da magia. O uso

de uma faca sagrada em ritos pagãos é bastante antigo. Certa vez, quando ainda era criança, lembro-

me de ter visto um desenho em um vaso grego, datado de aproximadamente 200 a.C., que mostrava

duas bruxas nuas tentando invocar os poderes da Lua para sua magia. Uma delas estava segurando

uma varinha, e a outra segurava uma pequena espada. Aquela obra magnífica ficava guardada no

sótão de minha casa, junto aos pertences de minha mãe.

A cruz é o símbolo do cristianismo e, em toda a parte do mundo, ela representava para nós,

bruxas, os quatro elementos: a terra, o fogo, o ar e a água. Mas quando alguém usava a cruz torta,

pendurada à Soleira da porta, significava que havia uma bruxa por perto. Pura superstição, pois nós,

do grande clã, consideramos isso um sinal de igualdade entre as irmãs de consagração. Para os

leigos, é um sinal de paganismo e foi motivo para a excomunhão de muitos inocentes.

A faca de cabo branco, por vezes chamada de bolline, é simplesmente uma faca prática de

trabalho. Ao contrário da pura e ritualística faca mágica, só a utilizamos para cortar galhos ou ervas

sagradas, escrever símbolos em velas ou na madeira. Normalmente possui cabo branco para

distinguir-se da faca mágica.

O homem vitruviano, também chamado de cânone das proporções, é usado por algumas de nós

como um mapa. Essa ideia tão grandiosa foi criada por volta de 1490 e estava em um dos diários de

Leonardo Da Vinci. Toda a cura que praticamos é dimensionada através dos chakras e das linhas

imaginárias. Essas linhas imaginárias somente podem ser vistas pelas bruxas curandeiras. Todo o

segredo da existência humana está dentro do mapa do corpo humano, e Leonardo Da Vinci

descreveu isso em suas ilustrações. Sua referência estética e simétrica proporcionou-nos saber, com

exatidão, os pontos alfas ou chakras de um consulente doente. O homem vitruviano também foi

muito usado pelas feiticeiras para fazerem seus vodus em rituais de magia negra.

Leonardo Da Vinci engloba o homem vitruviano em um todo, mas o que poucos sabem é que

essa forma é uma resposta para um desafio matemático. Algo como uma parábola ou uma senoide

para aquele incrível inventor, que foi, com certeza, um alquimista das ideias.

Para nós, as bruxas, o homem vitruviano é um pentagrama humano e, na magia, o símbolo do

pentagrama é geralmente desenhado com a ponta para cima, a fim de simbolizar as aspirações

espirituais humanas. Um pentagrama voltado com duas pontas para cima é um símbolo do deus

cornífero, mas representa também a matéria sobre o espírito. Por isso, é muito usado. Muitos

supersticiosos acreditavam que representávamos com o pentagrama o lado negro da magia - o que

nem sempre é verdade. Esse tipo de pentagrama representa o próprio corpo, os quatros membros e a

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cabeça, bem como as representações primordiais dos cinco sentidos, tanto interiores como exteriores.

Além disso, representa os cinco estágios da vida do homem. O pentagrama - ou a estrela de cinco

pontas -, ao contrário do que dizem, não é um símbolo satânico. É um símbolo muito antigo e muito

usado até pelo filósofo Pitágoras, e também por seus seguidores, que o usavam para simbolizar o

respeito pela beleza da matemática do universo.

Em muitos lugares e épocas, foi utilizado como um símbolo geométrico sagrado. O fato de

satanistas usarem o pentagrama não significa que eles são bruxos - da mesma forma como usam o

crucifixo e não são cristãos. O pentagrama é conhecido, também, como tentáculo ou cruz dos

gnomos.

Uma estrela de cinco pontas circunscrita em um círculo representa os quatros elementos místicos

da natureza: o fogo, a água, o ar e a terra, superados pelo espírito da quintessência.

Na antiga arte da magia, meus ancestrais geralmente usavam o pentagrama como um

instrumento de proteção ou uma ferramenta para evocar os espíritos. O pentagrama fechado existe

desde os princípios dos tempos. Ele é usado para nos proteger dos inimigos e também serve como

portal para evocar forças ocultas. Por isso, sua simbologia é múltipla e fundamentada pelo número

cinco, que exprime a união dos desiguais.

Muitas feiticeiras usaram o pentagrama indevidamente. Por isso, dizia-se que elas conseguiam

abrir os portais do inferno com ele. Os mesopotâmios tinham o pentagrama como símbolo imperial.

Entre os hebreus, foi designado como a verdade para os cinco livros do velho testamento. Por isso, o

pentagrama foi muitas vezes chamado incorretamente de selo de Salomão. A magia tem dois lados.

Portanto, qualquer símbolo pode ser usado tanto para o bem quanto para o mal. Isso dependerá

apenas de seus praticantes, pois os símbolos por si só não podem fazer nenhum mal. Logicamente,

isso é uma escolha bastante singular, pois nós é que devemos ter a real consciência de qual lado

estamos.

Por inúmeras vezes, quando eu era criança e frequentava a igreja cristã, li sobre uma citação no

evangelho que nos ensina a não acender velas para dois senhores. O propósito dessa citação é que

isso causa desequilíbrio entre os dois mundos astrais. Esse desequilíbrio pode abrir um portal, dando

passagem a espíritos desordeiros.

O Pentáculo é um prato de metal ou de madeira, com um pentagrama cravado dentro de um

círculo. Esse objeto é muito utilizado na consagração de diversos instrumentos ritualísticos, como as

ervas e os amuletos, sendo utilizado, também, como um ponto de concentração nos rituais.

O hexagrama, ou selo de Salomão, é um antigo e poderoso símbolo mágico. Consiste em dois

triângulos entrelaçados, um voltado para cima e o outro para baixo. O selo de Salomão simboliza a

alma humana. É utilizado por bruxas e magos em cerimoniais de encantamentos ou conjuração de

espíritos. É um símbolo de sabedoria, de purificação e reforça os poderes psíquicos. Os judeus

também foram perseguidos por causa dele, usado na santa cabala. A estrela de cinco pontas ou

estrela de David forma outro pentagrama, dividido por duas estrelas que chamamos de invocante e

evanescente. Quando queremos invocar as energias da deusa do deus cornífero, ou das entidades dos

quadrantes para selar algum tipo de encantamento, traçamos o pentagrama chamado de invocante. Os

instrumentos usados são: o bastão, a varinha, o athame ou dedo médio, para fazer movimentos

circulares no espaço físico.

Quando queremos banir, dispersar e exterminar qualquer tipo de energia ruim, usamos o

pentagrama evanescente. O Pentagrama evanescente é traçado de maneira contrária a do invocante -

lembrando que um pentagrama pode ser aberto ou fechado, dependendo para o quê fosse usado.

O triângulo é um símbolo de manifestação finita na magia ocidental, sendo usado em rituais para

invocar os espíritos quando o selo ou sinal da entidade a ser invocada está no centro do triângulo. O

triângulo é equivalente ao número três, ou número mágico poderoso, que é o símbolo sagrado da

Deusa tripla virgem, mãe e anciã. O triângulo invertido simboliza o princípio masculino. Se,

mentalmente, meditarmos um triângulo e dentro dele entrarmos, conseguiremos livrar-nos dos maus

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pensamentos e de outras coisas que insistem em invadir nossa mente. O triângulo é uma forma que

temos de calar os pensamentos ruins. É a maneira mais simples que podemos usar em qualquer lugar,

sem que ninguém perceba. Também serve para fugirmos de energias negativas, que algumas pessoas

lançam através de suas palavras.

Os espirais são dois: o espiral de evocação e o espiral de banimento. Os espirais são outra forma

de invocar ou banir energias espirituais. Podem ser usados com os mesmos propósitos dos

pentagramas invocante e evanescente. O espiral de invocação é muito utilizado para carregar

instrumentos, amuletos, talismãs, entre outros. Já o espiral de banimento é usado para o banimento

da negatividade, sugando e transmutando as más energias. Esses símbolos são da forma dos seios de

uma mulher. Na verdade, na magia, quase todas as representações geométricas são inspiradas em

nós, mulheres.

O fogo é o elemento da mudança, da vontade e da paixão. Em certo sentido, contém todas as

formas de magia, pois é o processo de mudança. A magia do fogo pode ser assustadora: os resultados

manifestam-se de forma rápida e espetacular. O fogo não é um elemento para os fracos. Entretanto, é

o principal e, por isso, o mais usado. Este é o reino da sexualidade e da paixão. O fogo não

representa apenas o fogo sagrado do sexo, mas também a faísca da divindade, que brilha dentro de

nós e de todas as coisas vivas. Ele é, ao mesmo tempo, o mais físico e o mais espiritual dos

elementos.

A vela, ou lume, também simboliza o elemento fogo. Porém, é o símbolo do seu pedido de

oração, pois enquanto vai se queimando, a fumaça leva o seu pedido para que ele se misture ao

elemento ar – fazendo, assim, com que os seus desejos se realizem.

A terra representa a mãe, de onde tiramos nosso poder e nossa força. É o elemento do qual

somos mais próximos, é a nossa casa. A terra não representa necessariamente a terra física, mas

aquela parte que é estável e sólida, da qual dependemos. A terra é o reino da abundância,

prosperidade e riqueza. Ela é o mais físico dos elementos, pois todos os três se apóiam sobre ela. A

terra, para nós, é a força maior: a mãe, aquela que gera e nos permite a sobrevivência e a procriação.

Muitos diziam que a terra calou-se para que pudéssemos fazer do seu corpo a nossa morada. Mas ela

nos fala todos os dias, da forma mais maravilhosa já criada por Deus para se expressar. Fala-nos

através das suas plantas e da sua beleza. Só que nunca temos tempo para observar seus sons... O som

do mundo está sempre presente. É só fechar os olhos e desligar-se de todos os outros sons à nossa

volta para podermos escutá-lo. É um som quase mudo, mas muito presente.

O vento ou o ar é a alma do mundo, o mensageiro, a vida, o sopro de Deus. Muito usado em

evocações para apaziguar tempestades e tufões. Podemos enviar uma mensagem para alguém através

do vento, caso a pessoa esteja em sintonia total conosco. O vento é o elemento do intelecto, é a

realidade do pensamento, é o primeiro passo para a criação. Também é o movimento, o ímpeto que

manda a visualização na direção da concretização, governando os feitiços e rituais que envolvem a

viagem, instrução, liberdade, obtenção do conhecimento, encontrar itens perdidos, descobrir

mentiras... e assim por diante. O vento também pode ser usado para ajudar no desenvolvimento das

faculdades psíquicas. O ar é masculino, seco, expansivo e ativo. É o elemento que se sobressai nos

locais de aprendizagem. O ar governa o leste, pois é a direção da maior luz: a da sabedoria e da

conscientização. Sua cor é o amarelo do Sol e do céu na aurora. O ar governa a magia dos quatro

ventos de concentração e visualização, bem como a maioria das magias adivinhatórias.

A água é o espírito purificador, a fonte de limpeza espiritual através do corpo para a alma, pois

sempre a usamos em banhos de purificação. É o elemento da absorção e germinação. O

subconsciente é simbolizado por ela, pois está sempre em movimento, como o mar que nunca

descansa - quer seja noite ou dia.

O caldeirão é um dos objetos mais essenciais: com ele, fazemos nossos rituais, entre tantas

outras coisas. Ele está sempre acompanhado de uma colher de pau e um livro de receitas especiais.

Esse objeto é intransferível e de uso exclusivo da pessoa que irá praticar o suposto ritual. Ninguém

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mais deverá manuseá-lo além da própria bruxa em questão. O caldeirão é o instrumento da bruxa por

excelência. Um antigo recipiente culinário, imbuído em mistério e tradições mágicas. O caldeirão é o

recipiente no qual ocorrem as transformações mágicas. Tem um significado muito especial: é o

símbolo máximo da Deusa: é seu útero, sua essência e feminilidade manifestada, a sua fertilidade.

Está relacionado com os elementos água e fogo. Situa-se ao centro do círculo mágico e do altar. É,

também, um símbolo da reencarnação, da imortalidade e da inspiração. O caldeirão é geralmente o

ponto central dos rituais. Toda bruxa que se prezasse teria que ter um caldeirão consigo. A lenda

antiga também castigou esse elemento, pois diziam que cozinhávamos crianças nele - blasfêmia e

heresia contra o ser humano. Nunca praticávamos canibalismo ou qualquer outro tipo de feitiço em

adoração ao demônio. Muitas vezes, íamos ao bosque pegar raízes para o tingimento de nossas

roupas, mas algumas dessas raízes eram de um odor muito forte depois de cozidas. Por isso,

colocávamos nossos caldeirões no meio da mata - o que gerou muitas lendas em torno de nós.

O gato preto é um símbolo da capacidade de meditação e recolhimento espiritual, autoconfiança,

independência, liberdade e plena harmonia com o universo. Esse animal sempre foi visto ao lado de

uma feiticeira, e os supersticiosos acreditavam que o mascote era uma bruxa disfarçada. Com isso, as

feiticeiras transitavam livremente, enquanto levávamos a fama de malvadas.

O símbolo do gato preto era utilizado pelos médicos egípcios para anunciar a sua capacidade de

cura, onde Bastet, sua deusa, é representada como uma gata preta, e foi uma das divindades mais

veneradas no antigo Egito. Bastet é a Deusa protetora dos lares e da família. Protetora dos gatos, das

mulheres, da maternidade, da cura. Era guardiã das casas e feroz defensora dos seus filhos,

representando o amor maternal. O gato tem uma grande ligação com a Lua. Os Olhos de Bastet

podem ver através da escuridão, assim como os do gato. Alguns espíritos, entidades ou passantes -

como os chamam os espíritos mais superiores - costumam referir-se aos animais de estimação como

sacrifícios, mas não são todos. O gato, em si, independente da cor, vive em dois mudos paralelos. Ou

seja: o gato está interligado entre o mundo espiritual e o mundo real.

A Bola de Cristal é também um instrumento das artes adivinhatórias. É muito popular entre os

videntes ciganos. A cristalomancia é também muito praticada pelas bruxas em magias, mas com um

propósito ainda maior. É por onde nos comunicamos com a grande deusa mãe. Por onde recebemos

as mensagens da deusa, que fortalece e orienta as bruxas. A Bola de Cristal reflete mensagens,

ajudando-nos a descobrir mais sobre o nosso mundo interior.

O baralho do tarô tem o mesmo efeito da bola de cristal: também o usamos para prever o futuro.

Mas devo ressaltar que todo objeto de clarividência deve ser mantido como particular e

intransferível. O primeiro baralho conhecido foi pintado pelo artista Jacquemin Grigonnur, em 1392,

para a coroa francesa. Deste maravilhoso trabalho sobraram apenas dezessete cartas, que foram

guardadas na biblioteca nacional de Paris, com data de entrada do século XV. Com as mudanças na

Europa, surgiu uma série de baralhos, especialmente na Itália. Graças a Deus, ganhamos esse

fabuloso auxiliar da magia. Nunca devemos nos esquecer de que as cartas não mentem jamais. Mas

nem tudo pode ou deve ser revelado ao consulente, pois a pessoa, em si, muitas vezes, não está

preparada para ouvir a verdade.

Uma bruxa sábia deve ter consciência de que tudo gera uma consequência na vida do

consulente. Muitas vezes, ao dizermos que o marido de uma consulente a está traindo, podemos estar

destruindo um lar supostamente feliz. E a felicidade varia de pessoa para pessoa: cada um tem o seu

lado de ver e aceitar as coisas. O que para nós pode parecer errado, para alguns é a coisa mais correta

desta vida. Não temos o direito de separar um casal, ou de desgraçar a vida de um consulente. Afinal,

que mulher não tem suas próprias intuições? Vendo por esse ângulo, sabemos, em nosso interior, que

uma mulher só fica na ignorância caso ela queira. Isso sempre acontece, porque a maioria das

mulheres permanece nesse tipo de situação por, muitas vezes, lhes ser conveniente, ou porque não

têm mesmo outro lugar para onde irem.

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Quando uma bruxa revela a verdade, pode até ser mal interpretada e vista como mentirosa, pois

existem muitas coisas que um consulente não quer enxergar. Deixar as coisas como elas são não é

ser conivente: é permitir que o destino do consulente cumpra-se por si só. Não temos o direito de

interferir no destino de um consulente, a não ser para ajudar e salvar a vida de alguém - mas isso é

apenas uma exceção. Deixar que as coisas aconteçam naturalmente é a melhor maneira de deixar o

consulente aprender a como lidar com seus próprios erros. É assim que a vida funciona. É a lei da

sobrevivência.

Os cristais e as pedras servem para banhos, para meditar, orar, curar, energizar ambientes,

plantas, animais e pessoas. Devemos sempre ter um cristal só nosso. Podemos andar diariamente

com o cristal junto ao corpo, usando-o como um talismã ou, caso não quisermos que alguém o veja,

pode-se guardá-lo dentro da roupa íntima. Mas, uma vez ou outra, devemos tocá-lo para que ele se

sinta amado e lembrado. O cristal tem vida própria e sente-se carente quando se sente sozinho. Os

cristais transmitem-nos muito mais energia do que recebem de nós. Na verdade, é uma espécie de

troca, porque eles nos emitem em dobro, em triplo e, às vezes, até em décuplo as energias que lhes

damos. Por isso, precisa ser muito amado. Não escolhemos um cristal. Ele nos escolhe.

Os cristais e as pedras são parte da natureza, sendo que eles, pela pureza, são mais poderosos e

mais iluminados que nós. Essa fonte de energia natural recebe a perfeição e a harmonia do cosmos.

Se nos conscientizarmos disso, procuraremos trabalhar mais com eles, pois seus benefícios serão

incontáveis. Para tanto, basta desenvolvermos nossa intuição, nossa sensibilidade, nossos

sentimentos e nossas virtudes. Assim, canalizaremos todo o bem e, com eles, faremos um universo

melhor.

Uma bruxa, através dos cristais, pode tentar entrar em um estado temporal - isto é, ver o

presente, o passado e o futuro. Mas, para fazer brilhar a luz temporal, é necessário ficar em estado de

meditação com os cristais, pelo menos dez minutos ao dia. Como recurso auxiliar, podemos usar

músicas e velas. Mas, antes de usar seu cristal, não se esqueça de que ele deve ser energizado,

colocando-o em uma ânfora de prata ou louça. Leve-o para a janela em noite de Lua cheia e deixe-o

dentro d’água, com sal e ervas aromáticas, para que ele receba da mãe Lua toda a sua energia. Repita

o mesmo pela manhã, expondo o cristal à luz solar. Depois de fazer esse pequeno - mas muito

significante - ritual, seu cristal estará pronto para ser usado.

O ankh é um antigo símbolo egípcio que nos lembra uma cruz, encimado por um laço.

Simboliza a vida, o conhecimento cósmico, o intercurso sexual e o renascimento. Também é

conhecido por vários bruxos como cruz ansata. O ankh é muito usado por várias bruxas para

encantamentos e rituais que envolvem saúde, fertilidade e divinação.

A triluna simboliza sagrada donzela, mãe e anciã. Tem as três faces femininas e é muito

utilizada em rituais de invocação à grande deusa mãe e deidades lunares.

O círculo - ou portal - representa o poder sagrado feminino, a mãe, a terra e o espaço. É o

símbolo universal de totalidade e união. O círculo sempre representa a deusa e é identificado pelo

elemento terra.

A vassoura, embora muitos ignorantes a associassem a um ser vivo, cheio de poderes, isso nunca

foi verdade. Ela é, para nós, como o cajado de Moisés. Usamo-la para varrer o espaço físico antes,

durante e depois dos rituais. Nos rituais de casamento, a vassoura representa um pacto, pois ela é o

símbolo da união da deusa com o deus. Conta-nos a lenda que, se uma vassoura cair ao chão, é um

sinal de que receberemos uma visita masculina em casa. Nas noites de Lua cheia, algumas bruxas

colocavam suas vassouras do lado de fora para espantar os maus espíritos. Minhas ancestrais

sofreram muito no passado por causa desse utensílio doméstico, pois os cristãos contavam horríveis

histórias e lendas. Como, por exemplo, a de que, em noite de Lua cheia, especificamente no dia 31

de outubro de cada ano, nós, bruxas, saíamos voando em nossas vassouras, à procura do primogênito

de cada família para, assim, o devorarmos. Com esse estranho e bizarro ritual, diziam que ficaríamos

mais fortes e poderosas.

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A mente humana é incrível, pois é capaz de criar qualquer coisa. Mas nunca cria algo

construtivo e apaziguador. Por causa dessas histórias, muitas mulheres morreram em Salém e em

outros países da Europa. É muito triste pensar em quantas pessoas inocentes foram condenadas

somente por causa de lendas criadas por pessoas com a mente fértil e maldosa. Essas histórias

também eram criadas, muitas vezes, para desviar a atenção dessas mesmas pessoas.

A viagem é uma forma de transe espiritual, onde limpamos a mente de tudo ao nosso redor e

imaginamo-nos dentro de uma grande luz. Geralmente, fazemos a viagem através do tempo para

descobrirmos, em nosso passado, quem fomos. Também é usada para que possamos adquirir

sabedoria e respeito pelas coisas às quais muitas vezes não damos valor. A viagem também é uma

forma de conhecermos o nosso eu interior.

A princípio, por causa da falta de fé e sintonia astral, só enxergamos um grande escuro mental.

Mas, mesmo dentro desse escuro, encontramos a luz e, muitas vezes, nossas ancestrais vêm ao nosso

socorro. Se a pessoa for realmente uma bruxa, vai saber o que digo. Todas vamos, quase sempre, ao

mesmo lugar. Nessa viagem, são mostrados fatos, objetos e o grande livro das sombras, de onde

retiramos uma enorme sabedoria.

Na viagem, é a nós revelado nosso nome ancestral, ou seja, o nome de bruxa, que nunca

deveremos falar a ninguém. Pois esse nome, em mãos erradas, faz-nos ficar vulnerável e à mercê de

qualquer pessoa - principalmente dos inimigos.

O triskelium - triskelio ou triskele - também representa a deusa em todos os seus aspectos

tríplices: donzela, mãe e anciã. O nascer, o viver, o morrer; o corpo, a mente e a alma, os mundos

celtas, a terra, o céu e o mar. É uma espécie de estrela de três pontas, geralmente curvadas, o que

confere ao símbolo uma grandiosa fluidez de movimentos. É um dos elementos mais presentes na

bruxaria. Também representa primavera, verão, outono e inverno. Está ligado, principalmente, ao

elemento terra. Alguns magos usam o triskele desenhando-o no corpo, como uma forma de caráter

nada mais do que simbólico.

O bastão - ou varinha - é um dos instrumentos mais importantes para as bruxas, pois funciona

como um instrumento de invocação. A deusa e o deus podem ser chamados para assistirem o ritual

por meio de palavras e de um bastão erguido. Também é, por vezes, utilizado para direcionar a

energia, para desenhar símbolos mágicos, círculos no solo, e para indicar a direção de perigo, quando

perfeitamente equilibrado na palma da mão ou no braço de uma bruxa. Também serve para mexer

um preparado em um caldeirão. O bastão representa o elemento do ar.

Há madeiras tradicionais para a confecção de um bastão. Dentre elas, o salgueiro, o sabugueiro,

o carvalho, a macieira, o pessegueiro, a avelã e a cerejeira. As bruxas o cortam com o comprimento

da ponta de seu cotovelo até a extremidade de seu indicador. Geralmente, o galho a ser cortado para

o bastão chama a bruxa para ele. É como se ambos fossem um só ser. Nenhuma outra pessoa pode ou

deve colocar as mãos no bastão de uma bruxa.

O Buril é um ferro usado para gravar nomes sagrados, números, símbolos em punhais, espadas

e também usado na fabricação de medalhões sagrados. Toda bruxa tem um medalhão que representa

o seu elemento.

O Prato de Sal simboliza a terra e é usado para purificação em banhos. Sempre devemos ter um

copo com sal atrás da porta de nossas casas, para puxar a energia negativa do ambiente.

O girassol é uma flor de cor amarela, formada por muitas pétalas, de tamanho geralmente

grande. Tem esse nome porque está sempre voltado para o Sol. O girassol simboliza a páscoa e

representa a busca da luz, que é Jesus Cristo. Assim como ele segue o astro rei, os cristãos buscam

em Cristo o caminho, a verdade e a vida. Usamos o girassol para produzir uma espécie de óleo para

bálsamos, que curam várias mazelas.

Eu precisava citar, também, a grande mártir Joana D’Arc: essa mulher que deu a vida pela

França e por seu rei, mas que, por causa da inveja e da ambição dos membros da Santa Madre Igreja,

foi traída e injustiçada. Para mim, Joana D’Arc foi um símbolo de luta e de amor. Por isso, dedico

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aqui, em meu diário, um cantinho a essa fabulosa mártir, que deve ser citada e lembrada por toda

bruxa, pois foi a mulher mais forte e corajosa que a História pôde contar. Alguém consegue imaginar

a força de liderança que havia nessa jovem mulher durante o período medieval da França? Nenhum

homem venceu ou vencerá essa mulher virtuosa. Essa é a minha opinião final.

Joana D'Arc foi uma mártir francesa, heroína da Guerra dos Cem Anos contra a Inglaterra. Sua

participação na História foi movida pela sua fé inquebrantável. Joana D'Arc nasceu no dia seis de

janeiro no ano de 1412, na cidade de Domrémy, em uma família modesta de camponeses. Faleceu no

ano de 1431, com apenas dezenove anos de idade. Aos doze anos, começou a ouvir as vozes divinas

de Santa Catarina e de Santa Terezinha. As vozes diziam-lhe para salvar a França das mãos dos

ingleses. Durante cinco anos, manteve essas mensagens em segredo, por medo de ser castigada pelos

pais ou pelo padre local.

Vale lembrar, aqui, que ouvir vozes estava totalmente relacionado às práticas de bruxaria da

época. É claro que não são bruxas todas as pessoas que ouvem vozes, mas Joana D’Arc ouvia vozes

que dizia ser de uma divindade. Se fosse de sua mente, ela provavelmente pensaria que estava louca,

mas não. Em todos os relatos sobre a trajetória de Joana D’Arc, há essa verdade. As vozes que ela

escutava eram de uma divindade – ou, como ela mesma dizia, dos santos.

Em seu julgamento, Joana D’Arc admitiu ter dançado ao redor da árvore das fadas. Um de seus

amigos que honrava as fadas também foi queimado como bruxo, na mesma época. Joana D’Arc

dizia que eles eram santos. Na verdade, em minha opinião, São Miguel e Santa Catarina eram ambos

antigas divindades disfarçadas de santos cristãos. São Miguel representaria, então, o deus Sol, e

Santa Catarina representaria Cerridwen. Isso pode explicar a popularidade desses dois santos como

patronos das igrejas e capelas construídos sobre colinas, os velhos santuários das alturas. Isso é uma

opinião exclusivamente minha, que fique bem claro.

Em 1429, ela deixou sua casa, na região de Champagne, e viajou para a corte do rei francês

Carlos VII. Lá, convenceu-o a colocar suas tropas sob seu comando e, então, partiu para libertar a

cidade de Orléans, que estava sitiada há oito meses pelos ingleses. Liderando um pequeno exército,

Joana D’Arc derrotou os invasores em apenas oito dias. Isso foi em maio de 1429. Um mês depois,

conduziu Carlos VII à cidade de Reims, onde ele foi coroado. As vitórias trazidas pelas tropas de

Joana D’Arc para Orléans, para a coroação do rei, fizeram a esperança do povo renascer. Embora

todos quisessem a liberdade a qualquer custo, o preconceito contra Joana D’Arc ainda era muito

grande - afinal, era uma mulher e, para eles, isso era o bastante.

A corte, na verdade, era influenciada pela Santa Madre Igreja, que não podia aceitar uma

mulher liderando um exército de homens e que, ainda, conseguisse ótimas vitórias estrategistas. É

importante que eu ressalte que, na época, as mulheres já eram bastante recriminadas, sujas e

pecadoras, de acordo com os eclesiásticos. Portanto, sempre vistas como inferiores aos homens.

Joana D’Arc escandalizou muitos padres pelo fato de se vestir com roupas masculinas e usar o

cabelo quase raspado. Esses homens puros de coração julgaram a maneira de se vestir de Joana

D’Arc como uma heresia - apesar de ter sido apenas a forma que ela encontrou para afastar o

preconceito da Igreja. Mas não posso deixar de lembrar que, em algumas tradições pagãs, as

sacerdotisas, por vezes, vestiam-se de homem para representarem o deus. Então, visto por esse lado,

os padres julgavam-na.

Joana D’Arc usava um curioso emblema, adotado por ela mesma para ser o seu estandarte

pessoal. O emblema era uma espada vertical com a ponta circundada por uma coroa, com uma flor-

de-lis de cada lado - figura idêntica ao da espada do símbolo místico, utilizado por ocultistas do tarô.

Joana D'Arc, afinal, era ou não uma bruxa? Por mim, consigo pensar na possibilidade de Joana

D’Arc ter sido uma bruxa de verdade. Mas é claro que o conceito de bruxa em 1420 não é o mesmo

conceito de bruxa em 1822. Pois Joana D’Arc, embora tenha liderado um exército de homens, na

verdade, foi apenas manipulada e usada pela Igreja o quanto sua ajuda lhes foi conveniente, até o dia

em que acharam que ela não lhes seria mais útil.

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Não posso me esquecer dos muitos mitos envolvendo a grande deusa caçadora Diana, que

demonstrou uma enorme força de vontade e coragem. Em suas trajetórias de vida, Joana D'Arc é

bastante semelhante. Podemos ver na história da deusa Diana os muitos traços da deusa caçadora.

Na primavera de 1430, Joana D’Arc retoma a milícia e tenta libertar a cidade de Compiégne,

que havia sido dominada pelos borgonheses, aliados dos ingleses. Depois de mais uma vitória, Joana

D’Arc foi traída, capturada, e entregue aos ingleses, pelas mesmas pessoas que ela sempre ajudou.

Isso foi no dia vinte e três de maio do mesmo ano. O interesse desses fatos, no entanto, não era

simplesmente matá-la ou torturá-la: eles queriam ridicularizá-la na frente do seu próprio povo.

Agiram dessa forma porque a influência de Joana D’Arc entre os camponeses era muito grande e,

com isso, a Igreja estava com medo de perder seus adeptos, assim como a coroa tinha medo de

perder a confiança real de seus súditos. Creio que ambos julgavam que Joana D’Arc, por ter

conseguido tanta confiança do povo, poderia um dia vir a exigir a coroa para si. Isso preocupou o rei

e a Igreja, pois não poderiam jamais pensar na hipótese de serem governados por uma mulher.

Alguns tinham o conceito de que as bruxas tinham grande influência sobre o povo, pois, para

eles, elas eram as parteiras da região, ou as curandeiras conhecedoras de ervas - o que não era

verdade. Mas, mesmo assim, a Igreja achava que o povo ficava dependente delas não pela caridade

que elas prestavam, mas pelo suposto feitiço que elas lançavam sobre eles. Mais uma vez, era uma

inverdade, pois o que acontecia é que muitas pessoas, por serem muito pobres, achavam nessas tais

supostas bruxas a única solução para curarem suas moléstias. Mas Joana D’Arc foi mais que uma

parteira ou curandeira: ela foi uma simples camponesa que quase dominou um reino, por falar com

espíritos e derrotar os inimigos da coroa. Para a Igreja, Joana D’Arc quase estava tirando sua

liderança. Foi por isso que a condenaram por bruxaria e heresia.

Joana D’Arc foi submetida a um tribunal católico em Rouen, sendo condenada à morte após

meses de julgamento, na mesma cidade. No dia trinta de maio de 1431, foi queimada viva. Suas

cinzas foram jogadas no rio Sena. A revisão de seu processo começou a partir de 1456, e a Igreja em

ascensão - por certo para reparar seus erros, e até por uma questão política – canonizá-la-ia

futuramente.

Joana D’Arc era mesmo uma bruxa? Pergunto-me sempre isso. Não tenho dados detalhados

sobre a vida dela a ponto de dizer se ela era uma bruxa ou não. Mas, através dos fatos que tenho,

posso chegar bem perto do conceito de bruxaria. Então, para mim Joana D’Arc foi a maior bruxa e

símbolo feminino guerreiro de todos os tempos.

Quem para a Igreja Mãe é verdadeiramente digno? Em minha opinião, é muito injusto santificar

uns por conveniência e condenar outros só porque não concordam em ser como os demais. Mas eu

era apenas uma minoria, e era muito pouco provável que alguém me ouvisse.

Bom, fico feliz por ter contado a história da mulher que, para mim, foi mais que uma simples

mártir. Para mim, Joana D’Arc foi a minha heroína.

Antes de terminar a parte sobre o livro das sombras, quero esclarecer algumas dúvidas que sei

que fará muita diferença para as minhas gerações futuras. Como, por exemplo, a diferença entre as

bruxas e os magos. Sei que é sempre uma pergunta muito básica, mas que causa muita dúvida. Faz

muita diferença obter uma resposta clara, pois eu mesma a tive. E, vendo por esse prisma, explico

aqui: o mago é quem pratica magia, a bruxa é quem pratica bruxaria. Pode parecer simples e óbvia

essa diferença, não é mesmo? Mas não é bem assim.

A magia tem diversos ramos de estudo, e a bruxaria é apenas um deles. A bruxaria é uma forma

específica de magia que utiliza elementos da natureza. A bruxa pode ser uma maga e não ser bruxa.

Pode trabalhar com a magia sem estar ligada à bruxaria. O foco do mago é a própria magia: ele lida

com ela o tempo todo. Estuda correspondências, astronomia, tabelas, transfigurações, hermetismo,

espíritos, cabala, cálculos diversos, necromancia e tudo o que estiver relacionado à magia. Uma

bruxa não necessariamente lida somente com seus objetos de prática no dia-a-dia, como o modo de

cultivo e preparo de ervas, rituais para a Lua e o Sol... coisas desse tipo.

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O segredo dos girassóis

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Não que um seja melhor ou pior que o outro, mas a evolução de um não foca a maneira de

trabalho do outro. E isso os torna diferentes. Não que as bruxas não sejam racionais, obviamente.

Mas é que os magos calculam milimetricamente cada ação, cada ritual, e cada trabalho que vão fazer.

Eles usam os símbolos dentro de cálculo, como uma coisa cerimonial.

A bruxa é infinitamente mais simples: colhe as ervas e, no momento seguinte, já está sujando as

mãos para preparar o unguento. Toda bruxa pratica magia, mas é a magia natural, simples. A

tradição, por exemplo, tem muito tanto da bruxaria quanto da magia cerimonial. E usamos os objetos

como o athame, a espada, o cálice, o caldeirão e a vassoura, que são indispensáveis. Não dispomos

desses objetos – que, para nós, são indispensáveis -, mas também não fazemos da magia uma coisa

tão complicada. Muito pelo contrário: trabalhamos com a magia usando dela a força da natureza. É

como se fosse uma união, fazendo, assim, com que as forças ocultas se tornem nossas aliadas.

Uma bruxa, em caso de necessidade, pega qualquer tipo de faca que estiver ao seu alcance - essa

é uma das grandes diferenças da magia. Um mago é como um astrônomo: ele é aquela imagem

tradicional do homem sentado, rodeado por milhares de livros. O mago é um eterno pesquisador e

alquimista.

É bastante comum existir uma tradição familiar de bruxas e de magos? Nem tanto. Magos

formam ordens e toda bruxa é pagã. Os magos não necessariamente - aliás, muito raramente - são de

origem cristã. Claro que existem controvérsias. E também existem bruxas que, como eu, tiveram

formação cristã.

Isso ocorreu em diversas partes da Europa. A História e a tradição convencional religiosa

fizeram com que isso acontecesse. E foi por causa da liberdade de expressão religiosa que nós,

bruxas, sempre lutamos contra aqueles que se diziam os donos da verdade e do destino das pessoas.

Não é justo que todos tenhamos que seguir uma mesma religião, somente porque isso se tornou uma

imposição e não uma vontade. Não estou, de forma alguma, querendo que o cristão se converta ao

paganismo. Muito pelo contrário, respeito-os e somente quero que me aceitem como sou e pelo que

sou - assim como os aceito da mesma forma.

Outra diferença - ainda citando a cultura - entre os magos e as bruxas é a origem de suas

práticas. Os magos possuem práticas centradas nas antigas tradições persas, egípcias e babilônicas.

As bruxas, porém, têm suas crenças enraizadas nas culturas europeia, celta e italiana.

O fato é que estamos na Terra há muitos séculos. Somos o espinho atravessado na garganta dos

inquisidores, dos preconceituosos e dos ignorantes. Querendo ou não, muitos vão ter que nos engolir,

pois somos filhas do mesmo e único Deus. Logicamente, isso tem sido uma luta desigual e

silenciosa, na qual muitas de nós foram sacrificadas como ovelhas. Mas essas pessoas, por viverem

na ignorância, não sabem que a morte, para nós, é apenas um começo - embora o caminho que nos

levasse até a ela fosse bem árduo e doloroso, pois passávamos por várias sessões de torturas antes de

morrermos. O que, para esses ignorantes, era como uma forma de penitência e salvação para nossas

almas pecadoras.

Todos os seres humanos têm dentro de si uma bruxa ou um mago. O difícil é alguém querer

admitir isso. Em todo lugar deste planeta sempre haverá uma bruxa ou um mago. Isso pode parecer

uma loucura, mas quem entre vós não sois loucos? Quem entre vocês, ao ver que o filho está

doente, não recorrerá a uma velha receita caseira para tentar salvá-lo? Quem entre vocês que, ao

cozinhar, já não quis dar certo sabor diferente à comida? A culinária é a forma mais simples e a

mais fantástica de praticarmos alquimia, através da mistura das ervas e dos temperos. Misturar

temperos e ervas é o que de melhor fazem as bruxas e os magos.

Quem nunca amou e depois adoeceu? Quem nunca sentiu uma enorme vontade de voar nas asas

do vento? Quem nunca sonhou? São perguntas simples e aparentemente tolas, mas que não

conseguimos responder por medo de ouvir a resposta que está dentro de nossos corações. Tudo que

quis, em toda a minha vida, foi ser livre e poder exercer o meu dom em paz. Tudo o que quis foi

amar livremente, sonhar livremente, beijar livremente. Tudo o que quis foi ter podido ser uma

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mulher com o direito de ir e vir. Mas essa liberdade foi-me tirada, porque nunca quis aceitar ser o

que eu não era. Será que todas essas pessoas que me condenaram a uma vida de cárcere nunca

participaram de algum tipo de sabhat ou outro ritual da magia?

Esse é outro ponto crucial da magia: não importa qual o momento em que uma pessoa tenha

participado de um sabhat ou qualquer ritual, ela deve saber que ficará presa à magia para todo o

sempre. Pois a magia é como se fosse um cordão umbilical: só se separa um ser do outro após

cortado.

Toda bruxa ama a natureza, as árvores e os animais. Cuidamos deles como se fossem nossos

irmãos e auxiliares. Isso é uma coisa que nos difere dos seres humanos comuns. Enquanto cuidamos

das coisas que Deus nos deu, o restante da humanidade as destrói impensadamente. Somos

extremamente livres - por isso, não gostamos de prisões. O contato com a mãe terra e seus

elementos é a fonte da nossa vida. Aprisionar uma bruxa é morte certa para ela. É como o amor

verdadeiro: se o deixarmos livre, o prendemos; mas se o prendermos, ele se sente sufocado e se vai.

Consegui descobrir e saciar minha fome de saber através das literaturas proibidas. Confesso

que esse tipo de literatura era-me muito excitante. Foi através dela que me diferenciei das demais

pessoas. Através desses escritores, considerados obscenos e de caráter duvidoso, descobri meu

universo. Por isso, quando fui apresentada à magia, eu já estava bastante familiarizada a ela. Na

verdade, sempre fui uma solitária, devido à forma com que me criaram. Mas, mesmo assim, eu

ainda era diferente, pois, naquela época, ainda podia contar à Maria tudo o que se passava comigo.

No entanto, depois de fazer parte do círculo mágico, não podia mais, nem em meus sonhos, colocar

Maria nos meus planos, pois isso seria muito arriscado e a colocaria em risco de vida.

Eu realmente gostaria de ter sido igual às moças da minha idade. Assim, teria sido amada pelo

meu pai. Mas a vida é cheia de caminhos e, como cada caminho tem uma escolha, preferi ter feito a

minha. Na verdade, isso não poderia ter sido diferente, pois as moças da minha idade eram vazias e

sem objetivos concretos. Já os rapazes não tinham assuntos para mim, inclusive porque achavam

que nós, mulheres, só servíamos para procriar. Algumas mulheres talvez aceitassem esse tipo de

situação vergonhosa, mas nunca poderia me sujeitar a viver ao lado de alguém sem amá-lo.

Não me engrandeço por ser diferente, jamais fiz isso. Mas confesso que olhava aquela gente de

uma maneira perplexa e diferente. Não fazia isso por arrogância ou por preconceito. Na verdade,

queria tentar entendê-los melhor, pois não conseguia imaginar como conseguiam viver de uma

maneira tão igual e sem sentido pra mim.

Antes de conhecer os caminhos da magia, eu era uma jovem muito tímida e oprimida pelas

vontades da minha madrasta. Pensava que minha vida nunca teria outra opção além de ter que

seguir, um dia, o que ela sempre me impunha: ou seja, casar-me com um homem mais velho e ser

completamente infeliz e autômota. Mas, no meu íntimo, tinha comigo que não era correto uma

mulher ser escrava de seu marido. Achava que ambos tinham que ser cúmplices, em todos os

sentidos. Era assim que eu via uma união de amor: como um todo. Não me arrependo de ter

escolhido meu caminho, embora pense que minha tentativa de ter encontrado o meu único amor foi

em vão.

Houve tempos em que passei quase um mês trancada em meus aposentos. Não saía nem para

beber água, somente para poder terminar de ler certo livro, cujo autor me fascinava com a maneira

com que descrevia a forma de ver as pessoas. Esse autor foi muito temido pela Igreja e a corte

francesa, pois descrevia a imoralidade e o sadismo dos monarcas e dos padres. Ele traduzia

perfeitamente a maneira cruel e sádica com que os castos virtuosos padres viam as mulheres em

geral. Resumindo: para mim, ele foi mais um herói da literatura e da liberdade de expressão. Como

eu disse, a literatura considerada devassa, obscena e perigosa excitava-me, porque nela descobri

verdadeiramente a maneira livre de as pessoas escreverem o que realmente viam e sentiam.

O caminhar de uma bruxa exige muito estudo, muita leitura e disciplina. Quanto mais uma

bruxa lê, mais se aprimora em seus conhecimentos ocultos. Isso requer tempo, paciência e

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obstinação da aprendiz. Embora eu tivesse sido uma rebelde, encaixava-me nas outras duas

regrinhas básicas da bruxaria: leitura e estudo.

As pessoas da minha época - ou de qualquer outra, creio - não suportavam que alguém fosse

mais inteligente e literário do que elas. O conhecimento e a cultura sempre será a principal forma de

discórdia entre os homens e mulheres - principalmente quando a leitura tornar a mulher mais

competitiva e capaz, e menos escrava dos caprichos masculinos.

Gostaria, sinceramente, que minha ancestral tivesse lido esses pensamentos. Ela com certeza

iria se orgulhar de mim, assim como me orgulhei dela.

Não deixei herdeiros como Shaara. Não que não quisesse, mas porque os que se diziam ter

autoridade sobre mim privaram-me do dom de ser mãe e de também viver um grande amor ao lado

da pessoa que escolhi.

Meus algozes, em todas minhas duas encarnações, foram as pessoas que mais amei. Pessoas

que determinaram que meu tempo terreno se extinguisse por conta delas. Deus presenteou-me a

vida, mas não pude honrar esse compromisso segundo a Sua vontade, pois me tomaram esse

presente, que somente Deus poderia ter tomado de volta.

Essa também seria a segunda vez em que perderia a minha juventude cedo, por imposição da

Inquisição e da Igreja em ascensão. Mas, dessa vez, deixei registrada a forma como meu destino foi

modificado por imposição de pessoas do meu convívio, que se julgavam com o direito de modificar

a minha maneira de ver o mundo.

Creio que, em um futuro próximo, o homem continuará a ser sua própria derrota, o seu próprio

carrasco e o seu próprio algoz, mas nunca vai perder essa arrogância e essa presunção de ser o

senhor de todos os destinos. O homem nunca deixará de querer ser como Deus. Creio que, por isso,

o Mestre tenha se arrependido de nos ter criado. Assusta-me esse pensamento e faz-me sentir

terrivelmente impotente em saber que nunca nada disso mudará, simplesmente porque o ser humano

nunca deixará de ser competitivo, ambicioso, covarde e infinitamente cruel.

Qual é a diferença entre bruxas, santos e inquisidores, sendo que todos somos filhos de um

mesmo Pai? Quando nos debruçamos sobre a relação entre as acusadas de feitiçaria com os

inquisidores que as conduziram em seus processos, muitas vezes deparamos com essa pergunta.

Especificamente, respondo da seguinte forma: bruxas são pessoas que lutam por uma ideia de

liberdade que não condiz com as normas da Santa Madre Igreja. Os santos foram pessoas que

lutaram por um ideal de paz. Mas, ao contrário das bruxas, baixaram a cabeça e entregaram-se como

ovelhas prontas para o abate. Devo dizer que o fato de terem seguido as normas morais da Santa

Madre Igreja de nada lhes adiantou, pois muitos dos santos também foram torturados e morreram da

mesma forma que nós, bruxas. Os inquisidores são pessoas que receberam da Santa Madre Igreja o

poder de julgar o seu semelhante. Abusaram desse poder para usufruir de benefícios próprios. Esses

homens, além de verem as coisas como eles querem, induzem seus supostos acusados a falarem o

que eles querem que seja dito em tribunal. Essa foi a minha opinião formada a respeito da grande

diferença entre os santos, as bruxas e os inquisidores. Não me importava o que a Inquisição pudesse

me fazer, nunca poderia deixar que se calasse a verdadeira voz da verdade. Como essas pessoas

poderiam se julgar superioras ou donas da verdade, sendo que elas praticavam atrocidades e

mentiam até mesmo sobre a verdadeira palavra de Deus?

Grande parte das confissões foi obtida através de requinte de crueldade. Sim, requinte de

crueldade, pois, depois de torturarem e matarem os inocentes, esses homens virtuosos e sem

pecados voltavam para suas casas e comportavam-se como lordes. Era como se a monstruosidade

que eles praticavam nos calabouços e nas prisões não surtisse nenhum efeito sobre a sua

consciência. Eles chamavam essa atrocidade de trabalho.

Tudo o que uma mulher fizesse era motivo para que fosse acusada de feitiçaria. A suposta

bruxa deixava de falar a sua língua, passando a falar a língua do inquisidor, através da manipulação

ou da tortura.

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A acusação por bruxaria surgia sempre a partir de um suposto malefício. Podia ser a doença

repentina de uma pessoa ou de animais domésticos ou, em casos menos comuns, problemas

causados à plantação ou, ainda, ao próprio clima. Em Salém, as denúncias surgiram a partir da

súbita doença inexplicável de meninas, que nada mais tinham do que uma histeria coletiva.

Em Boston, em 1688, as filhas do senhor John Goodwin, ao adoecerem, levaram a julgamento

a senhora Mary Glover. Ela era uma pessoa do convívio de todas aquelas que a acusaram

levianamente. Não importava qual fosse o argumento, o importante era sempre achar um culpado e

acusá-lo de algum tipo de crime – pois, assim, parecia que aliviava a culpa e a conciência daqueles

hipócritas.

No vilarejo de Salém, ao norte de Boston, na colônia de Massachusetts Bay, Nova Inglaterra,

Sarah Good - uma mendiga louca -, Sarah Osborne - uma parteira - e Tituba - uma escrava indígena

de Barbados - foram acusadas, em primeiro de março do ano de 1692, de prática ilegal de feitiçaria

e de manterem contato com o demônio. Naquele mesmo dia, Tituba, possivelmente sob coerção,

confessou o crime, encorajando as autoridades a iniciar uma caça às bruxas de Salém. Uma

verdadeira histeria coletiva espalhou-se, dando margem à intolerância e ao fanatismo religioso que

se seguiu. Tais fatos vitimaram, no início, quase vinte pessoas inocentes. Os problemas na

pequena comunidade puritana começaram no mês anterior, quando Elizabeth Parris - uma criança

de apenas nove anos - e Abigail Williams - de onze anos -, filha e sobrinha, respectivamente, do

reverendo Samuel Parris, passaram a sofrer ataques compulsivos e outras misteriosas doenças. O

médico local, como não achou nada nas meninas, concluiu que só poderiam estar sofrendo os

efeitos de uma bruxaria muito poderosa. Logicamente, elas colaboraram para que o médico

chegasse a essa conclusão. Na verdade, essas santas e inocentes crianças estavam sendo usadas por

seus pais para acusarem pessoas que provavelmente eram odiadas por eles. O reverendo Samuel

Parris, por exemplo, cobiçava as terras do senhor Giles Corey. E como o senhor Giles Corey negou-

se a dispor de suas terras, então, com a ajuda das inocentes meninas, o reverendo Samuel conseguiu

acusá-lo de prática ilegal de bruxaria. Esse pobre homem, então, foi sentenciado e executado por

esmagamento. O devaneio dessas supostas inocentes crianças prosseguiu por muito tempo ainda.

Com isso, diversas pessoas inocentes - entre homens, mulheres e até mesmo uma criança de quatro

anos - morreram por terem sido acusadas de praticar a bruxaria. Ao todo, dezenove pessoas

morreram por causa da pirraça e devaneio de treze meninas e de seus pais gananciosos. Devo

ressaltar que nenhuma dessas pessoas praticou algum tipo de bruxaria contra nenhum de seus

acusadores. Todos os fatos ocorridos foram causados por pessoas maliciosas, capazes de se valerem

da imaginação de meninas mimadas, mentirosas e dissimuladas. Esses tipos de pessoas contribuíram

para que o bom nome das bruxas e da magia fosse denegrido de maneira corriqueira e leviana.

O fato é que a magia estava em todos os lugares, embora ninguém quisesse admitir - por medo

ou puro preconceito. Os santos e os demônios também sempre, de alguma maneira, estiveram

interligados através da leitura e da escrita. O próprio Santo Ofício mostra-nos diversos exemplos de

orações e conjuros, em que os nomes de Cristo, da Virgem Maria e de santos misturam-se, numa

mesma frase, aos de satanás, Lúcifer e outras potestades infernais.

Afinal, há ou não diferença entre uma santa e uma bruxa? Não sei ao certo. Diziam que santos

nunca cometiam pecados e que curavam os enfermos em nome de Deus. O fato é que isso não é

toda a verdade, pois existiram apóstolos que foram corruptos e ladrões - assim como também existiu

bruxa incorruptível, que foi capaz de morrer apenas por acreditar em uma causa de liberdade e de

igualdade. Assim como os santos curam em seus supostos milagres, curandeiros e bruxos também o

fazem. Eu mesma já ouvi e vi pessoas de bem dentro da Igreja pedindo a Deus para matar a amante

do marido em oração. Algum tempo depois, soube da morte da amante. Também já vi pessoas

pedirem a outras divindades para serem curadas de suas enfermidades, e também foram curadas. Na

verdade, não é a quem pedimos, mas com que força e fé pedimos. Saber pedir é essencial, mas saber

o que pedir é primordial. Pois tanto Deus quanto o diabo irão atender ao pedido do consulente

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devotado e aflito. A diferença é que Deus sonda-nos para saber se somos merecedores de termos o

pedido realizado. Já o diabo concede quase imediatamente, pois - devemos nos lembrar disso - está

em constante disputa com o Pai Maior.

Deixo registrado que nunca foi a minha intenção glorificar o demônio. De modo algum – que

isso fique bem claro! Só estou tentando mostrar a igualdade das forças e a grandeza da fé.

Somos Deus e também o demônio, porque nos foi dado o livre arbítrio de poder direcionar a

nossa vida e escolher qual caminho tomar. Logicamente, se podemos escolher o caminho do bem,

por que, então, escolheremos o caminho mal? O problema é que o ser humano está sempre querendo

mais. Na maioria das vezes, é derrotado pela falta de fé e pelo excesso de vaidade que domina o seu

ser.

Costumo dizer que o ser humano é infinitamente cruel com a boca fechada e, com ela aberta,

destrói e guerreia. Somos fruto do pecado de nosso ancestral Adão, mas não fazemos nada para nos

livrar dessa praga.

Não somos francos, mas sim curiosos, teimosos e inconsequentes quando desafiamos as leis de

Cristo. Nossa arrogância nos destrói, só nos leva ao inferno da consequência dos nossos atos

impensados. O pior é que não sabemos aonde toda essa loucura temperamental chegará. Mas o certo

é que temos a obrigação de parar em algum momento de nossas vidas e refletir que estamos nela

para aprender e aprimorar. Foi para isso que nos foi dada a chance de reencarnar. Ou será que

vamos ficar como o vento, que sopra em qualquer lugar sem direção, sem nunca poder ter um porto

seguro para pousar? Lembre-se: o vento é o nosso mensageiro, a alma do mudo, e o seu destino é

correr os quatro cantos da Terra, sem ter o direito de parar - pois ao vento foi dada essa missão.

Quanto a nós, foi-nos incumbida a missão de cuidar da Terra e das coisas que nela existem. Por

isso, refletir e pensar sobre nossas ações e atitudes é muito importante.

Utilizo aqui as expressões bruxas, feiticeiras e acusadas de feitiçaria, no feminino, levando em

consideração que uma parte significativa da população condenada nos processos inquisitoriais foi

formada por nós, pobres mulheres, além do fato de que o estereótipo da bruxa está muito mais

consolidado do que o do bruxo. As observações constantes, no entanto, aplicam-se igualmente aos

muitos homens acusados, julgados e condenados pela Inquisição que, na maioria das vezes, eram

camponeses pobres e escravos, sem direito sequer a uma defesa justa.

Terminei minhas anotações e fui para a janela, agradecer ao Pai Maior pelas inspirações que

Ele me deu. Agradeci por tudo, pelos amigos maravilhosos que eu já tinha e pelos que ganhei

através do meu mais novo caminho. Em minhas orações, pedi sabedoria e discernimento aos bons

espíritos, para que guiassem meus passos através da minha mais nova jornada – que, embora

transitória, seria de grande valia para o meu aparelho. Pois ele ainda era só um aprendiz e não estava

pronto para a sua despedida, que seria em breve. Pedi luz e compreensão para que, quando

encontrasse o espírito encarnado de Edward, pudesse fazê-lo entender seu erro cometido no

passado, quando fez a jura de me encontrar, seguir-me e amar-me por toda a eternidade. Depois

disso, fiz alguns rituais de adoração ao deus Sol. Terminando minhas obrigações matinais, observei

a enorme floresta que cercava a casa de Dona Helena e pude notar que as pessoas já estavam todas

acordadas, cumprindo suas obrigações e afazeres diários.

Como eu estava de pé, mas virada para a janela, não pude perceber que Bernadete já estava

acordada e observava-me em todos os meus movimentos e ações. Quando me voltei para o lado de

dentro, ela falou:

_ Agora sei, senhorita Anna. Está preparada para enfrentar o que lhe for incumbido pelo

universo através da magia. Só se lembre de nunca esquecer o que aprendeu em sua viagem astral, e

de não usar os seus poderes para o mal. Deve saber que, quando usar seus poderes para fazer algum

feitiço ou para entrar em sintonia com os espíritos, ficará fraca. Mas não se assuste com isso:

procure um lugar silencioso para repousar e, se possível, durma, para que as suas forças voltem.

Quando isso ocorrer, é muito importante que, caso esteja perto de alguém, essas pessoas não

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descubram de sua fragilidade, principalmente os seus inimigos. Pois, nessa hora, ficará vulnerável e

indefesa - o que pode ser perigoso, pois qualquer pessoa poderá prejudicar-lhe, seja física ou

espiritualmente.

Dei um largo sorriso. Confesso que fiquei um pouco encabulada por saber que Bernadete

poderia estar ali havia horas, observando-me. Depois de ouvir atentamente o que Bernadete estava

me explicando - embora já estivesse ciente de tudo o que ela estava me dizendo -, achei melhor

calar-me, pois demonstrar humildade nunca é demais.

Quando percebi que minha jovem amiga havia feito uma pausa em suas explicações, respondi:

_ Aprendi muito com a minha viagem. Fiquei muito satisfeita por saber que vou reconhecer o

meu amor assim que o vir.

Bernadete baixou a cabeça e, com um ar pesaroso, respondeu-me:

_ Sinto muito ter que ser eu a lhe dizer isso, senhorita Anna, mas não é bem assim: ele pode

demorar a reconhecê-la, e talvez nem a reconheça. Portanto, ao encontrá-lo, vá com calma, para não

confundi-lo ou assustá-lo. Sendo ele um monge, poderá achar que está possuída por um espírito

maligno - isso é muito perigoso. Além disso, ele poderá excomungá-la. Lembre-se de que o seu amor

foi, no passado, um inquisidor. Mesmo que ele não saiba disso, traz consigo, inconscientemente, as

lembranças de quem foi. Se a senhorita não tiver discernimento, poderá cair no abismo da revolta e

do desentendimento com ele. Os dois precisarão estar em uma perfeita sintonia astral, para que se

reconheçam de imediato, assim como a senhorita deseja que aconteça. Todos temos a obrigação de

nos lembrarmos de nossas vidas passadas. Mas, muitas vezes, o sofrimento ou a culpa nos fazem

querer apagar nossa memória passada. Lembre-se disso, senhorita Anna, para que não se machuque

com uma grande decepção.

Embora soubesse que Bernadete estava correta, tive que respondê-la com um pouco de

intolerância, usando a plena certeza do meu coração:

_ Respeito tudo o que está me dizendo, minha querida amiga. Mas tenho certeza absoluta de

que ele também sonha comigo e que está me esperando tão ansiosamente como estou por ele. Em

minhas visões, sei que ele é um homem solitário e sem ninguém, assim como eu. Sinto o sofrimento

dele, a vontade dele de estar comigo, mesmo sem saber quem sou. Talvez sua aparência física tenha

mudado, mas nossos olhos espelharão nossas almas, pois trazemos uma bagagem muito grande de

outras encarnações.

Na verdade, não queria ouvi-la. Queria pôr minha certeza acima de tudo, porque a certeza de

amar e de ser amada era a única coisa que me importava. Mesmo que Bernadete estivesse coberta de

razão, eu sabia que, muitas vezes, as palavras, mesmo que verdadeiras, podem se tornar um veneno

para a nossa mente, pois acabam gerando dúvidas em nossos corações. Por isso, quis calar a voz

dela antes que entrasse qualquer dúvida dentro da minha mente e do meu coração. Mas Bernadete

parecia ter a necessidade de tentar me orientar e, antes mesmo que eu tentasse argumentar

novamente, ela prosseguiu:

_ Sua certeza deixa-me, sinceramente, preocupada, senhorita Anna. Temo por uma grande

decepção. Fala como se já tivesse se comunicado com esse homem antes. É como se ele já tivesse

falado do amor dele por você.

_ Quem garante que ele não falou? Não é fato que, em nossos sonhos, podemos sair de nossos

corpos físicos e viajar através espaço? Não é verdade que, através dos nossos sonhos, chamamos um

espírito para junto de nós? Digo-lhe, minha querida amiga, que isso já aconteceu comigo várias

vezes. Bernadete, estou presa a esse homem por causa da jura de amor que, por mais inconsequente

que pareça, ligou-nos através do tempo e do espaço. Se esse homem é o meu suposto amor, e se

realmente está vivendo nesse convento ou mosteiro com o qual vivo sonhando, com certeza é porque

meu destino está ligado ao dele. Confio no destino e, de alguma maneira, ele se incumbirá de nos

colocar juntos. Não se preocupe, minha querida amiga: estarei preparada, mesmo que ele me rejeite a

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principio, pois aprendi que a espera e a paciência nos fazem sábios e fortes. Mas uma coisa é certa:

tenho que encontrá-lo e não poderei rejeitá-lo, mesmo que seja desprezada por ele.

_ Senhorita Anna, está tão mudada depois que voltou da viagem! Não parece a mesma pessoa

que aqui chegou, cheia de dúvidas e perguntas tolas. É como se agora outra pessoa tivesse tomado

seu corpo físico. Parece que agora a senhorita sabe todas as respostas e faz-me acreditar em tudo,

pela forma firme com que direciona suas certezas. Sabe, quando fiz minha viagem, pensei ter voltado

forte e preparada para enfrentar todas as minhas dúvidas. Pois não estava certa se o meu noivo

Magald era meu verdadeiro amor, porque eu vivia em um mundo de conflitos e angústias

desnecessárias. Se quer saber, até hoje ainda tenho algumas dúvidas sobre o nosso amor. Mas a

senhorita voltou muito forte, sábia, e tão segura! Minha tia Helena tem razão quando disse que a

senhorita é uma bruxa muito poderosa. Fomos abençoadas por termos lhe despertado esse dom. Sabe

o que mais? Tenho muita sorte por tê-la conhecido, por sermos amigas agora. Na verdade, agora sou

eu quem tem muito o que aprender com você, senhorita Anna. Se a senhorita me permitir, quero ser

sua aprendiz nos segredos da magia.

Dei um sorriso prazeroso, mas lhe disse:

_ Teria a maior honra em tê-la como minha aprendiz, minha cara Bernadete. Porém, seu destino

já está escolhido e creio que não poderia tê-lo feito de maneira mais sábia. Acredite: terá ao lado de

seu noivo Magald dois lindos filhos, e ambos serão muito felizes. Cada um nesta vida tem a sua

jornada já programada pelo destino. A sua não poderia ser melhor: é tranquila, feliz e sem

problemas.

Disse isso porque toda a vida daquela jovem passou perante meus olhos, nitidamente. Naquele

momento, eu acabara de ser abençoada com o dom da visão.

Bernadete, depois de me ouvir em silêncio, sorriu-me largamente, pois ficou feliz por ter-lhe

revelado algo que ela já sabia, mas em que não confiava – pois, como todo ser humano, ela não cria

em suas próprias intuições. Muitas vezes, temos a certeza de que nossos projetos de vida irão dar

certo, mas, por vivermos ansiosos e cheios de perguntas, acabamos por não acreditar nas respostas

do nosso coração. Todos temos a visão do nosso próprio futuro, só que não damos muita

credibilidade ao dom maravilhoso que Deus nos deu. Preferimos consultar, então, cartomantes,

quiromantes e outras pessoas que nem sempre são honestas em suas previsões. Isso só nos serve para

nos confundir sobre o que realmente pertence a nós. Todas as respostas estão dentro de nós mesmos.

Somos o nosso próprio guia - basta que acreditemos e confiemos em nossas intuições. Isso quer dizer

que podemos abrir ou fechar as portas da prosperidade, cuja chave está dentro da nossa mente que,

muitas vezes, está insana ou debilitada pelos muitos fracassos já ocorridos em nossas vidas.

Tudo o que nos acontece, de alguma maneira, é porque o programamos mentalmente. No

entanto, ao invés de termos pensado em algo destrutivo, poderíamos ter simplesmente pensado em

algo muito grandioso e produtivo. Mas o ser humano prefere pensar negativo e se passar por coitado,

do que tentar pensar positivo e ver as coisas maravilhosas que os pensamentos felizes podem lhe

trazer.

Cada vez que uma bruxa chora e usa seu poder, ela enfraquece, pois a lágrima tira-lhe a visão

real das coisas. Quando uma bruxa faz um feitiço, isso também ocorre, porque ela está gastando sua

energia espiritual. Então, ao invés de ficarmos danificando nossos pensamentos com coisas

supérfluas e desnecessárias que não nos levam a lugar nenhum, devemos pegar um bom livro para

ler, pois o saber é o ponto-base da capacidade de uma bruxa. Somos eternas aprendizes, inclusive de

nós mesmas. Não devemos ter um autor específico: mesmo os mais chatos e banais têm algo a nos

ensinar. Pois nossa mente tanto nos é produtiva como também autodestrutiva.

Devemos aprender a trabalhar o silêncio mental. Esse é o mais difícil de todos os dons, pois a

mente nunca para de falar. Muitas vezes suas palavras transformam-se em ofensas ou injúrias. As

palavras que saem da nossa boca podem se transformar em uma coisa extremamente prejudicial para

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O segredo dos girassóis

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nós mesmos. Principalmente quando não confiamos em nossas intuições e saímos por aí, pedindo

ajuda a qualquer pessoa que não tem um bom caráter...

Certa vez, Maria contou-me a história de uma jovem mulher que recebeu, em seus sonhos, a

notícia de que ganharia uma grande herança, vinda de um parente do interior. Essa mulher nunca

chegou a conhecer o suposto parente e, ainda por várias noites seguidas, continuou a ter o mesmo

sonho. Tudo o que ela deveria fazer foi-lhe confirmado, inclusive o dia e a hora em que ela receberia

a suposta herança. Então, a jovem ansiosa mulher foi invadida por um espírito de vaidade excessiva

e acabou se tornando desleal consigo mesma: contou aquela história a todos que encontrou pela

frente. Criou, então, uma energia ao seu redor de inveja e zombarias, pois muitos, por não

acreditarem nela, também a chamaram de louca.

A mulher, por não ter confiado em sua própria intuição, correu a uma bruxa, que diziam ser

bastante eficaz em revelar inclusive os sonhos. Lá, a jovem mulher contou-lhe tudo o que estava

passando. A suposta bruxa ouviu-a em total silêncio e, mesmo depois de ter recebido uma resposta

positiva através de suas cartas, disse à sua consulente que era apenas um sonho, tornado frequente na

vida dela porque ela estava preocupada com suas muitas dívidas. A suposta bruxa, então, mandou

que a consulente voltasse para casa e esquecesse toda aquela tolice, pois só lhe faria mal. Em

seguida, despachou-a rapidamente, sem nenhuma explicação.

Assim que a mulher saiu, a suposta bruxa, muito esperta e nada honesta, correu e arrumou suas

malas, seguindo para o interior, onde a consulente descrevera que estaria o suposto tio moribundo.

Chegando lá, a vigarista encontrou realmente o homem velho moribundo e bastante carente, pois

havia perdido contato com seus verdadeiros parentes muito tempo atrás. A espertalhona correu em

se apresentar ao pobre homem como sua sobrinha, usando os nomes dos parentes que a consulente

lhe havia narrado em sua história. Contou, também, a triste história de vida da consulente: que sua

mãe e irmã tinham morrido de tifo, e que não tinha mais nenhum outro parente próximo ou vivo no

mundo a não ser ele. O pobre homem, que já estava com a sua saúde bastante debilitada, ficou

comovido com a história da bruxa e recebeu-a em sua casa de braços abertos, acolhendo-a sem

nenhum problema ou sequer tentar fazer uma investigação. Aí, a falsa sobrinha cuidou do velho

homem e, quando ele morreu, deixou para ela toda a sua fortuna, entre empregados e muitas terras.

Devemos aprender uma lição com este pequeno conto: nunca confiar nossos segredos a quem

não conhecemos. E, quando se tratar de uma premonição então, devemos guardá-la a sete chaves.

Não devemos nunca duvidar do dom que nos é dado, porque, com certeza, é uma dádiva divina. Só

procuramos uma bruxa, cartomante, vidente ou quiromante se não tiver outro recurso. Deve-se

sondar muito bem se a pessoa com que a consulente irá se consultar é verdadeiramente idônea. Mas,

acreditem, todos temos uma boa intuição a nosso próprio respeito. Devemos aprender a ouvir nosso

coração: ele só nos é enganoso se deixarmos nossa mente interferir sem ser convidada. Todos temos

um dos nove dons dados por Deus. Nas horas mais difíceis, ele nos servirá de leme.

Conversei por muito tempo ainda com Bernadete e contei-lhe sobre os feitos do diário que ela

havia me dado. Afinal, ela precisava saber que seu avô não era um contador de histórias. Ela ficou

tão maravilhada quanto eu. Em seguida, disse:

_ Fico muito feliz por ter me contado tudo isso. Mas sei que esse diário era para ser somente seu,

pois ele a escolheu. Sei disso porque, por diversas vezes, tentei escrever nele e nada aconteceu de tão

grandioso como aconteceu com você. Esse diário, na verdade, só me usou como intermediária para

chegar até as suas mãos.

Fiquei muito emocionada por Bernadete ter-me dito aquelas palavras. Então, agradeci-lhe,

dando um afetuoso abraço. Iríamos combinar de fazer alguma coisa juntas durante a tarde, mas

bateram à porta do quarto e tive que ir atender, pois Bernadete estava ainda deitada.

Era Maria, pedindo para que descêssemos para o desjejum e para que me preparasse para o

nosso retorno de volta a casa. Nós duas sorrimos e nos entreolhamos, pois estávamos com fome. Eu

e Bernadete apressamos em nos arrumar para o desjejum. Ela me ajudou com algumas coisas que eu

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precisava terminar de arrumar. Eu já não tinha muito a levar de volta, pois dei todos aqueles meus

vestidos que havia levado para Bernadete e suas irmãs. A alegria de seus rostos foi como um elixir

para minha alma. Estava começando a aprender que dar era bem melhor do que receber e guardar. A

vida é passageira e curta. Devemos, então, dar o melhor de nós para termos uma existência feliz -

mesmo que, como eu, a pessoa já tenha a consciência de que ela será breve.

A despedida não foi muito feliz, pois sabia que nunca mais as veria novamente. A velha senhora,

de nome Andélia, também estava presente e deu-me duas coisas que encheram meus olhos de

lágrimas. A primeira foi a cruz torta, para me identificar com as demais do grupo, pois eu já estava

fazendo parte daquela grande família. A segunda foram muitas pétalas de rosas brancas, para eu ir

jogando pelo meio do caminho. Esse é o ritual que serve de libertação: significa que estamos

recebendo, com flores, nosso novo caminho, deixando para trás toda a tristeza e a dúvida que nos

perseguia.

A velha Anna havia ficado para trás. A Anna mimada, covarde e medrosa. A Anna melancólica

e triste. A Anna materialista e cheia de perguntas tolas havia morrido naquela fogueira, dando lugar a

uma mulher segura, forte e sem medo do escuro. Na verdade, eu havia ressuscitado de algum lugar

que estava dentro de mim e que eu não me lembrava, até então.

O medo e as condições impostas pela sociedade que me cercava fizeram com que, muitas vezes,

me sentisse incapaz de enfrentar as coisas mais simples e corriqueiras. Na verdade, todos somos

frutos daquilo em que acreditamos. Deixamos, muitas vezes, que as pessoas que nos cercam

direcionem e conduzam, com palavras ou atitudes, nossa vida pessoal. Isso não pode de maneira

alguma acontecer, porque somos seres individuais e temos que seguir sem nos deixarmos ser

manipulados.

Criticar é mais fácil do que elogiar. Duvidar é mais fácil do que acreditar. Confiar em si

própria quase nunca acontece. Ignorar é mais fácil do que ajudar. São pequenas coisas que passam

pela nossa frente e que, às vezes, ficam despercebidas, mas que poderiam ter feito muita diferença

na vida de outras pessoas se não fossemos tão egoístas. Se não estivéssemos tão preocupados com

o que os outros pensam de nós, talvez pudéssemos fazer do ambiente ao nosso redor um lugar mais

harmonioso e civilizado. Não podemos mudar o mundo todo, mas poderíamos mudar o nosso meio

de vida, fazendo de nós mesmos pequenos exemplos em que pessoas aflitas e cheias de problemas

possam se espelhar. Poderíamos ser uma auto-ajuda ambulante, mas fazemos o contrário:

tornamo-nos fracos e problemáticos. Na verdade, duvidamos da nossa capacidade infinita de

renovação. E é tão simples! Basta um sorriso e uma palavra gentil. As pessoas esperam de nós o

que esperamos delas. Quando alguém carrancudo se aproximar, devemos lhe sorrir. Na verdade,

ele só deve estar triste ou com algum problema pessoal ou até mesmo espiritual. Se o tratarmos

com desprezo, intolerância e mau humor, ele, com certeza, ficará ainda mais exasperado do que já

estava. Ouvi, certa vez, uma história que Maria me contou. Entre tantas outras histórias, essa me

pareceu afinar-se como exemplo do que tenho dito.

Um cavaleiro passou por uma menininha, acompanhada de sua mãe. Ele as olhou como se as

desprezassem, mesmo sem nunca tê-las visto antes. A mãe, por sua vez, estava com tantos

problemas em sua cabeça que o tratou de igual modo. Virou-lhe o rosto e, ainda, disse-lhe palavras

ofensivas. Tudo teria terminado com o desprezo dessas duas pessoas. Cada qual seguiria o seu

caminho, e ambas passariam um dia péssimo, pois aquelas pessoas haviam trocado energias

negativas. Mas o senhor olhou, também, para a pequena criança, que lhe sorriu espontaneamente.

Pensou, então, consigo mesmo: Uma mãe tão antipática, e uma criança tão angelical: que

controvérsia! E, sem querer, esboçou um sorriso. Um amigo, que passava por ele naquele

momento, parou-o e perguntou o motivo da alegria. Ele, por sua vez, contou ao amigo, que acabou

por lhe convidar para tomarem uma xícara de chá. Os dois encontraram entre si motivos diversos

para sorrirem. De repente, aquele senhor carrancudo estava de bem com a vida e se sentiu capaz de

enfrentar seus problemas. Ao olhar para a porta do estabelecimento onde ele e o amigo se

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encontravam, percebeu que a menina e a senhora entraram, sentando-se bem ao lado deles. Aquele

senhor, então, não perdeu tempo: levantou-se, e apresentando-se à mãe da menina, convidou-as

para tomarem uma xícara de chá com ele e o amigo.

Depois de se desculpar por ter parecido grosseiro, ele, durante a conversa que tiveram,

descobriu que ambos eram viúvos e que suas tristezas estavam lhes tornando pessoas amargas. Por

não conseguir superar a falta de sua amada esposa, e ela por estar tão preocupada com o que a

sociedade falaria dela, acabavam por se esquivar sempre de fazer novos amigos. Assim, com

aquele comportamento da menininha, todos acabaram tendo uma tarde muito agradável. Com

certeza, ele encontrou uma nova companheira para lhe auxiliar em sua jornada terrena... O poder

está em nós mesmos, não nos outros. Um gesto, que pode nos parecer simples e banal, pode ter

uma força inenarrável.

O caminho de volta para casa foi tranquilo e sem nenhum problema. Eu e Maria conversamos

sobre minha viagem astral e sobre o quanto estávamos nos sentindo bem espiritualmente. Fizemos

planos sobre algumas coisas que eu faria ao chegar em casa.

Cochilei bastante no decorrer do caminho, só para variar! Mas, dessa vez, não tive sonhos

turbulentos. Aliás, não sonhava com o monge desde que retornei da viagem. Mas, para mim, o

importante é a certeza de que estava em meu coração. Estava muito feliz por ter sido iniciada como

bruxa, e não deixaria ninguém invadir o meridiano imaginário que me separava do mundo real do

meu novo mundo. Lógico, sempre ouviria a todos com atenção e educação. Mas fazer o que me

diziam, só se meu coração dissesse que sim. Caso contrário, entraria por um ouvido e sairia pelo

outro. Devemos nos lembrar de que nunca nos é demais aceitar conselhos – mas, se fossem tão bons,

colocaríamos uma tenda e os venderíamos bem caro...

A estrada estava ainda mais bela do que quando ingressamos. Então, resolvi manter-me bem

acordada, sem cochilar: dessa vez, queria estar alerta a tudo. Maria compartilhou alguns segredos

comigo. Depois, o cansaço a fez dormir, por fim. Era muito engraçado vê-la naquele estado ébrio. De

vez em quando, ela arregalava os olhos, por causa do susto que levava quando a carruagem passava

por cima de algumas pedras. Na verdade, nós duas estávamos muito ansiosas para chegar e poder

tirar as roupas empoeiradas e os sapatos apertados. Foi quando Lorenzo avisou-nos de que

chegaríamos em casa em quatros horas. Ou seja, quando a Lua já estivesse alta no céu. Estava

contente e pronta para iniciar minha missão como a mais nova bruxa daquele condado.

“O amor é um sentimento abstrato. Não podemos tocá-lo, não podemos vê-lo. Mas podemos dá-

lo através de várias maneiras. Quem ama não tem medo, orgulho ou dúvida. A pessoa que está

amando quer somente ter a certeza de que será feliz. O lugar não importa; com quem, não interessa.

Mas que, quando esse amor chegar, seja bem vindo... Aceitar quem nos ama. muitas vezes. pode não

nos ser conveniente, pois, infelizmente, só conseguimos ver as aparências físicas. Mas, se realmente

queremos um verdadeiro amor, basta olharmos para nosso próximo com os olhos de Deus. Aí, sim,

passaremos a enxergar a verdadeira beleza escondida por trás da aparência física. Difícil é

compreender que as rosas, no meio de tanta beleza, escondem espinhos que podem machucar o

coração do homem. E que, em alguns espinhos, encontramos a cura para nossas doenças. Encontre

o seu amor e viva com sabedoria. Só não pise nas pessoas menos favorecidas, porque elas também

tiveram seus espinhos - talvez causados por rosas, como você...”

Padre Ângelo Wallejo Moralles.

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Capítulo II - O Livro das Sombras

Quando a carruagem finalmente parou frente à minha casa, respirei profundamente, aliviada

por termos chegado. Estava mesmo ansiosa para poder colocar todos meus planos em prática. Tive

que despertar Maria, que caíra em sono profundo. Havia tantas coisas a fazer... Comecei a pensar

nas mudanças que faria em meu quarto, nos objetos que compraria para dar início ao ritual da Lua,

já que estava atrasada com o meu primeiro equinócio de outono. Eram muitas as coisas que

precisava fazer antes que se cumprisse meu destino. Como sabia que meu tempo era curto,

precisaria correr contra ele.

De repente, dei-me conta do quanto a ansiedade estava tomando conta de minha mente. Então,

fechei brevemente meus olhos e fiz uma oração silenciosa. Respirei profundamente e contei o

máximo que pude. Soltei lentamente o ar pela boca. Então, quando abri os olhos novamente, já

estava mais calma e Lorenzo abria a porta da carruagem para nós. Com a sua ajuda, pude descer da

carruagem, apoiada em suas mãos. Olhei para o céu, lindamente estrelado, e pude certificar-me que

a Lua estava lá, como já havia previsto.

Fique de pé, ao lado da carruagem, observando Maria acabar de descer. Foi muito engraçado

vê-la, ainda meio sonolenta, tropeçando em seus próprios pés.

Joseph e Tereza vieram receber-nos. Maria, por sua vez, não parava de indagar à pobre mulher,

querendo saber como tudo ocorreu durante a sua ausência. Rubens, um escravo de confiança da

casa, carregou a bagagem para dentro. Enquanto Maria seguia com Tereza, Lorenzo e Joseph

levavam a carruagem e os cavalos para o estábulo. Por minha vez, fui caminhando tranquilamente

em direção à casa. Afinal, devido aos muitos afazeres de todos, parecia que eu havia sido

completamente abandonada e esquecida - o que era hilário. Porém, isso me deu tempo para pôr

minhas ideias e pensamentos em ordem.

A grama ficou verde musgo por causa da luz do luar. As pedras brancas, postas ao caminho

para servir de passarela, davam certo ar de conto de fadas. A escadaria ficou completamente

iluminada por causa da luz da Lua. Subi lentamente cada um daqueles degraus, observando até

mesmo os pontinhos luminosos das pedras. Antes de colocar a mão na maçaneta, dei uma boa

espreguiçada, pois meu corpinho cansado só queria um bom banho e cama naquele momento, é

claro!

Antes de entrar, ainda pensei Apesar de tudo, era bom estar de volta à casa e poder desfrutar

dos momentos em família novamente, mesmo que raros. Engraçado, mas estava com saudades até

das rabugices e arrogâncias da condessa.

Ao entrar, nem mesmo olhei para os lados. Corri, subindo as escadas, indo direto para o meu

quarto. Desarrumei rapidamente as malas, colocando minhas roupas em cima de uma poltrona, para

que, no dia seguinte, a aia viesse pegá-las para serem lavadas.

Depois de algumas horas, a copeira, parecendo adivinhar o meu desejo, trouxe água para meu

banho. Só que, desta vez, fiz com que ficasse admirada, pois pedi que preparasse uma poção para

colocar na água do banho. Tirei da bagagem um pequeno saquinho com ervas que havia trazido

comigo na viagem. Eram folhas secas de hortelã e cascas de maracujá. Ela, embora tivesse achado

aquela atitude muito estranha, deu de ombros, sacudiu a cabeça negativamente e saiu para fazer o

que eu havia pedido.

Aquela mistura de erva e casca de fruta, ao ser colocada na água, faria relaxar-me e ter uma

boa noite de sono. Esse tipo de preparado também pode ser tomado como um chá. Mas, naquele

dia, preferi usá-lo como um bálsamo aromatizante para banho.

Maria, que sempre estava atenta a tudo, trouxe-me um chá de camomila com biscoito logo que

a copeira saiu. Enquanto ela arrumava a bandeja na mesinha, pude perceber, através de seus

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movimentos, que havia algo errado no ar. Maria parecia querer dizer-me algo, mas estava sem

saber como falar.

Percebendo aquela situação, disse-lhe:

_ Maria, está acontecendo alguma coisa. Se a senhora tem algo a me dizer, então diga.

Ainda de cabeça baixa, arrumando os guardanapos, mas sem olhar para mim, ela falou:

_ Percebi que a senhorita pediu à copeira para que lhe fizesse um banho de relaxamento!

_ Sim, Maria. Pedi sim, admito. Estou precisando ter uma boa noite de sono.

_ Fico satisfeita que já esteja colocando em prática os seus dons, mas me preocupa que tenha

pedido logo a uma estranha e não a mim. Essa atitude sem pensar de sua parte pode colocar nós

duas em risco. Afinal, deveria saber que a copeira é fiel à senhora Del Prat.

_ Desculpe-me, Maria, jamais a colocaria em risco. Infelizmente, agi sem pensar. Mas achei

que a senhora estava ocupada demais com os seus afazeres. Por isso pedi à nossa copeira. Sinto

muito, estou muito decepcionada comigo mesma.

_ Senhorita Anna, conhecendo-me como a senhorita me conhece, sabe muito bem que jamais

deixaria de atender a um pedido seu. Não se preocupe, porque já dei a ela uma desculpa, dizendo

que esse banho é coisa da minha irmã que, por ser do interior, sempre tem dessas manias antigas.

Mas, da próxima vez, tenha mais cuidado.

Baixei a cabeça numa atitude de constrangimento e nada mais disse. Maria, por sua vez,

arrumou a xícara de chá com biscoitos em cima da mesinha e saiu, parecendo ter percebido que eu

havia ficado muito sem graça. Ela estava completamente correta: eu poderia ter-nos colocado em

uma situação muito arriscada, principalmente se minha madrasta tivesse visto e ouvido o que pedi à

copeira. Sei que era apenas um banho - mas, na mente doentia da condessa, aquilo seria um feitiço.

Precisava definitivamente controlar minhas atitudes levianas e emoções, e pensar dali para frente.

Precisava definitivamente, também, tomar cuidado com a ansiedade e a vaidade.

Quem me trouxe a água para o banho foi Inaynmin, a jovem escrava, filha de Joana. Ela,

depois de colocar na tina a água junto com o preparado que eu havia pedido, fez uma pequena

observação:

_ Não sei o que a senhorita andou fazendo no interior junto à Maria, mas tenha muito cuidado

quando for pedir certas coisas à copeira. Não a estou criticando, senhorita, de modo algum. Afinal,

sei que todas temos certos segredos e, se são segredos, devem continuar ocultos, não acha?

Disse tais palavras e saiu, deixando-me meio apreensiva e também muito pensativa. Afinal,

que segredo poderia ter a jovem escrava Inaynmin, sendo que Joana nunca a deixava sozinha?

Pensei, por fim, A vida é mesmo cheia de mistérios. Imagine só! Obviamente, eu teria que descobrir

que segredos a jovem escrava Inaynmin haveria de ter. E como ela sabia que eu tinha um segredo?

É, pensei comigo, a vida está repleta de surpresas...

Dormi como um anjo a noite toda, depois do banho e do chá que Maria havia preparado para

mim. Para falar a verdade, aquela noite nem me lembro de ter vestido a camisola após ter tomado

banho, pois estava tão relaxada que, mesmo depois de ter cometido tamanho deslize, não pude ver

muita coisa, pois o sono pegou-me no colo e levou-me para o mundo dos sonhos.

No dia seguinte, ao acordar, depois de dar um enorme bocejo, percebi um ventinho frio

entrando pelo meu quarto. Levantei para ver o que era. A janela estava completamente aberta. Virei

o rosto rapidamente e o cobri com o lençol, pois o Sol entrava intrépido pelo quarto. Não me

lembro de ter-me esquecido de fechar as janelas e as cortinas na noite anterior! Fiquei pensativa,

imaginando quem poderia tê-las aberto. Quando Maria viesse ao meu quarto, perguntar-lhe-ia sobre

isso.

De um salto só, consegui sair da cama. Como precisava resolver muitas coisas que tinha em

mente, quis correr contra o tempo. Quanto mais cedo, melhor seria. Além do quê, não poderia dar

margens a que minha madrasta levantasse antes de mim e tentasse impedir-me de fazer as coisas

que eu precisava pôr em prática. Muita coisa mudaria com o meu retorno da casa de Dona Helena

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e, se minha madrasta desconfiasse, poderia enlouquecer de vez – ou, o que era pior, poderia tentar

algo contra minha vida, pois a condessa era imprevisível e cheia de artimanhas.

Mas, como eu era uma boa moça, comecei a me preocupar com a frágil saúde da pobrezinha...

Então, achei melhor aos poucos ir demonstrando a minha mais nova personalidade. Assim, evitaria

que ela tivesse uma síncope. Aqueles pensamentos maldosos e irônicos precisavam sair da minha

mente. Mas era inevitável querer dar uma pequena lição na minha madrasta. Afinal, durante anos

ela foi muito má com todos naquela casa. Mas isso seria apenas uma lição e não uma vingança, pois

não era da minha índole querer vingar-me de quem quer que fosse - até mesmo de uma mulher

como a condessa.

Enquanto eu colocava aqueles pensamentos irônicos em dia, percebi que Maria estava à porta e

disse-lhe:

_ Entre, Maria. Sei que é a senhora que está aí fora!

Ao entrar, ela disse, arregalando os olhos e prosseguindo com aquela conversa:

_ Minha nossa! Isso foi para me impressionar? Saiba que já conseguiu, viu? Estou mesmo

impressionada com tamanha perspicácia. Aliás, já está usando seus poderes de adivinhação, é?

Dei um sorriso largo e sincero e, depois, falei:

_ Não preciso ser adivinha para saber que só poderia ser a senhora, pois sei que sempre fica

atenta a todos os movimentos desta casa. Sei que sempre presta atenção ao barulho do fechar e do

abrir de cada porta, e que sabe de qual cômodo ele veio. Concluindo pelo pulo que dei no chão ao

me levantar, sei que a senhora soube de imediato que eu já estava de pé. Afinal, quem mais vem ao

meu quarto além da senhora? Nem mesmo meu pai quando está em casa, pois sempre me pede para

descer quando precisa falar algo comigo.

_ Chega, já conseguiu impressionar-me! Confesso que não sabia que eu era tão previsível

assim.

Ela sorriu, tentando disfarçar que estava sem graça, pois, no mínimo, desconfiou que eu

também soubesse que ela escutava atrás das portas. Para mudar um pouco o rumo daquela conversa

que não me levaria a lugar algum, perguntei:

_ Então, como está tudo? Está do jeito que a senhora gosta? A propósito, que horas são?

_ Como está tudo? Nem pode imaginar a imensa confusão que esses incompetentes aprontaram

na minha cozinha. Por causa desses transloucados, fiquei até altas horas acordada, areando várias

panelas de cobre. Com isso, hoje estou morrendo de dores pelo corpo todo.

_ Maria, Maria... Por que ficou até tarde fazendo um serviço que não era da sua ossada? Sabe

muito bem que poderia esperar até o dia amanhecer e pedir a Joana que fizesse isso.

_ Nunca, de jeito algum! Esses incompetentes já deveriam ter deixado tudo pronto e arrumado

a meu gosto, para evitar que eu tivesse mais um aborrecimento como esse. Além do mais, não gosto

de deixar nada para depois. Gosto de ver o serviço pronto a tempo e à hora. Não quero mais discutir

sobre isso com a senhorita. Sou desse jeito, sempre fui assim. Não será agora, com a minha idade,

que vou mudar.

Fiquei olhando-a, sem nada mais conseguir dizer. Maria era uma mulher que gostava da

perfeição. Um jarro fora do lugar era motivo para que ficasse nervosa. Então, tentei novamente

mudar o rumo daquela conversa, que já estava partindo para a área da neurose. Respirei fundo,

tentando não ficar nervosa. Então, perguntei-lhe novamente:

_ A senhora, por favor, poderia dizer-me, sem muitas palavras, que horas são?

_ São quase oito. Veja como o Sol está alto no céu. O tempo não para, minha filha. A vida

passa em um piscar de olhos. E se tem a intenção de irmos a algum lugar, é melhor que seja bem

rápida, antes que a condessa Del Prat levante-se e comece a me chamar como uma louca.

Embora eu tivesse pedido para que Maria me respondesse em poucas palavras, vindo dela não

poderia esperar uma frase sem um longo discurso junto. Então, acabei de vez com aquela conversa,

pedindo-lhe para fazer uma tarefa:

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_ Maria, por favor, esquente a água para eu tomar banho, pois tenho muitas coisas para fazer

hoje na cidade. Tenho que ir a alguns lugares e comprar algumas coisas que me estão faltando.

_ O que poderia estar faltando para a menina?

_ Coisas para eu começar meu trabalho. Coisas que nunca pensei em usar, mas que agora sei

que vou precisar.

_ Não acha que está se precipitando novamente em tomar certas decisões, minha filha? Pense

um pouco: deveria agir com um pouco mais de prudência e cautela.

_ Em tudo o que me diz, vejo coerência e sensatez. Mas, infelizmente, minha querida Maria,

desta vez não poderei atendê-la, pois tenho mesmo que comprar essas coisas que me faltam. E isso

tem que ser bem rápido, porque o meu tempo é curto demais.

_ Por que está me dizendo que seu tempo está curto? Está pensado em me abandonar? Já sei,

arrumou um pretende e nem me contou! Que egoísta! Logo eu, que sempre lhe fui tão fiel... Agora

estou aqui, merecedora desta desfeita.

_ Lógico que não, Maria! Não vou deixá-la nunca. Apenas sei que tenho coisas a fazer que, se

eu não correr e colocá-las em prática, não conseguirei terminar tudo a tempo.

_ Mas precisa ser assim, desse jeito? Parece até que a menina está com uma sangria desatada.

_ Ora, Maria, parece que tirou o dia para me azucrinar as ideias! Vamos, ande, vá preparar

meu banho e arrume-se rápido. Além de tomar banho, também tenho que me arrumar.

_ Está bem, a menina não precisa me tratar assim. Vou descer, tenho que pedir permissão à

condessa Del Prat para lhe acompanhar. Afinal, sou apenas uma serviçal nesta casa. Não tenho o

menor valor!

Olhei para Maria com certo ar zombeteiro e falei-lhe:

_ Maria, sabe muito bem que nunca lhe vi como uma serviçal! Pare de ser tão dramática, pelo

amor de Deus! E mais: de agora em diante, também dou ordens nesta casa. Se a condessa

desaprovar qualquer atitude minha, vai ter que engolir um sapo boi, pois as coisas mudaram.

Maria arregalou os olhos e ficou na minha frente, estática. Depois saiu de mansinho, dando um

sorriso que mais parecia de satisfação - o que me deixou curiosa e fez-me perguntar-lhe:

_ Isso quer dizer que a senhora aprovou essa atitude minha?

_ Não sei, depois de quase eu ter sido lançada porta afora como um cão sarnento pela

senhorita, isso quer apenas dizer que estou surpresa por ver a menina assim, tão senhora de si.

Dizendo isso, Maria saiu, deixando-me a sós. Eu a amava e isso era um fato. Mas, às vezes,

Maria ironizava muito as coisas e aquilo me tirava do sério.

Assim que a escrava trouxe-me a água para o banho, não me demorei e arrumei-me o mais

rápido que pude. Fiz uma pequena lista de todos os ingredientes e utensílios que eu precisaria.

Maria ainda veio avisar-me que estaria pronta assim que eu estivesse, e que teve a permissão da

minha madrasta para sairmos. Isso me foi uma surpresa. Senti no ar que a condessa tentaria

aprontar alguma coisa contra mim. Então, esperei Maria sair para que pudesse fazer uma oração e

fortalecer meu espírito. Em seguida, saí do quarto e apressei-me em descer as escadas correndo.

Mas deparei-me com a condessa, que me estava esperando no último degrau, com as mãos na

cintura e ar de soberania. Logicamente, isso não me era mais uma surpresa. Respirei

profundamente e fui descendo vagarosamente as escadas, pois sabia que, se ela estava me

esperando, boa coisa não aconteceria.

Ficamos frente a frente e, depois de muito cambalear e de ter-me feito uma cara feia - que não

consegui compreender se era de fome ou de enjoo causado pelo hálito de bebida que saía da sua

boca -, ela falou:

_ Onde a senhorita pensa que vai? Não me lembro de ter-lhe dado permissão para que saísse.

Dei um sorriso matreiro e fui caminhando calmamente, circulando em volta dela. Ao dar uma

volta completa entorno dela, disse-lhe assim:

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_ Sério? Pelo que me consta, a senhora deu, sim, permissão à Maria para que ela saísse

comigo.

_ Não me lembro de ter dado tal autorização à Maria! E muito menos me lembro de tê-la

deixado sair também!

_ Quer dizer, então, que a senhora vai ter a coragem de chamar Maria de mentirosa assim, na

sua frente?

Disse isso porque Maria havia acabado de entrar e estava de pé atrás dela, com os olhos

arregalados. A pobre mulher mal sabia que direção tomar. A condessa virou-se sinicamente,

olhando para Maria de cima abaixo, e disse:

_ Se dei tal autorização, estou tirando-a agora mesmo.

Foi saindo, querendo deixar-nos sem saber o que fazer, como ela sempre fazia. Mas só que,

daquela vez, corri para frente dela e disse:

_ Alto lá! Não é bem assim que as coisas funcionam. A senhora não vai sair e deixar-nos aqui,

falando ao vento. Vamos terminar essa conversa agora mesmo. Acho muito interessante a senhora

não se lembrar de ter-me dado a tal autorização. Sendo assim, devo ressaltar e refrescar-lhe a

memória. Sabe por quê? Porque também não me lembro de tê-la pedido nenhuma autorização para

fazer da minha vida o que eu bem quisesse.

Disse isso desafiadoramente, olhando-a bem nos olhos. Peguei-lhe um dos braços e falei bem

baixinho ao ouvido:

_ Vamos combinar o seguinte: a senhora, minha madrasta, não conta ao meu papai que saí sem

suas ordens, e prometo não mencionar nada sobre suas festas escondidas nos fins de semana. Isso é

muito mais fácil do que minha querida madrasta pode pensar, sabe como? Faça de conta que não

existo e continuarei a fazer o mesmo - embora não seja da minha índole ter que mentir para o meu

próprio pai! Lembre-se de que faço isso somente pelo afeto que lhe tenho. Afinal, sempre fomos

tão amigas! Então, o que me diz, querida madrasta?

Àquela altura, nem me lembro como foi que Maria desapareceu do meio de nós duas! Eu

estava tão interessada em terminar aquela conversa que me esqueci de tudo ao meu redor, até de

Maria. Minha madrasta, após ranger os dentes de ódio, disse-me:

_ Odeio-a com todas as minhas forças! Pode ter certeza de que isso não vai ficar assim.

Prometo-lhe que farei da sua vida um inferno.

Ao ouvir aquelas palavras, dei uma gargalhada que parecia não ser minha e prossegui:

_ Engana-se, minha querida madrasta. A senhora já fez da minha vida um inferno. Agora não

fará mais. Sabe por quê? Porque aprendi com o diabo lá no inferno, onde a senhora me colocava,

que posso ser muito mais má do que pensa. Portanto, pense duas vezes antes de meter-se comigo ou

com Maria de agora adiante. E que essa conversa termine aqui e agora. Aliás, já até me esqueci!

Imagina... O que é mesmo que devo me lembrar de não contar a meu pai?

Fitei-a nos olhos e continuei:

_ Agora, se me der licença, estou de saída. Até já, madrasta querida. - joguei-lhe um beijinho

com a mão.

Ela ficou boquiaberta e sem reação aparente. Encontrei-me com Maria, que estava perto da

carruagem. Ela continuava com os olhos arregalados, a cor rosada do seu rosto estava de um tom

empalidecido. Esfregava as mãos uma contra a outra. Temia por mim, mas, sendo uma criada, não

poderia se intrometer entre mim e minha madrasta. Percebendo seu desalento, dei-lhe um sorriso

largo, tentando disfarçar o nervoso em que me encontrava. Mas Maria parecia ansiosa por saber o

que havia acontecido. Então, perguntou-me:

_ O que foi que a senhora Del Prat disse? Ela lhe fez algum mal, senhorita?

_ Nada demais, entramos em um acordo civilizado. Não se preocupe, Maria. A condessa não

tocou em um só fio dos meus cabelos. Pelo contrário, acho que de agora em diante ela vai até me

pedir conselhos.

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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_ Hã!? Como assim? O que realmente aconteceu? Como consegue estar tão tranquila, sabendo

que a condessa lhe odeia?

_ Fique calma, Maria. Apascente seus nervos. Acredite: não aconteceu nada. A condessa não

disse muita coisa, pois ainda está meio em estado ébrio. A senhora sabe que, quando a minha

madrasta está desse jeito, mal dá para entendê-la. Na verdade, acho que ela confundiu as coisas e

achou que não tinha lhe dado autorização para sairmos. Aliás, descobrimos coisas tão em comum

entre nós! Estou tão admirada quanto a senhora, acredite!

_ E quais seriam essas coisas, Santo Deus!? Vejo que hoje será um longo dia...

_ Está bem, Maria. Vou-lhe responder, mas somente para matar a sua curiosidade: descobrimos

que somos senhoras distintas, civilizadas e que falamos a mesma língua. Fiquei impressionada de

como eu e minha madrasta poderemos nos dar bem de agora em diante.

Se Maria não estivesse encostada na carruagem, teria se espatifado ao chão, pois quase perdeu

o equilíbrio das pernas, por não ter entendido absolutamente nada. Por fim, depois de ter tomado

fôlego, disse-me, com a voz meio trêmula:

_ É melhor seguirmos em frente, antes que meu coração pare de uma vez. Por hoje já me

bastam tantas emoções fortes.

De repente, ao ver Maria subindo na carruagem, deu-me a sensação de que em breve teríamos

que nos despedir para sempre. Dentro da carruagem, mudei aqueles pensamentos tristes, tentando

animar Maria, que estava tremendo por minha causa. Inventei uma história engraçada e contei para

ela. Também fiz algumas caretas para que se distraísse e mudasse os pensamentos, antes que eles

virassem palavras aborrecidas. Isso funcionou, pois seguimos o resto do trajeto rindo. Contei à

Maria alguns dos dons que havia recebido. Ela se admirou por saber que eu havia adquirido o dom

da clarividência. Eu também, pois foi a primeira manifestação de Deus em mim.

Depois de meia hora dentro da carruagem, descemos em frente a uma casa de chás. Dei à

Maria metade da lista que havia feito e fui saindo.

_ Aonde a mocinha pensa que vai sozinha, sem a minha companhia?

_ Procurar um ferreiro, ora!

_ Posso saber para quê, já que a mocinha agora resolveu ser tão independe e desligada de mim?

- disse Maria, mais uma vez usando de suas ironias e, ao mesmo tempo, preocupada comigo.

_ Não se preocupe comigo, Maria. Sei onde tem um: no final desta rua. Volto logo e encontro-

a aqui, neste mesmo lugar, em frente a esta casa de chás.

Saí e deixei Maria, sem dar muitas explicações, antes que ela me indagasse mais alguma outra

coisa, é claro!

Olhei para todos os cartazes que podia ver, tentando achar a ferralheria da cidade. Foi quando,

finalmente, avistei em uma esquina um enorme cartaz escrito Ferraria Campo Belo.

Deu-me certa tonteira ao olhar aquele cartaz. Não soube explicar de imediato, mas era como se

alguém naquele local não estivesse bem de saúde e, de alguma maneira, minha energia foi toda

direcionada para lá. Cheguei a sentir meu corpo arrepiar-se. Alguém naquele lugar estava mesmo

precisando de mim. Respirei profundamente e fechei olhos, buscando forças. Em seguida, caminhei

em direção à ferralheria.

Quando estava virando a esquina, deparei-me com uma jovem soluçando muito, encostada em

um muro. Se tivesse acontecido isso antes, teria passado despercebida por mim aquela cena. Mas,

agora, era mais que isso: era como se eu tivesse uma obrigação de captar tudo que estava ao meu

redor.

A jovem não tinha mais que dezessete anos. Mas, de tanto que chorava, dava a impressão de

ter muito mais idade. Abaixei perto dela e perguntei-lhe:

_ Tudo bem, senhorita? Sabe informar-me onde encontro uma ferralheria por aqui? - tentei

despistar, já que a loja estava à minha frente.

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_ Sim... Fica logo ali, na frente da senhorita. É a ferralheria do senhor Juan Campos. Ele é

muito habilidoso, mas não é muito amistoso, devo adverti-la. - disse-me isso entre soluços,

passando as mãos sobre os olhos, tentando esconder-me que estava chorando - como se isso fosse

possível!

_ Ah! Desculpe-me, sou mesmo uma distraída! Imagine, nem vi que estava ali na minha frente!

Olhe, não estou querendo ser inconveniente, mas posso perguntar-lhe algo?

_ Sim, claro.

_ A senhorita não gostaria de tomar uma xícara de chá comigo? Vejo que não está se sentindo

muito bem. Veja, querida, talvez eu não consiga resolver o seu problema, mas ao menos posso

ouvi-la. Às vezes desabafar faz bem ao espírito. E então, o que me diz?

_ A senhorita é mesmo muito gentil, mas não tenho uma roupa apropriada para entrar em um

lugar tão refinado como aquele.

_ Santo Deus! O que tem de errado com as suas vestes?

A jovem baixou a cabeça, pesarosa, e disse:

_ Se eu entrar naquele lugar usando esses trapos, certamente me colocarão para fora como um

cão sarnento. Nem todos nesta cidade veem os pobres da mesma forma que a senhorita. Algumas

pessoas acham que temos algum tipo de doença contagiosa. Não nos dão emprego porque somos

sujos. Não temos direito a um médico porque não temos dinheiro para pagar. Então, quando

percebem que não lhes temos nenhuma valia, arrumam alguma coisa para que sejamos descartados

de vez dessa sociedade egoísta e sem coração. É muito triste, senhorita, termos que viver na

miséria! Mas como poderemos ser alguém se não nos dão uma oportunidade? Como podemos ser

parte do mundo se as pessoas existentes nele não nos veem como seres humanos dignos? De que

adianta querermos lutar, se somos podados até de nossos sonhos? Essa sociedade desumana está

sempre tentando encontrar alguma coisa de que nos acusar. Como vamos cheirar bem se nem o

mínimo recurso para sobrevivência nos dão?

Aquela jovem não estava errada. Mas seu coração parecia cheio de revolta e amargura. Sabia

que não adiantaria argumentar muito com ela. Então, disse-lhe:

_ Está bem, então. Não vou mais insistir para que vá comigo à casa de chá. Mas posso me

convidar para tomar chá em sua casa?

_ Oh! Senhorita, não temos chá em casa, apenas água. - disse a jovem, baixando a cabeça,

parecendo constrangida por ter que demonstrar a real situação financeira de sua família.

_ Ótimo, estou morrendo de sede. O calor está me deixando sufocada. Aceito o seu copo

d’água.

A jovem esboçou um sorriso meigo e levantou-se. Por fim, meio a contra gosto, acabou

convidando-me para ir até a sua casa, que não ficava muito longe dali - apenas a uns trinta metros,

creio!

Aprendi uma coisa nessa minha curta existência: nunca ouvir um não antes de ouvir um sim.

Era óbvio que eu nunca deixaria aquela jovem ali chorando, sem nada tentar fazer por ela.

Chegamos, por fim, em frente a uma casinha muito velha e com os alicerces à mostra. O mato

cobria toda a lateral. O portão era de madeira e estava todo quebrado - a jovem teve que levantá-lo

para passarmos. O interior da casa era muito simples e havia pouquíssima mobília. Para me sentar,

a jovem ofereceu-me um caixote. Ela foi até a cozinha e trouxe-me água em uma moringa de barro,

e serviu-me em um copo, também de barro.

Depois de tomar calmamente aquela água, deliciosamente fresca, perguntei-lhe:

_ A senhorita vive sozinha nesta casa?

_ Não, vivo com a senhora minha mãe. Sabe, senhorita, minha mãe está muito doente e não

tenho como ajudá-la, porque ninguém me dá um emprego. Não sei como fazer para pagar o doutor

e comprar os remédios dela.

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_ Eu a entendo. Talvez, se a senhorita me permitir, possa ajudá-la. Mas nem pense em dizer-

me que isso será um incômodo.

A jovem olhou-me tão triste que, em seus olhos, pude ver o tamanho de sua dor. Por certo, não

poderia abandoná-la.

_ O que tem a sua mãe? Preciso saber do que se trata, para poder saber em quê poderei ajudar.

A jovem, então, contou-me tudo sobre a doença da mãe.

_ Minha mãe sofre com dores horríveis nos rins. Isso já está acontecendo há mais de dois anos.

Procurei o doutor e ele veio até aqui examiná-la. Depois disse que o tratamento seria muito caro e

demorado. Estamos passando por muitas dificuldades, pois meu pai faleceu precocemente, há seis

anos. Ele não tinha recursos e não nos deixou nada além desta velha casa.

_ Posso vê-la? Se não se importa, é claro!

_ Imagina... Que falta de delicadeza a minha. Venha comigo.

A jovem levou-me até o quarto da mãe, onde ela estava deitada em uma caminha muito

simples, quase sem cobertores para cobri-la do frio da febre. Fiquei catatônica por alguns segundos,

olhando aquela triste cena, sem saber por onde começar. Por fim, olhei-a bem dentro dos olhos e

disse:

_ Quero que a senhorita confie em mim. Mas, antes, escute o que tenho a lhe dizer, pois não

quero que, de modo algum, pense que estou me esquivando de lhe ajudar. Agora não posso fazer

absolutamente nada pela senhorita, porque estou com os pés a as mãos atados. Tenho que sair. Vou

ao armazém comprar alguns utensílios de extrema importância para mim. Infelizmente, hoje já me

havia programado para esse tipo de tarefa. Mas prometo-lhe que voltarei assim que tiver com tudo

pronto para ajudá-la. Se a senhorita puder deixar sua mãe um pouco sozinha, gostaria imensamente

que me acompanhasse à ferralheria e, depois, fosse comigo encontrar uma grande amiga.

A jovem olhou para a mãe que, embora muito convalescida, aprovou com a cabeça para que a

filha fosse comigo.

Passei a mão sobre a testa daquela senhora e perguntei-lhe:

_ Como a senhora se chama?

_ Catariana de La Costa. Quero agradecer por tentar ajudar minha filha e eu. De agora em

diante, seremos suas servas.

_ Não tem que me agradecer. Não as quero como servas, mas como amigas.

Passei novamente a mão em seu rosto, tentando não deixar que as lágrimas rolassem. Depois,

silenciosamente, fiz o sinal mágico que sempre Maria me fazia para que eu adormecesse. Este sinal,

de repente, veio-me claramente, como tudo o que estava acontecendo comigo depois da viagem. A

mulher adormeceu rapidamente e, então, pudemos sair sossegadas. A jovem ficou admirada, mas

nada comentou sobre o acontecido.

Esperei que a jovem trocasse de roupa, pois parecia muito preocupada com suas vestes. Logo

em seguida, fomos à ferralheria. Lá, encontrei um homem tossindo muito forte. A tosse era rouca.

Observei-o logo da entrada e percebi que aquela seria uma longa manhã. Mais um precisava de

mim e, com certeza, eu teria que ajudar também. Então, pigarreei para que ele se virasse e disse:

_ Bom dia, senhor!

_ Bom dia, senhorita! Em que posso ajudá-la? - disse o homem, tossindo e olhando-nos de

cima abaixo.

_ Quero saber se o senhor pode me fazer uma chave?

_ Por que a senhorita não procura um chaveiro? Não sabe ler? Sou ferreiro, não faço chaves.

_ Sim, sei disso. Mas quero que o senhor derreta estas correntes de bronze e me faça uma

chave. - disse isso, tirando de dentro de uma bolsinha algumas correntes de bronze que eram de

minha mãe.

Então, continuando com o assunto, falei:

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_ Tenho certeza de que o chaveiro entende de chaves, por certo. Mas não me fará um serviço

tão perfeito quanto o senhor fará.

_ Sim, nisso a senhorita tem razão: sou mesmo o melhor ferreiro do condado. E saiba que, por

meus serviços serem todos manuais, cobro muito caro.

Disse isso olhando-me de cima abaixo, parecendo duvidar que eu tivesse condições de pagá-lo.

A arrogância daquele homem já estava começando a me incomodar. Mas apenas lhe disse:

_ Faça seu preço e sei que lhe pagarei muito bem, acredite! A propósito, sei como curar a sua

tosse.

Depois de me olhar meio incrédulo, parecendo não acreditar que eu tivesse dinheiro para pagá-

lo, o homem respondeu-me num tom de deboche:

_ Ah... Não sabe, não. O que uma mocinha como a senhorita pode entender da minha doença?

Nem mesmo o doutor conseguiu curar essa tosse horrível. Ora, senhorita, aceito fazer o que me

pede. Agora, não me venha querer passar a carroça na frente dos bois e dizer-me que é mais

entendida do que o doutor. O que está querendo me dizer? Que a senhorita é uma curandeira?

_ O orgulho do senhor não vai melhorar as dores das suas costas.

_ Como sabe que sinto dores nas costas?

_ Porque percebi que, ao tossir, faz careta e leva as mãos até as costas. Isso significa que a

tosse é intensa e já lhe afeta os pulmões. Percebi, também, que o senhor sente certa falta de ar - o

que significa que está com um grande muco preso no peito. É isso que lhe causa essa terrível dor

nas costas. E o senhor tem razão ao dizer que não entendo nada sobre as coisas que os doutores

levaram anos aprendendo nas faculdades da Europa. Mas tenho uma coisa que os doutores com

certeza não têm. Sabe o que é? Amor e caridade ao próximo. Compadeci-me de vê-lo trabalhando

assim, doente. Se lhe estou dizendo que sei como curar sua doença, ao menos o senhor poderia me

dar uma chance de poder tentar, não acha? Quanto a ser uma curandeira, saiba que não sou. Quem

me dera eu fosse, pois seria uma honra para mim ter nascido com dons tão especiais. Assim,

poderia curar muitas pessoas necessitadas e carentes. Ouça uma coisa: não precisa fazer o que vou

lhe ensinar. À noite, peça à sua esposa para preparar-lhe um unguento de água e farinha de milho.

Depois de pronto, peça-lhe que coloque o unguento quente dentro de um saco de pano e, em

seguida, coloque sobre as suas costas. Durante sete dias, na hora de se deitar, repita isso. Com

certeza vai aliviar-lhe as dores nas costas. Mas, por favor, evite tomar golpes de vento.

Percebi que o homem, embora arrogante, estava prestando atenção em tudo o que lhe falava.

Então, continuei, passando-lhe uma receita caseira de ervas.

_ Existe uma erva que se chama assa-peixe. É muito comum achá-la no meio do mato. Um

raizeiro que conheça bem de ervas poderá ajudá-lo. Prepare-a do seguinte modo: coloque duas

colheres de sopa das folhas picadas da erva em uma xícara de chá. Adicione água fervente e,

depois, abafe para amornar. Adoce com mel e tome duas a três vezes ao dia. Pode também

amassegar as folhas e tomar o seu sumo, mas é meio amargo. Portanto, é mais aconselhável fazer o

chá. Isso vai lhe curar essa tosse. Acredite em mim, senhor Juan.

_ A senhorita não é uma bruxa, é? Pois não me lembro de tê-la dito o meu nome também.

Dei um largo sorriso. Confesso que foi tentador não poder confessar-lhe que sim. Mas, mais

uma vez, precisei esconder minha condição.

_ Não, sou apenas uma jovem curiosa. E o seu nome me foi dito por esta jovem que aqui me

trouxe. Ela conhece o senhor, não conhece?

Ele fez uma aceno positivo com a cabeça e prossegui:

_ Não devemos criticar as pessoas, senhor Juan. Principalmente quando está nos estendendo a

mão. Como disse, sou apenas uma jovem curiosa e gosto muito de ajudar os outros. Isso sem contar

que leio muito, senhor Juan, muito!

Não menti para o senhor Juan. Apenas omiti algumas coisinhas, para que não saísse acusando-

me levianamente. Afinal, não estava praticando bruxaria, apenas ensinei a ele uma maneira de

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curar-se daquela doença. Mas sabia que, se eu citasse a palavra bruxaria, ele poderia colocar todos

os meus planos a perder por causa do preconceito que já havia manifestado. O senhor Juan, após

muito analisar minhas palavras, olhou-me meio receoso e disse:

_ Farei sua chave. Pode pegá-la amanhã, às oito horas. Este é um bom horário para a senhorita?

_ Sim, está ótimo! Amanhã estarei aqui, britanicamente no horário combinado. E tenho

absoluta certeza de que encontrarei o senhor bem melhor e mais disposto.

_ Acha mesmo que farei uso da sua mandinga? Se pensa isso, está enganada, pois sou um

homem muito católico e não usarei de nenhum feitiço para curar-me. Não sou o tipo de pessoa que

passa por cima das leis de Deus. Isso seria uma heresia contra o meu Pai.

A arrogância e a ignorância daquele homem estavam começando a tirar-me do sério. Mas, por

uma questão de lógica e sensatez, apenas lhe respondi:

_ De modo algum, senhor Juan, estou passando por cima da vontade de Deus. Mas também

creio que não seja da vontade Dele que o senhor continue doente. Também não tive a menor

intenção de ofendê-lo e, se o senhor pensa dessa forma, então esqueça tudo o que esta jovem

ignorante aqui lhe ensinou. Afinal, nada sei desta vida, não é mesmo? Estando aqui, diante de um

mestre artesão, quem sou para discutir? Também não quero que o senhor pense que sou intrometida

e sem educação. E, principalmente, não quero que o senhor pense que estou lhe ensinando um

feitiço para que fique ainda mais doente. Não foi a minha intenção, senhor Juan. Só tentei ser-lhe

gentil e amigável.

Disse aquelas palavras porque estava imensamente ofendida, porque percebi que aquele velho

turrão começou a ter pensamentos maliciosos e abomináveis em relação a mim. Com isso, aprendi

que, às vezes, não adianta tentar ajudar algumas pessoas, pois elas, além de nascerem no meio da

ignorância e do preconceito, preferem morrer a darem o braço a torcer, aceitando que estão erradas.

Olhei para a jovem que me acompanhava e ela estava extasiada com minhas palavras. Depois

de dar uma piscadinha de olhos para ela, levantei a cabeça e disse:

_ Até amanhã, senhor Juan. Espero, sinceramente, que neste período o senhor reflita e baixe a

sua guarda em relação a mim. Afinal, não lhe estou afrontando em nada. Passar bem.

_ Até, senhorita. Criatura insolente! - disse o velho entre dentes, demonstrando total antipatia

por mim.

_ Anna, esse é o meu nome. E a recíproca é verdadeira.

Falei dessa forma, olhando para trás e fitando-o nos olhos. Com certeza ele entendeu que

também o achei um antipático. Eu e a jovem saímos da ferralheria, rindo daquele velhote sisudo e

arrogante. A jovem, ainda, acompanhou-me até a carruagem, onde Maria estava. Eu as apresentei.

Depois de já estarem familiarizadas, virei-me para a jovem e perguntei:

_ A propósito, depois de termos passado todo esse tempo juntas, ainda não sei o seu nome.

_ Chamo-me Samara Cortez de La Costa, às suas ordens!

_ É um prazer, Samara, tê-la conhecido.

Maria deu um sorriso, parecendo ter aprovado a minha mais nova amizade. Contei a ela,

fazendo uma breve retratação, tudo o que me havia acontecido desde o primeiro momento em que

chegamos à cidade juntas. Maria ficou indignada em relação à arrogância do senhor Juan, mas

também se compadeceu da história da jovem Samara e deu-lhe um pequeno obséquio, para que

pudesse comprar alguma coisa de comer para ela e a mãe. Prometi a Samara que voltaríamos para

ajudá-la no dia seguinte.

Depois de nos despedirmos, Maria e eu fomos ao armazém comprar os outros ingredientes que

faltavam. Logicamente, comprei muitas coisas para minha nova amiga. Dessa vez, Maria não deu

nenhum palpite contrário. Parecia estar aprovando tudo que eu fazia.

Andamos muito. Fomos a todos os fabricantes de panelas de ferro da redondeza, até que achei

a minha panela - ou melhor, o meu caldeirão. O fabricante era um senhor que vendia coisas usadas,

e disse que aquele caldeirão havia pertencido a uma famosa bruxa de Salém. De imediato, comprei-

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o sem pestanejar. Depois, fomos a um marceneiro e perguntei-lhe com qual tipo de madeira ele

trabalhava. Ele citou várias. Mas, de repente, avistei um galho de carvalho jogado em um cantinho.

Perguntei ao homem:

_ Senhor, o que fará com este galho de carvalho?

_ Este? - disse ele, pegando e examinando o galho de todos os ângulos.

_ Sim. Esse mesmo.

_ Vou jogá-lo na fogueira para servir-me de lenha.

_ Hã? Não pode estar falando sério!

_ Por quê? A senhorita quer este galho?

_ Se o senhor for se desfazer dele e quiser me vender, compro.

_ Vender um galho? Não, senhorita, dou-lho, embora não faço a menor ideia para que ele lhe

será útil.

Fiquei muito grata ao marceneiro e, mesmo ele não querendo aceitar, paguei-lhe. Em casa,

pediria a Joseph para talhá-lo para mim.

Comprei diversos vidros e potes. Maria, por sua vez, indagou-me porque eu havia comprado

tantos vidros, potes e garrafas. Então, respondi:

_ Ora, Maria, as garrafas são para os xaropes. Os potes são para colocar as compotas especiais

que farei, e os vidros são para colocar as essências aromatizadas - segredinhos que aprendi com a

minha ancestral.

_ Sério? Que pessoa mais cheia de mistérios ficou a senhorita! Agora, além de me tratar mal,

anda a fazer mistério de tudo o que faz.

Ri muito do tom de ironia na voz de Maria e, depois, completei a curiosidade dela, dizendo:

_ Não voltaremos amanhã à cidade para cumprir a promessa que fiz à jovem Samara.

_ Jesus! Não me precisa dizer mais nada. Já entendi tudo, esse será um longo dia... E é melhor

eu preparar meu espírito para o que estar por vir daqui para frente. Santo Deus, menina, não tenho

mais tanta idade para lhe acompanhar nessas suas novas mudanças de hábito. Pois a senhorita,

depois que conheceu o seu novo caminho, cria tantas ideias como o vento muda de direção.

Dei uma gargalhada sonora e Maria ficou olhando para todos os lados, para ver se havia

alguém conhecido nos olhando. Afinal, uma moça de família não podia jamais rir tão alto. Era

escandaloso demais. Qualquer demonstração de alegria em público, por mais sincera que fosse, era

motivo para excomunhão. Mas não estava, naquele momento, preocupada com o que as pessoas

poderiam falar de mim, muito menos com as regras da Santa Madre Igreja. Pois, pela primeira vez

em minha vida, estava sendo eu mesma. Havia me libertado daqueles tabus, cheios de etiquetas de

refinamento e educação. Para mim, aquilo tudo não passava de uma máscara para encobrir a

verdadeira face da devassidão daquele povo hipócrita e com falsa moral.

Voltamos para a carruagem, que estava em frente à casa de chá, onde Lorenzo nos estava

esperando para retornarmos à casa. Esperei que o cavalariço empilhasse tudo em cima da

carruagem. Então, disse-lhe:

_ Haverá uma pequena mudança nos planos, meus queridos! Antes de voltarmos para casa,

tenho que resolver um pequeno assunto que ainda está pendente. Não se preocupem: chegaremos à

casa ainda esta tarde.

_ A senhorita é quem manda! - disse o cavalariço.

_Vire na primeira esquina, antes da praça, e entre na terceira rua, antes de chegar à ferralheria.

Vou visitar uma amiga.

Maria olhou para o céu e sacudiu a cabeça, como quem diz Eu sabia!.

Não demorou muito e, em alguns minutos, já estávamos em frente à casinha da minha mais

nova amiga. A jovem, ao ver a carruagem parando em frente à sua casa, veio logo nos receber com

um sorriso amistoso nos lábios.

_ Senhorita! Não acreditei que viesse. Ainda mais assim, tão rápido.

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Assim que desci da carruagem, ela veio receber-me prazenteira, dando-me um abraço afetuoso

e, em seguida, convidando-nos para entrar. Antes de entrarmos, pedi-lhe desculpas por ter

antecipado minha visita. Disse-lhe que meu coração pediu aquela atitude.

Já dentro da casa, deparamo-nos com Dona Catarina, a mãe de Samara, sentadinha em um

caixote. Embora a mulher estivesse ainda muito pálida, ela me pareceu mais animada do que

quando a vi pela manhã. Samara, por certo, deve ter-lhe dado algo de comer com o obséquio que

Maria lhe doara. Assim que me viu, abriu um sorriso simples no rosto e cumprimentou-nos com um

aceno de cabeça que mais parecia gratidão. Pude chegar a uma conclusão com aquela inesperada

visão à minha frente: a mãe de Samara, na verdade, não saía da cama porque estava enfraquecida.

E, por já ter certa idade, isso a debilitou. Não havia preço no mundo que pagasse aquela cena.

Percebi o quanto é importante ajudarmos os outros. Mesmo que essa ajuda seja pequena, faz

diferença.

Pedi ao cavalariço que trouxesse as compras de mantimentos que havíamos feito no armazém.

Dei a elas, também, algumas panelas e potes de vidro que havia comprado. Eu e Maria ajeitamos a

casinha, passando a vassoura e espanando. Maria arrumou toda a cozinha e, depois, preparou-nos

uma deliciosa canja para o jantar.

Lorenzo e o cocheiro auxiliar capinaram em volta da casa e arrumaram o portão quebrado.

Ajudei Samara a dar banho na mãe, que mal podia ficar de pé. Depois de tudo pronto, procurei por

Lorenzo e o flagrei olhando a jovem Samara de uma maneira terna. Ele parecia estar tão

hipnotizado pela jovem que nem me viu pigarreando para chamar sua atenção. Então, cutuquei-o

com o dedo indicador e disse:

_ Será que o Don Juan poderia me dar um minuto da sua atenção?

_ Hã? Claro que sim, senhorita Anna. Em que posso ser-lhe útil?

_ Por favor, Lorenzo, vá até a casa do doutor e traga-o aqui. Diga que é a filha do conde Juan

Vladimir Porto Señra que o chama a esta casa. Faça isso agora, que tenho pressa e urgência.

Depois, o Don Juan pode flertar com a jovem Samara.

Ela corou de imediato. Logicamente, eu já teria planos futuros para aqueles dois enamorados.

Lorenzo apertou o chapéu nas mãos e saiu tropeçando, parecendo muito sem graça com o meu

comentário. Samara não sabia o que fazer; então, fez um comentário, tentando desviar a minha

atenção daquela cena que havia visto de dois jovens apaixonados se olhando.

_ Meu Deus, a senhorita é uma duquesa? Estou tão envergonhada... Santo Deus, como pude ser

tão ignorante em não perceber!?

_ Não. Sou apenas filha de Juan Vladimir Porto Señra. Na verdade, somente minha madrasta é

condessa. Meu pai casou-se com a senhora condessa Marli Von Del Prat e, por isso, exerce também

o direito ao título. Mas nada tenho a ver com a nobreza. Minha mãe, embora não a tenha conhecido,

era filha de fidalgos, mas eram pessoas muito simples. Eles foram os pioneiros deste condado;

muitas melhorias aqui foram feitas por eles. Eles, sim, são importantes. Nada sou além de uma boa

amiga. Por favor, não faça cerimônias comigo. Senão, eu que ficarei constrangida com a senhorita.

Não estou aqui para observar sua casa ou seus modos. Estou aqui para ajudá-la.

_ Minha Santíssima Mãe de Deus! Mesmo assim, como eu pude ser tão displicente,

oferecendo-lhe um caixote para a senhorita sentar-se!?

Dei um sorriso e, depois de sacudir a cabeça, respondi:

_ Se não tem outra coisa para me oferecer, então, o aceito de bom grado, fique sabendo! Além

do mais, é melhor sentarmos em caixotes do que ficarmos de pé, não acha? O mais importante para

mim agora é a cura e a saúde de sua mãe. Pois ela, sim, tenho certeza de que já lutou muito. Agora

merece, ao menos, um mínimo de conforto. Saiba, senhorita Samara, que todos estamos aqui para

ajudá-las em tudo o que pudermos. De modo algum estamos aqui para julgá-las ou prestar atenção

nos objetos que faltam em sua casa.

_ A senhorita é uma santa! Pelas suas atitudes, provou-me que tem, sim, a nobreza da alma.

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_ Oh! Não sou santa nem em pensamento, acredite! Só resolvi fazer o que todos deveriam:

caridade!

Ela ficou sem saber como me agradecer, de tão feliz que estava com os presentes. Por fim,

muito sem graça e de cabeça baixa, perguntou-me:

_ Como poderei agradecer-lhe, senhorita Anna?

Segurei seu rosto magro com carinho, forçando-a olhar em meus olhos, e respondi:

_ Em suas orações, lembre-se de mim, pois muito em breve serei eu quem precisará da

senhorita.

Maria, que estava à porta, já ia me fazer uma pergunta quando fomos interrompidas pelo

cocheiro. Ele chegou junto com Lorenzo, trazendo o doutor, todo aflito. Ele já foi direto em minha

direção, perguntando:

_ O que tem a menina e o que faz aqui? Essa gente fez-lhe algum mal?

_ Não, doutor, estou muito bem. Não tenho absolutamente nada. Essa gente, como o senhor se

refere, são apenas pessoas pobres que precisam da sua ajuda. Como não têm condições, estou

pagando para que o senhor as atenda da melhor maneira possível.

Fiquei muito zangada com aquele velhote fedido e cheio de preconceito. Engolindo uma

resposta malcriada, prossegui:

_ Mandei chamá-lo, doutor, porque esta senhora precisa de cuidados. Está muito debilitada e

sei que o senhor é o único médico no condado. Mas, caso o senhor não quiser atendê-la, irei ao

condado vizinho e pedirei ao doutor de lá para vir aqui atendê-la.

Sabendo da rivalidade entre os dois doutores, acabei pegando o ponto fraco daquele velhote

ensebado. Apertei os olhos e senti arrepio com aquele pensamento nauseante. Ele ainda continuou

com aquela conversa, parecendo não ter ouvido o que falei de início.

_ Creio que não tenham dinheiro para serem atendidas. Preciso comer também. – disse ele,

com ar carrancudo. - Seu pai sabe que a senhorita usa o dinheiro dele com indigentes?

Por pouco não o segurei pelo colarinho encardido do terno. Mas, respeitando a idade em que

ele já se encontrava e também a má condição auditiva, disse-lhe, por fim, quase aos gritos, para ver

se ele me escutaria:

_ Estou pagando! A propósito, o senhor não fez um juramento junto ao conselho de medicina?

Nesse juramento, não é verdade que não poderia negar auxílio médico a ninguém? O dinheiro é

meu, são minhas economias; não preciso do dinheiro do meu pai. Além de ter o meu dote, juntei

algumas economias e agora achei uma boa maneira de gastá-las. Então, já que será remunerado,

cumpra o seu papel, se quiser receber o meu dinheiro... Sabe, doutor, nunca gostei do senhor, e o

que fará aqui eu faria muito melhor. Só que preciso do seu diagnóstico para saber o que melhor

fazer. Agora comece a trabalhar, examinando a paciente, pois sabemos que tempo é dinheiro, e o

senhor já gastou metade do meu dinheiro com conversa desnecessária até agora.

Ele ficou muito nervoso, mas o mercenarismo falou mais alto. Levamos a mãe de Samara para

o quarto, para melhor examiná-la. Samara ficou com a mãe dentro do quarto; eu e Maria ficamos

do lado de fora, apreensivas. A consulta demorou umas duas horas e, naquele intervalo de espera,

mil e um pensamentos passaram na minha cabeça. Fiquei pensando em uma ideia para ajudar

Samara e deixar Dona Catarina amparada no pouco de vida que ainda tivesse. Obviamente, colocá-

los-ia em prática. Só precisaria organizar-me mais em algumas questões.

Depois de muito esperar, o doutor saiu do quarto, acompanhando Samara. Depois de coçar a

cabeça cheia de casquinha, disse:

_ A senhorita tinha razão em estar preocupada com a saúde dessa mulher. Ela está com anemia

profunda e problemas na bexiga. Eu diria que seus rins também estão quase parando de funcionar.

Isso é o que está causando aquela cor amarelada nela. Mas devo adverti-las que uma cirurgia seria

de alto risco, pois ela está muito debilitada devido à anemia.

_ O que devemos fazer, então?

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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_ Passarei remédios para a dor e para a anemia. É só o que posso fazer por hora. Duas vezes

por semana, passarei por aqui para vê-la e acompanhá-la em seu tratamento. É muito importante a

questão da alimentação, que deve se muito rica em ferro. Ela deve comer muito fígado de boi e,

também, tomar muito suco de frutas.

_ Não se preocupe com isso, doutor. Farei o que for necessário para que elas fiquem bem de

agora em diante. Eu mesma cuidarei da alimentação dessa senhora.

Depois de pagá-lo e ter-lhe adiantado o dinheiro das futuras consultas, peguei a receita e pedi

que Maria fosse ao boticário para encomendar os remédios. Ela foi de imediato. Fui para a cozinha

e preparei uma poção à base de ervas medicinais. Coloquei tudo dentro de um vidro e dei à Samara,

para que desse à mãe três vezes ao dia, por um mês.

Eram ervas simples, que podem ser encontradas até no meio do mato. Usei a tanchagem ou

Plantago major, também conhecida como transagem. Essa erva, tão popular e comum, combate as

seguintes moléstias: inflamação nos ouvidos, nos olhos, nas gingavas, na garganta, nas amígdalas,

nas faringes, no estômago e nos rins, entre tantas outras doenças.

A outra erva que usei foi a quebra- pedra, que serve para chás caseiros, para dissolver cálculos

nos rins ou pedras, como vulgarmente falamos. Essa erva tem as seguintes propriedades:

antiespasmódica, adstringente, analgésica, antisséptica, anti-hipertensora, anti-inflamatória,

diurética e tônica.

Não sabia bem como essa pequena erva veio parar em Salamanca, na Espanha. Mas o fato é

que ela era muito eficaz para o tratamento de todas as doenças citadas. É muito importante que eu

cite, aqui, que nunca quis ser uma doutora. As receitas que ensino são apenas auxiliares à medicina.

Elas e as dicas aqui expostas são uma orientação prática e fácil àqueles que desejam se utilizar de

plantas e ervas à disposição de todos. Nós, bruxas, vivemos de tudo o que a mãe terra nos fornece.

Se ela nos oferece a cura, então, por que não utilizá-la?

Quando Maria voltou, trazendo o remédio preparado pelo boticário da região, entreguei nas

mãos da jovem Samara, orientando a maneira como ela daria à mãe. Tomamos a canja que Maria

havia preparado e, depois de tudo resolvido, despedimo-nos. Ao sairmos, prometi que voltaria a vê-

la. A jovem agradeceu-me tanto que cheguei a corar.

Já na carruagem, Lorenzo olhou-me com os olhos cheios de lágrimas, dizendo as seguintes

palavras:

_ A senhorita é um anjo, um anjo... O que faria essa pequena família se a senhorita não lhe

tivesse ajudado?

_ Não, Lorenzo, só fiz a minha obrigação como cidadã.

Lorenzo nem desconfiava que eu tivesse planos para ele e Samara. Maria deu-me um tapinha

nas costas, olhando-me com ar de admiração. Praticamente havia me tornado uma heroína para

aqueles dois. Mas eu não poderia deixar que me vissem daquela forma, pois não havia feito nada

demais.

Na volta para casa, eu e Maria não falamos muito dentro da carruagem. Só queríamos

descansar depois daquele dia de trabalho árduo. Não vimos a minha madrasta quando chegamos em

casa. Segundo nos informou a copeira, ela estaria em seu quarto, com terríveis dores de cabeça –

obviamente, causadas pelo excesso de bebidas da noite anterior. Mas ela disse para a copeira que

foi por causa do desgosto que eu lhe havia causado.

Como eu não estava mais com vontade de ouvir as intrigas da copeira, fui para o meu quarto,

deixando Maria a sós com ela. Tirei os sapatos tranquilamente, sentei-me na beira da cama e peguei

um livro para ler. Naquele dia, estava muito calma e não deixaria que nada perturbasse minha paz.

Algumas horas depois, a copeira trouxe-me o banho. De cabeça baixa eu estava e de cabeça

baixa continuei, lendo o meu livro. Mas percebi que ela me olhava com cara feia. Acho que ela

queria que eu perguntasse como a minha madrasta estava, para que pudesse defendê-la, como

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O segredo dos girassóis

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sempre fazia. Ao perceber que não me manifestei com nenhuma emoção aparente, ela saiu,

esbarrando propositalmente o balde em todos os cantos – pensando, assim, que me incomodaria.

Fiz meu asseio tranquilamente. Coloquei uma camisola limpa e fresca. Certifiquei-me de ter

fechado a janela. Dispensei o jantar e outras refeições, porque estava satisfeita. Depois de fazer

algumas anotações em meu diário, virei para o lado e adormeci, simplesmente.

Naquela noite, especificamente, tive um sonho estranho. Sonhei com um lugar frio e sombrio,

onde eu era mantida em cativeiro por pessoas encapuzadas. Elas circulavam em volta de mim e

apontavam-me o dedo, como se estivessem acusando-me de alguma coisa. Porém, não consegui

ouvir o que diziam.

Acordei de supetão, como se alguém me estivesse acordando, ou como se tivesse levado um

choque de um raio. Fiquei muito assustada. Era como se alguma coisa estivesse para acontecer

naqueles dias que viriam pela frente. Também sabia que aquele sonho fazia parte do meu futuro,

mas não conseguia entendê-lo de imediato. Sabia que as pessoas do meu sonho eram religiosas, e

isso me intrigou muito. Fiquei durante algum tempo sentada na cama, tentando decifrar aquele

sonho confuso.

De repente, olhei para a janela e ela estava aberta, novamente. Confesso que me deu certo

receio. Quem estaria entrando em meu quarto e abrindo a janela? E com qual propósito isso estava

ocorrendo? Havia me esquecido de perguntar à Maria no dia anterior, mas nunca me esqueceria de

perguntar-lhe no dia seguinte.

Mudei meus pensamentos de direção. Levantei-me e fui até a janela, fechá-la. Resolvi, por uma

questão de segurança própria, trancar a fechadura da porta do meu quarto também. Como percebi

que não conseguiria dormir aquela noite, peguei meu diário e comecei a anotar algumas coisas nele.

Foi quando ouvi um barulho estranho vindo do jardim. Fiquei muito intrigada. Então, levantei-

me na ponta dos pés, para não chamar atenção, e fui até a janela. Abri bem devagarzinho e olhei de

meia greta. A condessa estava de camisola e roupão, correndo pelo jardim em direção ao portão. Vi

quando ela conversou com um homem, que não era um dos seus convivas. Embora a Lua estivesse

iluminando tudo à distância, não me deixou ver o rosto do homem. Mas, pelo modo de se vestir,

pareceu-me um fidalgo ou mesmo um monarca. Fiquei imaginando o que aquele homem estava

tramando junto à minha madrasta, àquelas horas da noite. O mais estranho foi perceber que os dois

gesticulavam e olhavam em direção à minha janela. Pensei Será que minha madrasta estaria

planejando me matar?

Depois de ver e presenciar aqueles fatos, não consegui dormir mais aquela noite. Fiquei

apavorada, pensando que a condessa poderia estar tentando me assassinar. Aqueles pensamentos

começaram a me deixar trêmula, pois sabia perfeitamente que a esposa de meu pai era uma mulher

ardilosa e vingativa e, com certeza, estava planejando algo para se vingar pelas coisas que falei com

ela pela manhã. Sentei-me na cama, cruzei as pernas e comecei a orar com toda a força do meu ser.

Tentei espantar aqueles pensamentos que não me deixavam dormir. Pedi a Deus que acalmasse

meu coração e que me desse forças e visão para que pudesse ver o que a condessa estava

planejando contra mim.

Depois que orei a Deus, meu coração foi se acalmando lentamente, até que fiquei mais

relaxada. Então, voltei a escrever no meu diário. Aproveitei para falar sobre a meditação e o dom

da paciência.

A meditação é um processo de se contatar com o ser interior e canalizar as energias puras e

vibratórias num processo de transcendência. Possui técnicas que permitem que a vida interior se

desenvolva, proporcionando o caminho para uma percepção maior da vida real. É a forma de nos

despertar para a presença do Divino na criação e no nosso mais profundo ser. A meditação

contribui de forma positiva para nosso desenvolvimento pleno e harmonioso. São Paulo definiu o

estado da meditação em sua epístola aos efésios, capítulo 4, versículo 13.

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Meditar é orar em silêncio. É ocupar o pensamento com o vazio - ou seja, temos que esvaziar

o pensamento atual, deixando a mente sozinha. Meditar é a coisa mais difícil que o ser humano

pode imaginar. Pois o homem não consegue, por si só, estar sossegado dentro de si mesmo. Não só

as bruxas, mas todos os seres humanos deveriam meditar, ao menos uma vez na vida. Meditar é

deixar o pensamento ser absorvido para dentro de uma realidade suprema da consciência - o que é

absolutamente indescritível. O centro do nosso ser é o ponto onde Deus nos toca, levando-nos ao

despertar espiritual, produzindo várias experiências de caráter místico. Na meditação, deve-se

silenciar a mente pensante, pondo em prática o entendimento das coisas que não podem ser vistas e

que pertencem à consciência pura. Temos que ter apenas uma noção única da meditação: nela não

há consciência pensante. Falo de consciência pura quando o espírito habita a mais alta verdade, sem

qualquer mistura de pensamento imaginativo. Para chegar a esse nível, devemos calar todas as

memórias e ideias inquietas, silenciando o pensamento. Nenhum movimento na vida religiosa tem

qualquer valor, a menos que seja um movimento para o interior, em direção ao centro silencioso da

nossa existência, onde está Cristo: o nosso eu. A meditação é um encontro cósmico, não só com o

passado ou com os espíritos, mas com a nossa mente inconsciente. É o encontro da paz interior.

Para que uma pessoa entre em contato consigo mesma, precisa saber que a primeira coisa a

fazer é treinar a respiração. Tem que ser uma respiração correta, disciplinada e induzida ao mesmo

tempo. Não pode existir nada pendente e nenhum barulho em volta dela, pois isso atrapalha o treino

mental. Uma vez dominada a respiração, a segunda coisa a fazer é corrigir a postura. Essa postura é

designada de hasanas. Depois disso, comece a desenvolver a sua concentração física e mental. Para

isso, procure respirar, mantendo a postura e olhando para frente, fixando num ponto. Seguidamente,

olhe para o ponto e para si. Fique assim, em silêncio absoluto. Espere que as ideias fluirão à mente,

mas se não as agarrar, elas, por si mesmas, passarão. Isso acontecerá até que a mente esteja

aquietada e consiga tocar a consciência pura. Como citei, meditar não é fácil e nem é para qualquer

um.

A busca de Deus, ou contato com as divindades, é algo intrínseco ao ser humano. O maior

contato com Deus é aquele que estabelecemos através da prática da meditação. Algumas pessoas

pensam que se trata de ensinamentos genéricos, e que basta esperar o espírito em questão aparecer.

Mas no nosso sentir, há um erro nessa maneira de pensar.

Em primeiro lugar, porque ao nosso redor há sempre espíritos querendo comunicar-se conosco,

mais comumente de baixa categoria. Em segundo lugar, porque, não chamando um espírito em

particular, abrimos um portal para qualquer espírito - até mesmo os vulgares ou malignos. Em uma

reunião ou assembleia, não dar a palavra a nenhum espírito que se manifeste é esperar por um

resultado catastrófico. Os espíritos têm uma necessidade muito grande de se comunicar com as

pessoas - isso é fato consumado. É muito imprudente, também, que nos neguemos a falar com um

espírito que procura comunicar-se conosco, levando em conta que ele pode ser um conselheiro ou

um mentor espiritual. Quando um espírito aflito tentar falar, mesmo que seja confusa a sua

manifestação e não consigamos entendê-lo, apenas ouvir é a melhor resposta. Na maioria das vezes,

esses espíritos precisam de ajuda. Devemos levar em consideração, também, o fato de que os

espíritos estão muito distantes de nós. Por isso mesmo, é difícil que manifestem a comunicação.

Caso alguém queira comunicar-se com um espírito, deve ter muita paciência, pois ele pode demorar

até dias para que consigamos escutá-lo. Geralmente, manifestam-se muitos de uma vez, pois a

necessidade de se comunicarem é muita. Isso é o que causava as muitas vozes que eu ouvia quando

criança. O apelo direto a determinado espírito é um laço direto entre nós e ele. Por isso, ao evocar

um espírito, tenha muita cautela - isso é uma regra básica e absoluta. Espíritos familiares são

habituais e também sempre aparecem, mesmo sem serem chamados.

Fiz essas anotações porque senti a necessidade de meditar e tentar chamar o meu mentor

espiritual. Ainda não o conhecia. Mas, como precisava de ajuda para acalmar-me os nervos e

orientação para saber lidar com aquele perigo eminente, tive que chamá-lo. Podemos, sempre que

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quisermos, chamar nosso mentor espiritual. Mas isso não é para se tornar um hábito frequente, pois

estamos lidando com pessoas. Embora elas não estejam mais no plano terrestre, merecem respeito

de igual modo. Portanto, nunca faça do mentor espiritual uma marionete.

Relaxei os músculos e fiz novamente minhas orações, de olhos fechados. Pedi a Deus que me

desse a capacidade de entender os espíritos com clareza, porque sabia que antes, para mim, eles

eram apenas vozes e eu nada entendia do que me falavam.

Depois de meditar e limpar o meu eu, sentei-me na cama com as pernas cruzadas e perguntei,

em voz alta, mas com os olhos ainda fechados:

_ Acaso há algum espírito familiar aqui presente que possa responder-me algumas perguntas?

A princípio, nada ocorreu. Então, fiz essa pergunta mais duas vezes. Até que um vento forte

entrou pelo quarto, com tamanha força que tive que me manter firme. Havia naquela experiência

um fator muito importante: minha janela estava completamente fechada. Senti medo e calafrio, mas

me mantive inerte e de olhos fechados. Foi, então, que senti uma forte presença feminina perto de

mim. Um suave perfume de mulher invadiu todo o ambiente. Perguntei, então:

_ Quem é você? Se está aqui neste recinto para fazer o bem, seja bem vinda. Mas se veio

atormentar este lar, por favor, peço sua compreensão para que se retire em nome de Deus. Se for

minha parenta, diga-me seu nome.

O vento soprou novamente, só que dessa vez mais suave e bem próximo ao meu ouvido. E uma

voz doce e sussurrante falou-me:

_ Não se preocupe, Anna, não lhe faria nunca nenhum mal. Sou Elizabeth, sua mãe.

_ Mãe!

Tive vontade de abrir os olhos e abraçá-la, mas resisti mais uma vez, pois sabia que não estava

preparada para vê-la em sua forma incorpórea. Isso sem contar que, sem querer, eu poderia afastar

seu espírito. Um espírito familiar não vem com a intenção de nos assustar, mas de nos ajudar ou

pedir-nos algo. Mas, muitas vezes, não o vemos de uma maneira muito agradável. Isso varia muito

com a forma que está nosso pensamento. E o meu, naquele momento, não estava em perfeita

harmonia com o universo espiritual - o que poderia ocasionar uma manifestação ectoplásmica

assustadora. Continuei aquela conversa, sem fazer movimentos bruscos: da mesma forma que eu

poderia me assustar, ela também poderia se assustar comigo. Alguns espíritos são cautelosos e

sensíveis. Então, por fim, disse-lhe:

_ Mãe, como a senhora está? Tenho tantas saudades... Sinto tanto a sua falta. Tenho tantas

perguntas...

Ela deu um sorriso, que pude perceber com a minha mente inconsciente.

_ Estou bem, minha filha, mas ainda estou estudando muito.

_ Como assim, estudando?

_ O mundo espiritual é bem parecido com o mundo de vocês. Só que aqui vivemos em paz e

temos que escolher tarefas. O trabalho é constante. Tive alguns problemas quando deixei meu

aparelho. Levei algum tempo para aprender que não voltaria tão rápido. Fiquei em um hospital,

curando-me de uma espécie de loucura sintomática. Não aceitava não ter você em meus braços e

era muito apegada ao amor carnal de seu pai. Com o tempo, os auxiliares foram me mostrando

como era o funcionamento deste lado. Aceitei, por fim, viver em uma colônia onde as casas eram

parecidas com as do mundo onde vivi. Conheci muita gente e encontrei alguns parentes, mas outros

decidiram reencarnar. Comecei, então, a fazer um trabalho social com crianças vítimas de abortos.

Elas são espíritos difíceis, pois foram rejeitados por seus pais e, muitas vezes, não aceitam uma

nova família. Por anos assombram as casas onde queriam morar, e até deixam seus habitantes com

problemas mentais sérios. O caso mais grave foi de um menininho cuja mãe tentou três abortos e,

no oitavo mês, quando ele finalmente conseguiu nascer, ela o enforcou ainda vivo. Mas, mesmo

tendo tanto trabalho, sempre tive permissão para visitá-la. Quando você era criança, eu sempre

estava por perto, evitando que se machucasse ou que alguém lhe fizesse algum mal.

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Interrompi minha mãe, fazendo-lhe uma pergunta que havia muito tempo me deixava

intrigada:

_ Foi a senhora quem esteve comigo aos dez anos, quando me olhava ao espelho?

_ Sim. Perdoe-me se a assustei, não foi minha intenção. Por isso, não apareci mais.

_ Eu sei, mãe. Na verdade, sempre soube que era a senhora quem me cobria à noite. Só não

sabia como. A senhora é o espírito que vai me auxiliar durante minha jornada terrena?

_ Não, só vim para poder apresentá-lo a você e matar as saudades que sentia.

_ Quem será, então? É algum dos meus entes falecidos?

_ Também não. Seu nome é Heixe, e ele é um espírito de muita luz e de uma sabedoria infinita.

Ele é o responsável por proteger você e o seu amor. Também é o responsável pela colônia

onde vivo.

_ E qual é o nome dessa colônia, mãe? - quis saber.

_ La Paz. É um lugar maravilhoso, com tantos campos e flores... Lá é como se fosse uma

fazenda. Só que, ao invés de cultivarmos hortaliças, cultivamos pessoas. Resgatamos crianças

vítimas de abortos e crianças que são assassinadas de maneiras cruéis. Damos a elas todo o amor

que não tiveram. Ensinamos-lhes princípios morais e encaminhamo-las para uma nova encarnação.

Confesso, minha querida, que é um trabalho duro e árduo, mas compensador! Sempre que damos

amor, recebemos de volta. Como vê, essa foi a maneira que acharam para compensar a falta que

você faz para mim.

Ficamos vinte minutos conversando. Ela me respondeu sobre uma série de perguntas

sucessivas que lhe fiz. Foi maravilhoso poder conhecê-la. Minha mãe pareceu-me um espírito

muito sereno e dedicado. Perguntei-lhe se ela é quem estava abrindo minha janela.

_ Não, Anna. Não temos permissão para fazer esse tipo de coisa. Quando esses fatos

acontecem - o que é uma raridade -, sempre são provocados por um incumbo: espíritos sem luz,

vulgarmente denominado assim na terra de demônio. Mas não é o caso aqui.

_ Então é uma pessoa de carne e osso que está fazendo isso?

_ Sim, é sim.

_ Quem é essa pessoa e por que está fazendo isso?

_ A pessoa que está fazendo isso é a sua madrasta. Mas não tenho permissão de lhe contar mais

nada. Terá que descobrir por sua própria conta. Apenas lhe peço que tome muito cuidado.

Aquelas palavras só serviram para me deixar mais apreensiva, pois ressaltaram minhas

suspeitas de que minha madrasta poderia estar tentando algo contra mim.

Interrompemos a nossa conversa, pois uma grande luz apareceu, iluminando todo o recinto. A

luz era tão forte que, mesmo eu estando com os olhos fechados, pude percebê-la.

Depois de escutar minha mãe apresentando-se, senti um leve perfume de flores no ar e, então,

Heixe apresentou-se. Sua voz era grave, mas ponderada. Então, como se fosse o vento forte, ele

falou:

_ Abra seus olhos, Anna, não precisa ter medo de mim. Não há nada que temer. Abra os olhos

para que possamos falar com você.

Senti um arrepio percorrer todo o meu corpo. Lentamente, fui abrindo os olhos, para que a luz

que saía de Heixe não me cegasse, pois era muito reluzente.

Na minha frente, deparei-me com um homem alto, muito louro, aparentando ter trinta e poucos

anos. Suas vestes eram de um linho muito branco e ele calçava sandálias douradas. Seus olhos eram

de um azul inigualável. Todo o recinto foi tomado pela forte luz e pelo cheiro de flores que saíam

dele. Fiquei completamente extasiada. Nunca havia visto nada tão maravilhoso antes. Heixe,

percebendo meu estado de euforia, disse:

_ Sou seu mentor espiritual. Estou aqui para ajudar-lhe no que for preciso.

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_ Sinto-me muito honrada por receber em minha casa alguém com tanta grandeza como você.

Espero poder ser digna de tamanha responsabilidade e confiança. Muito obrigada por ter vindo

ajudar-me.

Conversei com Heixe a respeito de várias coisas. Tirei muitas dúvidas que tinha em relação ao

mundo espiritual. Ele foi maravilhoso comigo, tendo paciência e respondendo-me tudo, pois estava

meio confusa e perdida em relação a muitas coisas.

Heixe contou-me, também, ter sido vítima de uma jura de amor e, durante duas de suas

reencarnações, ele assassinou seu amor porque sentia ciúmes. Custou a se libertar e a libertar sua

vítima. Até que, depois de muito sofrimento, aceitou ajuda. Após se restabelecer, estudou durante

anos a fio e, finalmente, encontrou seu amor em uma colônia. Ambos, agora, auxiliam vítimas de

sortilégios e juras.

Sua presença transmitia-me muita paz e sabedoria. Heixe orientou-me a como seguir o meu

caminho. Estava eufórica e muito feliz por ter tão perto de mim um espírito de tão alta grandeza.

Então, fiz a pergunta principal, o pivô por tê-los evocado:

_ Como farei para descobrir o que minha madrasta está planejando contra mim? Pois sei que é

algo diabólico. Confesso que tenho medo.

Heixe respondeu-me, meio a contra gosto, da seguinte forma:

_ Tem toda a razão por temê-la. Mas saiba que estaremos aqui para lhe ajudar, Anna. Não

posso dizer-lhe muita coisa, mas na hora certa você saberá como agir. Tenha certeza apenas de uma

coisa e ouça com muita atenção o que irei lhe dizer: não centre muito suas energias em apenas uma

pessoa, pois o mal, Anna, às vezes está dentro de quem mais amamos. Alguém que, para nós, é

considerado um herói. Sabe, minha querida, você passou uma vida de repressões e sofrimentos

nesta casa. Portanto, mediante a sua dor, não percebeu quem era o seu verdadeiro inimigo. Não

quero que, de forma alguma, se revolte ou se entristeça com as minhas palavras. Quero apenas que

pense e ore muito, minha querida, pois o que ainda estar por vir pode fazer-lhe querer fraquejar em

sua jornada. Saiba, Anna, que tudo o que nos acontece nesta terra é permitido pelo Pai Maior. O

que posso lhe dizer mais sobre isso é que essa pessoa que irá lhe trair traz consigo uma grande

mágoa de sua outra vida como Shaara. O espírito dessa pessoa tornou-se muito revoltado. Resgatá-

lo foi muito difícil. Achamos que uma reencarnação junto a você seria boa para ele. Mas nos

enganamos: as memórias revoltosas que ele trouxe em seu inconsciente não lhe abandonaram.

Preste bem atenção, pois logo acontecerão fatos que lhe colocarão não só em perigo, mas também

lhe causarão muita decepção. Não julgue essa pessoa, pois ele a ama muito. Inconscientemente, não

consegue perdoá-la.

Entendi que Heixe falava sobre o meu pai. Aquela revelação deixou-me chocada. Então,

comecei a juntar os fatos e percebi que Heixe estava coberto de razão. Meu pai sempre ficava

estático, olhando o horizonte. Sua depressão fazia-o beber compulsivamente. Houve momentos em

que o flagrei olhando para mim como se me odiasse. Eu, às vezes, achava que a minha madrasta

estava certa quando dizia que ele também culpava-me pelo falecimento de minha mãe. Embora ele

mesmo tenha me defendido certa vez, agora muitas coisas faziam mais sentido.

Fiquei conversando com Heixe e minha mãe até três da manhã, quando se despediram de mim.

Ela não tinha muita permissão para me responder, mas ele me orientou, respondendo tudo o que eu

perguntava. Prometeram sempre atender-me quando necessário fosse.

Aprendi, com essa experiência, que os espíritos poderiam sempre nos auxiliar e nos ajudar,

mas nunca poderiam interferir em nossos destinos. E que também poderiam nos responder só o que

lhes fosse permitido. Eles respeitavam a hierarquia das ordens superiores e divinas. Têm obrigações

com seus escolhidos e respectivos trabalhos, habitam em colônias e podem estar em muitos lugares,

mas nunca ao mesmo tempo.

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Sabia que deveria ter muito cuidado com zombeteiros, pois nosso espaço físico e invisível aos

olhos está povoado de espíritos de todas as classes. Aquele pensamento deixou-me um tanto

assustada e tímida: só de imaginar um espírito observando-me trocar de roupa, constrangia-me.

_ Espero que vocês respeitem minha privacidade! Imagine só!- disse em voz alta, rindo

sozinha.

Aprendi, também, que somos nós que atraímos os espíritos errantes e sem doutrina – ou, como

vulgarmente os chamamos, espíritos sem luz, ou rebeldes. Isso depende muito da doutrina

espiritual de cada um.

A faculdade mediúnica não é só para isso: ela é apenas um meio de comunicação. Aprendi que

podemos atrair a antipatia ou a simpatia de um espírito. Compreendi que posso estar rodeada pelos

que têm afinidades ou não, sendo superiores ou inferiores. Os espíritos não passam de almas

desprendidas dos corpos, que levam consigo o reflexo de suas qualidades e imperfeições. A ciência

humana ainda está muito longe de aprender sobre essa magnitude. Ouso dizer que irá demorar

muitos séculos para que aceitem esse tipo de sabedoria astral. Por mais que os estudiosos e

cientistas - e até alguns astrólogos - estudassem, os seres humanos não alcançariam com facilidade

tal sabedoria. Eu, agora, estava entre dois mundos e sentia-me privilegiada. Minha missão era

ajudar os enfermos e necessitados, e esclarecer-me o quanto mais na ciência do saber.

Minha mente estava cansada e minha cabeça parecia estar cheia de bolhas. Mas precisava

levantar-me e ir à cidade. Queria ver como estava passando Dona Catarina, e ainda precisava passar

no ferreiro e pegar minha encomenda. Depois de muito lutar contra a fadiga e de não ter

conseguido dormir, levantei-me a contra gosto e fui olhar-me ao espelho. Santo Deus!, pensei

comigo. Estava péssima: meus olhos, cobertos por enormes olheiras. Teria que arrumar uma

desculpa para contar sobre aquilo à Maria. Caso lhe falasse o que havia acontecido, ela poderia

ficar muito preocupada - principalmente sobre o fato de que meu pai seria o causador de toda a

minha desgraça.

Arrumei-me rapidamente. Não poderia ficar um segundo parada ou o sono tomaria conta de

mim novamente. Desci para o desjejum e, no caminho, encontrei com a copeira, que subia com a

bandeja de desjejum da condessa. Cumprimentei-a casualmente. Ela, por sua vez, falou:

_ Senhorita, já ia levar seu desjejum daqui a pouco! Perdoe-me, estou atrasada?

_ Não, decidi levantar-me mais cedo hoje. A propósito, de hoje em diante, tomarei meu café na

cozinha com vocês. Não me olhe assim, porque não estou doente. Muito pelo contrário: estou me

sentindo muito bem. Aliás, nunca me senti tão bem em toda a minha vida. Sabia que aquela

inesperada e súbita mudança de hábito geraria muitos comentários entre ela e a condessa, mas foi

irresistível provocá-la. Ao chegar à porta da cozinha, Tereza, Joseph, Lorenzo e o capataz Tomaz

estavam tomando café. Ao me verem, todos - inclusive Maria - se levantaram, espantados. Então,

disse-lhes:

_ Pelo amor de Deus, sentem-se! Para que tanta reverência? Acaso aqui chegou alguém da

realeza? Fiquem despreocupados e, por favor, não façam cerimônias comigo.

Dizendo isso, fui sentando e pegando um pedaço de pão de milho. Percebendo que

continuavam de pé, disse:

_ Olhem, se for para eu vir aqui todos os dias e ter que vê-los em pé até que eu acabe de tomar

o meu desjejum, então prefiro ir para o meu quarto e dar-lhes o trabalho de subir as escadas para

me servirem.

Foram se sentando um a um, entreolhando-se. Portanto, prossegui, dizendo:

_ De hoje em diante, serei uma companhia e constantemente me verão nesta cozinha. Espero

que isso não seja um empecilho, e sim que isso possa nos unir. Afinal, sou ou não sou a pequena

sombra desta casa? - disse isso olhando para Tereza, enquanto todos soltaram um largo sorriso.

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O segredo dos girassóis

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Tomei meu café calmamente, degustando os manjares que Tereza havia preparado. Tentei

deixá-los cada vez mais à vontade, contando-lhes histórias engraçadas. Tudo isso sob os olhares

atentos de Maria, é claro! Depois de ter saciado minha fome, olhei para Lorenzo e perguntei-lhe:

_ Poderia arrumar a carruagem para mim, Lorenzo? Eu e Maria iremos novamente à cidade

hoje.

_ Claro, senhorita Anna! Mas vai demorar um pouco, porque ainda não tratamos dos animais.

_ Não há problema algum, não estou com pressa. Enquanto isso, irei ao jardim, dar uma

caminhada e respirar o ar puro desta linda manhã.

_ Posso saber aonde vamos desta vez? - perguntou Maria.

_ Claro que sim. Iremos à casa daquela jovem que visitamos ontem.

Respondi a pergunta de Maria olhando para Lorenzo, que corou de imediato. O rapaz sorveu o

último gole do suco que estava tomando e levantou-se, dizendo:

_ Sendo assim, é para já, senhorita. Apronto a carruagem rapidinho. - disse isso saindo às

pressas, porta afora.

_ Será que eu disse alguma palavra mágica?

_ Por certo que sim. - respondeu Maria.

O resto da criadagem foi para seus postos, cumprir com suas tarefas diárias. Enquanto Maria

passava as ordenanças aos criados e escravos da casa, fui calmamente caminhar pelo jardim. O céu

estava lindo naquela manhã, as flores bailavam ao vento. Continuei, então, caminhando até o portão

de saída, para recordar-me da cena da noite anterior. Quando cheguei bem perto do portão, notei ao

chão um objeto reluzente. Aproximei-me para ver do que se tratava e percebi que era uma medalha.

Baixei e peguei-a. Na medalha, havia uma insígnia de um brasão da nobreza. Porém, eu nunca

havia visto nenhum como aquele. Parecia inglês.

Lorenzo interrompeu-me, avisando que a carruagem já estava pronta. Pedi que avisasse Maria

que já estávamos prontos. Enquanto ela não vinha, fiquei pensando de qual família real seria aquela

insígnia.

Quando Maria chegou, eu já havia entrado na carruagem e esperava por ela. Dentro da

carruagem, mostrei a medalha e perguntei-lhe:

_ Maria, a senhora já havia visto esta insígnia?

_ Confesso que não me é estranha. Mas onde foi que achou isso?

_ Na entrada do portão de saída, do lado de dentro.

Contei-lhe, então, o que vi na noite anterior e o que estava havendo nas outras noites em

relação à minha janela. Maria ficou muito assustada e disse:

_ Então, agora terá que dormir com a porta do seu quarto trancada. Se quiser, até posso dormir

lá em cima com a senhorita.

_ Obrigada, Maria, mas isso não será necessário. Basta que eu tranque a porta. Estou de olhos e

ouvidos atentos, acredite!

Ficamos pensativas e nem percebemos que Lorenzo já havia saído de casa com a carruagem.

Mudei meus pensamentos daquele assunto que nos estava fazendo mal e perguntei à Maria:

_ Não achou Lorenzo muito entusiasmado com a jovem Samara? Não acha que os dois

formariam um belo casal?

_ Menina, em que está pensando?

_ Hum... Lorenzo é um homem bem apanhado, solteiro, jovem, trabalhador... Samara é tão

solitária e está passando por tantos problemas por cuidar da mãe sozinha...Ontem percebi a maneira

como eles se olhavam. Acho que poderiam formar um belo par.

_ A senhorita não para mesmo, não é? Agora está se passando por alcoviteira também? Santo

Deus! Acho que, quando lhe trouxeram de volta da viagem, esqueceram-se de verificar se o espírito

que trouxeram do passado era o mesmo, viu?

_ Ora, Maria, não dizem que voltamos renovadas!?

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_ Sim, minha filha, por certo é o que acontece. Mas a senhorita se renovou demais, nem

consigo acompanhar tantas mudanças. A cada instante parece ser uma pessoa. Confesso que isso

está me assustando, pois não sei mais com quem estou lidando.

_ Sou a mesma pessoa, Maria. Apenas decidir olhar a vida por outro prisma. Não vou aceitar

mais que ninguém mande em mim ou que me obriguem a ser o que eu não quero ser. De agora em

diante, tomarei minhas próprias decisões. Não quero mais viver às escondidas, chorando. Quero e

exijo que as pessoas me respeitem como eu as respeito.

_ Só quero que tome mais cuidado para que nada de mal lhe aconteça. Gosto muito da

senhorita. Concordo que deva mesmo mudar e não aceitar que lhe façam de capacho, como faziam

antes. Mas isso deve ser devagar, porque, mudando tão rápido como a senhorita está, pode causar

um choque nas pessoas que não entenderam essa sua mudança de hábitos. Sabe muito bem o que

essa nossa sociedade, regida por homens, pensa de mulheres que têm certas atitudes. A senhorita

poderá trazer danos a si mesma.

_ Não estou fazendo nada demais. Também pouco me importo com o que as pessoas pensem

de mim. Maria, se eu continuar como eu era, meu destino cumprir-se-á do mesmo modo, certo?

_ Certo.

_ Então, que pelo menos eu ocupe o pouco tempo que ainda tenho nesta vida praticando a

caridade, lutando pelos meus direitos!

_ Agora estou entendendo aonde a menina quer chegar.

No decorrer do caminho, eu e Maria conversamos tanto que nem vimos o tempo passar.

Quando aquietamos a boca, já estávamos na frente da casa de Samara. Ela veio de imediato

receber-nos e abraçou-me ao descer da carruagem. Seus olhos grudaram em Lorenzo e Maria, ao

perceber aquilo, deu-me uma cutucada com o cotovelo. Assinalei com a cabeça, positivamente.

Ao entrar naquela casa, percebi que a paz reinava novamente. Dona Catarina estava de pé e

havia preparado um bolo para o desjejum. Samara havia colocado um vasinho de flores em cima de

uma pequena mesa, no cantinho da casa.

Quando Dona Catarina percebeu a minha presença na casa, veio cumprimentar-me com os

olhos cheios de lágrimas. Dei-lhe um beijo na testa. Para mim, não existia nada mais gratificante do

que ver aquela mulher de pé novamente. Enquanto conversávamos, pude notar que Lorenzo e

Samara estavam em um canto da sala, olhando-se em silêncio. Então, percebi que era a hora certa

para intervir pelos dois. Enquanto Dona Catarina levava as xícaras para a cozinha, acompanhei-a na

desculpa de ajudá-la. Foi aí que contei a ela sobre o interesse de Lorenzo por Samara. Ela disse já

ter reparado. E também disse que fazia muito gosto se eu não me importasse. Resolvemos, então,

juntas, perguntar a Samara se ela gostava de Lorenzo. Fomos respondidas com um largo sorriso da

jovem, o que confirmou as minhas suspeitas de que os dois estavam apaixonados. Foi amor à

primeira vista. Seriam muito felizes, por certo.

Fui até a entrada e conversei seriamente com Lorenzo. No princípio, aquele assunto pegou

Lorenzo de surpresa. Mas, depois, o sorriso largo revelou-nos a verdadeira vontade dele de se unir

à Samara. A conversa foi um tanto longa, pois precisava deixar certas coisas muito claras. Depois

de lhe dizer tudo o que ele precisava ouvir, convidei-o a entrar, deixando-o, assim, a sós com

Samara e a mãe. Eu e Maria fomos para o lado de fora da casa, para que os três ficassem à vontade.

Meia hora depois, todos saíram, felizes e prazerosos lá de dentro. Por fim, Lorenzo disse-me:

_ A senhorita é mesmo um anjo. Logo que vi Samara, apaixonei-me de imediato. Porém, sou

muito tímido e talvez nunca tivesse tido a coragem de me aproximar e dizer sobre meus

sentimentos. Passei a noite de ontem todinha atormentado, tentando imaginar uma maneira de vê-la

novamente. Quando a senhorita disse que voltaria aqui, foi como se o céu da esperança se abrisse

para mim. Tentei-lhe falar sobre meus sentimentos hoje mesmo, na hora em que ela veio me servir

café, mas estava nervoso demais. As palavras fugiram-me, como se estivessem agarradas na minha

garganta.

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Rimos todas ao mesmo tempo nesta hora, porque Lorenzo gaguejou como uma criança, de tão

nervoso que estava. Resolvido aquele problema, voltamos para casa. Mas, no caminho, passamos

na ferralheria, para apanhar minha chave.

A carruagem parou do outro lado da rua. Então, pedi a Lorenzo que fosse buscar minha

encomenda. Não queria me deparar com aquele homem carrancudo novamente e estragar o doce

sabor daquela manhã maravilhosa. Lorenzo assim o fez. Para minha maior surpresa, o ferralheiro

debruçou-se sobre a janela da carruagem, colocando a cabeça para dentro. Parecia estar afoito.

Achei meio grosseiro da parte dele. Mas, antes que pudéssemos falar alguma coisa, ele disse:

_ Perdoem-me, senhoritas, sinto estar invadindo a sua privacidade. Mas jamais poderia deixá-

la sair sem pedir-lhe humildemente minhas desculpas por ontem à tarde. As dores que eu sentia

deixavam-me de muito mau humor. Depois que a senhorita saiu, refleti e resolvi, por curiosidade,

tomar o chá que me receitou. Quero dizer-lhe que, de ontem para hoje, sou um novo homem. Ainda

sinto um pouco de dor, mas não é mais tão intensa como era. Vim até aqui para entregar-lhe

pessoalmente a sua encomenda e dizer que não irei lhe cobrar nada. Vai ficar como um presente em

retribuição pelo que fez por mim.

_ Imagina, o senhor trabalhou, tem o direito a ser remunerado devidamente. Ficarei muito sem

graça se não lhe pagar pelo trabalho.

_ Ficarei ofendido se me fizer esta desfeita.

Olhei-o nos olhos e eram sinceras aquelas desculpas. Mediante aquela súplica, eu disse:

_ Está bem, se o senhor se sente melhor assim, vou aceitar o presente. Mas quero que saiba que

lhe ensinei os chás porque realmente fiquei preocupada com o senhor, mesmo sem o conhecer. Se

um dia o senhor precisar de mim novamente, procure por Dona Catariana e peça à filha dela que

entre em contato comigo. Virei ajudar o senhor onde quer que esteja.

O homem sorriu prazerosamente, todo desconcertado por perceber que Maria o olhava meio de

lado. Ela ainda estava cabreira por causa das coisas que eu havia contado dele para ela. Despediu-se

de nós e se foi.

Às vezes, os problemas fazem-nos parecer alguém que não somos. A dor nas costas que aquele

homem sentia não lhe dava o prazer de sorrir e tornava-o cada dia mais e mais carrancudo. Se

alguém não o tivesse ajudado, chegaria um dia em que até a fé em Deus ele haveria de perder por

pensar que Deus não o estava ouvindo em suas orações. Devemos prestar muita atenção a isso,

porque Deus não só nos ouve, mas também nos envia auxiliares para nos socorrer.

Finalmente, estávamos voltando para casa. Precisava deitar-me e dormir um pouco para

recuperar minhas energias. Maria também precisava descansar. No trajeto de volta, não falamos

muito. Praticamente fui cochilando o tempo inteiro. Quando a carruagem finalmente parou, eu mal

podia abrir os olhos, de tão cansada que estava. Desci da carruagem e pude perceber que havia

outra carruagem na lateral da casa. Maria olhou-me como quem também queria saber quem seria.

Dei o braço à Maria e fomos caminhando até a entrada. Ela me abriu a porta e foi uma grande

surpresa! Meu pai estava de volta. Quando percebeu que eu havia chegado, virou-se para a porta e

disse:

_ Pensei que teria que mandar a milícia atrás da senhorita. Fiquei sabendo que agora não para

mais dentro de casa.

_ É só isso que o senhor tem a dizer-me depois de meses fora de casa? Achei que sentisse

minha falta!

Ele me deu um largo sorriso e veio ao meu encontro, abraçar-me.

_ Lógico que senti sua falta, mas gosto de saber que as mulheres da minha família estão em

casa quando eu retorno. Agora, pode me dizer onde estava?

_ Fui à cidade com Maria, visitar uma amiga.

_ Quem seria essa amiga? Não me lembro de ter amizades.

_ Mas agora tenho. Conheci-a ontem, a caminho do ferreiro.

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_ A caminho do ferreiro? E o que uma senhorita poderia querer com um ferreiro?

_ Fui pedi-lo que fizesse uma chave para aquele bauzinho que mamãe deixou para mim.

_ Ah, sim. E por que tinha que ser um ferreiro?

_ Porque quis que a chave fosse de bronze e fiquei com medo de o chaveiro não fazer bem

feito o serviço.

Ele parecia desconfiado. Por certo, minha madrasta tinha colocado muitas ideias destorcidas na

cabeça dele. Por isso, contei-lhe a verdade. Depois de muito me olhar, ele disse para ir-me aprontar

para o almoço.

_ Pai, essa noite não dormi muito bem. Prefiro jantar com o senhor, se não se importar, é claro.

_ Bom, só pensei que estivesse sentindo minha falta. Mas, pelo que vejo, terei que sentar à

mesa sem a minha família.

_ Ora, meu pai! Nunca fomos uma família tradicional. Não será a primeira vez que o senhor se

sentará sozinho à mesa. Eu mesma já comi sozinha várias vezes em meu quarto por falta de

participantes desta casa à mesa. Desculpe, mas hoje estou mesmo muito cansada e não farei a sua

vontade, pois estaria sendo hipócrita comigo mesma.

Disse isso o lembrando das vezes em que ele e minha madrasta discutiam à mesa, deixando-me

sozinha. Ou das tantas vezes em que almocei e jantei sozinha em meu quarto, porque Maria dizia-

me que ambos haviam saído para algum outro evento.

Subi as escadas, meio cambaleando de tanto sono. Abri a porta do meu quarto e olhei para a

cama, atirando-me sobre ela. Não vi mais nada: do jeito que eu estava, acabei adormecendo.

Despertei com Maria batendo à porta. Esfreguei os olhos e, percebendo o meu estado, dei um

sorriso. Então, disse:

_ Pode entrar, Maria. Já estou acordada.

_ Minha nossa! Nem os sapatos a senhorita tirou para dormir?

_ Não, adormeci do jeito que eu estava. Mas me diga: o que a faz vir aqui me chamar?

_ Seu pai tem um convidado e pediu-me para dizer à senhorita que desça imediatamente.

Parece que é gente importante.

_ Bom, diga ao senhor meu pai que imediatamente será impossível, porque acabei de acordar.

Depois que me lavar, se estiver pronta, desço.

_ Senhorita Anna, sabe que não posso dizer isso ao seu pai. Afinal, ele é meu patrão.

_ Está bem, então. Invente qualquer desculpa e diga que já estou descendo.

Maria saiu muito desorientada, sacudindo negativamente a cabeça.

Eu não tinha a menor intenção de contrariar meu pai - mesmo porque sabia que ele odiava ser

contrariado. Arrumei-me o mais rápido que pude. Coloquei uma saia de veludo azul marinho, com

uma blusa branca de mangas longas, toda rendada. Usei um conjunto de pérolas para dar certa

graça àquele traje. Prendi o cabelo em um coque e puxei alguns fios. Apertei as bochechas para dar

cor às minhas faces. Depois de me visualizar no espelho, dei um largo sorriso e disse a mim mesma

Há certas coisas que não mudam mesmo! Por mais que eu quisesse me libertar de toda aquela

superficialidade, eu ainda era uma mulher. E, como tal, nunca deixaria de ser vaidosa.

Abri a porta e caminhei calmamente pelo corredor. Era fascinante saber que havia dois homens

esperando por mim. Isso me envaidecia ainda mais. Por minha vez, queria ser o centro das atenções

- pelo menos para variar. Ao chegar à sala de estar, encontrei meu pai sentado a uma poltrona em

frente à porta. A condessa estava sentada ao piano, e um jovem ruivo, de muito boa aparência, em

uma cadeira.

Ao entrar, meu pai e o jovem levantaram-se e minha madrasta parou imediatamente de tocar o

piano. Então, começaram as apresentações:

_ Filha, esse é conde Celso D´Louchoa, filho do gran duque Albert D´Louchoa. Ele ficará

conosco para o jantar. Conde, essa é minha filha, Anna. O meu tesouro mais precioso.

_ Senhorita! - levantou-se o conde, fazendo-me reverências.

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Ele continuou com aquela conversa que, para mim, durou uma eternidade:

_ É um prazer conhecê-la. Seu pai falou-me muito bem da senhorita durante uma viagem que

fizemos juntos a Londres. Ele, porém, mentiu para mim sobre uma coisa.

_ É mesmo? E em que meu pai andou mentindo para o senhor conde? - indaguei-lhe curiosa,

olhando para meu pai, pedindo socorro.

_ Sobre sua beleza. Disse-me que a filha era bonita. Mas nunca, em toda minha vida, vi beleza

como a sua.

Senti-me corar e vi que a condessa iria explodir de ódio e inveja. Afinal, ninguém poderia

resplandecer mais do que ela própria e, com certeza, ela não poderia flertar com o conde na

presença de meu pai.

Maria salvou-me daquela conversa, que já estava se tornando constrangedora. Veio avisar-nos

que a mesa estava posta.

Fomos para a sala de jantar. O conde deu-me o braço; minha madrasta acompanhou meu pai.

Sentamo-nos do mesmo lado, meu pai na cabeceira da mesa, a condessa na sua lateral direita.

Quem nos visse diria que éramos uma família tradicional e exemplar.

O conde indagava-me o tempo todo, querendo saber tudo a meu respeito. Apenas o respondia

polidamente, sem demonstrar o menor interesse nele.

Foi-nos servida uma deliciosa e poderosa paella como primeiro prato.

_ Conhece a comida espanhola, senhor conde? – perguntei-lhe, tentando mudar o rumo daquela

conversa, que já estava indo para o campo da intimidade.

_ Não. Mas se for tão saborosa como as belas as mulheres do país, fartar-me-ei.

Corei pela audácia daquele homem. Ele conseguia deixar-me encabulada. Por fim, respondi:

_ Espero que goste, então.

Meu pai começou a lhe fazer perguntas sobre negócios e política - o que foi um alívio para

mim, pois me salvou não só das conversas indiscretas do conde, como também dos olhares

calientes dele.

Como segundo prato, foi servido um cochinillo assado. Para sobremesa, uma mousse de

maracujá. Comemos praticamente em silêncio, o que me foi um alívio. Embora o conde ficasse

fitando-me constantemente, consegui manter minha postura, fingindo não perceber nada.

Ao terminarmos o jantar, fomos para a sala de estar, onde foi-nos servida uma sangria. O

conde, por sua vez, parecia obcecado para estar perto de mim. Para tentar desvencilhar daquele

assédio, que estava se tornando constante, tornei a falar sobre a culinária espanhola.

_ Então, senhor conde, o que o senhor achou da nossa culinária?

Ele sorriu maliciosamente, parecendo ter percebido a minha intenção.

_ Digamos que eu achei... caliente! Como as senhoritas daqui.

_ Desculpe-me, senhor conde, mas não o estou entendendo. Creio que o senhor e eu não

estamos falando o mesmo idioma. Talvez o senhor esteja confundindo um pouco as coisas. É

melhor que encerremos essa conversa por hora.

_ Ofendi a senhorita?

_ Por enquanto, não. Mas antes que nossa conversa ultrapasse os limites da civilidade, prefiro

que encerremos com ela.

_ Não a entendo, senhorita Anna. Se lhe disse alguma coisa ofensiva, peço-lhe minhas sinceras

desculpas. - disse o conde, sinicamente.

Dei-lhe um sorriso e virei-me para meu pai, dizendo:

_ Pai, não estou me sentindo muito bem, peço permissão para me retirar.

_ Estava tão bem agora há pouco! O que foi que houve?

_ Acho que é só uma indisposição. Peço para ir para o meu quarto.

_ Sim, é claro. Pedirei à Maria que lhe acompanhe.

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_ Obrigada, pai! Senhor conde, espero que em outra ocasião nossa conversa seja mais

proveitosa do que a de hoje.

_ Sim, por certo será, senhorita Anna. Em outra ocasião, espero poder corrigir esse mal

entendido.

_ Creio que não houve nenhum mal entendido, senhor conde. Mas vou dizer uma coisa apenas:

uma vez perdida a minha confiança, perdida ela estará para sempre.

Ele abaixou a cabeça, em um cumprimento casual. Dei um beijo de boa noite em meu pai e

passei por minha madrasta, que me olhava de um jeito incógnito. Havia alguma coisa no ar. Mas,

como eu estava muito irritada com o comportamento do conde, não prestei atenção aos detalhes - o

que poderia ser perigoso. Devemos nos lembrar de que Deus está presente constantemente em

nossas vidas, mas o diabo está presente nos detalhes.

Subi as escadas e nem esperei por Maria. Quando cheguei em meu quarto, joguei-me em cima

da cama e comecei a chorar. Na verdade, não sabia se era de raiva ou de decepção. Maria chegou e,

ao ver-me naquele estado, perguntou-me, assustada e com as mãos no rosto:

_ Santo Deus, senhorita Anna! O que houve?

_ Estão me vendendo, Maria. Estou sendo leiloada como uma escrava ou animal premiado. E o

pior disso tudo é que o meu próprio pai é o responsável por essa monstruosidade.

Maria entendeu do que eu estava falando e correu ao meu encontro, dando-me um abraço

fraterno. Ficamos abraçadas por alguns minutos, até que ela falou:

_ Fuja, minha filha! Vá para bem longe daqui! Se quiser, posso enviar uma carta à minha irmã,

pedindo a ela que lhe dê abrigo. Acredite, seu pai nunca lhe encontrará.

Olhei chorosa e comovida para Maria e disse:

_ Não posso, Maria... Se fizer isso, meu pai irá puni-la. Ele pode não ter recursos financeiros,

mas ainda é um homem poderoso. Com isso, pode mandar trucidar aquele povo. Nunca seria

covarde a tal ponto de fugir, Maria, e de principalmente colocar a vida de outras pessoas em risco.

Vou ficar e lutar enquanto puder. Esse é o meu destino, o meu triste destino, lembra-se? A senhora

mesma viu em seu tarô.

Maria abaixou a cabeça e nada mais disse sobre aquele assunto. Levantei, passei as mãos pelo

rosto, tentando me recompor. Olhei para todo o quarto e falei:

_ Que se cumpra o meu destino, Maria! Mas, se eles pensam que serei leiloada, nunca isso

acontecerá comigo! Fique sabendo.

_ E o que pretende fazer então, senhorita Anna? Pois seu pai acabou de pedir para avisá-la que

marcou um jantar formal para apresentar o conde à nossa sociedade.

_ Eu já imaginava isso. Pois que seja dessa forma. Estou mesmo precisando me divertir um

pouco.

_ Divertir-se? Não a entendo... Acabei de pegar a senhorita em desespero por achar que seu pai

a estava leiloando para o senhor conde. E agora fala em divertimento?

_ Então, prepare-se para ouvir o Gran Finale dessa história.

_ Ouh lala, e mais o que poderia me surpreender? A condessa é quem vai organizar o jantar e o

baile. O senhor conde deu-lhe carta branca para gastar o que precisasse. Depois que a senhorita

saiu, ouvi tudo o que diziam. Não que eu os ficasse escutando atrás da porta... Na verdade, foi

quase sem querer. Eu já estava entrando, mas parei para ouvi-los. O que pude entender é que a

condessa terá total liberdade financeira para organizar esse baile de boas vindas ao senhor conde.

Sentei-me na cama e fique pensativa. Como o conde, que mal conhecia minha madrasta,

estava dando esse poder a ela? Isso me pareceu muito íntimo. Alguma coisa não estava se

encaixando. Tive a sensação de que, muito em breve, descobriria o que era. Pedi a Maria que me

fizesse um chá, pois precisava dormir bem. Na manhã seguinte, com as ideias mais claras, tentaria

resolver aquele assunto.

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Maria saiu, deixando-me sozinha com meus pensamentos aflitos. Andei de um lado a outro do

quarto. Fui por várias vezes à janela, mas, naquele momento, nenhuma ideia iluminada passou-me

pela cabeça para fazer-me ter uma real noção de como a minha madrasta poderia ter conseguido tão

rapidamente a confiança do conde. Se ele fosse um de seus amantes, entenderia. Mas, pelo que me

constava, ele nunca havia estado na Espanha. Algo não estava se encaixando, mas não consegui ver

às claras o que era.

Algum tempo depois, Maria veio trazer-me o chá e disse:

_ Seu pai pediu-me para avisar que o conde retornará aqui amanhã para jantar novamente.

Pediu a sua presença à mesa. Senhorita Anna, sugiro que aceite com prudência e não recuse esse

convite.

Maria abaixou a cabeça e prosseguiu:

_ Eles estão esperando que eu leve uma resposta positiva da senhorita.

_ Não se preocupe, Maria. Diga ao senhor meu pai e ao conde que estarei presente amanhã a

esse jantar. Fique tranquila, comportar-me-ei dignamente e não demonstrarei que sei o que está se

passando.

Dei um beijo na testa de Maria e pedi para que ela me deixasse sozinha. Precisava meditar e

tentar dormir um pouco. Minha mente conturbada não conseguiria fluir nenhuma ideia naquela

noite. Foi uma noite muito difícil, custei a pegar no sono. Mesmo tendo trancado a porta, tive a

sensação de que alguém estava me espionando. Sentia-me impotente mediante a situação de alguém

invadindo a minha privacidade. Por fim, acabei adormecendo.

Na manhã seguinte, despertei com Maria batendo à porta. Levantei-me meio sonolenta e abri a

porta para ela, que já me trazia o desjejum. Embora eu quisesse ter ido tomar café na cozinha, achei

melhor não tentar nada contra o gosto de meu pai naquele dia.

Maria, ao ver-me, logo foi dizendo:

_ Bom dia, minha filha. Pelo que vejo, teve uma péssima noite de sono! Mas logo irá recuperar

as forças, pois lhe trouxe um desjejum bem reforçado esta manhã.

_ Obrigada, Maria. Sei que sempre poderei contar com a senhora. - disse isso analisando a

minha fisionomia ao espelho, vendo minhas olheiras.

Maria, no entanto, prosseguiu:

_ Infelizmente, tenho a lhe dizer que sua madrasta e seu pai saíram muito cedo hoje. Os dois

pareciam ter um compromisso inadiável.

_ Que estranho... Ela nunca se levanta cedo! Tem alguma coisa errada acontecendo nesta casa,

Maria, e eu vou descobrir. Por favor, arrume a água para o meu banho. E separe para mim aquele

vestido branco. Irei ao jantar do conde com ele.

_ O que a menina está aprontando? Nunca usou aquele vestido.

_ Sim, eu sei, e essa é a hora. Quero estar elegantemente sedutora hoje, Maria.

Maria saiu sorrindo, parecendo ter entendido o que se passava na minha cabeça. Logo que ela

saiu, comecei a imaginar como eu iria colocar em prática meu comportamento com o conde. Só

tinha um pequeno problema: nunca havia me comportado levianamente antes. Aí, comecei a

lembrar-me dos trejeitos da condessa. Achei engraçado como até mesmo quem tenta nos fazer mal

acaba nos ajudando, mesmo sem saber.

É preciso aprender até com os inimigos e usar suas armas sempre a nosso favor. Muitas vezes,

não percebemos que nossos inimigos são nossos maiores aliados. Mas isso só acontece com tempo

e maturidade. Estamos tão voltados para o lado da vingança que esquecemos que também podemos

virar contra nosso opositor as suas próprias estratégias. Devemos pensar da seguinte forma: eles são

nossas espadas contrárias e, de alguma maneira, estão em nossas vidas para também nos ensinar.

Eu tinha muito que agradecer por perceber isso ainda no começo da minha juventude, pois muitos

demoram anos até alcançar esse estágio alto de percepção.

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Sentei-me na cama para fazer minhas orações e agradeci pelo dia perfeito que teria. Então,

escutei a voz de Heixe.

_ Anna... Escute com atenção o que tenho a lhe falar.

Fechei os olhos para prestar atenção e não me distrair com as coisas ao meu redor. Heixe,

então, prosseguiu:

_ Anna, tenha muito cuidado ao falar com sua madrasta hoje, pois ela tentará provocá-la ao

máximo. É a maneira que ela vê de prejudicá-la moralmente na presença de seu pai. Tenha cuidado

com o conde, Anna. Ele não é o que parece ser.

_ Como assim? Já desconfio dele, mas o que quer dizer com essas palavras?

_ Sei que você tem suas desconfianças, mas esse homem é ainda mais perigoso do que pensa.

É um assassino perigoso e sanguinário, e também um usurpador.

Fiquei muito assustada com aquela revelação. Porém, Heixe não me deu tempo de pensar

muito e continuou:

_ Você deve correr, pois o seu tempo nesta casa está passando. Vá à casa de madame

Hortência amanhã. Lá encontrará uma resposta para poder ajudar a sua amiga Maria. Pergunte a ela

sobre o paradeiro de um escravo chamado Lourival.

Eu não conseguia entender em que madame Hortência poderia me ajudar com relação a Maria.

A voz de Heixe foi se distanciando até que não mais pude ouvi-lo. Mas aquelas palavras ficaram na

minha mente como uma espécie de enigma. Fui à janela tentar colocar a cabeça em ordem, pois a

cada minuto ela parecia ficar mais cheia de problemas. Pude observar o vento. Ele estava mudo e

um mistério pairava no ar. Estava tão nervosa e assustada que podia sentir o pulsar das minhas

veias. Meu coração estava apertado dentro do peito. Quis fugir, desaparecer, mas para onde eu iria?

Maria bateu à porta, despertando-me daquele transe de agonia. Ela havia vindo perguntar se já

poderia pedir que me trouxessem a tina para colocar a água do meu banho. Mas, ao ver-me, logo

percebeu que havia algo de muito errado comigo.

_ Você está bem, senhorita Anna? Precisa de alguma coisa? O que aconteceu? Seu rosto está

empalidecido.

Tive que contar à Maria sobre a mensagem que Heixe me transmitiu. Só omiti a parte em que

ele se referia a ela. Maria abaixou a cabeça e, por fim, disse-me:

_ Eu deveria ter-lhe contado o que via em meu tarô. Talvez eu pudesse ter evitado tantos

transtornos como esse. Não deveria tê-la levado à casa de minha irmã, também.

_ Ora, Maria, não seja tola. Nada que falasse comigo antes teria sentido. Eu era uma jovem

mimada e alienada. Não daria importância a nada que me dissesse antes. E por que está

arrependida por ter me levado à casa de sua irmã?

_ Porque acho que sou culpada.

_ Culpada pelo quê?

_ Por ter antecipado o seu destino.

_ Maria, ninguém antecipa o destino de ninguém. E além do mais, como eu poderia me interar

do meu dom sem a sua ajuda e a de sua irmã? Descobri o meu caminho graças à senhora. Não tem

do que se arrepender.

Maria pareceu não estar muito certa das minhas palavras. Depois de conversarmos mais alguns

instantes, ela desceu para terminar seus afazeres. Fiquei dentro da tina com água quente por quase

uma hora, pois precisava relaxar. Depois que me vesti, fui dar uma volta pelo jardim: queria tomar

o sol da manhã e receber boas energias da natureza. Joseph estava cuidando das flores como

sempre fazia, pacientemente. Acenou-me e retribuí, com um sorriso. Meu coração estava pesado!

Sentei-me em um banco, próximo ao canteiro de girassóis, e clamei a Deus:

_ Deus todo poderoso, se puder, apascente meu coração, cuja aflição é dominante e incessante.

Mostra-me a verdade onde ela estiver, mesmo que escondida dos meus olhos e obscura para meu

espírito. Estende sobre mim a Sua mão e guie-me segundo Sua vontade. Acalme essa angústia que

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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insiste em me rodear como os mares em dias de tormenta. Toque no meu eterno amor com seu

eterno amor e dê-lhe a paz que ele almeja. Dê-lhe a certeza do meu amor por ele e diga-lhe que em

breve nos encontraremos. Apascente aquele coração aflito, para que o meu também encontre essa

harmonia.

Naquele momento, meu coração abrandou-se e senti no vento um perfume masculino muito

discreto. Tive a certeza de que aquele era o cheiro do homem dos meus sonhos. Sorri e meus

pensamentos foram se tornando cada vez mais leves. Era como se Deus tivesse me ouvido e, de

alguma maneira, o monge também. Senti uma lágrima de felicidade rolar em minhas faces.

Agradeci mais uma vez ao céu por ter me ouvido.

Voltei para o meu quarto e, lá estando, percebi que a única maneira de conseguir calar o

pensamento em certos momentos era trabalhando. Olhei tudo ao meu redor e resolvi fazer uma

limpeza em meus guardados. Tirei e encaixei tudo o que não me servia mais. Juntei muitos vestidos

que nunca usei e nunca usaria e os coloquei em caixas. Chamei por Maria e por Joana para que me

ajudassem. Quando chegaram ao meu quarto, deparando-se com tamanha confusão, Maria falou:

_ Santo Deus, o que houve aqui!? Parece que um vento forte passou dentro deste quarto!

Joana ficou em pé na porta, sem saber que rumo tomar. Por minha vez, percebendo que as duas

estavam espantadas, disse:

_ Estou apenas fazendo uma limpeza nos meus guardados. Mas, com certeza, não chamei as

duas para me criticarem ou ficarem em pé, sem nada fazer.

Estava de joelhos, guardando uns livros dentro de uma caixa, e prossegui:

_ Peguem essas caixas aí, perto da porta, e levem tudo lá para cima, junto aos pertences de

minha mãe. São livros velhos que eu havia trazido para cá e não levei de volta. As outras duas

caixas ao lado da cama são para dar a Lorenzo. São vestidos que estou dando para Samara.

_ E esta caixa aqui, senhorita? - perguntou Joana.

_ Essa pode deixar debaixo da minha cama, usarei em breve.

_ E o que há dentro dela?

_ Coisa de meu uso pessoal. - eu estava me referindo aos objetos que comprei para o uso da

magia.

Depois de tudo organizado, desci e fui almoçar com Maria na cozinha. Aproveitando que ainda

estávamos sozinhas, disse-lhe:

_ Acho, Maria, que está na hora de tirar esse luto.

_ Não me sentiria bem, senhorita Anna. Já me habituei a andar com essa cor.

_ Mas deveria pensar com carinho no que lhe estou sugerindo. Afinal, só a senhora ainda

mantém o luto nesta casa.

_ Sim, por certo. Mas é um hábito tão antigo que nem sei se tenho algo menos sóbrio.

_ Tenho certeza de que encontrará algo em seus guardados. A senhora ainda é bastante jovem

para andar por aí parecendo uma viúva. Devo lembrar que o viúvo desta casa há muito tempo já

não usa luto. Pense, Maria: a cor negra, além de ser considerada uma cor fúnebre, é também uma

cor que neutraliza as outras cores. Essa cor pode ter não só neutralizado a sua vida, mas também

pode tê-la impedido de se casar.

Maria ficou pensativa... Percebendo que havia tocado profundamente no seu eu, saí, deixando-

a refletir sobre o assunto. De certa forma, eu tinha acabado de interferir indiretamente na vida dela.

Fazendo isso, sem querer, mudamos a forma de agir e pensar de uma pessoa. Sabia que isso poderia

ser perigoso. Mas, no caso de Maria, foi preciso: queria que ela tivesse outra postura sobre si

mesma. Ela estava muito apegada a mim e, futuramente, sofreria com a minha ausência. Ela

precisava se distanciar. Precisava ser feliz, e aquela cor havia se tornado uma espécie de cela em

sua vida. Era como se ela fosse uma lagarta e estivesse precisando de uma mãozinha da natureza

para se tornar uma bela borboleta.

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O segredo dos girassóis

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Novamente em meu quarto, parei para escrever em meu diário. Aproveitei para dar uma

cochilada: queria estar bem disposta para o jantar com o conde. Devo ter dormido muito, pois nem

vi que meu pai e a minha madrasta haviam chegado. Quando despertei, Maria, toda aflita, veio

avisar-me que, se não me apressasse em me arrumar, não daria tempo. O conde chegaria às oito

para jantar.

Em questão de uma hora, eu já estava pronta e descia as escadas para encontrar com meu pai

na sala de jantar. Ele, por sua vez, estava tomando uma sangria. Ao ver-me, disse:

_ Filha, está encantadora. Sabia que não me faria uma desfeita.

_ E por que eu lhe faria uma desfeita, meu pai? Não estou entendendo.

_ Pela atitude que teve ontem no jantar. Achei que estava dispensando o senhor conde, como

sempre faz com seus pretendentes.

Dei um sorriso, pois havia acabado de descobrir que estava certa. Depois disse, por fim:

_ Então o senhor conde é meu pretende, meu pai? Não me lembro de o senhor ou quem quer

que seja ter vindo a mim e me consultado se quero ou não me casar.

_ Ora, Anna, já está com quase vinte anos. Daqui a pouco não haverá mais pedidos de

casamento para a senhorita. Quer ficar uma solteirona como Maria? Não estarei aqui para sustentá-

la para sempre. Diga-me, afinal, o que quer da vida, menina?

Quando eu já estava pronta para responder, a condessa interrompeu-nos, dizendo:

_ Boa noite, marido! Ao entrar, pude ouvir o que falava com sua filha. Creio que ela quer ser

irmã de caridade.

_ Boa noite, condessa! Mas por que a senhora acha isso de minha filha?

_ Porque fiquei sabendo hoje que a sua querida filhinha andou fazendo caridade.

_ É mesmo, Anna?! E que tipo de caridade? Para quem?

_ Essa estúpida, meu querido esposo, andou dando todos os vestidos caríssimos dela para a

criadagem. Agora, além de louca e caridosa, quer andar nua também.

_ E por que fez isso, Anna?

_ Se a senhora condessa deixar- me responder, poderei retratar-me.

A megera olhou-me de cima abaixou, fazendo cara de antipatia.

_ Meu pai, em primeiro lugar, não dei todos meus vestidos para a criadagem. Dei apenas

alguns que já não usava mais e outros que nunca usaria, pois foi escolhido pela senhora condessa -

que, por sinal, tem um péssimo gosto em se trajar. Dei, também, alguns sapatos velhos, entre outras

coisas que não me serviam mais. Fiz uma limpeza em meus guardados, já estava sem espaço para

tantas tralhas velhas e sem utilidades. Ressalto: não dei para a criadagem, dei a uma amiga.

_ Uma indigente, pelo que me consta. - retrucou a condessa.

_ Não sabia que ser pobre faz de uma pessoa indigente. Saiba que ela está noiva de nosso

cavalariço, Lorenzo.

_ Nossa, que partido! Quem sabe, marido, sua filha também queira se juntar à ralé? Vai ver

está enamorada do cocheiro. Não me faltava mais nada agora, ter que conviver com esse tipo de

gentinha dentro de minha casa. Além de ter que ouvir comentários sobre criar a filha solteirona de

um homem viúvo, agora também ter que ser o alvo de comentários de que estamos tão pobres que,

agora, andamos até com concubina do cavalariço! Olhe, marido, não posso aceitar isso de forma

alguma. Não posso permitir que meu nome seja enlameado de tal forma perante a sociedade.

Sinceramente, acho uma perda de tempo querer incluir sua filha no meio da sociedade. Já lhe havia

sugerido: deveria trancá-la em um convento. Essa moça é cheia de espíritos imundos, e eles fazem

dela o que bem querem. Ela é como a mãe dela, e o senhor meu marido sempre soube disso.

Tive que me controlar ao máximo para não estrangulá-la com minhas próprias mãos. Mas

pensei no que Heixe havia me pedido e avisado. Respirei fundo e disse:

_ Fale o que quiser falar de mim, mas não fale mal da minha mãe, sua bruxa! A intrusa nesta

casa é a senhora. Só não vou tolerar mais insultos de sua parte, e só não abro minha boca agora para

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O segredo dos girassóis

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contar a meu pai sobre quem é a senhora verdadeiramente, porque não quero que ele se aborreça. E

muito menos tenho a intenção de estragar o jantar dele. Pense bem, senhora condessa, se eu abrir

minha boca é a senhora quem terá que dar certas explicações por aqui. Como, por exemplo, como

a senhora conseguiu que o senhor conde lhe desse carta branca para organizar o baile de

apresentação dele, sendo que mal se conhecem?

Meu pai interrompeu aquela discussão e falou, num tom rouco e nervoso:

_ Pare as duas com essa discussão! Não quero que o conde chegue e pegue-as rolando pelo

chão como duas loucas. Sua madrasta está certa, Anna: não fica bem que seja vista por aí na

companhia de uma plebeia. Seja essa moça quem for, não quero saber que está andando com ela.

Não tem estirpe! Não faz parte da nossa sociedade. O que está acontecendo com você, minha filha?

Era tão sensata! Agora mal cheguei e já percebo mudanças adversas em seu comportamento. Não

me faça tomar nenhuma atitude drástica a seu respeito. Acho muito bonito que queira fazer

caridade - isso é até bom para a nossa reputação. Mas não precisa fazer parte da ralé. Realmente,

está mesmo se parecendo como sua mãe: ela não tinha medidas, estava sempre se misturando com

esse tipo de gente. Até que... - ele se calou, parecia engasgado.

_ Até que o quê, pai? O que o senhor ia me dizer?

_ Outra hora, Anna, falaremos sobre esse assunto. Agora não quero mais chatear-me com esse

tipo de conversa.

Maria entrou, avisando-nos que o senhor conde havia chegado. Meu pai foi recebê-lo. Afastei-

me da minha madrasta para não ser mais provocada por ela. Aquela conversa ficaria pendente, por

certo, porque eu não deixaria que meu pai esquecesse. Tinha algo estranho em relação à história da

morte de minha mãe. Agora, era uma questão de honra descobrir. Maria, por certo, saberia

responder-me. Interrogá-la-ia na manhã seguinte, a caminho da casa de madame Hortência.

Meu pai chegou à porta da sala de estar na companhia do conde, que me deu um sorriso

enigmático. Em seguida, veio beijar-me a mão. Em outra ocasião, eu teria puxado-a. Mas, naquele

momento, tive que fingir certo prazer. Ele levantou a cabeça e fez-me um elogio:

_ Está linda, senhorita Anna. Não me cansarei de dizer isso.

_ O senhor é muito gentil, conde. Confesso que está muito elegante também. Teremos uma

noite muito agradável. Espero que possamos tirar a impressão ruim causada por ambos.

Olhou-me admirado e falou:

_ Tenho certeza de que teremos todo o tempo do mundo para que mude a má impressão que

posso lhe ter causado. Quanto à senhorita, acredite: só me causa boas impressões.

Olhou-me parecendo desnudar-me, o que me causou ainda mais repulsa por ele. Foi muito

difícil controlar-me a noite toda, esquivando-me das investidas do conde. Estava me sentindo

péssima por ter que manter uma personalidade que não era minha. Era repulsivo ter que fingir

daquela forma. Mas, se eu quisesse descobrir o que estava acontecendo, tinha que manter a

aparência.

O conde mal dirigia a palavra à condessa, mas ela não parecia irritada - o que era intrigante,

pois sempre quis ser o centro de todas as atenções. Após o jantar, fui com o conde até a varanda,

onde ele me disse:

_ Anna, creio já ter notado minha afeição pela senhorita.

_ Sim, senhor conde. Creio que sim.

_ Quero pedir-lhe que me dê a honra de dançar a primeira valsa comigo no baile.

Antes que eu pudesse responder alguma coisa, ele prosseguiu:

_ Saiba que não aceito um não como resposta. Então, o que me diz, senhorita Anna?

_ Digo que o senhor é um homem muito persuasivo, conde. Mesmo que eu lhe disser um sim

contra meu gosto, mesmo assim ficará feliz. Então, mediante a esse tão gentil convite, aceito.

Ele sorriu satisfatoriamente. Parecia ter ganhado mais um jogo. No restante daquela noite, o

conde ficou na sala, jogando com meu pai; a condessa retirou- se aos seus aposentos e, em seguida,

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fiz o mesmo. Passei metade da noite imaginando o que o meu pai quis dizer em relação à minha

mãe.

Na manhã seguinte, não deixei que Maria viesse ao meu quarto, como de costume. Acordei

muito mais cedo do que o resto da criadagem. Minha mente precisava de distração. Então, ocupei

meu corpo com algo útil. Desci, fui para a cozinha e preparei o café para todos. Enquanto aparecia

imaginação em minha cabeça, ia criando as guloseimas. Maria escutou o barulho na cozinha e

levantou-se para ver o que era. Ao perceber a minha presença, disse:

_ Senhorita Anna, pare imediatamente o que está fazendo ou seremos todos punidos por causa

dessa sua atitude.

_ Não posso, Maria. Preciso fazer alguma coisa para não deixar minha mente torturar-me com

tantos pensamentos.

Maria, percebendo que eu estava fora de mim, abraçou-me, tentando fazer-me parar - eu estava

batendo uma massa de bolo compulsivamente. Então, ainda me abraçando, ela perguntou:

_ O que está realmente acontecendo, minha criança?

Aquelas palavras foram motivos para que eu desabasse em choro profundo. Então, entre

soluços, respondi:

_ Como realmente a minha mãe faleceu? Precisa contar-me isso, Maria. Ontem, pouco antes do

jantar, a condessa insinuou que eu iria terminar louca como a minha mãe. Meu pai quase falou

alguma coisa. Mas, como sempre, a conversa ficou perdida no ar. Precisa dizer-me a verdade.

_ Não sei muito, filha. O que sei é que sua mãe ficava a maior parte do tempo escrevendo

naquele diário que está lá no quarto dela. Com o passar dos tempos, seu pai começou a se distanciar

dela dia após dia. Sua mãe cobrava muito as ausências dele, e ele passou a dizer que sua mãe

estava muito doente. Quando ela engravidou da senhorita, a história complicou-se, pois seu pai não

nos permitia cuidar de Elizabeth. Somente ele e o doutor entravam no quarto. Às vezes,

escutávamos os gritos e pedidos de socorro dela, mas nunca nos foi permitido tomar alguma

providência.

Aquela revelação foi um golpe no meu coração. Então, disse:

_ Maria, a senhora tem que me dar a chaves do quarto de minha mãe. Não pode me negar isso.

_ Filha, se eu fizer isso, serei punida. Ninguém entra naquele quarto há anos, a não ser para

limpá-lo. Se descobrirem que lhe dei as chaves, expulsar-me-ão desta casa.

_ Não vai lhe acontecer absolutamente nada, Maria, eu prometo. Mas preciso entrar naquele

quarto.

Maria, percebendo que não conseguiria convencer-me do contrário, disse:

_ Está bem, só lhe peço que espere um dia em que os senhores não estejam em casa.

_ Obrigada, Maria!

Beijei-lhe as mãos e continuei:

_ Já que a senhora está de pé, então venha: sente-se, vamos tomar o desjejum juntas.

_ Serei a primeira a ter que experimentar sua tentativa de envenenamento?

_ Lógico que não! Esqueceu-se de que fui criada no meio das cozinheiras e aprendi tudo?

Por fim, Maria aprovou meus quitutes. Depois de ajudá-la a arrumar a bagunça que eu havia

feito, subi para o meu quarto, para me limpar. Estava parecendo um boneco de neve, de tanta

farinha que tinha no meu corpo. Comuniquei a ela que sairíamos, pois queria ir à casa de madame

Hortência. Ela fez uma caretinha de desaprovação, mas sabia que seria impossível segurar-me

dentro de casa.

Esperei Maria subir para lhe avisar que meu pai já sabia que sairíamos. Não queria que a

condessa arranjasse algum contra tempo. Já no hall de entrada, encontrei meu pai, que me indagou:

_ Posso saber por que quer ir tão cedo à casa de madame Hortência?

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_ Ora, meu pai. Não foi o senhor quem me disse que eu deveria me comportar como uma moça

da sociedade? Então, estou indo à casa de madame Hortência para pedir-lhe que faça um vestido à

altura do baile do conde. Não quer que eu pareça com a filha de uma criada, quer?

_ Se é assim, então vá! Quero que fique radiante.

_ Ficarei, meu pai. Não o decepcionarei. A propósito, estou tirando o luto de Maria. Espero

que o senhor aprove. Não fica bem que ela receba aos convivas com a mesma roupa que usa há

séculos.

_ Se acha que isso pode ajudar em alguma coisa e lhe faz feliz, então, fique à vontade.

Saí e encontrei-me com Maria na porta da carruagem. Contei tudo o que o meu pai me

perguntou. Ela concordou que eu tivesse lhe dito o que faria na cidade. Assim, não daríamos

margem à condessa.

Chegamos, por fim, em frente à casa cor de rosa de madame Hortência. Lorenzo foi

apressadamente ajudar-nos a descer. Em seguida, pediu-me autorização para ir ver a noiva.

Logicamente, consenti.

O lacaio de madame Hortência veio às pressas ajudar-nos. Era um rapaz de estatura mediana,

mas muito bem encorpado, apesar da pouca idade que aparentava. Ao entramos, madame Hortência

recebeu-nos de braços abertos e perguntou:

_ Oh! Minha querida, que prazer e surpresa tê-la aqui! Em que posso lhe servir hoje?

_ Meu pai dará uma festa em nossa casa para apresentar o senhor conde Celso D’Louchoa à

nossa sociedade. Portanto, viemos aqui para que a senhora me faça um vestido lindo para o baile do

conde. Quero, também, que me veja alguns modelos para Maria escolher. Ela está tirando o luto.

Mas, por favor, madame: nada extravagante.

_ Oh! Minha querida, pode deixar: vou caprichar no seu modelito. Será algo muito especial. E

quanto à senhora Maria, santo deus! Já estava mais que na hora de tirar aquele luto horrível!

Chamou todas as suas costureiras e, de imediato, foram tiradas as medidas de Maria. Enquanto

isso, madame Hortência ia tagarelando sem parar a respeito da festa.

_ Espero que o seu pai me convide, pois sentirei insultada caso ele não o faça. Imagine, eu,

uma costureira renomada, que fiz vestidos até para a corte francesa, ser deixada de lado em

tamanho evento! E quando será o grande baile?

_ Daqui a duas semanas.

_ Oh, sim! Isso é tempo suficiente para terminar os modelitos a tempo.

Enquanto Maria escolhia os modelos a seu agrado, chamei Madame Hortência à parte e disse,

quase em seu ouvido:

_ Madame Hortência, quero perguntar-lhe uma coisinha. Mas tem que prometer-me que

manterá em segredo.

A mulher, que adorava um fuxico, arregalou os olhos, fazendo um sinal positivo com a cabeça.

Quase num sussurro, indagou-me:

_ Oh, é claro! Do que se trata? Saiba que sou um túmulo: o que me contar, guardo comigo a

sete chaves.

Percebendo que madame Hortência estava achando que se tratava de um mexerico, respondi:

_ Na verdade, não quero lhe contar coisa alguma. Quero, sim, que a senhora me responda uma

coisa.

_ Claro, querida. O que quiser saber, pode me perguntar. Sei de quase tudo o que acontece

nesta cidade. Não que eu seja uma mexeriqueira, mas é que muitas coisas chegam aos meus

ouvidos.

_ Sei, e jamais pensaria que a senhora é uma mexeriqueira. Mas o que preciso saber é o

seguinte: a senhora, por acaso, tem ou teve um escravo de nome Lourival?

_ Oh! Mas por que a senhorita estaria interessada naquele negro? Acaso tem a intenção de

comprá-lo? Não sabe como me arrependo de tê-lo comprado do vigário. Aquele insubordinado e

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insolente só me deu despesas. Vendi-o há muito tempo para Senhor Dominique. Soube que morreu

no tronco por causa de suas insubordinações. Imagine, tentou fugir para o quilombo várias vezes e

foi pego pelo capitão do mato. Apanhou até a morte - graças a Deus, ou todos os escravos do

condado pensariam em fazer o mesmo. Ele era quase um Deus para toda aquela negrada suja.

Ela me dava náuseas pela maneira como falava, assim, de seres humanos, criaturas perfeitas e

filhos do mesmo criador. Por certo, o pobre homem estava em desespero e cansado de ser torturado

quando resolveu fugir. Infelizmente, tinha que conviver com pessoas preconceituosas. Aquela

mulher era uma pessoa digna de pena: por ser um espírito muito atrasado, precisaria muito de

minhas orações. Por certo, em um futuro próximo, ela voltaria como escrava ou empregada de uma

pessoa de cor, que a faria pagar por seus delitos. Ela não sabia, mas ela mesma escolheria esse

destino para aprender e evoluir.

Coloquei as mãos sobre as mãos dela e fiz uma oração silenciosa, fazendo-a esquecer tudo o

que havíamos conversado. Sei que não era correto usar de meus dons para apagar a memória de

uma pessoa. Mas, no caso de madame Hortência, foi necessário.

Fui interrompida pelo lacaio, que veio avisá-la da chegada de mais uma cliente. Ele ficou me

olhando, meio assustado. Disse-lhe que estávamos fazendo uma oração. Madame Hortência ficou

meio aérea e perguntou-me:

_ Do que mesmo estávamos falando, minha querida?

_ Do vestido que a senhora irá fazer para mim. Lembre-se de que terá que ser exclusivo.

Tinha a certeza de que, daquele dia em diante, aquela mulher passaria a olhar para as pessoas

de cor de uma nova maneira. Infelizmente, tive que usar meus poderes com um ser tão ignorante.

Tomei fôlego antes de sairmos da pequena salinha onde estávamos. Madame Hortência saiu na

minha frente. Foi quando percebi que o jovem lacaio apalpara seu enorme glúteo. Havia muitas

intimidades entre aquela repulsiva senhora e aquele jovem empregado. Continuaram com aquela

intimidade até que os perdi de vista.

Cheguei a uma conclusão: por certo, o jovem negro Lourival - por dignidade ou por amor à

Maria - não se sucumbira às vontades de madame Hortência. Esse foi o erro do pobre rapaz. Sabia

que eram épocas difíceis para todos e que, muitas vezes, os maridos viam-se obrigados a viajar,

deixando sozinhas em casa suas jovens e fogosas esposas. Muitas delas se entregavam por pura

satisfação à luxúria - como a condessa. Outras se mantinham falsamente discretas, de romances

com seus escravos. Outras, ainda, arranjavam um consorte - como madame Hortência. Isso, é claro,

não era constante. Também existiam senhoras realmente recatadas e sinceras em seus sentimentos e

fidelidade - o que era uma exceção, pois a maioria dessas esposas era muito mal amada.

Eu não havia vindo neste mundo para julgar ninguém, mas aquela cena de hipocrisia fazia-me

muito mal. Essa era a sociedade que meu pai fazia questão que eu frequentasse.

Bom, o meu maior problema foi como contar à Maria que seu único amor havia sido

assassinado. Despedimo-nos o mais rápido possível de madame Hortência, pois não queria ficar

nem mais um segundo perto daquela sujeira toda. Pedi à Maria que fôssemos à igreja local, pois

precisava falar com o padre Ignácio. Ela, por sua vez, perguntou-me:

_ O que houve? Está com problemas de consciência pesada, logo assim, pela manhã?

Sorri, mas não era essa a minha real vontade. A contra gosto, respondi:

_ Preciso caminhar, respirar e rezar um pouco. Por isso, quero ir até a igreja. Quero sentir o

vento da manhã soprando em meu rosto.

Mas Maria não era tola e logo desconfiou, perguntando:

_ O que foi que aquela mulher lhe fez?

_ A mim, não fez nada. O problema é o que ela faz a ela e aos outros, todos os dias. Sei que

não sou santa e não posso salvar a humanidade, mas fico triste quando vejo um espírito se denegrir

daquele jeito. E o pior é que pessoas assim vão à igreja todos os domingos. Comungam cheias de

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pecado e sentem-se na capacidade de julgar os outros. Tive que gastar meu poder de esquecimento

com aquela criatura vulgar.

_ Então, foi muito sério o que estava falando com ela.

_ Sim, Maria, foi. Quando chegarmos à igreja, depois da conversa que terei com o padre

Ignácio, se a resposta for do meu agrado, prometo que lhe conto tudo. Mas agora preciso encontrar

forças em Deus Pai. Sabe bem que, quando usamos nossos poderes, ficamos fracas.

Apoiei-me em Maria e fomos caminhando abraçadas até a igreja. Ao chegarmos lá, corri os

olhos por toda aquela imensidão, tentando encontrar o padre Ignácio. Foi em vão: só encontrei

silêncio, frio e muito luxo. Mas, de repente, ouvi barulhos de chinelos arrastando pelo chão. Às

vezes, ouvir barulhos em lugares tão vazios dá-nos certo medo. Olhei imediatamente para trás,

achando ser um fantasma. É nas horas mais banais que temos que aprender a enfrentar nossos

temores. Pois, quando enfrentamos as menores coisas, estamos treinando para enfrentar as maiores.

Abri um largo sorriso ao perceber aquela figura amiga e bem materializada. Que alívio, não estava

preparada para lidar com um incumbo - não estando tão fraca.

A mente, em estado débil, cria formas, cores e até barulhos. Não queria e não iria, de forma

alguma, deixar minha mente ficar atrasada e cheia de absurdos. Já sabia que os desencarnados não

poderiam me fazer mal. O mal eram os meus semelhantes encarnados: estes, sim, poderiam me

prejudicar de todas as maneiras. Era incrível perceber como um lugar que pode nos trazer paz

consegue, também, causar-nos tanto pânico. Isso ocorre por causa das duas energias adversas que

se misturam. Muitos vão a lugares santos para rezar e pedir o bem, mas existem também aqueles

que entram nestes lugares com o coração cheio de egoísmo, ambição e até mesmo ódio. Existem

pessoas que pedem a Deus o mal, como já citei antes. Deus lhes concede os desejos do coração, não

importa qual ele seja. Não é a quem pedimos, mas a força com a qual pedimos.

Algumas pessoas têm o pensamento errôneo de que os íncubos ou súcubos não entram em

locais ou solos sagrados. Pois digo que entram, sim. A maioria desses espíritos assombra igrejas e

locais considerados sagrados porque apega-se a esses lugares, ou também porque vão

acompanhando as pessoas que frequentam esses locais. Esse pensamento errôneo chega a ser quase

uma lenda. Por isso, a maioria desses locais é assombrada devido às tantas energias que se

misturam no nosso espaço invisível. No mundo espiritual, existe uma guerra onde o bem combate o

mal, onde os anjos lutam contra os demônios, onde espíritos iluminados tentam doutrinar os

espíritos impuros e rebeldes. Por isso, é necessário não só tentar entender o mundo espiritual, mas

também respeitar o invisível. Essa guerra sempre afetou a humanidade desde a época de Cristo. Por

certo, em um futuro muito próximo, essa guerra invisível será muito mais prejudicial, pois o

homem, em sua evolução científica, afastar-se-á da fé. Com isso, acontecerá a degradação da

humanidade.

Temos que ter uma noção básica de que nem tudo é lógica, nem tudo é explicável e nem tudo é

ciência. Pois, se Deus quisesse que fôssemos sabedores de todas as coisas, o mundo e as pessoas

não precisariam de um Mestre para guiá-los.

Maria havia me deixado sozinha dentro da igreja - o que me foi muito bom, pois consegui

recuperar minhas forças e colocar minhas ideias em dia. Despertei-me daquele quase transe porque

senti alguém me tocar com as mãos. Quando me virei para ver quem era, disse:

_ Padre Ignácio! Que bom vê-lo. Estava mesmo precisando falar com o senhor.

Ele, por sua vez, respondeu em tom de brincadeira:

_ Anda se assustando na casa de Deus, querida? O que foi que houve, minha filha? O que lhe

fizeram os santos desta paróquia?

Gostaria de ter-lhe dito que não eram os santos que me assustavam, mas sim as pessoas. Mas,

por fim, resolvi apenas responder:

_ Preciso de respostas, padre. Somente o senhor poderá me responder.

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_ Calma, filha. Sinto que está muito afoita. Respire um pouco e depois me explique de que tipo

de respostas está precisando.

_ Quero, primeiro, que o senhor me responda: que paradeiro levou um escravo de nome

Lourival? O senhor o conheceu, não?

_ Sim, por certo. Comprei-o da fazenda de seu pai. Mas, a pedido do mesmo, tive que vendê-lo

para madame Hortência. Parecia que esse homem encontrava-se com Maria, sua governanta, às

escondidas.

_ E por que meu pai estaria tão incomodado que Maria se relacionasse com um escravo?

_ Porque seu pai temia que Maria fugisse com ele e abandonasse a senhorita, ainda pequena.

Seu avô pegou Maria ainda menina e ela foi criada para cuidar da casa. Recebeu boa educação, mas

não poderia nunca se casar. Quando sua mãe casou-se com o seu pai, Maria era pouca coisa mais

velha que ela, e passou a ser a governanta da sua casa. Ela só saía de casa com a sua mãe. As duas

eram muito amigas. Como seu pai viajava muito, ao descobrir o envolvimento de Maria com esse

jovem escravo, logo o vendeu. Seu pai não queria perder a companhia de sua mãe. Sua mãe disse

que não se importaria que Maria fugisse para ser feliz, mas seu pai não aceitava. Trancou Maria por

dias em um sótão, até que tivesse conseguido vender o escravo. Então, a pedido de seu pai, comprei

o escravo, que chegou até a mim muito debilitado. Cuidei de suas feridas físicas. Mas, infelizmente,

não pude curar sua alma, pois estava indo demasiadamente para um precipício sem volta. O ódio no

coração daquele homem era muito grande. A mim nunca fez nada - muito pelo contrário, sempre

me tratou com respeito. Então, após alguns meses, Maria descobriu onde Lourival estava e

passaram a se encontrar às escondidas, aqui dentro desta igreja. Seu pai, ao descobrir isso, mandou

que castigassem Maria, colocando-a no tronco, para que servisse de exemplo a todos. Fui obrigado

por seu pai a vendê-lo. A primeira pessoa que o quis foi madame Hortência. Mas ela também se viu

obrigada a vendê-lo para um fazendeiro muito cruel. Dizem que Lourival fugiu e, ao ser capturado

a caminho de um quilombo, morreu com um tiro. Mas não acredito que aquele homem tenha

fugido, pois o amor dele por sua governanta era muito grande. Ele nunca deixaria Maria sozinha.

Os dois haviam feito uma espécie de juramento de nunca um deixar o outro.

_ Meu Deus, padre, isso é muito grave! Eu tinha meu pai em alto preço, mas a cada dia

descubro uma coisa sobre ele que mais me decepciona. Não sei como pude ser tão cega!

_ Não pense assim, filha!

_ E o que o senhor quer que eu pense? Na minha imaginação, meu pai era um herói. Nunca o

vi fazendo nada de mais, nunca soube que ele torturasse os escravos. E agora venho saber que ele

surrou Maria! Sempre pensei que ela estivesse conosco esses anos todos porque havia feito um

juramento à minha mãe de sempre cuidar de mim. E agora o senhor está me contando que ela foi

obrigada a ficar comigo. Santo Deus, padre! Minha dívida com essa mulher é muito maior do que

eu supunha.

_ Sinto ter sido eu a lhe contar tudo isso, senhorita Anna, pois estou vendo que é uma pessoa

de coração puro e de alma inocente. É uma pena que essa pureza será corrompida em breve.

_ Não, padre. Isso não irá acontecer comigo. Agora quero que o senhor me responda outra

pergunta.

_ E qual seria, minha filha?

_ Conte-me exatamente como minha mãe morreu. Sempre me contaram que ela morreu no

parto, dando-me a luz. Mas fiquei sabendo de fatos que demonstram que isso não é a verdadeira

história.

_ Senhorita Anna, essa é uma história muito perigosa de se envolver. Posso pagar por isso caso

seu pai descubra que lhe falei sobre esses assuntos.

_ Por favor, padre, preciso saber. O senhor não pode me negar isso. Passei muitos anos

vivendo na ignorância. Agora, descobrir a verdade é uma questão de honra para mim. O senhor

entende?

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

131

_ Sim, entendo. Mas que fique bem claro que não podem saber que fui eu quem lhe contou

isso!

_ Não se preocupe, padre. Não contarei a ninguém.

_ Não sei muito. Mas o pouco que vou lhe contar é o que sua mãe me contava quando eu tinha

permissão de visitá-la. Pouco antes de Elizabeth ficar doente, ela me contou o seguinte...

_ Minha mãe estava doente? Mas que tipo de doença ela tinha? Pensei que ela tivesse falecido

por uma insuficiência respiratória durante o meu parto.

_ Por favor, minha filha, deixe-me terminar. Elizabeth, segundo o senhor seu pai, estava

sofrendo de perturbações espirituais. Foi quando o seu pai chamou-me para fazer um exorcismo.

Primeiro, tive que me certificar de que era verdade o que seu pai estava alegando.

_ E era, padre?

_ Não. Felizmente, Elizabeth não tinha nenhum indício de estar possuída ou perturbada por um

espírito maligno. Ela me pareceu uma mulher muito sensata e muito ingênua, assim como a

senhorita.

_ E por que meu pai estava acusando minha mãe tão levianamente?

_ Seu pai sempre foi um homem muito ambicioso, senhorita Anna, e também um jogador

compulsivo. Ele havia perdido em um jogo a metade da fortuna da família. Seu pai sempre viajou

muito, e sua mãe ficava sozinha durante meses dento de casa. Seu pai também passou a não desejar

mais sua mãe como mulher. Então, ela desconfiou das atitudes dele. As brigas entre os dois

começaram a deixar sua mãe muito depressiva e angustiada. Moramos em uma cidade pequena e os

boatos a respeito de seu pai cresciam. Chegou aos ouvidos de sua mãe um suposto envolvimento

dele com uma condessa muito rica.

_ Padre, está querendo me dizer que o senhor meu pai e a condessa Del Prat já se conheciam

quando a minha mãe ainda estava viva? - sentei-me no banco da igreja para não cair, pois minhas

pernas tremiam sem parar.

_ Não sei se a sua madrasta e a suposta condessa que comentam são a mesma pessoa. Mas o

fato é que Elizabeth narrou tudo isso em um diário. Ela queria que a senhorita, ao nascer, soubesse

toda a verdade. Ela chegou a ameaçar de acusar seu pai de adultério. Foi, então, que seu pai

começou a levantar a falsa suposição de que ela estava possuída por espíritos imundos. Quando

pude constatar esse fato e provar que era falso, seu pai, então, aliou-se ao doutor e sua mãe foi

declarada como louca. A intenção de seu pai era internar Elizabeth em um manicômio assim que a

senhorita nascesse.

_ Então, foi por isso que ele a manteve trancada em seus aposentos?

_ Sim, nem mesmo Maria podia entrar para vê-la. Somente ele e o doutor tinham essa

permissão. Houve um baile em sua casa e Elizabeth conseguiu, nesse dia, escapar do cárcere.

Dizem que ela se vestiu de negro e foi para o meio de todos, e flagrou seu pai junto a essa condessa

de quem tanto todos falavam.

_ O senhor está me dizendo que o meu pai deu um baile em minha casa com a minha mãe

ainda viva para essa mulher?

_ Foi o que me disseram, filha. Talvez Maria possa lhe esclarecer mais sobre esses fatos.

_ E onde está o diário de minha mãe?

_ Não sei, filha. Talvez ela o tenha escondido. Seu pai também nunca o achou.

Fiquei pensando e, depois, respondi:

_ Acho que eu sei onde possa estar, padre.

_ Filha, prometa-me que terá muito cuidado.

_ Não se preocupe, padre, eu terei. E quanto a esse conde inglês, o que o senhor sabe?

_ Na verdade, quase nada. Até achei que estivesse morto.

_ Como assim?

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

132

_ Parece que houve um assassinato e, se não estou enganado, a história é que ele e o pai

haviam morrido. Mas deve ser apenas um boato.

_ Sim, deve ser um boato.

Fiquei de cabeça baixa, pensando em como agiria ao ver meu pai. Percebendo meu jeito, padre

Ignácio falou:

_ A senhorita está bem?

_ Sim, estou. Preciso ir, Maria está me esperando lá fora. Não posso me demorar mais.

_ Está bem. Espero que a senhorita consiga resolver seus problemas com sabedoria.

_ Vou tentar, padre. Prometo.

Tomei sua benção e saí para encontrar-me com Maria. Achei-a parada, estática, em pé em um

dos degraus da igreja. Deu-me tanta pena saber que aquela mulher havia sofrido tanto! Caminhei

em direção a ela e coloquei as mãos em seu ombro. Ela deu um pulo de susto. Disse-lhe:

_ Fique calma, Maria. Não há do que temer.

_ Estava distraída em minhas lembranças. Então, como foi a conversa com o padre?

_ Instrutiva. E não agora, mas futuramente, falaremos sobre o que eu e o padre Ignácio

conversamos. Agora preciso, ainda, digerir o que ele me contou. Vamos para casa, antes que

comessem a ter ideias erradas sobre a nossa ausência.

Maria parecia não estar muito bem, pois não falou muito no caminho de volta naquele dia.

Chegamos à frente da mansão Del Prat e já não senti mais aquela casa como minha. Pela primeira

vez em minha vida, soube o que queria dizer. Senti nojo de mim mesma. Sim, senti nojo de mim

mesma por pertencer àquela gente. A condessa estava nos esperando à varanda, com um sorriso que

mais parecia deboche. Pedi a Deus para dar-me forças, pois não estava com a menor disposição

para ouvir o que quer que fosse daquela boca imunda. Deus ouviu as minhas preces, porque

passamos por ela, que nada mencionou. Apenas nos olhou com cara feia e cruzou os braços. Maria

baixou a cabeça, mas fingi que não era comigo.

Maria seguiu para seus afazeres e fui até a sala de leitura, onde encontrei meu pai bebendo. Ao

ver-me, ele sorriu, falando:

_ Estava gastando o pouco de dinheiro que ainda me resta?

Percebi que ele não estava sóbrio.

_ Não, meu pai, ainda deixei o bastante para o senhor gastar tudo em jogatinas ou para que sua

amada esposa esbanje com futilidades.

Ele veio cambaleando para o meu lado e desvencilhei-me dele. Por fim, ele disse, apontando o

dedo para o meu rosto.

_ Você está ficando uma fedelha muito insolente, sabia? Posso agora mesmo mandar que... -

ele interrompeu a fala.

_ Diga, meu pai! O que o senhor vai mandar que me façam? Serei trancada em meu quarto

como uma louca, ou irá me amarrar a um tronco e dar-me chicotadas para eu servir de exemplo?

Ele cambaleou e, embora não compreendesse o que eu estava falando, sentiu aquelas palavras

como um peso na consciência. Então, afastou-se de mim e encostou-se na parede, sem saber o que

dizer. Saí da sala, deixando-o com o fantasma de suas lembranças.

Fui para a cozinha atrás de Maria. Deparei-me com ela consolando Tereza, que estava

chorando. Quis saber o que estava acontecendo. Foi quando Maria respondeu-me:

_ O netinho de Tereza está muito doente. Ela pediu autorização à condessa para ir até a casa da

filha, mas ela não deu.

Pensei em uma solução para aquele problema e disse:

_ Pode ir, Tereza. Responsabilizo-me. Depois falo com o meu pai a respeito.

_ Mas, senhorita, a condessa poderá puni-la também. E quem fará o jantar?

_ Joana, ora! Maria e eu tentaremos despistar a condessa. Saia pelos fundos, para que ninguém

a veja.

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O segredo dos girassóis

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Ela beijou as minhas mãos em agradecimento e eu disse:

_ Vá logo, mulher! Está perdendo o seu tempo comigo!

Tereza saiu de costas, agradecendo. Maria perguntou-me:

_ O que falarei à condessa, caso ela dê pela falta de Tereza?

_ Não se preocupe. Ela está ocupadíssima com os preparativos do baile para o conde.

Eu e Maria comemos uma prenda na cozinha. Não estava com muita fome. Acabei deixando

metade do que estava comendo de lado. Subi para meu quarto e fui meditar. Aquele havia sido um

dia bastante difícil. Quase deixei que energias inferiores me perturbassem a alma. Senti-me fraca e

incapaz por não estar conseguindo falar com Maria.

Temos que ter muito cuidado com a tristeza. Ela nos deixa vulnerável. É por isso que uma

bruxa não pode se apaixonar: a tristeza e a paixão andam de mãos dadas e, por nos fazer chorar,

enfraquecemos e as lágrimas não nos deixam ver com clareza que caminho tomar.

Abri a janela e olhei para o céu: a deusa Lua estava magnífica aquela noite; sua luz iluminou

tudo ao redor. Recorri a ela para recarregar minhas forças. Depois de fazer minhas orações, fui para

a cama e adormeci tranquilamente.

Horas depois, um beijo na testa acordou-me suavemente. Abri os olhos com Maria dando-me

um bom dia.

_ Bom dia, filha! Dormiu bem? Desculpe-me tê-la acordado assim, tão cedo, mas creio que

precisamos conversar.

Depois de dar um bocejo, espreguicei-me na cama e disse:

_ Bom dia, Maria, que horas são? Caiu da cama, foi?

_ Ainda não amanheceu o dia, mas tive que vir até aqui. Preciso saber o que a senhorita tanto

falava com o padre Ignácio. Nem venha me dizer que não é nada demais, porque sei que era sobre

mim.

Sabia que Maria sempre sentia quando alguma coisa estava errada. A minha sombra mental

precisava saber a verdade e, como percebi que não daria mais para remediar esse fato, levantei-me

da cama, fui até o meio do quarto, olhei-a nos olhos e falei:

_ Sim, por certo está com razão: era mesmo sobre a senhora que eu e padre Ignácio falávamos.

_ Sobre o que a senhorita conversou com aquele padre anarquista?

_ Ele não é nenhum anarquista, Maria. Muito pelo contrário, ele é um homem muito sensato e

honesto. Não seja como essas pessoas que o julgam só porque ele não é velho e antiquado como o

padre Alencar. Por favor, Maria, não faça um julgamento precipitado antes de ouvir tudo o que

tenho a lhe dizer. Sei muito bem porque a senhora tem esse conceito dele. Mas quero que saiba que

ele não foi culpado por nada que aconteceu a Lourival. Padre Ignácio também foi obrigado a

vendê-lo para não sofrer punições.

Maria abaixou a cabeça pesarosamente e disse:

_ Sei, senhorita Anna. Mas também sei que, como membro da Igreja, ele poderia ter interferido

e pedido para que Lourival não fosse vendido à madame Hortência. Aquela mulher horrível

torturava Lourival todos os dias. Ele mesmo me contou que ela o queria intimamente. Mas Lourival

nunca cederia aos caprichos daquela porca gorda.

As palavras de Maria confirmaram a minha desconfiança. Ela prosseguiu, contando-me:

_ Éramos muito jovens e cheios de planos. Nossos corações eram puros e achávamos que

poderíamos vencer qualquer barreira. Mas não foi bem assim: o preconceito não permitiu que

ficássemos juntos. Depois que Lourival foi vendido para um fazendeiro de outra região, nunca

mais o vi e também nunca mais ouvi falar nada sobre ele. Ele deve ter encontrado outro amor. Caso

contrário, teria dado um jeito de voltar e buscar-me, levar-me para onde quer que fosse.

Naquele momento, tive certeza de que Maria nunca soube o que acontecera com o seu amor.

Não poderia mais deixá-la naquela ignorância. Então, falei:

_ Maria, Lourival nunca teve outro amor além da senhora, acredite.

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_ Não se preocupe em me falar a verdade, senhorita Anna. Agora sou mais conformada com

essa história. Não é como antes, que eu ficava muito triste. Agora sou uma mulher velha e não

tenho mais nenhuma perspectiva de vida para mim.

_ A senhora está muito enganada. Sei que ainda será muito feliz ao lado de alguém que muito

lhe quer. E quanto a Lourival, infelizmente ele morreu, Maria.

A mulher caiu sentada sobre a minha cama, parecendo perplexa. Portanto, prossegui:

_ Sim, Maria. É por isso que ele nunca voltou para a senhora, como lhe havia prometido.

Dizem que ele tentou escapar do tal fazendeiro e, durante a perseguição, foi baleado e morreu.

_ Lourival nunca fugiria. Não era do feitio dele ser um covarde. - disse Maria, com plena

certeza nas palavras e no coração.

_ É exatamente isso que o padre Ignácio também acha. Maria, acredito que tenha o dedo do

senhor meu pai nessa história. E nem queira defendê-lo, pois também já fiquei sabendo do que ele

mandou fazer com a senhora.

Maria caiu em prantos e disse:

_ Nunca lhe contei toda a verdade porque não queria que a senhorita crescesse com ódio em

seu coração. Desculpe-me, senhorita Anna, por esse meu momento de fraqueza.

_ Não tem de que se envergonhar ou pedir desculpas. Sou eu quem deveria pedir-lhe

humildemente minhas desculpas, pois indiretamente fui a culpada pela senhora ter sido privada de

viver a sua história de amor.

_ Não diga sandices, criança tola. Tudo o que fiz pela senhorita foi por amor. Se não tivesse

tido a senhorita em meus braços, ali, tão pequenina e precisada de carinho, por certo teria cometido

suicídio, pois me foi muito duro viver sem Lourival.

Abracei Maria com carinho e deixei-a desabafar toda aquela dor em lágrimas. Depois de muito

conversarmos, pedi-lhe que voltasse para seus aposentos, pois não seria bom que a vissem sair

àquelas horas do meu quarto, ainda de roupa íntima. Por certo, achariam que estaríamos planejando

algo. Quando ela estava saindo, virou-se para mim e falou:

_ Fiquei sabendo que, mais tarde, o patrão e a condessa sairão para darem uma volta. Estou

pensando em levá-la aos aposentos de sua mãe.

Dei um largo sorriso de cumplicidade e disse:

_ Perfeito! Estarei esperando pela senhora, então.

Fiquei muito triste por Maria, mas foi melhor que ela soubesse que seu amor estava morto a

viver acreditando que ele a abandonou. Naquela madrugada, até que o dia amanhecesse, não

conseguiria mais dormir. Então, fiquei lendo meus livros e fazendo minhas anotações até que o Sol

firmasse no céu. Depois, arrumei-me calmamente e desci, encontrando meu pai já na soleira da

porta. Antes que ele saísse, falei:

_ Pai, quero ter uma conversa franca com o senhor.

Ele, que já estava saindo, virou-se e disse-me:

_ Então será quando eu voltar, pois estou saindo coma sua madrasta e não quero deixá-la

esperando muito tempo na carruagem.

_ Não, pai! Quero falar com o senhor agora. Não quero mais adiar nossa conversa. Não se

preocupe, serei breve.

_ Então, que seja. O que há de tão importante que não possa esperar que eu chegue da cidade?

_ Sei que o senhor está arrumando um casamento de conveniências para mim. Não acho justo

que queira me vender para saldar suas dívidas com o conde.

_ Acho que você já está passando dos limites, Anna! Quero que me respeite, ainda sou seu pai.

Todos nesta casa temos deveres e obrigações. É justo que tenha chegado a sua hora de dar a sua

contribuição.

_ Sei disso, pai. Só estou tentando lhe mostrar que, caso o senhor não tenha percebido, de tola

não faço nem o papel.

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_ Tudo bem, Anna. Vou ser-lhe mais direto, então: o conde procurava uma esposa e eu lhe

devo muito dinheiro. Isso sem contar que metade das dívidas da família ele também pagou. Sendo

assim, não vejo nada mais justo que aceitar o seu casamento com ele. Além do mais, de que está

reclamando? Será uma mulher rica e terá de tudo. E ainda receberá um título de nobreza. Tem ideia

de quantas jovens de sua idade gostariam de estar no seu lugar? E essa união será muito útil para os

negócios e para a família. Anna, o conde não é nenhum velhote. É jovem e de boa aparência, e é

muito vigoroso! Logo terão filhos e, além do mais, você acabará se acostumando com ele. Todo

casamento é baseado em negócios. Não achou que eu lhe criei até agora sem, no mínimo, tirar

proveito disso. Já me bastou sua mãe não ter me dado um herdeiro homem. Agora chega com essa

conversa. Fico satisfeito que esteja ciente dos meus negócios e, querendo ou não, você faz parte

deles. Agora saia da minha frente, que preciso passar.

Poderia ter-me calado naquele momento e ter aceitado que o meu destino fosse ao lado daquele

crápula, mas tinha outros planos para mim. Então, mesmo vendo o meu pai saindo porta afora,

disse:

_ Saiba que eu não vou ceder tão fácil como o senhor pensa, meu pai. Pode me casar com este

homem, mas juro que fujo no dia do casamento e o senhor não me verá nunca mais. O senhor não

vai me tratar como trata as suas vacas ou os seus escravos. Tenho sentimento e sou uma pessoa

livre! Vou lutar por meus direitos enquanto viver.

_ Meu Deus, Anna, por que você tem que fazer as coisas parecerem tão difíceis? Você está

complicando uma coisa que é demasiadamente fácil para uma mulher. Só vou lhe dizer uma coisa,

mocinha: tente passar por cima das minhas ordens e irá descobrir quem sou realmente.

_ Pai, estou falando de sentimentos, dos meus sentimentos. O senhor está me tratando

levianamente como se eu fosse uma mulher que trabalha em uma taberna. Nunca em minha vida

conheci um homem, e agora o senhor quer me vender? Sabe, pai, outro dia mesmo eu fiquei

pensando no quanto: estava enganada com o senhor. Pensei que o senhor era muito diferente de sua

esposa - ambiciosa e arrogante, que o senhor teima em cativar por mero capricho. Mas eu estava

enganada, não é?

_ Você está passando dos limites, mocinha! É melhor que se cale ou não me responsabilizo

pelos meus atos.

_ Não, pai. Estou expondo minha indignação! Não sou objeto, pai, sou sua filha! Aposto minha

vida como a senhora sua esposa está envolvida nesse leilão humano. O senhor não passa de uma

marionete nas mãos dela.

Ele me esbofeteou com toda a força no rosto. Agarrando-me pelos ombros, jogou-me no chão.

Revivi minha vida passada. Sabia que tinha passado das medidas, mas não poderia abaixar minha

cabeça para um ato tão abominável como aquele. Não era como as outras mulheres. Não poderia

submeter-me a um homem por dinheiro ou para pagar as dívidas do meu pai.

Depois, parecendo ainda não satisfeito, ele me levantou do chão por um dos braços e disse:

_ Queria fazer isso de uma maneira mais amena e menos dolorosa para você. Ambos

poderíamos ter entrado em um consenso ou em um acordo vantajoso, o que poderia ter sido muito

bom para ambas as partes. Mas agora estou lhe dizendo afirmativamente: fará o que eu quiser e

quando a mandar, ou lhe enviarei pessoalmente para um convento, de onde nunca mais verá a luz

do dia, pois me encarregarei de pedir-lhes que a enclausurem. Veja se arruma um traje que condiga

com a nobreza do conde. Pois, ultimamente, tem se vestido como uma camponesa.

Em seguida saiu, batendo tão fortemente a porta que estremeceu todo o ambiente. Pude ainda

ouvir seus berros, gritando por Lorenzo. Fiquei ali, parada no meio do hall, com os olhos fechados,

tentando esquecer aquelas tenebrosas palavras. Mas, em momento algum, chorei. Não seria fraca,

não daria o meu braço a torcer. Guerreiros não choram, dizia a voz em minha cabeça. Isso me fez

lembrar de minhas antepassadas, que nunca deixaram o medo ou o fracasso cair de seus olhos em

forma de lágrimas. Eu não seria diferente: precisava lutar e, para isso, precisava estar muito lúcida.

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Sabia que, se aceitasse me casar com o conde, tornar-me-ia uma marionete em suas mãos. Pois,

quando ele se cansasse de mim, descartar-me-ia, colocando-me de lado - como a maioria das

senhoras casadas, que sempre eram trocadas por concubinas ou cortesãs. Não queria passar o resto

da minha vida amargurada, fazendo tricô e frequentando a igreja diariamente por não ter nenhum

outro lugar para ir. Não, meu pai não faria isso comigo.

Maria estava na cozinha e veio correndo, querendo saber o que havia acontecido comigo.

_Você está bem, Anna? Ouvi seu pai gritando com Lorenzo, como um louco que acabara de

fugir de um manicômio em chamas.

_ Sim, estou muito bem, Maria.

Contei-lhe com detalhes tudo o que acontecera. Depois de me ouvir atentamente, falou:

_ Santo Deus, ele está mesmo louco! E o que pretende fazer para escapar dessa trama? A não

ser que a senhorita resolva aceitar a vontade de seu pai e casar-se com o conde, pois não consigo

achar nenhuma solução para poder ajudá-la.

_ Nunca, jamais serei vendida ou me casarei sem amor. Darei aos dois uma boa lição.

_ Senhorita Anna, deve ter mais cuidado. Seu pai pode perder a cabeça e nem sei o que ele

poderá fazer.

_ Não se preocupe, Maria. Serei bastante sutil. Mas, antes, quero que me dê as chaves do

quarto de minha mãe. Tenho o direito de conhecer o que tem em seus pertences.

_ Tudo bem! Mas deixe que acabem de sair e tomem distância.

_ Então está bem. Assim que saírem, suba e traga-me as chaves.

Disse isso voltando para os meus aposentos. No meio da escada, ainda ouvi Maria dizer-me:

_ Que Deus me ajude! Seu pai, se souber, esfola-me viva.

Então, respondi-lhe:

_ Ele só vai saber se a senhora contar!

Maria saiu meio a contra gosto, pois estava muito preocupada com as consequências de meus

atos. Para falar a verdade, eu também, mas estava disposta a ir até o fim.

Ao chegar em meu quarto, corri para a janela para observar quando meu pai partiria na

carruagem. Pude observar a condessa gesticulando muito. Ela conversava com meu pai e, por certo,

estavam falando de mim. Antes de subir na carruagem, ela olhou para cima e deu-me um sorriso

sarcástico. Cumprimentei-a com a cabeça, pois bem sabia o que queria dizer-me com aquele sorriso

matreiro e os olhos cheios de maldade.

Maria subiu imediatamente, assim que a carruagem tomou distância.

_ Estou com o coração nas mãos, mas estou aqui, arriscando-me a ser mandada embora. Tudo

por amor e amizade a uma aprendiz de bruxa que só me põe em confusão.

_ Ora, Maria, pense pelo lado positivo: é só comigo que a senhora consegue ter uma vida

agitada e cheia de aventuras!

Lembrei-me de minha infância, quando sempre fazia Maria correr horrores atrás de mim, ou a

fazia subir em cima de árvores para pegar as frutas que eu queria. Mesmo que houvesse uma bem

pertinho do chão, eu a fazia pegar a mais alta. Era muito divertido vê-la se atrapalhando toda,

subindo árvore acima. Maria, então, prosseguiu com aquela conversa:

_ É mais: se o patrão me pega, vou ter algo muito mais empolgante do que aventuras ao seu

lado. Serei obrigada a tirar férias para o resto da minha vida.

Não me importava o que Maria pudesse me dizer. Pegar aquela chave fez meu coração

disparar, pois seria a primeira vez que conheceria as intimidades de minha mãe. Abrimos a porta e

fomos para o final do corredor, na frente do quarto de minha mãe. Olhei para Maria, muito ansiosa.

_ Vamos, abra logo. Não temos o dia todo para perder, ou quer que a copeira venha e nos

flagre?

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Ao abrir o quarto, senti um carinho muito grande em todo o ambiente e fiquei muito feliz, pois

minha mãe estava lá dentro, esperando-me com um lindo sorriso. Senti as lágrimas rolarem e vi

quando Maria me olhou. Em seguida, falou:

_ Sinto uma presença muito forte aqui dentro. Estou toda arrepiada. Talvez não seja uma boa

ideia ficarmos.

Olhei para minha mãe, que estava sorrindo e olhando para Maria, com ternura.

_ Sim, eu sei, Maria. Minha mãe está aqui e manda lhe dizer que está muito feliz por vê-la.

Não precisa ficar assustada. Na verdade, ela só está aqui para nos receber.

Maria deu um salto para trás e perguntou onde ela estava. Respondi que ela estava bem

próxima à janela.

_ Ufa! Então os arrepios que estou sentindo devem ser por causa do ventinho frio entrando pela

janela!

Eu e minha mãe olhamos uma para a outra com indignação, pois não acreditávamos ter ouvido

aquele comentário tão esdrúxulo vindo de uma pessoa extremamente esclarecida sobre a

espiritualidade como Maria era. Mas, no fundo, entendemos, pois ela estava nervosa e assustada.

Afinal, ela nunca realmente havia se confrontado com um espírito. Aquela presença incorpórea

mexeu com seus nervos, fazendo-a não perceber que estava prestes a cair na obscuridade de sua

imaginação com uma manifestação de ignorância. Engraçado como as pessoas se assustam com o

que não podem ver ou tocar... Quando, na verdade, a única coisa que pode nos prejudicar está

dentro de nós mesmos: é a nossa maneira cega e preconceituosa de olhar a vida e as pessoas ao

nosso redor. Os seres incorpóreos nunca poderiam nos fazer mal, a não ser se os deixássemos

invadir nosso meridiano, ou seja, a linha imaginária que não devemos deixar os espíritos sem luz

ultrapassarem. Esses seres são usados por feiticeiras, para o malefício da magia negra, na qual os

desejos obscuros da maioria dos seres humanos são atendidos. Na verdade, os espíritos sem luz são

como escravos: apenas cumprem ordens de seus senhores e estão à espera de uma recompensa.

Abrimos a janela para que o ar e a claridade entrassem. O quarto era repleto de pequenos

bibelôs e parecia que a tristeza estava bem longe dali. Minha mãe mostrou-me suas coisas pessoais.

Mostrou-me um lugar secreto, onde guardava o primeiro casaquinho de lã que ela mesma havia

tricotado enquanto estava grávida de mim. Até Maria espantou-se, pois havia um fundo falso em

uma gaveta de sua cômoda. Fiquei tão emocionada por poder compartilhar aquele momento único

com minha mãe! Encontrei um antigo diário e algumas coisas que me surpreenderam. Tinha uma

estranha varinha de madeira muito trabalhada, um amuleto, uma toalha bordada em fios de ouro e

um cristal azul. Guardei tudo isso em um pequeno baú de madeira e marfim. Maria disse-me que

mamãe havia ganhado de meu pai de uma viagem que fizeram à Índia.

Ao abrir seu guarda-roupa, fiquei encantada com o que vi: logo de primeira mão, um vestido

preto, todo de renda muito fina. Olhei para minha mãe maravilhada. Pedi-lhe permissão para usá-lo

no baile de sábado. Ela respondeu-me, com um largo sorriso, que tudo aquilo me pertencia.

Admirei cada bibelô. O quarto era muito amplo e tudo era em tom bege e marfim. A cama de casal

era enorme e muito alta. O véu sobre a cama dava um ar extremamente romântico, mostrando um

pouco do temperamento harmonioso e elegante dela. Ela me disse que estava triste com papai, mas

que era para eu ter paciência com ele, pois ele estava muito atordoado por causa das imprudências

que havia cometido. Disse-me que ele corria risco de vida, pois o conde não era uma pessoa tão

amena quanto se mostrava. Pediu que eu também tomasse cuidado com minhas atitudes com ele e

que, principalmente, tentasse ser discreta quanto à minha nova escolha. Isso me fez ficar um pouco

com o pé atrás quanto ao que faria no baile de sábado. Depois de muito conversarmos e ela me

instruir sobre como eu deveria proceder em minhas atitudes, despediu-se e retirou-se, deixando-me

pesarosa e com saudades antecipadas.

Agradeci a Maria por permitir encontrar-me com um pouco da minha história. Saí daquele

quarto e tentei deixar tudo da mesma maneira, pois não quis que ninguém desconfiasse de nada. Saí

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com o vestido em minhas mãos, é claro! Acho que foi o presente mais lindo que eu havia ganhado.

No corredor, entreguei-o a Maria, que me esperava impaciente. Pedi-lhe que o lavasse em segredo,

pois não queria que ninguém soubesse que eu o usaria no baile do conde. Ela pegou a chave e

desceu para colocá-la no mesmo lugar, para que ninguém desconfiasse dela.

Voltei imediatamente para meu quarto, levando comigo alguns dos pertences de minha mãe.

Depois de colocar minhas coisinhas no quarto, em um lugar seguro, fui para a cozinha, onde fiz

minhas refeições ao lado dos criados. O meu lado humano ainda estava muito triste com meu pai, e

não gostaria de ver ou falar com ele naquele dia tão fatídico.

Depois de ajudar Joana com a louça, voltei para o meu quarto e resolvi ler o diário de minha

mãe. Pude perceber sua sensibilidade e a maneira humana como via as coisas e as pessoas. O

perdão era o seu lema. Pude perceber que meu pai não era tão puritano como demonstrava ser - em

poucas linhas, minha mãe dizia saber de suas traições, mas se manteve digna. Saltei algumas

páginas, para não me aborrecer ainda mais como ele, e descobri uma coisa que me deixou

boquiaberta. Logo depois de dez páginas, estava escrito:

Anna, sei que neste momento você está lendo estas páginas. Espero que já tenha identificado

seu dom. É, filha, sei que não viverei o bastante para lhe contar sobre isso pessoalmente. Sou uma

bruxa. Antes de deixar meu aparelho, passar-lhe-ei neste livro todo o meu conhecimento sobre a

magia. Lógico que muitas coisas você terá que aprender por si mesma, pois a magia é uma busca

eterna do saber. Seu pai nunca soube desse segredo, que agora compartilho exclusivamente com

você. Não culpe Maria: ela prometeu-me guardar segredo. Nunca lhe revelei sobre o fundo falso

ou sobre a passagem secreta do porão, onde pratico meus rituais de magia. Nesta hora, sei como

está se sentindo e se perguntando onde fica a passagem secreta. Fica atrás do 3º lote de vinhos de

seu pai. Lá, encontrará tudo o que precisa saber sobre mim e nossa raiz. Como já deve ter ouvido,

estudei até os dezesseis anos em um colégio de freiras, na França. Lá, aprendi muitas coisas,

inclusive sobre a crueldade e a falsidade que ocorre por trás das paredes de um convento rigoroso.

Minha mãe queria que eu tivesse uma vida religiosa e que fosse preparada para ser uma boa

esposa e dona de casa. Só que sempre tive esses sonhos românticos. Também sentia que o mundo

precisava de mim de uma outra forma. Minha primeira manifestação como bruxa foi quando, no

convento, começou a surgir um boato de que várias freiras estavam ficando loucas por causa da

influência do demônio. As pobres mulheres davam crises e debatiam-se, jogando seus frágeis

corpos de um lado para o outro da parede de suas celas. Algumas cometeram suicídio. Algumas

engravidaram, e as freiras as fizeram abortar. O horror e o pânico expandiram-se por todo o

convento, e meus pais estavam vindo me buscar. Só que algo dentro de mim gritava e dizia que

aquilo tudo nem de perto tinha a ver com o demônio. Numa bela tarde, eu estava sentada na

soleira, lendo um romance, depois de uma monótona aula de literatura, quando ouvi alguém me

chamar. Levantei-me rapidamente, pois tanto os padres como as freiras eram muito rígidos quanto

à obediência. Então, de um salto, respondi “Pois não, senhora!?”. E, abaixando a cabeça,

continuei imóvel, esperando que alguém viesse me impor alguma ordem. Quando percebi que

ninguém falou nada, ergui minha cabeça e vi que não havia ninguém. Fiquei assustada e saí

correndo para o meu quarto, onde sentei na cama e fiquei tentando entender o que teria

acontecido. Cheguei a pensar que realmente poderia ser um tipo de demônio que tivesse falado

comigo, o mesmo que estaria deixando as freiras loucas. Fiquei com mais medo ainda por não

saber como diria aquilo para as freiras sem que elas achassem que estava possuída. Foi quando a

voz, mais uma vez, falou comigo: “Elizabeth, não temas, não viemos lhe fazer nenhum mal. Escute-

nos, temos que lhe prevenir: está correndo um risco muito grande aqui dentro”. Primeiro,

esconjurei e rezei incessantemente. Depois, cobri a cabeça com travesseiros, mas as vozes não

paravam. Então, em soluços e com muito medo, resolvi perguntar: “O que querem de mim? Por

que estão me atormentando? Sou filha de Deus e renego vocês, espíritos imundos”. Ouvi

responderem-me: “Também somos filhas de Deus, Elizabeth, e precisamos de sua ajuda para

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evitarmos mais uma tragédia com as meninas”. Ao ouvir aquilo, fiquei mais calma. Pois, além de a

voz ser suave, parecia-me sensata. Perguntei “Em que posso ajudar as pobres moças? Por que os

demônios estão torturando essas pobres mulheres, por que estão possuindo-as?”. Explicaram-me

que não eram demônios, e muito menos pessoas daquele meu mundo. Indaguei-lhes sobre quem

estava fazendo aquilo. Responderam-me que o padre Moises invadia as celas das moças e as

obrigava a manter relações com ele. Contestei-os: “Isso é mentira, elas dizem que é um homem

sem rosto e encapuzado”. Eles me disseram que o padre realmente usava um capuz, e elas não o

reconheciam por estarem entorpecidas com um chá, feito com uma erva muito poderosa, que as

deixava em completo êxtase. Mas como isso era possível, se os padres não tinham acesso às celas?

Segundo as vozes, o padre convenceu a cozinheira que esse chá as fazia ficar calmas. Então, ele

conseguia entrar em suas celas. Depois do ato abominável, ele colocava na cabeça delas que foi o

demônio que as violou. As pobres meninas ficavam loucas, pois o alucinógeno as fazia delirar. Era

por isso que os exorcistas haviam dito nunca terem visto esses tipos de manifestações antes. As

vozes disseram-me que eu poderia ajudar as meninas, escrevendo uma carta anonimamente,

dizendo que, durante a estadia do padre Moises em outro convento da região, o mesmo havia

acontecido. Eu deveria entregar a carta ao leiteiro e pedir-lhe que, quando ele voltasse na manhã

seguinte, entregasse à madre. “Lembre-se de ser bastante severa e cite o nome do convento e o

nome da madre superiora do local”, advertiram-me. Assim fiz, como as vozes me ensinaram.

Naquela noite, mal consegui dormir: se tudo fosse obra de espíritos impuros, eu estaria envolvida

em atos de bruxaria e satanismo. Isso poderia me custar a vida. Depois de uma noite péssima, fui a

primeira a me levantar. Mal consegui prestar atenção nas minhas aulas sequenciais e cotidianas.

Depois de muito sofrer por antecipação, ouvi no meio do corredor um grande zumzumzum.

Corremos todas para ver o que estava acontecendo. O monsenhor havia sido chamado. Todos

estavam trancados e aos berros, na sala da madre superiora. Deus, com que agonia eu estava...

“Onde fui me meter?”, pensei, temerosa e certa de que estava encrencada. Somente às duas da

tarde, depois de muito alarido, foi que soubemos o que realmente houve. Os espíritos estavam

completamente certos: padre Moises foi levado por seus superiores e acompanhado por um

inquisidor. Supostamente, quem estava endemoniado era o padre. Em sua cela, acharam muitas

raízes alucinógenas e abortivas. Raízes a que só as feiticeiras e os magos teriam acesso.

Interrogaram as jovens freiras e várias disseram que o padre bolinava com elas, mas que o efeito

das drogas as faziam acreditar que fosse o demônio que se disfarçava de padre Moises. O

escândalo gerou a retirada de muitas moças da escola interna e o fechamento temporário do

convento. Graças a Deus, fui uma dessas moças. Continuei na França a pedido de uma tia, que

continuou com os meus estudos em casa. Durante um baile, conheci seu pai. Os espíritos

preveniram-me de sua reputação de conquistador, mas disseram que você nasceria de nossa união.

Disseram que você seria muito especial e que teria uma missão a cumprir. Mostraram-me várias

vezes o seu rostinho em sonhos. Minha união com seu pai não foi por interesse meu, pois realmente

estava apaixonada por ele. Mas você também já deve ter percebido que não fui muito feliz, porque

seu pai sempre gostou de viajar e esbanjar. Quando os espíritos avisaram-me de que minha

doença não teria cura porque se tratava de um mal de sentença, comecei, então, a preparar um

local secreto para que, quando você crescesse, tivesse o seu lugar para trabalhar. Maria ajudou-

me e sempre me orientou a como agir. Com as viagens constantes de seu pai, fiquei muito sozinha.

Então, a prática da magia foi-me um aprendizado constante. Algumas coisas estão anotadas para

que lhe sirvam de exemplos. Espero, filha, que cumpra sua missão com muito amor e designação.

Lembre-se de sempre manter a discrição sobre a magia, e de só praticá-la quando realmente

necessário e para o bem comum. Cuide de seu pai e nunca o contradiga, pois se torna violento e

pode agredi-la. Ajude Maria a encontrar seu grande amor e liberte-a, pois ela ainda tem que

seguir seu caminho. Deixo-lhe tudo o que aprendi com os espíritos, e prometo que sempre estarei

presente para protegê-la.

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Cumpri tudo o que ela me pediu naquele diário, embora nem tudo tenha sido da compreensão

de todos os que me cercavam. Mas nunca fiz nada esperando que alguém me compreendesse.

Apenas quis ser livre. Esperava poder seguir o caminho que escolhi.

Era impressionante como minha mãe poderia saber que, um dia, eu leria seu diário. O que

mais me intrigava era como ela havia conseguido esconder de meu pai que também era bruxa.

Maria, com certeza, tinha algumas respostas a me dar.

Peguei no meu diário um pouco para fazer minhas anotações e esclarecer algumas coisas sobre

a tradição da Lua. Aproveitei para acrescentar as seguintes anotações: nós, bruxas, acreditamos na

deusa como a criadora de tudo e de todos. A deusa é a principal deidade da bruxaria. Ela é

simbolizada pela Lua e pela Terra, e recebe diferentes nomes em diversas culturas em que é

cultuada e celebrada. A deusa é eterna, imortal e exerce supremacia em nossas práticas e rituais.

A bruxaria é uma religião polarizada. É por isso que também acreditamos no princípio criador

masculino do deus cornífero, simbolizado pelo Sol, representando a fauna, a flora e os animais. Ele

é considerado filho e consorte da deusa. Sei que isso poderá parecer uma heresia a princípio. Mas,

em nossa cultura, existem muitas coisas misteriosas por si só que são consideradas abomináveis,

irregulares e anormais aos olhos humanos. Com o passar do tempo e muito estudo, são coisas com

que se aprende a conviver, com naturalidade.

Tudo nesta terra é uma questão de cultura e aceitação. Mas uma coisa digo: não cultuamos o

demônio, não comemos criancinhas e muito menos praticamos orgias nas quais - supõe-se - o

demônio deita-se com as bruxas.

Não posso dizer o mesmo das feiticeiras. São pessoas à parte da magia. Não seguem regras e

fazem uso de seus poderes à revelia e mercenariamente. Mas, em nossa tradição, nunca houve

sequer nenhum evento singular a esses mencionados por inquisidores e fanáticos religiosos. Todos

os rituais mágicos sempre são executados visando efeitos benéficos, de forma que as pessoas

jamais sejam prejudicadas.

A natureza é o templo de nossos antigos deuses. Por isso, a maioria dos nossos rituais é

realizada em meio à mata fechada. Apesar de muitas bruxas realizarem seus rituais em suas casas

ou locais fechados, por uma questão de privacidade, discrição e cautela, a natureza é sempre vista

como o local ideal para a celebração de nossos rituais. A magia é um instrumento que, quando bem

usado, torna-se um grande aliado. Mas, caso contrário, pode desencadear todo o universo à sua

volta. Como devo sempre lembrar, não podemos e nem temos o direito de interferir no destino de

ninguém.

Relembrando uma coisa: bruxas não usam suas vassouras para voar, nem seus caldeirões para

fazer cozidos de dragão ou sopa de sapo, como diz o dito popular. Esses instrumentos são

realmente utilizados em nossos rituais e feitiços, mas não da forma fantasiosa e folclórica que

diversas vezes são mencionados em relatos e histórias supersticiosas.

A vassoura original de uma bruxa é feita com um punhado de planta amarrado ao redor de um

cabo: os dois sexos, o côncavo e o convexo. As bruxas mais antigas usavam esse instrumento de

forma fálica para abençoar, fazendo um ritual de fertilidade. À noite, pulavam sobre vassouras nos

campos e, quanto mais alto se pulasse, maiores eram as bênçãos da fertilidade. Esse tipo de ritual

era noturno e, por isso, muitas vezes foi confundido com rituais de maldição - o que também gerou

a lenda de que a bruxa voava em vassouras. No fundo, as bruxas antigas gostavam de se parecerem

místicas e estranhas - o que foi um erro, pois os supersticiosos usaram da sua alegria e também de

sua maneira debochada para prejudicá-las com calúnias e estórias folclóricas.

Esclarecendo, também, sobre a viagem, ressalto o seguinte: quando estamos despertos, o corpo

astral coincide com o físico. Mas, quando estamos adormecidos, ele se destaca, dando, assim,

origem à projeção astral. O corpo astral, nesse estado, mantém-se ligado ao corpo físico pelo

cordão de prata por toda a vida. Quebrando-o, a vida termina - desligando, assim, o corpo Astral do

corpo Físico. O cordão de prata é a ligação do corpo físico ao corpo astral, através da qual é

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transmitida a energia vital para o corpo físico, durante a projeção astral, mantendo sempre os dois

corpos interligados, independentemente da distância a que se encontrem. Por mais afastados que

estejam, o cordão de prata jamais se partirá: antes funcionando como um elástico, trazendo sempre

de volta o corpo astral, por mais longe que ele se encontre. O cordão de prata também é conhecido

como cordão astral, fio de prata, cordão luminoso, cordão vital, entre tantos outros nomes.

O plano astral é um universo paralelo ao nosso, é a quarta dimensão. Durante a projeção astral,

consegue-se fazer o que se quiser e ir onde o nosso pensamento desejar. Não existe espaço nem

tempo – mas, sim, forma e pensamento. Pensa-se num lugar e, quase de imediato, estamos lá.

Existem, no entanto, algumas limitações. Por exemplo: muitas pessoas que não são capazes de se

tornarem visíveis ao visitar um amigo ou familiar. No entanto, algumas pessoas conseguem. Há

pessoas que não veem a presença de outras na viagem astral. No entanto, conseguem sentir a

presença. Durante a viagem astral, a projeção pode ser involuntária ou voluntária. A maior parte

das projeções involuntárias acontece ou durante um sonho ou nas experiências de quase-morte.

Nesse caso de projeção, a pessoa não tem consciência do que lhe está a acontecer, observando por

vezes o seu corpo físico deitado na cama e imaginando que está desencarnada. Procura

desesperadamente mergulhar violentamente no seu corpo físico. Muitos dos sonhos de voo e de

queda estão estreitamente relacionados a essa experiência. Entretanto, outras pessoas que se

projetam involuntariamente sentem-se com uma sensação de flutuação e liberdade tão boa,

fazendo-os sentir demasiadamente bem para se questionarem sobre o que se está a passar. Ao

acordar, algumas imaginam que aquela experiência foi um sonho bom.

Existem pessoas que praticam viagem astral voluntariamente, comandando, neste caso, a

experiência, tendo total consciência de que estão fora do corpo. Podem, assim, observar

calmamente o seu corpo, viajar e visitar com tranquilidade todos os lugares que desejem na Terra,

podendo voar e atravessar objetos físicos. Durante essas viagens, podem se encontrar e contatar

com outras pessoas em viagem astral ou com entidades desencarnadas. Podem regressar quando

desejarem, bastando, para isso, pensar no seu corpo físico para que o corpo astral fique novamente

ligado a ele. Ressalto que não é aconselhável que uma pessoa faça essa viagem sozinha. Isso seria

demasiadamente inconsequente. A viagem astral não é tão simples e pode ser perigosa, pois o

indivíduo pode não conseguir voltar por si só – ou, o que é ainda pior, pode não querer voltar.

Resolvi, também, esclarecer sobre as formas de demônios que se manifestavam nas pessoas e

como eles as possuíam. O súcubu é um espírito do mal que toma a forma de mulher com o

propósito de ter relações sexuais com um homem. A sua versão masculina denomina-se incúbus. O

objetivo dos súcubus e incúbus é unirem-se carnalmente com um ser humano. Na realidade, sugar-

lhe a energia vital, pois essas entidades alimentam-se dela. Seus ataques ocorrem à noite. A vitíma

raramente se lembra, ou tem uma vaga memória, muito esfumaçada, como se o ataque lhe

parecesse um sonho ruim. Ao acordar com uma grande sensação de fraqueza para a qual não acha

explicação, o ser possuído pode ter ataques de fúria e violência, podendo até mesmo machucar um

ente querido. Se os ataques se tornarem sucessivos, a pessoa começa a ficar pálida, sem ânimo e

depressiva, geralmente com problemas sanguíneos ou pulmonares. Perde totalmente as forças

anímicas vitais. Vai, inexplicavelmente, perdendo até as suas forças espirituais. Energias são

rapidamente sugadas, podendo ocorrer perda total do apetite ou compulsão alimentar. O ser

atingido pode ficar totalmente desiquilibrado e, em alguns casos, pode vir a morrer. Isso explica

muitas doenças que nossos doutores não conseguiram explicar - como a loucura, por exemplo.

Ressalto, ainda, que muitas das vítimas da Inquisição não tinham nenhuma espécie de demônio em

seu corpo físico ou astral.

Terminei minhas anotações e estava sentindo-me muito melhor. Ocupar a mente com a leitura

é a maior e a melhor higiene mental que podemos fazer. Levantei-me e arrumei a bagunça que

etava no meu quarto. Havia coisas de minha mãe espalhadas por toda a parte.

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Maria subiu, avisando que meu pai e a condessa estavam de volta e que o jantar seria servido

na sala de estar, às oito em ponto.

_ Que interessante! Então agora resolveram que somos uma família? - respondi à Maria.

_ Parece que o casal está divinamente bem. Para falar a verdade, senhorita, nunca os vi assim,

tão harmoniosos e gentis um com o outro.

_ Imagino, Maria. Isso porque ambos estão concordando em alguma coisa que lhes é

conveniente. Infelizmente, terá que dizer ao meu pai que não estou bem disposta.

Maria assim o fez. Ela não estava para muitos argumentos, pois ainda estava se sentindo triste.

Fiquei à janela, observando a natureza. Quando Maria voltou ao meu quarto, já era noite e eu nem

tinha percebido que a tarde caíra. Mal comi: apenas revirei a comida, para dar a impressão de que

tinha comido. Estava me sentindo entediada e sem lugar. Deitei-me na cama, peguei um livro e

adormeci, sem ao menos tirar as roupas. Maria deve ter me cobrido durante a noite, mas não me

acordou.

Na manhã seguimte, logo que despertei, percebi novamente a janela do meu quarto aberta.

Lenvantei e fui dar uma olhada pelo lado de fora. Se foi um sucumbo, não teria deixado marcas

normais. Mas, para o meu espanto, percebi uma coisa que até então não tinha notado. A trepadeira

que subia pela parede da minha janela estava toda arrebentada. Concluí que tinha algum estranho

no meu quarto, e esse alguém não era um espírito. Resolvi procurar em todo o quarto indícios ou

pistas que me mostrassem algo mais sobre o invasor da minha privacidade durante minhas noites de

sono. Para meu maior espanto, descobri que o diário de minha mãe havia desaparecido. Fiquei

desesperada, pois sabia que, quem quer que fosse, essa pessoa agora me teria nas mãos. Minhas

pernas tremiam tanto... Fiquei sem chão. Maria entrou depois de ter batido inúmeras vezes. Ao me

ver, perguntou, preocupada:

_ Senhorita, o que está havendo? Estou batendo à sua porta há alguns minutos e, como a

senhorita não respondia, resolvi entrar.

_ Desculpe-me, Maria. Realmente não a ouvi. Aconteceu uma coisa muito grave.

_ Então diga-me, senhorita: o que mais descobriu?

_ A senhora sabe que desconfiava que alguém estava entrando aqui. Não são apenas

desconfianças, Maria, pois alguém realmente está entrando em meu quarto, subindo pela trepadeira.

O diário de minha mãe desapareceu. Maria, deixei-o debaixo do travesseiro.

Ela ficou pálida e tão desorientada como eu. Por fim, falou:

_ A senhorita tem certeza? Meu Deus, sua mãe escreveu coisas naquelas páginas que podem

comprometê-la, e muito!

_ A senhora sabia desse segredo e escondeu-me também.

_ Por favor, senhorita Anna, entenda-me: isso não é uma coisa que a gente sai falando por aí.

A senhorita era muito imatura e tive medo de que pudesse interpretar mal a condição de sua mãe.

_ A senhora tem razão. E agora não é hora para discutirmos sobre esse assunto.

_ Mas a senhorita está decepcionada comigo?

_ Não, Maria, só curiosa de como a minha mãe conseguiu esconder esse segredo durante tanto

tempo.

_ Não foi fácil, senhorita. Mas, naquela época, como seu pai viajava muito, sua mãe tinha mais

acesso a toda a casa. Ela mandou construir um local secreto. A senhorita deve ter lido isso no

diário.

_ Sim, mas a pessoa que está com o diário agora tembém sabe disso.

_ Então, temos que descobrir quem é essa pessoa, senhorita, ou estaremos em maus lençóis.

Sugiro que nós duas, de agora em diante, não sejamos vistas tão juntas.

_ Não podemos ter tal atitude, Maria. Sempre estivemos juntas e, se nos separamos agora, a

pessoa que está com o diário poderá desconfiar.

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O segredo de minha mãe havia sido descoberto e, mais do que nunca, precisava tirar Maria

daquela casa. Ela voltou para seus afazeres e fiquei ali, em meu quarto, sentindo que a qualquer

momento alguém entraria com um guarda e entregar-me-ia à Inquisição.

Por fim, percebendo que não adiantaria fugir por muito tempo, resolvi descer e caminhar pelo

jardim. O dia não estava ensolarado, pois o tempo estava virando e estava meio nublado. Meu pai

estava na sala de estar, bebendo, e minha madrasta havia saído para resolver as coisas dos baile.

Eu estava muito perdida e caminhei pelo jardim inteiro. Precisava encontrar o lugar secreto de

minha mãe. Decidi que seria lá que faria os meus feitiços. Tinha certeza de que nesse lugar eu

encontraria forças para lutar contra aqueles que me perseguiam em silêncio. Mas meu maior temor,

naquele momento, era descobrir quem estava com aquele bendito diário. Resolvi, então, descansar

debaixo de uma árvore. Encostei-me e deixei meu pensamento voar. Aquela árvore começou a me

passar suas boas energias e, em instantes, estava mais tranquila. Veio-me a certeza de que

descobriria quem era o mau caráter que estava invadindo a minha privacidade. Alguma coisa me

dizia que minha madrasta estava envolvida naquela trama diabólica. Por fim, fiquei ali, deitada de

olhos fechados, buscando na natureza a resposta para as minhas tormentas.

“Sempre encontraremos uma resposta para tudo, pois o conhecimento nunca foi negado ao ser

humano. Mas devemos ter consciência de que e para que usamos tanta sabedoria adquirida. Pois

devemos nos lembrar do tratado pessoal de Deus com os homens. Atos transformam-se em

consequencias. E colhemos exatamente o que plantamos”.

(Padre Ângelo Wallejo Moralles).

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Capitulo IV - O Segredo de Elizabeth

epois de ter recuperado minhas energias debaixo daquela árvore amiga, levantei-me e

voltei para dentro de casa. Meu pai ainda estava na sala de estar, lendo um livro.

Peguei um que me interessava e sentei-me em uma poltrona lateral. Ficamos ali, sem

dirigir a palavra um ao outro. O ambiente estava pesado e hostil, pois aquele silêncio forçado fez-

me sentir excluída. Mas, no fundo, preferi que ele não falasse comigo. Embora aquele silêncio me

incomodasse, era melhor do que ouvi-lo dizendo que eu era o pagamento para o débito dele com o

conde.

Depois de algumas horas folheando páginas e mais páginas daquele livro, sem prestar a menor

atenção ao seu conteúdo, fomos interrompidos pelos relinchos de alguns cavalos. Era a condessa

que havia chegado. Meu pai levantou-se, foi à janela certificar-se de que era mesmo sua esposa.

Depois, saiu apressadamente para recebê-la.

Assim que ele saiu porta afora, também corri à janela para olhar aquela cena inédita. Cheguei

a pensar que a condessa havia sofrido algum tipo de acidente por causa da maneira afoita e

apressada com que meu pai saiu do recinto onde estávamos. Mas, para meu espanto, vi uma cena

completamente inversa: a condessa, ao descer da carruagem, correu para os braços de meu pai,

dando-lhe abraços afetuosos. Os dois pareciam um casal muito apaixonado e em lua de mel. Aquela

cena seria normal se eu não os conhecesse e convivesse com eles desde menina. Os dois pareciam

não se importar com a criadagem, que os olhava atônita.

Entraram apressadamente para seus aposentos, deixando para trás Lorenzo e o cocheiro

abarrotados de embrulhos. Maria, que estava no hall de entrada, sequer conseguiu pronunciar uma

palavra mediante aquele casal tão apaixonado. Definitivamente, havia algo de errado naquela casa.

Em outros tempos, meu pai teria tido um ataque ao ver a condessa com tantos embrulhos, pois ele

estava coberto até o pescoço com dívidas. Não só eu, mas toda a cidade de Salamandra sabia que a

condessa e meu pai não se entendiam como marido e mulher.

Depois de presenciar aquela cena exótica quase em extinção, resolvi permanecer na sala de

estar para tentar colocar as ideias em ordem. Aquela visão amorosa do mais novo casal romântico

do país havia me deixado traumatizada.

Ao meio dia, Maria veio me comunicar que o almoço estava pronto e seria servido para a

família - o que queria dizer que meu pai praticamente me estava obrigando a sentar-me à mesa com

ele e sua esposa adorada. Já sentada à mesa, o casal de enamorados parecia não ter notado a minha

presença. Parecia que haviam se juntado num complô silencioso contra mim. Não que eu desse a

menor importância ao desprezo dos dois, mas a súbita harmonia entre aquele casal parecia algo de

história de horror. Eu precisava prestar mais atenção aos detalhes. Era pela minha vida que eu

temia.

Não consegui comer. Apenas remexi minha refeição em total silêncio. Depois, levantei-me e

saí em direção aos meus aposentos. Ouvi-os comentando algo sobre mim e, em seguida, riram

debochadamente. Confesso que estava com medo deles, mas não poderia demonstrar isso, pois

demonstraria que a tática que estavam usando estava surtindo efeito.

Fiquei em meu quarto o restante da tarde, sem sair um minuto sequer. Eu e Maria, naquele dia,

quase não nos falamos, pois a condessa a ocupou com várias tarefas relacionadas ao baile do dia

seguinte. De uma coisa eu estava certa: o diário de minha mãe não estava em poder da condessa

Del Prat – ou, caso contrário, ela teria vindo ao meu quarto para me chantagear.

Meu pai e a condessa saíram logo após o almoço. Já eram nove horas da noite e os dois não

haviam voltado. No mínimo, estavam na companhia do seu mais novo amigo, o conde. Maria,

assim que conseguiu uma folga, veio ao meu quarto para saber se eu estava bem, pois ela não havia

me visto desde o almoço. Depois de conversar comigo por alguns minutos, ela desceu e

aconselhou-me a trancar as janelas e a porta. Foi o que fiz. Maria, por certo, não poderia dormir

D

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antes que o casal de enamorados voltasse. Eu, por minha vez, estava cansada de esperar por

notícias e acabei adormecendo em cima do meu diário.

No dia seguinte, acordei disposta a não permitir que nada e nem ninguém me perturbasse a paz.

Levantei-me da cama, fiz minhas orações matinais, abri as janelas, deixando o ar da manhã entrar

no quarto. Depois, fui interrompida em meu momento de oração pelo som do toque de Maria à

porta. Abri e fui logo dizendo:

_ Bom dia, minha querida Maria! Que lindo dia teremos hoje, não acha? É só gratidão por

termos tantas bênçãos do Pai Maior. O que faremos hoje para compensar os dias ruins que

passamos esta semana nesta casa de aflições?

Maria parecia não ter entendido minha reação e olhou-me atônita:

_ O que deu na senhorita? Viu um anjo durante a noite, foi? Se isso aconteceu, passe para mim

também um pouco dessa energia incandescente, pois estou precisando me sentir assim, tão bem

disposta.

Maria disse aquilo esfregando as mãos nas minhas vestes, parecendo querer captar a suposta

energia angelical. Dei-lhe um largo sorriso, pois sabia que ela estava usando de suas ironias mais

uma vez e disse-lhe:

_ Não é nada disso, Maria. Estou decidida a não deixar que ninguém me ponha de baixo astral.

Eu disse que iria viver para lutar por minha liberdade de expressão e igualdade. Então, que seja

com um sorriso nos lábios. Afinal, inimigo só se vence com perseverança, e não com ódio. Tudo o

que os meus inimigos querem, Maria, é ver-me triste e definhando dia após dia. Mas lhe juro que

não darei este gostinho a nenhum deles. Hoje acordei com este pensamento e, acredite, é definitivo.

Maria olhou-me e, depois de parecer muito pensativa, disse-me:

_ Bom, senhorita Anna, espero, então, que não seja eu a pessoa que irá lhe trazer

aborrecimentos. Pois sinto lembrá-la: é hoje o dito baile que a sua madrasta dará em homenagem ao

conde. Mas, pela sua súbita alegria, vejo que se esqueceu disso.

_ Não... Mas estava tentando pensar em coisas mais agradáveis.

Comecei, então, a mordiscar os lábios. Meu plano seria colocado em prática, finalmente. Por

fim, perguntei à Maria:

_ O vestido de minha mãe está pronto?

_ Sim, como a senhorita pediu. Mas madame Hortência enviou hoje mais cedo o que a

senhorita havia lhe encomendado.

_ Sério? Hum... Terei que pensar em uma forma de me livrar dessa encomenda.

_ O que a senhorita fará? Pois o vestido de sua mãe está em meu quarto, guardadinho para que

ninguém desconfie de nada.

_ Ainda não sei, mas todos têm que pensar que irei ao baile com o vestido que encomendei.

_ Quanto a isso, a senhorita não precisa se preocupar. Sabe que sei ser discreta.

_ Sim, Maria, sei que posso sempre contar com sua fidelidade. Agora desça e espere que todos

saiam. Então, traga-me o vestido de minha mãe.

Maria já estava saindo quando ouvimos barulhos vindos de fora da casa. Olhamo-nos com

espanto. Corremos as duas para a janela. Ao olharmos para baixo, vimos um grande movimento de

pessoas desconhecidas. Havia um grande alvoroço de criados, correndo de um lado a outro do

jardim. Eles traziam inúmeras peças de coração para dentro do grande salão. Minha madrasta dava

de braços e, ao ver-nos debruçadas à janela, levantou o nariz e entrou como uma abelha enfurecida.

Eu e Maria nos olhamos novamente e começamos a rir dos trejeitos de menina mimada da

condessa. Ela estava se sentindo a dona do mundo só porque organizava o baile do conde.

Depois que Maria desceu para ajudar a condessa e cumprir o que eu lhe havia pedido, voltei

para a janela para ver onde daria aquela confusão.

Eu estava faminta naquela manhã. Havia me esquecido de pedir à Maria para trazer-me algo de

comer. Mas, quando ela finalmente voltou, trazendo nas mãos a encomenda que eu havia feito à

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madame Hortência, trouxe consigo algo que, com certeza, nem em meus pesadelos mais temerosos

eu haveria de encomendar: a condessa Del Prat. Ela, ao ver-me, foi logo dizendo:

_ Então, resolveu atender seu pai como uma menina boazinha?

_ Não é o que todos esperam? Que eu me comporte como uma futura condessa e pague as

dívidas da família!?

_ Pode enganar o tonto do seu pai, mas sei que está planejando algo. Saiba que estou de olho

na senhorita. Não a deixarei sozinha um segundo sequer. Sei que vai tentar fazer algo para se livrar

do compromisso que lhe foi imposto.

_ E o que eu poderia fazer? Como a senhora mesmo disse, estará de olho em mim. E, para falar

a verdade, espero que fique mesmo de olho em mim, porque esta noite a senhora irá colher o bom

resultado dos frutos que plantou a vida toda, condessa.

_ Não se atreva a estragar o baile de apresentação que estou preparando para o conde.

_ Não se preocupe. Não farei nada que pareça escandaloso ou que venha a desonrar a sua

conduta. Também não pretendo fugir, se é o que está pensando, e muito menos desfazer o

compromisso mediante todos os convidados. Mas de uma coisa eu tenho certeza.

_ E o que é?

_ Estarei presente e serei a pessoa mais comentada de todo o baile. Desta vez, ninguém reluzirá

além de mim.

A inveja relampejou nos olhos da condessa. Ela, depois de andar pelo quarto todo, olhou para o

embrulho em cima da minha cama e perguntou.

_ Esse é o seu vestido?

_ Sim, é. Ele é o vestido que me fará reluzir esta noite perante todos os olhares. Serei a mulher

mais cobiçada e linda do baile. E, por certo, depois que o conde me vir dentro deste vestido, pedir-

me-á em casamento imediatamente.

A mulher olhava para o embrulho, parecendo enlouquecida. De repente, ela deu um salto,

pegou-o e saiu correndo com o pacote nas mãos. Eu, como tinha que parecer aborrecida pelo fato

ocorrido, fingi correr atrás dela, que se escondeu em seu quarto, trancando a porta. Mais uma vez,

fiquei pensando em como até mesmo os nossos inimigos são nossos aliados. Sacudi a cabeça e ri

muito, sozinha em meu quarto.

Quando Maria subiu escondida, trazendo o verdadeiro vestido que eu usaria no baile, ela disse:

_ A condessa esta lá embaixo e parece-me a mulher mais feliz do mundo. O que foi que a

senhorita disse a ela?

_ Não disse nada, Maria. Foi ela quem veio ao meu quarto, tentando descobrir o que eu faria

para atrapalhar o baile do conde. Tentei dizer-lhe que não faria nada. Só insinuei que seria a mulher

mais cobiçada da noite. Acho que ela não resistiu e roubou meu vestido.

_ O quê? Ela roubou o vestido que a senhorita mandou madame Hortência fazer?

_ Sim, aquele mesmo. Agora imagine como ela ficará encantadora dentro daquele modelito

exclusivo que madame Hortência fez.

Eu e Maria rimos a valer, pois sabíamos que um modelo exclusivo vindo de madame Hortência

só poderia resultar em extravagância e mau gosto - o que era mesmo o feitio da condessa.

Maria, depois de me entregar o vestido de minha mãe, saiu do meu quarto. Coloquei-o dentro

de um baú, com muito cuidado para não o amassar. Sentei-me à frente da penteadeira e fiquei

examinando qual penteado usaria e qual joia me cairia melhor para usar com o vestido. Optei por

um rico colar com uma única pedra de rubi, ao meio, e brincos e anel com a mesma pedra.

Horas depois, alguém bateu à porta, tirando-me daquele devaneio de vaidade. Mas o toque não

era o mesmo que Maria costumava dar. Então, respondi:

_ Entre, por favor!

Era a copeira e, depois de olhar por todo o quarto, parecendo querer bisbilhotar, disse:

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O segredo dos girassóis

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_ O conde está lá embaixo, no salão, e solicita a sua presença, senhorita. Mas, se preferir, digo-

lhe que a senhorita não está se sentindo muito bem.

Ela, com certeza, estava ali para me investigar. Mas soube como lidar com ela, pois mal podia

ouvi-la.

_ Segundo me consta, estou ótima. Então, diga ao senhor conde que estarei pronta em alguns

minutos.

A mulher saiu cuspindo marimbondos. No mínimo, esperava uma resposta negativa da minha

parte para poder contar à condessa. Ao sair, tranquei a porta do meu quarto, para evitar um

contragosto. Encontrei com Maria no corredor.

_ Então, como estou, Maria?

_ Está linda, linda, como sempre, senhorita Anna. Só acho que é muito feno para pouco

cavalo.

_ Também acho, Maria. Aliás, a senhora está sendo muito gentil ao referir-se ao senhor conde

como um cavalo. Crápula seria a palavra.

_ Meu Deus, senhorita, não deve falar assim do seu futuro esposo. Ele é um homem tão íntegro

e... bonito e gentil. - ironizou.

_ Oh, sim! Íntegro a ponto de pagar a dívida do meu pai cobrando um juro mínimo. Ou seja:

eu, por exemplo. Bonito como um demônio, que se esconde atrás do rosto de um anjo. E gentil, por

certo, pois espera a hora certa de dar o bote, como uma cobra.

Maria deu um sorriso, sacudindo negativamente a cabeça, parecendo entender o que eu havia

dito. Ela me acompanhou até o salão, onde o conde e meu pai estavam. Ao me verem, levantaram-

se e cumprimentaram-me. Não deixei lhes transparecer qualquer sentimento que demonstrasse que

eu estava aborrecida e magoada. Dei-lhes um sorriso largo e estiquei a mão para meu futuro esposo,

que veio em minha direção como um cordeiro manso e tolo. Meu pai ficou boquiaberto porque,

com certeza, já estava com a cabeça cheia de caraminholas, impostas por sua estimada esposa.

Então, usando de um fingimento improvisado, ele falou:

_ Demorou, minha filha. Pensei que não desceria a tempo de ver o conde, pois ele já estava de

saída.

_ Oh! Com certeza o senhor conde entenderá. Ele sabe como as mulheres são. Ficamos horas

na frente de nossos espelhos. Afinal, não poderia aparecer feia como um espantalho na frente de

tão garboso senhor.

Senti que o conde ficou envaidecido. Atendeu-me com um sorriso falso, como era de se

esperar de um hipócrita como ele. Aproximei-me de meu pai e sussurrei ao seu ouvido:

_ O senhor não achou que eu lhe daria esse gostinho, não é?

Meu pai engoliu seco e, por certo, se eu estivesse sozinha com ele, estaria morta mais cedo. O

conde parecia não ter percebido nada, pois, no mínimo, pensou que eu estava cumprimentando meu

pai com um gesto carinhoso.

_ Nunca, em hipótese alguma, pareceria um espantalho. E feiúra, essa com certeza correu bem

longe da senhorita.

_ Soube que o senhor queria falar-me. É algo sobre o baile? - desconversei de imediato, pois

não queria dar outro rumo àquela conversa.

_ Sim. Quero falar-lhe, mas não é nada sobre o baile. É sobre nós dois.

Seu tom de voz havia mudado e era quase um sussurro. O conde prosseguiu com aquela

conversa tediosa:

_ Esperaria a vida toda pela senhorita. Se não se importar, gostaria de pedir a permissão de seu

pai para poder falar-lhe em particular.

Imaginei do que se tratava, mas tinha que me fazer de rogada. Então, respondi:

_ Creio que não sou o tipo de dama que tenha conversas particulares com um cavalheiro. Mas

o senhor é um homem de modos refinados. Creio que não haja nenhum problema.

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Ele continuou a se sentir muito lisonjeado e mantinha aquele sorriso traiçoeiro e enigmático no

rosto. Meu pai, por sua vez, respondeu:

_ Tenho certeza de que o conde não lhe fará nenhum mal. Não vejo porque não os deixar a sós.

Olhei para meu pai nos olhos e disse:

_ O senhor tem razão, meu pai. Que mal o senhor conde poderia me fazer?

Fechei o semblante, para demonstrar minha desaprovação diante daquela situação. Por fim, dei

o braço ao conde e fomos caminhar pelo jardim. Lá, delicadamente soltei o seu braço e, voltando-

me para ele, disse:

_ Então, senhor conde, o que de tão importante e sigiloso terá o senhor para me confidenciar?

Ele deu um sorriso enigmático.

_ Não vou me fazer de rogado - mesmo porque sei da sua perspicácia e inteligência aguçada.

Confesso que foi uma das qualidades que muito me atraíram na senhorita.

_ Não faça rodeios, senhor conde. Não conseguirá me conquistar com seus elogios. Conheço

muito bem minhas qualidades.

_ É sobre exatamente isso que estou falando. Então, creio que a senhorita já deva saber que

tenho um acordo com seu pai. Também creio que a senhorita já seja sabedora que sua dívida era

muito alta. Bom, resumindo esses fatos: se o senhor seu pai tivesse colocado todas as propriedades

que possui, mais os escravos e as joias de sua família, à venda, ainda assim não saldaria a dívida

que tinha. Como um cavalheiro que sou, após ficar sabendo que seu pai tinha duas mulheres

inocentes em casa, quis imediatamente ajudá-lo. Paguei, assim, todas as dívidas de seu pai,

senhorita Anna. E ainda lhe emprestei uma grande soma em dinheiro para que pudesse manter-se

dignamente. Não quero que a senhorita se espante: minha família é muito conhecida por termos um

coração generoso. Além do quê, não poderia sair em total prejuízo: embora agora eu seja o dono de

todas as propriedades de seu pai, necessitava uma esposa que me desse um herdeiro. Portanto,

quero que saiba de meus próprios lábios que a senhorita agora me pertence.

Depois de ouvi-lo, indignada com tamanha audácia e falta de escrúpulo, disse:

_ O senhor está sendo indelicado e vulgar. Mas não me surpreende: desde o primeiro momento

em que o vi, soube que estava diante de um crápula. Na verdade, não sei quem é pior: o senhor,

meu pai ou a condessa. Como o senhor mesmo acaba de mencionar, a dívida é do meu pai com o

senhor. O senhor, de forma alguma, tem o direito de me incluir no pagamento dela. Não sou tão

esperta como o senhor pressupõe. Caso contrário, já teria descoberto uma forma de escapar do

senhor.

Ele deu uma gargalhada diabólica, falando sarcasticamente:

_ Disse que a senhorita era inteligente, mas não disse que seria tão fácil se livrar de mim.

_ O senhor é o demônio, tenho certeza disso. Não há nada neste mundo que me fará mudar de

opinião. Saiba, senhor conde, que serei o pior pagamento que o senhor já recebeu em sua vida.

_ Gosto da sua audácia. Saiba que isso me excita. Gosto de mulheres com senso de humor.

Principalmente, gosto quando elas ficam arredias.

_ O senhor é um homem doente, conde. Embora eu ainda não saiba o seu segredo, em breve

vou descobrir. Aí, com certeza isso será um motivo para o senhor desfazer seu acordo como meu

pai.

Novamente ele sorriu, dizendo:

_ Se eu fosse a senhorita, não me preocuparia em descobrir o segredo dos outros, e sim em

saber o que uma pessoa pode fazer tendo em mãos um segredo como o seu.

_ Não tenho segredos, senhor conde. Minha vida é um livro aberto.

Ele se aproximou, lentamente, e disse:

_ E se eu disser que tenho sob meu poder certo diário que pode incriminá-la totalmente? Essas

coisas, vistas pelos olhos da Inquisição, poderão ser motivo para que a senhorita seja condenada

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como bruxa - principalmente se a pessoa que entregar o objeto for de grande influência política e

financeira.

Tentei esbofeteá-lo, mas ele me segurou, dizendo:

_ Não faça isso, senhorita. Não fica bem para uma jovem de bons modos violentar seu futuro

cônjuge.

_ Como foi que o senhor conseguiu esse diário? Como foi que o senhor conseguiu invadir

meus aposentos sem que eu percebesse ou acordasse?

_ Isso foi muito fácil. Fiquei sabendo que a senhorita sempre toma algum tipo de chá que a sua

governanta lhe prepara à noite. Então, tratei logo de fazer amizade com a sua copeira, que é uma

mulher muito persuasiva financeiramente falando. Pedi a ela, então, que misturasse às ervas do

consumo da sua casa algumas das minhas ervas, cuja função é fazer adormecer. A senhorita tomava

sem perceber a diferença. Então, mais uma vez, usei meu poder de persuasão com a sua madrasta -

que, além de bela, é extremamente carente de afeições masculinas. Com isso, consegui que ela me

desse a chave do portão de sua residência. Assim, eu subia durante a noite para ter com ela e,

depois, entrava em seu quarto para admirá-la. Em seguida, descia pela trepadeira. Confesso que foi

tentador vê-la seminua, deitada indefesa em sua cama. Sabe, senhorita, cheguei a esta cidade muito

entediado, confesso. Mas descobri que aqui, apesar de ser um pequeno condado, está sendo para

mim muito prazeroso e proveitoso também. Que mais posso querer? Tenho uma linda jovem como

minha futura esposa, e sua fogosa e exuberante madrasta como minha consorte.

Fiquei perplexa ao ouvi-lo. Cheguei a cambalear. Meu estômago remexia-se em sinal de

desprezo. Minha cabeça rodopiava como o vento. Se eu fosse uma cobra, tê-lo-ia picado. Por fim,

disse-lhe, com a minha voz trêmula:

_ Como o senhor consegue ser tão desprezível? Como pode querer casar-se comigo, sabendo

que o odeio mais do que tudo neste mundo?

_ Não me importo com o seu desprezo, muito menos com o seu ódio. Afinal, terei o que me

pertence e que é meu por direito.

_ Jamais me sucumbirei aos seus caprichos. Juro que descobrirei o seu segredo.

_ Até lá, lembre-se de que sou o dono do seu segredo. A qualquer momento, mesmo a

contragosto, posso entregá-la à Inquisição, acusando-a de práticas ilegais de bruxaria. Pense bem,

senhorita Anna. É melhor facilitar as coisas para todos. Assim, será prazeroso para ambas as partes.

Não respondi a mais nenhuma palavra que o conde me dizia. Naquele momento, estava me

sentindo totalmente impotente e indefesa. Segui em direção à minha casa. O conde seguiu-me, com

um semblante que era só satisfação e vitória.

Quando finalmente entramos em casa - pois pareceu ser uma eternidade aquele curto trajeto ao

lado do conde-, chamei por Maria. Meu pai, ao ver-nos, perguntou-nos:

_ E então, o que conversavam afinal?

Fui a primeira a responder-lhe:

_ Creio que nada de que o senhor já não esteja ciente, meu pai!

O conde retrucou:

_ Senhor Juan, creio que sua filha está um pouco encabulada. Então, serei o portador de tão

boas notícias. Eu e sua filha estamos noivos! Isso quer dizer que o baile dessa noite será não só para

a minha apresentação, mas também para anunciar o nosso noivado.

Aquele homem repulsivo estava me deixando sem saída. Quis fugir, mas não poderia deixá-lo

perceber que estava insatisfeita. Ele precisava acreditar que me tinha nas mãos, até que eu pudesse

me livrar daquela chantagem.

Meu pai parecia eufórico com a notícia. Mandou logo abrir um champagne. Maria, que havia

vindo atender ao meu chamado, ficou extasiada, em pé, olhando-nos, sem entender absolutamente

nada. A condessa apareceu e veio cumprimentar-nos com falsidade. Tive que aparentar felicidade.

Precisava pensar rápido. Depois do brinde, o conde despediu-se, prometendo fazer uma surpresa no

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baile daquela noite. Vindo daquele monstro, não quis nem imaginar o que seria. Por fim, vendo que

estavam todos satisfeitos, puxei Maria pelas mãos e disse-lhes:

_ Se me derem licença, preciso descansar para estar bem disposta mais tarde. Não quero que

meu futuro marido me veja com olheiras durante a nossa festividade. Quero, também, agradecer a

minha querida madrasta por ter se empenhado tanto em organizar meu baile de noivado dessa noite.

Estou muito feliz porque, afinal, esse baile agora também é meu, não é, meu querido conde?

_ Sim, minha amada noiva. Não só o baile, mas tudo o que dentro dele estiver.

A condessa parecia que iria explodir de tanto ódio, mas não disse uma só palavra. Ela teria que

engolir que havia arrumado tudo aquilo para o meu noivado com aquela besta humana.

Dei um beijo na testa de meu pai, fingindo afeto e obediência. Não poderia deixar de dar

aquele tapa de luva. A condessa, parecendo não aguentar a cena, subiu em disparada aos seus

aposentos, sem dizer uma palavra a ninguém. Um inimigo eu havia vencido com a mesma moeda.

Ainda me faltavam dois.

Quando finalmente saí, carregando Maria pelas mãos e deixando para trás aqueles dois

leiloadores da vida humana, pude ouvir o conde falando com meu pai:

_ Sua filha é como um potro indomado, senhor Juan.

_ É, eu sei. Puxou o gênio da mãe.

_ Mas não tenho pressa. Colocá-la-ei do meu jeito. Disso o senhor não tenha dúvidas.

_ Vá com calma, meu caro amigo. Ela ainda é só uma menina.

_ Sim, eu sei. Mas meninas se transformam em mulheres, não é mesmo?

Os dois comemoraram com sonoras gargalhadas. Era detestável a maneira como se referiam a

mim. Maria seguiu-me, mas quase não conseguiu alcançar-me, pois acelerei os passos no corredor.

Ao chegar a meus aposentos, caí sobre a cama, deixando todo aquele horror transportar-se para o

peso em que se encontrava meu corpo. Maria, ao entrar e ver-me de bruços na cama, perguntou-me

curiosa, com ar de indignação:

_ O que houve, senhorita Anna? Não pude ouvir o que conversavam, pois falavam muito

baixo.

Eu estava enfurecida e, depois de ranger os dentes, virei-me para Maria:

_ Argh! Foi o conde, Maria, que pegou o diário de minha mãe. Ele agora me tem em suas

mãos. Também era ele quem entrava em meus aposentos durante a noite. A copeira colocou ervas

entorpecentes no meio das suas ervas. Ele a pagou para que fizesse esse serviço sujo. É por isso que

eu não o via invadindo meu quarto à noite. A condessa entregou-lhe as chaves do portão de entrada.

Eles são amantes; o conde mesmo me contou isso. Depois que ele visitava a condessa em seu leito,

saía e entrava em meus aposentos, descendo, então, pela trepadeira. Sabe Deus o que aquele doente

fazia comigo enquanto eu dormia.

_ Minha Nossa Senhora de Guadalupe! Isso é muito sério, senhorita Anna. Esse homem é

muito perigoso. Ele chega a ser diabólico. Que Deus tenha pena da senhorita. Mas uma coisa me

intriga:

_ E o que é, Maria?

_ Como esse peste pode ter entrado em seu quarto, se ele e seu pai chegaram juntos da

Inglaterra?

_ Não, Maria. Esse homem sem escrúpulos disse ao meu pai que ficaria um ou dois dias na

Inglaterra para resolver negócios. Mas ele não fez isso. Sabendo que meu pai ainda faria várias

paradas no caminho para resolver os próprios negócios, ele deixou a Inglaterra no mesmo dia para

não perder tempo. Foi assim que esse demônio chegou aqui antes do meu pai. Quando meu pai

chegou aqui, o conde demorou quatro dias a aparecer na cidade.

_ Santo Deus, minha filha! Esse homem tem pacto com o demo, pois parece fazer tudo de caso

pensado.

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_ Sim. Agora tenho que trancar minha porta sempre. E, com todo perdão, Maria: não tomarei

mais os seus chás.

_ Não se preocupe, senhorita. Não levarei como uma ofensa, pois também tomei do veneno do

conde.

_ Maria, aconteça o que acontecer, quero que saiba que, mesmo que pareça ser o pior, o que

farei será melhor do que ser vendida. Nunca me darei por vencida. Não serei objeto de pagamento.

Não sou escrava e, mesmo se o fosse, tenho sentimentos e sangro como todo mundo.

_ Senhorita Anna, saiba que sempre estarei do seu lado para o que for necessário. Mas, às

vezes, acho que deveria fazer o que lhe mandam. Será melhor e a senhorita não sofrerá tanto.

_ É melhor ceder ao egoísmo do meu pai e perder a minha liberdade? Nunca. Por que temos

que mudar por causa das pessoas e aniquilar a nossa essência? Se eu fizer isso, será como usar

viseiras para olhar sempre na mesma direção. Suponhamos que eu aceite os cortejos do conde e

ceda às sandices de meu pai. Ele paga a dívida? Sim. Mas fará outras mais. Não poderei ser

vendida outras vezes. Ele nunca aprenderá se tudo for do jeito que ele quer. Não sou mulher de me

render a um homem sem amor.

_ Mas se a senhorita não fizer o que lhe impõe, seu destino será cruel.

_ Meu destino não pode ser mais cruel do que ter que passar a vida toda ao lado de um homem

vulgar, que me trocará por uma esposa mais jovem assim que enjoar de mim. Tenho muitos sonhos,

Maria, e sei que nunca os realizarei. Então, que seja o que me foi imposto por Deus, e não pela

vontade de um homem comum.

_ Nunca conheci uma mulher tão destemida e com tanta determinação quanto a senhorita.

Lembrar-me-ei da senhorita pelo resto de minha vida. - deixou as lágrimas rolarem em suas faces,

emocionadamente.

_ Não chore, Maria! Preciso de terra seca para pisar. Se a senhora chorar, afundar-me-ei no

barro da sua desesperança.

_ Desculpe-me, senhorita Anna. Foi inevitável. Mas só em pensar que ficarei um dia sem a sua

companhia, já me dá um aperto no coração...

_ Não pense assim, Maria. Sei que ainda me olha como se eu fosse uma criança. Mas cresci,

graças à senhora e a tudo que tenho aprendido com a tradição. Agora desça, por favor: prepare-me

um banho e, se possível, algo para comer, pois ainda não comi nada desde a manhã. Por favor, se

puder, prepare uma emulsão para colocar na água do meu banho. Quero estar perfeita esta noite.

Agora vou tentar dormir um pouco, pois não quero parecer cansada para a hora do baile. Não posso

dar a eles o luxo de me verem com olheiras.

Depois que Maria saiu porta afora, fui para a janela meditar, contemplando a natureza. Vi

quando meu pai saiu de carruagem com o conde. Os dois pareciam estar alcoolizados. Em um

instante, perdi-me olhando Joseph. Vi quando Maria, carinhosamente, levou-lhe o almoço. Os dois

conversavam e sorriam, como se o mundo tivesse certo toque de magia. Então, finalmente percebi

que tinha algo muito mais importante a fazer do que me preocupar com as ninharias que

perturbavam minha mente. Soltei o coque, tirei os brincos e desci ao encontro daquele casal

perfeito. Maria, ao ver-me, afastou-se de Joseph, dizendo:

_ Santo Deus, menina! Não disse que ia tentar dormir um pouco? Eu ainda nem tive tempo de

preparar-lhe algo para comer.

_ Não tem nenhum problema, Maria. Só vim até aqui para repousar ao sol. Quero ficar com

uma cor rosada no rosto. Veja: trouxe até um manto para me deitar.

_ A senhorita vai deitar-se aqui fora? Não vai querer comer nada?

_ Pode me trazer aqui fora mesmo. Vou ficar aqui, sim, e tentar dormir debaixo daquela árvore,

pois ela me traz boas energias.

_ Que seja, então, como a senhorita deseja. - Maria saiu.

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Eu estava tranquilamente estendendo a manta no gramado quando ouvi a voz de Joseph

chamando-me:

_ Senhorita Anna!

_ Sim, Joseph. – disse-lhe, virando-me para atendê-lo.

_ Consegui sementes de girassóis e, como Maria contou-me que a Senhorita gosta muito desta

planta, gostaria de saber onde quer que eu plante as sementes.

_ Se não for muito, quero que o senhor me dê um pouco dessas sementes, pois quero levá-las

comigo. O restante pode plantar onde bem desejar.

_ Como assim? A senhorita Anna está pensando em nos deixar? Acaso irá fazer outra viagem

com Maria?

_ Não, Joseph querido. Em breve todas as suas perguntas serão respondidas. Por hora, apenas

faça o lhe pedi.

_ Sim, senhorita Anna. Perdoe-me pela intromissão.

Maria retornou, trazendo-me um pedaço de pernil e um copo de suco de melão. Enquanto eu

estava saboreando o meu quase desjejum, Maria e Joseph continuavam conversando afastadamente

de mim. Embora eles estivessem entretidos um com o outro, eu os observava atentamente. Então,

percebi que era a hora de intervir por aqueles dois que, a meu ver, eram feitos um para o outro.

Terminando, então, de saborear minha refeição, levantei-me e caminhei em direção a eles, que

se afastaram com a minha presença. Então, disse-lhes:

_ Sabiam que os senhores formam um belo casal?

Maria corou e Joseph abaixou a cabeça, sem graça. Porém, prossegui:

_ Ora, ora! Porque ficaram sem graça? O amor é isso: estar bem com quem nos damos bem.

Por que não pensam em se unir, já que ambos são sozinhos e desimpedidos? Nunca pensaram

nisso? Vou deixá-los pensando sobre o assunto.

Disse isso percebendo que os dois não conseguiam dizer uma palavra sequer. Em seguida, saí,

voltando para minha árvore. Não demorou muito para que o cansaço me levasse a sono profundo.

Tive um sonho muito estranho: uma grande ave pousava sobre o meu corpo nu e levava minha

alma, serenamente, para um lugar que mais parecia o paraíso. Devo ter ficado ali por muitas horas,

pois acordei com Maria sacudindo-me e pedindo para levantar-me. Senão, atrasar-me-ia para o

baile. Abri os olhos, meio atordoada, e fui logo dizendo:

_ Hã? O que houve, Maria?

_ Precisa acordar, senhorita. Já é tarde e tem que se banhar e se vestir para o baile.

_ Nossa, dormi muito, não foi?

Contei à Maria sobre meu sonho estranho. Ela o traduziu, dizendo que se tratava de uma ave de

rapina - o que queria dizer que alguém do meu convívio estava tentando me seduzir. Por fim, Maria

insistiu:

_ Levante-se, minha filha. Seu banho já está pronto, como me pediu. Coloquei rosas

vermelhas, que é para abrir o seu caminho do amor, e jasmim com alfazema, para aromatizar a

água.

_ Que bom! Assim me apaixono de vez pelo conde, que já está quase casado com meu pai.

_ Hã? Não entendi, filha. O que quis dizer dessa vez?

_ É que os dois estão tão unidos - por um elo que julgam ser eu - que só faltam confirmar a

união entre si. Fico tão emocionada que posso chorar agora mesmo. Mas creio que, se pararem para

pensar, o verdadeiro elo entre eles é a condessa.

Maria sorriu, mas me preveniu:

_ Não deixe que a ouçam falando assim, ou acharão que a senhorita não é uma pessoa normal.

Pois pensarão que a senhorita está falando da união entre dois homens.

_ E tenho que ser normal? Não me importa o que digam a meu respeito. O importante é que a

senhora tenha entendido o que disse. E se meu pai e o senhor conde não querem que boatos

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circulem em torno deles, então que parem de serem vistos juntos como um casal de namorados.

Pois hoje mesmo, mais cedo, vi-os bêbados, andando abraçados em direção à carruagem. Se algum

inquisidor os tivesse visto, por certo seriam chamados de sodomitas.

_ Só não deixe seu pai ouvi-la falando desse jeito. Senão, ele...

Interrompi Maria:

_ Senão, ele pode o quê? Pode bater-me, ofender-me, ignorar-me, ou quem sabe coisa pior?

Maria, ele já fez tudo isso e mais um pouco. Só está faltando cumprir o resto da missão.

_ Mas fico preocupada com o que pode lhe acontecer. Seu pai, se a ouvir falando dessa forma,

pode trancá-la em seus aposentos ou enviá-la para bem longe desta casa - como, por exemplo, para

um manicômio, onde a senhorita pode ser torturada constantemente por ser considerada louca.

_ Nossa, jura? Acredite: ele jamais faria isso. Pode ser que, depois do baile, ele me desse

alguma punição. Mas antes? Isso seria sonhar alto demais. Maria, Maria... Só está assim porque sua

cabeça está confusa com as coisas que lhe falei a respeito de Joseph. Sinto muito se a fiz ver o que

já está na frente dos olhos há muito tempo e que a senhora, por estar sempre tão ocupada com os

afazeres e comigo, não se dava ao luxo de enxergar. A senhora está amando... E não tem que ter

vergonha disso. Então, pare de usar subterfúgios para ignorar o amor que está sentindo por Joseph.

Maria, a senhora está fugindo de si mesma.

_ Não deveria ter falado comigo daquele jeito na frente de Joseph. A senhorita caçoou de mim.

O que ele irá pensar agora?

_ Não! Jamais tive a intenção de caçoar da senhora. Maria... A senhora está amando e está

sendo amada. Só não consegue perceber isso por estar relutando consigo mesma. Acha-se velha,

gorda e, na sua cabeça, o tempo já passou, não é verdade?

Ela confirmou positivamente com a cabeça. Prossegui:

_ Sei que a senhora está realmente preocupada comigo. Mas, conhecendo-me como me

conhece, sabe que não vou parar de falar o que penso das pessoas ou do que quer que seja. Então,

não fique usando o pretexto de que meu pai irá me punir por causa das minhas ideias, pois sabemos

que isso será inevitável futuramente. O que é importante agora é a sua felicidade com Joseph.

_ Imagine se uma mulher na minha idade tem o direito de amar de novo!

_ E por que não? Não vejo nada demais em duas pessoas maduras encontrarem entre si o

verdadeiro amor. A senhora está viva e ainda tem o direito de amar muito. Vá atrás do que lhe

pertence, mulher, e seja feliz. Faça isso sem olhar para trás, sem medo ou preconceito. E

principalmente: sem pensar em mim uma única vez na sua vida. Esqueça a questão de que Joseph

irá pensar mal da senhora. Na verdade, ele só está esperando que a senhora lhe dê uma chance para

que ele a faça feliz. Segure o seu homem! E nem pense em mim. Sabe muito bem que nesta casa a

minha missão já acabou.

Ela enxugou uma lágrima, pronta a rolar, e abraçou-me. Em seguida, respondeu-me:

_ A senhorita às vezes fala como uma mulher muito experiente. Se eu não a conhecesse, ficaria

confusa.

_ Como todas nós, mulheres, quando se trata de algo relacionado ao coração. As experiências

que trago são de minhas vidas passadas. E me diga só uma coisa: estou errada? A senhora tem

alguma coisa a perder? Vá viver com sua irmã, case-se e seja feliz enquanto pode. Sabe que ela lhe

está esperando. Também será bom para Joseph. Afinal, ele já está cansado de tanto trabalhar.

_ E se ele descobrir que sou uma bruxa e repudiar-me?

_ “E se? E se?”. Ora, Maria, deixe disso. Joseph é um homem maduro e experiente. Vai é

gostar daquela terra toda para plantar e cuidar. Agora devemos entrar, pois tenho que me preparar

para a primeira parte do meu plano.

_ Como assim? Que plano é esse?

_ Sinto muito, Maria, mas não posso dizer-lhe. Peço apenas que confie em mim.

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

154

Ela, então, não perguntou mais nada a respeito. Ao entrarmos, demos de cara com a

famigerada condessa, afoita com o restante dos preparativos, mas fingiu nem ter-nos visto. Virei-

me para Maria, perguntando-a se madame Hortência havia entregado também os novos vestidos.

_ Sim, senhorita Anna. Fiquei até sem jeito de ver tanta coisa bonita.

_ Ah! Então coloque o mais bonito esta noite e vá ter com Joseph.

Ela saiu completamente corada, sem nada mais a dizer.

Meu banho já estava pronto, esperando-me. Comecei, então, a despir-me serenamente. Toquei

a água com o dedão do pé e, finalmente, relaxei meu corpo naquele líquido purificador. Fechei os

olhos e ouvi quando a condessa entrou na ponta dos dedos e pegou a chave de minha porta,

trancando-me por fora. Sorri, pois já estava esperando que ela fizesse tal artimanha infantil. Ela

sabia que, se eu não comparecesse ao baile, meu pai ficaria furioso e punir-me-ia. Sabia, também,

que ele não faria escândalos e não subiria naquela noite ao meu quarto - o que lhe daria tempo de

voltar à cena do crime para colocar a chave em seu devido lugar enquanto eu dormia. Óbvia demais

e pouco esperta para mim. Terminei o meu banho, deitei-me na cama e fiquei lendo o restante do

meu livro, enrolada em um roupão de seda lilás. Maria bateu à porta.

_ Senhorita Anna, está tudo bem?

_ Sim, querida Maria, está. Tudo está como eu havia previsto. E você, já está pronta?

_ Ainda não, mas já irei me aprontar.

_ Ótimo! Joseph está lá no fundo, perto da floreira.

_ Vou terminar meus afazeres. Tem certeza de que conseguirá sair daí?

_ Claro! Assim que o conde chegar, farei a minha entrada triunfal.

_ Se é assim, descerei. Veremo-nos amanhã.

_ Obrigada, Maria, mas acho que ainda hoje nos veremos.

Levantei-me da cama e fui arrumar meus cabelos. Fiz um lindo coque e puxei algumas mexas.

Usei um conjunto de rubis que já estava separado. O mais difícil foi o espartilho, mas consegui,

com muito custo. Fiquei na janela, observando os convidados chegarem um a um. Já eram oito

horas quando o conde resolveu dar o ar de sua graça. A condessa e meu pai estavam no hall de

entrada, recebendo os convivas mais solenes. Ela olhou para cima e sorriu, como quem estava

vingada. Entrei e, calmamente, coloquei meu vestido. Vesti as luvas pretas, também de renda, e

ouvi quando a condessa, do lado de fora da porta, chamou-me:

_ Anna, seu pai pediu-me para vir apressar a senhorita. Mas é uma pena, não é? Porque vou

dizer a ele que não irá descer. Que está furiosa e que quase me agrediu. Agora, se me der licença,

vou para a minha festa. Que pena que você não poderá ver a cara de aborrecimento dele... Mas

tenho certeza de que verá amanhã. Durma bem, minha filha.

Não pude ver a face dela, mas sabia que estava rindo da suposta situação que ela pensava ter

causado. Esperei que ela descesse as escadas para terminar de me vestir. Finalmente, depois de me

arrumar, vesti o vestido negro de minha mãe. Olhei-me no espelho para ver como tinha ficado:

perfeito. Era um vestido negro todo de renda, com pequenas lantejoulas, que realçavam ainda mais

a exuberância do tecido. Sua saia era muito rodada, pois tinha sete véus, um sobre o outro. A blusa

deixava os ombros à mostra. Uma pequena rosa negra de veludo salientava-se no meio do busto,

prendendo o babado de renda.

Depois de terminar aquele ritual de vaidade, fui à mesinha de cabeceira e peguei a chave de

bronze que tinha mandado o ferreiro fazer. Abri a porta e, elegantemente, segui pelo corredor em

penumbra. Do alto da escada, pude ver muitos convidados. Minha vontade era de sair correndo para

o meu quarto, mas era tarde demais: um criado avisou que eu estava descendo. Todos olharam para

cima, boquiabertos. Meu pai e a condessa, que usava o vestido que encomendei de madame

Hortência, ao verem-me vestida de negro com os trajes de minha mãe, empalideceram

imediatamente. Pareciam ter visto um fantasma descendo as escadas. O sussurro foi geral, e muitos

disseram:

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Adriana Matheus

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_ Como ela se parece com Elizabeth!

Mediante o estado de catatonismo em que se encontrava meu pai, o conde tomou a decisão de

conduzir-me para o meio do salão, estendendo-me a mão para que eu acabasse de descer os

degraus. Todos abriram alas para que eu e o conde passássemos em meio aos convivas. Ele, então,

fez uma pequena observação:

_ Fui informado de que a senhorita não estava disposta. Juro que pensei que haveria de me

fazer esta desfeita.

_ Não estou compreendendo o que o senhor quer dizer com isso. Por que, afinal, eu lhe faria

uma desfeita? Creio que temos um acordo, não é mesmo? Saiba que o senhor está me ofendendo,

pois não sou uma pessoa que volta atrás com a palavra. Agora, responda-me, meu querido conde:

quem foi a pessoa maliciosa que lhe disse que eu faria uma desfeita dessas ao meu futuro esposo?

_ Não sei ao certo o que está acontecendo nesta casa. Mas, para mim, basta que a senhorita

esteja aqui para firmar seu compromisso comigo.

_ Concordo plenamente com o senhor. E espero que, daqui por diante, antes que o senhor ouça

alguma maledicência a meu respeito, procure saber primeiro se ela é verdadeira.

A valsa começou e o conde e eu demos início ao baile. Preferi valsar em silêncio. Não queria

muita proximidade com aquele homem. Ao terminar a música, meu pai veio pedir ao conde para

dançar a próxima valsa comigo. Imediatamente, ao ter-me em seus braços, ele me disse:

_ Esse vestido era de sua mãe! O que é que está tentando fazer, sua insolente? Saiba que

amanhã será punida por tentar desafiar-me.

_ Ora, meu pai, não estou lhe entendendo! Por que o senhor haveria de me punir, se lhe estou

obedecendo rigorosamente? O que tem demais eu usar o vestido de minha mãe? Acaso viu um

fantasma ou foi a sua consciência que lhe está pesando? Sinceramente, o senhor confunde-me. Mas

vou enterá-lo dos novos acontecimentos dentro de sua casa: estou usando este vestido velho de

minha mãe porque a sua queridíssima esposa roubou o meu e o está usando neste momento. Então,

vendo-me sem saída, decidi procurar por toda a casa algo apropriado para usar no baile e não ter

que decepcioná-lo com a minha ausência. Também quero preveni-lo de que, a partir de hoje, firmo

um compromisso com o homem que comprou todas as suas propriedades. Sendo assim, como ele

mesmo disse, como tudo o que existe dentro dessa casa, também pertenço a ele. Então, ressalto que

o senhor não tem mais o direito de punir-me, pois não lhe pertenço mais.

O ódio nos olhos do meu pai era visível, mas ele teve que se manter dançando comigo até que

a valsa parasse. Os musicistas deram uma pausa para que todos descasassem - o que foi um alívio,

pois meu pai estava apertando os meus braços com muita força.

Quando a música cessou, o conde veio em minha direção, dizendo:

_ Pensei que teria que esperar por mais uma valsa até poder tê-la em meus braços novamente.

Ainda não tive a oportunidade de dizer-lhe, mas a senhorita está lindíssima neste vestido.

_ Fico satisfeita em ver que agrado meu futuro esposo. Espero poder sempre agradá-lo.

_ Eu também, senhorita. Confesso que hoje, pela manhã, deixou-me furioso. Mas, depois que

estava só, percebi que nunca havia conhecido alguém com tanta personalidade assim.

_ É mesmo? E houve outras mulheres que o senhor também recebeu como pagamento?

_ Senhorita Anna, estou tentando dizer-lhe que estou completamente apaixonado. Na verdade,

nunca senti nada assim. Não deveria rejeitar meu sentimento. Pode ser perigoso.

_Para quem: para mim ou para o meu pai? O senhor vem me falar de amor sob imposições e

ameaças? Francamente, deveria tentar outra estratégia. Essa não funcionará comigo, conde. Aceitei

selar esta noite um compromisso com o senhor. Agora, não espere que eu leve este compromisso

adiante, e muito menos que eu lhe tenha algum afeto. Não me vendi, senhor conde, e jamais faria

isso.

_ E o que a senhorita pretende fazer? Fugir? Creio não ser uma boa ideia. Encontrá-la-ia

facilmente.

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_ Não sou mulher de fugir.

Meu pai se aproximou de nós e interrompeu aquela conversa - que estava ficando perigosa -,

perguntando ironicamente:

_ E então, estão se entendendo bem? Como está se comportando a minha filhinha, conde? Está

lhe dando muito trabalho?

_ De modo algum, senhor Juan. Sua filha consegue ser encantadora até mesmo quando tenta

não ser.

Um criado veio servir-nos uma taça de champagne. Isso desviou um pouco a atenção de meus

leiloeiros. O líquido efervescente desceu pela minha garganta e logo me surtiu um efeito

entorpecente. De imediato, senti-me tonta. Alguma coisa estava errada, porque minha visão

começou a ficar turva. Tentei manter-me ereta e pedi licença aos dois cavalheiros, pois precisava

tomar um pouco de ar. Fui, então, à varanda. As imagens rodopiavam como mariposas na luz.

Procurei por Maria. Precisava dela imediatamente. Até mesmo a luz do luar estava dando-me

náuseas. Olhei para baixo e a vi conversando com Joseph de mãos dadas, sentados discretamente

em um banquinho, na lateral do jardim. Embora ela estivesse plena de felicidade, precisaria

interrompê-la e pedir-lhe ajuda. Ela olhou em minha direção e fiz-lhe um sinal. Não pude perceber

se ela havia entendido o meu pedido de socorro, pois uma mão tocou-me o ombro. Logo que me

virei, a condessa foi falando, em um tom exasperado:

_ Não sei o que fez para sair de seu quarto, mas tenha certeza de que irei descobrir. Não pense

que se livrará de mim assim tão fácil!

Eu mal podia entender o que aquela louca estava me dizendo, pois as palavras que saíam de

sua boca pareciam destorcidas. Mas lhe respondi:

_ Não sei do que a senhora está falando! Tão cedo e já está em estado de ébrio? Que feio! O

conde não se sentirá à vontade com essa conduta tão vulgar.

Ela levantou a mão para me esbofetear. Foi quando o conde e a conteve, segurando sua mão. A

condessa olhou-o fulminantemente nos olhos, parecendo não ter aprovado aquela atitude de

“herói”. O cafajeste, por sua vez, disse em tom de ironia:

_ Acalmem-se, minhas queridas! Não briguem por minha causa. Prometo dividir a atenção

com as duas. Mas não quero que fiquem enciumadas e violentas uma com a outra. Não há

necessidade para isso, senhora condessa. Sabe muito bem que não quero que toquem em minha

futura esposa.

A condessa olhou-o de soslaio, furiosamente, e saiu como que pisando duro, deixando-nos a

sós. O conde olhou-me nos olhos e falou:

_ A senhorita está bem? Não quero que machuquem o brinquedinho que ainda não usei.

Não cuspi nas faces daquele homem nojento por um milésimo de segundo apenas. Mas resolvi

manter-me quieta. Então, respondi, fingidamente:

_ Sim, estou muito bem, graças ao senhor. Senhor conde, não sei o que há comigo, mas estou

me sentindo muito tonta. Desculpe-me, nunca me senti deste jeito.

Senti que iria cair. O conde amparou-me. Por fim, quando levantei a cabeça para agradecê-lo,

ele aproximou os lábios dos meus e disse, num tom que mais parecia um sussurro:

_ Calma, moça! Acho que deve ter se excedido no champagne.

_ Não me excedi em coisa alguma, conde. Não tomei mais que dois goles da bebida. Há

alguma coisa errada.

_ Por que não para de me chamar de senhor e passa a me chamar pelo meu nome, Albert?

Afinal, seremos marido e mulher muito em breve.

Tentei empurrá-lo, pois estava grudado em mim. Estava enfraquecida por causa da tonteira.

Ele continuou a me segurar fortemente:

_ Não seja tão arredia comigo. É melhor não fazer tanta força. E vá se acostumando com os

meus carinhos, pois não gosto de mulher puritana.

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Eu já não tinha mais reação. Meus membros estavam adormecidos. Então, o conde puxou a

minha cabeça para junto de si e beijou-me. Tentei esbofeteá-lo, mas foi em vão, pois ele segurou

minhas mãos. Depois de ter forçado aquele beijo, puxou-me, cambaleando para dentro do salão. Foi

logo pedindo a atenção de todos. Disse, então, em voz alta, batendo com uma colher em uma taça:

_ Meus queridos, hoje é um dia muito importante para mim, pois estou sendo integrado em sua

comunidade. E é com imenso prazer que estou pedindo em casamento a senhorita Anna Vladimir

Gondin, filha do senhor Juan Vladimir Del Prat.

O alarido de espanto foi geral. O conde prosseguiu, não me deixando dizer absolutamente

nada:

_ Senhorita Anna, presenteio-a com o anel real de minha avó. Que esta joia seja o elo entre

nossas famílias.

Todos aplaudiam e, quando o conde colocou finalmente o anel em meu dedo, caí em um

abismo profundo. Foi como se formasse na minha frente um enorme buraco negro. Não me lembro

de mais nada, pois desmaiei.

Horas depois, acordei em meu quarto, rodeada por várias pessoas. O doutor passava-me nas

narinas um líquido horrível para que eu despertasse. Maria estava ao meu lado e perguntou-me,

passando a mão pela minha testa:

_ Fique calma, minha filha. Estou aqui agora. Não a deixarei de novo, prometo.

_ Maria, o que houve? O que aconteceu comigo?

_ Fique quietinha. Alguém colocou um entorpecente na sua bebida. - disse ela, sussurrando ao

meu ouvido.

Fiquei quieta, esperando que Maria colocasse para fora toda aquela gente curiosa. Não vi o

conde, mas Maria depois me informou que ele havia ido embora. Quando o quarto já estava vazio,

tentei levantar-me, mas...

_ O que fizeram comigo, Maria? Não me lembro do que aconteceu. Eu estava me sentindo tão

bem. Só consigo me lembrar do beijo que o conde forçou-me a dar-lhe, e depois do anel em meu

dedo.

_ Meu Deus, ele fez isso? Então é como eu suspeitava. Foi o conde que colocou o entorpecente

em sua bebida. Ele queria fazer-lhe algum mal. A sua sorte foi não ter tomado todo o líquido que

estava em sua taça. Caso contrário, poderia estar acordando nos aposentos do senhor conde agora.

Mas quando a vi na varanda, percebi que havia algo de errado com a senhorita. Só sinto não ter-me

apressado em atendê-la quando me chamou.

_ Este homem é mais perigoso do que supúnhamos. Devo precaver-me contra ele de agora em

diante.

_ Sim. Não deve ficar mais sozinha com ele - pelo menos o quanto puder evitar.

_ Não se preocupe, Maria. Só temos o direito de errar uma vez, e já errei duas. A primeira

quando deixei minha porta aberta, depois de já ter encontrado minhas janelas destrancadas. E a

segunda foi aceitar uma bebida na presença do conde. Deveria ter desconfiado quando ele pegou a

taça, parecendo saber qual era a minha. O que farei, Maria? Estou me sentindo completamente

vulnerável nesta casa.

_ Não sei, minha filha. Não consigo pensar em nada para ajudá-la, a não ser em pedir-lhe mais

uma vez que fuja.

_ Não posso fugir, Maria. Para onde eu iria?

_ Para a casa de minha irmã, como já mencionei.

_ Maria, a senhora está se esquecendo de que o conde tem o diário de minha mãe. No diário

dela, há o mapa de como chegar até a casa de sua irmã. Não posso colocar aquele povo em risco

por minha causa.

Maria sentou-se na beira da minha cama, parecendo sentir-se impotente também.

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_ Esta noite direi ao seu pai que, devido ao seu estado, dormirei aqui com a senhorita. - disse

Maria, depois de muito pensar.

Em seguida, saiu e trancou o meu quarto pelo lado de fora, com a minha chave extra. Logo

depois que Maria saiu, percebi uma pequena bola de luz em um canto do quarto. Curiosamente,

levantei-me para ver de perto. Ao me aproximar daquela bola de luz, ela se materializou. Afastei-

me para trás, meio assustada. Vi uma senhora trajando um fino vestido de seda verde. Depois de

muito me olhar, ela me disse:

_ Desculpe-me por invadir seus aposentos, minha jovem. Mas estou aqui para preveni-la

quanto ao conde. Este homem não é quem todos pensam. Ele é um assassino e usurpador.

_ Sim, meu mentor espiritual já me disse isso. E quem é a senhora, por favor?

_ Sou a marquesa de Monte Carlo, mãe do verdadeiro conde de Monte Carlo. Este homem

assassinou o meu filho e o meu marido. Agora está usurpando o lugar deles. Tenha cuidado, minha

filha. Ele é mais perigoso do que a senhorita supõe.

Dizendo isso, o espírito desapareceu. Fiquei parada, em pé, no meio do quarto, sem saber o que

fazer. Minhas pernas começaram a tremer de tal maneira que me vi obrigada a voltar para a cama.

Fiquei encolhida e assustada, esperando que Maria retornasse.

Quando estamos nos sentindo coagidos, não conseguimos ver a solução para os nossos

problemas. De repente, senti as lágrimas rolarem-me nas faces. Queria ter um amigo para me

proteger. Queria colo de mãe. Sentia-me tão só! Embora estivesse preparada para enfrentar meu

destino, naquele momento a solidão tomou conta da minha alma. Parecia que meu espírito estava

envolto por uma grande escuridão. Meu coração estava cada vez mais apertado. Não tinha para

onde ir, correr, escapar, o que quer que fosse. Sem querer, blasfemei em voz alta:

_ Se eu morresse, seria melhor para todo mundo!

De repente, uma voz me respondeu ao ouvido:

_ Melhor para quem, Anna? Para você? E a pobre da Maria, que lhe cuidou com tanto zelo,

abdicando-se da própria vida? Está sendo egoísta e imatura, Anna! Esse é o erro de se saber o

futuro. Muitos acham que podem antecipá-lo ou modificá-lo. Acredite: acabam terminando no

abismo sem fim da escuridão imortal. Não vai querer isso para sua vida, Anna. Não passamos pelos

problemas da vida - são os problemas que passam por nós, ensinando-nos a viver. Então, devemos

viver de maneira que esses problemas sejam exemplos de como não procedermos de maneira

excêntrica e precipitada. Não posso permitir que siga seu destino sem ao menos aprender o dom da

paciência. Você tem que entender que é uma pessoa diferente. Estou muito decepcionado com

você. Saiba que as palavras nunca são totalmente jogadas ao vento. Elas podem ser ouvidas por

espíritos impuros, que podem vir atender o seu suposto desejo. Uma atitude precipitada poderia

prejudicar todos à sua volta. Se fizer o que disse há pouco, Maria seria colocada na rua e, com isso,

voltaria para a casa da irmã. Ela nunca mais veria Joseph. Lorenzo seria despedido e, com isso,

cairia nas bebidas e não mais se casaria com Samara. Esta, por sua vez, acabaria se tornando uma

prostituta para tentar se sustentar. Tereza e seu esposo seriam despedidos também e, como estão em

idade avançada, não arrumariam mais emprego. Com isso, a pobre netinha morreria de fome.

Tereza e o marido têm uma família que depende deles. Como percebeu, tem muita gente que

depende de você, Anna. Mesmo assim, teve um pensamento tão egoísta como esse? Não posso

acreditar no que ouvi, Anna!

Eu estava debulhada em lágrimas, mas respondi, entre soluços:

_ Perdoe-me, Heixe! Por favor, perdoe-me, meu amigo!

Porém, ele prosseguiu:

_ Não sou eu quem tem que lhe perdoar. É você mesma. Precisa parar de sentir pena de si

mesma. Levante-se desta cama e vá até o pequeno templo que sua mãe construiu. Prepare uma

poção, faça o ritual da chuva. Purifique sua alma e deixe que a chuva lave as mazelas da sua alma.

Agora vá e faça o que tem que fazer. Tenha cuidado apenas para que a condessa não descubra nada.

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Quando Maria voltou, contei-lhe o que havia acontecido. Ela fitou-me tristemente e respondeu:

_ Saiba que o seu mentor espiritual está coberto de razão, senhorita Anna. Esse foi o

pensamento mais egoísta que a senhorita já teve. Como acha que me sentiria sem a senhorita? Não

pensou nos sentimentos das pessoas que a amam de verdade?

Maria ajeitou um lugar no chão para dormir, sem dirigir-me a palavra novamente.

Depois que ela adormeceu, ainda fiquei um bom tempo acordada, refletindo sobre aquele

assunto. Muitas pessoas confiavam em mim, e quase coloquei toda a tradição a perder por causa de

um pensamento egoísta. Às vezes, ficamos cegos com nossa revolta e agimos de maneira insana.

Achamos que não temos nada mais a perder, mas esquecemos tudo e todos que nos cercam. Fui

uma tola por pensar tão levianamente. Ainda bem que tinha amigos no espaço para me auxiliarem.

O suicida não é somente aquele que se envolve com entorpecentes ou bebidas - estes se suicidam

lentamente. O suicida também é aquele que se anula espiritualmente, matando o seu aparelho. E era

o que eu ia fazer, caso Heixe não tivesse vindo em meu auxílio. Uma bruxa ou uma pessoa que

tenha dons especiais não pode jamais ter este tipo de pensamento, pois isso faz com que vá contra

as leis da natureza de Deus. Logicamente, o mesmo serve para todas as pessoas – mas,

principalmente, para todos aqueles que seguem uma tradição espiritual.

Fiz minhas orações e olhei para Maria, que estava deitadinha no chão somente para me

proteger. Como fui egoísta, Senhor, em dizer que sou sozinha... Depois de muito meditar sobre

minha vida, adormeci, deixando que meu corpo repousasse em sono profundo.

Quando acordei, o dia ainda não tinha raiado. Então, levantei-me bem devagarzinho e coloquei

o roupão, cutucando Maria bem de mansinho para que não se assustasse. Então, chamei-a baixinho:

_ Maria, Maria... Acorde, por favor...

_ Hã? Menina, o que faz fora da cama? Está bem? O que está sentindo? Meu Deus, dormi

demais, foi isso? - levantou-se de um salto só, com os olhos que pareciam dois pires de tão

arregalados.

_ Maria... Não faça tanto barulho... Calma, não estou sentindo nada, estou muito bem. Levante

um minuto e venha comigo. Quero que me mostre onde é o templo que minha mãe fez.

Ela levantou meio receosa e, parecendo não crer no que eu dizia, vestiu o roupão e saímos no

meio da casa escura, carregando um lampião que mal deixava enxergar os próprios pés.

Atravessamos todo o pátio do fundo da cozinha e chegamos ao porão, onde meu pai guardava

seus preciosos vinhos. Acendi outro lampião que estava pendurado junto à porta.

Maria retirou uma garrafa da adega. Então, como em um passe de mágica, abriu-se uma porta

secreta. Entramos e acendi mais dois lampiões que estavam pendurados. Todo o lugar ficou logo

iluminado. Parecia uma caverna mística. Fiquei extasiada e boquiaberta com o que vi.

_ Maria, minha mãe construiu isso antes de eu nascer? Como ela conseguiu fazer isso sem que

meu pai percebesse? Quem a ajudou?

_ Sim, senhorita Anna. Elizabeth construiu isso tudo com a minha ajuda e de alguns irmãos da

tradição, que vinham até aqui enquanto o seu pai viajava. Este local demorou algum tempo para

ficar pronto, pois foi feito parcialmente, nos intervalos e ausências do seu pai. Elizabeth era uma

mulher muito discreta e reservada. Por isso, foi fácil esconder a tradição de seu pai.

Depois de andar por todo o local e admirar tudo o que encontrei, disse à Maria:

_ Venha, ajude-me a lavar esse caldeirão. Preciso fazer um preparo para o ritual da chuva. Meu

primeiro equinócio será comemorado com a chuva no fim do outono.

_ Jura? E quando será?

_ Na próxima quarta-feira. A chuva será à noite. Devemos nos preparar para irmos à floresta.

Temos que nos preparar para a purificação do corpo.

_ Posso participar? Nunca fiz o ritual da purificação.

_ É claro que sim! Então, faremos juntas a poção.

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Maria lavou o caldeirão e a colher de pau. Decidi não usar o material que havia comprado:

aquele me serviria muito bem e já estava cheio de boas energias. Limpamos todo o ambiente nos

mínimos detalhes. Preparamos as ervas para o cozimento. Pegamos a imensa colher de pau e

mexemos a poção - as duas juntas, ao mesmo tempo. Durante o processo, dissemos:

_ Que o espírito da cura se reúna a esta essência, trazendo-nos paz, harmonia e forças para

que nosso corpo físico possa conseguir seguir a sua jornada.

Cantamos, também, naquela língua antiga. E rimos muito, passando energias positivas para a

essência. Rodopiamos e dançamos em volta do caldeirão, enquanto ele cozinhava a poção. As

chamas pareciam dançar conosco. A dança é, para nós, uma forma de libertação. Quando

dançamos, soltamos a alma e não pensamos em mais nada à nossa volta.

Talvez tenha sido um grande erro dançarmos naquela noite. Pois ficamos tão inertes que não

percebemos a presença silenciosa e maligna da condessa, que nos vigiava sorrateiramente. Ela

havia sido acordada pela copeira, sua cúmplice, que nos denunciou. A fumaça e a penumbra do

lugar não nos deixaram perceber sua presença. Ela ouviu tudo, atentamente, sobre as poções e o

ritual da chuva.

Eu e Maria parecíamos estar embriagadas pela essência que saía do caldeirão. As ervas eram

muito fortes, e o cheiro nos fez viajar. Acrescentei sálvia e óleo de girassol. Por fim, sentamos e

rimos muito, pois estávamos felizes e absortas. Tomamos o chá do poder e abrimos o nosso chácra

do conhecimento. O poder do chá era inigualável e, logo ao bebermos, sentimos toda a força do

universo nos cercando. Esse chá representa toda a força da mãe terra, a fonte de vida, o côncavo e o

convexo, o macho a fêmea. As duas forças uniam-se durante a ingestão desse chá. Seu poder de

cura era infinito. Mas o principal objetivo é curar a alma. Depois de muito meditarmos, disse à

Maria:

_ Acho que passamos da hora. Precisamos apagar o fogo e tampar o caldeirão. Lembre-se de

vir aqui e cozinhar as ervas até quarta-feira.

_ Pode deixar que ficarei atenta para não deixar passar do ponto.

Esse ritual tinha que ser preparado com muita antecedência. A erva devia ser cozida até

desmanchar, pois o banho era por inteiro e deveríamos deixar a terra consumir tudo o que saísse do

nosso corpo. Nesse ritual, damos à terra todos os nossos problemas, e recebemos da chuva toda a

sua energia renovadora. Pois a chuva traz tudo de bom que a terra nos dá. Isso se chama círculo

rotativo. A terra recolhe a água que sai do nosso corpo doente, e a chuva leva o que não presta para

o céu, reciclando essa energia e devolvendo-a em forma de energia positiva.

De repente, escutamos um barulho do lado de fora.

_ O que foi isso, Maria? - perguntei assustada.

_ Não sei, senhorita Anna. Espere aqui que irei ver o que é.

Senti um frio na barriga. Algo estava errado e havia ativado todos os meus sentidos. Comecei a

ficar com dores de cabeça. Foi aí que percebi a presença da condessa: ela havia estado ali o tempo

todo e, com certeza, eu estava em suas mãos. A partir daquele momento, eu sabia que seria

chantageada por duas pessoas ao mesmo tempo. Maria voltou e disse-me:

_ Não vi ninguém, senhorita Anna. Deve ter sido algum tipo de animal.

_ Pouco provável, Maria. Com certeza, foi a condessa. Meus sentidos de bruxa mostraram-me

ser ela.

_ A condessa? Meu Deus, ela fará chantagem com nós duas. O que faremos?

_ Devemos ter calma, para melhor raciocinarmos sobre o que fazer.

_ E o que faremos com essas provas? - disse Maria, apontando para tudo à nossa volta.

_ Eu poderia dizer que estávamos procurando um vinho raro para ofertar ao meu futuro marido

e, sem querer, descobrimos esse lugar.

_ E o que diríamos sobre o caldeirão e a poção que está ainda em cozimento?

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_ Sim, a senhora tem razão. Não conseguirei inventar uma desculpa plausível para essa

situação eminente. O melhor a fazer é esperar para ver o que a condessa fará.

_ Sim, mas até lá morreremos ansiosas, sem saber o que a condessa irá nos aprontar.

Sentei ao chão e coloquei as mãos no rosto, pensando em como achar um meio de driblar a

condessa, pelo menos até o dia do ritual da chuva. Sabia que, se eu quisesse usar meus poderes,

poderia pôr um fim naquilo tudo. Mas nunca poderia usá-los em benefício próprio, pois as

consequências seriam muito piores. Quando usamos nossos poderes para controlar alguém ou para

fazer um indivíduo esquecer-se de uma situação, além de gastarmos muita energia vital, podemos

passar por coisas horríveis. Como, por exemplo, ser atormentada dia e noite por espíritos levianos.

Isso pode resultar na loucura mental do corpo físico ou no suicídio do indivíduo em questão. Por

isso, disse à Maria, que estava se borrando toda, por medo da sombra que nos espreitou a noite

toda:

_ Não faremos absolutamente nada.

_ Como assim, nada?

_ É o que a senhora ouviu. Daremos tempo ao tempo e ele se incumbirá de nos responder.

Maria não disse mais nada, mas senti que estava aflita. Arrumamos as coisas, apagamos o fogo

do caldeirão e saímos, em silêncio. Passamos tranquilamente pelo pátio e pelos corredores. Foi

assustador pensar que poderíamos ser pegas de repente. Maria deixou-me na porta de meu quarto e

desceu. Foi uma madrugada muito difícil. Cheguei a pensar que não passaria daquela noite.

Arrumei-me e, em seguida, fiz minhas orações. Não poderia descuidar do espírito. E também não

estava mais em condições de dormir. Abri a janela e vi Joseph, já se preparando para cuidar do

jardim. Então, resolvi descer e fazer-lhe companhia. Abri vagarosamente a porta e saí, meio que na

ponta dos pés. Já estava no meio do corredor quando a condessa agarrou-me pelo braço e puxou-me

para um canto, interrogando-me:

_ Estava aprontando alguma coisa ilícita naquele porão. Pretendo descobrir o que é.

Percebi, então, que a condessa, por causa da fumaça, não conseguiu ver o que estávamos

fazendo e também não ouviu o que dizíamos. Então, respondi-lhe, tentando inverter aquela

situação:

_ Ah! Então a senhora não sabe? Se a senhora anda espionando as pessoas atrás das portas,

deveria saber.

_ Infelizmente, não deu para ver por causa da penumbra. Mas saiba: estou de olho.

Respirei aliviadamente, confirmando a minha atual suspeita de que a condessa não sabia de

nada. Tentei apressar-me para contar à Maria, aliviando-a daquele fardo desnecessário. Fui saindo,

mas a condessa, que ainda segurava meu braço, prosseguiu:

_ Antes de sair, terá que me contar: que lugar era aquele?

_ A senhora não sabe? É ali que queimam as ossadas dos escravos que morrem torturados.

Estou impressionada como a senhora, que vive nessa casa há tantos anos, possa estar tão alienada

deste fato tão corriqueiro. Agora, se a senhora duvidar da minha palavra, posso eu mesma levá-la

até aquele local. Ou melhor: peço a meu pai que lhe mostre o local pessoalmente.

_ Não será preciso. Saiba que sei de tudo o que se passa dentro da minha casa. – mentiu,

querendo parecer senhora absoluta de tudo.

Olhando-me bem nos olhos, ela prosseguiu com a conversa:

_ E o que estava fazendo junto à Maria àquela hora da madrugada?

_ Santo Deus, senhora condessa! Como a senhora é desinteressada e insensível! Ainda não

sabe que uma de nossas escravas perdeu um bebê por esses dias? Eu e Maria estávamos acendendo

velas e rezando para a pobre alma daquele pequeno inocente. A fumaça que a senhora viu foi

porque queimaram os ossos do pobrezinho ainda hoje. Cheire só o meu braço para a senhora ver

como estou cheirando a defunto queimado.

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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Disse isso estendendo e colocando meu braço nas narinas da condessa, que recuou e soltou-me,

finalmente. A tola mulher, além de apavorada, ainda disse, arrogantemente:

_ Saia de perto de mim, com esse cheiro de escravo queimado! Não faço questão de me

envolver em assuntos de escravos. Deixo isso para seu pai. Mas não me surpreendo em saber que

uma estúpida como a senhorita se envolva nesses casos medíocres, com esse tipo de gente.

_ Sabe, condessa, a senhora é mesmo uma pessoa muito doente. Por que não aproveita que o

médico está na casa e faz uma consulta? Mas não se esqueça de informar-lhe que sua doença é na

alma: chama-se preconceito.

A condessa empinou o nariz e saiu, remexendo as cadeiras, até entrar em seus aposentos. Por

minha vez, saí pelo corredor afora, saltitante como uma menina. Procurei Maria na cozinha e

contei-lhe tudo. Ela se arriou sobre uma cadeira e disse:

_ Definitivamente, a senhorita é mais cheia de artimanhas que o próprio demo!

_ Eu!? De maneira nenhuma, Maria. A condessa que é desprovida de neurônios - o que, para

mim, é uma salvação. Acredite, Maria: ninguém nos impedirá de realizar o ritual da chuva.

Eu já ia pegar algo para comer quando resolvi perguntar outra coisa à Maria, ainda sentada

naquela cadeira, sem conseguir dizer-me uma só palavra:

_ Ah! Já ia me esquecendo... A senhora retornou ao crematório para acendê-lo? Lembre-se de

que nosso cozido deve ferver diariamente.

Maria pareceu entender sobre o que eu queria dizer e riu a valer. Depois de degustar

tranquilamente meu desjejum, virei-me para Maria e falei-lhe:

_ Iremos ter com Joseph daqui a pouco - fique a senhora sabendo!

_ E para quê? No que a senhorita está pensando em envolver o pobre homem? – perguntou,

com medo do que eu poderia estar planejando.

_ Nada demais. Só vamos, de uma vez por todas, resolver a sua situação que está pendente com

ele.

Disse isso degustando uma deliciosa fatia de queijo. Maria, por sua vez, levantou-se

apressadamente da cadeira e começou a remexer nos objetos da cozinha, desconexamente. Até que,

não resistindo, perguntou-me:

_ Posso saber qual seria a situação pendente que tenho para resolver com o senhor Joseph?

_ Ora, Maria! Fracamente, não lhe cabe agora se fazer de rogada comigo. Sabe muito bem que

estou falando do seu afeto por ele. Não achou que eu não faria nada quanto a essa questão, não é

mesmo?

_ Para falar a verdade, já estava suspeitando que a senhorita fosse me colocar em mais uma de

suas confusões. Mas, dessa vez, imploro-lhe: não me faça passar por tamanha vergonha. Pois, caso

contrário, irá ver essa sua amiga aqui esticadinha ao chão. E creio que não quer isso, não é

verdade?

Ela apertava as mãos uma contra a outra, enquanto me olhava com um olhar suplicante,

esperando que eu lhe desse uma resposta a seu favor. Porém, respondi:

_ Se for para o seu bem, pode desmaiar à vontade! Quem sabe Joseph, ao vê-la esticada ao

chão, abaixe-se para beijá-la e já lhe faça um pedido de casamento ali mesmo.

Maria virou-se de costas para mim, benzeu-se e respondeu:

_ Perdeu foi o juízo de vez, viu!? Imagina só se irei permitir tamanho despudor!

_ Ora, então a amarro e pronto!

Percebi que Maria estava rindo baixinho, pois havia gostado da ideia de ser beijada por Joseph

- embora continuasse a manter aquela postura rígida. Enquanto ela ficava sonhando com o suposto

beijo dele, comecei a matutar uma forma de tirar Maria de toda aquela enorme confusão na qual eu

estava atolada até o pescoço. Podia-se dizer que eu estava em um beco sem saída. Mas não poderia

deixar minha melhor e única amiga ir direto para o poço, sem fundo, junto comigo. Depois de

muito queimar tutano e deixar meus cabelos todos enfumaçados, cheguei a uma real conclusão,

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O segredo dos girassóis

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finalmente: Maria deveria escrever urgentemente para sua irmã. Mas, como eu sabia que ela não

concordaria com o meu plano, teria, então, que eu mesma escrever a tal carta.

Meu pai e a condessa saíram muito cedo e, provavelmente, não voltariam tão rápido. Maria

disse para ele que eu ainda estava dormindo - o que me deu tempo suficiente para pôr o meu plano

em prática.

Naquela manhã, Tereza chegou um pouco mais tarde e parecia estar de mau humor. Pelo que

aparentou, não nos queria por perto. Mas ela normalmente já era assim: detestava invasores no seu

território sagrado. Porém, naquele dia, o mau humor imperou sobre ela. Eu e Maria saímos à

francesa, deixando a mulher com seus próprios demônios.

Do lado de fora, corri os olhos, tentando achar Joseph. Por fim, avistei-o cuidando das

magnólias. Olhei para Maria, dando-lhe um sorriso maroto, e saí correndo em seguida, para chegar

perto de Joseph antes dela. Maria tentou acompanhar-me, mas fui muito mais ágil. Quanto cheguei

à frente de Joseph, estava morrendo de rir de saber que Maria estava vindo toda afoita atrás de

mim. Joseph, parecendo perceber que tinha algo no ar, olhou para mim e correu os olhos para

localizar Maria. Ele, também num tom de riso, disse:

_ Senhoritas, onde pensam que vão desta forma aflita?

Em seguida, o homem levantou-se para nos cumprimentar melhor e se tornar ciente do que

estava acontecendo. Depois de olhar-nos dentro dos olhos, ele falou:

_ Em que posso ajudá-las? O que houve? Aconteceu-lhes algo?

Então falei, sem muito dar margens a outros comentários e perguntas, antes que Maria pudesse

interromper-me:

_ Querido Joseph, estou ciente de seus sentimentos por minha amada Maria. Quero que saiba

que é recíproco. Porém, ela é tímida demais para lhe dizer isso. Portanto, estou aqui, sendo uma

intermediária entre os dois.

Maria não sabia onde se enfiava, de tão envergonhada que a fiz ficar. Ela me beliscava e tentou

várias vezes tampar a minha boca. Mas, uma vez que comecei a falar, ninguém conseguiria

impedir-me de terminar.

Joseph olhava para Maria com olhos vidrados e cheios de lágrimas. O homem parecia estar

com aquele sentimento entalado no peito havia anos. Percebendo que ele não tinha coragem de

abrir a boca, prossegui:

_ E então, senhor Joseph? O que tem a me falar a respeito do que lhe acabo de dizer?

Ele girou o corpo de um lado para o outro, parecendo procurar algo nos bolsos de trás da velha

calça. Fiquei ali, esperando uma resposta, mas o pobre homem parecia tão preocupado em achar

sabe-se lá Deus o quê que me deixou ali, parada à sua frente, por vários minutos. Por instantes,

achei que havia cometido um grande erro, porque o homem não respondia nada e parecia ter

escondido o rosto debaixo do chapéu de palha. Olhei para Maria, que parecia estar ansiosa por uma

resposta dele. Então, resolvi arriscar tudo, antes que virássemos um fóssil humano, por causa de um

simples sim de Joseph para Maria. Imagine só minhas futuras gerações passando por ali, depois de

milhares de anos, e achando uma jovem bruxa e uma senhora petrificadas. Por certo, indagariam

entre si Nossa, o que será que transformou essas pobres mulheres em fóssil? E alguém estudioso

no caso responder-lhes-ia Foi a demora de um simples “sim” do futuro pretendente de uma delas.

Aquele pensamento fez-me rir sozinha. Portanto, tratei logo daquele assunto banal, dizendo:

_ Joseph, por céus, homem! Está entalado com um sapo, ou os comichões são por causa de

uma urtiga?

Fiz-lhe, então, uma simples pergunta, de maneira pausada:

_ O senhor gosta de minha governanta, Maria Peres? Sim ou não?

_ É que não entendi o sentido da pergunta.

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Sua voz era tremida e vi o quanto aquela conversa seria demorada e difícil. Meu Deus, pensei

comigo. Ou ele era um desprovido de inteligência ou era surdo. Ou ainda pior: estava se fazendo de

sonso mesmo!

_ Estou lhe perguntando se o senhor quer se casar com Maria, homem!

_ Bom, confesso que já andei escrevendo alguns versinhos para ela. Mas nunca me atrevi a ir

além disso, pois ela é uma dama de muitíssimo respeito.

Oh! Glória, meu Deus, até que enfim!, pensei. Não era muito, mas pelo menos ele havia dado

um sinal de vida. Aproveitando aquela oportunidade, Maria falou, por fim, porque parecia que

também estava engasgada e aflita por uma resposta daquele aprendiz de Romeu, confuso e tímido:

_ Ora, homem, e desde quando versos são sinal de falta de respeito? - ela colocou as mãos na

cintura e fez uma cara de brava.

Dirigindo-se a mim, ela disse:

_ Pense bem, senhorita Anna: passei esse tempo todo na desesperança de encontrar minha cara

metade, sendo que ela estava o tempo todo ao meu lado. Esse homem cabeçudo fez-me perder o

melhor tempo da minha vida só porque me julgava uma mulher acima dele. Imagine só: como

posso perdoá-lo por ter ficado solteirona esses anos todos?

Quem ficou de olhos arregalados desta vez fui eu, que fiquei admirada por ver a revolta de uma

mulher solteirona. Deus, que bom que não chegaria a tanto! Às vezes, o que o nosso destino nos

reserva é mesmo uma dádiva! Pois não me conseguia ver dando uma crise daquelas por falta de um

casamento. Céus! Depois de ter que pegar meu maxilar, que estava caído ao chão, falei a Joseph:

_ Bom, o que posso dizer, senhor Joseph? Depois de um desabafo desses, é melhor que o

senhor tome logo a atitude de pedir-lhe a mão.

_ Mas não pode ser assim. Tem que ser com jeito e...

Maria não deixou que o pobre homem, prestes a ser enforcado, dissesse uma só palavra:

_ Que jeito, homem? Acha mesmo que estamos em idade de esperar mais alguma coisa? Acha

que quero ser cortejada a essa altura da nossa história? Conhecemo-nos há mais de dez anos. Diga-

me: o que o senhor ainda não conhece da minha pessoa? Se tiver alguma dúvida em se casar

comigo, então não me merece. Mas se sente algum sentimento por mim, vá logo e se decida de uma

vez por todas. Não tenho mais a intenção de criar os netos da senhorita Anna.

Continuei recolhida à minha insignificância e de olhos bem arregalados. Por fim, disse,

humildemente:

_ Se o problema é a ocasião, pedirei permissão ao meu pai para que assemos um leitão com

direito a rodada de banjo.

Joseph, no entanto, fez uma pergunta que, embora parecesse um tanto irregular, era de se

esperar mediante a reação quase histérica de Maria:

_ Quero só perguntar uma coisa.

_ Lógico que sim, Joseph, mas que seja breve. - respondeu Maria, parecendo estar sem a menor

paciência.

O homem, tirando o chapéu da cabeça e torcendo-o nas mãos, levantou os olhos e, meio sem

graça, respondeu timidamente, parecendo saber qual seria a reação de Maria:

_ Acaso a senhora não estaria esperando criança, estaria?

_ Esperando o quê, seu cara de fuinha? O que está pensando de mim? Acha que sou sua

parenta por acaso? Imagine: esperando criança com cinquenta anos!

Na verdade, Maria estava com cinquenta e oito anos. Mas eu é quem não a contrariaria,

principalmente naquele momento tão solene para ela. Maria já estava saindo pisando duro quando

Joseph a segurou pelo braço e disse-lhe, olhando nos olhos:

_ Aonde pensa que vai a minha futura esposa? Não quero que a senhora me interprete mal, mas

a pergunta que acabo de fazer foi apenas para me certificar de que a senhora não havia feito nada

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de errado. Mas peço-lhe humildemente o seu perdão, pois procedi como um tolo machista, sendo

que a conheço há tantos anos.

Dizendo isso, Joseph puxou Maria pela cintura, dando-lhe um beijo apaixonado. Por minha

vez, afastei-me um pouco, deixando que aquele novo casal se entendesse sozinho. Estava feliz, pois

mais uma parte da minha missão estava cumprida.

Caminhei um pouco mais adiante e fui olhar o canteiro de tulipas. Estava quase me perdendo

em meus próprios pensamentos quando Joseph chamou-me.

_ Senhorita Anna, posso falar-lhe um instante?

_ Sim, Joseph, mas onde está Maria?

_ Foi para dentro da casa. Ela parece estar muito feliz, a senhorita não acha?

_ Joseph, parece que sim. E o senhor cuide bem dela, está me ouvindo?

_ Disso a senhorita não tenha dúvidas.

_ Confio no senhor e sei que fará muito bem à Maria. Mas, antes que o senhor se una a ela,

quero lhe falar algo muito sério.

_ Então diga, senhorita Anna. Afinal, queremos a senhorita como nossa madrinha.

_ Fico muito feliz, mas antes tem que saber algo sobre Maria e eu. Pois, como fui intrometida

em uni-los, sinto-me na obrigação de lhe contar sobre certos fatos.

_ Senhorita, vou deixá-la falar para não lhe parecer mal educado, mas já sei do que se trata.

_ Bom, Joseph, não sei se o que está pensando é sobre a mesma coisa que lhe contarei. Maria e

eu pertencemos a uma tradição milenar. Muitas pessoas têm certa dificuldade em aceitar nosso tipo

crença.

_ A senhorita quer me dizer que ambas são bruxas?

_ Sim... Mas de maneira alguma fazemos o mal aos outros, como nos julgam erroneamente.

_ Senhorita Anna, de maneira nenhuma tenho comigo o defeito de pré-julgar os outros. Sempre

respeitei todas as crenças porque trabalho com a natureza. Muitas vezes, por estar sempre em

contato com ela, já vi e ouvi coisas que nunca contei por medo de acharem que estou possuído por

um espírito maligno. Sei bem o que é guardar um segredo. Quem a senhorita acha que construiu o

esconderijo de sua mãe?

_ Foi o senhor, Joseph? Por que nunca me contou nada?

_ Como disse a senhorita, sou muito bom em guardar segredos. Sua mãe era uma pessoa

admirável! Confidenciou coisas que nunca contaria a ninguém. Ela estava sempre pronta a servir a

Deus e aos necessitados. Quando um empregado ou até mesmo escravo necessitava de seu auxílio,

ela enfrentava até mesmo seu pai. Nunca ouvimos um grito ou xingamento da parte dela como

ouvimos de sua madrasta. Muito pelo contrário: ela conseguia tudo com um sorriso e muita

gentileza. Por ter estado ao lado de uma pessoa tão fantástica, como poderia não aprender a

respeitar sua crença? Ao contrário do resto das outras pessoas, jamais fiz objeções ou repudiei o

que não conhecia. A experiência que adquirimos com o passar dos anos traz-nos sabedoria e

discernimento de como olhar para o que julgamos ser irreal e imaginário. Mesmo que Maria fosse

uma possuída - o que não é -, ainda assim a amaria do mesmo jeito. Aprendi que tudo tem jeito na

face da Terra. E, para a morte, cabe a Deus saber o que fazer.

Fiquei admirada ao ouvir tais palavras saindo da boca de um homem tão simples como Joseph.

Com isso, aprendi mais uma lição: não julgar ninguém pela aparência ou simplesmente porque a

pessoa demonstra-se tímida mediante tais situações. Digo isso porque julguei muito mal Joseph

quando ele aparentou-se em cima do muro, mediante a resposta que exigi que desse à Maria.

Depois de olhá-lo admiradamente, respondi:

_ Joseph, não sabe o quanto fico feliz por saber a sua maneira de pensar. Mas algo terrível está

para acontecer com Maria. Por isso, tenho urgência que se case com ela e vá para o norte, onde

estão os parentes dela. A menos, é claro, que o senhor tenha alguma objeção em ir morar na

floresta.

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_ Imagina, senhorita Anna! Será um prazer poder conviver com a natureza. Além do mais,

estou mesmo precisando descansar. Só não sei se serei bem recebido pela família dela!

_ Foi o que imaginei que o senhor pensaria. Não se preocupe, pois são pessoas fantásticas.

Com certeza, o senhor será muito bem recebido por todos. Falo assim porque tive o enorme prazer

de conhecê-los pessoalmente, quando eu e Maria passamos aquele fim de semana lá.

_ E as senhoritas, por que estão correndo perigo?

_ Porque o conde, com quem me obrigaram a firmar compromisso, tem em seu poder o diário

de minha mãe. Neste diário, ela conta tudo sobre a tradição, sobre a parceria dela com Maria nos

rituais, e sobre a futura herdeira - no caso, eu. Ela mencionou até mesmo os poderes que eu

herdaria dela.

_ Minha nossa, senhora senhorita Anna! Isso é grave. Esse homem não pode, de forma alguma,

casar-se com a senhorita. Com certeza fará da sua vida e a de Maria um verdadeiro inferno. Pode

contar comigo para o que der e vier a partir de agora.

_ Sei disso, Joseph. Por isso, hoje mesmo escreverei uma carta para a irmã de Maria. Quero

que os dois fujam daqui ainda no próximo final de semana. Agradeço-o imensamente pelo apoio

que me está dando.

Joseph respondeu-me um pouco apreensivo em relação à suposta fuga:

_ Não podemos fugir, senhorita Anna. Somos adultos e não fizemos nada demais. Não é

correto fugir como dois criminosos.

_ Joseph, sabemos disso. Mas, quando o conde revelar a meu pai quem foi a minha mãe e

quem sou, por certo ele culpará Maria e a entregarão à Inquisição. Agora não é hora de ter orgulho.

É hora de pensar somente em Maria e no povo dela. Pois, no diário de minha mãe, também há um

mapa ensinando o caminho até a casa da família de Maria. O certo seria que tentássemos encontrar

o diário e tirá-lo do poder do conde.

_ Tem razão. Devo pensar em minha amada e no bem estar de sua família. Mas como a

senhorita pretende recuperar o diário de sua mãe?

_ Isso o senhor deixe comigo.

Viramo-nos automaticamente, pois Maria chegou e interrogou-nos, toda desconfiada.

_ O que estavam tramando em minhas costas?

Rimos, pois sentimos o tom de ciúmes em sua voz. Contei-lhe, então, quase tudo que

conversávamos. Ela nos olhou matreiramente, suspeitando que não estivéssemos falando totalmente

a verdade. Porém, nada disse. Então, Joseph, percebendo aquele ciúme todo, abraçou Maria. Ela lhe

disse:

_ Ora, deixa de assanhamento, homem! Ponha-se em seu lugar.

Joseph riu às gargalhadas. Achou graça porque Maria mal havia se acertado com ele e já estava

enciumada daquele jeito. Depois de nos despedirmos dele, voltamos as duas para dentro de casa.

Pedi à Maria que cuidasse do cozimento das ervas, pois deveriam estar prontas para o ritual. Subi

para o meu quarto, pois precisava achar uma veste apropriada para que eu e Maria usássemos no

ritual. Infelizmente, não tinha nada apropriado. Fiquei imaginando onde encontraria algo.

Caminhei em direção à janela para abri-la e, ao olhar para baixo, vi que a carruagem do conde

estava parando em frente à entrada da casa. Fiquei imaginando o que aquele homem poderia estar

fazendo ali se os donos da casa não estavam presentes.

Não demorou muito e Maria subiu correndo para me avisar que o conde estava pedindo para

falar comigo imediatamente.

_ O que esse maldito ainda quer comigo, depois de tudo o que aprontou?

_ Não sei, senhorita. Mas, com certeza, não a deixarei sozinha com ele novamente.

Descemos juntas e de mãos dadas. Ao entrar na sala de estar, o conde estava me esperando e

veio todo faceiro ao meu encontro, dizendo:

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_ Senhorita Anna, fico feliz em vê-la de pé! E como foi que teve tão rápida melhora? O doutor

falou-me ontem que a senhorita estava muito debilitada e talvez não se recuperasse tão rápido.

_ Vai ver foi um engano médico, ou quem sabe um milagre divino!?

Ele se aproximou para beijar-me. Mas, graças a Deus, deu um passo para trás, porque Maria

entrou em sua frente. O conde olhou para ela, furiosamente, e disse:

_ Vejo que a senhora zela muito bem a minha noiva.

_ Por certo que sim, pois a criei como uma filha.

_ E a senhora e minha noiva vão sempre juntas a todos os lugares?

_ Sim. Essa também é uma das minhas funções nessa casa. Mas, acredite: faço isso por mero

prazer e amizade à senhorita Anna.

_ Acredito que sim. Mas andei investigando um pouco sobre a sua história e soube que a

senhora não é muito de frequentar a igreja, assim como a mãe da senhorita Anna. Não é mesmo,

minha noiva querida? Dizem que ela era uma mulher muito misteriosa e quase nunca era vista na

cidade. O gosto de sua mãe por coisas exóticas era muito suspeito, não? – disse, dirigindo-me a

palavra.

Por minha vez, não pude ficar calada e respondi:

_ Aonde o senhor conde está querendo chegar? Nós duas já estamos cientes de que o senhor

sabe do nosso segredo. O que o senhor quer realmente nesta casa a essa hora?

_ É por isso que gosto da senhorita, porque é uma mulher inteligente. Mas, já que tocou no

assunto, quero que peça à sua governanta que se retire da minha frente, pois tenho o direito de ficar

sozinho com a minha noiva.

No entanto, ressaltei:

_ Direito a que? De ficar com uma mulher em cuja bebida o senhor teve a coragem de mandar

que misturassem entorpecente para que assumisse um compromisso com o senhor, sem ao menos

saber o que estava fazendo?

_ Como a senhorita é esperta! Já que agora conhece como posso ser perigoso, poderia

simplesmente fazer o que estou lhe pedindo, ou vai querer que eu pegue esta maldita mulher e a

entregue à Inquisição agora mesmo? - disse isso, passando por trás de Maria e colocando um

punhal em sua garganta.

Gelei ao vê-la no poder daquele assassino e disse-lhe, suplicando pela vida de Maria:

_ Por favor, senhor conde, não machuque Maria. Ela é uma boa pessoa e não fez nada para o

senhor. Diga-me o que tenho que fazer para que o senhor nada faça a ela.

_ Agora, sim, parece que vamos chegar a um acordo. Peça à sua governanta que saia daqui e

acompanhe-me até onde estou hospedado.

_ Está bem, senhor conde. Vou com o senhor. Mas, por favor, liberte Maria agora.

Maria, ao se ver livre daquele homem, saiu correndo para o jardim, enquanto eu e ele seguimos

atrás. O conde estava falsamente abraçando-me, mas o punhal estava em minhas costas. Foi

quando, de repente, avistei a carruagem de meu pai, que estava chegando com a condessa e o padre

Ignácio. Nunca fiquei tão feliz por ver a condessa e meu pai e, principalmente, o padre. Logo que o

cocheiro abriu a porta da carruagem, padre Ignácio desceu e, parecendo perceber que havia alguma

coisa errada, perguntou:

_ Interrompemos alguma coisa, senhorita Anna? Não sabem que não fica bem que uma jovem

fique a sós com seu noivo na ausência de seus familiares?

Aproveitei aquela situação e corri para abraçar o padre, livrando-me, assim, daquele monstro.

O padre, parecendo perceber que algo estava realmente errado, falou ao meu ouvido:

_ Acalme-se, minha filha. Seja o que for que estava acontecendo, a senhorita agora está a

salvo.

Por fim, o padre Ignácio falou, dirigindo-se ao conde:

_ E então, meu filho, o que tem a me dizer sobre o que citei?

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_ O senhor tem razão, padre. Não deveria ter vindo aqui. Mas, realmente, não sabia que o

senhor Juan e a condessa não estavam em casa. Peço desculpas a todos pelo meu mau

comportamento, mas quero que saibam que foi sem querer. – disse, olhando para o meu pai e a

condessa, aparentemente atônitos.

Seguiram todos para dentro e fui atrás deles, acompanhada do padre Ignácio e de Maria. Padre

Ignácio, durante o trajeto, disse-me:

_ Quero que a senhorita vá à igreja e conte-me exatamente o que está se passando nesta casa.

_ Não está acontecendo nada, padre. - olhei para Maria, que ainda estava amedrontada devido

ao fato ocorrido.

Padre Ignácio, então, complementou aquela pergunta:

_ Então por que quando a abracei estava tão gelada?

_ Deve ter sido impressão do senhor, padre. Não há nada de errado comigo.

_ Está bem. Se não quer ir à igreja para se confessar, daremos um jeito para que me conte hoje

mesmo. Quem sabe descubro um jeito de ajudá-la?

Fomos todos para a sala de estar. Meu pai mandou servir um chá com bolo para o padre. O

assunto foi sobre os pregões do meu casamento. Eu, sentada ao lado do padre Ignácio, ali fiquei até

que ele se retirasse. O conde, no entanto, lançava-me olhares fulminantes. Até que, por fim,

resolveu acompanhar padre Ignácio e foi embora. Porém, padre Ignácio não deu muita importância

para o conde e deixou que ele fosse embora na sua frente. Meu pai ofereceu ao padre a carruagem

para levá-lo até a cidade. Acompanhei-o até ela. Foi aí que abri meu coração ao padre Ignácio,

dizendo tudo que estava acontecendo. Ele, depois de me ouvir atentamente, disse-me:

_ Minha filha, vou entender a sua história como uma confissão. Pois, caso contrário, estaria

pondo a sua vida em perigo. Tenha cuidado com esse homem, pois me pareceu muito perigoso.

Quanto ao diário de sua mãe, deixe comigo: darei um jeito para tirá-lo do poder do conde.

Beijei as mãos de padre Ignácio em forma de agradecimento.

_ Não tenho como agradecê-lo, padre! Mas como o senhor irá recuperar o diário de minha

mãe?

_ Não se preocupe com isso, minha filha. Também tenho os meus segredos e métodos para

conseguir o que preciso. Só lhe digo uma coisa: o diário de sua mãe não voltará para suas mãos. Ele

será destruído para a segurança de todos nós.

Dizendo isso e subindo na carruagem, o padre deu-me sua bênção e partiu.

Já dentro de casa, tentei respirar mais tranquila. Por fim, procurei por meu pai, que estava na

sala de estar com a condessa.

_ Pai, posso ter uma conversa em particular com o senhor?

_ Pode dizer-me o que quiser na frente de minha esposa, pois nada tenho a esconder dela.

_ Quero pedir permissão ao senhor para matar um leitão e fazer uma rodada de banjo esta

noite.

_ E para que devo dar permissão para este evento? O que está querendo comemorar?

_ Nada demais, pai. Mas, como fiquei noiva e os criados não puderam participar, quero dar a

eles a alegria de também terem uma festa.

A condessa, ruim a valer, disse:

_ Era só o que nos faltava, Juan! Sua filha agora, além de andar com indigentes, quer dar uma

festa para os criados.

Ignorei o que ela dizia e prossegui:

_ Pai, é aniversário de Maria. Queria dar-lhe esse presente. Não negue isso a ela, que sempre

lhe foi fiel.

_ Está bem, mas que limpem tudo quando terminarem. E diga-lhes que fui eu que dei

autorização, mas que não se habituem com isso.

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A condessa fuzilou-o com os olhos e saiu em direção ao quarto. Imediatamente, corri até Maria

para contar-lhe a novidade. O resto, dali para frente, seria com ela. Depois de ter contado a ela

sobre o que padre Ignácio prometeu-me que faria, dei-lhe um beijo na testa e fui para o meu quarto.

Tranquei a porta pelo lado de dentro. Fiquei horas em pé, ali, encostada nela. Senti o suor

escorrendo frio na minha testa. Era como se eu estivesse vivendo tudo novamente. Não sabia o que

fazer para me livrar daquele homem perverso e matreiro. E o que era pior: com poderes para

condenar um ser humano pelo mais horrível crime que ele não houvesse cometido. Pela primeira

vez em minha vida, senti o cheiro da morte. Era como se todas as minhas ancestrais estivessem ali,

tentando dizer-me como era o medo e a dor que sentiram através daquele cheiro de cipreste que

estava no ar. Eu tremia tanto que dava para ouvir meus dentes batendo. Fiquei em estado

catatônico, encostada na porta do meu quarto.

Fui interrompida em meus pensamentos por Maria, que batia levemente à porta. Virei-me para

abri-la. Por fim, depois de fitar-me, ela disse:

_ Em primeiro lugar, quero agradecê-la por tudo que fez por mim e por Joseph. E em segundo

lugar, quero dizer-lhe que entenderemos se a senhorita não descer para a festa, pois dado tudo que

fez por nós e a situação que viveu hoje, não é justo que se exponha ainda mais.

Não pude responder-lhe porque a condessa entrou em seguida e logo foi dizendo:

_ Sabia que encontraria as duas feiticeiras juntas, tramando algo contra a moral e os bons

costumes.

Gelei ao ouvi-la falar daquele jeito. Não podia ser que ela também soubesse do meu segredo e

de Maria. Por fim, respondi, fingindo apatia:

_ Não estamos tramando absolutamente nada. Estávamos só conversando coisas que não lhe

dizem respeito. E de onde foi que a senhora tirou essa história louca de que somos feiticeiras?

_ Ah, claro! Estavam combinando com qual traje elegante irão à festa dos plebeus, que

resolveu dar para essa gente imunda.

Naquele momento, Maria tomou a palavra e, pela primeira vez em sua vida, enfrentou a

condessa, exigindo respeito:

_ Senhora condessa, sempre lhe tratei com o devido respeito, embora não merecido. Mas não

vou mais permitir que trate meus amigos desta forma, sejam eles quais forem.

_ Insolente! Ponha-se no seu lugar e só se dirija a mim quando eu lhe der permissão. Pois saiba

que, para mim, sua festinha medíocre só será realizada porque meu marido não tem noção do

ridículo. Caso contrário, ela nunca se sucederia. Ande, vá, passe da minha frente! Volte para o seu

lugar, junto aos seus e aos seus afazeres de criada.

Dizendo isso, a condessa foi saindo porta afora. Percebi, então, que Maria não estava no seu

melhor dia e que, a qualquer momento, poderia pôr tudo a perder por causa de alguém que não

valia a pena. Segurei sua mão no exato momento em que ela agarraria os cabelos da condessa. A

condessa virou-se para trás e, parecendo não perceber nada, disse:

_ Ainda esta aí, criatura inútil? Quer que me queixe com Juan? Posso dizer que nada faz além

de fuxicar o dia todo, e que já está velha e caquética para dar conta do serviço. Por exemplo: uma

boa governanta não deixaria seus subalternos tão relapsos. Veja todo esse pó! Esse quarto está

parecendo uma pocilga. Não que ele não seja o tipo de ambiente adequado para a minha enteada. -

olhou para mim com ar zombeteiro, tentando tirar-me do sério - o que quase conseguiu.

_ Se inventar qualquer coisa que seja contra Maria, terei que expor suas andanças obscuras na

ausência de meu pai. Garanto-lhe que provas e testemunhas não me faltarão.

_ Está me ameaçado, criatura dos infernos?

_ Pode ser que sim, pode ser que não... Só irá depender da forma com que a senhora procederá.

_ Ainda vou conseguir provas para entregá-la à Inquisição e terei o maior prazer em vê-la

morrer queimada.

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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_ Não duvido! Pessoas como a senhora fazem qualquer coisa para calar a boca da verdade.

Mas está se esquecendo de uma coisa: adultério também é considerado um crime hediondo pela

Inquisição. O inquisidor pode vê-la como uma possuída pelo demônio - o que não é nenhuma

novidade. Por que a senhora não para de insinuar coisas sobre mim e Maria e vai logo ao que

interessa?

_ Ainda não tenho provas, como disse, mas tenho desconfiança de que está envolvida com

bruxaria e artes do demônio.

_ E o que a faz pensar desta forma?

A condessa enfiou a mão no seu decote e tirou um medalhão. Ao ver aquilo, empalideci. No

dia em que fui ao quarto de minha mãe, trouxe junto com o diário alguns pertences dela. Junto

deles estava aquele medalhão que, de alguma maneira, havia parado nas mãos da condessa. Olhei

para Maria, que estava totalmente pálida também. Então, fingindo uma falsa frieza, respondi:

_ Onde foi que a senhora achou esse medalhão e a quem ele pertence?

_ Interessante, não é? Achei aqui em seu quarto. Então, isso quer dizer que só pode pertencer a

uma das duas. – disse, suspendendo o medalhão na mão.

_ Então isso quer dizer que a senhora invade o meu quarto na hora em que bem entende? Saiba

que este medalhão não me pertence e que pode muito bem ter sido a senhora que o colocou aqui

para me acusar levianamente.

_ Levianamente ou não, vou conseguir provar que a senhorita está envolvida com a arte do

demônio. Este medalhão é uma prova disso.

A condessa, então, virou-se novamente em tom de arrogância para Maria, dizendo:

_ Ande, criada! Não fique aí, em pé, como um dois de paus. Siga-me. Tem muito serviço a

fazer. Caso contrário, não poderá participar da sua festa de plebeus.

Em seguida, para me perturbar mais um pouco, ela falou:

_ Até breve, minha enteada querida. Em breve irei vê-la queimando no inferno, onde é o seu

lugar.

_ Não se preocupe. Estarei lá esperando pela senhora, que também é vista pela Inquisição

como uma discípula do demônio.

_ Então agora também está me acusando levianamente?

_ Não. Só estou mostrando que, em questão de pré-julgamento, o inquisidor, a Igreja e o povo

veem-nos de maneira semelhante. Estamos caminhando para a mesma fogueira. Se tivermos sorte,

queimaremos juntas.

Ela bufou como um touro selvagem. Eu detestava ter que agir do mesmo modo que ela, mas

era a vida da minha amiga que estava por um fio. Maria seguiu-a para não mais causar confusão.

Pude ouvir os gritos histéricos da condessa com Maria no corredor.

Minha vida estava parecendo um pesadelo. Botei as mãos no rosto, sem saber que rumo tomar.

Precisava ter forças para mim, para Maria e para todos que me cercavam. Não aguentava mais ficar

trancada naquele quarto, sem nada para fazer. Pelo jeito, não poderia participar da festa de noivado

de Maria e Joseph, para não levantar suspeitas de que ambos ficariam comprometidos. Pois, para o

meu pai, a festa era para comemorar o aniversário dela. Fiquei andando pelo quarto, de um lado

para o outro, como uma barata tonta, sem ter o que fazer. Até que Maria voltou, trazendo Joana e

também um balde de água para eu tomar banho. Maria parecia ter adivinhado que eu precisava

relaxar e, logo após Joana sair, colocou na água da tina um líquido que, segundo ela, far-me-ia

relaxar completamente. Enquanto me despia para submergir dentro daquele líquido, ela falou:

_ Se não fosse pela senhorita, hoje, por certo, eu teria perdido as estribeiras. Já não aguentava

mais vê-la ofendendo a senhorita e eu daquela forma.

_ Percebi, Maria. Só que teremos que ter muita cautela de agora em diante, ou poremos tudo a

perder. Preocupo-me contigo, pois tem muito mais a perder do que eu.

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_ Não diga uma tolice dessas. Ambas temos muito a perder. Só não sei se não farei um feitiço

para me vingar da condessa, pois ela conseguiu hoje me tirar do sério.

_ Não diga isso, Maria. Sabe que não deve criar energias negativas em volta da senhora. Limpe

seu coração. Não desperdice o poder da magia com uma pessoa tão medíocre como a condessa,

pois não vale a pena. Lembre-se de que temos o livre arbítrio, e essa escolha é somente sua.

_ Sei disso. Mas, se temos o livre arbítrio, por que ela não escolheu o lado bom e menos cruel?

_ Tudo bem, então. Concedo-lhe a permissão para usar apenas um pequeno feitiço para dar à

condessa uma lição. Mas tem que me prometer que me dirá o que é.

_ Ainda pensarei o que será, mas lhe direi, com certeza. Agora preciso descer, ou terei que

fazer um chá para a senhora. Seria tão bom se pudesse fazer um dos meus preparos especiais...

Daqueles que fazem pessoas como ela dormir para sempre!

_ Maria! Nem brinque com isso. Poderíamos ser jogadas em óleo fervente só de ouvir-nos

dizer tal barbárie.

Ela saiu, rindo como uma bruxa que era. Fiquei pensando, quando ela fechou a porta, no

quanto uma pessoa sozinha pode contaminar tudo de bom ao seu redor. A condessa despertou em

Maria o seu lado negro e perverso e, mesmo que ela nunca colocasse em prática, já havia sido

contaminada. Se isso acontecesse com outra pessoa de caráter fraco, com certeza ela teria criado

uma raiz maligna em seu coração.

Adormeci profundamente dentro daquela água quentinha e relaxante. Despertei, assustada,

com uma voz rouca falando muito próxima ao meu ouvido:

_ Que pele macia, senhorita Anna! Aposto que estava sonhando comigo.

Dei um salto dentro d’água, tentando esconder-me daquele invasor.

_ O que está fazendo aqui, senhor conde? Como se atreve a invadir a privacidade de meus

aposentos?

_ Não consegui resistir quando ouvi a senhora Maria comentando com o jardineiro que a

senhorita estava no banho. Aproveitei-me da oportunidade de todos estarem entretidos com os

preparativos da festa e subi para vê-la em seu estado natural. Confesso que não poderia ter uma

visão melhor, depois de uma noite tão estafante como a de ontem e um dia tão decepcionante como

o de hoje.

_ Saia daqui agora ou chamarei meu pai para retirá-lo pessoalmente!

_ Senhorita Anna, seu pai tem dívidas muito altas comigo. Se vier atender seus apelos de

donzela em perigo, por certo fará olhos e ouvidos de mercador. E ainda tem um outro fator: por que

não trancou a porta de seus aposentos? Por certo estava esperando que eu subisse. Ninguém

acreditará na senhorita. Então, só lhe resta ser boazinha.

Ele colocou a mão dentro da banheira, tocando meu corpo nu. Senti-me congelar dentro da

água quente. Meu fôlego estava se esvaindo.

_ O senhor é um crápula e enoja-me.

Ele segurou meu rosto com toda a força, deixando-me completamente sem nenhuma reação.

Naquele momento, a condessa entrou no meu quarto e flagrou-me no exato momento em que o

conde tocava-me intimamente. Definitivamente, aquele não foi um bom dia para mim. A condessa,

usando de suas ironias vulgares, disse:

_ Ora, ora! Mais que cena mais fascinante e romântica. O jovem conde e a bruxa, juntos em

um lânguido caso amoroso. Imagina só se não é a mesma bruxa que anda me desafiando e me

acusando de leviandades! O que pensaria seu pobre pai se entrasse neste exato momento? Por certo,

não ouviria nenhum argumento notório.

_ Não é o que está pensando. – eu disse, tentando afastar aquele homem, que não saía de perto

de mim.

_ E como sabe em que estou pensando? Ah! Havia esquecido: também lê pensamentos, não é,

bruxa maldita?

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Levantei-me da banheira, sem me preocupar com minhas condições de nudismo. O conde

olhou-me como um cão cheirando o cio. A condessa, com desprezo. Peguei a toalha e disse-lhes:

_ Saiam os dois do meu quarto, agora! Antes que eu comece a gritar por socorro! E garanto

que será muito agradável ver os capatazes de meu pai tirando-os daqui para fora aos safanões.

_ Se sua madrasta não nos tivesse interrompido, teríamos nos divertido muito. – disse o conde,

dando uma gargalhada que mais parecia ser um eco vindo do inferno, enquanto se retirava dos

meus aposentos.

A condessa seguiu-o e parecia haver cumplicidade entre aqueles dois a respeito daquela

situação. Fechei a porta - com chave desta vez - e pude ouvi-los do lado de fora.

_ Espero que tenha conseguido pelo menos fazer seu trabalho decentemente.

_ Se a senhora não tivesse chegado tão em cima da hora e pudesse ter guardado sua

curiosidade, por certo eu teria ido até o fim.

_ Ela não cederia assim tão fácil.

_ Não mesmo? Não conhece os meus métodos de persuadir uma dama?

_ Hum! Por certo não foram tão eficazes.

Depois de um tempo, não consegui ouvi-los mais, pois se distanciaram a caminho das escadas.

Mas de uma coisa estava certa: os dois estavam juntos naquela trama. Ambos davam-me náuseas.

Arrumei-me rapidamente, sem dar importância ao luxo. Coloquei apenas um vestido de renda

branca e um xale bege para proteger-me do frio da noite. Desci as escadas, com medo de ser

recepcionada pelos dois crápulas no meio do caminho. Corri para os aposentos de Maria, que

estava se aprontando para a festa.

_ Senhorita Anna! Não deveria estar aqui. É muito arriscado, depois de tudo que passou hoje.

_ Arriscado é ficar sozinha no meu quarto. Não faz ideia do que tive que passar até decidir

estar aqui agora.

Contei à Maria tudo que havia ocorrido.

_ Então, senhorita Anna, não saia de perto de mim. Se possível, durma aqui hoje.

Definitivamente, temos que dar uma lição em sua madrasta. Ela não pode continuar do jeito que

está, pensando que pode fazer o que quiser com todas as pessoas.

_ Olhe, Maria, até agora tenho escondido da senhora o meu plano. Mas, pelo que vejo, terá que

estar ciente dele para também poder se defender. Preste bem atenção, pois não quero que tenha

nenhuma dúvida. E quero que saiba que essa é a minha decisão final. Joseph está apoiando.

Portanto, só falta que a senhora se entere do meu plano agora.

Expliquei todo o plano à Maria, que me ouviu atenta. O plano era o seguinte: Joseph esperaria

por Maria na saída do bosque dos mortos, enquanto eu e Maria faríamos o ritual da chuva,

normalmente. Assim que o ritual terminasse, ela sairia e se encontraria com Joseph no local

combinado. Eu, porém, ficaria no lugar onde realizaríamos o ritual da chuva. Depois de limpar

tudo, rasgaria minhas vestes, jogaria sangue de galinha em cima de mim, e fingiria um desmaio.

Assim, quando o conde, a condessa e meu pai chegassem com a milícia, pensariam que fui vítima

de um ritual de magia negra. Fingiria estar tendo convulsões até que eles me levassem em

segurança para casa. Quando lá já estivesse, daria um jeito de tomar um remédio que eu mesma

haveria de preparar para que dormisse até o dia seguinte - o que daria tempo de Joseph e Maria

escapar. Quando eu acordasse, começariam as interrogações e eu diria que não conseguia me

lembrar de absolutamente nada. Diriam que eu estava sob influência demoníaca e chamariam por

padre Ignácio. Então, eu contaria todos os fatos a ele e pediria que ele dissesse que a única solução

seria que me internassem em um convento, em São Francisco, onde eu poderia cumprir o restante

do meu destino.

Logicamente, não diria que Maria era a culpada. Eu diria a todos que ela fugiu com Joseph

porque ambos estavam com medo e não queriam compactuar comigo naquele tipo de insanidade.

Maria, depois de ouvir-me atentamente, falou:

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_ Esse seu plano é muito arriscado, senhorita Anna. E pode não funcionar da maneira como a

senhorita imagina. E quanto ao diário de sua mãe? E se padre Ignácio não conseguir recuperá-lo?

_ Já pensei nisso também, querida Maria! Esse será o plano dois. Caso isso ocorra, direi a

todos que fiz tudo porque estava influenciada pelas palavras do livro. Minha mãe há de me perdoar

por essa mentira, mas tenho que encontrar o meu grande amor e não posso, de forma alguma,

deixar que me obriguem a casar-me com aquele assassino.

_ Vejo que a senhorita pensou em tudo mesmo! Mesmo assim, ainda é arriscado deixá-la com

esse homem e sua madrasta. Não sei como Joseph pôde aceitar fazer o que a senhorita lhe pediu.

Ambos perderam a noção do real perigo, é? Vou procurar Joseph imediatamente e cancelar isso

tudo.

_ De jeito nenhum! Fará tudo como o combinado e fugirá no dia do ritual da chuva - amanhã.

Confie em mim, Maria, tudo dará certo.

_ Senhorita Anna, e se não acontecer assim como esperamos? Confio na senhorita, mas não

confio no diabo e nas pessoas que são usadas por ele.

_ Tenha calma, minha amiga. Acontecerá exatamente do jeito que estou planejando, acredite!

Preparei um sortilégio do tempo que fará tudo acontecer como quero. Agora, deixe-me vê-la.

Hum... Está linda! Joseph é mesmo um homem de muita sorte.

Dei-lhe um beijo e abracei-a muito forte, pois estava chegando a hora de nos despedirmos de

nossa amizade. Maria percebeu isso em meu abraço e chorou. Porém, sequei suas lágrimas com a

ponta dos meus dedos e disse-lhe:

_ Seja forte, mulher! Escolhi esse destino. Sei que o que estou fazendo é errado, pois estou

antecipando-o e interferindo no tempo e no espaço. Mas isso é o melhor a fazer. Caso contrário, a

senhora será crucificada pela Inquisição.

Depois de dito isso, acompanhei-a até o jardim, onde Joseph a esperava. Todos celebraram

contentes, sem saberem de nada. Às vezes, percebia no olhar de Maria certa tristeza. Mas o restante

da noite foi muito tranquila. A música durou até alta madrugada. Samara, que estava presente com

a mãe, fez-me companhia o restante da noite, porque Maria tinha que dar atenção aos seus

convidados.

Maria seria muito feliz ao lado de Joseph. Ela iria se casar com um homem pobre, mas que

pôde escolher. Não seria uma união baseada em imposições ou chantagem. Estava muito feliz por

minha amiga. Ela, definitivamente, merecia ter um pouco de felicidade.

Não conseguiria me ver jamais ao lado de um homem por conveniências. O simples fato de

pensar que poderia ser tocada todas as noites por alguém pelo qual não sentia absolutamente nada

me embrulhava o estômago.

Às três da madrugada, a festa cessou e todos se retiraram para suas casas. Alguns criados ainda

ficaram ajeitando tudo, para deixarem tudo em ordem para o dia seguinte. Eu e Maria fomos para

os aposentos dela. Naquele dia, dormi no quarto de Maria para evitar novos contratempos.

Confesso que foi a melhor noite que já tive em toda a minha vida. Quando amanheceu, Maria

levantou-se e não quis me acordar. Foi cumprir seus afazeres. Seria uma semana longa para ela.

Às nove horas, levantei-me, vesti-me e fui à cozinha para comer alguma coisa. Percebi que

todos estavam muito felizes e Tereza cantarolava. A festa havia surtido um efeito positivo no

coração dos criados. A copeira, ao ver-me, saiu de mansinho. Percebendo que ela iria fazer alguma

coisa, segui-a. Não estava enganada: encontrei-a junto à condessa, levando informações sobre mim.

Cheguei de mansinho por trás das duas e falei:

_ O que a senhora está ganhando em dar informações sobre mim à senhora condessa e ao

conde? Sei muito bem o que a senhora fez. Sei que colocou entorpecentes na minha bebida.

As duas não souberam o que me responder. Prossegui:

_ É assim, condessa, que a senhora consegue informações a meu respeito? A senhora usa de

métodos baixos, subornando essa pobre infeliz. Mas diga a ela que, quando ela não tiver mais

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nenhuma utilidade para a senhora e o conde, vão descartá-la da mesma forma como está tentando

fazer comigo. Sinto muita vergonha das senhoras, pois ambas são mulheres e estão sujeitas a

passarem pelos horrores da Inquisição. Mas, mesmo assim, julgam-se no direto de inventarem

falsas acusações para me condenarem a um destino tão cruel.

A copeira, ao ouvir minhas palavras, caiu em choro profundo e disse-me:

_ Desculpe-me, senhorita Anna. Mas a condessa disse que me despediria caso não fizesse tudo

o que ela me pedisse. Tenho uma filha que não se levanta da cama e depende muito de mim. A

condessa disse que pode dizer aos inquisidores que minha filha está daquele jeito porque está

possuída por espíritos imundos. Desculpe, senhorita, mas minha filha é muito importante para mim.

Nada tenho além dela. Sou viúva e não tenho outro meio de sustentá-la além desse trabalho.

_ Nada neste mundo justifica o que a senhora está fazendo comigo, pois nada lhe fiz. Por que a

senhora não me contou isso antes? Talvez eu pudesse ajudá-la. Sinto muito, senhora Cornélia, mas

não consigo achar uma justificativa para que me tenha traído. Logo a mim, que sempre fui tão

gentil com senhora.

Saí, deixando as duas para trás. Ainda pude ouvir quando a condessa gritou com a mulher

como uma louca. Encontrei Maria no caminho e chamei-a para ir à igreja comigo. Ela concordou de

imediato. Pedi a Lorenzo que atrelasse os cavalos à carruagem. Em seguida, fui pedir permissão ao

meu pai, que autorizou sem fazer muitas interrogações. Logicamente, disse-lhe que seria para tratar

de assuntos do meu casamento com o conde.

Depois de tudo estar pronto e Maria já ter dado as ordenanças à criadagem, seguimos para o

portão, onde Lorenzo nos esperava. Foi aí que tive outra ideia súbita. Voltei e perguntei a Joseph se

ele poderia nos acompanhar até a igreja, pois precisava marcar a data do casamento dele com

Maria. Ele disse:

_ Bom, acho que os patrões não vão precisar de mim agora. - aceitou.

Chegamos à igreja em pouco tempo, pois Lorenzo resolveu correr com os cavalos. Deixei o

casal rezando enquanto procurava por padre Ignácio. Ao avistá-lo, ele veio em minha direção e

perguntou-me:

_ Aconteceu algo, minha filha?

_ Não, padre. Nada que o senhor já não saiba. Viemos aqui pedir um favor ao senhor, mas terá

que atender a esse pedido meu o mais rápido possível!

Contei ao padre que Maria e Joseph haviam ficado noivos em sigilo. E pedi-lhe se poderia,

naquele momento, realizar o casamento religioso dos dois para que não vivessem em pecado. O

padre olhou-os sentados no banco da igreja e chamou-os:

_ Então, meus filhos, estou ciente de que querem se unir. Isso é verdade?

_ Sim, senhor padre. - disse Joseph.

_ E o que acham se eu lhes casasse agora?

Joseph olhou para Maria e ambos concordaram entre si. Ele respondeu:

_ O senhor nos faria essa caridade?

_ Tratando-se de duas pessoas maduras, cientes dos sentimentos que se sentem um pelo outro,

por que não?

Padre Ignácio vestiu-se a caráter para aquela cerimônia. Prosseguiu com aquele ritual, que não

demorou muito. Ele os abençoou e, em seguida, disse:

_ Estão casados agora diante de Deus e da Igreja. Nada poderá separá-los.

O mais novo casal foi dar uma volta pela cidade, enquanto fiquei na igreja, conversando com

padre Ignácio. Ele, porém, disse:

_ Que bom, senhorita, que ficou aqui na igreja comigo. Precisava mesmo ter uma longa

conversa com a senhorita. Andei sabendo que a Inquisição está investigando até mesmo a casa da

parteira Magdalena e da viúva Dolores, do senhor Gustave e dos irmãos Johnson também.

_ E o que fizeram de tão grave para merecerem ser investigados pela Inquisição?

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_ A parteira Magdalena, dizem, usa rezas estranhas na hora de fazer seus partos. Os boatos em

torno desta mulher é que as crianças que ela trouxe ao mundo têm tido comportamentos estranhos.

A viúva Dolores está vendendo xaropes, cataplasmas e poções para unir casais. Dizem que ela e

suas filhas estão sendo usadas pelo próprio demônio para se sustentarem. O senhor Gustave, dizem,

está usando rezas diabólicas para curar as supostas enfermidades alheias. Por fim, os irmãos

Johnson, dizem, não saem dos tabernáculos. À noite, estão sempre sendo vistos rodeados por

mulheres de conduta duvidosa, sempre embriagados, rodopiando pelas ruas. Usam nomes feios

quando passam pelas senhoritas de boa família. Não estão respeitando nem mesmo as senhoras

casadas. A comunidade está preocupada com que possam estar influenciados por algum tipo de

demônio sedutor e promíscuo, que está usando a boa aparência dos rapazes para seduzir as donzelas

e as senhoras do vilarejo.

_ E o senhor, padre Ignácio, o que realmente acha disso tudo?

_ Prefiro ser agnóstico neste caso e deixar que a justiça civil faça sua sentença.

_ Hã? O senhor quer dizer que prefere ficar em cima do muro como um covarde?

_ O que posso eu, um simples padre de uma pequena paróquia, fazer? Já não são muitos os

paroquianos que me aceitam. Por eu ter vindo de outra província e ter ideias divergentes, sou

considerado por eles um padre anarquista. Por não ser um homem de idade avançada e não ter

nascido na Espanha, sabe muito bem que passo por muitas dificuldades. Se eu interferir nestas

questões da Inquisição, então, serei por certo excomungado. Senhorita Anna, sei como se sente em

relação a toda essa desigualdade. Mas o mundo, principalmente o mundo masculino, envolve

muitos preceitos e regras. Sabe que as mulheres são muito visadas e não devem sair por aí,

expondo-se de qualquer maneira. A Igreja tenta ser branda nestes casos. Mas há muita pressão

política e socioeconômica que envolve todas essas questões. O financeiro do mundo fala mais alto.

A Igreja vive de verbas e, embora tenha uma boa influência sobre a monarquia, ainda assim

recebemos ordens superiores. Infelizmente, senhorita Anna, não posso opinar nestes casos.

_ Mas, no fundo, o senhor sabe que essas pessoas são inocentes?

_ Até que provem o contrário, sim.

Senti-me tão impotente como o padre Ignácio. Se não poderíamos ter uma parteira, por que

então os doutores não atendiam gratuitamente as mulheres pobres da vila? Se Deus escrevia certo

por linhas tortas, por que não deixavam a viúva Dolores e o senhor Gustave curarem da maneira

que Deus lhes tinha permitido? E quanto aos irmãos Johnson, eram jovens demais e tinham vindo

recentemente do mar. Queriam gastar seu dinheiro promiscuamente, se assim fosse. Mas a vida

alheia sempre incomodava. Pois, desta forma, era mais fácil esquecer os próprios problemas, e - é

claro - desviar a atenção alheia para outro lado.

Mediante aquela conduta acovardada de padre Ignácio, percebi que não poderia contar mais

com a ajuda dele. Colocaria em prática, então, o plano dois. O padre, percebendo que eu estava

absorta em meus pensamentos, chamou-me:

_ Senhorita Anna!

_ Sim, padre Ignácio. Perdoe-me, distraí-me em meus próprios pensamentos. O que estava

mesmo falando comigo?

_ Estou preocupado no momento é com a senhorita. Se a Inquisição virar-se para sua pessoa,

não sei o que acontecerá.

_ Serei levada para um convento!

_ Se isso acontecer, depois de uma acusação de bruxaria, sofrerá horrores, pois as freiras de

qualquer convento em que lhe puserem obrigá-la-ão a fazer de tudo. Suas penitências serão as

piores, pois sempre lhe acusarão de bruxaria - não importa o que diga ou faça. Quero que me diga:

é uma bruxa ou não?

_ Se eu disser que sim, entregar-me-á ao inquisidor?

_ Não estou aqui para julgá-la, mas ficarei atento para ajudá-la no que me for possível.

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_ Sim, sou uma bruxa. Mas, independente do que o senhor possa pensar, não fazemos mal a

ninguém. Não cultuamos o demônio, não comemos criancinhas, não seduzimos homens casados,

não tiramos ninguém de suas famílias. Consideramos o matrimônio um laço sagrado. Nosso

compromisso é com Deus e com as forças da natureza. Não somos santas - ninguém é. Temos um

dever com a humanidade: o dever do bem comum, da caridade sem olhar a quem. Somos

diferentes, porque vocês assim o querem. Porque todo mundo nesta vida tem um quê de bruxa.

Padre Ignácio deu um passo para trás e tampou a boca, em sinal de espanto.

_ Santo Deus misericordioso!

Puxou-me pelo braço, afastando-me ainda mais das pessoas ali presentes.

_ Senhorita Anna, não diga isso a mais ninguém. Caso contrário, os resultados serão

catastróficos.

_ Padre, isso não é uma coisa da qual me envergonhe ou pela qual tenha que me sentir mal.

Lógico que não vou sair por aí, dizendo aos quatros cantos da terra que sou uma bruxa.

O padre tampou minha boca com sua mão em sinal desaprovação ou medo.

_ Calma, padre. Sei o que o senhor está pensando: que pode perder a batina ou ser

excomungando por ser visto em companhia de uma bruxa. Mas não se preocupe porque, se

depender de mim, ninguém saberá da minha condição.

_ Não, senhorita Anna. Temo por você mesma.

_ Nunca negarei quem sou. Nunca mudarei minha maneira de ver as coisas. Nunca me

transformarão em uma pessoa comum e sem vida. Não serei como o gado, padre, nunca. Antes de

respeitar as pessoas, respeito-me. Antes de respeitar as crenças dos outros, respeito meus

princípios. Amai-vos uns aos outros como se amam a si mesmos. Jesus não disse isso?

_ Sim, filha. Mas pode parecer blasfêmia aos olhos das outras pessoas - principalmente aos

olhos de um inquisidor. É muito jovem para pensar desta maneira e não será compreendida. Tudo

bem que não quer mudar sua maneira de pensar, mas pode fingir para não se prejudicar.

_ E em que isso me fará ser diferente de todos? Não, o senhor não conseguiria me entender.

Prefiro morrer queimada a me anular como pessoa e como ser humano.

Ele só fez abaixar a cabeça. Por fim, falou em um tom que mais parecia um sussurro:

_ Então, sinto não poder fazer mais nada pela senhorita. Só queria poder ter sua coragem.

_ Hum, talvez não possa intervir por mim. Mas, se não tiver medo de pegar uma doença ou de

ser possuído por um espírito maligno, e se quiser dar-me um abraço, não farei objeção.

Ele sorriu e disse:

_ Claro, minha amiga. Saiba que nem acredito nessas superstições.

Demo-nos um gostoso abraço fraternal. Isso não era para todos. Reparando em sua tristeza,

resolvi fazer um comentário:

_ E se eu tiver muita sorte, poderei contar com sua visita quando estiver no convento. Afinal,

sabe que só um padre tem permissão de visitar uma pessoa como eu.

Ele me afastou de seus braços. Olhando-me fixamente nos olhos, indagou:

_ Por que insiste em dizer que irá para um convento?

Então, depois de um grande suspiro, contei-lhe tudo o que eu havia passado naqueles últimos

dias.

_ É bonita a sua história, senhorita Anna. Mas por que acha que o senhor Juan lhe enviará para

o mosteiro de San Francisco?

_ Em primeiro lugar, para não deixar que a notícia escape e corra o risco de sujar o nome de

sua amada esposa. Em segundo lugar, porque usará toda a sua influência para que eu não seja

queimada viva. Não porque me ama, mas por castigo de eu não querer me casar com o conde, e

também por crer que vou detestar ir para lá. E, em terceiro lugar, por preguiça de procurar algo

mais distante mesmo. Sem saber, ele me estará empurrando para o meu destino.

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O segredo dos girassóis

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_ E como pode saber que esse suposto monge não é alguém influenciado pelo próprio demônio

para fazer com que peque, desmoralizando o nome da Santa Madre Igreja?

_ Padre... Muito me admira o senhor falando desta forma!

_ Tem razão. Não estou aqui para julgar ninguém. Só espero que tenha razão nisso tudo, pois

não gostaria de visitá-la na Crucilândia.

Rimos e voltamos para o meio dos convidados, antes que outros comentários maldosos

surgissem sobre mim e do pobre padre. Na verdade, eu estava muito satisfeita por ter contado a

alguém além de Maria. Foi como um desabafo.

Encontrei Maria conversando com seu esposo. Ela era pura felicidade. Essa missão eu já havia

cumprido. Fiquei admirando aquele casal, até que eles se afastassem mais e eu os perdesse de vista.

Mas... alegria de bruxa dura pouco.

_ Achou que escaparia de mim, querida, escondendo-se atrás da batina de um padreco?

Não precisei virar-me para saber que era o conde. Virei-me lentamente e respondi-lhe à altura:

_ Não está sendo um tanto pretensioso em achar que estou fugindo da sua pessoa? - olhei-o de

cima abaixo.

_ Não pensou desta forma quando tentou me seduzir em seu quarto, ontem à noite, mostrando-

me seu lindo corpo. Formas perfeitas, devo dizer.

_ O senhor sabe que não foi bem assim.

_ A senhora sua madrasta estava presente e poderá confirmar minha versão. Sabe que posso

condená-la à fogueira. Posso dizer que o demônio em seu corpo tentou seduzir-me para que não lhe

entregasse.

_ Senhor conde, em primeiro lugar: o senhor não tem provas suficientes para me acusar de

coisa alguma. Em segundo lugar: sei que não é o inquisidor. Em terceiro e último lugar: sei que

anda de fornicação com minha madrasta. Mas saiba que é preciso muito mais que ter posses, olhos

azuis e vestir calças. Sinto informá-lo de que o senhor vai ter que nascer e renascer para tentar

seduzir-me algum dia. Agora, se me der licença, vou ter com os meus.

Ele agarrou-me novamente pelo braço, mais fui salva por Lorenzo, que chegou naquele exato

momento e foi logo dizendo:

_ A senhorita está precisando de ajuda?

_ Sim, Lorenzo. Este senhor aqui presente estava querendo me forçar a segui-lo.

_ Sugiro que o senhor solte a moça agora, ou terei que fazê-lo pessoalmente. - disse Lorenzo,

fechando uma das mãos e batendo contra a outra.

_ Está desafiando minha autoridade, lacaio?

_ Se for preciso... Posso até ser demitido, mas não deixarei que encoste um dedo na senhorita

Anna.

_ Vejo que a senhorita Anna tem muitos admiradores. Por hora, vou me retirar. Não me

rebaixarei em lutar com um lacaio aqui, no meio da rua. Mas saiba que vou voltar.

_ Estarei esperando-o.

Ele se foi, mais uma vez.

_ A senhorita está bem?

_ Sim, Lorenzo. Graças ao senhor.

_ Não estarei sempre por perto, senhorita. Deve ter cuidado. Por que não conta para seu pai?

_ Bem que o faria, mas ele está certo de que o conde é um santo e de que, firmando

compromisso entre mim e ele, salvará as finanças. Mas o conde só quer tirar proveito da situação,

desonrar-me e desfazer o compromisso em seguida.

Lorenzo fechou os punhos e disse:

_ Que sem-vergonha, mau caráter... Se eu o pegar, juro que o mato.

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O segredo dos girassóis

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_ Não vale a pena, Lorenzo. Pessoas como o conde sempre conseguem o que querem. Por

certo, ainda seria condenado por causa de algo tão sem valor. Tem que pensar em Samara. Por falar

nela, por que não veio?

_ Ela está terminando o enxoval, junto à mãe. Mas mandou lembranças.

_ Que bom saber que a mãe dela está bem, e que tudo entre vocês continua encaminhando.

_ Graças à senhorita! Conheci o amor da minha vida... Sabia que ela está me ajudando com os

estudos?

_ Nossa, finalmente uma boa notícia! Sabia que Samara seria a mulher ideal para o senhor.

Posso lhe pedir uma coisa?

_ Claro, o que quiser.

_ Dê-me um abraço?

Sabia que seria a última vez que o veria. Lorenzo ficou meio cabreiro, pois não entendeu

absolutamente nada.

_ Ande, homem! Aproveite que todos não nos estão vendo, para evitar mexericos.

Então, ele me abraçou, finalmente, mas com um medo de dar dó. Vi uma lágrima de gratidão

em seus olhos. Tirei dos bolsos um pequeno obséquio e coloquei em suas mãos.

_ O que é isso, senhorita Anna?

_ Não é muito, mas dá para ajudar com o casamento. Consegui vendendo o meu colar de

esmeraldas.

_ Senhorita! Não poderei aceitar...

_ Se não o fizer, ficarei muito ofendida. Para onde estou indo não precisarei de nada disso.

_ E para onde a senhorita está indo?

_ Saberá no momento certo.

_ Agora, se puder, leve-me até Maria. Preciso falar-lhe algo muito importante.

Ele me acompanhou em silêncio até onde estava o casal.

Ao me aproximar de Maria, parabenizei-a pelo seu casamento e contei-lhe o ocorrido desde a

conversa com o padre Ignácio até o encontro com o conde. Embora não quisesse aborrecê-la, sabia

que Maria não me deixaria em paz até que eu lhe contasse tudo, pois aquela mulher me conhecia

apenas de olhar para mim.

_ Senhorita Anna, não irei deixá-la sozinha hoje. Temo que o conde invada seu quarto esta

noite, pois ouvi seu pai, enquanto eu ainda estava na casa, convidando-o para passar a noite lá

como hóspede. Dormirei com a senhorita.

_ De jeito nenhum! Casou-se e agora deve ficar com seu esposo. Imagina: no seu primeiro dia

de lua de mel, já separada de seu marido? Isso não é certo. Vá ter com ele. Sei muito bem como me

cuidar.

Joseph interrompeu-nos:

_ Isso é que não mesmo! Maria está certa: esperamos tanto tempo! Além do mais, um dia a

mais ou a menos não fará diferença. Não somos jovens, afoitos pela lua de mel. Nossa relação será

baseada na fidelidade, na confiança e no amor verdadeiro. E isso sei que já temos. O resto é

consequência natural. Vá, Maria! Entendo completamente sua preocupação. Não confio neste

homem. Ele tem sangue ruim. Usa artimanhas para conseguir o que quer.

_ Obrigada, senhor meu marido. Sabia que entenderia. Criei esta jovem desde quando ainda era

um bebê, e não a deixarei logo agora, em nossos últimos dias juntas. Nada de mal lhe acontecerá

enquanto eu estiver por perto. Já está decidido: dormirei em seu quarto. Se alguém vier interrogar-

me, direi que não fica bem que uma mocinha solteira durma só debaixo do mesmo teto com o seu

futuro marido.

Tudo ficou decidido por conta dos meus amigos, e quem seria eu para contrariá-los? Fiquei

muito feliz por saber que existia amor por mim entre aquelas pessoas maravilhosas. Nunca as

esqueceria.

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Depois de termos ido à casa de chá para comermos algo, retornamos os três para casa. Estava

exausta. Tudo o que queria era tirar as roupas e os sapatos, e deitar-me para descansar. Ao

chegarmos à casa, não percebi nada demais. Tudo parecia muito tranquilo. Maria voltou para seus

afazeres e Joseph a seguiu. Subi para meus aposentos. Dentro do quarto, fui tirando toda a roupa,

sem me preocupar com a organização ou higiene pessoal, pois estava realmente cansada devido à

alta hora em que fui dormir na noite anterior. Resolvi deitar-me, pois estava exausta. Puxei

calmamente os lençóis quando ouvi os cavalos muito agitados do lado de fora da casa. Curiosa

como sempre fui, não poderia deixar de ir ver o que era. Ao chegar à janela, vi uma cena que

realmente me impressionou. Embora soubesse que era apenas uma visão, eu tinha que saber do que

se tratava. Então, fiz um pequeno ritual para saber quem era o homem que apareceu naquela visão.

Fechei os olhos e apertei as mãos uma contra a outra, deixando os dois indicadores em posição

ereta. Abri os olhos e girei as mãos, fazendo um círculo imaginário, abrindo, então, um portal.

Descobri que o homem na minha frente era o inquisidor que me condenaria. Ele estava lá, de

pé, em frente à minha janela, segurando as rédeas dos cavalos. Parecia saber que eu apareceria à

janela. Mirei os indicadores juntos, em direção àquela figura sinistra. Fixei meus pensamentos,

canalizando toda a minha energia. Senti toda minha força saindo do meu corpo. Os raios eram de

luz e abriram um portal em volta daquela figura sinistra. O que vi foi realmente de impressionar,

pois criaturas terríveis que lhe cercavam: demônios devoradores de energia, espíritos zombeteiros e

desprovidos de inteligência. Algumas dessas criaturas montavam-lhe as costas, fazendo com que

ele tivesse uma forma arcádica. Outros falavam-lhe blasfêmias aos ouvidos. Alguns, ainda,

mordiam-lhe a panturrilha, fazendo-o ter dores abomináveis nas pernas. Eram criaturas

monstruosas e envolviam-no como sombras negras. Também havia alguns espíritos revoltados, de

pessoas que ele havia condenado injustamente.

Maria chegou, trazendo-me um chá de hortelã, camomila e cidreira. Fiz sinal para que ela

ficasse em silêncio e não chamasse a atenção daquelas criaturas, pois poderiam se sentir ainda mais

revoltadas e virem perturbar nossos sonhos à noite. Maria fez uma oração de proteção e voltou-se

para olhar o que eu via. Em seguida, exclamou em um sussurro:

_ Minha nossa! Quem é esta pobre alma atormentada? Como consegue sobreviver com tanto

tormento?

Os demônios ficavam ainda mais agitados a cada movimento do inquisidor. Enquanto ele

desatrelava os cavalos, os demônios mordiam-lhe as orelhas, fazendo-o ter uma espécie de cacoete.

O coitado repuxava constantemente a cabeça de um lado para o outro. Voltou a fitar-me e,

novamente, ficamos olhando um para o outro, inquisidor e bruxa. Maria teve a boa ideia de puxar-

me para dentro. Não por medo dele, mas por chamarmos à atenção algum dos demônios que

estavam envolta dele. Encostamos à parede e Maria fechou as cortinas, lentamente. Corremos

juntas para a cama e ficamos de mãos dadas. Maria colocou o chá para mim em uma xícara de

porcelana com florzinhas azuis. Tomei de uma golada só. Ela se despiu para dormirmos. Também

tomou o seu chá de uma golada só. Naquela noite, resolvemos não dar uma só palavra uma à outra,

para evitar atrair tais energias ruins para os sonhos.

Na manhã seguinte, ao acordar, Maria já não se encontrava comigo. Já havia descido para

preparar o desjejum e verificar o banho que tomaríamos antes de começar o ritual de purificação.

Comecei a arrumar meus pertences e guardei minhas coisas pessoais em uma tábua solta no chão.

Guardei o livro das sombras, a varinha e alguns amuletos. Arrumei todo o quarto e fiz uma oração

de despedida:

_ Obrigada, Senhor, por ter sido meu amigo e mentor durante essa caminhada tão difícil.

Muito obrigada pelos meus algozes, cuja incompreensão e intolerância fizeram-me ver a luz, a Sua

luz, Senhor. Guarde-me dos espíritos malfeitores e zombeteiros. Mas que se faça em minha vida

somente a Sua vontade. Assim seja.

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Maria estava atrás de mim, com a bandeja do desjejum. Confiou-me o seu silêncio em sinal de

respeito.

_ Vim tomar café com minha amiga. Posso?

_ Claro que sim, Maria. Vou adorar ter a sua companhia para o desjejum. Alguém já se

levantou?

_ Somente Joseph e aquele diabo disfarçado de Lord. - Maria referia-se ao conde.

_ E o que faz esse maldito, acordado a essa hora da manhã?

_ Isso não sei. Mas é melhor prevenir. Por isso, estou aqui, para tomar o desjejum com a

senhorita.

Enquanto servia o nosso desjejum, Maria fez-me uma pergunta que parecia não querer se calar:

_ De quem era a visão daquele homem que vimos ontem?

_ Era do inquisidor que me irá sentenciar.

_ Santo Deus! Nunca vi alguém com tantos demônios de uma só vez. E o que é pior: aquele

homem da visão parece ser uma pessoa tão cega pelo ódio que não consegue perceber que eles

estão à sua volta.

_ Maria, nem que ele quisesse poderia. Tem com ele espíritos que estão impregnados em sua

essência. Caso tentássemos tirá-los, poderíamos levá-lo à morte, pois já fazem parte um do outro.

_ É. Mas talvez fosse melhor assim, pois ele pararia de sofrer e de fazer sofrer todos à sua

volta.

_ Maria, sabe muito bem que qualquer coisa que leva alguém a perder a vida e que não seja por

morte natural é considerado um crime imperdoável perante a lei de Deus e dos homens.

_ Mas podem nos condenar e nos matar por crimes que nunca pensamos em cometer?

_ Não estamos aqui para julgar.

_ Mas podemos ser julgadas?

Maria estava revoltada por saber que eu seria enclausurada em um convento e nada poderia

fazer. Então, resolvi dar por encerrada aquela conversa. Inclusive para evitar conflitos mentais - o

que poderia causar um desgaste de energia desnecessário.

Depois de tomarmos o desjejum em quase total silêncio, arrumei-me para extrair o óleo gerado

pelo cozimento das ervas, necessário para o ritual daquela noite. Saímos do quarto nas pontas dos

pés, para não acordar o resto da casa. Chegamos à cozinha. Atravessei direto para a adega, onde

abri a porta secreta e fui aos afazeres. Mas, desta vez, Maria ficou do lado de fora, para evitar

surpresas desagradáveis. Enquanto ela supostamente ficava na cozinha, adiantando os afazeres

domésticos, eu estava no porão, extraindo o óleo das ervas já cozidas. Fiz um círculo de proteção

em volta de mim. Este círculo era feito com um pentagrama no meio, cercado por dois círculos -

um pequeno e um grande - e alguns símbolos. Este símbolo é erroneamente chamado de o olho do

diabo.

Deixei de lado todo o mundo ao meu redor. Comecei no preparo do óleo que eu usaria.

Purifiquei meu espírito com orações que surgiram em minha mente, na mesma língua na qual havia

falado no primeiro dia em que entrei ali. De repente, Maria veio correndo chamar-me:

_ Venha depressa, senhorita Anna! Seu pai já perguntou por você duas vezes. Disse que ainda

estava dormindo, mas agora não tenho mais nenhum argumento.

Entreguei à Maria todas as poções. Ela as guardou em sua bagagem, que já estava pronta para a

fuga daquela noite. Deixei comigo somente a que usaria no ritual. Fui para o jardim e fingi que

estava lendo um livro, debaixo da minha fiel árvore. Meu pai parecia aflito a me encontrar, pois

veio afoito ao meu encontro:

_ Onde estava? Procurei a senhorita por toda a casa.

_ Por certo não deve ser nada de tão importante, vindo do senhor...

_ O conde queria despedir-se da senhorita.

_ Não disse? Não era mesmo nada de tão importante assim.

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_ Não creio que esteja lhe dando a atenção que ele mereça.

_ O senhor não se preocupa mesmo comigo, não é, pai? Ou o senhor é cego ou não percebe

realmente que esse homem é mau caráter.

_ Não é verdade. Tanto me preocupo que estou vendo nesta união uma oportunidade de vê-la

bem de vida quando eu não estiver mais por aqui. E o que quer dizer quando faz tamanha

acusação?

_ Pai, o senhor conde está...

A condessa interrompeu-nos no exato momento em que eu iria revelar suas proezas junto ao

seu amante. Imediatamente, ela disse, parecendo adivinhar o que eu haveria de revelar a meu pai:

_ Juan, venha. Recebemos um convite para o baile dos Menellaus. Acho melhor que envie uma

resposta, pois não perderia esta oportunidade de poder estar presente em baile como esse.

_ Minha filha, como percebeu, temos uma festividade a mais. Por certo deve ser o jantar de

noivado da senhorita Lucinda. Espero que tenha um bonito vestido para logo à noite. A propósito, o

que estava mesmo tentando me falar?

Olhei para a condessa, que estava esperando minha resposta se eu iria ou não ao tal jantar.

_ Não é nada, pai. Deixa para lá. O senhor não veria a verdade, nem que ela fosse uma raposa

vestida de ovelha. E não sei se quero ir ao jantar. Não estou me sentindo muito bem.

_ Seu futuro noivo irá. Então, não quero mais falar sobre esse assunto. Vou entrar com a

condessa, mas estaremos lhe esperando na sala de estar. Portanto, não se demore, por favor.

Fiquei quieta, vendo-os sair da minha frente. A condessa estava de braços dados com meu pai,

mas não podia deixar de olhar para trás e fazer uma careta zombeteira. Sacudi a cabeça de forma

negativa, achando aquela atitude muito infantil.

Não demorei para seguir as ordens que meu pai havia me dado e voltei para dentro de casa.

Meu pai e sua esposa passaram a manhã na sala de estar. A condessa resolveu demonstrar seus dons

musicais ao piano. Toda aquela satisfação significaria duas coisas: ou meu pai estava muito

inspirado a noite passada - o que era pouco provável, pois dormira embriagado -ou ela estava

disfarçando a sua maldade, tramando contra mim junto ao seu consorte de luxo. Ou seja: o conde e

ela já sabiam o que fariam para me incriminar. Mas eu já estava preparada, pelo menos era o que eu

esperava.

Ao ver-me, o conde veio em minha direção, com um sínico sorriso de satisfação. Beijou minha

mão e perguntou:

_ Onde a pequena mariposa andou pousando? Não a vi a manhã toda.

_ Estava em meu quarto, mas é claro que o senhor já sabia disso.

_ Será mesmo?

_ Se o senhor está insinuando alguma coisa, é melhor que fale aqui e agora.

_ Não estou com vontade de discutir com a senhorita, pois agora estou de saída para resolver

alguns negócios pendentes. Mandei chamá-la por isso. Mas saiba que a esperarei no baile desta

noite.

Dizendo isso, o conde virou-se para meu pai para se despedir.

_ Por que tanta pressa, senhor conde? Fique para o almoço. Sabe que é um prazer tê-lo como

hóspede em nossa casa. – disse meu pai.

_ Não se preocupe, senhor Juan. O senhor terá o prazer de ter-me muitas noites a fio em sua

casa como seu hóspede.

Depois disso, ele se despediu da condessa e saiu com meu pai. Voltei, então, para o meu

quarto, sem me despedir da condessa - não queria pegar energia negativa daquela mulher. Precisava

me preparar para ter forças para a peça teatral que montaria logo à noite.

Maria veio ao meu quarto, algumas horas depois, perguntar se eu queria que ela trouxesse o

almoço para mim. Respondi-lhe que não, só queria ficar um pouco quieta com os meus

pensamentos. Então, ela se retirou.

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Depois de algumas horas lendo meu livro, acabei adormecendo profundamente e sonhei com o

meu amor verdadeiro. Ele estava tão bonito! Estava feliz e sorridente e disse-me Está muito perto

de nos encontrarmos. Tenha um pouco de paciência, meu amor. Então, quando ele ia pegar a minha

mão, alguma coisa aconteceu, pois o vi caindo em um abismo negro e acordei chorando. Passei as

mãos pelos olhos, levantei da cama e andei pelo quarto, de um lado ao outro. Era a segunda vez que

o via caindo em um precipício. Maria entrou sem bater, parecendo aflita. Foi logo dizendo,

interrompendo meus pensamentos:

_ Se pai pediu que se aprontasse. Sairão mais cedo, porque parece que irá chover. O que a

senhorita fará para se livrar desta questão? Não poderei estar presente nesta festa, e sabemos muito

bem que o conde se fará presente.

Depois de pensar alguns minutos, respondi-lhe:

_ Traga-me umas toalhas bem quentes. Lembre-se de que quanto mais quente, melhor.

_ O que fará, menina?

_ Nada demais. Só não vou a festa alguma com aquele homem.

Maria, mesmo sem saber o que eu faria, saiu para cumprir o que eu lhe havia pedido. Duas

horas depois, retornou com as toalhas quentes e encontrou-me toda arrumada para o baile. Colocou

as mãos na cabeça e perguntou:

_ O que a senhorita, toda arrumada desse jeito, quer fazer com dúzias de toalhas quentes?

Porém, não lhe respondi. Apenas pedi-lhe outra coisa:

_ Maria, preste atenção: quero que desça e diga a meu pai que suba para vir buscar-me aqui em

cima.

_ Mas não disse que não iria?

_ Faça o que eu lhe estou pedindo, mulher. Não se preocupe: dará tudo certo.

Quando meu pai chegou à porta e, correndo em minha direção, disse:

_ Anna! Santo Deus, filha! Está bem? Seu rosto está vermelho como um tomate.

Quando colocou as mãos em mim, sentiu o calor do meu corpo.

_ Cristo! Deve estar com uns quarenta graus de febre. Por que não está na cama?

_ Porque o senhor disse para não desacatar suas ordens. Prefiro ir a receber uma surra.

_ De jeito nenhum. Ficará em casa, mocinha, e cuidará desta febre. Por certo é o resfriado que

teve e que ainda não curou totalmente.

Chamou Maria aos berros. Até eu mesma acreditei na minha suposta doença. Quando Maria

chegou a meu quarto, olhou-me sem entender absolutamente nada. Fez-me uma cara de quem

estava desconfiada.

_ Cuide bem de minha filha e faça com que essa febre suma de vez. Use seus chás. Por certo,

sempre funcionam.

Depois, virou-se para mim e falou exatamente o que eu esperava ouvir:

_ Não se preocupe, filha. Direi aos anfitriões e ao conde sobre seu estado febril.

Beijou minha testa e constatou a temperatura alta do meu corpo. Deu mais algumas ordens à

Maria e saiu em seguida. Corri para a janela e fiquei olhando de meia greta, até eles sumirem na

outra extremidade da rua. Maria, assim que percebeu que o casal já estava bem longe, indagou:

_ Menina, o que foi que fez? Seu pai estava totalmente desnorteado. E não adianta mentir para

mim, pois bem sei que é mais uma de suas artimanhas. Acaso usou algum tipo de feitiço para uso

próprio? Sabe muito bem que não é permitido usar sortilégios para engambelar os outros.

Nem consegui responder, pois estava muito concentrada, tentando tirar aqueles panos

enrolados em volta do meu corpo. Ufa! E torce daqui e puxa acolá... Tirar aquele monte de toalhas

quentes era uma questão de honra e desespero, pois quase morri de tanto calor. É que eu havia

escondido as toalhas debaixo do espartilho e dentro dos saiotes. Para aparentar um rosto

avermelhado, coloquei uma das toalhas quentes nas faces. Antes de meu pai chegar, joguei-a

debaixo dos travesseiros. Maria ficou ali, olhando-me admirada, sem saber de onde vinha tanta

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toalha. Por fim, acabou rindo largamente, sem parar. Então, depois de me livrar daquela tralha

quente, disse à Maria:

_ Confesso que já estava assando. Agora vamos rápido. Senão, não teremos tempo suficiente.

Descemos as escadas correndo e, ao passarmos para o hall de entrada, pedi à Maria que me

buscasse um xale que eu havia esquecido em seu quarto. Quando Maria chegou, saímos

rapidamente ao encontro de Joseph. Ele já estava na lateral da casa, de prontidão, esperando-nos

com uma pequena charrete, já atrelada aos cavalos. Ao ver-nos, olhou para Maria e falou:

_ Santo Deus, mulher! Por que está trazendo tanta tralha?

Maria, levantando as duas maletas de couro, respondeu:

_ Uma são os meus pertences pessoais. A outra são coisas que trago comigo e não lhe dizem

respeito, ora!

Joseph olhou-a, respirou profundamente, mas nenhum outro comentário fez em seguida.

Colocamos, então, todas as coisas na charrete e seguimos em direção ao bosque dos mortos.

Lembrei-me, exatamente naquele momento, de uma lenda do século XIV: havia uma jovem

feiticeira que, por onde quer que passasse, secava tudo. Ela era o mal encarnado, segundo os

moradores. Então, resolveram caçá-la. Depois de julgá-la no tribunal local, decidiram dar-lhe uma

cruel sentença. Amarram-na a uma árvore até que morresse de fome, de frio e de sede. Ela foi

devorada pelos lobos. Contavam, ainda, que durante seus dias de flagelo, ela urrava como um

animal feroz. Seus gritos de horror eram ouvidos até mesmo pelos moradores da aldeia vizinha.

Outros diziam que ela amaldiçoou aquela floresta, não deixando que nenhuma planta saudável

brotasse de seu solo. Nas noites do dia trinta e um de outubro dos anos seguintes, alguns aldeões

juravam ter ouvido seus gritos de desespero ecoando pelo vento. Diziam que até o vento vindo

daquele lugar era amaldiçoado e trazia o cheiro de enxofre do inferno.

Escolhemos aquele lugar porque o acesso era difícil. Muitos não se atreveriam a ir até ali, por

medo das lendas locais. Era um trajeto difícil e já estava começando a chover. Algumas vezes,

tivemos que descer da charrete e ajudar Joseph a desatolar as rodas do lamaçal. A charrete era frágil

e balançava muito e, o que era pior, fazia um barulho insuportável. Não tive medo da escuridão

mortal que cercava toda a floresta. Mas o lugar, confesso, congelou meu coração. Se olhássemos

para frente, não víamos absolutamente nada. E se olhássemos para trás, não conseguíamos ver

sequer o chão. Somente um homem como Joseph, experiente em trilhas, conseguiria entrar e sair

daquele lugar coberto pela escuridão e a névoa constante. A tristeza e a agonia eram contagiantes.

Tinha cheiro de morte no ar, o que fazia jus ao nome dado pelos aldeões. Era como se um espírito

desesperado por socorro estivesse por perto, implorando para ser ouvido. Por fim, resolvemos

parar. Escolhemos um local perto de uma velha árvore petrificada, chamada de árvore do

sacrifício. Joseph levou a charrete para a estrada, mais fundo, escondendo-a perto de um arbusto

seco. Olhei todo aquele ambiente sem vida e me comovi. Não sabia até que ponto aquelas lendas

eram verdadeiras, mas de uma coisa tinha certeza: algo de muito ruim tinha acontecido naquele

local. Toda a vegetação havia secado totalmente. As árvores pareciam estar mortas, e nem a grama

crescia. Não havia pio das corujas, nem uivo de lobos. Nem as crianças da noite, os morcegos,

voavam assombrando-nos com seus bateres de asas rasantes.

Olhei para Maria, que parecia ter tido a mesma impressão que eu. Fomos para trás das árvores

e tiramos nossas roupas. Ficamos somente de camisolas. Maria ungiu todo o meu corpo com o óleo

de girassol. O mesmo fiz com o dela. Acendemos uma fogueira para nos aquecer, pois o vento

silvava e soprava fortemente. Mesmo que pressentíssemos que em breve a chuva cairia, teimamos

em acender a fogueira para nos aquecer. Assim também pensávamos conseguir enxergar melhor o

local. Mas foi uma tentativa inútil, pois só enxergávamos as coisas que estavam próximas de nós,

pois o nevoeiro era intenso e misterioso. No céu, as nuvens começaram a se formar. Logo a Lua foi

sumindo. Quando os primeiros pingos começaram a cair, já havíamos preparado todo o local.

Enquanto Maria espalhou as sementes de girassóis em volta de toda aquela árvore petrificada, eu

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fazia o círculo, usando a vassoura sagrada. Depois, desenhei o pentagrama da proteção no meio do

círculo sagrado e giramos nossas varinhas no ar, fazendo desenhos desconexos. Clamamos os sete

nomes sagrados da magia. Depois, plantamos em todo o local as mudas que eu havia pedido a

Joseph para conseguir para mim. Fizemos isso para fertilizar aquele lugar morto. Por fim,

começamos as rezas em voz alta:

_ Senhor, que a grande Deusa possa ouvir a nossa humilde oração. Que possamos, com o

nosso amor e bondade, trazer de volta a beleza, a fertilidade e a paz para esse lugar triste e

sombrio. Que a nossa irmã desencarnada consiga sentir toda a proteção emanada deste círculo

sagrado. Que seu coração se abra para o amor e o perdão, para que seu espírito possa libertar-se

desta prisão de ódio e ressentimento. Pedimos ao espírito aprisionado de Áurea Scoth que se

manifeste, para que possamos mostrar-lhe o caminho a seguir.

Os espíritos aprisionados por Áurea àquelas árvores foram se manifestando, dando formas aos

troncos. Seus gemidos de sofrimento eram assombrosos e torturantes a qualquer ouvido lúcido.

Mas não podíamos dar a impressão de que sentíamos medo, pois qualquer demonstração de

fraqueza poderia deixá-los muito agitados e afastar o espírito de Áurea Scoth de nós. De repente,

uma brisa cheirando a cipreste aproximou-se, mas não conseguiu entrar no círculo, cuja função era

exatamente essa. O que está fora não pode entrar, e o que está dentro não poderá ser atingido por

nenhum espírito imundo ou atormentado. Sabíamos que o cheiro de cipreste significava a presença

de um espírito atormentado. Em algumas ocasiões, esse cheiro pode significar que alguém próximo

irá morrer. Mas ali, naquele momento, significava a presença de alguém muito atormentado.

Trancamos a mente, apertamos as mãos contra o peito, fechando os olhos para que aquele espírito

atormentado não nos engabelasse ou nos assustasse com outras formas ilusórias. Geralmente, os

espíritos atormentados tentam fazer-se parecer assustadores ou tomam a aparência de anjos e fadas,

para que os deixemos em paz ou para desistirem de nos intrometer em suas vinganças ou

perseguições. Em outras ocasiões, esses espíritos podem se fingir gentis e tomarem a foram de

criaturas encantadoras, apresentando uma falsa sabedoria. Áurea, por certo, havia se tornado um

obsessor. Mas nada do que ela fizesse nos faria desistir de ajudá-la e de prosseguir com a nossa

tarefa. Demos continuidade às orações e aumentamos o fervor das palavras, dizendo:

_ Dê-lhe, meu pai, a Sua mão para que o espírito de Áurea siga o seu destino em paz. Liberte-

a desta prisão, desse sofrimento sem igual.

Então, eu Maria dissemos juntas, em voz alta:

_ Siga em paz, minha irmã, sem olhar para trás. Deixe as marcas de sua dor na memória de

seus algozes. Apague a sua para começar uma nova vida junto aos irmãos de sabedoria. Siga para

a luz que brilha à sua frente. Veja quantos irmãos estão lhe esperando para recebê-la de braços

abertos.

Falamos isso, pois as luzes dos irmãos desencarnados brilhavam à nossa frente e podíamos vê-

los esperando por Áurea, a feiticeira. Sentimos novamente o vento forte perto do círculo. Só que,

desta vez, cheirava a flores do campo. Logo se formou um pequeno redemoinho. No meio dele,

surgiu uma linda mulher de cabelos negros e ondulados e olhos azuis como a água marinha. Ela

estava vestida de céu e com muitas chagas por todo o corpo. Delas, saía mel. Em pensamento,

contou-nos como foi violada por todos os aldeões e que, depois de ser julgada injustamente e

torturada violentamente, foi acorrentada naquela árvore petrificada, onde fez um juramento: nunca

mais deixaria brotar daquele lugar uma só folha verde enquanto houvesse um descendente de seus

algozes. Mas, que ao ver tanto amor, bondade e desinteresse vindos de nós, estava pronta para

desistir de sua jura e seguir seu caminho em paz, com os irmãos espirituais. Toda aquela névoa ao

seu redor sumiu, dando lugar a uma luz muito brilhante. Depois, Áurea transformou-se em uma

pequena estrela e desapareceu na imensidão do céu.

Então, continuamos com o ritual. Por fim, a chuva começou a cair. Eu disse, em alto tom:

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O segredo dos girassóis

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_ Que o fogo nos empreste sua alma, fumaça, e que ela leve todos os nossos pecados para o

céu. Que a água da chuva, nossa irmã e purificadora, nos devolva essa energia renovada de volta

para a nossa mãe terra. Que essas águas em forma de lágrimas abençoem esta terra tão sofrida.

Que essas águas sagradas possam, também, lavar nossos pecados. Que a nossa essência

purificada traga de volta todo o amor e o perdão para este solo, que durante anos sofreu

silenciosamente por um crime cometido por nossos irmãos já desencarnados. Crime esse que fez

uma de nossas irmãs ficar aprisionada nesta floresta por anos, causando dor e sofrimento não só a

todos os aldeões e ao solo, mas também a ela mesma. Peço, Senhor, perdão pelos ignorantes que

por aqui passaram. Mande, meu Pai, um espírito iluminado e de muita sabedoria para lhes tirar da

escuridão onde se encontram agora. Dê-lhes, meu Deus, uma chance de se redimirem de seus

erros e pecados! Que o vento purifique essas águas e que elas nos devolva a nossa essência, depois

de tê-la sanado dos pecados recebidos da humanidade. Pelo poder da terra, pela força do fogo,

pela alma dos ventos e pela pureza das águas, que se abra o portal e cumpra-se a minha missão.

Um enorme raio de fogo cercou todo aquele lugar, clareando até a mais longínqua imensidão

escura que tomava conta dali. Sentimos a presença da grande Deusa e do grande Deus. Seus

poderes eram tão grandes, tão imensos, que eu e Maria tivemos de nos agarrar uma a outra. O calor

daquele fogo espiritual, misturado às forças da natureza, formava um enorme redemoinho, que

limpou toda a floresta daquela mazela de revolta, vingança e loucura. Senti que toda a floresta veio

nos agradecer por termos libertado aquele espírito sofrido, que havia tanto lhe sufocava a vontade

de viver. Rodopiamos e dançamos alegremente, recebendo a chuva com os braços abertos, lavando

todos os pecados de nossa alma. Nossos corpos estavam completamente encharcados, mas não

sentíamos frio ou incômodo por estarmos molhadas dos pés à cabeça, pois o amor dentro de nós era

imenso e indescritível e esquentava nosso corpo. Logo a chuva parou - embora tivesse sido

fortíssima, foi passageira. Olhamo-nos de cima abaixo e gargalhamos. Então, procuramos Joseph,

que estava debaixo da charrete para não se molhar. Rimos ainda mais. Ele nos olhou,

interrogativamente:

_ Não acham melhor trocarem de roupa? Vão pegar uma febre e cairão de cama.

Sufocamos outra gargalhada, mas abaixamos a cabeça e saímos em procura de toalhas secas.

Maria trocou-se de imediato e fiz o mesmo. Depois, sentamos na charrete e arrumamos a comida

que trouxemos para dar término àquele sabat. Estendemos uma toalha bordada com desenhos

místicos. Então, servimos o pão e o vinho de samhaim. Recuperamos as forças com uma sopa

mágica.

Levantamo-nos e novamente varremos todo o local com a vassoura sagrada. Desta vez,

apagamos o círculo. É muito importante usar a vassoura antes e depois de cada ritual. Às vezes,

também temos que usá-la durante o ritual. Demos uma olhadela em volta e não acreditamos no que

vimos: havia pequenos brotos na velha árvore, que já não estava mais petrificada. O chão estava

repleto de graminha, ainda fina e rasteira. Uma enorme coruja pousou sobre a velha árvore. Um

gamo correu em direção ao fundo da floresta. Os lobos uivavam, cantando para a imensa Lua que

reluzia no céu. A vida finalmente estava de volta àquele lugar. Com certeza, ali seria um novo

paraíso celestial. Ficamos muito felizes e choramos de emoção. Até Joseph ficou extasiado com o

que viu. Demos as mãos, os três, e agradecemos as bênçãos concedidas naquela noite maravilhosa e

produtiva.

De repente, ouvimos barulhos vindos do meio da floreta escura. Aquilo gelou minha alma.

Sabia bem o que era. Pela segunda vez, senti-me como Cristo quando foi entregue aos inimigos.

Então, não conseguia pensar em mais nada e disse à Maria:

_ Corra com Joseph para longe daqui.

_ Senhorita Anna, não posso deixá-la aqui sozinha – disse Joseph.

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O segredo dos girassóis

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_ Anna, filha, venha conosco. Joseph tem razão: ainda há tempo para a senhorita. Eu lhe

imploro: não me deixe, filha... Passamos tantas coisas juntas... Morrerei pela senhorita se for

preciso. Eles não a entenderão, Anna... Não se vá, não me abandone...

Maria ajoelhou-se e implorou para que não a deixasse partir. Suas lágrimas comoveram-me,

mas não pude demonstrar nenhuma emoção, pois poderia colocar a vida dela e de Joseph em risco.

Olhei para ele, que também estava chorando, e pedi-lhe auxílio com os olhos. Ele enxugou as

lágrimas e veio retirar Maria de perto de mim. Quando ele a levantou do chão, dei-lhe um enorme

abraço e disse:

_ Para que consiga seguir em paz meu caminho, precisarei que a senhora seja como sempre foi:

forte e sensata. Nunca nos esqueceremos, Maria, porque sempre estaremos juntas em pensamento.

Ninguém nunca conseguirá nos separar porque o elo que nos uniu sempre nos unirá. Somos como

essa chuva que caiu e fertilizou esta terra hoje. Somos a terra, o sol, o ar e sempre estaremos juntas,

porque somos parte do mesmo universo. A distância, para nós, não existe, porque ela é como olhar

o horizonte: cada vez que fazemos isso com os olhos do aparelho, vemos coisas ao longe. Mas

quando olhamos com os olhos da alma, vemos apenas um caminho a percorrer até alcançar o

objetivo almejado. Sempre poderá me enviar cartas pelo padre Ignácio. Agora, levante a cabeça e

siga em busca da sua felicidade.

Dei-lhe um beijo na testa e segurei seu rosto em minhas mãos, para nunca mais me esquecer da

minha amiga e mãe. Foi o pior dia de minha vida. Engraçado como o amor nos obriga a fazer

coisas que não queremos fazer... Fiz minha única amiga chorar e não tinha como evitar. Então,

tentando tirar Maria daquele local perigoso, disse:

_ Não os estou expulsando, mas quero que ambos corram agora para que não cheguem aqui e

os vejam.

Joseph saiu, segurando Maria. Ao tomarem certa distância, ela tentou escapar de Joseph, que a

abraçou fortemente, tentando acalmá-la. Maria gritava meu nome e esticava os braços em minha

direção. Mais uma vez, minhas premonições se concretizaram. Fiquei olhando-os sumir em meio à

noite escura, até que, finalmente, nada mais eram além de um simples vulto. Enxuguei minhas

lágrimas, rasguei minhas vestes, arranhei meu rosto com minhas próprias unhas, joguei sangue de

galinha em meu corpo e fingi estar desmaiada ao chão. Ouvi o grito de alguém. Não me atrevi em

abrir os olhos para saber de quem se tratava. Ouvi um homem dizer algo:

_ Vejam! Ela está caída aqui! Parece ter sofrido algum tipo de violência.

_ Há sinais de satanismo por todos os lados. Por certo, as marcas em seu corpo foram deixadas

por algum tipo de demônio. Essa mulher está tomada por forças malignas.

Tive muita vontade de rir, pois percebi a ignorância daquelas pessoas. No mínimo, aquele

homem era completamente louco e sua mente perturbada criava mais histórias que a imaginação de

uma criança de cinco anos. Percebi que meu pai aproximou-se, pois ouvi sua voz bem próxima a

mim. Mas o inquisidor gritou, dizendo:

_ Não! Os demônios dela passaram para o seu corpo. Essa mulher está infestada de súkumbos.

Aquele homem que a tocar ficará atraído por essa mulher pecadora e imunda.

_ O que são súcumbos? - perguntou o conde, curiosamente.

_ São demônios femininos que usam o corpo das mulheres para seduzir os homens. Esse tipo

de demônio, além de destruir a vida de quem quer que seja, pode também levar o indivíduo

possuído à morte.

Ele falava isso porque não podia ver os demônios que o cercavam. Mesmo de olhos fechados,

pude perceber mentalmente a quantidade de demônios que estavam em volta daquele homem, pois

soltavam garagalhadas tenebrosas. Rezei para que ele não me tocasse, pois aí sim, literalmente

falando, eu estaria perdida. Outra voz masculina ainda insistiu com meu pai, dizendo:

_ Senhor, não toque nela. Não ouviu o que o inquisidor disse?

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_ Ninguém vai me impedir de levar minha filha para a carruagem. Se quiserem discutir alguma

coisa sobre este caso, discutiremos em minha casa. Mas não a deixarei aqui, neste chão molhado e,

por certo, morrendo de frio.

Ufa!, pensei comigo. Até que enfim alguém sensato. Pensei que ficaria ali até congelar,

esperando aquele louco endemoniado decidir se eu era ou não uma bruxa.

_ Juan! Não espera mesmo que eu vá dentro da mesma carruagem com essa endemoniada,

espera? - disse a condessa, parecendo não querer dividir aquele pequeno espaço comigo.

Porém, meu pai estava decidido a me levar com ele:

_ Minha cara esposa, aonde vai e com quem vai eu não sei. O que sei é que Anna, minha filha,

irá na mesma carruagem que eu.

_ Recuso-me a entrar na carruagem em que esta mulher está! - retrucou.

_ Faça como quiser. Pode ir a pé ou no colo de alguns dos soldados. Ou, se preferir, pode ficar

aí mesmo onde está e, é claro, poupar-me o trabalho de devolvê-la a seu pai - que é o que eu já

deveria ter feito há muito tempo. Mas não me perturbe mais com seus chiliques histéricos. Este

momento é muito delicado para mim.

Meu pai, então, pegou-me no colo e saiu carregando-me em meio à pequena multidão que se

formara em nossa volta.

_ Não lhes disse? O demônio tomou conta da mente de senhor Juan. - disse o inquisidor.

Porém, meu pai pareceu não dar importância às sandices dos demais presentes e levou-me para

dentro da carruagem, cobrindo o meu corpo com cobertores e deitando-me em seu colo. Ele, então,

ordenou a Lorenzo:

_ Lorenzo, siga para a minha casa. Minha filha e eu estamos cansados.

_ Sim, senhor, imediatamente.

A condessa seguiu na carruagem do seu comparsa, o conde. Os soldados e o inquisidor

seguiram-nos cavalgando. O balançar da carruagem e o aconchego do colo do meu pai fizeram-me

cochilar. Afinal, foram raras as vezes em que estivemos tão próximos daquele jeito.

Ao chegarmos em casa, Lorenzo ajudou meu pai a tirar-me da carruagem. Papai levou-me para

meu quarto e pediu à aia que me despisse e trocasse minhas roupas. Depois, desceu e despachou

aquelas pessoas indesejadas, pedindo-lhes que voltassem no dia seguinte para retomarem o assunto

em questão. Isso me deu mais uma noite em minha casa. A condessa, naquela noite, recusou-se a

dormir no mesmo quarto que meu pai, dizendo que ele estava contaminado pelos demônios que

habitavam meu corpo. Agora, sim, ela enlouqueceria de uma vez por todas. Pois além de viver com

a cabeça cheia de caraminholas tramando contra as pessoas, ainda arrumou parceria com um

inquisidor totalmente excêntrico que, por certo, enfiou mais sandices em sua mente. Agora, a pobre

mulher, além de tramar, ainda tinha que se preocupar em esquivar-se dos supostos demônios que

habitavam meu corpinho tão puro e inocente. Era hilário imaginar a condessa de olhos arregalados,

a altas horas da madrugada, sentada na cama só com os olhos de fora, vigiando para não deixar o

coisa ruim se aproximar dela. Pobre mulher! Confesso ter dormido maravilhosamente aquela noite.

Só me preocupei com Maria que, por certo, estaria triste de verdade.

Acordei, dei uma espreguiçada e levantei de uma só vez meu desjejum - estava em uma

bandeja do lado da cama. Tomei calmamente e fui para a janela, observar o movimento. Como eu

já esperava, havia várias carruagens e cavalos no pátio de minha casa. Como as pessoas gostavam

de um mal feito, qualquer coisinha era motivo de atração circense. Tereza entrou, trazendo água

para que me lavasse. Por certo, a criada ficou com medo de mim depois de ter ouvido os boatos

mentirosos e alucinados que saíram da boca da condessa. Tereza, então, disse-me, meio

constrangida:

_ Queria dizer, menina, que não acredito em nada que dizem sobre a senhorita. - abraçou-me e

saiu em seguida.

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Fiquei feliz por saber que os verdadeiros amigos nunca duvidam de nós, e que jamais caem em

armadilhas levianas. Lavei-me e vesti-me. Coloquei-me simples e formal. Meu pai foi o primeiro a

entrar em meu quarto. Deu uma leve batidinha e, ao ver-me sentada, perguntou:

_ Como está, Anna?

_ Muito bem. E como eu deveria estar?

_ Não se lembra de onde estava ontem à noite e de nada que lhe acontecera?

_ Não. Do que o senhor está falando? - menti.

_ Encontramo-la caída no meio da floresta dos mortos. Suas roupas estavam todas rasgadas,

seu corpo estava todo arranhado. Como pode não se lembrar do que houve?

_ Já disse: não consigo me lembrar de absolutamente nada. O que o senhor está dizendo para

mim é grego. - sentei-me na cama e fiz uma cara de ingênua.

Meu pai sentou-se ao meu lado e disse:

_ Anna, quero ajudá-la. Mas, para isso, preciso que colabore comigo. Diga-me olhando em

meus olhos: foi violada por algum bandido?

_ Não! Estou bem. Por que está me perguntando essas tolices? Não conhece meu

comportamento? Perdeu a confiança em mim, pai?

_ Confio na senhorita, Anna, mas algumas coisas não estão se encaixando. Sabe que não sou

homem de acreditar em misticismos.

Olhei-o no fundo dos olhos e disse:

_ Então, terá que continuar confiando.

_ Eles a levarão de mim, filha. Não poderei fazer nada. Se deixar que pensem que é uma

feiticeira, eles lhes condenarão e sabe Deus o que lhe farão.

_ Não, pai. O senhor entregar-me-á, como tentou fazer vendendo-me para aquele homem

inescrupuloso, para saldar suas dívidas. O senhor só pensou em si mesmo e no santo nome de sua

ambiciosa esposa. Mas se esqueceu de que sou o único laço consanguíneo que o senhor

verdadeiramente tinha. Vá, abra a porta, antes que a derrubem por causa do peso de estarem todos

encostados nela.

Meu pai olhou-me espantado e só fez abaixar a cabeça.

_ Tem certeza de que está preparada para isso?

_ Sim. Deixe que entrem meus algozes.

Como eu havia dito, quando meu pai abriu a porta, caíram todos de uma vez uns em cima dos

outros, tropeçando como urubus. Fiquei admirada de ver senhores tão distintos, como o magistrado

da cidade e Lord Oswald, tentando equilibrar-se em cima do próprio peso para levantar-se. Todos

fingiram estar tirando a poeira das vestes. Depois, olharam-me, esperando que meu pai lhes

dissesse alguma coisa. Por fim, Lord Oswald perguntou, curiosamente, não aguentando manter-se

calado:

_ Conseguiu arrancar dela alguma confissão?

Meu pai, porém, respondeu-lhe:

_ Não estava tentando fazer minha filha confessar coisa alguma. Só estava tentando encontrar

uma resposta plausível para o fato ocorrido ontem à noite. Mas, pelo jeito, ela não consegue se

lembrar de nada.

_ Por certo o demônio afastou-se quando viu a luz. - respondeu o magistrado.

Quando ele falou que a luz afastou o demônio, por certo não era a dele, pois ele era uma das

pessoas que estavam rodeadas de pequenas criaturas zombeteiras. Meu pai tentou, ainda, fazer-me

falar na frente de todos o que eu estava sentindo:

_ Diga a eles, minha filha, o que está sentindo, para que percebam que você é inocente.

_ Já lhe disse, pai: não estou sentindo absolutamente nada. Estou é achando engraçado todos

esses senhores e nobres aqui em meus aposentos, tentando achar algum defeito em mim para

esconderem seus próprios defeitos.

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_ Blasfêmia! O demônio está zombando de nós. - disse um nobre rechonchudo, o senhor

Oswald.

_ Devemos levá-la para uma interrogação formal, a portas fechadas. – disse, por fim, o

inquisidor, que me observava.

O homem mais parecia um mouro por causa de sua forma arcaica. Ele era exatamente como eu

e Maria vimos em nossas visões: os demônios em seu corpo faziam sobre o seu ombro os mesmos

gestos que ele fazia ao falar, só que de maneira zombeteira. Aqueles demônios o induziam a fazer

todos os tipos de crueldades jamais imaginadas por um ser vivente temente a Deus. Aquele homem

realmente era uma pessoa que precisava de um exorcismo. Quase não consegui olhar para ele por

causa das criaturas deformes que o rodeavam, blasfemando e fazendo gestos obscenos.

Por fim, meu pai, ao perceber que o inquisidor aproximava-se de mim para tocar-me, disse-lhe,

segurando sua mão:

_ Ninguém tocará em nenhum fio de cabelo da minha filha.

Um soldado da milícia tentou se aproximar de mim, mas Lorenzo e outros dois capatazes de

meu pai mostram estar armados, afastando-o de imediato. Então, imediatamente, o soldado baixou

a guarda e posicionou-se em um canto da parede. O padre Ignácio chegou, dando braçadas,

empurrando toda aquela gente curiosa e impertinente que estava aglomerada em meus aposentos.

Quando conseguiu chegar até a mim, disse:

_ Saiam desse quarto imediatamente! Quero falar a sós com a senhorita Anna.

_ Ficou louco, padre? Esta mulher está repleta de demônios. Já enfeitiçou o conde Alfred, dois

empregados da casa, e o próprio pai. O senhor não pode, de modo algum, ficar sozinho com essa

discípula de satã.

_ Sim, é verdade. Quase a pedi em casamento por causa dos súcumbos que estão dentro do

corpo dela. Eu estava totalmente enfeitiçado por esta mulher a ponto de quere-me unir a esta bruxa,

que invadiu minha mente com o seu poder maligno. – disse o conde.

Que hipócrita!, pensei comigo. Finalmente eu havia conseguido me livrar daquele

compromisso com aquele homem inescrupuloso e assassino. Sentia-me muito orgulhosa de mim

mesma, pois nunca cedi de livre e espontânea vontade às investidas daquele falso conde. A minha

vontade, naquele momento, foi de entregá-lo, dizendo tudo o que sabia sobre ele. Mas tinha que

deixar uma carta na manga para o último momento.

Padre Ignácio interrompeu meus pensamentos quando se sentou ao meu lado, na beirada de

minha cama, e ordenou em um tom severo, olhando novamente para aquelas pessoas que teimavam

em permanecer ali:

_ Já havia pedido que se retirassem. Por favor, saiam imediatamente. Quero falar a sós com a

senhorita Anna.

Uma senhora muito gorda, que mais me lembrava um grande porco capado, fez o sinal da cruz

e um comentário ofensivo:

_ Pobre vigário... A maldita feiticeira já possuiu a sua pobre alma!

Padre Ignácio, ao ouvi-la, respondeu severamente:

_ E possuirá a sua se não fizerem o que mando agora. Não veem que estão tirando o direito

desta jovem a confessar? Ela é ainda minha paroquiana e não lhes dou o direito de ofendê-la sem ao

menos ouvi-la antes.

_ Blasfêmia! Bruxa não tem direito a defesa. - disse um homem sem dentes e muito magro que

estava no meio daquela gente toda.

_ Se é assim, então ficaremos. Tornaremos essa confissão oficial. - disse o magistrado.

_ Senhor Cortez, pelo respeito que tenho pelo senhor e pela sua posição em nossa comunidade,

este é um assunto que só diz respeito à Igreja. Creio estar suficientemente preparado para lidar com

seres de outra dimensão.

Meu pai, então, interveio mais uma vez:

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_ É melhor sairmos todos. Vamos ver se o padre consegue algum resultado favorável.

Falou isso e foi empurrando todos para fora do recinto que, pelo jeito, já não me pertencia.

Assim que conseguimos ficar a sós, padre Ignácio falou:

_ Filha, preste atenção no que vou dizer agora: quero que me responda com toda a sinceridade

possível.

Antes que o padre Ignácio prosseguisse, fiz um sinal para ele, apontando o inquisidor, que

estava encostado na parede com os braços cruzados, ignorando suas ordens. Padre Ignácio ficou

furioso por ter sido desrespeitado e falou-lhe asperamente:

_ Creio não ter sido muito claro ou o senhor deve estar sofrendo de perda de audição. Quero

falar com essa moça a sós.

_ Não creio que ela tenha alguma coisa para falar que um inquisidor não possa estar presente

para ouvir. Quero que o senhor saiba que estou aqui representando as leis da Santa Madre Igreja.

Padre Ignácio colocou pessoalmente para fora o homem surdo, segurando-lhe o braço e

dizendo:

_ O senhor pode ser o representante até mesmo do rei, mas ainda mando nesta paróquia e meus

paroquianos merecem todo o meu respeito, assim como essa moça que aqui está.

Em seguida, olhou para mim, fazendo um sinal com o dedo indicador nos lábios para que eu

ficasse em silêncio. Depois de ter colocado o homem para fora, ele esperou dois minutos e abriu a

porta de supetão, pegando aquela senhora gorducha grudada com os ouvidos nela. A mulher caiu,

esborrachando-se no chão como uma abóbora podre. Padre Ignácio, indignado, falou:

_ Que vergonha, mulher! Escutando atrás da porta? Vá para baixo com os outros. Aqui não tem

nada que lhe diz respeito. Saiba que quero sua confissão na missa de domingo.

A mulher, custosamente, levantou-se do chão. Mesmo com as bochechas vermelhas como

tomates de vergonha, ainda falou:

_ Só estava tentando ouvir se os demônios no corpo desta bruxa estavam machucando o

senhor.

_ Se fosse um exorcismo - o que não é -, a senhora realmente correria o risco de ser possuída

por um espírito maligno por causa da sua proximidade tão homogênea com a vítima em questão.

Mas agora que já se certificou de que não há demônios nenhum aqui, se a senhora não se retirar

imediatamente, eu mesmo tratarei de jogá-la escada abaixo.

A mulher saiu, fazendo o sinal da cruz e benzendo-se, chamando o nome de tudo quanto era

santo que haveria de se lembrar. É claro, ao chegar perante os demais curiosos no andar de baixo,

ela inverteu toda a história, dizendo que ouviu os gritos que eu dava quando o padre jogava em

mim a água benta. Este tipo de pessoa é que fazia a má fama das bruxas. Pessoas sem nenhuma

ocupação, sem razão para viver e, com certeza, muito mal amadas. Pessoas que precisavam se

garantir causando a desgraça alheia, criando um motivo para que todos prestassem mais atenção em

sua figura patética e insignificante. Tanto que eu nunca a havia notado além daquele dia. Com

certeza, ela deve ter conseguido uma boa plateia para o seu teatro de mentiras e injúrias.

_ Então, minha querida Anna, agora podemos conversar. - disse padre Ignácio, com a voz

cansada e pesarosa.

_ Sim.

Atirei-me em seus braços, pois estava me sentindo completamente só e desprotegida. O peso

do mundo parecia ter caído sobre as minhas costas.

_ Santo Deus! Calma, minha filha. Preciso que me conte exatamente o houve para que

possamos, juntos, resolver esse problema.

Contei até os pormenores dessa nova situação.

_ O senhor também irá me condenar por isso, não é?

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_ De modo algum. Já conversamos sobre isso. Não vim a esse mundo para julgar quem quer

que seja. Só me garanta uma coisa apenas: algum dia a senhorita já teve contatos com o demônio,

ou qualquer ser vindo do inferno?

_ Não, padre. Juro que não. Só não me peça para negar quem sou. Se me perguntarem se sou

uma bruxa, direi que sim.

_ Agora, sim, consigo entender a carta que todos comentavam quando cheguei. Pensou em

tudo, não foi?

_ Espero que sim, padre. Muita gente neste momento está dependendo de mim.

Padre Ignácio olhou-me indignado e prosseguiu:

_ Lançou-se na noite escura sem temor, por confiança e amor verdadeiro. E foi amor ao

próximo. Cada vez mais a admiro, por ver o quanto o seu coração é cheio de fraternidade e

compaixão. É a pessoa mais corajosa que já conheci - até mais que muitos soldados, pois foi capaz

de abrir o peito para o perigo eminente que está à sua frente. Está determinada a enfrentar um cruel

destino por amor ao seu próximo, abrindo mão da própria liberdade e, talvez, da própria vida. A

senhorita é uma verdadeira filha seguidora do Cristo. Tenho muito orgulho de você e nunca me

esquecerei desta moça corajosa e determinada que agora está aqui na minha frente.

Ele me abraçou e, dando-me sua benção e um beijo na testa, prosseguiu:

_ Só preciso que confie em mim. Tudo o que eu fizer ou disser jamais pense que será para o

seu mal. Por isso, mais uma vez vou lhe perguntar: a senhorita confia em mim?

_ É claro que sim, padre. Se não confiasse, não teria lhe contado todo o meu segredo.

_ Então, fará exatamente do jeito que combinarmos. Promete?

_ Sim, prometo.

_ Se a senhorita não colaborar, não poderei ajudá-la.

Ele segurou meu rosto para ter certeza de que estava lhe ouvindo atentamente. Falou-me tudo

em um tom de voz que mais parecia um sussurro. Tudo isso para que não fôssemos ouvidos pelos

curiosos que estavam de prontidão, do lado de fora da porta novamente. O desespero daquelas

pessoas era tanto que havia hora em que ouvíamos seus tropeços e esbarrões na porta. Pareciam

cães de guarda. É engraçado como a vida alheia é muito mais interessante do que a nossa própria

vida. Então, o padre Ignácio levantou-se e abriu a porta. Como esperávamos, estava novamente

repleta de curiosos tentando escutar minuciosamente o que conversávamos. Imagine só: havia um

que levou um copo para tentar ouvir melhor. Outro tentava furar a parede. Eu era praticamente a

atração principal daquele espetáculo de injúrias. Senti-me como um animal enjaulado, sendo

exposto no meio de uma multidão furiosa e pronta para atirar-me pedras. Padre Ignácio olhou para

eles indignadamente e falou, em um tom sério:

_ Entrem. Ela já está pronta.

_ Ela confessou? Louvado seja o senhor padre! Nunca duvidei que o senhor fosse capaz de

fazê-la confessar. Então, diga-nos: o que ela confessou ao senhor? - disse o magistrado.

_ Não tenho que lhes dizer nada em público. Este é um caso reservado e de ordem judicial.

Portanto, cabe às partes competentes decidirem o que devem fazer.

Falando isso, o padre foi empurrando todos os curiosos que ali se encontravam.

_ Vamos, saiam daqui. Só entrarão as partes interessadas no assunto.

Então, pôde entrar o meu pai, o chefe da guarda, o magistrado, o inquisidor, o conde e o Lord

Gaspar - por estar envolvido na política local – e, finalmente, a condessa. A senhora gorducha

também tentou invadir meu quarto assim mesmo, mas o padre a bloqueou imediatamente na

entrada, empurrando-a com as mãos.

_ Aonde a senhora pensa que vai?

_ Ora, também sou importante neste caso! Afinal, fui testemunha de um exorcismo. Vi esta

mulher manifestar o demônio.

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_ Senhora Eulália, se não sair daqui agora, juro que pedirei ao chefe da guarda que lhe dê voto

de prisão por desacato e desobediência às autoridades presentes.

O chefe da guarda, na mesma hora, tomou a frente e colocou-se de prontidão, com a mão na

arma que estava em sua cintura. Padre Ignácio fechou a porta, empurrando fortemente com as mãos

a velhota sisuda e mentirosa. Ela, ainda, se fez de sonsa, mas padre Ignácio expulsou-a como um

cão sarnento. E ainda preveniu os outros curiosos que também teimavam em bisbilhotar:

_ E que isso sirva de lição a todos os bisbilhoteiros presentes aqui! - gritou para aquelas

pessoas.

Por fim, todos saíram, resmungando e debatendo-se como crianças fazendo pirraça. Então, a

portas fechadas, padre Ignácio começou o interrogatório.

_ Senhorita Anna, é verdade que não se lembra de absolutamente nada do ocorrido ontem à

noite?

_ Sim, padre, é verdade.

_ Sabe que irá a julgamento sob pena de morte?

_ Sim, estou ciente de tudo o que ocorrerá comigo.

_ Então, sabe que não pode mentir. - padre Ignácio deu uma piscadinha para mim.

Baixei a cabeça, para que não percebessem nossa cumplicidade.

_ Sim, padre, sei.

_ Então, responda-nos: quem estava presente com a senhorita durante aquele ritual satânico?

_ Não houve nenhum ritual satânico. Eu estava sozinha. Não havia ninguém comigo. Os

senhores estão tentando me confundir.

_ Está mentindo! - disse o inquisidor.

_ Então, como consegue explicar todas aquelas marcas no solo e sinais de bruxaria espalhados

por todos os lados? - continuou o padre.

_ Não havia ninguém. Só consigo me lembrar das formas incorpóreas que me levaram no colo

para a floresta.

_ Oh! - exclamaram os demais presentes.

_ Foram os demônios! - sussurrou o magistrado, fazendo sinal da cruz.

_ Então, o que tem a dizer sobre a carta escrita pela sua governanta? - prosseguiu o padre,

pedindo silêncio a todos, que não paravam de tagarelar.

_ Quero que todos os demais presentes prestem muita atenção. A carta é muito esclarecedora

neste caso.

Dizendo isso, tirou a suposta carta de Maria de dentro de uma bolsinha de couro e deu início à

leitura. Seu conteúdo pareceu intrigar e interessar todos os ouvintes. A carta dizia:

Caro senhor Juan,

É com muito pesar que venho através desta dizer-lhe que estou deixando sua morada. Sinto ter

que estar abandonando meus afazeres e meus compromissos como sua leal serva. Sinto mais ainda

por estar rompendo o compromisso feito à sua esposa, a senhora Elizabeth Goldin. Mas é com

imenso pesar que deixo o ofício como sua governanta. Embora lhe tenha todo o respeito deste

mundo e gratidão por sua generosidade comigo, venho comunicar-lhe que não poderei mais

permanecer em sua residência. Já faz algum tempo que venho tentando poupar-lhe maiores

desgostos. Embora eu tenha tentado lutar contra os meus próprios princípios religiosos para achar

uma forma de ajudar e afastar a senhorita Anna, sua filha, das ciladas do demônio, confesso ser

impossível. Pois a senhorita Anna está totalmente possuída. Embora eu tenha feito de tudo ao meu

alcance, não posso mais continuar, pois me sinto fraca e incapacitada de lutar contra o demônio

que age em sua filha de maneira desordenada. Ela tem tido ataques de sonambulismo,

influenciados pelos demônios que a possuem durante o sono. Por várias vezes, segui-a durante a

noite até o jardim, onde ela parecia não estar ciente do que estava fazendo. Creio que isso deve ter

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

193

vindo de um local secreto que a senhorita Anna achou sem querer, depois de ter lido o diário de

sua estimada e falecida esposa Elizabeth. Creio que ela deve ter construído o obscuro local para

culto demoníaco. Peço que o senhor, como um bom pai e sensato homem, encaminhe-a aos rigores

de um convento, onde poderá afastar-se por completo dessas criaturas horríveis que tanto a

atormentam. Vendo-me, então, de mão atadas, desfaço a promessa que fiz à senhora Elizabeth em

seu leito de morte. Sendo assim, deixo o meu cargo de governanta disponível a quem quer se

interesse. Espero, sinceramente, que o senhor compreenda minha atitude aparentemente covarde e

leviana. Embora eu o admire muito e tenha por sua filha alta estima, não quero manter contato

com o demônio ou com alguém que tenha alguma proximidade com ele.

Sem mais,

Maria Constança

Sua criada.

Fiz uma carta de meu próprio punho. Enquanto saíamos apressadamente no meio da noite,

deixei-a cair no chão, perto da escada, sem que Maria percebesse, para que algum dos empregados

a encontrasse. Ao ler, quem quer que fosse pensaria que Maria estava abandonando a casa por

medo de parecer ter estado envolvida em rituais de magia negra. Se eu tivesse deixado a suposta

carta que Maria havia escrito para meu pai diretamente, e ela fosse lida por ele, certamente teriam

perseguido tanto ela quanto Joseph. Àquelas alturas, estariam mortos. Porém, a carta foi encontrada

por Tereza, que procurou o padre Ignácio na igreja e entregou a carta a ele. Ele seguiu

imediatamente para a casa dos Menellaus, entregando-a ao meu pai, que a leu em voz alta para o

conde e para os demais presentes. Foi assim que o boato da carta se espalhou. Ao voltarem todos

para casa, não me encontraram. Deu-se início, então, a uma busca pela redondeza. Em seguida, o

conde enviou seus soldados para me procurarem e acionou o inquisidor, que estava na cidade

disfarçadamente, embora eu já o tivesse visto em minhas visões junto a Maria.

Todas nós fazemos um juramento em que nos é expressamente proibido mentir sobre a nossa

condição de bruxa. Devemos manter fidelidade às irmãs, mesmo sob tortura. É por isso que fiz

Maria ir embora fugida. Se alguém a interrogasse, ela também diria a verdade sobre si, mas nunca

sobre mim. E isso não seria justo com a mulher que, além de ter me criado como mãe e sido a

minha única companheira até aquele momento, também perdeu sua juventude por fidelidade e

ignorância de meus avós e de meu pai.

Padre Ignácio deu procedimento ao interrogatório:

_ E então, senhorita Anna? Pode nos dizer o que sua governanta quis dizer ao senhor Juan,

fazendo-lhe tais acusações?

_ Ela estava tentando me ajudar.

_ Por quê?

_ Porque ela dizia que o demônio pegava-me durante a noite e fazia de meu corpo o que bem

queria.

_ Oh! - exclamaram novamente.

_ Então, confessa ter pacto com o satã? - interveio o inquisidor.

_ Não! Apenas disse que estou sendo usada, mas não consigo me lembrar do que faço durante

a suposta possessão. Nem sei o que fiz ontem à noite.

Padre Ignácio socorreu-me, não deixando que ninguém falasse mais nada. Então, continuou:

_ A que veredicto os senhores conseguem chegar?

Por fim, o magistrado falou, ainda meio confuso:

_ Diria que teríamos que analisar o caso, com calma, e interrogá-la em uma corte de maneira

formal.

_ E os outros demais presentes? O que têm a dizer?

_ Concordamos com o magistrado. - disse o chefe da guarda.

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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_ Então, marcaremos uma audiência pública para amanhã bem cedo. Assim, depois de

ouvirmos o que todos dirão, daremos o veredicto, decidindo o futuro desta mulher. - disse o

magistrado, todo entusiasmado por finalmente ter algo para fazer. Afinal, nunca houve um

julgamento naquela cidade pacata.

_ Então, prendam a bruxa e levem-na para que aguarde sua sentença na prisão, antes que ela

faça mal a alguém ou fuja. - disse a condessa, tentando livrar-se de mim.

_ Concordo com a condessa: esta mulher é uma feiticeira perigosa. Eu mesmo quase caí nos

seus encantos. - finalmente o crápula do conde abriu a boca.

Lógico que ele gostaria que eu fosse para a prisão: lá seria bem mais fácil para ele subornar um

guarda e pôr aquelas mãos imundas em mim.

_ De jeito nenhum! Ela é uma moça de família e não está acostumada a um lugar como aquele.

Como pároco desta cidade, sugiro que ela fique em sua casa, trancada em seu quarto, até amanhã.

_ Senhor Juan tem algo contra?

_ Lógico que não. Ela ficará aqui, sob meus cuidados.

_ E se ela resolver tentar escapar? Ou matar alguém durante a noite? - a condessa tentou

envenenar mais uma vez (morro de medo dela...)

_ Cale-se, mulher! Está decidido: minha filha ficará nesta casa até que decidam o que será feito

dela.

_ Senhor Juan, a senhora sua esposa está coberta de razão. E se sua filha tentar escapar durante

a noite? Ou tentar algo contra até mesmo o senhor? - disse o inquisidor.

_ Garanto que ela não fugirá. Dou minha palavra como cavalheiro. E quanto à preocupação se

ela vai ou não fazer mal a alguém desta casa, por que o capitão da guarda não coloca dois guardas

na porta, para garantirem a nossa segurança?

Houve novo murmúrio de conversa e, por fim, chegaram a uma solução.

_ Tem razão. Disponibilizarei dois de meus melhores homens para que fiquem de prontidão, do

lado de fora do quarto da senhorita Anna.

_ Então é melhor que coloquem outros dois montando guarda do lado de fora da casa. –

sugeriu a condessa.

Ela não parava mesmo. Era uma pena que eu não podia falar nada. Senão, com certeza teria lhe

dito umas boas verdades. E que bom que haveria guardas em minha casa para me proteger. Assim,

não seria perturbada por ela e pelo conde durante a noite.

_ Que assim seja, então. - disse o magistrado.

_ Senhores, se estão todos de acordo, então vão para suas casas descansar. Teremos um dia

cansativo amanhã. - disse meu pai, parecendo estar exausto.

_ Tem mais uma coisa. Que fique bem claro que ninguém entre neste quarto ou saia. Que esta

mulher seja levada a julgamento assim que o dia raiar. - disse o inquisidor.

_ Dou-lhes a minha palavra. - disse o padre Ignácio.

_ E a minha de cavalheiro. - confirmou meu pai.

Por fim, saíram todos. Cada um olhando-me com uma cara pior que a outra. Ao passarem por

mim, benziam-se, como se estivessem vendo em mim o próprio demo. Fiquei boquiaberta com a

atitude ignorante daquelas pessoas. Mas, ignorantes ou não, o importante é que me deixaram em

paz. Finalmente, pensei comigo. Padre Ignácio, ao passar por mim, benzeu-me com as mãos,

fazendo em minha testa o sinal do santíssimo e confirmando em seus olhos nosso pacto de silêncio

e cumplicidade.

Assim que a porta fechou-se e, finalmente, o quarto esvaziou-se, caí sobre a cama e chorei a

noite toda. Sequer tive forças para fazer minhas orações. Por causa dos soluços, cheguei a engasgar

com as palavras. Senti a presença dos meus amigos espirituais. Mas, naquele momento, tudo o que

eu queria era sentir o calor e o abraço de minha amiga Maria. Senti tantas saudades... Meu coração

doía tanto que, se a dor fosse real, eu mesma a teria arrancado do peito com as minhas próprias

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O segredo dos girassóis

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mãos. Nas horas de muita dor, temos que ter cautela para não blasfemarmos contra Deus. Pois a

fragilidade faz-nos pecar contra tudo o que é sagrado. Naquele momento, agarrei-me à fé e ao

sagrado, cuja imagem sempre ficava na beira da minha cama... Tentei desvencilhar minhas

lembranças daquele dia, mas todas as minhas tentativas foram em vão.

Rolei boa parte da noite de um lado para o outro. O silêncio era torturante. Sempre odiei a

solidão. Por fim, acabei adormecendo com o som mudo do mundo.

“Nunca desista de seus objetivos, nem mesmo quando alguém tentar frustrá-los. Saiba que

somos testados vinte e quatro horas. Isso é só para que os anjos tenham a certeza de que nunca

iremos desanimar no meio do caminho. Os verdadeiros obstáculos são aqueles que deixamos para

trás. E a verdadeira vitória é aquela em que aprendemos a reconhecer de imediato. Siga o seu

caminho em paz e deixe para trás os que tentarem derrubá-lo. Perdoe e deseje que vivam. A vida é

uma vingança - e a morte, um descanso. Pense nisso”.

(Padre Ângelo Wallejo Moralles).

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Capitulo V – A despedida

dormeci profundamente no início, mas a madrugada invadiu-me com sonhos

turbulentos. Imagens desconexas iam e vinham, perturbando-me a mente e a alma.

Horas eu acordava como se meu corpo estivesse tendo uma convulsão; horas visões

assustadoras, com rostos destorcidos e fantasmagóricos, assombravam-me. Era como se meu espírito

já soubesse o que estava para acontecer comigo. Meus instintos de bruxa estavam agitados como

átomos em movimento.

Quando o dia amanheceu, apenas abri os olhos lentamente, porque já estava acordada há muito

tempo. O sol entrou no quarto, trazendo sua poesia matinal e, como havia me deitado com as janelas

abertas, da cama pude olhá-lo despontando no horizonte. Dei uma espreguiçada e tentei levantar-me,

mas minha cabeça doeu e tudo rodopiou à minha volta. Então, deixei meu corpo cair pesado sobre a

cama novamente.

A noite anterior havia sido uma das piores da minha vida. A despedida de Maria e as acusações

levianas que foram levantadas em falso contra mim fizeram-me sentir como se o peso do mudo

estivesse sobre minhas costas. Lembranças tristes e saudosas misturavam-se na minha mente. Queria

deixar as lágrimas caírem para aliviar aquela tensão toda, mas não conseguia. Eram muitos os fatores

que me deixavam tensa. Inclusive a atitude de meu pai preocupava-me: embora ele não tivesse

deixado ninguém me fazer mal, havia alguma coisa de errado no ar, pois aquela súbita

espontaneidade dele em me defender demonstrava que algo não se encaixava com a real situação.

Aquela atitude estava cheirando a trama e oportunismo.

A opressão que passei foi muita para uma noite. Precisei livrar-me daqueles pensamentos para

tentar, ao menos, fingir que existia algo de bom no coração de meu pai em relação a mim. Comecei a

pensar no quanto ele estava sendo enganado pela esposa e que, embora ele tivesse tido comigo uma

atitude egoísta, preocupava-se com a família. Tentei realmente achar uma resposta para os absurdos

por que eu estava passando. Por fim, desviei o pensamento de que meu pai era um vilão. Tentei vê-lo

como uma vítima daquela sociedade inescrupulosa. A minha maior preocupação seria com os

demais, que tentariam a todo custo fazer-me confessar uma coisa totalmente inversa do que

realmente era a tradição da serpente ou tradição da Lua, como também era conhecida. Meus sonhos

de liberdade e igualdade tornaram-se pesadelos - se é que algum dia pude realmente ter o direito de

sonhar... Incrível como vivi em poucos dias tudo o que uma pessoa levaria no decorrer de sua

existência para viver.

Devido ao cansaço e à fadiga da noite anterior, acabei esquecendo-me de tirar as roupas. Deitei-

me em uma posição muito desfavorável, com um infernal espartilho que me estrangulou a cintura a

noite inteira - o que me causou uma terrível dor na cabeça e no corpo. Minha vontade era de ter uma

varinha mágica igual a dos contos de fadas e, com ela, abrir um vácuo no tempo – sumindo, assim,

de todo aquele problema. Mas, infelizmente, ser uma bruxa também exigia responsabilidades que

não podiam ser ignoradas. Infelizmente, ser uma bruxa era muito mais do que um conto de fadas ou

uma brincadeira folclórica. As fantasias que se criam sobre nós, bruxas, quem dera fossem verdade!

Naquele momento, eu estava passando pela fase dos efeitos e causas. Tudo porque interferi no

meu próprio destino. Havia criticado a minha ancestral Shaara - quando ela tentou mudar o seu

futuro, invadindo o espaço e o tempo -, mas também mudei o meu, quando não aceitei as imposições

do meu pai. Quis ser livre nas minhas opiniões e vontades - o que, para a época em que vivia, não era

uma coisa normal. Deveria ter deixado que as coisas fluíssem normalmente e seguissem o seu rumo

certo. Quando comecei a ver meu futuro, deveria imediatamente ter esvaziado minha mente, como

me ensinou Dona Helena: toda ação leva a uma reação. Novamente, deparei-me com meus

ensinamentos e percebi que havia ido longe demais, passando por cima de todas as leis da tradição.

A

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197

A minha vontade de estar ao lado do homem dos meus sonhos foi tamanha que me levou a estar

onde me encontro agora, nesta cela fria, com condições subumanas. Fui uma inconsequente e

sonhadora. Por mais que sempre tenha lutado pela liberdade, deixei-me levar pela ilusão e pelos

sentimentos carnais. Definitivamente, o coração é enganoso. O que mais me entristece é pensar que

fiz tudo porque acreditei que poderia ser salva pelo meu príncipe encantado. Talvez essa seja a maior

falha humana: acreditar na palavra do próximo. Se eu tivesse me contentado em saber apenas o meu

passado, confiado que em um futuro vindouro encontrar-me-ia com o monge, talvez tivesse

aprendido a confiar na fé, não sendo tão intolerante, precipitando os efeitos e causas. Deveria ter

vivido aquela vida de imposições, onde talvez tivesse sido feliz. Poderia ter me casado com o conde.

Certamente, quando ele se cansasse de mim, trancar-me-ia no convento, onde eu cumpriria meu

destino ao lado do monge. Mas não: quis ir muito mais além e, com isso, interferi no meu destino,

antecipando o que poderia ter acontecido anos mais tarde. As dúvidas e o se sempre encontram um

lugar em nossas mentes depois que algo desagradável nos acontece - ou depois de tomarmos

decisões erradas, das quais acabamos por nos arrepender. Naquele momento, precisava arranjar

forças dentro de mim, em um lugar completamente desconhecido, antes que novamente as fraquezas

da minha mente tomassem conta do meu ser.

Voltemos novamente à minha história, em que meu destino estava prestes a ser selado. Olhei

rapidamente pela janela, que havia deixado aberta inconsequentemente. Seria difícil encarar aquela

luz. Estava me sentindo como um ébrio depois de uma noite de bebedeiras, estirada sobre a cama,

com os braços abertos e pensando coisas que nem eu mesma conseguia distinguir.

Era tudo ou nada. Tinha que ser de repente, em um supetão. Dei um pulo da cama, caindo

sentada em seguida - quase desmaiei por causa da terrível dor de cabeça. Foi quando notei que havia

um enorme alarido do lado de fora do meu quarto. Fiquei com os olhos arregalados com todo aquele

alvoroço. Escutei alguém discutindo em um tom de voz muito exasperado. Era a voz do meu pai, que

estava tentando entrar. Parecia que os guardas não o deixavam. Então, escutei um barulho

estrondoso. Só me dei conta do que era quando a porta do meu quarto abriu-se e o meu pai caiu

quarto adentro. Fiquei atônita por ter visto aquela cena tão inusitada.

_ Pai! É o senhor?

Fiquei tão feliz por vê-lo. Estava tão sozinha que, mesmo que ele me esbofeteasse, ficaria feliz

apenas por ter tido o contato daquelas mãos. Meu corpo tremia tanto que dava a impressão que eu

estava com febre alta. Meu pai levantou-se, ainda cambaleando por causa da forma com a qual havia

entrado. Correu para minha direção e abraçamo-nos com sofreguidão. Aquele momento foi único

para mim, porque foi a primeira e última vez que meu pai abraçou-me depois de adulta. Olhei-o nos

olhos, parecendo não acreditar:

_ Pai, não sabe o quanto eu estava precisando do senhor. Estou me sentindo tão sozinha... Estou

com medo; minha alma está fria como meu corpo agora. - disse isso porque senti um frio que me

gelava por dentro.

Ele continuou olhando para mim e disse-me:

_ Estou aqui porque confio em Deus e sei que contará a mim toda a verdade, minha filha. Quero

que confesse que foi o demônio quem a induziu a ter aquela atitude insana. Quero, também, que diga

que foram Maria e Joseph quem estavam evocando o demônio, que lhe deram uma poção mágica

para que você adormecesse. E que foi assim que eles a levaram para o meio daquele bosque maldito.

Diga isso e poderá ter o perdão da Santa Madre Igreja. Todos entenderão, pois verão que você é uma

jovem frágil e ingênua e que estava sob o poder e as forças da magia negra. Aqueles velhos malditos

arrependeram-se, fugiram no meio da noite, sem darem satisfações. Dizendo o que lhe sugiro, eles

levarão a culpa toda, enquanto você se casará com o conde e irá para bem longe desta cidade. Pense,

minha filha. Eu mesmo ouvi falar de vários casos em que o demônio toma a forma de pessoas e até

consegue conviver no meio de uma família, sem que alguém sequer venha notá-lo. Por certo,

aceitarão essa história de que Maria evocava o demônio, e de que Joseph era um bruxo poderoso e

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O segredo dos girassóis

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198

fazia uso do maldito conhecimento com as ervas para lhe pôr em transe. Vamos resolver isso. Confie

em mim e faça o que lhe estou aconselhando. Tudo dará certo, minha filha. Você vai se casar com o

conde. Com essa feliz e satisfatória decisão, resolveremos todos os problemas - inclusive os

financeiros. Em breve estaremos todos novamente frequentando a alta roda da sociedade europeia. E

quanto às vias de fato, não se preocupe, pois todos logo esquecerão. Essa história acabará como mais

um mexerico infundável. Por certo, Maria e Joseph serão capturados e, mais cedo ou mais tarde,

serão mortos, levando consigo esse segredo. Eu mesmo darei um jeito de impedi-los de dizer alguma

coisa. Esses traidores malditos pagarão por fugirem de mim assim, como dois ratos, na calada da

noite. Verão o quanto custa terem brincado com alguém da nossa estirpe. Aquela velha sempre foi

uma insolente. Nunca gostei dela. Aquele velhote não passava de um inútil. Só o tolerava aqui por

pena. Acharam que eu fosse mesmo acreditar naquela maldita carta que me escreveram? Ambos vão

me pagar por terem caluniado a minha família. Basta, minha filha, que aceite e faça o que estou lhe

sugerindo.

Mal pude acreditar nas palavras que saíam da boca do meu pai naquele momento. Como ele

conseguia superar as minhas expectativas em relação a ele ser um cafajeste e mau caráter? Depois de

ter ficado boquiaberta com tamanha decisão vinda da parte dele, respondi:

_ Hã!? O senhor deixa-me sem chão, meu pai. Quer dizer que não veio aqui para me ver? Para

saber como estou? Meu Deus! Definitivamente, o senhor conseguiu se superar. Juro que achei que

estava realmente preocupado comigo. Achei que poderíamos ter uma chance de resgatar o nosso

passado, meu pai, o nosso tempo perdido. Não estou acreditando no que estou ouvindo. Como pude

ser tão ingênua em relação ao senhor e a todos? O senhor só está preocupado com as suas dívidas e

com o que as pessoas poderão falar, caso saibam que estamos na falência. Nada do que estou

sentindo importa realmente para o senhor. Acha mesmo que fui capaz de fazer as coisas horríveis das

quais essas pessoas estão levianamente me acusando? Pai, nunca fiz pacto com o diabo ou com

qualquer outro ser do inferno. Desde quando o senhor passou a acreditar nessas sandices folclóricas?

Não me lembro de tê-lo visto dando importância a mexericos. O senhor conhece-me desde criança,

pai. Sabe muito bem que nunca me envolvi em sacrifícios de espécie alguma. Sabe muito bem que

não sou adepta a comer carne de espécie alguma. E como o senhor pode ser tão cruel com Maria e

Joseph, caluniando-os e acusando-os de coisas tão bárbaras? Pai, Maria ajudou o senhor a cuidar de

mim. Ela sempre lhe foi fiel! E Joseph!? O pobre homem dedicou os melhores dias de sua vida

cuidando do nosso jardim, entre outras coisas que o senhor lhe pedia e que ele nunca negou fazer.

Acho mesmo que nunca teve uma companheira. Viveu nesta casa por amor ao senhor e por mamãe.

Meus Deus, pai, foram as ervas de Joseph e Maria que curaram a moléstia da sua esposa e tantas

outras moléstias que surgiram nesta casa! A ambição está lhe cegando a visão da verdade. Sinto

muito, pai, mas nunca poderei inventar tais coisas contra Maria e Joseph. Não posso mentir quanto a

isso. Nunca os prejudicarei. Prefiro a morte a ter que inventar tais atrocidades contra duas pessoas

inocentes, se tudo o que eles fizeram nesta vida foi cuidar de mim. Portanto, não me peça para

mentir, meu pai.

_ Então, você é inocente? Graças a Deus! Sabia que todas as sandices que essas pessoas estão

dizendo sobre ser uma bruxa, entre outras coisas, não passavam de calúnias. Conversarei com o

conde. Sei que ele irá relevar tudo isso. Afinal, um homem tão bom, fino e...

_ E rico? Não é mesmo, pai? O senhor não vai falar coisa alguma com aquele déspota

usurpador. Será que o senhor não percebe que o conde nunca teve a intenção de se casar comigo?

Toda essa história leviana de que os colonos, a justiça local, o inquisidor, e o senhor participaram só

serviu de desculpas para que ele colocasse em ação o que, na verdade, já estava planejando. Não

percebe que a senhora sua esposa está de comum acordo com o conde? Eles fugirão assim que toda

essa história se apaziguar! Na verdade, pai, sou apenas uma atração, um esteio para que todos -

inclusive o senhor - se escondam atrás de mim. Assim, enquanto todos estiverem voltados para mim,

não prestarão atenção nos reais fatos que estão acontecendo. Esqueça o conde, pai. Se vendermos

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alguns bens, junto com os dotes que já possuo, por certo o senhor poderá quitar suas dívidas com ele.

A condessa também tem muitas joias que poderão ser leiloadas. Poderemos nos apertar por uns

tempos. Mas, com o esforço e a colaboração de todos, sairemos desta situação. Pai, raciocine,

suplico! Não há nenhuma vergonha em ser pobre, ou em estar falido financeiramente. Vergonha é

não ter dignidade e coragem de levantar a cabeça e seguir em frente. Juntos, pai, como uma família

que nunca fomos, venceremos tudo. O senhor vai ver! Quanto a ser ou não verdade o que dizem a

meu respeito, fica a cargo da sua consciência. A única coisa que lhe peço é que me aceite como sou.

Ponha a mão na consciência e não acuse Maria e Joseph levianamente. Pense, meu pai, em tudo o

que acabo de lhe dizer. Seja sensato, pelo amor de Deus.

Ele ficou parado na minha frente, parecendo estar raciocinando. Por fim, resolveu responder:

_ Acha mesmo que vou expor minha esposa e o meu bom nome ao descaso da humilhação,

sendo que tenho a solução aqui na minha frente?

_ E qual seria essa tal solução? Vender-me como escrava branca ou acusar de bruxaria e de

crimes levianos dois inocentes somente para que a senhora sua esposa se safe dos crimes de luxúria

dela? Quer que eu me case com aquele imundo para que, com isso, o senhor quite as suas dívidas de

jogo. É isso que o senhor espera de mim, não é, meu pai? Se isso acontecesse - o que não vai -,

jamais seria feliz. Nunca mais falaria com o senhor. Nunca o perdoaria. Antes de ser sua filha, antes

de ser uma mulher que o senhor se sente no direito de leiloar, sou um ser humano. Sangro, choro,

sinto dor e tenho sentimentos. Eu penso, pai - não sou irracional. Não pode se passar por leigo

quanto a isso.

_ Do que você está falando? Está louca! Padre Ignácio está certo: devemos mandá-la para um

convento para se curar das alucinações e devaneios em sua mente, causados pelo demônio que já está

se apoderando de você. Deve ser um demônio muito poderoso, pois está influenciando a sua

maneira de entender a realidade da vida. Onde já se viu dizer que mulher pensa? Desde quando

mulher tem algum direito? Onde foi que ouviu tais insanidades? Nasceram ignorantes e submissas

porque Deus assim quis. Não adianta tentar querer ser diferente, pois a única coisa para a qual vocês

servem é procriar. Não pode mudar os fatos ou as leis dos homens e sobre elas tentar travar uma

guerra solitária. Não pode mudar o rumo dos fatos - sempre foi assim e sempre haverá de ser. Você

deverá obedecer ao que lhe for imposto pelos homens ou pelo chefe da casa – que, afinal, sou eu.

Imagina só, uma mulher pensando!

Ele deu um sorriso sarcástico e malicioso e prosseguiu:

_ Quem está dormindo é você, Anna. Por certo, o demônio lhe está embutindo tais pensamentos

na cabeça. Mas assim que for exorcizada, vai recuperar sua sanidade mental. Vou usar minha

influência e meu conhecimento para que vá para um convento onde terá tratamento adequado. Por

certo, se não for demônios, deve ser loucura. De lá, poderá ser transferida para um manicômio, caso

seja necessário. Mas lembre-se, minha filha: basta que diga que entende o que lhe digo, é certo que

envio imediatamente alguém para lhe tirar de lá. Mas é importante que não se demore nessa decisão,

pois já está ficando velha e logo já não arrumará um partido tão lucrativo como o conde.

Era inacreditável ter que ouvir aquelas abominações saindo da boca do meu pai. Mas eu

precisava responder antes que ele me fizesse calar para sempre.

_ É! O senhor tem mesmo razão. Não sei o que falo. Por certo, estou possuída pelo demônio

mesmo! Se for assim, que o senhor e essa gente vejam-me como uma louca endemoniada, que assim

seja. Mas é muito triste saber que o senhor considera-nos, as mulheres, como um animal irracional.

Isso também quer dizer que, quando o senhor se deita com sua esposa, está se deitando com uma das

éguas do seu estábulo? Meu Deus! Estou perplexa com tanta atrocidade que sai de sua boca, meu pai.

O senhor prefere deixar-me ser trancada como uma louca endemoniada em um convento do que

ouvir a verdade, do que fazer a coisa da maneira correta. Se isso é o que o senhor acha certo, então,

cale-me. Faça como todos: sufoque a voz da verdade. Mate-me, se assim o quiserem. Mas a verdade

aparecerá mais cedo ou mais tarde. E o senhor? Ficará sozinho com sua consciência e embriaguez.

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Disse aquilo porque sentia o forte hálito de bebida que saía de sua boca. Depois de fitá-lo

desafiadoramente, prossegui:

_ Vou lhe contar uma coisa sobre sua esposa, pois acho que o senhor ainda não sabe o que anda

acontecendo debaixo do seu próprio teto. Caso o senhor não tenha percebido, a senhora sua esposa é

uma desfrutável e anda o traindo. Não estou dizendo isso para magoá-lo ou para vingar-me. Mas

acredito que o senhor está sendo ingênuo em relação a essa mulher.

Ele olhou-me fulminantemente e, por fim, respondeu ironicamente:

_ Todos temos que fazer certos sacrifícios para manter a família, minha doce e querida filha!

Aprenda que nada nesta vida sai de graça.

_ O senhor sabia? Como pude ser tão tola a esse ponto!? Eu o achava vítima. No entanto, o

senhor sempre foi conivente com todas as traições da condessa?

Senti a cabeça dar uma girada, como se o mundo todo estivesse caindo sobre mim. Era

inacreditável que um homem admitisse aquele comportamento leviano de sua esposa somente para

manter as aparências e o status. Depois de me ver ficar sem atitude, ele continuou:

_ Há coisas que uma esposa tem que fazer para manter seu casamento feliz. Existem certos

sacrifícios que são necessários para o entendimento de um casal. Em um casamento, tanto o marido

quanto a esposa têm que ser compreensivos e, muitas vezes, coniventes com certas coisas. Ora,

Anna! De onde você achava que vinham as roupas caras que você usava? E toda a comida que

comemos? Achava mesmo que eu, à beira de uma falência, poderia suprir o luxo de uma mulher tão

cheia de mimos como minha esposa? Se pensa desta forma, vejo que realmente é uma tola e

ingênua. Tinha muitas esperanças em você. Cria que, quando crescesse, dar-me-ia certo lucro. No

entanto, está se comportando como a garotinha mimada e estúpida que sempre foi. Está sendo ingrata

com a condessa. Você deveria ao menos aprender a se calar e a respeitar quem a alimentou por tantos

anos. O obséquio que sua mãe lhe deixou só poderá ser usado quando seja maior de idade ou quando

sele uma união matrimonial. Portanto, acho que já está mais que na hora de você ser mais

compreensiva e retribuir todo o sacrifício que fizemos por você. Afinal, se minha atual esposa faz

por mim tais sacrifícios, porque você, como minha filha, também não pode simplesmente cumprir

um simples pedido meu? Afinal de contas, o conde é um homem ainda jovem e cheio de vigor. E

muito rico, sim: poderá lhe dar tudo o que desejar. Não terá nunca que passar dificuldades.

_ O senhor enoja-me. Está tentando me prostituir como faz com sua esposa. Saiba que nunca

vou ceder às suas vontades. Prefiro apodrecer no calabouço de um convento como louca

endemoniada a fazer parte deste mundo miserável em que o senhor insiste em sobreviver. Se já que

não se importa com a reputação de sua esposa, dê ela mesma de presente ao senhor conde e poupe

aos dois o trabalho de fugirem. Mas saibam que pretendo gritar aos quatro ventos o que estão

tentando fazer comigo.

Meu pai olhou-me nos olhos como se sentisse repulsa por mim. Esbofeteou-me nas faces,

fazendo-me cair deitada sobre a cama. Levantei-me, colocando as mãos no rosto, mas nada disse.

Novamente, apenas o fitei, tentando reconhecer quem era o homem à minha frente. Depois que ele

me olhou com desprezo, prosseguiu:

_ Então, a partir de hoje, renego-a como minha filha e excomungo-a como ser humano. Não

moverei uma palha para amenizar sua pena. Por mim, apodrecerá em uma cela escura e úmida para

aprender a respeitar e obedecer às pessoas que só quiseram o seu bem. E quanto a dizer sobre o que

acabamos de falar, não acreditariam em uma louca tendo crises de possessão. Eu mesmo farei

questão de me certificar de que sua pena será a mais dura possível.

Ele gritou para que os guardas viessem me buscar. Naquele exato momento, lembrei-me do pai

de minha ancestral Shaara, também ancestral do meu pai e que morreu pensando que ela o tivesse

traído. Definitivamente, meu pai trouxe consigo essa revolta do passado. Ele me odiava

incondicionalmente por causa das lembranças da outra vida. Ele, então, gritou, chamando os guardas

e ordenando:

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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_ Guardas! Tirem essa mulher da minha frente! Levem-na para a carruagem. Já está na hora de

cumprir minha obrigação como cidadão espanhol.

Havia o fato de que ele também estava alcoolizado, mas o ódio mortal por mim só era

justificado por causa das lembranças inconscientes que ele trazia, achando que Shaara o teria traído e

abandonado ao descaso do destino. O fato de que eu não me tornaria submissa aos seus caprichos era

somente a centelha para que aquela raiva toda aflorasse. No fundo, ele estava usando a promessa que

o conde havia feito de esquecer todas as suas dívidas quando firmasse compromisso comigo. Meu

pai estava, inconscientemente, tentando achar um motivo para que eu fosse trancada em um

calabouço e esquecida por ele, como ele achou que foi no passado.

Por certo, todos viveriam bem. Meu pai continuaria a se fingir de cego, deixando que o conde

saboreasse os carinhos de sua jovem e desfrutável esposa para, com isso, poder viver de aparências.

Mas, quanto a mim, acabei tornando-me um estorvo, um contratempo para minha família, já que não

tinha mais a menor serventia. Ter sido esbofeteada doeu muito, mas o que mais me doeu foi o fato de

estarem me negociando como uma mercadoria.

Aprendi a duras penas que vivemos em um mundo teatral, onde somos obrigados a fazer parte

de uma bela e feliz historinha escrita pelas mãos dos ditadores, dos opressores e dos fanáticos

religiosos. O problema era a realidade por trás dos bastidores – essa, sim, era muito triste. Pois,

quando caíam as cortinas da aparência, a feia face da mentira e da falsidade vinha à tona, dando

lugar a uma dura realidade de miséria e fome, onde os podres não podiam se misturar com a

burguesia decadente, escondida por trás dos bastidores. Eu não era daquele mundo, nem sabia como

proceder no meio de tanta injustiça e desigualdade. Deus não poderia estar deixando que aquilo

acontecesse em vão. Tinha que ter algum propósito para tanto sofrimento!

Corrigi imediatamente meus pensamentos para não blasfemar contra o Pai. Deus não tem culpa

sobre os erros da humanidade. Tudo o que fazemos, mesmo sobre um ato impensado, é culpa única e

exclusiva de nós mesmos. Temos o livre arbítrio de fazer e falar o que bem quisermos. Por isso,

temos que ter muito cuidado nas horas de dor ou de desespero, para que não venhamos a fraquejar e

blasfemar contra quem nos deu o direto a escolha. Muitas pessoas se questionam por que razão Deus,

sendo tão zeloso e de absoluto amor, deixou que o seu único filho Jesus Cristo morresse de uma

maneira tão brutal. Algumas ainda têm a ousadia de dizer que o Pai virou-se de costas na hora da

morte de seu único filho, para não o ver sofrer. Isso não é verdade. Um Pai zeloso e amoroso nunca

viraria as costas ao seu filho amado. Jesus teve o livre arbítrio e escolheu a sua sentença. Com

certeza, na hora de sua morte, o Pai estava segurando suas mãos para que o seu filho, assim, não

sofresse mais do que ele havia escolhido. E não nos castigou mais porque o próprio Jesus o implorou

Pai, perdoai-os, porque não sabem o que fazem... Para mim, Jesus sempre vai ser um mestre em

sabedoria, benevolência e perfeição. Quanto ao Pai maior, este é indiscutível em suas inúmeras

qualidades, pois são supremas e absolutas.

Quando o oficial chegou, trouxe mais dois guardas com ele. Baixei minha cabeça e deixei que

me levassem amarrada pelos pulsos, como um animal selvagem. A cada volta que o oficial deu com

a corda apertando meus pulsos, senti minha liberdade indo embora. Nada mais tinha a dizer; meu

silêncio o faria por si. Por mais que qualquer pessoa passe por um momento de irracionalidade e

insanidade, ela sempre tem um momento chamado de consciência. Ninguém nesta vida se livra da

consciência. Ela é como um grito que nunca se cala dentro da gente. Mesmo que mantenhamos uma

aparência de tranquilidade, mesmo que não tenhamos a coragem de admitir o quanto somos falhos e

que cometemos injustiças, esse grito vem, mais cedo ou mais tarde, para nos mostrar o quanto somos

falhos.

Fechei bem os olhos e apertei as mãos sobre o rosto. Queria esconder-me de toda aquela

vergonha. Acabei desabando em prantos. Meus soluços tornaram-se compulsivos. Por mais que não

queiramos fraquejar, a dor da decepção torna-se um ponto de partida para a vulnerabilidade. Afinal,

somos seres humanos e, como tais, temos sentimentos. Não tive coragem de olhar para o meu pai

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nem que eu quisesse. Levantei a cabeça e engoli as lágrimas. Não daria o gosto da derrota nem a ele

nem àquelas pessoas. Quanto mais fracos aparecemos perante os inimigos, mais eles se sentem no

direito de nos pisarem. Temos que ter na mente as seguintes palavras: não damos asas a cobras e

nem cutelo ao carrasco, porque inimigo se vence com determinação, coragem e oração. O silêncio é

a maior arma que o ser humano tem nas mãos. A confiança em Deus e na espiritualidade amiga é a

única certeza de que venceremos todas as barreiras. A fé é uma noite negra: não sabemos se seremos

salvos, mas temos a confiança de que seremos. É como se atirar de um despenhadeiro para se livrar

de um dragão. Não saberemos se a voz que nos impulsiona é ou a não a de Deus, mas temos que

arriscar. A vida é um risco constante. Quem não arrisca, nunca vai ter a certeza se poderia ter dado

certo ou não. São as incertezas que nos fazem pensar. São os erros e os tropeços que nos fazem

crescer. Não existe este ou aquele que nunca deixou de aprender algo. Existem, sim, pessoas que

preferem dizer que não se lembram de nada que lhes aconteceu. Essas pessoas só fazem isso quando

se trata de algo que elas fizeram a alguém – porque, quando se trata de algo que foi feito a elas,

lembram-se por toda a eternidade. Nossos erros nunca são visíveis ou lembrados. Nunca seremos

capazes de admitir que fazemos coisas que prejudicam o nosso semelhante. Mas, se em algum

momento alguém nos faz qualquer coisa que não nos deixa satisfeitos, corremos em apontar o erro

dessa pessoa. Assim, ninguém vê o nosso. É fácil viver assim, não é? Desmemoriado, sem

lembranças, vagando sobre o lago do esquecimento. Ouvir o que alguém tem a nos falar é essencial -

mas aprender com os nossos próprios erros é indispensável. Isso não significa que nunca mais vamos

errar. Porque erramos todos os dias, todas as horas e não pararemos nunca. Isso porque somos burros

demais? Não. Porque somos fracos e não controlamos nossos impulsos.

Quando começamos as descer as escadarias, mantive-me em silêncio. Ao terminar, pude ver que

os demais presentes iam abrindo alas para que os guardas passassem comigo. Aquelas pessoas que se

encontravam nos degraus olhavam-me como se sentissem por mim uma grande repulsa. Não vi a

condessa - o que foi uma surpresa. Ela não estar presente para se vangloriar da minha derrota

significava que ela estava aprontando alguma coisa. Esse pensamento gelou-me a espinha.

Tereza, ao ver-me, caiu em prantos. Tentei passar as mãos em seu rosto quando passamos por

ela - que estava em um dos degraus-, mas o guarda puxou minhas mãos. Um dos guardas quase me

derrubou, empurrando-me pelas costas no final da escada. Só não caí porque o outro, que segurava as

cordas, puxou-me para junto dele. Um guarda ainda muito jovem que estava na porta, esperando para

abri-la, zombou de mim quando me viu escorregar:

_ Voe, bruxa maldita!

Parei no hall de saída e dei uma última olhada para me despedir do lugar onde passei toda a

minha vida. Foi a última vez que vi minha casa.

O guarda novamente empurrou-me porta afora, tentando mostrar-me que não podia parar.

Cambaleei, mas não caí. Do lado de fora, fui observando o jardim e as lembranças do passado me

vieram à mente: coisas muito pessoais, como o cheiro das rosas que Joseph sempre me dava pela

manhã; e quando Maria me trazia sumo de frutas frescas embaixo do pé de cedro. Esbocei um

discreto sorriso. Olhei para tudo e disse Adeus!, antes que o guarda me jogasse carruagem adentro.

Amarraram minhas mãos na portinhola, na parte de cima, fazendo com que meus braços

ficassem pendurados. Vai ver acharam que eu iria fugir. E se o fizesse, para onde iria? E para que

tanta violência? Será que os supostos demônios em meu corpo poderiam me possuir e me fazer sair

mordendo a todos? Certas medidas de segurança eram desumanas e desnecessárias. Mas eram usadas

para que a população ficasse acuada e respeitasse as autoridades locais.

Comecei a bater o queixo. Sentia frio, pois saíra sem ter a menor chance de levar um xale.

Embora o sol já tivesse despontado no horizonte, a neblina ainda era muito densa e, por certo,

choveria naquele dia, pois o céu estava cinza.

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Olhei mais uma vez para a casa que um dia foi o meu habitat. Vi à janela a condessa, que

observava tudo por trás das cortinas da sala. Pela distância em que se encontrava, não dava para

saber o que ela estava pensando. No mínimo, seus pensamentos eram de vitória.

Às vezes, julgamos e interpretamos mal as pessoas. A condessa não era minha amiga, mas

mesmo assim a entendia. Ela era mais uma vítima de meu pai e daquela sociedade machista.

Entendia-a e não esperava ser entendida por isso. Sabia que ela vingava em mim todas as suas

frustrações. No fundo, era muito difícil para ela ter que ser submetida a tais coisas - logo ela, que

sempre tivera de tudo. Casou-se porque já estava com 28 anos e o pai não poderia ficar com uma

filha solteirona em casa. No fundo, o pai da condessa quis livrar-se dela como o meu. Embora a

entendesse, não significava que eram justificáveis seus atos de maldade comigo. Mas é a vida!

Tornamo-nos vítimas das frustrações das pessoas com quem convivemos. Mesmo sabendo que meu

destino não seria dos melhores, compadeci-me por vê-la ali, atrás das cortinas, pois acabaria por se

afundar nas bebidas e também passaria a gritar com as paredes, pois não teria nem a mim nem a

Maria para lhe servir de esteio. Quando o conde se cansasse do seu brinquedinho, descartá-la-ia,

deixando-a ao relento. Definitivamente, deve ter sido muito difícil para a condessa ter deixado seus

sonhos, sua vida e, provavelmente, um amor. E agora lá estava ela, vivendo ao lado de um homem

muito mais velho, que bebia dia e noite e era um compulsivo por jogos. Por não cumprir mais os

deveres como marido, fazia vistas grossas e deixava-a ter seus amantes para, com isso, lucrar

também.

Era bizarro e inacreditável saber que os homens usavam seu poder sobre as mulheres para fazê-

las suas meretrizes particulares. Logicamente, isso acontecia debaixo dos seus próprios lençóis.

Mesmo sabendo que o adultério era considerado um crime hediondo para a Santa Madre Igreja, os

nobres não só o praticavam às escondidas, mas também prostituíam suas esposas, fazendo-as

cometer o mesmo crime. Pois, para a sociedade, o importante era manter as aparências. Também

tinha o fato de que, enquanto estivesse dando lucros favoráveis à Igreja, o povo não faria mal algum.

Mas tinham que se manter rigorosamente em dia com seus dízimos, entre outras coisas. Qualquer

deslize seria imperdoável e prejudicial à saúde deles. Logicamente, todos sabiam das depravações

dos nobres. Mas era mais sensato que permanecessem calados. Assim, a alta sociedade permanecia

intacta.

Aqueles hipócritas depravados comiam e bebiam às custas da desgraça alheia - da escória, como

chamavam os menos favorecidos. Repudiavam a pobreza como se eles fossem vermes. Mas era o

lodo de suas atitudes que destruía a raça humana. Vivi em uma época onde a degradação não era só

dos corpos maus cheirosos. Vivi em uma época onde a insociabilidade e a hipocrisia tomavam conta

da humanidade como uma doença contagiosa. As pessoas não se misturavam umas com as outras. Os

pobres tinham um espaço na exclusão. Tinham que viver escondidos. Pessoas com deficiências eram

excomungadas ou tinham que pedir esmolas nas ruas. Os negros, estes então... Sofreram com o

preconceito dos que se diziam ter poder sobre as pessoas. Gostaria de ter podido fazer alguma coisa,

mas só fui descobrir meu real caminho quando já estava na hora de me encontrar com meu destino.

As crianças eram obrigadas a fazer duros trabalhos, enquanto as filhas das senhoras feudais sequer

podiam vestir-se sozinhas. Se um menos favorecido ou uma mulher, como no meu caso, os

desafiassem, por certo poderia considerar-se morto. Mesmo que confessassem e se arrependessem,

como lhes era imposto muitas vezes, por certo faltar-lhes-iam alguns pedaços do corpo. Aí, sim,

estariam fritos em óleo fervente, pois como sobreviveríamos em uma sociedade totalmente

preconceituosa? Ninguém lhes daria trabalho nem esmolas, e ninguém se casaria com uma ex-bruxa.

Principalmente porque nunca existirá ex-bruxa. Uma vez conhecedora da magia, não adianta tentar

se converter.

As pessoas que eram consideradas bruxas, mesmo que fossem perdoadas pela Santa Madre

Igreja, jamais obteriam o perdão. Mesmo demonstrando arrependimento, elas acabariam

mendigando, pois o povo nunca mais as olharia com os mesmos olhos. Uma vez pagão, sempre

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pagão. Se eu tivesse aceitado o que o meu pai havia me sugerido, teria que viver sob vigilância

constante e só sairia de casa acompanhada por um guarda e uma aia de confiança do conde. Meu pai

também poderia ser chamado a qualquer deslize meu e poderia castigar-me, se assim achasse

necessário. Uma pessoa que estava em uma situação como a minha, quando morria, era jogada em

valas ou enterrada em locais exclusivos para hereges, excomungados e pagãos. Não obtinha da Santa

Madre Igreja autorização e o direito de ser enterrada em um cemitério público ou em um local

sagrado. Na maneira de ver desses hipócritas, Deus também não perdoava os pecadores e os hereges.

Eram pessoas que pregavam a palavra do Criador sem ter o menor amor no coração. Mas, se Deus

não perdoava ninguém, então por que ele mesmo disse Sou a ressurreição e a vida. Quem crê em

mim, ainda que morra, viverá; e quem vive e crê em mim, nunca morrerá?

A única coisa que Jesus realmente fez foi pregar o amor e o perdão. Ele também nos ensinou

que só o Pai poderia julgar-nos e mais ninguém. Isso me pesou na alma naquele momento. Se Jesus

Cristo foi só perdão e bondade, como poderia o ser humano, cheio de corrupção, com coração

carregado de maldade, sentir-se no direito de injuriar e julgar o seu próximo? Por que ser diferente

era um crime, um pecado? Por que tinha que haver somente uma religião que pregasse sobre o Cristo

verdadeiramente? Por que tudo era heresia? Por que as missas tinham que ser celebradas em latim, se

a maioria da população mal sabia assinar o próprio nome? Aos pobres, quando lhes era permitido

assistir uma missa, tinham que ficar do lado de fora da igreja. Os negros nem da porta podiam passar.

Se a casa era de Deus, por que tanta desigualdade, preconceito e soberba? Será que o mundo mudaria

algum dia? Será que as pessoas em outra época, em outra encarnação, seriam mais evoluídas? Será

que os apóstolos também tiveram dúvidas? Pois elas me pesavam o ser. Que triste ter que fazer

parte de uma humanidade tão desigual! - pensei, por fim. Então, deixei-me levar pela paisagem...

A caminho da cidade, fui observando tudo ao meu redor nos mínimos detalhes, numa espécie de

despedida fúnebre. Adorava a cidade de Salamanca, com suas enormes montanhas e árvores. Esta

cidade mágica enfeitiçava os olhos de quem quer que por ela passasse. Salamanca é uma província

raiana da histórica Região de Leão, na Espanha, e situa-se a nordeste de Portugal. Também é

influenciada pela bacia do rio Douro. Sua denominação, em idioma local antigo, era doiri. Essa

região chegou a sofrer influências romanas, árabes e diversas outras mais sutilmente. É uma terra de

clima ameno e topografia variada. A cidade é situada em local mais plano, mas com montanhas ao

norte e ao sul. Dona da penúltima catedral gótica construída na Espanha, como seus maiores tesouros

encontramos: a Universidade de Salamanca, a segunda universidade mais antiga da Europa, fundada

no ano 1218 por Alfonso IX de Leão; as Catedrais Nova e Velha; Plaza Mayor; Ponte Romana, e

outros, sem fim. Seu título deve-se ao fato de o arenito, utilizado em suas antigas construções,

apresentar coloração levemente dourada clara. De acordo com a luz, pode-se verificar que o título faz

juz à sua beleza. Em suas terras, são produzidos vinho e azeite, e há alguma criação de ovinos e

caprinos. Não possui temperaturas extremas de calor e frio, e recebe pouca afluência de chuvas. Já

em suas montanhas, pode-se verificar mais abundância pluvial. O mais rico de Salamanca talvez seja

sua história secular, onde se verifica acontecidos inusitados. Cristóvão Colombo mesmo chegou a

passar pela cidade. Nela tivemos a Inquisição e a migração de judeus, portugueses, árabes e tantos

outros mais que compunham seu quadro histórico. Também devido à sua localização geográfica,

sofreu influência de correntes celtas em dados momentos e ocasiões. Talvez daí venha sua

significação. Salamanca, com certeza, seria no futuro um local onde as minhas irmãs poderiam se

encontrar.

Sonhos, belezas e histórias. Tudo isso passava na minha frente. Eram pequenos momentos dos

quais eu sentiria saudade. Residia dentro daquela cidade uma força maravilhosa e que o tempo nunca

poderia apagar. Nenhuma maldade poderá acabar com a magia de Salamanca. Isso eu sabia porque

estava em meu coração. Minha alma estaria ali para sempre. Poderiam me tirar tudo, menos os

sonhos e as lembranças dessa formosa província. Eu era realmente apaixonada por Salamanca, pelo

meu país, minha Espanha... Viajei mentalmente, percorrendo toda aquela terra maravilhosa com

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meus pensamentos e lembranças. Só fui interrompida quando chegamos à cidade e pude ouvir o

alarido das pessoas que estavam nas ruas, naquela manhã de fim de outono. Pareciam estar sabendo

que eu ia ser levada a julgamento, pois seus olhos curiosos e amedrontados não desgrudavam da

carruagem que estava em disparada. As pessoas fizeram uma espécie de procissão nas laterais das

ruas, de um lado a outro. Multidões aglomeravam-se nas calçadas. Ouvi gritos e xingamentos, mas

não sabia decifrar nenhuma daquelas palavras que, por certo, não eram de misericórdia ou de afeto.

Impressionante como más notícias chegam rápido! Voam nas asas do vento.

Minhas mãos e meus braços já estavam começando a doer e a ficarem dormentes. Percebi,

também, que meus punhos estavam arroxeados. O pior é que nem poderia mexê-los muito, pois a

corda estava muito arrochada e poderia cortá-los, com certeza. Minha boca estava seca e sentia medo

e fome. Que combinação sem requinte!

Meu pai não estava dentro da carruagem comigo. Acompanhou-nos a cavalo. O guarda que me

escoltava não me pareceu muito amistoso. Olhava-me com certo pavor, escondido atrás do semblante

fechado. Resolvi permanecer calada, pois o medo nas pessoas é geralmente muito perigoso. Elas

acabam usando a violência como uma forma de defesa. Então, por sensatez, evitei até respirar muito

alto.

O cocheiro corria tanto que parecia que iria tirar o pai da forca. Meu estômago começou a

embrulhar de tanto que sacudia a carruagem. Elevei meu espírito ao céu em orações. Em um instante,

estava longe de tudo aquilo. Fechei os olhos bem apertados, para olhar para dentro da minha alma,

tentando achar algum lugar tranquilo. Quando nos concentramos muito, chegamos a lugares

imaginários. Mas, naquele momento, só queria me concentrar naquela magnífica paisagem de

Salamanca à minha frente. Viajei mentalmente por todo aquele cenário. Senti meu corpo leve. Era

como se o meu perispírito estivesse se desprendendo naquele exato momento. Era uma forma de

socorro mental. Eu estava tentando encontrar a paz e segurança dentro de mim mesma. Realmente,

precisava desligar-me daqueles acontecimentos - ou acabaria ficando louca. Cheguei até a esboçar

um sorriso causado pelo nervosismo em que me encontrava, mas o guarda cutucou-me com a ponta

do fuzil, fazendo-me sair do meu estado de transe. No mínimo, deve ter pensado que eu estaria

maquinando algo – ou, quem sabe, naquela mente poluída, ele imaginou que eu já estivesse

incorporada por algum súcubo.

Súcubo é um demônio com aparência feminina, que invade o sonho dos homens. Fazendo isso,

eles podem corromper totalmente a pessoa. Súcubos são demônios que se alimentam da força sexual

das pessoas. Quando estes demônios invadem o sonho de uma pessoa, eles tomam a aparência do

desejo sexual delas e os atacados têm a melhor experiência sexual de suas vidas nesses sonhos. A

energia que vem do prazer do atacado é sugada pelos súcubos. A palavra succubus vem do verbo em

latim que quer dizer deitar-se sob. Íncubos são demônios masculinos que afetam as mulheres.

Ambos sempre agem à noite, enquanto suas vítimas dormem. Para o meu entender, nada mais era do

que uma pessoa com seus desejos sexuais reprimidos. E isso acabava aflorando durante o sonho,

quando o corpo está livre de represálias. Mas, por ter a mente ignorante e ingênua, esses pobres tolos

saíam a confessar tais sonhos aos padres, que, por sua vez, condenava-os, dando-lhes várias

penitências e castigos abomináveis. E se o sonho prosseguisse - o que quase nunca acontecia,

porque, logicamente, quem seria louco de ser torturado tantas vezes? - o padre ou responsável diria

que o infeliz estarva dominado por demônios da luxúria. Nem quis pensar no que aquela mente

libertina à minha frente poderia estar pensando a meu respeito. No mínimo, achava que eu estava

tendo delírios imorais porque esbocei um sorriso. Mediante aquela cutucada, abri meus olhos

rapidamente e comecei a olhar pela janela, já que nem com os meus pensamentos eu podia ficar

sozinha.

Ao passarmos frente à igreja de padre Ignácio, vi um cortejo fúnebre. O senhor Manoel Borges

havia falecido. Houve certo comentário que poderia ter sido por causa da peste, mas nada havia sido

comprovado. Todos pareciam não querer falar sobre o assunto, sendo que a peste era considerada

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uma doença do diabo. Próximo à praça principal, algumas moçoilas desfilavam em seus belos trajes

e, ao ver passando a carruagem em que me encontrava, viraram de costas imediatamente,

impulsionadas por suas aias. No mínimo, pensavam que eu jogaria um feitiço sobre elas ou, quem

sabe, transformá-las-ia em sapo ou coisa parecida.

Além de ter me tornado a única atração do condado, também havia me tornado uma aberração

da natureza. Sei que, naquela manhã, não tive a oportunidade sequer de olhar-me ao espelho, mas

tinha certeza de que em minha face não haviam nascido verrugas da noite para o dia. E sabia que, em

meus cabelos, embora despenteados, não tinham cobras mostrando a língua. Mas, quando eu olhava

para os rostos amedrontados daquelas pessoas, era isso que elas passavam para mim. Senti-me um

monstro, uma aberração da natureza.

Quando chegamos, finalmente, frente ao tribunal local, uma multidão já se reunia, aguardando a

chegada da atração principal - no caso, eu. Algumas pessoas estavam carregando foices e paus nas

mãos. Outras trouxeram cesta de legumes e ovos podres. Senti um calafrio repentino invadir todo o

meu ser ao ver toda aquela gente aglomerada em frente ao tribunal. Por instantes, achei que nem

chegaria a julgamento. Os demônios não me fariam mal. Mas, com certeza, poderia esperar tudo

daquelas pessoas. Na verdade, sabia que naquelas atitudes ameaçadoras elas estavam demonstrando

uma forma de autodefesa. Isso foi o que me assustou: o medo que elas sentiam de mim poderia surtir

reações diversas em cada uma delas. As pessoas, quando estão sendo influenciadas ou passando por

uma histeria coletiva, podem ser muito perigosas, em todos os sentidos.

Fui despertada daquele transe de medo pela voz estridente de um homem. Estiquei o pescoço

para ver. Era a voz do chefe da guarda, gritando do lado de fora da porta tribunal. Aquele homem

espalhafatoso deixou-me ainda mais aflita com o seu abanar de braços e gritos estridentes. Ele era

um homem alto e muito magro. Parecia ter saído de uma catacumba, pois sua cor muito pálida e seus

olhos extremamente esbugalhados eram assustadores. E aquele bigodinho, então? Todo engomado

sabe-se Deus pelo quê! Arrepiei-me dos pés à cabeça ao ver aquela figura exótica e nada

convencional. Sua farda não lhe caía bem, pois ficava curta nas bainhas e justa demais nas pernas e

braços. Eu até poderia ir para a fogueira, mas não consegui deixar de observar o desleixo de quem

estava tentando achar algum defeito em mim. O homem, definitivamente, parecia-se com um

boneco fantoche, personagem de alguma cena de um teatro de horror. Engoli o riso mais uma vez e

continuei a detalhar aquele pobre infeliz que havia caído nas minhas graças. Se eu estivesse no

escuro e sem ninguém por perto e aquela figura tivesse aparecido de repente, no meio do nada, juro

que cairia dura e tísica ao chão. Santo Deus, tenha pena de minha alma, pensei comigo! Estava

sendo soberba e insana.

A cada instante, ficava mais desesperada. Isso fazia com que a minha mente começasse a ter

devaneios de tolices. No fundo, não queria acordar para a realidade dos fatos - o que explicava certos

pensamentos ilógicos para o momento em questão. Embora eu tivesse tentando manter meus nervos

sob controle para não cair em prantos e demonstrar fraqueza, estar amarrada como um animal e

vigiada por aquele soldado na minha frente estava me deixando psicologicamente desorientada. Às

vezes, quando estamos muito assustados, não conseguimos sequer ouvir o som que sai da boca das

pessoas. Só vemos que elas mexem os lábios. Era o que estava acontecendo comigo. Eu estava

quase em choque e, por isso, minha mente tentava ser irracional. Era como se ela estivesse me

protegendo de um colapso repentino. Depois de respirar profundamente, esvaziando a minha mente,

voltei à realidade de novo. Lá estava o homem comprido a falar e gesticular. Foquei-me em seus

lábios para sair daquela surdez mental e poder ouvir o que o chefe da milícia estava dizendo. Por

fim, depois de muito esforço, consegui sair do devaneio e ouvi o que estava sendo dito:

_ Vamos, minha gente! Deem passagem para um oficial em serviço. O show ainda não

começou. Vão se afastando da carruagem e dando-me licença, para que faça meu trabalho como se

deve.

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Aqueles braços compridos iam abanando e afastando a multidão que, aos poucos, foi abrindo

passagem. Uma menina fez-me uma careta e a mãe logo tratou de tapar os olhos da pobre. Ela só

estava brincando, mas a mãe deve ter achado que eu a transformaria em uma boneca.

_ A que horas vão queimar a bruxa? - perguntou uma velha senhora.

O chefe da guarda, porém, respondeu-lhe, parecendo não estar interessado em dar muitas

respostas:

_ Vamos deixar que os responsáveis respondam a todas essas perguntas na hora certa, minha

senhora. Primeiro, ela deverá ser interrogada. Depois disso é que saberemos quais as medidas serão

tomadas.

Por fim, depois de muito esforço para abrir caminho por entre a multidão, o capitão da milícia

conseguiu aproximar-se da carruagem. Abriu a portinhola, olhou-me seriamente, sem nenhuma

palavra a dizer, e foi desamarrando meus pulsos. Meus braços pareciam estar mortos, devido ao

tempo que ficaram suspensos. O chefe da milícia tirou-me da carruagem aos safanões. Ele não estava

com medo de mim, mas tinha que mostrar ao povo que tinha autoridade. Fui, em seguida, amarrada

novamente. Só que, dessa vez, com os braços para trás. Comecei, a partir daquele momento, a sentir

que minha liberdade tinha sido tirada de mim para sempre. As pessoas que estavam do lado de fora

do tribunal sussurraram coisas absurdas. Outras, ainda, gritaram como se vissem em mim algum tipo

de forma deforme. O pânico de algumas delas causou uma histeria coletiva. Os poucos guardas que

existam ali mal conseguiam controlar a multidão que havia se formado na porta do tribunal. Subi a

escada empurrada e quase recebi o golpe de uma pedra que um fazendeiro lançou em mim.

Já dentro do tribunal, fui obrigada a ficar sentada por horas em um corredor escuro, pois o

magistrado e o inquisidor ainda não haviam chegado. Fiquei observando o corredor. Metade das

paredes era de madeira e a outra metade era decorada por enormes quadros. Um imenso lustre

estava pendurado sobre a minha cabeça. Seis bancos compridos seguiam em fileiras corredor

adentro, um ao lado do outro. A porta de entrada era imensa e pesada, e a porta a sala de audiência

era dupla e muito alta. Era um lugar muito frio. Não tinha nenhuma planta ou decoração que

harmonizasse o ambiente. Tinha certo clima de tristeza no ar. Era como se as almas do purgatório

gritassem por clemência o tempo todo ali dentro. Eu estava parecendo um porco espinho, de tão

arrepiada que fiquei ao perceber que aquele lugar era um grande portal para os espíritos sem luz e em

aflição.

Dentro da sala de audiência, reuniam-se algumas pessoas ilustres e importantes, como: o conde

Alfred; o chefe da milícia, senhor Antônio Santos; os dois maiores representantes paroquiais, padre

Ignácio Manuel, padre Alencar Sorancco; madame Hortência Rivald; a condessa Marli Von Del Prat;

meu pai, Juan Vladimir Porto Señra; senhor Álvaro Lancastro; lady Dornellas Carrucci; um

representante legal de sua majestade o rei, o Lord Marllon D’ Runchieir; o Lord. Octávio Güllians

III; o sobrinho de sua majestade a rainha, o duque Philip Gonzáles; e, por último, o senhor Emanuel

Tostes, que representaria o povo legalmente e por todos faria as perguntas, se necessário. Esse tipo

de coisa praticamente não acontecia, pois o representante do povo apenas servia para levar as

notícias do que se passava dentro da sala de audiência, já que o povo, em certos momentos, não

podia estar presente.

Por volta de onze e meia, chegaram o magistrado Narcíseo de Freitas e o inquisidor Nicolau

Neufrien. E, para o espanto de todos, vieram acompanhados do bispo, Dom Helvécio Hernandez, e

do Prior Eurico Pastorino de La Constance. O alarido foi tamanho quando o homem desceu da

carruagem que, de dentro do corredor do tribunal, pude ouvir. E até mesmo eu, que já não esperava

mais nenhuma surpresa, fiquei completamente extasiada ao ver tal figura ilustre. Ao passar por mim,

olhou-me de soslaio, demonstrando desprezo absoluto. Seu olhar era severo e gelava até os que já

estavam mortos. Ele era um homem alto e forte. Sua presença era de imponência. Dom Helvécio

Hernandez era muito comentado por seus feitos e proezas pela forma como julgava os condenados de

feitiçaria. Diziam que as suas torturas eram implacáveis e que não havia quem não confessasse todos

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O segredo dos girassóis

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os pecados a ele. Ele vestia uma túnica negra comprida. Em sua cabeça, havia uma mitra preta e

vermelha. Ele aparentava ter uns setenta anos de idade. Pela forma sisuda do rosto, por certo nunca

em sua vida soubera o que era um sorriso. Eu sabia que seria severo e impiedoso comigo. O homem

não era um emissário da Igreja, mas sim um emissor de Lúcifer. Quando ele estava passando perto

de mim, ventou forte e o cheiro que pairou no ar foi de enxofre. Mas o mais estranho era que todas as

portas estavam fechadas. Havia algo de malévolo nele. Pude jurar que uma sombra entrou ao seu

lado na sala de audiência. Definitivamente, aquele homem não era um ser humano.

Até aquele momento, não pude ter certeza se a sombra era uma ilusão da minha mente cansada e

nervosa, ou se realmente a sombra entrara na sala com Dom Helvécio. Olhei para todos os lados,

mas nada vi. Até que, de repente, lá estava ela, flutuando como um lençol negro sobre a porta da sala

de audiência. Era uma criatura irreal, com rosto deforme, olhos vermelhos e um sorriso apavorante

na boca. Quase não dava para se ver nitidamente, mas os olhos foram o que mais me assustou, pois

demonstravam que era um demônio devorador de almas. Ficou pairando alguns minutos, parecendo

estar procurando uma vítima para se apossar da sua alma. Tive que me manter bem discreta para que

ele não percebesse que eu podia vê-lo. Pois, quando um demônio como aquele percebe que podemos

vê-lo, por certo se torna muito mais perigoso. Depois de alguns minutos, pensei que ele tivesse ido

embora. Mas, logo em seguida, ele estava sobre a minha cabeça e sua forma incorpórea já havia

mudado de novo. Desta vez, ele parecia ter criado asas de morcego. A figura deforme olhou-me com

ar zombeteiro e maligno. Eu, por minha vez, baixei os olhos, tentando não demonstrar nenhuma

reação. Se a morte tinha uma forma, ali estava ela, na minha frente, olhando para mim. Confesso que

fique fiquei apavorada. Percebi que, além de apavorante, era um zombeteiro, pois podia mudar de

forma. E ele, ao perceber que eu podia vê-lo, agarrou-se nas paredes com suas unhas compridas e

começou a correr pelo teto. Depois, voltou para a porta da sala de audiência e sorriu-me, mostrando

sua língua de cobra.

Certos espíritos acompanham as pessoas quando elas têm um coração muito perverso. Tais

espíritos são vulgarmente chamados de demônios, atraídos por nossas energias - sendo elas negativas

ou positivas. Ou seja, se vibrarmos boas energias, vamos atrair bons espíritos. Mas, naquele caso

específico, o espírito já havia tomado conta daquele corpo. Ambos eram praticamente um só ser.

Dom Helvécio estava carregando sobre o corpo todo o peso das injustiças que cometera contra suas

vítimas. Aquele demônio era o seu julgador e, quando ele viesse a morrer, com certeza ele seria o seu

algoz e o faria ver as atrocidades cometidas em vida. Por certo, Dom Helvécio havia julgado muitas

pessoas levianamente. O que eu achava mais interessante era saber que esses homens de Deus faziam

parte de um clero e se diziam ter o poder de julgar e exorcizar as pessoas supostamente

endemoniadas, mas não conseguiam ver o demônio que estava possuindo o seu próprio corpo.

Certos espíritos atormentam seus obsediados da pior forma possível. As formas mais comuns de

obsessão são: a obsessão simples, a fascinação, a auto-obsessão, o obsessor por amor e o suicida. O

ser humano é objeto e alvo do processo de obsessão constantemente. O obsediado trata-se de alguém

cujo débito é muito elevado diante da lei divina.

No plano de evolução espiritual em que se encontra, nosso planeta é um local de expiação, no

qual se concentra um grande número de espíritos vibrando nas mais baixas frequências possíveis.

Esses espíritos vivem presos a situações emocionais de ódio, raiva, egoísmo, amor não-

correspondido, entre outras emoções. Estão de tal forma presos ao plano físico que muitos acreditam

ainda estar em seus corpos carnais. Assim, vivem próximos das pessoas com as quais um dia

conviveram, afastando-se dos planos espirituais mais elevados e atrasando sua reencarnação. Entre

esses espíritos, ainda existem aqueles que têm a consciência de que estão mortos e de que já não

habitam mais um corpo físico. Mas, como ainda estão presos às vibrações muito baixas do mundo

espiritual, realizam ações que visam a prejudicar os vivos e atrapalhar ao máximo a vida e a

evolução espiritual de suas vítimas encarnadas. Esses espíritos são os que chamamos de obsessores.

Sua sensibilidade à Luz Divina foi embrutecida pelo tempo e por sua natureza moral. Eles ficam

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estagnados num círculo vicioso e numa obstinação tão intensa que não é raro se esquecerem de

quando e do porque de tudo ter começado. Na maioria das vezes, estão tão cansados e vivem há tanto

tempo nessa condição que não sabem mais como caminhar em direção ao esclarecimento e à Luz de

Deus - necessitando, assim, de toda ajuda que lhes possa ser fornecida.

É fácil para nós imaginarmos o surgimento de tais obsessões pelo caminho do ódio. Afinal,

sabemos do que os homens são capazes quando tomados pela raiva descontrolada. Mas também

surgem obsessões, até mais graves, em virtude do amor. O amor gera correntes que, unidas a outros

sentimentos como egoísmo, apego, carência afetiva intensa, falta de auto-estima, podem produzir

obsessões. A revolta, a dor e a raiva podem mudar a energia do amor. Basta que exista um grande

apego alimentado por um forte egoísmo, gerado num coração que viva uma grande carência, e

teremos um espírito que sentirá uma grande dificuldade de se separar dos entes queridos. Como o

amor e o ódio estão separados por uma barreira quase imperceptível, em algumas oportunidades

imaginamos que um espírito está com ódio - quando, na verdade, ele pode estar escondendo a dor de

um amor não correspondido. Ou até mesmo pode ser uma entidade que ainda quer manter o apego

que tinha em vida, agindo de forma a manter a outra pessoa presa ao círculo de sentimentos que

demonstrava quando o espírito estava encarnado. De todas as formas de obsessão, a gerada pelo

amor é a pior de todas, pois aquele que ama sequer pode imaginar ou aceitar que, na verdade, está

atrapalhando seus entes queridos. Ele acredita estar ajudando-os, supondo que não poderiam viver

sem sua presença e auxílio. A relação entre o obsessor e suas vítimas é variada e segue por caminhos

tortuosos, mas que inevitavelmente levam à degradação física e moral do obsedado - o que, por fim,

pode levar à vitória do espírito obsessor.

As obsessões são as ações que influenciam os vivos, estimulando reações e semeando a

discórdia e o ódio, nascido da força exercida pelos espíritos inferiores. Eles influenciam

maleficamente, como os demônios das histórias bíblicas. Assim como ocorre nessas histórias, as

formas de o obsessor atuar também são sutis e intangíveis. Só após muito tempo é que se tornam

evidentes. Nunca devemos tentar fazer um exorcismo ou desobsediar sozinhos, porque não sabemos

o grau da obsessão no qual se encontra o indivíduo. Sem contar que o espírito pode também interferir

na vida de quem tentar atrapalhá-lo. Ele pode até mesmo se irar contra a terceira pessoa. Nunca

tente fazer um acordo com um espírito. Isso nunca funciona e o obsessor pode passar a obsediar a

quem lhe faz o acordo também.

É muito fácil saber quando uma pessoa está sofrendo de obsessão, pois se tornam visíveis as

alterações de comportamento físico, mental e emocional. Tais como: olhar fixo, esgazeado ou

fugidio, sem encarar ninguém; tiques e cacoetes nervosos; desalinho ou desleixo na aparência

pessoal; excentricidade comportamental; agitação; inquietude; intranquilidade; medo e desconfiança

injustificáveis; apatia; sonolência; mente dispersa; ideias fixas; excessos no falar; no rir; mutismo ou

tristeza; agressividade gratuita, difícil de conter; ataques que levam ao desmaio; rigidez;

inconsciência; contorções; pranto incontrolável e sem motivo; orgulho; vaidade; ambição ou

sexualidade exacerbados e exagerados. Quando a pessoa volta ao normal, após uma crise,

geralmente queixa-se do domínio sofrido e lamenta atos infelizes que praticou. Na fascinação, os

demais notam a fantasia, o fanatismo, a fixidez, o absurdo das ideias. Só a pessoa obsediada não

nota.

Fiquei ali por horas, tentando achar uma qualificação para aquele espírito cuja forma mal se

podia ver. Aquele inquisidor não sabia, mas, se houvesse um julgamento divino, ele seria o primeiro

a morrer queimado. Pois aquele obsessor era o seu algoz espiritual e seria o primeiro a condená-lo.

Todos estavam dentro daquele tribunal havia horas. Até os espíritos malignos ocupavam seus

lugares de destaque. Enquanto eu, reles bruxa, permanecia sentada em um banco duro, isolada de

todos, no escuro, amarrada com as mãos para trás e sendo atormentada pelo obsessor de um

monsenhor, que se sentia no direito de me julgar e condenar. O que eu havia me tornado para aquelas

pessoas, um animal? O que de tão grave eu havia cometido? Será que ter uma ideia própria e

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formada fazia de mim ou de alguém uma pessoa endemoniada? Comecei sem querer a deixar que a

revolta tomasse conta de mim. Afinal, quem sabe com tantos demônios sobre o meu corpo eu

poderia sair e engolir alguém? Com tantas criancinhas deliciosas à solta, imagina o que eu não

poderia fazer! Isso, por certo, eu não faria - é lógico. E eles nem desconfiavam que o demônio-mor

tivesse acabado de entrar e estava lá dentro, no meio deles. Sacudi a cabeça com indignação.

Ingênuos, pensei em voz alta.

Pedi ao guarda que estava parado à minha frente, em posição de estátua, que me desse um copo

d’água, mas ele permaneceu em posição ereta. Exclamei várias vezes, implorando-o, mas o homem

nada fez. Acho que ele era mesmo uma estátua. Mas juro: não fui eu quem o transformou. Era como

se eu fosse translúcida para aquele soldado. Não fazia a menor diferença se eu morresse ou não.

Meus braços começaram a doer novamente. Toda aquela situação estava me deixando

completamente louca. Estava tendo alucinações e devaneios. Já não conseguia distinguir o certo do

errado, a verdade da mentira. Houve hora em que eu acreditava que eram verdadeiras aquelas

acusações contra mim. A falta de comunicação e o silêncio absoluto, causado pelo desprezo daquele

guarda à minha frente, já estavam realmente começando a afetar os meus nervos.

Estava cansada e precisava dormir um pouco para descansar a mente. Fiquei me lembrando de

como era bom poder cochilar dentro de uma tina com água quente. Fui criada por Maria e, devido

aos seus costumes e à tradição, ela me ensinou a tomar banho todos os dias. Muitas vezes fazia isso

às escondidas de todos, em meus aposentos, pois não era o costume europeu. Na verdade, as pessoas

não eram apenas imundas de pensamentos, mas também seus corpos tinham um cheiro fétido. A

senhorita D’Lú contou-me, certa vez, sobre os estranhos costumes da corte europeia, onde a maioria

das pessoas casava-se no mês de junho, início do verão, porque, como tomavam o primeiro banho do

ano em maio, o cheiro delas ainda estava mais ou menos tolerável. Entretanto, como já começavam a

exalar certos odores, as noivas passaram a ter o costume de carregar buquês de flores junto ao corpo,

para disfarçar, assim, o mau cheiro. Os banhos eram tomados numa única tina, enorme, cheia de

água quente. O chefe da família, o rei ou monarca, tinha o privilégio do primeiro banho na água

limpa. Depois, sem trocar a água - reparem que lindo!-, vinham os outros homens da casa, por ordem

de idade, as mulheres, também por idade e, por fim, as crianças. Os bebês eram os últimos a tomar

banho. Portanto, quando chegava a vez deles, a água da tina já estava tão suja que era possível perder

um bebê lá dentro. Ainda bem que meu pai havia sido doutrinado por minha mãe e mantinha quatro

tinas em nossa casa. Meu pai nunca fora um homem de tomar muitos banhos, mas também não se

preocupava se tomássemos com frequência. Em compensação, sua adorada esposa só tomava banho

quando precisava ir a uma festividade. Confesso que seu odor era fétido e, misturado às caras

fragrâncias francesas, dava-me náuseas. E isso piorava no verão.

Comecei a achar graça daqueles pensamentos tolos e sem lógica. Estava à beira de uma

condenação e ainda conseguia ver graça naquelas pessoas. Estava ficando tonta; precisava comer

alguma coisa. A falta de alimento, principalmente pela manhã, causava-me tonturas e certos

devaneios. Não podia pedir socorro naquele local, pois poderiam achar que o demônio já estava se

manifestando. Tive de me manter calma, fria e controlar os devaneios causados pela falta de algo

doce, principalmente. Por isso, Maria sempre se preocupava em me fazer comer pela manhã e

forçava-me a comer algo nos intervalos das refeições. As vertigens começavam a me causar

devaneios. Estava sentindo a visão turva. Comecei a cochilar, quando uma voz suave me chamou:

_ Anna, precisa manter-se lúcida. Não poderemos ajudá-la se não estiver consciente. Anna,

acorde! Só poderemos ajudá-la com a sua mente em total estado de lucidez.

Abri os olhos lentamente e vi um homem belíssimo, vestindo uma túnica muito branca de um

fino linho. Seus cabelos eram cacheados e loiros e caíam sobre os ombros largos. Seus olhos eram de

um azul inigualável. Tinha as faces rosadas e os lábios grossos. A pele mais parecia uma fina

porcelana. Sua luz deixou-me quase cega. Quando eu já estava totalmente despertada, ele abriu-me

um largo sorriso e falou-me:

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_ Sabe por que estou aqui, não?

_ Sim, Heixe. Faço uma ideia.

Ele abaixou e segurou o meu rosto com a mão, que mais parecia um pedaço de seda. Era a

primeira vez que me tocava. Foi bom sentir um pouco de carinho, pois estava totalmente indefesa e

carente. Depois de afagar meu rosto e meus cabelos, o espírito falou:

_ Vim auxiliá-la, mas preciso que tente reagir. Sei o quanto é difícil para você estar passando

por tudo isso. Mas esse foi o caminho que escolheu. Não fraqueje agora. Ainda tem muito chão pela

frente.

_ Eu sei, mas meu corpo dói tanto! Estou fraca e com fome. Talvez tivesse sido melhor se eu

tivesse escolhido o destino que queriam impor a mim. Talvez seja melhor eu negar tudo e dizer que

estava sob influência maligna. Estou cansada... Não quero mais lutar, por Deus. Faça-os parar, por

favor!

_ Anna, sabe muito bem que não posso voltar o tempo. Mesmo que negue quem é, não mudará o

seu jeito de ser. Liberte-se de todos esses pensamentos e alimente-se com orações. Seu espírito está

fraco e, por isso, seu aparelho apresenta fraqueza. Só o amor do Pai Maior pode sustentá-la nesta

hora de dor. Anna, minha doce Anna... Como pode esquecer tudo o que aprendeu?

Naquele momento, uma estranha força penetrou meu corpo e entrei em total sintonia com Heixe.

Juntos, fizemos uma oração mental. Meu espírito foi levitando, até que saí do meu aparelho e me vi

fora do chão. Uma imensa luz cercou todo o corredor escuro e frio. Uma paz tomou conta de mim.

Meu corpo já não sentia dor ou frio, muito menos fome. Suas mãos alimentaram-me e curaram-me.

Havia uma harmonia no ar e uma doce melodia que imitava os sons das harpas dos anjos. Naquele

estado, pude ver meu aparelho em repouso. Parecia ter envelhecido uns três anos naquelas últimas

horas. Olhei, também, para o guarda que vigiava o meu aparelho. Pude perceber uma áurea de

tristeza em torno dele - o que justificava aquela forma inerte e sem reação aparente. Olhei para

Heixe. Ele parecia ter percebido o que eu estava vendo. Então, emanou vibrações de entusiasmo para

aquele homem, que estava também precisando de misericórdia. Depois, Heixe pegou-me pela mão e

guiou-me por entre as paredes, seguindo até a sala de audiência. Por instantes, cheguei a pensar que

havia morrido, mas Heixe explicou-me que eu estava viva e presa pelo cordão de luz que me

segurava ao meu aparelho.

Dentro da sala de audiência, havia um comitê formado por muitos lordes, pelo bispo, o prior,

entre outros que estavam discutindo o meu caso. O murmúrio no local era muito grande, o que me

deixou tão confusa, quase não conseguindo entender o que realmente estavam falando. Passei por

todas aquelas pessoas, mas não puderam me ver. Olhei para o bispo e lá estava a sombra negra,

pairando sobre ele. Na verdade, a maioria das pessoas que estavam naquele recinto tinha um

obsessor como companheiro. Sabia que aqueles espíritos já haviam sido seres humanos um dia. Mas,

agora, pareciam estar em decomposição, chorosos, agonizantes... Pareciam terem se levantado das

catacumbas. A maioria era obsessora. Outros, parentes que só queriam orações. E outros imploravam

para que os ouvissem. Aquilo, sim, era o purgatório. Por isso, todos eram tão desnorteados daquele

jeito. Com tantas pessoas falando em suas cabeças ao mesmo tempo, como poderiam ter ideias

próprias?

Meu corpo levitava sobre aquelas pessoas e seus espíritos atordoados. Estava confusa. Na

verdade, ainda não havia me dado conta de minha atual condição. Esse é um estado em que o espírito

não deve permanecer por muito tempo fora de seu aparelho. Isso é muito perigoso e inconsequente,

mas confiei em meu mentor espiritual, pois ele sabia de minhas limitações.

Pude ouvir o que o inquisidor estava falando e, com isso, sabia com exatidão qual resposta teria

que dar. Na verdade, eles estavam mais assustados do que eu, como se isso fosse possível. Eu teria

que ter muito tato ao lidar com aquelas pessoas, pois, por serem completamente leigas no assunto da

espiritualidade, poderiam colocar todos os meus planos a perder. Escolhi aquela sentença e, daquele

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momento em diante, teria que ter liderança sobre minhas palavras, pois qualquer deslize poderia

condenar-me à fogueira.

Precisava encontrar o meu monge. Sabia que ele estava me esperando. Mesmo que todo o

sofrimento que eu tenha passado tenha sido pesado demais, nunca me arrependi do que fiz, pois cada

momento que vivi ao lado do meu amor valeu a pena. Mesmo que ele tenha me traído... Aquela

necessidade dar-me-ia forças de prosseguir com a minha decisão. Podia senti-lo. Sabia da sua

infelicidade. Sabia como ele estava sozinho e sem vontade de viver. Meu sofrimento estava ligado à

solidão na qual ele se encontrava. Éramos um só ser. Estava muito perto para desistir agora. Dei

prosseguimento ao aprendizado de Heixe e deixei que ele me mostrasse o que me esperava. A

senhora gorducha que estava em minha casa, essa sim, era um grande problema: a cada discussão,

ela colocava mais lenha na fogueira. Ela só estava ali por ser filha de um falecido e rico proprietário

de muitas terras. Por ser uma dizimista aplicada e mão aberta, tinha o direito de permanecer entre os

poderosos, enquanto isso lhes fosse conveniente. Nunca havia se casado ou namorado em toda a

vida. Só se dedicou à Igreja e aos preceitos religiosos. Sua língua felina era bastante útil nestes casos

de acusações. Principalmente porque ela julgava saber da vida de todos do condado. Na verdade, ela

queria algo para comentar durante sua quinta geração. Em um povoado tão pequeno como aquele,

não se tinha muitas coisas para se contar.

Heixe segurou minha mão e continuamos a ver o quanto as pessoas cochichavam entre si. Os

olhos da condessa pareciam mortos, visando o nada. Era como se ela estivesse em êxtase. Por trás de

tanta soberania e arrogância, pude perceber a mulher infeliz e sem vida que ela era. Seu espírito tinha

uma cor cinza e parecia muito solitário. O conde não se desgrudava de meu pai. Ambos pareciam

estar tramando o tempo todo. Algo estranho naquela amizade começava a me intrigar. Não era só um

simples interesse em me casar com aquele homem. Existia uma espécie de trama política e

financeira. Meu pai fingia não saber que a esposa era cortejada por outros homens e pelo conde - isso

era conveniente demais. Comecei a ver as coisas como realmente eram. Aproximamo-nos deles,

tentando ouvir o que diziam, mas o alarido de vozes não nos deixou entender. Por fim, Heixe achou

que já era hora de retornar para o meu aparelho. E foi bem a tempo, pois o magistrado havia pedido

para que me buscassem para o interrogatório. Como em um flash, meu espírito passou rapidamente

por todas aquelas pessoas, atravessando as paredes e jogando-se em meu aparelho inconsciente. Senti

como se um raio atravessasse meu corpo. Acordei de supetão, já com dois guardas ao meu lado,

sacudindo-me e entreolhando-se, parecendo achar que eu estava possuída.

_ Levante-se! - disse um guarda ainda muito jovem, chutando as minhas canelas.

Levantei-me com a ajuda do outro, que segurou meu cotovelo, dando-me certo apoio. Segui-os

corredor afora. Entramos por uma enorme porta, quase negra, talhada à mão. Ao abrirem a porta

pesada, fez-se total silêncio no recinto. Todos se viraram para trás, levantando-se. O júri já estava

formado e o magistrado estava usando uma enorme peruca cacheada. Tanto garbo e, por certo, era

careca. A peruca estava lotada de piolhos. Não conseguia parar de achar defeitos nos santos que me

acusavam de megera. Deu-me vontade de rir, porque não conseguia ver como pessoas tão imorais e

cheias de defeito conseguiam achar em alguém como eu um defeito. E o que é pior: inventavam

mentiras atrás de mentiras para satisfazerem os egos cheios de blasfêmias. Meus pensamentos eram

esdrúxulos e levianos. Mas não poderia falar. Então, pensava. Sacudi a cabeça, prometendo não

pensar mais sandices. Embora já estivesse ciente do que me aguardava, senti um frio na espinha! O

que mais me doeu foi ver meu pai ali, olhando-me tão friamente, como que desejando a minha

morte. Não me importava o que aquelas pessoas pensavam de mim, mas o que realmente me doía era

saber que alguém do meu próprio sangue rejeitava-me não por dúvida sobre o meu caráter pessoal,

mas por saber que eu era um risco à sua reputação como homem e por eu não ter baixado a cabeça às

suas ordens inescrupulosas. O conde olhou-me de cima abaixo, com um desdém e desejo

abomináveis. Os demais presentes esquivavam-se, com medo de me tocarem e virarem pedra ou algo

assim. Talvez uma pessoa contaminada pela peste não fosse tão repulsiva aos olhos deles como eu

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estava sendo naquele momento. Baixei a cabeça, pois sabia que quanto mais humilde eu fosse,

melhor para mim seria. Sentaram-me em uma cadeirinha em frente ao magistrado. O alarido de

vozes começou novamente, assim que me sentei. O povo estava muito agitado do lado de fora, mas o

magistrado e os demais queriam interrogar-me primeiro.

_ Levante-se, por favor! A senhorita tem noção do porquê de estar aqui? – perguntou-me o

magistrado.

_ Não, excelência!

Houve um alarido de exclamação, como se eu estivesse mentindo. Por fim, prossegui:

_ Não tenho certeza, excelência. Estou muito confusa quanto às acusações.

_ Então, nega ser uma bruxa?

_ Não, excelência.

Houve um alarido ainda maior.

_ Nego apenas ter cometido tais crimes contra a Igreja. Sempre frequentei as missas aos

domingos. Nunca faltei com a eucaristia e sempre comunguei. Mas não nego que sou uma bruxa.

_ Blasfêmia! - gritou o advogado de defesa da Igreja.

_ Protesto! Esta mulher frequentava a igreja quando ainda não estava possuída pelo demônio.

_ Protesto aceito. A senhorita deve ser mais explícita quanto às suas palavras. Como pode não

negar que é uma bruxa, mas negar estar praticando a bruxaria?

_ Só conheci os caminhos da magia há pouco tempo, excelência. Mas confesso que tudo o que

aprendi já estava dentro da minha alma. Lembro-me de cada símbolo. Mas nunca cometi nenhuma

das atrocidades das quais estão me acusando.

_ Acredito neste lado de sua história. Mas o que me intriga é como foi que conheceu o caminho

que a levou a praticar coisas contra a Igreja, sendo que não tinha outra companhia além da sua

governanta, como mesmo disse - já que, logicamente, é pouco provável que sua madrasta tenha se

envolvido com tais coisas ilícitas aos olhos da Igreja e de Deus. Diga-me, senhorita Anna, é esse o

seu nome, creio, ou o demônio também usa outro nome quando a possui?

Os demais que estavam no recinto riram, formando um coro, enquanto o advogado de acusação

olhava-me zombeteiramente por debaixo dos óculos. Ele era um homem gordo e de meia idade, com

bochechas de cachorro. Por fim, depois daquela pequena pausa para servir de deboche, respondi de

cabeça baixa, tentando demonstrar humildade:

_ Sim, este é meu nome, excelência. E não, o demônio jamais esteve em meu corpo. Isso é um

equívoco, excelência.

_ Então afirma que sua governanta impunha-lhe cometer tais crimes?

_ Não, nunca disse isso! Maria era uma santa. Ela sempre me ajudou em tudo e foi a pessoa que

me criou. - fiquei nervosa.

Estalando os dedos, ele disse:

_ Mas tenho aqui relatos de que esta senhora – Maria, como a chamavam - vem de origem

cigana, e fazia chá para a senhorita tomar durante a noite. Isso está certo?

_ Sim. Eu perdia o sono à noite e Maria dava-me chás, para que eu conseguisse dormir.

_ E esses chás ou poções eram feitos do quê?

_ Não sei. As receitas são sempre secretas. Maria trazia-as guardadas sob sete chaves.

_ Não tenho mais perguntas, excelência. – virou-se para os demais.

O magistrado tornou-me a interrogar:

_ Então, essa mulher, Maria, entorpecia sua mente com suas poções? Fazendo-a ficar sobre o

poder do demônio, em estado de sonambulismo, a senhorita saía durante a noite e atacava os aldeões,

não é isso?

_ Não, nunca houve tamanha barbárie. Quando eu tomava os chás de Maria, dormia

profundamente.

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_ Como a senhorita pode ter certeza, se diz dormir profundamente? Mande entrar o agricultor

Antonio de La Paz.

Trouxeram um homem magro e muito humilde diante do tribunal. O advogado levantou-se e

fez-lhe inúmeras perguntas. Esse homem fazia pequenos serviços para os fazendeiros locais. Não

poderia entender o que ele poderia ter com o meu julgamento, pois mal o conhecia e nem nunca na

vida trocara uma palavra sequer com ele.

_ O senhor é o agricultor Antonio de La Paz?

_ Sim, senhor. Sou eu mesmo.

_ Conhece essa mulher aí, na sua frente?

_ Sim, senhor. Conheço sim.

_ De onde o senhor a conhece? Poderia dizer a todos os demais presentes? Devo lembrá-lo de

que está sob jura.

_ Vi-a pela noite, no meio das plantações, em trajes íntimos. - ele disse isso com a voz trêmula e

a cabeça baixa, pelo medo de que alguma coisa que dissesse não fosse o que lhe haviam mandado.

_ Não ouvi. Poderia responder um pouco mais alto dessa vez?

_ Via-a frequentemente a perambular pelos campos, à noite, quando a Lua estava alta no céu.

Ela estava quase desnuda. Eu até sentia vergonha por ela. Tentei várias vezes pedir a ela que fosse

para casa, porque não era certo uma senhorita ficar daquele jeito no meio as hortaliças.

_ E ela o ouvia?

_ Não, senhor. Parecia estar em transe. Depois é que fui saber que era uma bruxa e que estava

amaldiçoando as plantações.

Todos murmuraram... Ele prosseguiu:

_ É verdade, sim. Logo depois, a plantação do senhor Leônidas secou por completo. Pode

perguntar vós micês para ele. - ele se agitava e apontava o indicador na direção de todos.

_ Então, o senhor quer dizer que esta mulher foi a responsável pela colheita do fazendeiro

Leônidas não ter dado certo?

_ Sim, senhor. Foi ela sim.

_ Por que o senhor nunca contou tal fato às autoridades?

_ Porque tive medo de que ela fizesse algo ruim contra minha família, senhor.

Tive mesmo vontade de fazer algo mais naquele momento. Tive vontade de estrangular aquele

estúpido, por mentir tanto e vender-se por tão pouco. Ele é quem foi negligente em seu trabalho e

deixou que a plantação do homem morresse. Aproveitou-se daquela situação para que o fazendeiro

não o punisse por sua falta de atenção ao trabalho. O cheiro da bebida em seus lábios era

insuportável. Ele era um mau caráter e estava se fazendo de vítima.

Meu acusador mandou chamar uma senhora de nome Samanta Castro. As mesmas perguntas de

início foram feitas à mulher. Depois, prosseguiu-se:

_ É verdade que a senhora estava grávida de uma criança? Uma menina, por assim dizer?

_ Sim, é verdade.

_ O que houve com a sua criança?

_ Morreu. Isso foi logo depois que essa mulher apareceu perto de minha casa, à noite.

_ Como assim? Poderia explicar-se melhor?

_ Eu já tinha ouvido o boato de que a plantação do fazendeiro Leônidas tinha sido destruída por

uma bruxa. Mas sou muito devota do sagrado coração. Então, não dei importância aos boatos. Mas,

numa noite linda de Lua, eu estava colhendo minhas roupas no varal e meu bebê, que estava com

dois meses, estava em uma cestinha bem perto de mim, para o caso de, se chorasse, eu o ouvisse.

_ E o que houve? Conte logo, mulher. - disse o advogado, exasperado.

_ Então, acabei de colher toda a roupa e percebi que algo errado tinha acontecido ao meu bebê.

_ Explique-se, mulher! Pare de rodeios teatrais e vá direto ao assunto.

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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_ Fui até o cestinho e meu bebê já não estava mais lá. Havia desaparecido como que por

encanto. Gritei meu marido Jésus e fomos os dois procurá-lo.

_ E o encontraram?

_ Sim. - a mulher desabou em prantos e não conseguiu mais falar uma só palavra.

O magistrado pediu para que chamassem o marido dela.

_ Que entre o senhor Jésus, o agricultor, para que dê continuidade aos acontecimentos seguintes.

Fez as mesmas perguntas iniciais ao homem, que mais parecia um pobre carvoeiro de tão mal

vestido e sujo que estava.

_ Essa mulher chamada de Samanta Castro é sua esposa?

_ Sim, senhor; é sim.

_ O senhor e esta mulher tiveram uma criança?

_ Sim, senhor, tivemos sim. - o homem respondia com a cabeça e com a boca.

_ E o que houve com a criança, afinal?

_ Está morta, senhor. - o homem baixou a cabeça, num gesto de respeito e tristeza.

_ E o senhor, Jésus Justos, é assim que lhe chamam, certo?

_ Sim, senhor; é sim.

_ Então, senhor Jésus Justos, de que morreu a criança?

_ Não sei como morreu, senhor... Mas a achamos sem a cabecinha.

_ Meu Deus! Que horror! - exclamaram todos os demais.

_ E como, senhor Jésus Justos, acha que aconteceu essa barbárie, essa monstruosidade?

Apontando para mim, sem pestanejar, ele respondeu:

_ Isso não sei dizer, senhor. Mas minha esposa, aquela noite, jura que viu essa mulher que está

sentada ali rondando lá pros nossos lados naquele dia. Até fui atrás dela com uma foice, mas não

achei a famigerada, não. Acho que usou alguma magia para evaporar-se daquele jeito.

_ O senhor tem certeza de ser a senhorita Anna?

_ Disso eu tenho sim, senhor. Porque somos pobres, mas nunca haveríamos de falar mentira.

Minha mulher nunca me deu motivos para eu desacreditar dela, não, senhor. E se o senhor quiser,

pode perguntar por aí que vai ver que sou uma pessoa que honra as calças que veste.

Todos caíram na gargalhada da maneira simplória como falava o pobre homem. Ele até poderia

ser uma boa pessoa e ter uma honestidade acima do normal. Mas a esposa dele estava mentindo. Ela

deixou o bebê ao relento enquanto catava as vestes do varal e, por certo, um animal pegou o

bebezinho. Ela ficou tão aterrorizada com o que vira que criou essa fantástica história em sua mente.

Também ficou com medo da represália do marido. E é lógico que a bruxa tinha que ser eu, quem

mais? Eles supunham que tinha uma bruxa local. Mas, quando se espalharam os boatos a meu

respeito, juntaram tudo e fizeram uma história. Eram muito fáceis de manipular. Caso não fossem,

jamais estariam testemunhando. O julgamento prosseguiu:

_ Por que não denunciaram às autoridades locais?

_ Tivemos muito medo por causa que ela é uma bruxa. Ficamos com medo de que minha mulher

nunca mais engravidasse, caso ela jogasse uma praga.

- Será que algum de vocês, aqui presentes, tem ainda dúvidas de que essa mulher é uma bruxa,

que cometia atos satânicos? Não me importa se estava ou não inconsciente. O fato é que essa mulher

admitiu e existem vários fatos que comprovam a veracidade das informações. Se não estiverem

satisfeitos e quiserem mais testemunhas, peço permissão para que o senhor magistrado aqui presente

– logicamente, com a permissão do senhor excelentíssimo Dom Helvécio Hernandes, inquisidor de

alto valor e escolhido por nosso querido rei Filipe – mostre, a caráter decisivo, as testemunhas

impostas a este júri.

O inquisidor olhou para o magistrado, assinalando positivamente com a cabeça, como que dando

permissão para que as outras testemunhas de acusação entrassem. O magistrado mandou que uma

porta lateral fosse aberta. Entraram umas cem pessoas que já estavam aguardando do lado de fora.

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O segredo dos girassóis

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Logicamente, a plebe não poderia faltar, pois quem seria melhor para encenar aquele teatro de

horror? Logicamente, os ingênuos, os analfabetos e, enfim, todos aqueles que sempre foram

rejeitados, mas que representavam a força final da palavra. Pois essas pessoas julgavam pela

aparência e pelos mexericos. Eram pessoas altamente autossugestionadas e de fácil manipulação.

Cordeiros medrosos e vulneráveis, pessoas que muito tinham a perder. Como a voz do povo é a voz

de Deus, eu seria cozida viva, por assim dizer.

Quando toda aquela gente acomodou-se, como previsto, o alarido ficou maior ainda. Então, o

magistrado deu um grito, batendo com seu malhete em cima da mesa, pedindo silêncio. A voz do

magistrado ressoou pelo recinto como o ronco de um trovão. Todos pareciam estar bastante nervosos

e apreensivos. Aquele alarido só fazia deixar todos ainda mais agitados. Sempre existem pessoas

capazes de tornarem as coisas ainda muito piores do que elas realmente são. Podia ouvir os rumores

horrorosos a meu respeito. Podia ouvir algumas pessoas chamando-me de devoradora de bebês!

Havia malícia, maldade e muito interesse político naquilo tudo.

Eu era só uma desculpa para encobrir o que realmente estava acontecendo - ou seja, esconder o

triângulo amoroso que existia entre meu pai, o conde e a condessa. Também, enquanto todos

estivessem prestando atenção em mim, não investigariam o conde como suspeito de um assassinato.

O inquisidor, após ler publicamente a carta enviada pelo rei, tomou cuidado para não declarar

em sua sentença absolvição alguma, ou que eu - a acusada - pudesse parecer inocente ou isenta. Sua

intenção era esclarecer bastante que tudo foi legitimamente provado contra mim. Desta forma, se eu

fosse trazida mais tarde novamente diante do tribunal do júri, indiciada por causa de qualquer outro

crime, poderia, assim, ser ordenada sem problemas, apesar de a sentença de absolvição já ter-me sido

negada. O magistrado, antes de passar a palavra final ao inquisidor, perguntou-me uma última vez -

não porque estivesse interessado em saber a real verdade, mas porque na sala havia muitas pessoas

influentes e ele não poderia parecer injusto:

_ Tem mais alguma coisa a declarar? Saiba que a senhorita está entre amigos e parentes,

pessoas que a amam e que realmente se importam com a sua saúde e seu bem estar. Creio que agora

é a hora de dizer algo que possa ajudá-la em sua sentença. Saiba que não poderá nunca mais

comentar sobre os fatos ocorridos nesta sala. Portanto, esta é a hora.

Levantei-me, meio cambaleando por causa das muitas horas que já estava sem me alimentar,

olhei ao redor e voltei em direção ao magistrado, fitando-o nos olhos. Ergui minha cabeça e disse:

_ Não tenho mais nada a dizer ou declarar. Não tenho nenhum amigo, já que todos vivem o

perjúrio de um suposto purgatório. Não confio em ninguém, já que me lançam sobre a desgraça

humana. Não tenho nenhum laço familiar ou consaguinidade comprovada com alguém neste

tribunal. Sou apenas um corpo no mundo. Que se cumpra o meu destino. Quero ressaltar, apenas, que

nunca comi criançinhas, nunca me prostituí, nunca tentei induzir ninguém a nenhuma seita ou

religião, quaisquer que fossem.

Depois de eu ter falado isso, o magistrado ainda ressaltou:

_ Senhorita Anna Goldim Señra, ressalto mais uma vez que essa é a sua última chance de dizer

alguma coisa em sua defesa. Caso contrário, será declarada como bruxa e sentenciada a viver nos

calabouços de um convento em San Francisco.

Portanto, olhei para o conde, que estava de olhos arregalados prestando atenção, e disse:

_ Não será necessário que sua excelência declare-me como bruxa, porque eu mesma me declaro.

Não tenho vergonha de ser quem sou e de seguir um caminho que eu mesma escolhi. Mas sua

excelência deveria prestar mais atenção a certas pessoas neste tribunal.

O bispo, porém, tomou a palavra, indagando-me:

_ O que a senhorita quer dizer com isso?

_ Quero dizer que neste tribunal tem um usurpador e assassino sentado aqui, bem em minha

frente. - disse isso apontando para o conde

Ele, de um salto, gritou, apontando o diário da minha mãe em suas mãos:

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_ Blasfêmia, excelência! Essa mulher tentou seduzir-me em seu próprio leito. Tenho provas aqui

comigo de que ela, além de bruxa, praticava, sim, os rituais da magia. Há também indícios de que ela

tinha o seu próprio local escondido dentro da casa de seu pai, onde ela, a governanta e o jardineiro

praticavam rituais de magia negra, cozinhando e comendo os filhos dos escravos.

O alarido de espanto foi geral. O bispo, porém, interrogou-o:

_ E como o senhor ficou sabendo de tais fatos?

_ Sei disso porque a senhora condessa aqui presente também a flagrou fazendo seus feitiços em

um lugar escondido, atrás da adega de vinhos do senhor Juan. Essa mulher está tentando enfeitiçar

todos aqui, transferindo a sua culpa para nós. Mas posso provar o que eu disse. - disse isso

entregando o diário de minha mãe ao inquisidor.

Depois de folheá-lo rapidamente, o inquisidor entregou-o ao bispo, que, depois de uma breve

análise, disse:

_ É irrevogável a questão de que esta mulher seja uma bruxa. É também irrelevante que ela

acuse qualquer membro que esteja presente dentro deste recinto, sendo que ela está tentando

distorcer os fatos para enganar a todos nós. Essa bruxa está tentando usar seus feitiços para nos

manipular. Mediante a tais provas postas em minhas mãos, e mediante tão ilustres testemunhas que

comprovam sua culpa, declaro-a culpada. Passo o caso ao senhor magistrado.

Sabia que não poderia ter dito nada, mas tinha que arriscar e tentar salvar-me. Depois das

palavras do bispo, não pude dizer mais nada. Fiquei ouvindo a sentença que o magistrado me impôs.

Ele se levantou e começou a sentenciar-me com as seguintes palavras:

_ Que a mulher comumente chamada de Anna Goldim Señra seja denunciada e declarada

feiticeira, adivinha, pseudoprofeta, invocadora de maus espíritos, conspiradora, supersticiosa,

implicada na prática de magia feita a ela, teimosa quanto à fé católica, cismática quanto ao artigo

Unam Sanctam e em diversos outros artigos de nossa fé, cética e extraviada, sacrílega, idólatra,

apóstata, execrável e maligna, blasfema em relação a Deus e seus santos, escandalosa, sediciosa,

mentirosa e caluniosa.

Dito isso, o magistrado bateu o malhete sobre a mesa, dizendo:

_ Levem essa mulher daqui e que fique trancada na prisão até que seja levada para o local onde

será trancada e enclausurada para o resto de seus dias. Ressalto, ainda, que ela deve ser mantida sob

vigilância constante, para que não tente fugir ou usar seus poderes malignos.

Todos que estavam no tribunal foram se retirando. Fui levada para uma sala até que o recinto

tivesse sido esvaziado. Logo depois, fui levada para a prisão. Atravessamos a praça com um cortejo

de agourentos atrás de nós. Onde passávamos, juntava-se mais e mais gente. Logo depois de

andarmos uns vinte minutos, chegamos à prisão. Era um lugar muito desleixado e sujo. Subimos os

degraus e passamos por várias salas. Por fim, começamos a descer sem parar, até chegarmos a um

lugar cheio de portas trancadas até em cima, uma de frente para a outra. Devia ter umas quinze ao

todo. Andamos uns dez metros. Minha cela era a última do corredor. Dois homens foram precisos

para abrir a porta. Havia uma cama muito suja e de palha, forrada com um tecido encardido e mal

cheiroso. Parecia que tinha manchas de sangue nele. O lugar era sombrio. O único ar que se tinha

vinha de uma fenda de trinta centímetros ou pouco mais. O orifício era revestido por grades. Mal

dava para se ver se era dia ou noite, porque o orifício na parede era pequeno demais para poder

passar a luz do sol. As paredes eram cheias de teias de aranhas. Senti um terrível cheiro de urina por

toda parte. Na verdade, havia vários excrementos humanos, mas não dava para identificá-los por

causa do tempo. O guarda empurrou-me porta adentro e disse:

_ Seja bem vinda aos seus novos aposentos, rainha das bruxas.

Em seguida saiu, batendo a porta e dando uma gargalhada que mais parecia ter vindo do além.

Fiquei ali, parada, olhando aquele lugar que não tinha mais que uns dez metros de largura.

Os dias foram passando como noites. Agarrei-me em orações para tentar ficar forte. O desespero

do claustro é indescritível. A solidão é uma companhia que não desejamos a ninguém. Ela nos faz

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ver coisas no escuro e, se não tivermos muito autocontrole, enlouquecemos. Comecei a fazer traços

na parede para não me perder de que dia era. Comecei a falar sozinha, mas os guardas sempre me

insultavam, perguntando se o diabo estava lá comigo. Eu só tinha a companhia do guarda carcerário

nas duas vezes em que ele me trazia alimento. Às vezes, o guarda da noite jogava em meu rosto a

água que serviria para eu tomar. Ele também, várias vezes, pisou no pedaço de pão duro que me era

oferecido como alimento. Várias vezes, oferecia-me urina ou escarrava dentro da minha caneca com

água. A fome era tamanha que eu comeria a mim mesma.

Diziam que o inferno era algo abominável, mas quem passou pelas torturas da Inquisição

desejaria ir rapidamente para lá. Diziam, também, que nos finais dos tempos os vivos desejariam

estarem com seus mortos - por causa do fim, que seria duro e cruel. Para mim, ali era o fim do

mundo. Todos os meus pecados já estavam mais que pagos. Não existe inferno ou demônio. Existem,

sim, pessoas com mentes diabólicas, capazes de extrema crueldade e covardia para conseguir seus

objetivos a qualquer preço. Deixamos que a vida passe por nós e esquecemos de observar o quanto

aqueles pequenos detalhes são importantes. Só nos damos conta disso quando temos que enfrentar

uma situação muito difícil. Não damos conta quando passamos por cima dos menos favorecidos. Não

damos conta que um dia vem logo após o outro, com uma noite no meio para nos fazer lembrar.

Nunca pisei em alguém, mas pagava esse preço por causa da ambição de terceiros. Deveria ter

prestado mais atenção aos sinais. Deveria ter fugido com Maria e Joseph. O pecado é capaz de se

aliar à desgraça da maldade. Aprendi muitas coisas: uma era me manter em silêncio; a outra era

nunca brincar com a vaidade masculina, pois um homem sabe mesmo ser cruel nessas horas de

impulsividade. Eram nós, as mulheres, quem os seduziam, que tínhamos mais propensão a ser

induzidas e fascinadas pelo mal. A mulher não podia se cuidar ou ter vaidade; jamais podia sentir

prazer com seu marido - pois ele poderia chicotá-la em praça pública, acusando-a de induzi-lo às

luxúrias da carne.

Certa manhã, acordei toda suja: estava nos meus dias de mulher. Não soube o que fazer, pois

comecei a sangrar muito. A vergonha tomara conta de meu ser. Como eu poderia dizer àqueles

guardas o que estava se passando comigo? Rasguei um pedaço de minha anágua, tentando compor-

me. Implorei ao guarda do turno da manhã para que me desse uma tina com água, para que eu

pudesse me lavar. Ele fingiu nem ouvir. Sentia-me mal e humilhada. Minhas forças estavam se

esvaindo. A cada dia que passava, ficava mais fraca. Até que Heixe apareceu e aliviou-me um pouco

daquele martírio. Ficou por horas a fio conversando comigo. De vez em quando, o guarda abria a

portinhola e gritava, mandando-me calar a boca.

_ Cale essa boca, bruxa infeliz! Anda a falar com satã? Se me fizer entrar aí, juro que amordaço

essa boca.

Heixe, naquele dia, despediu-se de mim com um ar pesaroso. Mas era preciso, pois o guarda

estava a ponto de me espancar.

Todos os dias, os outros prisioneiros que ficaram sabendo que na última cela tinha uma mulher,

gritavam meu nome e insultavam-me com palavras odiosas. Alguns gritavam meu nome como se eu

fosse uma mundana. Em atitudes suspeitas, gemiam a chamar por mim. Eram homens de caráter

muito duvidoso e que já estavam na prisão por anos a fio, sem sequer ouvir a voz de uma mulher. A

minha presença, mesmo que do outro lado de uma parede e no fim de um corredor, fazia-os ficarem

como animais. Outros haviam passado por tratamentos com médicos e haviam se esquecido de tudo.

Esse tratamento, bastante suspeito, deixava-os como vegetais. Geralmente, esse tipo de tratamento

era aplicado em pessoas que cometiam algum delito contra algum Lord ou até contra a política, ou

também em casos de homens sodomitas.

Estava rezando para que o convento enviasse o seu emissário para eu sair dali. Os gritos de

agonia vindos do calabouço estavam me deixando completamente louca e desesperada. Alguém

estava sendo torturado incessantemente todos os dias. Meu Deus! Estavam acabando com ele aos

poucos. Tinha que haver alguém para fazer parar o sofrimento daquele pobre homem. Comecei a

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esquecer minha agonia e sofrimento. Passei a orar para que aquele ser humano tivesse um fim bem

rápido. Logo depois, escutei quando abriu a porta da cela ao lado e jogaram alguém cela adentro.

Ouvia os choros e gemidos de dor do pobre. Precisava fazer alguma coisa para acalmá-lo. Então,

comecei a cantar uma velha canção espanhola. De repente, escutei mais dois presos acompanhando-

me. Em seguida, todo o cárcere estava ali comigo, cantando aquela canção que falava de amor e

liberdade. Um guarda passou no corredor exasperando, batendo a baioneta na porta das celas.

_ Calem-se! Ou levo todos para as masmorras.

Fizemos um silêncio mortal e o medo tomou conta de todo aquele local macabro. Passaram-se

algumas horas. O homem que estava do outro lado da parede começou a fazer uns barulhos com uma

espécie de objeto cilíndrico. Ele perguntou:

_ Olá! Como se chama?

_ Anna. E como se chama?

Seu sotaque era muito carregado.

_ Meu nome é Ramon Bernard D’ La Mendonça. Qual crime cometeu a senhorita?

_ Não cometi crime algum, mas estou sendo acusada de bruxaria, traição e tantas outras coisas

que até me perco. Acusam-me até de devoradora de criancinhas. Mas, se fosse carnívora, creio que

teria me autodevorado, pois ando a morrer de fome. Por isso, enclausuraram-me aqui, até que alguém

venha me buscar para levar-me ao Convento e Mosteiro de San Francisco.

_ Oh! Compreendo. E com todo o respeito: qual a sua idade?

_ Vinte. Fiz há poucos dias.

_ É muito jovem. Não acredito que uma senhorita com tão pouca idade e de tão bom coração

tenha cometido tais barbáries. A senhorita deve ter irritado alguém em demasia. E a pessoa, por

certo, é de muito poder aquisitivo.

Dizendo isso, deu uma sonora gargalhada. Em seguida, um gemido de dor.

_ Acho que sim. - baixei a cabeça, lembrando-me do que o conde me disse quando eu saíra do

tribunal.

_ Não quis aceitar um casamento de conveniências e fui contra as ordens de meu pai. Na

verdade, fui perdida em um dívida de jogo. - respondi a ele, com voz meio trêmula.

_ Então foi isso? Lamento, senhorita! Seu pai é um homem desonrado. Nunca vi apostar a

própria filha nas cartas.

_ Ele é uma pessoa doente e está consumido por esse vício maldito. Ele bebe praticamente noite

e dia, sem parar. Enterrou-se até os cabelos em dívidas com esse conde.

_ Desculpe-me, senhorita! Não estou duvidando de sua palavra. Muito pelo contrário, estou

achando demasiadamente ingênua.

_ E o que o senhor acha que realmente deve ser?

_ Não sei, senhorita. Mas o senhor seu pai e o restante devem ter outros bons motivos. A

senhorita nunca desconfiou de nada?

_ De que eu poderia desconfiar? Ou de quem? Nunca saíra de casa, a não ser acompanhada por

minha governanta. Na verdade, meus dotes foram confiscados. Também não era nenhuma soma tão

exuberante assim. Era o suficiente para me manter depois da maior idade, ou a ser entregue ao meu

futuro marido, caso eu viesse a me casar um dia. Mas não creio que eu valesse tanto a pena. Estranho

o senhor dizer tais coisas...

_ Estranho é a senhorita estar aqui por tão pouco! Tem certeza de que não comeu nenhuma

criancinha mesmo? - dizendo isso, soltou outra de suas gargalhadas.

Esbocei um pequeno sorriso.

_ Ora, o senhor ofende-me desta forma! É tão simpático e como sabe acalmar uma mulher com

palavras tão gentis! - fui sarcástica.

_ Só estava a caçoar da senhorita para passar o tempo. Perdoe-me. Quem seria o seu futuro

noivo, mal lhe pergunte?

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_ Era para ter sido o senhor filho do duque Celso D’ Louchoa, o conde Albert D’ Louchoa.

_ Eu deveria ter suspeitado, senhorita. Sinto-lhe dizer que esse homem não vale um doblón

sequer. – riu em alto tom.

Antes que eu pudesse perguntar-lhe por que estava rindo, ele prosseguiu:

_ Acha mesmo que esse peste irá deixá-la em paz?

_ Creio que sim, pois agora estou aqui, presa, e ele esta lá fora.

_ Presa porque tem o dedo desse peste no meio. Com certeza, ele irá atrás da senhorita, no

convento. Ele nunca a deixará em paz, acredite. Sempre terá olhos dele em toda parte. Ele é o espião

do rei, senhorita. Mercenário, trambiqueiro, entre outras coisas mais. Seu pai deve ter falado da

senhorita enquanto jogava. Como disse que ele bebe, o conde por certo trapaceou no jogo para

ganhar a aposta. Agora as coisas estão se encaixando. O que mais a senhorita sabe?

_ Não sei mais nada; juro.

_ Antes de vir para as masmorras, ouvi comentários de que esse conde está aqui para investigar

o convento para o qual está sendo enviada.

_ E por quê?

_ Suspeitam que os cavaleiros da ordem andem se escondendo por lá, à noite.

_ Sério? E por que andam a perseguir os cavaleiros da ordem?

_ Por que dizem que enriqueceram muito e não estão dando a parte da Santa Sé como havia sido

combinado.

_ E o senhor, por que está aqui?

_ Porque sou escritor e escrevo sobre a verdade encoberta por trás dessa podridão monárquica. A

burguesia fede, senhorita.

Depois de dar uma risadinha zombeteira, ele prosseguiu:

_ Andei publicando uns exemplares sobre os monarcas. Acho que não agradei muito.

_ Imagino...

_ Estou aqui, agora, às suas ordens! Um anarquista e visionário, e um amigo ateu. Mas um

amigo fiel, devo ressaltar.

_ É um enorme prazer, Ramon.

Os dias ao lado do meu novo amigo foram bastante agradáveis. Ramon era um homem muito

inteligente e aprendi muito com ele. Embora a maior parte do dia ele passasse sob tortura, sempre

conseguia falar alguma coisa útil. Houve dias em que, de tanto ser espancado, ficou desmaiado por

horas a fio. Ele era um homem de cinquenta e poucos anos, mas de uma força fora do comum.

Admirava-o, mesmo sem nunca tê-lo conhecido cara a cara em vida.

Finalmente o dia chegou. As portas do meu cárcere abriram-se. Dei um pulo da cama. A

primeira pessoa que vi foi o chefe da guarda, que logo veio pôr-me algemas, seguido dos guardas e

de uma freira com uma cara nada agradável. Ela entrou, tampando o nariz com um lencinho. Olhou-

me de cima abaixo e disse ao chefe da guarda:

_ Tirem-na logo daqui.

Fui retirada aos socos para fora do cárcere. Mas, quando passei pela cela de Ramon, disse bem

alto para que ele ouvisse:

_ Fique em paz, meu amigo. Que Deus lhe acompanhe sempre. Nunca o esquecerei, acredite.

O guarda deu uma risada e falou, sarcasticamente:

_ Por certo, vai encontrar com ele no quintos dos infernos, porque morreu ontem à noite de

hemorragia. Não resistiu às torturas da manhã anterior. - continuou rindo.

Chorei e senti pena de Ramon. Ele havia mesmo se queixado de que lhe haviam feito um corte

profundo em seu abdômen. Mas ele sempre levava tudo na brincadeira para que eu não ficasse

preocupada com ele. Meu bom amigo agora estava descansando. Nunca mais haveria de passar por

toda aquela dor. Que seu espírito descanse em paz, pensei comigo. A maioria dos presos estava em

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silêncio. Deveriam estar mortos também, pois não me importunavam havia dias. Os barulhos que eu

conseguia ouvir eram gemidos de dor, mas muito fracos.

Fomos saindo daquele lugar dos infernos. Desta vez, não saímos pela porta principal. Saímos

pelos fundos, onde não haveria tumulto. A carruagem esperava-me do lado de fora. Meu Deus,

quando vi o sol de novo, foi como se um milagre tivesse acontecido! De princípio, fiquei totalmente

cega, mas depois pude ver o esplendor do dia que estava à minha frente. O ar no meu rosto...

Fechei os olhos e lentamente fui abrindo... Vi meu amigo Ramon ao lado de Heixe. Ele estava

lindo... Todo curado de suas chagas. Usava uma túnica muito branca. Por certo, estava sendo levado

para um hospital... Acenaram-me com as mãos e desapareceram, no meio dos raios do sol. Eu agora

estava em paz, porque meu amigo estava em paz. Havia se livrado das mazelas daquela fatídica vida

terrena.

Havia outra freira esperando-nos na carruagem. Ela era um pouco mais jovem e menos

carrancuda. Ajudou-me a subir. Fiquei sentada, de frente às duas mulheres. A mais nova olhou-me

com piedade. A mais velha ficou com seu lenço ao nariz o tempo inteiro. Sentia-me muito mal com

aquela situação. Um padre usando uma túnica marrom comprida e um chapéu enorme pegou uma

carta das mãos do chefe da guarda. Ele ficou na parte de cima da carruagem, com o cocheiro. Dois

guardas acompanharam a carruagem a cavalo. Eu estava algemada, mas as freiras não deixaram que

me prendessem os braços à porta dessa vez. A carruagem começou a andar e eu só queria olhar pela

janela.

Passamos por quase toda a cidade. Fui me lembrando de tudo o que havia passado. A carruagem

praticamente deu a volta na província de Salamanca. Ao passarmos pela igreja de padre Ignácio, ele

fez a carruagem parar. Pediu ao padre que estava conduzindo aquela escolta para deixar que ele

falasse comigo. O padre permitiu. Ele chegou brevemente à janela da carruagem e pegou nas minhas

duas mãos, dizendo:

_ Minha menina! Minha filha... Não fui ao seu julgamento, não me permitiram. Meu Deus, o

que fizeram a você, minha criança?

Ele passou um pequeno bilhete para minhas mãos, que eu leria mais tarde.

_ Tenho rezado pela sua vida, filha. Nunca desista, nunca abandone sua fé na divina senhora.

Estarei aqui, torcendo por você. - beijou minhas mãos e afastou-se.

Não falei nada, apenas chorei. A carruagem seguiu e pegou a estrada. Fiquei com as mãos bem

juntas para que as freiras não vissem meu bilhete. A mais velha cochilava e arregalava os olhos de

acordo com o movimento da carruagem. Lembrei-me de Maria em nossa viagem.

Ao meio dia, as freiras pararam para se refrescar e comer alguma coisa. Tiraram-me da

carruagem com elas. O sol estava alto no céu. Elas me deram um pouco d’água para eu me refrescar

também. Depois, arrumaram uma toalha no chão e colocaram a ceia. Fiquei de longe, olhando-as.

Mas a mais velha chamou-me para junto delas.

_ Pegue pão e chá fresco. Temos frutas e queijo. Coma, vá.

Peguei um pedaço de pão com queijo e um copo de chá. Afastei-me das duas, fui para perto da

carruagem. A mais jovem buscou-me para ficar junto a elas e sentar-me.

_ A casa de Deus não faz restrição aos arrependidos. - disse a mais velha.

Agradeci e beijei suas mãos.

_ Não faça isso. Coma e fique quieta.

Obedeci sem pestanejar. Descansamos debaixo de um salgueiro e depois seguimos viagem

novamente.

A tarde caiu bem rapidamente. A freira mais velha caiu em sono profundo; e a mais jovem, logo

em seguida. Aproveitei para ler meu bilhete. Era de Maria. Ela dizia que ficou sabendo de tudo que

eu havia feito e que estava bem. Que as irmãs estavam em oração por mim e que daria um jeito de

me visitar quando eu estivesse no convento. Minha Maria... Coloquei o bilhete na boca e engoli. Era

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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muito perigoso se alguém pegasse. Fiquei acordada, olhando pela janela. Era alta noite quando a

freira mais jovem acordou e perguntou-me:

_ Você não dorme, senhorita Anna?

_ Fiquei tanto tempo em uma cela escura que só quero aproveitar cada minuto e cada detalhe da

minha liberdade temporária.

_ Então, fique à vontade, querida. Mas descanse um pouco também.

_ Prometo repousar assim que o sono chegar.

Os quatro dias restantes passaram-se sem nenhuma novidade. As freiras eram pessoas

abençoadas. Observava-as sem dizer muita coisa. Elas me passavam muita seriedade e calma.

Abençoavam o dia, a tarde, a noite, os alimentos, e a tudo agradeciam e louvavam. Não eram muito

diferentes das bruxas da tradição. Às vezes, cantavam em vez de orar. Suas vozes pareciam ter saído

de uma harpa celestial. Não me desprezavam ou me interrogavam. Pelo contrário, faziam-me fazer

parte de tudo o que conversavam. Era muito bom sentir-me como gente de novo. Mas eu sabia que,

dentro do convento, não seria tudo maravilhoso como ali, naquele momento de trégua, por assim

dizer.

Certa manhã, acordei e dei uma espreguiçadela. Foi quando avistei o mosteiro, ao longe.

Coloquei bem a minha cabeça do lado de fora, para ver melhor. Comuniquei às minhas

companheiras, que ainda estavam dormindo. Elas agradeceram a Deus, com sempre faziam a cada

ato conseguido. Dessa vez, foi pela ótima viagem que tivemos.

Ele era majestoso. Imponente, todo feito de pedras, com duas torres a cada lateral. Era lindo! De

longe, pude ouvir um coro gregoriano que saía de uma capela ao lado. Era composto por voz

feminina e masculina. Foi a música mais linda que já tinha ouvido em toda a minha vida. Meus

sonhos misturavam-se àqueles sons como magia se mistura à realidade. Senti-me leve e feminina.

Havia um campo de girassóis. Era a coisa mais fantástica de se ver! O mosteiro ficava ao fundo,

harmonizando ainda mais aquele cenário de conto de fadas. Algumas ovelhas e cabritos pastavam ao

redor. Havia, também, porcos, galinhas e um celeiro. Todos pastoreados por monges. Todos

pareciam tão ocupados em seus afazeres. Mas, quando a carruagem foi passando, um a um ia

acenando cordialmente.

A carruagem parou na frente do mosteiro e seis pessoas esperavam-nos do lado de fora. Uma

freira muito idosa, uma madre de meia idade, dois monges aguardavam-nos logo na entrada do

convento. Minha surpresa foi ao ver as outras duas figuras ao lado da madre superiora: a condessa e

meu pai. Desci da carruagem e minhas pernas começaram a tremer. Já tinha visto aquela cena antes.

Mas onde? Alguma coisa não iria acabar bem. Meu queixo, de repente, parecia bater como se um

frio tivesse tomado conta de mim. E não estava frio, pois o dia estava demasiadamente quente.

Aproximei-me deles e a madre superiora foi logo falando:

_ Tragam-na para dentro, imediatamente.

A condessa olhou-me com desdém. Meu pai fingiu não me conhecer. Nem sequer olhou em

minha direção. Os guardas quiseram algemar-me, mas a madre disse não ser necessário.

_ Aqui não usamos força bruta, a não ser quando necessário. Ela não sairá deste lugar. Não tem

para onde ir. Ela sabe muito bem disso.

Olhei para trás, tentando despedir-me de minhas companheiras de viagem, mas elas haviam

evaporado. Segui as demais pessoas convento adentro. Deixaram-me em um corredor comprido a

esperar. Onde já tinha vivido aquela cena? De repente, entrei em transe. Quando dei por mim, já

estava exatamente no lugar que sonhei durante minha viagem com Maria. Foi em uma fração de

segundos. Voltei no dia exato quando tive o sonho com o mosteiro. Lembrei-me do meu sonho!,

disse em voz alta, com um largo sorriso nos lábios. Ao abrir os olhos, vi-o ali, parado na minha

frente. Era como se fosse um sonho. Mal pude acreditar no que estava vendo. Fiquei quase

catatônica. Se alguém tivesse me beliscado, com certeza não sentiria. Parece que ele percebeu o meu

estado, pois falou...

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

223

“Todo pedido de perdão é um grande começo. Felizes aqueles que encontrarem a paz no bem

comum que fazem ao seu próximo. Se plantarmos espinhos, colheremos espinhos. Se plantarmos

amor, colheremos amizade. Quando magoamos alguém, seja por qual motivo for, recebemos uma

paga muito maior. Talvez não estejamos preparados para pagar tal preço. Devemos nos lembrar de

uma coisa chamada lei do retorno. Viva bem e em comunidade. Seja feliz, faça feliz a quem está ao

seu lado. Ame o próximo, mesmo que ele esteja longe de você. Reze para que os que na distância

estiverem encontrem-se em harmonia total. Pense, também, que por um orgulho ele deve estar tão

mal quanto você está agora. Reze para os seus inimigos, se é que eles existem! Muitas vezes você

criou esse inimigo e, na maioria das vezes, ele nem sequer sabe que você existe. Para que vingar-se?

Para que procurar uma ferida que você poderia já ter sanado? Siga em frente, ame ao seu próximo

como a si mesmo. Pense nisso. Muita paz e muita luz.”

(Padre Ângelo Wallejo Moralles).

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Capitulo VI – O Mosteiro

madrugada invadiu-me com sonhos turbulentos. Imagens desconexas iam e vinham,

perturbando-me a mente e a alma. Horas eu acordava como se meu corpo estivesse

tendo uma convulsão; horas visões assustadoras, com rostos destorcidos e

fantasmagóricos, assombravam-me. Era como se meu espírito já soubesse o que estava para

acontecer comigo. Meus instintos de bruxa estavam agitados como átomos em movimento.

Quando o dia amanheceu, apenas abri os olhos lentamente, porque já estava acordada há muito

tempo. O sol entrou no quarto, trazendo sua poesia matinal e, como havia me deitado com as janelas

abertas, da cama pude olhá-lo despontando no horizonte. Dei uma espreguiçada e tentei levantar-me,

mas minha cabeça doeu e tudo rodopiou à minha volta. Então, deixei meu corpo cair pesado sobre a

cama novamente.

A noite anterior havia sido uma das piores da minha vida. A despedida de Maria e as acusações

levianas que foram levantadas em falso contra mim fizeram-me sentir como se o peso do mudo

estivesse sobre minhas costas. Lembranças tristes e saudosas misturavam-se na minha mente. Queria

deixar as lágrimas caírem para aliviar aquela tensão toda, mas não conseguia. Eram muitos os fatores

que me deixavam tensa. Inclusive a atitude de meu pai preocupava-me: embora ele não tivesse

deixado ninguém me fazer mal, havia alguma coisa de errado no ar, pois aquela súbita

espontaneidade dele em me defender demonstrava que algo não se encaixava com a real situação.

Aquela atitude estava cheirando a trama e oportunismo.

A opressão que passei foi muita para uma noite. Precisei livrar-me daqueles pensamentos para

tentar, ao menos, fingir que existia algo de bom no coração de meu pai em relação a mim. Comecei a

pensar no quanto ele estava sendo enganado pela esposa e que, embora ele tivesse tido comigo uma

atitude egoísta, preocupava-se com a família. Tentei realmente achar uma resposta para os absurdos

por que eu estava passando. Por fim, desviei o pensamento de que meu pai era um vilão. Tentei vê-lo

como uma vítima daquela sociedade inescrupulosa. A minha maior preocupação seria com os

demais, que tentariam a todo custo fazer-me confessar uma coisa totalmente inversa do que

realmente era a tradição da serpente ou tradição da Lua, como também era conhecida. Meus sonhos

de liberdade e igualdade tornaram-se pesadelos - se é que algum dia pude realmente ter o direito de

sonhar... Incrível como vivi em poucos dias tudo o que uma pessoa levaria no decorrer de sua

existência para viver.

Devido ao cansaço e à fadiga da noite anterior, acabei esquecendo-me de tirar as roupas. Deitei-

me em uma posição muito desfavorável, com um infernal espartilho que me estrangulou a cintura a

noite inteira - o que me causou uma terrível dor na cabeça e no corpo. Minha vontade era de ter uma

varinha mágica igual a dos contos de fadas e, com ela, abrir um vácuo no tempo – sumindo, assim,

de todo aquele problema. Mas, infelizmente, ser uma bruxa também exigia responsabilidades que

não podiam ser ignoradas. Infelizmente, ser uma bruxa era muito mais do que um conto de fadas ou

uma brincadeira folclórica. As fantasias que se criam sobre nós, bruxas, quem dera fossem verdade!

Naquele momento, eu estava passando pela fase dos efeitos e causas. Tudo porque interferi no

meu próprio destino. Havia criticado a minha ancestral Shaara - quando ela tentou mudar o seu

futuro, invadindo o espaço e o tempo -, mas também mudei o meu, quando não aceitei as imposições

do meu pai. Quis ser livre nas minhas opiniões e vontades - o que, para a época em que vivia, não era

uma coisa normal. Deveria ter deixado que as coisas fluíssem normalmente e seguissem o seu rumo

certo. Quando comecei a ver meu futuro, deveria imediatamente ter esvaziado minha mente, como

me ensinou Dona Helena: toda ação leva a uma reação. Novamente, deparei-me com meus

ensinamentos e percebi que havia ido longe demais, passando por cima de todas as leis da tradição.

A minha vontade de estar ao lado do homem dos meus sonhos foi tamanha que me levou a estar

onde me encontro agora, nesta cela fria, com condições subumanas. Fui uma inconsequente e

sonhadora. Por mais que sempre tenha lutado pela liberdade, deixei-me levar pela ilusão e pelos

A

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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sentimentos carnais. Definitivamente, o coração é enganoso. O que mais me entristece é pensar que

fiz tudo porque acreditei que poderia ser salva pelo meu príncipe encantado. Talvez essa seja a maior

falha humana: acreditar na palavra do próximo. Se eu tivesse me contentado em saber apenas o meu

passado, confiado que em um futuro vindouro encontrar-me-ia com o monge, talvez tivesse

aprendido a confiar na fé, não sendo tão intolerante, precipitando os efeitos e causas. Deveria ter

vivido aquela vida de imposições, onde talvez tivesse sido feliz. Poderia ter me casado com o conde.

Certamente, quando ele se cansasse de mim, trancar-me-ia no convento, onde eu cumpriria meu

destino ao lado do monge. Mas não: quis ir muito mais além e, com isso, interferi no meu destino,

antecipando o que poderia ter acontecido anos mais tarde. As dúvidas e o se sempre encontram um

lugar em nossas mentes depois que algo desagradável nos acontece - ou depois de tomarmos

decisões erradas, das quais acabamos por nos arrepender. Naquele momento, precisava arranjar

forças dentro de mim, em um lugar completamente desconhecido, antes que novamente as fraquezas

da minha mente tomassem conta do meu ser.

Voltemos novamente à minha história, em que meu destino estava prestes a ser selado. Olhei

rapidamente pela janela, que havia deixado aberta inconsequentemente. Seria difícil encarar aquela

luz. Estava me sentindo como um ébrio depois de uma noite de bebedeiras, estirada sobre a cama,

com os braços abertos e pensando coisas que nem eu mesma conseguia distinguir.

Era tudo ou nada. Tinha que ser de repente, em um supetão. Dei um pulo da cama, caindo

sentada em seguida - quase desmaiei por causa da terrível dor de cabeça. Foi quando notei que havia

um enorme alarido do lado de fora do meu quarto. Fiquei com os olhos arregalados com todo aquele

alvoroço. Escutei alguém discutindo em um tom de voz muito exasperado. Era a voz do meu pai, que

estava tentando entrar. Parecia que os guardas não o deixavam. Então, escutei um barulho

estrondoso. Só me dei conta do que era quando a porta do meu quarto abriu-se e o meu pai caiu

quarto adentro. Fiquei atônita por ter visto aquela cena tão inusitada.

_ Pai! É o senhor?

Fiquei tão feliz por vê-lo. Estava tão sozinha que, mesmo que ele me esbofeteasse, ficaria feliz

apenas por ter tido o contato daquelas mãos. Meu corpo tremia tanto que dava a impressão que eu

estava com febre alta. Meu pai levantou-se, ainda cambaleando por causa da forma com a qual havia

entrado. Correu para minha direção e abraçamo-nos com sofreguidão. Aquele momento foi único

para mim, porque foi a primeira e última vez que meu pai abraçou-me depois de adulta. Olhei-o nos

olhos, parecendo não acreditar:

_ Pai, não sabe o quanto eu estava precisando do senhor. Estou me sentindo tão sozinha... Estou

com medo; minha alma está fria como meu corpo agora. - disse isso porque senti um frio que me

gelava por dentro.

Ele continuou olhando para mim e disse-me:

_ Estou aqui porque confio em Deus e sei que contará a mim toda a verdade, minha filha. Quero

que confesse que foi o demônio quem a induziu a ter aquela atitude insana. Quero, também, que diga

que foram Maria e Joseph quem estavam evocando o demônio, que lhe deram uma poção mágica

para que você adormecesse. E que foi assim que eles a levaram para o meio daquele bosque maldito.

Diga isso e poderá ter o perdão da Santa Madre Igreja. Todos entenderão, pois verão que você é uma

jovem frágil e ingênua e que estava sob o poder e as forças da magia negra. Aqueles velhos malditos

arrependeram-se, fugiram no meio da noite, sem darem satisfações. Dizendo o que lhe sugiro, eles

levarão a culpa toda, enquanto você se casará com o conde e irá para bem longe desta cidade. Pense,

minha filha. Eu mesmo ouvi falar de vários casos em que o demônio toma a forma de pessoas e até

consegue conviver no meio de uma família, sem que alguém sequer venha notá-lo. Por certo,

aceitarão essa história de que Maria evocava o demônio, e de que Joseph era um bruxo poderoso e

fazia uso do maldito conhecimento com as ervas para lhe pôr em transe. Vamos resolver isso. Confie

em mim e faça o que lhe estou aconselhando. Tudo dará certo, minha filha. Você vai se casar com o

conde. Com essa feliz e satisfatória decisão, resolveremos todos os problemas - inclusive os

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O segredo dos girassóis

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financeiros. Em breve estaremos todos novamente frequentando a alta roda da sociedade europeia. E

quanto às vias de fato, não se preocupe, pois todos logo esquecerão. Essa história acabará como mais

um mexerico infundável. Por certo, Maria e Joseph serão capturados e, mais cedo ou mais tarde,

serão mortos, levando consigo esse segredo. Eu mesmo darei um jeito de impedi-los de dizer alguma

coisa. Esses traidores malditos pagarão por fugirem de mim assim, como dois ratos, na calada da

noite. Verão o quanto custa terem brincado com alguém da nossa estirpe. Aquela velha sempre foi

uma insolente. Nunca gostei dela. Aquele velhote não passava de um inútil. Só o tolerava aqui por

pena. Acharam que eu fosse mesmo acreditar naquela maldita carta que me escreveram? Ambos vão

me pagar por terem caluniado a minha família. Basta, minha filha, que aceite e faça o que estou lhe

sugerindo.

Mal pude acreditar nas palavras que saíam da boca do meu pai naquele momento. Como ele

conseguia superar as minhas expectativas em relação a ele ser um cafajeste e mau caráter? Depois de

ter ficado boquiaberta com tamanha decisão vinda da parte dele, respondi:

_ Hã!? O senhor deixa-me sem chão, meu pai. Quer dizer que não veio aqui para me ver? Para

saber como estou? Meu Deus! Definitivamente, o senhor conseguiu se superar. Juro que achei que

estava realmente preocupado comigo. Achei que poderíamos ter uma chance de resgatar o nosso

passado, meu pai, o nosso tempo perdido. Não estou acreditando no que estou ouvindo. Como pude

ser tão ingênua em relação ao senhor e a todos? O senhor só está preocupado com as suas dívidas e

com o que as pessoas poderão falar, caso saibam que estamos na falência. Nada do que estou

sentindo importa realmente para o senhor. Acha mesmo que fui capaz de fazer as coisas horríveis das

quais essas pessoas estão levianamente me acusando? Pai, nunca fiz pacto com o diabo ou com

qualquer outro ser do inferno. Desde quando o senhor passou a acreditar nessas sandices folclóricas?

Não me lembro de tê-lo visto dando importância a mexericos. O senhor conhece-me desde criança,

pai. Sabe muito bem que nunca me envolvi em sacrifícios de espécie alguma. Sabe muito bem que

não sou adepta a comer carne de espécie alguma. E como o senhor pode ser tão cruel com Maria e

Joseph, caluniando-os e acusando-os de coisas tão bárbaras? Pai, Maria ajudou o senhor a cuidar de

mim. Ela sempre lhe foi fiel! E Joseph!? O pobre homem dedicou os melhores dias de sua vida

cuidando do nosso jardim, entre outras coisas que o senhor lhe pedia e que ele nunca negou fazer.

Acho mesmo que nunca teve uma companheira. Viveu nesta casa por amor ao senhor e por mamãe.

Meus Deus, pai, foram as ervas de Joseph e Maria que curaram a moléstia da sua esposa e tantas

outras moléstias que surgiram nesta casa! A ambição está lhe cegando a visão da verdade. Sinto

muito, pai, mas nunca poderei inventar tais coisas contra Maria e Joseph. Não posso mentir quanto a

isso. Nunca os prejudicarei. Prefiro a morte a ter que inventar tais atrocidades contra duas pessoas

inocentes, se tudo o que eles fizeram nesta vida foi cuidar de mim. Portanto, não me peça para

mentir, meu pai.

_ Então, você é inocente? Graças a Deus! Sabia que todas as sandices que essas pessoas estão

dizendo sobre ser uma bruxa, entre outras coisas, não passavam de calúnias. Conversarei com o

conde. Sei que ele irá relevar tudo isso. Afinal, um homem tão bom, fino e...

_ E rico? Não é mesmo, pai? O senhor não vai falar coisa alguma com aquele déspota

usurpador. Será que o senhor não percebe que o conde nunca teve a intenção de se casar comigo?

Toda essa história leviana de que os colonos, a justiça local, o inquisidor, e o senhor participaram só

serviu de desculpas para que ele colocasse em ação o que, na verdade, já estava planejando. Não

percebe que a senhora sua esposa está de comum acordo com o conde? Eles fugirão assim que toda

essa história se apaziguar! Na verdade, pai, sou apenas uma atração, um esteio para que todos -

inclusive o senhor - se escondam atrás de mim. Assim, enquanto todos estiverem voltados para mim,

não prestarão atenção nos reais fatos que estão acontecendo. Esqueça o conde, pai. Se vendermos

alguns bens, junto com os dotes que já possuo, por certo o senhor poderá quitar suas dívidas com ele.

A condessa também tem muitas joias que poderão ser leiloadas. Poderemos nos apertar por uns

tempos. Mas, com o esforço e a colaboração de todos, sairemos desta situação. Pai, raciocine,

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suplico! Não há nenhuma vergonha em ser pobre, ou em estar falido financeiramente. Vergonha é

não ter dignidade e coragem de levantar a cabeça e seguir em frente. Juntos, pai, como uma família

que nunca fomos, venceremos tudo. O senhor vai ver! Quanto a ser ou não verdade o que dizem a

meu respeito, fica a cargo da sua consciência. A única coisa que lhe peço é que me aceite como sou.

Ponha a mão na consciência e não acuse Maria e Joseph levianamente. Pense, meu pai, em tudo o

que acabo de lhe dizer. Seja sensato, pelo amor de Deus.

Ele ficou parado na minha frente, parecendo estar raciocinando. Por fim, resolveu responder:

_ Acha mesmo que vou expor minha esposa e o meu bom nome ao descaso da humilhação,

sendo que tenho a solução aqui na minha frente?

_ E qual seria essa tal solução? Vender-me como escrava branca ou acusar de bruxaria e de

crimes levianos dois inocentes somente para que a senhora sua esposa se safe dos crimes de luxúria

dela? Quer que eu me case com aquele imundo para que, com isso, o senhor quite as suas dívidas de

jogo. É isso que o senhor espera de mim, não é, meu pai? Se isso acontecesse - o que não vai -,

jamais seria feliz. Nunca mais falaria com o senhor. Nunca o perdoaria. Antes de ser sua filha, antes

de ser uma mulher que o senhor se sente no direito de leiloar, sou um ser humano. Sangro, choro,

sinto dor e tenho sentimentos. Eu penso, pai - não sou irracional. Não pode se passar por leigo

quanto a isso.

_ Do que você está falando? Está louca! Padre Ignácio está certo: devemos mandá-la para um

convento para se curar das alucinações e devaneios em sua mente, causados pelo demônio que já está

se apoderando de você. Deve ser um demônio muito poderoso, pois está influenciando a sua

maneira de entender a realidade da vida. Onde já se viu dizer que mulher pensa? Desde quando

mulher tem algum direito? Onde foi que ouviu tais insanidades? Nasceram ignorantes e submissas

porque Deus assim quis. Não adianta tentar querer ser diferente, pois a única coisa para a qual vocês

servem é procriar. Não pode mudar os fatos ou as leis dos homens e sobre elas tentar travar uma

guerra solitária. Não pode mudar o rumo dos fatos - sempre foi assim e sempre haverá de ser. Você

deverá obedecer ao que lhe for imposto pelos homens ou pelo chefe da casa – que, afinal, sou eu.

Imagina só, uma mulher pensando!

Ele deu um sorriso sarcástico e malicioso e prosseguiu:

_ Quem está dormindo é você, Anna. Por certo, o demônio lhe está embutindo tais pensamentos

na cabeça. Mas assim que for exorcizada, vai recuperar sua sanidade mental. Vou usar minha

influência e meu conhecimento para que vá para um convento onde terá tratamento adequado. Por

certo, se não for demônios, deve ser loucura. De lá, poderá ser transferida para um manicômio, caso

seja necessário. Mas lembre-se, minha filha: basta que diga que entende o que lhe digo, é certo que

envio imediatamente alguém para lhe tirar de lá. Mas é importante que não se demore nessa decisão,

pois já está ficando velha e logo já não arrumará um partido tão lucrativo como o conde.

Era inacreditável ter que ouvir aquelas abominações saindo da boca do meu pai. Mas eu

precisava responder antes que ele me fizesse calar para sempre.

_ É! O senhor tem mesmo razão. Não sei o que falo. Por certo, estou possuída pelo demônio

mesmo! Se for assim, que o senhor e essa gente vejam-me como uma louca endemoniada, que assim

seja. Mas é muito triste saber que o senhor considera-nos, as mulheres, como um animal irracional.

Isso também quer dizer que, quando o senhor se deita com sua esposa, está se deitando com uma das

éguas do seu estábulo? Meu Deus! Estou perplexa com tanta atrocidade que sai de sua boca, meu pai.

O senhor prefere deixar-me ser trancada como uma louca endemoniada em um convento do que

ouvir a verdade, do que fazer a coisa da maneira correta. Se isso é o que o senhor acha certo, então,

cale-me. Faça como todos: sufoque a voz da verdade. Mate-me, se assim o quiserem. Mas a verdade

aparecerá mais cedo ou mais tarde. E o senhor? Ficará sozinho com sua consciência e embriaguez.

Disse aquilo porque sentia o forte hálito de bebida que saía de sua boca. Depois de fitá-lo

desafiadoramente, prossegui:

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_ Vou lhe contar uma coisa sobre sua esposa, pois acho que o senhor ainda não sabe o que anda

acontecendo debaixo do seu próprio teto. Caso o senhor não tenha percebido, a senhora sua esposa é

uma desfrutável e anda o traindo. Não estou dizendo isso para magoá-lo ou para vingar-me. Mas

acredito que o senhor está sendo ingênuo em relação a essa mulher.

Ele olhou-me fulminantemente e, por fim, respondeu ironicamente:

_ Todos temos que fazer certos sacrifícios para manter a família, minha doce e querida filha!

Aprenda que nada nesta vida sai de graça.

_ O senhor sabia? Como pude ser tão tola a esse ponto!? Eu o achava vítima. No entanto, o

senhor sempre foi conivente com todas as traições da condessa?

Senti a cabeça dar uma girada, como se o mundo todo estivesse caindo sobre mim. Era

inacreditável que um homem admitisse aquele comportamento leviano de sua esposa somente para

manter as aparências e o status. Depois de me ver ficar sem atitude, ele continuou:

_ Há coisas que uma esposa tem que fazer para manter seu casamento feliz. Existem certos

sacrifícios que são necessários para o entendimento de um casal. Em um casamento, tanto o marido

quanto a esposa têm que ser compreensivos e, muitas vezes, coniventes com certas coisas. Ora,

Anna! De onde você achava que vinham as roupas caras que você usava? E toda a comida que

comemos? Achava mesmo que eu, à beira de uma falência, poderia suprir o luxo de uma mulher tão

cheia de mimos como minha esposa? Se pensa desta forma, vejo que realmente é uma tola e

ingênua. Tinha muitas esperanças em você. Cria que, quando crescesse, dar-me-ia certo lucro. No

entanto, está se comportando como a garotinha mimada e estúpida que sempre foi. Está sendo ingrata

com a condessa. Você deveria ao menos aprender a se calar e a respeitar quem a alimentou por tantos

anos. O obséquio que sua mãe lhe deixou só poderá ser usado quando seja maior de idade ou quando

sele uma união matrimonial. Portanto, acho que já está mais que na hora de você ser mais

compreensiva e retribuir todo o sacrifício que fizemos por você. Afinal, se minha atual esposa faz

por mim tais sacrifícios, porque você, como minha filha, também não pode simplesmente cumprir

um simples pedido meu? Afinal de contas, o conde é um homem ainda jovem e cheio de vigor. E

muito rico, sim: poderá lhe dar tudo o que desejar. Não terá nunca que passar dificuldades.

_ O senhor enoja-me. Está tentando me prostituir como faz com sua esposa. Saiba que nunca

vou ceder às suas vontades. Prefiro apodrecer no calabouço de um convento como louca

endemoniada a fazer parte deste mundo miserável em que o senhor insiste em sobreviver. Se já que

não se importa com a reputação de sua esposa, dê ela mesma de presente ao senhor conde e poupe

aos dois o trabalho de fugirem. Mas saibam que pretendo gritar aos quatro ventos o que estão

tentando fazer comigo.

Meu pai olhou-me nos olhos como se sentisse repulsa por mim. Esbofeteou-me nas faces,

fazendo-me cair deitada sobre a cama. Levantei-me, colocando as mãos no rosto, mas nada disse.

Novamente, apenas o fitei, tentando reconhecer quem era o homem à minha frente. Depois que ele

me olhou com desprezo, prosseguiu:

_ Então, a partir de hoje, renego-a como minha filha e excomungo-a como ser humano. Não

moverei uma palha para amenizar sua pena. Por mim, apodrecerá em uma cela escura e úmida para

aprender a respeitar e obedecer às pessoas que só quiseram o seu bem. E quanto a dizer sobre o que

acabamos de falar, não acreditariam em uma louca tendo crises de possessão. Eu mesmo farei

questão de me certificar de que sua pena será a mais dura possível.

Ele gritou para que os guardas viessem me buscar. Naquele exato momento, lembrei-me do pai

de minha ancestral Shaara, também ancestral do meu pai e que morreu pensando que ela o tivesse

traído. Definitivamente, meu pai trouxe consigo essa revolta do passado. Ele me odiava

incondicionalmente por causa das lembranças da outra vida. Ele, então, gritou, chamando os guardas

e ordenando:

_ Guardas! Tirem essa mulher da minha frente! Levem-na para a carruagem. Já está na hora de

cumprir minha obrigação como cidadão espanhol.

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Havia o fato de que ele também estava alcoolizado, mas o ódio mortal por mim só era

justificado por causa das lembranças inconscientes que ele trazia, achando que Shaara o teria traído e

abandonado ao descaso do destino. O fato de que eu não me tornaria submissa aos seus caprichos era

somente a centelha para que aquela raiva toda aflorasse. No fundo, ele estava usando a promessa que

o conde havia feito de esquecer todas as suas dívidas quando firmasse compromisso comigo. Meu

pai estava, inconscientemente, tentando achar um motivo para que eu fosse trancada em um

calabouço e esquecida por ele, como ele achou que foi no passado.

Por certo, todos viveriam bem. Meu pai continuaria a se fingir de cego, deixando que o conde

saboreasse os carinhos de sua jovem e desfrutável esposa para, com isso, poder viver de aparências.

Mas, quanto a mim, acabei tornando-me um estorvo, um contratempo para minha família, já que não

tinha mais a menor serventia. Ter sido esbofeteada doeu muito, mas o que mais me doeu foi o fato de

estarem me negociando como uma mercadoria.

Aprendi a duras penas que vivemos em um mundo teatral, onde somos obrigados a fazer parte

de uma bela e feliz historinha escrita pelas mãos dos ditadores, dos opressores e dos fanáticos

religiosos. O problema era a realidade por trás dos bastidores – essa, sim, era muito triste. Pois,

quando caíam as cortinas da aparência, a feia face da mentira e da falsidade vinha à tona, dando

lugar a uma dura realidade de miséria e fome, onde os podres não podiam se misturar com a

burguesia decadente, escondida por trás dos bastidores. Eu não era daquele mundo, nem sabia como

proceder no meio de tanta injustiça e desigualdade. Deus não poderia estar deixando que aquilo

acontecesse em vão. Tinha que ter algum propósito para tanto sofrimento!

Corrigi imediatamente meus pensamentos para não blasfemar contra o Pai. Deus não tem culpa

sobre os erros da humanidade. Tudo o que fazemos, mesmo sobre um ato impensado, é culpa única e

exclusiva de nós mesmos. Temos o livre arbítrio de fazer e falar o que bem quisermos. Por isso,

temos que ter muito cuidado nas horas de dor ou de desespero, para que não venhamos a fraquejar e

blasfemar contra quem nos deu o direto a escolha. Muitas pessoas se questionam por que razão Deus,

sendo tão zeloso e de absoluto amor, deixou que o seu único filho Jesus Cristo morresse de uma

maneira tão brutal. Algumas ainda têm a ousadia de dizer que o Pai virou-se de costas na hora da

morte de seu único filho, para não o ver sofrer. Isso não é verdade. Um Pai zeloso e amoroso nunca

viraria as costas ao seu filho amado. Jesus teve o livre arbítrio e escolheu a sua sentença. Com

certeza, na hora de sua morte, o Pai estava segurando suas mãos para que o seu filho, assim, não

sofresse mais do que ele havia escolhido. E não nos castigou mais porque o próprio Jesus o implorou

Pai, perdoai-os, porque não sabem o que fazem... Para mim, Jesus sempre vai ser um mestre em

sabedoria, benevolência e perfeição. Quanto ao Pai maior, este é indiscutível em suas inúmeras

qualidades, pois são supremas e absolutas.

Quando o oficial chegou, trouxe mais dois guardas com ele. Baixei minha cabeça e deixei que

me levassem amarrada pelos pulsos, como um animal selvagem. A cada volta que o oficial deu com

a corda apertando meus pulsos, senti minha liberdade indo embora. Nada mais tinha a dizer; meu

silêncio o faria por si. Por mais que qualquer pessoa passe por um momento de irracionalidade e

insanidade, ela sempre tem um momento chamado de consciência. Ninguém nesta vida se livra da

consciência. Ela é como um grito que nunca se cala dentro da gente. Mesmo que mantenhamos uma

aparência de tranquilidade, mesmo que não tenhamos a coragem de admitir o quanto somos falhos e

que cometemos injustiças, esse grito vem, mais cedo ou mais tarde, para nos mostrar o quanto somos

falhos.

Fechei bem os olhos e apertei as mãos sobre o rosto. Queria esconder-me de toda aquela

vergonha. Acabei desabando em prantos. Meus soluços tornaram-se compulsivos. Por mais que não

queiramos fraquejar, a dor da decepção torna-se um ponto de partida para a vulnerabilidade. Afinal,

somos seres humanos e, como tais, temos sentimentos. Não tive coragem de olhar para o meu pai

nem que eu quisesse. Levantei a cabeça e engoli as lágrimas. Não daria o gosto da derrota nem a ele

nem àquelas pessoas. Quanto mais fracos aparecemos perante os inimigos, mais eles se sentem no

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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direito de nos pisarem. Temos que ter na mente as seguintes palavras: não damos asas a cobras e

nem cutelo ao carrasco, porque inimigo se vence com determinação, coragem e oração. O silêncio é

a maior arma que o ser humano tem nas mãos. A confiança em Deus e na espiritualidade amiga é a

única certeza de que venceremos todas as barreiras. A fé é uma noite negra: não sabemos se seremos

salvos, mas temos a confiança de que seremos. É como se atirar de um despenhadeiro para se livrar

de um dragão. Não saberemos se a voz que nos impulsiona é ou a não a de Deus, mas temos que

arriscar. A vida é um risco constante. Quem não arrisca, nunca vai ter a certeza se poderia ter dado

certo ou não. São as incertezas que nos fazem pensar. São os erros e os tropeços que nos fazem

crescer. Não existe este ou aquele que nunca deixou de aprender algo. Existem, sim, pessoas que

preferem dizer que não se lembram de nada que lhes aconteceu. Essas pessoas só fazem isso quando

se trata de algo que elas fizeram a alguém – porque, quando se trata de algo que foi feito a elas,

lembram-se por toda a eternidade. Nossos erros nunca são visíveis ou lembrados. Nunca seremos

capazes de admitir que fazemos coisas que prejudicam o nosso semelhante. Mas, se em algum

momento alguém nos faz qualquer coisa que não nos deixa satisfeitos, corremos em apontar o erro

dessa pessoa. Assim, ninguém vê o nosso. É fácil viver assim, não é? Desmemoriado, sem

lembranças, vagando sobre o lago do esquecimento. Ouvir o que alguém tem a nos falar é essencial -

mas aprender com os nossos próprios erros é indispensável. Isso não significa que nunca mais vamos

errar. Porque erramos todos os dias, todas as horas e não pararemos nunca. Isso porque somos burros

demais? Não. Porque somos fracos e não controlamos nossos impulsos.

Quando começamos as descer as escadarias, mantive-me em silêncio. Ao terminar, pude ver que

os demais presentes iam abrindo alas para que os guardas passassem comigo. Aquelas pessoas que se

encontravam nos degraus olhavam-me como se sentissem por mim uma grande repulsa. Não vi a

condessa - o que foi uma surpresa. Ela não estar presente para se vangloriar da minha derrota

significava que ela estava aprontando alguma coisa. Esse pensamento gelou-me a espinha.

Tereza, ao ver-me, caiu em prantos. Tentei passar as mãos em seu rosto quando passamos por

ela - que estava em um dos degraus-, mas o guarda puxou minhas mãos. Um dos guardas quase me

derrubou, empurrando-me pelas costas no final da escada. Só não caí porque o outro, que segurava as

cordas, puxou-me para junto dele. Um guarda ainda muito jovem que estava na porta, esperando para

abri-la, zombou de mim quando me viu escorregar:

_ Voe, bruxa maldita!

Parei no hall de saída e dei uma última olhada para me despedir do lugar onde passei toda a

minha vida. Foi a última vez que vi minha casa.

O guarda novamente empurrou-me porta afora, tentando mostrar-me que não podia parar.

Cambaleei, mas não caí. Do lado de fora, fui observando o jardim e as lembranças do passado me

vieram à mente: coisas muito pessoais, como o cheiro das rosas que Joseph sempre me dava pela

manhã; e quando Maria me trazia sumo de frutas frescas embaixo do pé de cedro. Esbocei um

discreto sorriso. Olhei para tudo e disse Adeus!, antes que o guarda me jogasse carruagem adentro.

Amarraram minhas mãos na portinhola, na parte de cima, fazendo com que meus braços

ficassem pendurados. Vai ver acharam que eu iria fugir. E se o fizesse, para onde iria? E para que

tanta violência? Será que os supostos demônios em meu corpo poderiam me possuir e me fazer sair

mordendo a todos? Certas medidas de segurança eram desumanas e desnecessárias. Mas eram usadas

para que a população ficasse acuada e respeitasse as autoridades locais.

Comecei a bater o queixo. Sentia frio, pois saíra sem ter a menor chance de levar um xale.

Embora o sol já tivesse despontado no horizonte, a neblina ainda era muito densa e, por certo,

choveria naquele dia, pois o céu estava cinza.

Olhei mais uma vez para a casa que um dia foi o meu habitat. Vi à janela a condessa, que

observava tudo por trás das cortinas da sala. Pela distância em que se encontrava, não dava para

saber o que ela estava pensando. No mínimo, seus pensamentos eram de vitória.

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Adriana Matheus

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Às vezes, julgamos e interpretamos mal as pessoas. A condessa não era minha amiga, mas

mesmo assim a entendia. Ela era mais uma vítima de meu pai e daquela sociedade machista.

Entendia-a e não esperava ser entendida por isso. Sabia que ela vingava em mim todas as suas

frustrações. No fundo, era muito difícil para ela ter que ser submetida a tais coisas - logo ela, que

sempre tivera de tudo. Casou-se porque já estava com vinte e oito anos e o pai não poderia ficar com

uma filha solteirona em casa. No fundo, o pai da condessa quis livrar-se dela como o meu. Embora a

entendesse, não significava que eram justificáveis seus atos de maldade comigo. Mas é a vida!

Tornamo-nos vítimas das frustrações das pessoas com quem convivemos. Mesmo sabendo que meu

destino não seria dos melhores, compadeci-me por vê-la ali, atrás das cortinas, pois acabaria por se

afundar nas bebidas e também passaria a gritar com as paredes, pois não teria nem a mim nem a

Maria para lhe servir de esteio. Quando o conde se cansasse do seu brinquedinho, descartá-la-ia,

deixando-a ao relento. Definitivamente, deve ter sido muito difícil para a condessa ter deixado seus

sonhos, sua vida e, provavelmente, um amor. E agora lá estava ela, vivendo ao lado de um homem

muito mais velho, que bebia dia e noite e era um compulsivo por jogos. Por não cumprir mais os

deveres como marido, fazia vistas grossas e deixava-a ter seus amantes para, com isso, lucrar

também.

Era bizarro e inacreditável saber que os homens usavam seu poder sobre as mulheres para fazê-

las suas meretrizes particulares. Logicamente, isso acontecia debaixo dos seus próprios lençóis.

Mesmo sabendo que o adultério era considerado um crime hediondo para a Santa Madre Igreja, os

nobres não só o praticavam às escondidas, mas também prostituíam suas esposas, fazendo-as

cometer o mesmo crime. Pois, para a sociedade, o importante era manter as aparências. Também

tinha o fato de que, enquanto estivesse dando lucros favoráveis à Igreja, o povo não faria mal algum.

Mas tinham que se manter rigorosamente em dia com seus dízimos, entre outras coisas. Qualquer

deslize seria imperdoável e prejudicial à saúde deles. Logicamente, todos sabiam das depravações

dos nobres. Mas era mais sensato que permanecessem calados. Assim, a alta sociedade permanecia

intacta.

Aqueles hipócritas depravados comiam e bebiam às custas da desgraça alheia - da escória, como

chamavam os menos favorecidos. Repudiavam a pobreza como se eles fossem vermes. Mas era o

lodo de suas atitudes que destruía a raça humana. Vivi em uma época onde a degradação não era só

dos corpos maus cheirosos. Vivi em uma época onde a insociabilidade e a hipocrisia tomavam conta

da humanidade como uma doença contagiosa. As pessoas não se misturavam umas com as outras. Os

pobres tinham um espaço na exclusão. Tinham que viver escondidos. Pessoas com deficiências eram

excomungadas ou tinham que pedir esmolas nas ruas. Os negros, estes então... Sofreram com o

preconceito dos que se diziam ter poder sobre as pessoas. Gostaria de ter podido fazer alguma coisa,

mas só fui descobrir meu real caminho quando já estava na hora de me encontrar com meu destino.

As crianças eram obrigadas a fazer duros trabalhos, enquanto as filhas das senhoras feudais sequer

podiam vestir-se sozinhas. Se um menos favorecido ou uma mulher, como no meu caso, os

desafiassem, por certo poderia considerar-se morto. Mesmo que confessassem e se arrependessem,

como lhes era imposto muitas vezes, por certo faltar-lhes-iam alguns pedaços do corpo. Aí, sim,

estariam fritos em óleo fervente, pois como sobreviveríamos em uma sociedade totalmente

preconceituosa? Ninguém lhes daria trabalho nem esmolas, e ninguém se casaria com uma ex-bruxa.

Principalmente porque nunca existirá ex-bruxa. Uma vez conhecedora da magia, não adianta tentar

se converter.

As pessoas que eram consideradas bruxas, mesmo que fossem perdoadas pela Santa Madre

Igreja, jamais obteriam o perdão. Mesmo demonstrando arrependimento, elas acabariam

mendigando, pois o povo nunca mais as olharia com os mesmos olhos. Uma vez pagão, sempre

pagão. Se eu tivesse aceitado o que o meu pai havia me sugerido, teria que viver sob vigilância

constante e só sairia de casa acompanhada por um guarda e uma aia de confiança do conde. Meu pai

também poderia ser chamado a qualquer deslize meu e poderia castigar-me, se assim achasse

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necessário. Uma pessoa que estava em uma situação como a minha, quando morria, era jogada em

valas ou enterrada em locais exclusivos para hereges, excomungados e pagãos. Não obtinha da Santa

Madre Igreja autorização e o direito de ser enterrada em um cemitério público ou em um local

sagrado. Na maneira de ver desses hipócritas, Deus também não perdoava os pecadores e os hereges.

Eram pessoas que pregavam a palavra do Criador sem ter o menor amor no coração. Mas, se Deus

não perdoava ninguém, então por que ele mesmo disse Sou a ressurreição e a vida. Quem crê em

mim, ainda que morra, viverá; e quem vive e crê em mim, nunca morrerá?

A única coisa que Jesus realmente fez foi pregar o amor e o perdão. Ele também nos ensinou

que só o Pai poderia julgar-nos e mais ninguém. Isso me pesou na alma naquele momento. Se Jesus

Cristo foi só perdão e bondade, como poderia o ser humano, cheio de corrupção, com coração

carregado de maldade, sentir-se no direito de injuriar e julgar o seu próximo? Por que ser diferente

era um crime, um pecado? Por que tinha que haver somente uma religião que pregasse sobre o Cristo

verdadeiramente? Por que tudo era heresia? Por que as missas tinham que ser celebradas em latim, se

a maioria da população mal sabia assinar o próprio nome? Aos pobres, quando lhes era permitido

assistir uma missa, tinham que ficar do lado de fora da igreja. Os negros nem da porta podiam passar.

Se a casa era de Deus, por que tanta desigualdade, preconceito e soberba? Será que o mundo mudaria

algum dia? Será que as pessoas em outra época, em outra encarnação, seriam mais evoluídas? Será

que os apóstolos também tiveram dúvidas? Pois elas me pesavam o ser. Que triste ter que fazer

parte de uma humanidade tão desigual! - pensei, por fim. Então, deixei-me levar pela paisagem...

A caminho da cidade, fui observando tudo ao meu redor nos mínimos detalhes, numa espécie de

despedida fúnebre. Adorava a cidade de Salamanca, com suas enormes montanhas e árvores. Esta

cidade mágica enfeitiçava os olhos de quem quer que por ela passasse. Salamanca é uma província

raiana da histórica Região de Leão, na Espanha, e situa-se a nordeste de Portugal. Também é

influenciada pela bacia do rio Douro. Sua denominação, em idioma local antigo, era doiri. Essa

região chegou a sofrer influências romanas, árabes e diversas outras mais sutilmente. É uma terra de

clima ameno e topografia variada. A cidade é situada em local mais plano, mas com montanhas ao

norte e ao sul. Dona da penúltima catedral gótica construída na Espanha, como seus maiores tesouros

encontramos: a Universidade de Salamanca, a segunda universidade mais antiga da Europa, fundada

no ano 1218 por Alfonso IX de Leão; as Catedrais Nova e Velha; Plaza Mayor; Ponte Romana, e

outros, sem fim. Seu título deve-se ao fato de o arenito, utilizado em suas antigas construções,

apresentar coloração levemente dourada clara. De acordo com a luz, pode-se verificar que o título faz

juz à sua beleza. Em suas terras, são produzidos vinho e azeite, e há alguma criação de ovinos e

caprinos. Não possui temperaturas extremas de calor e frio, e recebe pouca afluência de chuvas. Já

em suas montanhas, pode-se verificar mais abundância pluvial. O mais rico de Salamanca talvez seja

sua história secular, onde se verifica acontecidos inusitados. Cristóvão Colombo mesmo chegou a

passar pela cidade. Nela tivemos a Inquisição e a migração de judeus, portugueses, árabes e tantos

outros mais que compunham seu quadro histórico. Também devido à sua localização geográfica,

sofreu influência de correntes celtas em dados momentos e ocasiões. Talvez daí venha sua

significação. Salamanca, com certeza, seria no futuro um local onde as minhas irmãs poderiam se

encontrar.

Sonhos, belezas e histórias. Tudo isso passava na minha frente. Eram pequenos momentos dos

quais eu sentiria saudade. Residia dentro daquela cidade uma força maravilhosa e que o tempo nunca

poderia apagar. Nenhuma maldade poderá acabar com a magia de Salamanca. Isso eu sabia porque

estava em meu coração. Minha alma estaria ali para sempre. Poderiam me tirar tudo, menos os

sonhos e as lembranças dessa formosa província. Eu era realmente apaixonada por Salamanca, pelo

meu país, minha Espanha... Viajei mentalmente, percorrendo toda aquela terra maravilhosa com

meus pensamentos e lembranças. Só fui interrompida quando chegamos à cidade e pude ouvir o

alarido das pessoas que estavam nas ruas, naquela manhã de fim de outono. Pareciam estar sabendo

que eu ia ser levada a julgamento, pois seus olhos curiosos e amedrontados não desgrudavam da

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carruagem que estava em disparada. As pessoas fizeram uma espécie de procissão nas laterais das

ruas, de um lado a outro. Multidões aglomeravam-se nas calçadas. Ouvi gritos e xingamentos, mas

não sabia decifrar nenhuma daquelas palavras que, por certo, não eram de misericórdia ou de afeto.

Impressionante como más notícias chegam rápido! Voam nas asas do vento.

Minhas mãos e meus braços já estavam começando a doer e a ficarem dormentes. Percebi,

também, que meus punhos estavam arroxeados. O pior é que nem poderia mexê-los muito, pois a

corda estava muito arrochada e poderia cortá-los, com certeza. Minha boca estava seca e sentia medo

e fome. Que combinação sem requinte!

Meu pai não estava dentro da carruagem comigo. Acompanhou-nos a cavalo. O guarda que me

escoltava não me pareceu muito amistoso. Olhava-me com certo pavor, escondido atrás do semblante

fechado. Resolvi permanecer calada, pois o medo nas pessoas é geralmente muito perigoso. Elas

acabam usando a violência como uma forma de defesa. Então, por sensatez, evitei até respirar muito

alto.

O cocheiro corria tanto que parecia que iria tirar o pai da forca. Meu estômago começou a

embrulhar de tanto que sacudia a carruagem. Elevei meu espírito ao céu em orações. Em um instante,

estava longe de tudo aquilo. Fechei os olhos bem apertados, para olhar para dentro da minha alma,

tentando achar algum lugar tranquilo. Quando nos concentramos muito, chegamos a lugares

imaginários. Mas, naquele momento, só queria me concentrar naquela magnífica paisagem de

Salamanca à minha frente. Viajei mentalmente por todo aquele cenário. Senti meu corpo leve. Era

como se o meu perispírito estivesse se desprendendo naquele exato momento. Era uma forma de

socorro mental. Eu estava tentando encontrar a paz e segurança dentro de mim mesma. Realmente,

precisava desligar-me daqueles acontecimentos - ou acabaria ficando louca. Cheguei até a esboçar

um sorriso causado pelo nervosismo em que me encontrava, mas o guarda cutucou-me com a ponta

do fuzil, fazendo-me sair do meu estado de transe. No mínimo, deve ter pensado que eu estaria

maquinando algo – ou, quem sabe, naquela mente poluída, ele imaginou que eu já estivesse

incorporada por algum súcubo.

Súcubo é um demônio com aparência feminina, que invade o sonho dos homens. Fazendo isso,

eles podem corromper totalmente a pessoa. Súcubos são demônios que se alimentam da força sexual

das pessoas. Quando estes demônios invadem o sonho de uma pessoa, eles tomam a aparência do

desejo sexual delas e os atacados têm a melhor experiência sexual de suas vidas nesses sonhos. A

energia que vem do prazer do atacado é sugada pelos súcubos. A palavra succubus vem do verbo em

latim que quer dizer deitar-se sob. Íncubos são demônios masculinos que afetam as mulheres.

Ambos sempre agem à noite, enquanto suas vítimas dormem. Para o meu entender, nada mais era do

que uma pessoa com seus desejos sexuais reprimidos. E isso acabava aflorando durante o sonho,

quando o corpo está livre de represálias. Mas, por ter a mente ignorante e ingênua, esses pobres tolos

saíam a confessar tais sonhos aos padres, que, por sua vez, condenava-os, dando-lhes várias

penitências e castigos abomináveis. E se o sonho prosseguisse - o que quase nunca acontecia,

porque, logicamente, quem seria louco de ser torturado tantas vezes? - o padre ou responsável diria

que o infeliz estarva dominado por demônios da luxúria. Nem quis pensar no que aquela mente

libertina à minha frente poderia estar pensando a meu respeito. No mínimo, achava que eu estava

tendo delírios imorais porque esbocei um sorriso. Mediante aquela cutucada, abri meus olhos

rapidamente e comecei a olhar pela janela, já que nem com os meus pensamentos eu podia ficar

sozinha.

Ao passarmos frente à igreja de padre Ignácio, vi um cortejo fúnebre. O senhor Manoel Borges

havia falecido. Houve certo comentário que poderia ter sido por causa da peste, mas nada havia sido

comprovado. Todos pareciam não querer falar sobre o assunto, sendo que a peste era considerada

uma doença do diabo. Próximo à praça principal, algumas moçoilas desfilavam em seus belos trajes

e, ao ver passando a carruagem em que me encontrava, viraram de costas imediatamente,

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impulsionadas por suas aias. No mínimo, pensavam que eu jogaria um feitiço sobre elas ou, quem

sabe, transformá-las-ia em sapo ou coisa parecida.

Além de ter me tornado a única atração do condado, também havia me tornado uma aberração

da natureza. Sei que, naquela manhã, não tive a oportunidade sequer de olhar-me ao espelho, mas

tinha certeza de que em minha face não haviam nascido verrugas da noite para o dia. E sabia que, em

meus cabelos, embora despenteados, não tinham cobras mostrando a língua. Mas, quando eu olhava

para os rostos amedrontados daquelas pessoas, era isso que elas passavam para mim. Senti-me um

monstro, uma aberração da natureza.

Quando chegamos, finalmente, frente ao tribunal local, uma multidão já se reunia, aguardando a

chegada da atração principal - no caso, eu. Algumas pessoas estavam carregando foices e paus nas

mãos. Outras trouxeram cesta de legumes e ovos podres. Senti um calafrio repentino invadir todo o

meu ser ao ver toda aquela gente aglomerada em frente ao tribunal. Por instantes, achei que nem

chegaria a julgamento. Os demônios não me fariam mal. Mas, com certeza, poderia esperar tudo

daquelas pessoas. Na verdade, sabia que naquelas atitudes ameaçadoras elas estavam demonstrando

uma forma de autodefesa. Isso foi o que me assustou: o medo que elas sentiam de mim poderia surtir

reações diversas em cada uma delas. As pessoas, quando estão sendo influenciadas ou passando por

uma histeria coletiva, podem ser muito perigosas, em todos os sentidos.

Fui despertada daquele transe de medo pela voz estridente de um homem. Estiquei o pescoço

para ver. Era a voz do chefe da guarda, gritando do lado de fora da porta tribunal. Aquele homem

espalhafatoso deixou-me ainda mais aflita com o seu abanar de braços e gritos estridentes. Ele era

um homem alto e muito magro. Parecia ter saído de uma catacumba, pois sua cor muito pálida e seus

olhos extremamente esbugalhados eram assustadores. E aquele bigodinho, então? Todo engomado

sabe-se Deus pelo quê! Arrepiei-me dos pés à cabeça ao ver aquela figura exótica e nada

convencional. Sua farda não lhe caía bem, pois ficava curta nas bainhas e justa demais nas pernas e

braços. Eu até poderia ir para a fogueira, mas não consegui deixar de observar o desleixo de quem

estava tentando achar algum defeito em mim. O homem, definitivamente, parecia-se com um

boneco fantoche, personagem de alguma cena de um teatro de horror. Engoli o riso mais uma vez e

continuei a detalhar aquele pobre infeliz que havia caído nas minhas graças. Se eu estivesse no

escuro e sem ninguém por perto e aquela figura tivesse aparecido de repente, no meio do nada, juro

que cairia dura e tísica ao chão. Santo Deus, tenha pena de minha alma, pensei comigo! Estava

sendo soberba e insana.

A cada instante, ficava mais desesperada. Isso fazia com que a minha mente começasse a ter

devaneios de tolices. No fundo, não queria acordar para a realidade dos fatos - o que explicava certos

pensamentos ilógicos para o momento em questão. Embora eu tivesse tentando manter meus nervos

sob controle para não cair em prantos e demonstrar fraqueza, estar amarrada como um animal e

vigiada por aquele soldado na minha frente estava me deixando psicologicamente desorientada. Às

vezes, quando estamos muito assustados, não conseguimos sequer ouvir o som que sai da boca das

pessoas. Só vemos que elas mexem os lábios. Era o que estava acontecendo comigo. Eu estava

quase em choque e, por isso, minha mente tentava ser irracional. Era como se ela estivesse me

protegendo de um colapso repentino. Depois de respirar profundamente, esvaziando a minha mente,

voltei à realidade de novo. Lá estava o homem comprido a falar e gesticular. Foquei-me em seus

lábios para sair daquela surdez mental e poder ouvir o que o chefe da milícia estava dizendo. Por

fim, depois de muito esforço, consegui sair do devaneio e ouvi o que estava sendo dito:

_ Vamos, minha gente! Deem passagem para um oficial em serviço. O show ainda não

começou. Vão se afastando da carruagem e dando-me licença, para que faça meu trabalho como se

deve.

Aqueles braços compridos iam abanando e afastando a multidão que, aos poucos, foi abrindo

passagem. Uma menina fez-me uma careta e a mãe logo tratou de tapar os olhos da pobre. Ela só

estava brincando, mas a mãe deve ter achado que eu a transformaria em uma boneca.

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_ A que horas vão queimar a bruxa? - perguntou uma velha senhora.

O chefe da guarda, porém, respondeu-lhe, parecendo não estar interessado em dar muitas

respostas:

_ Vamos deixar que os responsáveis respondam a todas essas perguntas na hora certa, minha

senhora. Primeiro, ela deverá ser interrogada. Depois disso é que saberemos quais as medidas serão

tomadas.

Por fim, depois de muito esforço para abrir caminho por entre a multidão, o capitão da milícia

conseguiu aproximar-se da carruagem. Abriu a portinhola, olhou-me seriamente, sem nenhuma

palavra a dizer, e foi desamarrando meus pulsos. Meus braços pareciam estar mortos, devido ao

tempo que ficaram suspensos. O chefe da milícia tirou-me da carruagem aos safanões. Ele não estava

com medo de mim, mas tinha que mostrar ao povo que tinha autoridade. Fui, em seguida, amarrada

novamente. Só que, dessa vez, com os braços para trás. Comecei, a partir daquele momento, a sentir

que minha liberdade tinha sido tirada de mim para sempre. As pessoas que estavam do lado de fora

do tribunal sussurraram coisas absurdas. Outras, ainda, gritaram como se vissem em mim algum tipo

de forma deforme. O pânico de algumas delas causou uma histeria coletiva. Os poucos guardas que

existam ali mal conseguiam controlar a multidão que havia se formado na porta do tribunal. Subi a

escada empurrada e quase recebi o golpe de uma pedra que um fazendeiro lançou em mim.

Já dentro do tribunal, fui obrigada a ficar sentada por horas em um corredor escuro, pois o

magistrado e o inquisidor ainda não haviam chegado. Fiquei observando o corredor. Metade das

paredes era de madeira e a outra metade era decorada por enormes quadros. Um imenso lustre

estava pendurado sobre a minha cabeça. Seis bancos compridos seguiam em fileiras corredor

adentro, um ao lado do outro. A porta de entrada era imensa e pesada, e a porta a sala de audiência

era dupla e muito alta. Era um lugar muito frio. Não tinha nenhuma planta ou decoração que

harmonizasse o ambiente. Tinha certo clima de tristeza no ar. Era como se as almas do purgatório

gritassem por clemência o tempo todo ali dentro. Eu estava parecendo um porco espinho, de tão

arrepiada que fiquei ao perceber que aquele lugar era um grande portal para os espíritos sem luz e em

aflição.

Dentro da sala de audiência, reuniam-se algumas pessoas ilustres e importantes, como: o conde

Alfred; o chefe da milícia, senhor Antônio Santos; os dois maiores representantes paroquiais, padre

Ignácio Manuel, padre Alencar Sorancco; madame Hortência Rivald; a condessa Marli Von Del Prat;

meu pai, Juan Vladimir Porto Señra; senhor Álvaro Lancastro; lady Dornellas Carrucci; um

representante legal de sua majestade o rei, o Lord Marllon D’ Runchieir; o Lord. Octávio Güllians

III; o sobrinho de sua majestade a rainha, o duque Philip Gonzáles; e, por último, o senhor Emanuel

Tostes, que representaria o povo legalmente e por todos faria as perguntas, se necessário. Esse tipo

de coisa praticamente não acontecia, pois o representante do povo apenas servia para levar as

notícias do que se passava dentro da sala de audiência, já que o povo, em certos momentos, não

podia estar presente.

Por volta de onze e meia, chegaram o magistrado Narcíseo de Freitas e o inquisidor Nicolau

Neufrien. E, para o espanto de todos, vieram acompanhados do bispo, Dom Helvécio Hernandez, e

do Prior Eurico Pastorino de La Constance. O alarido foi tamanho quando o homem desceu da

carruagem que, de dentro do corredor do tribunal, pude ouvir. E até mesmo eu, que já não esperava

mais nenhuma surpresa, fiquei completamente extasiada ao ver tal figura ilustre. Ao passar por mim,

olhou-me de soslaio, demonstrando desprezo absoluto. Seu olhar era severo e gelava até os que já

estavam mortos. Ele era um homem alto e forte. Sua presença era de imponência. Dom Helvécio

Hernandez era muito comentado por seus feitos e proezas pela forma como julgava os condenados de

feitiçaria. Diziam que as suas torturas eram implacáveis e que não havia quem não confessasse todos

os pecados a ele. Ele vestia uma túnica negra comprida. Em sua cabeça, havia uma mitra preta e

vermelha. Ele aparentava ter uns setenta anos de idade. Pela forma sisuda do rosto, por certo nunca

em sua vida soubera o que era um sorriso. Eu sabia que seria severo e impiedoso comigo. O homem

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não era um emissário da Igreja, mas sim um emissor de Lúcifer. Quando ele estava passando perto

de mim, ventou forte e o cheiro que pairou no ar foi de enxofre. Mas o mais estranho era que todas as

portas estavam fechadas. Havia algo de malévolo nele. Pude jurar que uma sombra entrou ao seu

lado na sala de audiência. Definitivamente, aquele homem não era um ser humano.

Até aquele momento, não pude ter certeza se a sombra era uma ilusão da minha mente cansada e

nervosa, ou se realmente a sombra entrara na sala com Dom Helvécio. Olhei para todos os lados,

mas nada vi. Até que, de repente, lá estava ela, flutuando como um lençol negro sobre a porta da sala

de audiência. Era uma criatura irreal, com rosto deforme, olhos vermelhos e um sorriso apavorante

na boca. Quase não dava para se ver nitidamente, mas os olhos foram o que mais me assustou, pois

demonstravam que era um demônio devorador de almas. Ficou pairando alguns minutos, parecendo

estar procurando uma vítima para se apossar da sua alma. Tive que me manter bem discreta para que

ele não percebesse que eu podia vê-lo. Pois, quando um demônio como aquele percebe que podemos

vê-lo, por certo se torna muito mais perigoso. Depois de alguns minutos, pensei que ele tivesse ido

embora. Mas, logo em seguida, ele estava sobre a minha cabeça e sua forma incorpórea já havia

mudado de novo. Desta vez, ele parecia ter criado asas de morcego. A figura deforme olhou-me com

ar zombeteiro e maligno. Eu, por minha vez, baixei os olhos, tentando não demonstrar nenhuma

reação. Se a morte tinha uma forma, ali estava ela, na minha frente, olhando para mim. Confesso que

fique fiquei apavorada. Percebi que, além de apavorante, era um zombeteiro, pois podia mudar de

forma. E ele, ao perceber que eu podia vê-lo, agarrou-se nas paredes com suas unhas compridas e

começou a correr pelo teto. Depois, voltou para a porta da sala de audiência e sorriu-me, mostrando

sua língua de cobra.

Certos espíritos acompanham as pessoas quando elas têm um coração muito perverso. Tais

espíritos são vulgarmente chamados de demônios, atraídos por nossas energias - sendo elas negativas

ou positivas. Ou seja, se vibrarmos boas energias, vamos atrair bons espíritos. Mas, naquele caso

específico, o espírito já havia tomado conta daquele corpo. Ambos eram praticamente um só ser.

Dom Helvécio estava carregando sobre o corpo todo o peso das injustiças que cometera contra suas

vítimas. Aquele demônio era o seu julgador e, quando ele viesse a morrer, com certeza ele seria o seu

algoz e o faria ver as atrocidades cometidas em vida. Por certo, Dom Helvécio havia julgado muitas

pessoas levianamente. O que eu achava mais interessante era saber que esses homens de Deus faziam

parte de um clero e se diziam ter o poder de julgar e exorcizar as pessoas supostamente

endemoniadas, mas não conseguiam ver o demônio que estava possuindo o seu próprio corpo.

Certos espíritos atormentam seus obsediados da pior forma possível. As formas mais comuns de

obsessão são: a obsessão simples, a fascinação, a auto-obsessão, o obsessor por amor e o suicida. O

ser humano é objeto e alvo do processo de obsessão constantemente. O obsediado trata-se de alguém

cujo débito é muito elevado diante da lei divina.

No plano de evolução espiritual em que se encontra, nosso planeta é um local de expiação, no

qual se concentra um grande número de espíritos vibrando nas mais baixas frequências possíveis.

Esses espíritos vivem presos a situações emocionais de ódio, raiva, egoísmo, amor não-

correspondido, entre outras emoções. Estão de tal forma presos ao plano físico que muitos acreditam

ainda estar em seus corpos carnais. Assim, vivem próximos das pessoas com as quais um dia

conviveram, afastando-se dos planos espirituais mais elevados e atrasando sua reencarnação. Entre

esses espíritos, ainda existem aqueles que têm a consciência de que estão mortos e de que já não

habitam mais um corpo físico. Mas, como ainda estão presos às vibrações muito baixas do mundo

espiritual, realizam ações que visam a prejudicar os vivos e atrapalhar ao máximo a vida e a

evolução espiritual de suas vítimas encarnadas. Esses espíritos são os que chamamos de obsessores.

Sua sensibilidade à Luz Divina foi embrutecida pelo tempo e por sua natureza moral. Eles ficam

estagnados num círculo vicioso e numa obstinação tão intensa que não é raro se esquecerem de

quando e do porque de tudo ter começado. Na maioria das vezes, estão tão cansados e vivem há tanto

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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tempo nessa condição que não sabem mais como caminhar em direção ao esclarecimento e à Luz de

Deus - necessitando, assim, de toda ajuda que lhes possa ser fornecida.

É fácil para nós imaginarmos o surgimento de tais obsessões pelo caminho do ódio. Afinal,

sabemos do que os homens são capazes quando tomados pela raiva descontrolada. Mas também

surgem obsessões, até mais graves, em virtude do amor. O amor gera correntes que, unidas a outros

sentimentos como egoísmo, apego, carência afetiva intensa, falta de auto-estima, podem produzir

obsessões. A revolta, a dor e a raiva podem mudar a energia do amor. Basta que exista um grande

apego alimentado por um forte egoísmo, gerado num coração que viva uma grande carência, e

teremos um espírito que sentirá uma grande dificuldade de se separar dos entes queridos. Como o

amor e o ódio estão separados por uma barreira quase imperceptível, em algumas oportunidades

imaginamos que um espírito está com ódio - quando, na verdade, ele pode estar escondendo a dor de

um amor não correspondido. Ou até mesmo pode ser uma entidade que ainda quer manter o apego

que tinha em vida, agindo de forma a manter a outra pessoa presa ao círculo de sentimentos que

demonstrava quando o espírito estava encarnado. De todas as formas de obsessão, a gerada pelo

amor é a pior de todas, pois aquele que ama sequer pode imaginar ou aceitar que, na verdade, está

atrapalhando seus entes queridos. Ele acredita estar ajudando-os, supondo que não poderiam viver

sem sua presença e auxílio. A relação entre o obsessor e suas vítimas é variada e segue por caminhos

tortuosos, mas que inevitavelmente levam à degradação física e moral do obsedado - o que, por fim,

pode levar à vitória do espírito obsessor.

As obsessões são as ações que influenciam os vivos, estimulando reações e semeando a

discórdia e o ódio, nascido da força exercida pelos espíritos inferiores. Eles influenciam

maleficamente, como os demônios das histórias bíblicas. Assim como ocorre nessas histórias, as

formas de o obsessor atuar também são sutis e intangíveis. Só após muito tempo é que se tornam

evidentes. Nunca devemos tentar fazer um exorcismo ou desobediar sozinhos, porque não sabemos o

grau da obsessão no qual se encontra o indivíduo. Sem contar que o espírito pode também interferir

na vida de quem tentar atrapalhá-lo. Ele pode até mesmo se irar contra a terceira pessoa. Nunca

tente fazer um acordo com um espírito. Isso nunca funciona e o obsessor pode passar a obsediar a

quem lhe faz o acordo também.

É muito fácil saber quando uma pessoa está sofrendo de obsessão, pois se tornam visíveis as

alterações de comportamento físico, mental e emocional. Tais como: olhar fixo, esgazeado ou

fugidio, sem encarar ninguém; tiques e cacoetes nervosos; desalinho ou desleixo na aparência

pessoal; excentricidade comportamental; agitação; inquietude; intranquilidade; medo e desconfiança

injustificáveis; apatia; sonolência; mente dispersa; ideias fixas; excessos no falar; no rir; mutismo ou

tristeza; agressividade gratuita, difícil de conter; ataques que levam ao desmaio; rigidez;

inconsciência; contorções; pranto incontrolável e sem motivo; orgulho; vaidade; ambição ou

sexualidade exacerbados e exagerados. Quando a pessoa volta ao normal, após uma crise,

geralmente queixa-se do domínio sofrido e lamenta atos infelizes que praticou. Na fascinação, os

demais notam a fantasia, o fanatismo, a fixidez, o absurdo das ideias. Só a pessoa obsediada não

nota.

Fiquei ali por horas, tentando achar uma qualificação para aquele espírito cuja forma mal se

podia ver. Aquele inquisidor não sabia, mas, se houvesse um julgamento divino, ele seria o primeiro

a morrer queimado. Pois aquele obsessor era o seu algoz espiritual e seria o primeiro a condená-lo.

Todos estavam dentro daquele tribunal havia horas. Até os espíritos malignos ocupavam seus

lugares de destaque. Enquanto eu, reles bruxa, permanecia sentada em um banco duro, isolada de

todos, no escuro, amarrada com as mãos para trás e sendo atormentada pelo obsessor de um

monsenhor, que se sentia no direito de me julgar e condenar. O que eu havia me tornado para aquelas

pessoas, um animal? O que de tão grave eu havia cometido? Será que ter uma ideia própria e

formada fazia de mim ou de alguém uma pessoa endemoniada? Comecei sem querer a deixar que a

revolta tomasse conta de mim. Afinal, quem sabe com tantos demônios sobre o meu corpo eu

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poderia sair e engolir alguém? Com tantas criancinhas deliciosas à solta, imagina o que eu não

poderia fazer! Isso, por certo, eu não faria - é lógico. E eles nem desconfiavam que o demônio-mor

tivesse acabado de entrar e estava lá dentro, no meio deles. Sacudi a cabeça com indignação.

Ingênuos, pensei em voz alta.

Pedi ao guarda que estava parado à minha frente, em posição de estátua, que me desse um copo

d’água, mas ele permaneceu em posição ereta. Exclamei várias vezes, implorando-o, mas o homem

nada fez. Acho que ele era mesmo uma estátua. Mas juro: não fui eu quem o transformou. Era como

se eu fosse translúcida para aquele soldado. Não fazia a menor diferença se eu morresse ou não.

Meus braços começaram a doer novamente. Toda aquela situação estava me deixando

completamente louca. Estava tendo alucinações e devaneios. Já não conseguia distinguir o certo do

errado, a verdade da mentira. Houve hora em que eu acreditava que eram verdadeiras aquelas

acusações contra mim. A falta de comunicação e o silêncio absoluto, causado pelo desprezo daquele

guarda à minha frente, já estavam realmente começando a afetar os meus nervos.

Estava cansada e precisava dormir um pouco para descansar a mente. Fiquei me lembrando de

como era bom poder cochilar dentro de uma tina com água quente. Fui criada por Maria e, devido

aos seus costumes e à tradição, ela me ensinou a tomar banho todos os dias. Muitas vezes fazia isso

às escondidas de todos, em meus aposentos, pois não era o costume europeu. Na verdade, as pessoas

não eram apenas imundas de pensamentos, mas também seus corpos tinham um cheiro fétido. A

senhorita D’Lú contou-me, certa vez, sobre os estranhos costumes da corte europeia, onde a maioria

das pessoas casava-se no mês de junho, início do verão, porque, como tomavam o primeiro banho do

ano em maio, o cheiro delas ainda estava mais ou menos tolerável. Entretanto, como já começavam a

exalar certos odores, as noivas passaram a ter o costume de carregar buquês de flores junto ao corpo,

para disfarçar, assim, o mau cheiro. Os banhos eram tomados numa única tina, enorme, cheia de

água quente. O chefe da família, o rei ou monarca, tinha o privilégio do primeiro banho na água

limpa. Depois, sem trocar a água - reparem que lindo!-, vinham os outros homens da casa, por ordem

de idade, as mulheres, também por idade e, por fim, as crianças. Os bebês eram os últimos a tomar

banho. Portanto, quando chegava a vez deles, a água da tina já estava tão suja que era possível perder

um bebê lá dentro. Ainda bem que meu pai havia sido doutrinado por minha mãe e mantinha quatro

tinas em nossa casa. Meu pai nunca fora um homem de tomar muitos banhos, mas também não se

preocupava se tomássemos com frequência. Em compensação, sua adorada esposa só tomava banho

quando precisava ir a uma festividade. Confesso que seu odor era fétido e, misturado às caras

fragrâncias francesas, dava-me náuseas. E isso piorava no verão.

Comecei a achar graça daqueles pensamentos tolos e sem lógica. Estava à beira de uma

condenação e ainda conseguia ver graça naquelas pessoas. Estava ficando tonta; precisava comer

alguma coisa. A falta de alimento, principalmente pela manhã, causava-me tonturas e certos

devaneios. Não podia pedir socorro naquele local, pois poderiam achar que o demônio já estava se

manifestando. Tive de me manter calma, fria e controlar os devaneios causados pela falta de algo

doce, principalmente. Por isso, Maria sempre se preocupava em me fazer comer pela manhã e

forçava-me a comer algo nos intervalos das refeições. As vertigens começavam a me causar

devaneios. Estava sentindo a visão turva. Comecei a cochilar, quando uma voz suave me chamou:

_ Anna, precisa manter-se lúcida. Não poderemos ajudá-la se não estiver consciente. Anna,

acorde! Só poderemos ajudá-la com a sua mente em total estado de lucidez.

Abri os olhos lentamente e vi um homem belíssimo, vestindo uma túnica muito branca de um

fino linho. Seus cabelos eram cacheados e loiros e caíam sobre os ombros largos. Seus olhos eram de

um azul inigualável. Tinha as faces rosadas e os lábios grossos. A pele mais parecia uma fina

porcelana. Sua luz deixou-me quase cega. Quando eu já estava totalmente despertada, ele abriu-me

um largo sorriso e falou-me:

_ Sabe por que estou aqui, não?

_ Sim, Heixe. Faço uma ideia.

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Ele abaixou e segurou o meu rosto com a mão, que mais parecia um pedaço de seda. Era a

primeira vez que me tocava. Foi bom sentir um pouco de carinho, pois estava totalmente indefesa e

carente. Depois de afagar meu rosto e meus cabelos, o espírito falou:

_ Vim auxiliá-la, mas preciso que tente reagir. Sei o quanto é difícil para você estar passando

por tudo isso. Mas esse foi o caminho que escolheu. Não fraqueje agora. Ainda tem muito chão pela

frente.

_ Eu sei, mas meu corpo dói tanto! Estou fraca e com fome. Talvez tivesse sido melhor se eu

tivesse escolhido o destino que queriam impor a mim. Talvez seja melhor eu negar tudo e dizer que

estava sob influência maligna. Estou cansada... Não quero mais lutar, por Deus. Faça-os parar, por

favor!

_ Anna, sabe muito bem que não posso voltar o tempo. Mesmo que negue quem é, não mudará o

seu jeito de ser. Liberte-se de todos esses pensamentos e alimente-se com orações. Seu espírito está

fraco e, por isso, seu aparelho apresenta fraqueza. Só o amor do Pai Maior pode sustentá-la nesta

hora de dor. Anna, minha doce Anna... Como pode esquecer tudo o que aprendeu?

Naquele momento, uma estranha força penetrou meu corpo e entrei em total sintonia com Heixe.

Juntos, fizemos uma oração mental. Meu espírito foi levitando, até que saí do meu aparelho e me vi

fora do chão. Uma imensa luz cercou todo o corredor escuro e frio. Uma paz tomou conta de mim.

Meu corpo já não sentia dor ou frio, muito menos fome. Suas mãos alimentaram-me e curaram-me.

Havia uma harmonia no ar e uma doce melodia que imitava os sons das harpas dos anjos. Naquele

estado, pude ver meu aparelho em repouso. Parecia ter envelhecido uns três anos naquelas últimas

horas. Olhei, também, para o guarda que vigiava o meu aparelho. Pude perceber uma áurea de

tristeza em torno dele - o que justificava aquela forma inerte e sem reação aparente. Olhei para

Heixe. Ele parecia ter percebido o que eu estava vendo. Então, emanou vibrações de entusiasmo para

aquele homem, que estava também precisando de misericórdia. Depois, Heixe pegou-me pela mão e

guiou-me por entre as paredes, seguindo até a sala de audiência. Por instantes, cheguei a pensar que

havia morrido, mas Heixe explicou-me que eu estava viva e presa pelo cordão de luz que me

segurava ao meu aparelho.

Dentro da sala de audiência, havia um comitê formado por muitos lordes, pelo bispo, o prior,

entre outros que estavam discutindo o meu caso. O murmúrio no local era muito grande, o que me

deixou tão confusa, quase não conseguindo entender o que realmente estavam falando. Passei por

todas aquelas pessoas, mas não puderam me ver. Olhei para o bispo e lá estava a sombra negra,

pairando sobre ele. Na verdade, a maioria das pessoas que estavam naquele recinto tinha um

obsessor como companheiro. Sabia que aqueles espíritos já haviam sido seres humanos um dia. Mas,

agora, pareciam estar em decomposição, chorosos, agonizantes... Pareciam terem se levantado das

catacumbas. A maioria era obsessora. Outros, parentes que só queriam orações. E outros imploravam

para que os ouvissem. Aquilo, sim, era o purgatório. Por isso, todos eram tão desnorteados daquele

jeito. Com tantas pessoas falando em suas cabeças ao mesmo tempo, como poderiam ter ideias

próprias?

Meu corpo levitava sobre aquelas pessoas e seus espíritos atordoados. Estava confusa. Na

verdade, ainda não havia me dado conta de minha atual condição. Esse é um estado em que o espírito

não deve permanecer por muito tempo fora de seu aparelho. Isso é muito perigoso e inconsequente,

mas confiei em meu mentor espiritual, pois ele sabia de minhas limitações.

Pude ouvir o que o inquisidor estava falando e, com isso, sabia com exatidão qual resposta teria

que dar. Na verdade, eles estavam mais assustados do que eu, como se isso fosse possível. Eu teria

que ter muito tato ao lidar com aquelas pessoas, pois, por serem completamente leigas no assunto da

espiritualidade, poderiam colocar todos os meus planos a perder. Escolhi aquela sentença e, daquele

momento em diante, teria que ter liderança sobre minhas palavras, pois qualquer deslize poderia

condenar-me à fogueira.

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Precisava encontrar o meu monge. Sabia que ele estava me esperando. Mesmo que todo o

sofrimento que eu tenha passado tenha sido pesado demais, nunca me arrependi do que fiz, pois cada

momento que vivi ao lado do meu amor valeu a pena. Mesmo que ele tenha me traído... Aquela

necessidade dar-me-ia forças de prosseguir com a minha decisão. Podia senti-lo. Sabia da sua

infelicidade. Sabia como ele estava sozinho e sem vontade de viver. Meu sofrimento estava ligado à

solidão na qual ele se encontrava. Éramos um só ser. Estava muito perto para desistir agora. Dei

prosseguimento ao aprendizado de Heixe e deixei que ele me mostrasse o que me esperava. A

senhora gorducha que estava em minha casa, essa sim, era um grande problema: a cada discussão,

ela colocava mais lenha na fogueira. Ela só estava ali por ser filha de um falecido e rico proprietário

de muitas terras. Por ser uma dizimista aplicada e mão aberta, tinha o direito de permanecer entre os

poderosos, enquanto isso lhes fosse conveniente. Nunca havia se casado ou namorado em toda a

vida. Só se dedicou à Igreja e aos preceitos religiosos. Sua língua felina era bastante útil nestes casos

de acusações. Principalmente porque ela julgava saber da vida de todos do condado. Na verdade, ela

queria algo para comentar durante sua quinta geração. Em um povoado tão pequeno como aquele,

não se tinha muitas coisas para se contar.

Heixe segurou minha mão e continuamos a ver o quanto as pessoas cochichavam entre si. Os

olhos da condessa pareciam mortos, visando o nada. Era como se ela estivesse em êxtase. Por trás de

tanta soberania e arrogância, pude perceber a mulher infeliz e sem vida que ela era. Seu espírito tinha

uma cor cinza e parecia muito solitário. O conde não se desgrudava de meu pai. Ambos pareciam

estar tramando o tempo todo. Algo estranho naquela amizade começava a me intrigar. Não era só um

simples interesse em me casar com aquele homem. Existia uma espécie de trama política e

financeira. Meu pai fingia não saber que a esposa era cortejada por outros homens e pelo conde - isso

era conveniente demais. Comecei a ver as coisas como realmente eram. Aproximamo-nos deles,

tentando ouvir o que diziam, mas o alarido de vozes não nos deixou entender. Por fim, Heixe achou

que já era hora de retornar para o meu aparelho. E foi bem a tempo, pois o magistrado havia pedido

para que me buscassem para o interrogatório. Como em um flash, meu espírito passou rapidamente

por todas aquelas pessoas, atravessando as paredes e jogando-se em meu aparelho inconsciente. Senti

como se um raio atravessasse meu corpo. Acordei de supetão, já com dois guardas ao meu lado,

sacudindo-me e entreolhando-se, parecendo achar que eu estava possuída.

_ Levante-se! - disse um guarda ainda muito jovem, chutando as minhas canelas.

Levantei-me com a ajuda do outro, que segurou meu cotovelo, dando-me certo apoio. Segui-os

corredor afora. Entramos por uma enorme porta, quase negra, talhada à mão. Ao abrirem a porta

pesada, fez-se total silêncio no recinto. Todos se viraram para trás, levantando-se. O júri já estava

formado e o magistrado estava usando uma enorme peruca cacheada. Tanto garbo e, por certo, era

careca. A peruca estava lotada de piolhos. Não conseguia parar de achar defeitos nos santos que me

acusavam de megera. Deu-me vontade de rir, porque não conseguia ver como pessoas tão imorais e

cheias de defeito conseguiam achar em alguém como eu um defeito. E o que é pior: inventavam

mentiras atrás de mentiras para satisfazerem os egos cheios de blasfêmias. Meus pensamentos eram

esdrúxulos e levianos. Mas não poderia falar. Então, pensava. Sacudi a cabeça, prometendo não

pensar mais sandices. Embora já estivesse ciente do que me aguardava, senti um frio na espinha! O

que mais me doeu foi ver meu pai ali, olhando-me tão friamente, como que desejando a minha

morte. Não me importava o que aquelas pessoas pensavam de mim, mas o que realmente me doía era

saber que alguém do meu próprio sangue rejeitava-me não por dúvida sobre o meu caráter pessoal,

mas por saber que eu era um risco à sua reputação como homem e por eu não ter baixado a cabeça às

suas ordens inescrupulosas. O conde olhou-me de cima abaixo, com um desdém e desejo

abomináveis. Os demais presentes esquivavam-se, com medo de me tocarem e virarem pedra ou algo

assim. Talvez uma pessoa contaminada pela peste não fosse tão repulsiva aos olhos deles como eu

estava sendo naquele momento. Baixei a cabeça, pois sabia que quanto mais humilde eu fosse,

melhor para mim seria. Sentaram-me em uma cadeirinha em frente ao magistrado. O alarido de

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vozes começou novamente, assim que me sentei. O povo estava muito agitado do lado de fora, mas o

magistrado e os demais queriam interrogar-me primeiro.

_ Levante-se, por favor! A senhorita tem noção do porquê de estar aqui? – perguntou-me o

magistrado.

_ Não, excelência!

Houve um alarido de exclamação, como se eu estivesse mentindo. Por fim, prossegui:

_ Não tenho certeza, excelência. Estou muito confusa quanto às acusações.

_ Então, nega ser uma bruxa?

_ Não, excelência.

Houve um alarido ainda maior.

_ Nego apenas ter cometido tais crimes contra a Igreja. Sempre frequentei as missas aos

domingos. Nunca faltei com a eucaristia e sempre comunguei. Mas não nego que sou uma bruxa.

_ Blasfêmia! - gritou o advogado de defesa da Igreja.

_ Protesto! Esta mulher frequentava a igreja quando ainda não estava possuída pelo demônio.

_ Protesto aceito. A senhorita deve ser mais explícita quanto às suas palavras. Como pode não

negar que é uma bruxa, mas negar estar praticando a bruxaria?

_ Só conheci os caminhos da magia há pouco tempo, excelência. Mas confesso que tudo o que

aprendi já estava dentro da minha alma. Lembro-me de cada símbolo. Mas nunca cometi nenhuma

das atrocidades das quais estão me acusando.

_ Acredito neste lado de sua história. Mas o que me intriga é como foi que conheceu o caminho

que a levou a praticar coisas contra a Igreja, sendo que não tinha outra companhia além da sua

governanta, como mesmo disse - já que, logicamente, é pouco provável que sua madrasta tenha se

envolvido com tais coisas ilícitas aos olhos da Igreja e de Deus. Diga-me, senhorita Anna, é esse o

seu nome, creio, ou o demônio também usa outro nome quando a possui?

Os demais que estavam no recinto riram, formando um coro, enquanto o advogado de acusação

olhava-me zombeteiramente por debaixo dos óculos. Ele era um homem gordo e de meia idade, com

bochechas de cachorro. Por fim, depois daquela pequena pausa para servir de deboche, respondi de

cabeça baixa, tentando demonstrar humildade:

_ Sim, este é meu nome, excelência. E não, o demônio jamais esteve em meu corpo. Isso é um

equívoco, excelência.

_ Então afirma que sua governanta impunha-lhe cometer tais crimes?

_ Não, nunca disse isso! Maria era uma santa. Ela sempre me ajudou em tudo e foi a pessoa que

me criou. - fiquei nervosa.

Estalando os dedos, ele disse:

_ Mas tenho aqui relatos de que esta senhora – Maria, como a chamavam - vem de origem

cigana, e fazia chá para a senhorita tomar durante a noite. Isso está certo?

_ Sim. Eu perdia o sono à noite e Maria dava-me chás, para que eu conseguisse dormir.

_ E esses chás ou poções eram feitos do quê?

_ Não sei. As receitas são sempre secretas. Maria trazia-as guardadas sob sete chaves.

_ Não tenho mais perguntas, excelência. – virou-se para os demais.

O magistrado tornou-me a interrogar:

_ Então, essa mulher, Maria, entorpecia sua mente com suas poções? Fazendo-a ficar sobre o

poder do demônio, em estado de sonambulismo, a senhorita saía durante a noite e atacava os aldeões,

não é isso?

_ Não, nunca houve tamanha barbárie. Quando eu tomava os chás de Maria, dormia

profundamente.

_ Como a senhorita pode ter certeza, se diz dormir profundamente? Mande entrar o agricultor

Antonio de La Paz.

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Trouxeram um homem magro e muito humilde diante do tribunal. O advogado levantou-se e

fez-lhe inúmeras perguntas. Esse homem fazia pequenos serviços para os fazendeiros locais. Não

poderia entender o que ele poderia ter com o meu julgamento, pois mal o conhecia e nem nunca na

vida trocara uma palavra sequer com ele.

_ O senhor é o agricultor Antonio de La Paz?

_ Sim, senhor. Sou eu mesmo.

_ Conhece essa mulher aí, na sua frente?

_ Sim, senhor. Conheço sim.

_ De onde o senhor a conhece? Poderia dizer a todos os demais presentes? Devo lembrá-lo de

que está sob jura.

_ Vi-a pela noite, no meio das plantações, em trajes íntimos. - ele disse isso com a voz trêmula e

a cabeça baixa, pelo medo de que alguma coisa que dissesse não fosse o que lhe haviam mandado.

_ Não ouvi. Poderia responder um pouco mais alto dessa vez?

_ Via-a frequentemente a perambular pelos campos, à noite, quando a Lua estava alta no céu.

Ela estava quase desnuda. Eu até sentia vergonha por ela. Tentei várias vezes pedir a ela que fosse

para casa, porque não era certo uma senhorita ficar daquele jeito no meio as hortaliças.

_ E ela o ouvia?

_ Não, senhor. Parecia estar em transe. Depois é que fui saber que era uma bruxa e que estava

amaldiçoando as plantações.

Todos murmuraram... Ele prosseguiu:

_ É verdade, sim. Logo depois, a plantação do senhor Leônidas secou por completo. Pode

perguntar vós micês para ele. - ele se agitava e apontava o indicador na direção de todos.

_ Então, o senhor quer dizer que esta mulher foi a responsável pela colheita do fazendeiro

Leônidas não ter dado certo?

_ Sim, senhor. Foi ela sim.

_ Por que o senhor nunca contou tal fato às autoridades?

_ Porque tive medo de que ela fizesse algo ruim contra minha família, senhor.

Tive mesmo vontade de fazer algo mais naquele momento. Tive vontade de estrangular aquele

estúpido, por mentir tanto e vender-se por tão pouco. Ele é quem foi negligente em seu trabalho e

deixou que a plantação do homem morresse. Aproveitou-se daquela situação para que o fazendeiro

não o punisse por sua falta de atenção ao trabalho. O cheiro da bebida em seus lábios era

insuportável. Ele era um mau caráter e estava se fazendo de vítima.

Meu acusador mandou chamar uma senhora de nome Samanta Castro. As mesmas perguntas de

início foram feitas à mulher. Depois, prosseguiu-se:

_ É verdade que a senhora estava grávida de uma criança? Uma menina, por assim dizer?

_ Sim, é verdade.

_ O que houve com a sua criança?

_ Morreu. Isso foi logo depois que essa mulher apareceu perto de minha casa, à noite.

_ Como assim? Poderia explicar-se melhor?

_ Eu já tinha ouvido o boato de que a plantação do fazendeiro Leônidas tinha sido destruída por

uma bruxa. Mas sou muito devota do sagrado coração. Então, não dei importância aos boatos. Mas,

numa noite linda de Lua, eu estava colhendo minhas roupas no varal e meu bebê, que estava com

dois meses, estava em uma cestinha bem perto de mim, para o caso de, se chorasse, eu o ouvisse.

_ E o que houve? Conte logo, mulher. - disse o advogado, exasperado.

_ Então, acabei de colher toda a roupa e percebi que algo errado tinha acontecido ao meu bebê.

_ Explique-se, mulher! Pare de rodeios teatrais e vá direto ao assunto.

_ Fui até o cestinho e meu bebê já não estava mais lá. Havia desaparecido como que por

encanto. Gritei meu marido Jésus e fomos os dois procurá-lo.

_ E o encontraram?

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_ Sim. - a mulher desabou em prantos e não conseguiu mais falar uma só palavra.

O magistrado pediu para que chamassem o marido dela.

_ Que entre o senhor Jésus, o agricultor, para que dê continuidade aos acontecimentos seguintes.

Fez as mesmas perguntas iniciais ao homem, que mais parecia um pobre carvoeiro de tão mal

vestido e sujo que estava.

_ Essa mulher chamada de Samanta Castro é sua esposa?

_ Sim, senhor; é sim.

_ O senhor e esta mulher tiveram uma criança?

_ Sim, senhor, tivemos sim. - o homem respondia com a cabeça e com a boca.

_ E o que houve com a criança, afinal?

_ Está morta, senhor. - o homem baixou a cabeça, num gesto de respeito e tristeza.

_ E o senhor, Jésus Justos, é assim que lhe chamam, certo?

_ Sim, senhor; é sim.

_ Então, senhor Jésus Justos, de que morreu a criança?

_ Não sei como morreu, senhor... Mas a achamos sem a cabecinha.

_ Meu Deus! Que horror! - exclamaram todos os demais.

_ E como, senhor Jésus Justos, acha que aconteceu essa barbárie, essa monstruosidade?

Apontando para mim, sem pestanejar, ele respondeu:

_ Isso não sei dizer, senhor. Mas minha esposa, aquela noite, jura que viu essa mulher que está

sentada ali rondando lá pros nossos lados naquele dia. Até fui atrás dela com uma foice, mas não

achei a famigerada, não. Acho que usou alguma magia para evaporar-se daquele jeito.

_ O senhor tem certeza de ser a senhorita Anna?

_ Disso eu tenho sim, senhor. Porque somos pobres, mas nunca haveríamos de falar mentira.

Minha mulher nunca me deu motivos para eu desacreditar dela, não, senhor. E se o senhor quiser,

pode perguntar por aí que vai ver que sou uma pessoa que honra as calças que veste.

Todos caíram na gargalhada da maneira simplória como falava o pobre homem. Ele até poderia

ser uma boa pessoa e ter uma honestidade acima do normal. Mas a esposa dele estava mentindo. Ela

deixou o bebê ao relento enquanto catava as vestes do varal e, por certo, um animal pegou o

bebezinho. Ela ficou tão aterrorizada com o que vira que criou essa fantástica história em sua mente.

Também ficou com medo da represália do marido. E é lógico que a bruxa tinha que ser eu, quem

mais? Eles supunham que tinha uma bruxa local. Mas, quando se espalharam os boatos a meu

respeito, juntaram tudo e fizeram uma história. Eram muito fáceis de manipular. Caso não fossem,

jamais estariam testemunhando. O julgamento prosseguiu:

_ Por que não denunciaram às autoridades locais?

_ Tivemos muito medo por causa que ela é uma bruxa. Ficamos com medo de que minha mulher

nunca mais engravidasse, caso ela jogasse uma praga.

- Será que algum de vocês, aqui presentes, tem ainda dúvidas de que essa mulher é uma bruxa,

que cometia atos satânicos? Não me importa se estava ou não inconsciente. O fato é que essa mulher

admitiu e existem vários fatos que comprovam a veracidade das informações. Se não estiverem

satisfeitos e quiserem mais testemunhas, peço permissão para que o senhor magistrado aqui presente

– logicamente, com a permissão do senhor excelentíssimo Dom Helvécio Hernandes, inquisidor de

alto valor e escolhido por nosso querido rei Filipe – mostre, a caráter decisivo, as testemunhas

impostas a este júri.

O inquisidor olhou para o magistrado, assinalando positivamente com a cabeça, como que dando

permissão para que as outras testemunhas de acusação entrassem. O magistrado mandou que uma

porta lateral fosse aberta. Entraram umas cem pessoas que já estavam aguardando do lado de fora.

Logicamente, a plebe não poderia faltar, pois quem seria melhor para encenar aquele teatro de

horror? Logicamente, os ingênuos, os analfabetos e, enfim, todos aqueles que sempre foram

rejeitados, mas que representavam a força final da palavra. Pois essas pessoas julgavam pela

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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aparência e pelos mexericos. Eram pessoas altamente autossugestionadas e de fácil manipulação.

Cordeiros medrosos e vulneráveis, pessoas que muito tinham a perder. Como a voz do povo é a voz

de Deus, eu seria cozida viva, por assim dizer.

Quando toda aquela gente acomodou-se, como previsto, o alarido ficou maior ainda. Então, o

magistrado deu um grito, batendo com seu malhete em cima da mesa, pedindo silêncio. A voz do

magistrado ressoou pelo recinto como o ronco de um trovão. Todos pareciam estar bastante nervosos

e apreensivos. Aquele alarido só fazia deixar todos ainda mais agitados. Sempre existem pessoas

capazes de tornarem as coisas ainda muito piores do que elas realmente são. Podia ouvir os rumores

horrorosos a meu respeito. Podia ouvir algumas pessoas chamando-me de devoradora de bebês!

Havia malícia, maldade e muito interesse político naquilo tudo.

Eu era só uma desculpa para encobrir o que realmente estava acontecendo - ou seja, esconder o

triângulo amoroso que existia entre meu pai, o conde e a condessa. Também, enquanto todos

estivessem prestando atenção em mim, não investigariam o conde como suspeito de um assassinato.

O inquisidor, após ler publicamente a carta enviada pelo rei, tomou cuidado para não declarar

em sua sentença absolvição alguma, ou que eu - a acusada - pudesse parecer inocente ou isenta. Sua

intenção era esclarecer bastante que tudo foi legitimamente provado contra mim. Desta forma, se eu

fosse trazida mais tarde novamente diante do tribunal do júri, indiciada por causa de qualquer outro

crime, poderia, assim, ser ordenada sem problemas, apesar de a sentença de absolvição já ter-me sido

negada. O magistrado, antes de passar a palavra final ao inquisidor, perguntou-me uma última vez -

não porque estivesse interessado em saber a real verdade, mas porque na sala havia muitas pessoas

influentes e ele não poderia parecer injusto:

_ Tem mais alguma coisa a declarar? Saiba que a senhorita está entre amigos e parentes,

pessoas que a amam e que realmente se importam com a sua saúde e seu bem estar. Creio que agora

é a hora de dizer algo que possa ajudá-la em sua sentença. Saiba que não poderá nunca mais

comentar sobre os fatos ocorridos nesta sala. Portanto, esta é a hora.

Levantei-me, meio cambaleando por causa das muitas horas que já estava sem me alimentar,

olhei ao redor e voltei em direção ao magistrado, fitando-o nos olhos. Ergui minha cabeça e disse:

_ Não tenho mais nada a dizer ou declarar. Não tenho nenhum amigo, já que todos vivem o

perjúrio de um suposto purgatório. Não confio em ninguém, já que me lançam sobre a desgraça

humana. Não tenho nenhum laço familiar ou consaguinidade comprovada com alguém neste

tribunal. Sou apenas um corpo no mundo. Que se cumpra o meu destino. Quero ressaltar, apenas, que

nunca comi criançinhas, nunca me prostituí, nunca tentei induzir ninguém a nenhuma seita ou

religião, quaisquer que fossem.

Depois de eu ter falado isso, o magistrado ainda ressaltou:

_ Senhorita Anna Goldim Señra, ressalto mais uma vez que essa é a sua última chance de dizer

alguma coisa em sua defesa. Caso contrário, será declarada como bruxa e sentenciada a viver nos

calabouços de um convento em San Francisco.

Portanto, olhei para o conde, que estava de olhos arregalados prestando atenção, e disse:

_ Não será necessário que sua excelência declare-me como bruxa, porque eu mesma me declaro.

Não tenho vergonha de ser quem sou e de seguir um caminho que eu mesma escolhi. Mas sua

excelência deveria prestar mais atenção a certas pessoas neste tribunal.

O bispo, porém, tomou a palavra, indagando-me:

_ O que a senhorita quer dizer com isso?

_ Quero dizer que neste tribunal tem um usurpador e assassino sentado aqui, bem em minha

frente. - disse isso apontando para o conde

Ele, de um salto, gritou, apontando o diário da minha mãe em suas mãos:

_ Blasfêmia, excelência! Essa mulher tentou seduzir-me em seu próprio leito. Tenho provas aqui

comigo de que ela, além de bruxa, praticava, sim, os rituais da magia. Há também indícios de que ela

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O segredo dos girassóis

Adriana Matheus

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tinha o seu próprio local escondido dentro da casa de seu pai, onde ela, a governanta e o jardineiro

praticavam rituais de magia negra, cozinhando e comendo os filhos dos escravos.

O alarido de espanto foi geral. O bispo, porém, interrogou-o:

_ E como o senhor ficou sabendo de tais fatos?

_ Sei disso porque a senhora condessa aqui presente também a flagrou fazendo seus feitiços em

um lugar escondido, atrás da adega de vinhos do senhor Juan. Essa mulher está tentando enfeitiçar

todos aqui, transferindo a sua culpa para nós. Mas posso provar o que eu disse. - disse isso

entregando o diário de minha mãe ao inquisidor.

Depois de folheá-lo rapidamente, o inquisidor entregou-o ao bispo, que, depois de uma breve

análise, disse:

_ É irrevogável a questão de que esta mulher seja uma bruxa. É também irrelevante que ela

acuse qualquer membro que esteja presente dentro deste recinto, sendo que ela está tentando

distorcer os fatos para enganar a todos nós. Essa bruxa está tentando usar seus feitiços para nos

manipular. Mediante a tais provas postas em minhas mãos, e mediante tão ilustres testemunhas que

comprovam sua culpa, declaro-a culpada. Passo o caso ao senhor magistrado.

Sabia que não poderia ter dito nada, mas tinha que arriscar e tentar salvar-me. Depois das

palavras do bispo, não pude dizer mais nada. Fiquei ouvindo a sentença que o magistrado me impôs.

Ele se levantou e começou a sentenciar-me com as seguintes palavras:

_ Que a mulher comumente chamada de Anna Goldim Señra seja denunciada e declarada

feiticeira, adivinha, pseudoprofeta, invocadora de maus espíritos, conspiradora, supersticiosa,

implicada na prática de magia feita a ela, teimosa quanto à fé católica, cismática quanto ao artigo

Unam Sanctam e em diversos outros artigos de nossa fé, cética e extraviada, sacrílega, idólatra,

apóstata, execrável e maligna, blasfema em relação a Deus e seus santos, escandalosa, sediciosa,

mentirosa e caluniosa.

Dito isso, o magistrado bateu o malhete sobre a mesa, dizendo:

_ Levem essa mulher daqui e que fique trancada na prisão até que seja levada para o local onde

será trancada e enclausurada para o resto de seus dias. Ressalto, ainda, que ela deve ser mantida sob

vigilância constante, para que não tente fugir ou usar seus poderes malignos.

Todos que estavam no tribunal foram se retirando. Fui levada para uma sala até que o recinto

tivesse sido esvaziado. Logo depois, fui levada para a prisão. Atravessamos a praça com um cortejo

de agourentos atrás de nós. Onde passávamos, juntava-se mais e mais gente. Logo depois de

andarmos uns vinte minutos, chegamos à prisão. Era um lugar muito desleixado e sujo. Subimos os

degraus e passamos por várias salas. Por fim, começamos a descer sem parar, até chegarmos a um

lugar cheio de portas trancadas até em cima, uma de frente para a outra. Devia ter umas quinze ao

todo. Andamos uns dez metros. Minha cela era a última do corredor. Dois homens foram precisos

para abrir a porta. Havia uma cama muito suja e de palha, forrada com um tecido encardido e mal

cheiroso. Parecia que tinha manchas de sangue nele. O lugar era sombrio. O único ar que se tinha

vinha de uma fenda de trinta centímetros ou pouco mais. O orifício era revestido por grades. Mal

dava para se ver se era dia ou noite, porque o orifício na parede era pequeno demais para poder

passar a luz do sol. As paredes eram cheias de teias de aranhas. Senti um terrível cheiro de urina por

toda parte. Na verdade, havia vários excrementos humanos, mas não dava para identificá-los por

causa do tempo. O guarda empurrou-me porta adentro e disse:

_ Seja bem vinda aos seus novos aposentos, rainha das bruxas.

Em seguida saiu, batendo a porta e dando uma gargalhada que mais parecia ter vindo do além.

Fiquei ali, parada, olhando aquele lugar que não tinha mais que uns dez metros de largura.

Os dias foram passando como noites. Agarrei-me em orações para tentar ficar forte. O desespero

do claustro é indescritível. A solidão é uma companhia que não desejamos a ninguém. Ela nos faz

ver coisas no escuro e, se não tivermos muito autocontrole, enlouquecemos. Comecei a fazer traços

na parede para não me perder de que dia era. Comecei a falar sozinha, mas os guardas sempre me

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insultavam, perguntando se o diabo estava lá comigo. Eu só tinha a companhia do guarda carcerário

nas duas vezes em que ele me trazia alimento. Às vezes, o guarda da noite jogava em meu rosto a

água que serviria para eu tomar. Ele também, várias vezes, pisou no pedaço de pão duro que me era

oferecido como alimento. Várias vezes, oferecia-me urina ou escarrava dentro da minha caneca com

água. A fome era tamanha que eu comeria a mim mesma.

Diziam que o inferno era algo abominável, mas quem passou pelas torturas da Inquisição

desejaria ir rapidamente para lá. Diziam, também, que nos finais dos tempos os vivos desejariam

estarem com seus mortos - por causa do fim, que seria duro e cruel. Para mim, ali era o fim do

mundo. Todos os meus pecados já estavam mais que pagos. Não existe inferno ou demônio. Existem,

sim, pessoas com mentes diabólicas, capazes de extrema crueldade e covardia para conseguir seus

objetivos a qualquer preço. Deixamos que a vida passe por nós e esquecemos de observar o quanto

aqueles pequenos detalhes são importantes. Só nos damos conta disso quando temos que enfrentar

uma situação muito difícil. Não damos conta quando passamos por cima dos menos favorecidos. Não

damos conta que um dia vem logo após o outro, com uma noite no meio para nos fazer lembrar.

Nunca pisei em alguém, mas pagava esse preço por causa da ambição de terceiros. Deveria ter

prestado mais atenção aos sinais. Deveria ter fugido com Maria e Joseph. O pecado é capaz de se

aliar à desgraça da maldade. Aprendi muitas coisas: uma era me manter em silêncio; a outra era

nunca brincar com a vaidade masculina, pois um homem sabe mesmo ser cruel nessas horas de

impulsividade. Eram nós, as mulheres, quem os seduziam, que tínhamos mais propensão a ser

induzidas e fascinadas pelo mal. A mulher não podia se cuidar ou ter vaidade; jamais podia sentir

prazer com seu marido - pois ele poderia chicotá-la em praça pública, acusando-a de induzi-lo às

luxúrias da carne.

Certa manhã, acordei toda suja: estava nos meus dias de mulher. Não soube o que fazer, pois

comecei a sangrar muito. A vergonha tomara conta de meu ser. Como eu poderia dizer àqueles

guardas o que estava se passando comigo? Rasguei um pedaço de minha anágua, tentando compor-

me. Implorei ao guarda do turno da manhã para que me desse uma tina com água, para que eu

pudesse me lavar. Ele fingiu nem ouvir. Sentia-me mal e humilhada. Minhas forças estavam se

esvaindo. A cada dia que passava, ficava mais fraca. Até que Heixe apareceu e aliviou-me um pouco

daquele martírio. Ficou por horas a fio conversando comigo. De vez em quando, o guarda abria a

portinhola e gritava, mandando-me calar a boca.

_ Cale essa boca, bruxa infeliz! Anda a falar com satã? Se me fizer entrar aí, juro que amordaço

essa boca.

Heixe, naquele dia, despediu-se de mim com um ar pesaroso. Mas era preciso, pois o guarda

estava a ponto de me espancar.

Todos os dias, os outros prisioneiros que ficaram sabendo que na última cela tinha uma mulher,

gritavam meu nome e insultavam-me com palavras odiosas. Alguns gritavam meu nome como se eu

fosse uma mundana. Em atitudes suspeitas, gemiam a chamar por mim. Eram homens de caráter

muito duvidoso e que já estavam na prisão por anos a fio, sem sequer ouvir a voz de uma mulher. A

minha presença, mesmo que do outro lado de uma parede e no fim de um corredor, fazia-os ficarem

como animais. Outros haviam passado por tratamentos com médicos e haviam se esquecido de tudo.

Esse tratamento, bastante suspeito, deixava-os como vegetais. Geralmente, esse tipo de tratamento

era aplicado em pessoas que cometiam algum delito contra algum Lord ou até contra a política, ou

também em casos de homens sodomitas.

Estava rezando para que o convento enviasse o seu emissário para eu sair dali. Os gritos de

agonia vindos do calabouço estavam me deixando completamente louca e desesperada. Alguém

estava sendo torturado incessantemente todos os dias. Meu Deus! Estavam acabando com ele aos

poucos. Tinha que haver alguém para fazer parar o sofrimento daquele pobre homem. Comecei a

esquecer minha agonia e sofrimento. Passei a orar para que aquele ser humano tivesse um fim bem

rápido. Logo depois, escutei quando abriu a porta da cela ao lado e jogaram alguém cela adentro.

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Ouvia os choros e gemidos de dor do pobre. Precisava fazer alguma coisa para acalmá-lo. Então,

comecei a cantar uma velha canção espanhola. De repente, escutei mais dois presos acompanhando-

me. Em seguida, todo o cárcere estava ali comigo, cantando aquela canção que falava de amor e

liberdade. Um guarda passou no corredor exasperando, batendo a baioneta na porta das celas.

_ Calem-se! Ou levo todos para as masmorras.

Fizemos um silêncio mortal e o medo tomou conta de todo aquele local macabro. Passaram-se

algumas horas. O homem que estava do outro lado da parede começou a fazer uns barulhos com uma

espécie de objeto cilíndrico. Ele perguntou:

_ Olá! Como se chama?

_ Anna. E como se chama?

Seu sotaque era muito carregado.

_ Meu nome é Ramon Bernard D’ La Mendonça. Qual crime cometeu a senhorita?

_ Não cometi crime algum, mas estou sendo acusada de bruxaria, traição e tantas outras coisas

que até me perco. Acusam-me até de devoradora de criancinhas. Mas, se fosse carnívora, creio que

teria me autodevorado, pois ando a morrer de fome. Por isso, enclausuraram-me aqui, até que alguém

venha me buscar para levar-me ao Convento e Mosteiro de San Francisco.

_ Oh! Compreendo. E com todo o respeito: qual a sua idade?

_ Vinte. Fiz há poucos dias.

_ É muito jovem. Não acredito que uma senhorita com tão pouca idade e de tão bom coração

tenha cometido tais barbáries. A senhorita deve ter irritado alguém em demasia. E a pessoa, por

certo, é de muito poder aquisitivo.

Dizendo isso, deu uma sonora gargalhada. Em seguida, um gemido de dor.

_ Acho que sim. - baixei a cabeça, lembrando-me do que o conde me disse quando eu saíra do

tribunal.

_ Não quis aceitar um casamento de conveniências e fui contra as ordens de meu pai. Na

verdade, fui perdida em um dívida de jogo. - respondi a ele, com voz meio trêmula.

_ Então foi isso? Lamento, senhorita! Seu pai é um homem desonrado. Nunca vi apostar a

própria filha nas cartas.

_ Ele é uma pessoa doente e está consumido por esse vício maldito. Ele bebe praticamente noite

e dia, sem parar. Enterrou-se até os cabelos em dívidas com esse conde.

_ Desculpe-me, senhorita! Não estou duvidando de sua palavra. Muito pelo contrário, estou

achando demasiadamente ingênua.

_ E o que o senhor acha que realmente deve ser?

_ Não sei, senhorita. Mas o senhor seu pai e o restante devem ter outros bons motivos. A

senhorita nunca desconfiou de nada?

_ De que eu poderia desconfiar? Ou de quem? Nunca saíra de casa, a não ser acompanhada por

minha governanta. Na verdade, meus dotes foram confiscados. Também não era nenhuma soma tão

exuberante assim. Era o suficiente para me manter depois da maior idade, ou a ser entregue ao meu

futuro marido, caso eu viesse a me casar um dia. Mas não creio que eu valesse tanto a pena. Estranho

o senhor dizer tais coisas...

_ Estranho é a senhorita estar aqui por tão pouco! Tem certeza de que não comeu nenhuma

criancinha mesmo? - dizendo isso, soltou outra de suas gargalhadas.

Esbocei um pequeno sorriso.

_ Ora, o senhor ofende-me desta forma! É tão simpático e como sabe acalmar uma mulher com

palavras tão gentis! - fui sarcástica.

_ Só estava a caçoar da senhorita para passar o tempo. Perdoe-me. Quem seria o seu futuro

noivo, mal lhe pergunte?

_ Era para ter sido o senhor filho do duque Celso D’ Louchoa, o conde Albert D’ Louchoa.

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_ Eu deveria ter suspeitado, senhorita. Sinto-lhe dizer que esse homem não vale um doblón

sequer. – riu em alto tom.

Antes que eu pudesse perguntar-lhe por que estava rindo, ele prosseguiu:

_ Acha mesmo que esse peste irá deixá-la em paz?

_ Creio que sim, pois agora estou aqui, presa, e ele esta lá fora.

_ Presa porque tem o dedo desse peste no meio. Com certeza, ele irá atrás da senhorita, no

convento. Ele nunca a deixará em paz, acredite. Sempre terá olhos dele em toda parte. Ele é o espião

do rei, senhorita. Mercenário, trambiqueiro, entre outras coisas mais. Seu pai deve ter falado da

senhorita enquanto jogava. Como disse que ele bebe, o conde por certo trapaceou no jogo para

ganhar a aposta. Agora as coisas estão se encaixando. O que mais a senhorita sabe?

_ Não sei mais nada; juro.

_ Antes de vir para as masmorras, ouvi comentários de que esse conde está aqui para investigar

o convento para o qual está sendo enviada.

_ E por quê?

_ Suspeitam que os cavaleiros da ordem andem se escondendo por lá, à noite.

_ Sério? E por que andam a perseguir os cavaleiros da ordem?

_ Por que dizem que enriqueceram muito e não estão dando a parte da Santa Sé como havia sido

combinado.

_ E o senhor, por que está aqui?

_ Porque sou escritor e escrevo sobre a verdade encoberta por trás dessa podridão monárquica. A

burguesia fede, senhorita.

Depois de dar uma risadinha zombeteira, ele prosseguiu:

_ Andei publicando uns exemplares sobre os monarcas. Acho que não agradei muito.

_ Imagino...

_ Estou aqui, agora, às suas ordens! Um anarquista e visionário, e um amigo ateu. Mas um

amigo fiel, devo ressaltar.

_ É um enorme prazer, Ramon.

Os dias ao lado do meu novo amigo foram bastante agradáveis. Ramon era um homem muito

inteligente e aprendi muito com ele. Embora a maior parte do dia ele passasse sob tortura, sempre

conseguia falar alguma coisa útil. Houve dias em que, de tanto ser espancado, ficou desmaiado por

horas a fio. Ele era um homem de cinquenta e poucos anos, mas de uma força fora do comum.

Admirava-o, mesmo sem nunca tê-lo conhecido cara a cara em vida.

Finalmente o dia chegou. As portas do meu cárcere abriram-se. Dei um pulo da cama. A

primeira pessoa que vi foi o chefe da guarda, que logo veio pôr-me algemas, seguido dos guardas e

de uma freira com uma cara nada agradável. Ela entrou, tampando o nariz com um lencinho. Olhou-

me de cima abaixo e disse ao chefe da guarda:

_ Tirem-na logo daqui.

Fui retirada aos socos para fora do cárcere. Mas, quando passei pela cela de Ramon, disse bem

alto para que ele ouvisse:

_ Fique em paz, meu amigo. Que Deus lhe acompanhe sempre. Nunca o esquecerei, acredite.

O guarda deu uma risada e falou, sarcasticamente:

_ Por certo, vai encontrar com ele no quintos dos infernos, porque morreu ontem à noite de

hemorragia. Não resistiu às torturas da manhã anterior. - continuou rindo.

Chorei e senti pena de Ramon. Ele havia mesmo se queixado de que lhe haviam feito um corte

profundo em seu abdômen. Mas ele sempre levava tudo na brincadeira para que eu não ficasse

preocupada com ele. Meu bom amigo agora estava descansando. Nunca mais haveria de passar por

toda aquela dor. Que seu espírito descanse em paz, pensei comigo. A maioria dos presos estava em

silêncio. Deveriam estar mortos também, pois não me importunavam havia dias. Os barulhos que eu

conseguia ouvir eram gemidos de dor, mas muito fracos.

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Fomos saindo daquele lugar dos infernos. Desta vez, não saímos pela porta principal. Saímos

pelos fundos, onde não haveria tumulto. A carruagem esperava-me do lado de fora. Meu Deus,

quando vi o sol de novo, foi como se um milagre tivesse acontecido! De princípio, fiquei totalmente

cega, mas depois pude ver o esplendor do dia que estava à minha frente. O ar no meu rosto...

Fechei os olhos e lentamente fui abrindo... Vi meu amigo Ramon ao lado de Heixe. Ele estava

lindo... Todo curado de suas chagas. Usava uma túnica muito branca. Por certo, estava sendo levado

para um hospital... Acenaram-me com as mãos e desapareceram, no meio dos raios do sol. Eu agora

estava em paz, porque meu amigo estava em paz. Havia se livrado das mazelas daquela fatídica vida

terrena.

Havia outra freira esperando-nos na carruagem. Ela era um pouco mais jovem e menos

carrancuda. Ajudou-me a subir. Fiquei sentada, de frente às duas mulheres. A mais nova olhou-me

com piedade. A mais velha ficou com seu lenço ao nariz o tempo inteiro. Sentia-me muito mal com

aquela situação. Um padre usando uma túnica marrom comprida e um chapéu enorme pegou uma

carta das mãos do chefe da guarda. Ele ficou na parte de cima da carruagem, com o cocheiro. Dois

guardas acompanharam a carruagem a cavalo. Eu estava algemada, mas as freiras não deixaram que

me prendessem os braços à porta dessa vez. A carruagem começou a andar e eu só queria olhar pela

janela.

Passamos por quase toda a cidade. Fui me lembrando de tudo o que havia passado. A carruagem

praticamente deu a volta na província de Salamanca. Ao passarmos pela igreja de padre Ignácio, ele

fez a carruagem parar. Pediu ao padre que estava conduzindo aquela escolta para deixar que ele

falasse comigo. O padre permitiu. Ele chegou brevemente à janela da carruagem e pegou nas minhas

duas mãos, dizendo:

_ Minha menina! Minha filha... Não fui ao seu julgamento, não me permitiram. Meu Deus, o

que fizeram a você, minha criança?

Ele passou um pequeno bilhete para minhas mãos, que eu leria mais tarde.

_ Tenho rezado pela sua vida, filha. Nunca desista, nunca abandone sua fé na divina senhora.

Estarei aqui, torcendo por você. - beijou minhas mãos e afastou-se.

Não falei nada, apenas chorei. A carruagem seguiu e pegou a estrada. Fiquei com as mãos bem

juntas para que as freiras não vissem meu bilhete. A mais velha cochilava e arregalava os olhos de

acordo com o movimento da carruagem. Lembrei-me de Maria em nossa viagem.

Ao meio dia, as freiras pararam para se refrescar e comer alguma coisa. Tiraram-me da

carruagem com elas. O sol estava alto no céu. Elas me deram um pouco d’água para eu me refrescar

também. Depois, arrumaram uma toalha no chão e colocaram a ceia. Fiquei de longe, olhando-as.

Mas a mais velha chamou-me para junto delas.

_ Pegue pão e chá fresco. Temos frutas e queijo. Coma, vá.

Peguei um pedaço de pão com queijo e um copo de chá. Afastei-me das duas, fui para perto da

carruagem. A mais jovem buscou-me para ficar junto a elas e sentar-me.

_ A casa de Deus não faz restrição aos arrependidos. - disse a mais velha.

Agradeci e beijei suas mãos.

_ Não faça isso. Coma e fique quieta.

Obedeci sem pestanejar. Descansamos debaixo de um salgueiro e depois seguimos viagem

novamente.

A tarde caiu bem rapidamente. A freira mais velha caiu em sono profundo; e a mais jovem, logo

em seguida. Aproveitei para ler meu bilhete. Era de Maria. Ela dizia que ficou sabendo de tudo que

eu havia feito e que estava bem. Que as irmãs estavam em oração por mim e que daria um jeito de

me visitar quando eu estivesse no convento. Minha Maria... Coloquei o bilhete na boca e engoli. Era

muito perigoso se alguém pegasse. Fiquei acordada, olhando pela janela. Era alta noite quando a

freira mais jovem acordou e perguntou-me:

_ Você não dorme, senhorita Anna?

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_ Fiquei tanto tempo em uma cela escura que só quero aproveitar cada minuto e cada detalhe da

minha liberdade temporária.

_ Então, fique à vontade, querida. Mas descanse um pouco também.

_ Prometo repousar assim que o sono chegar.

Os quatro dias restantes passaram-se sem nenhuma novidade. As freiras eram pessoas

abençoadas. Observava-as sem dizer muita coisa. Elas me passavam muita seriedade e calma.

Abençoavam o dia, a tarde, a noite, os alimentos, e a tudo agradeciam e louvavam. Não eram muito

diferentes das bruxas da tradição. Às vezes, cantavam em vez de orar. Suas vozes pareciam ter saído

de uma harpa celestial. Não me desprezavam ou me interrogavam. Pelo contrário, faziam-me fazer

parte de tudo o que conversavam. Era muito bom sentir-me como gente de novo. Mas eu sabia que,

dentro do convento, não seria tudo maravilhoso como ali, naquele momento de trégua, por assim

dizer.

Certa manhã, acordei e dei uma espreguiçadela. Foi quando avistei o mosteiro, ao longe.

Coloquei bem a minha cabeça do lado de fora, para ver melhor. Comuniquei às minhas

companheiras, que ainda estavam dormindo. Elas agradeceram a Deus, com sempre faziam a cada

ato conseguido. Dessa vez, foi pela ótima viagem que tivemos.

Ele era majestoso. Imponente, todo feito de pedras, com duas torres a cada lateral. Era lindo! De

longe, pude ouvir um coro gregoriano que saía de uma capela ao lado. Era composto por voz

feminina e masculina. Foi a música mais linda que já tinha ouvido em toda a minha vida. Meus

sonhos misturavam-se àqueles sons como magia se mistura à realidade. Senti-me leve e feminina.

Havia um campo de girassóis. Era a coisa mais fantástica de se ver! O mosteiro ficava ao fundo,

harmonizando ainda mais aquele cenário de conto de fadas. Algumas ovelhas e cabritos pastavam ao

redor. Havia, também, porcos, galinhas e um celeiro. Todos pastoreados por monges. Todos

pareciam tão ocupados em seus afazeres. Mas, quando a carruagem foi passando, um a um ia

acenando cordialmente.

A carruagem parou na frente do mosteiro e seis pessoas esperavam-nos do lado de fora. Uma

freira muito idosa, uma madre de meia idade, dois monges aguardavam-nos logo na entrada do

convento. Minha surpresa foi ao ver as outras duas figuras ao lado da madre superiora: a condessa e

meu pai. Desci da carruagem e minhas pernas começaram a tremer. Já tinha visto aquela cena antes.

Mas onde? Alguma coisa não iria acabar bem. Meu queixo, de repente, parecia bater como se um

frio tivesse tomado conta de mim. E não estava frio, pois o dia estava demasiadamente quente.

Aproximei-me deles e a madre superiora foi logo falando:

_ Tragam-na para dentro, imediatamente.

A condessa olhou-me com desdém. Meu pai fingiu não me conhecer. Nem sequer olhou em

minha direção. Os guardas quiseram algemar-me, mas a madre disse não ser necessário.

_ Aqui não usamos força bruta, a não ser quando necessário. Ela não sairá deste lugar. Não tem

para onde ir. Ela sabe muito bem disso.

Olhei para trás, tentando despedir-me de minhas companheiras de viagem, mas elas haviam

evaporado. Segui as demais pessoas convento adentro. Deixaram-me em um corredor comprido a

esperar. Onde já tinha vivido aquela cena? De repente, entrei em transe. Quando dei por mim, já

estava exatamente no lugar que sonhei durante minha viagem com Maria. Foi em uma fração de

segundos. Voltei no dia exato quando tive o sonho com o mosteiro. Lembrei-me do meu sonho!,

disse em voz alta, com um largo sorriso nos lábios. Ao abrir os olhos, vi-o ali, parado na minha

frente. Era como se fosse um sonho. Mal pude acreditar no que estava vendo. Fiquei quase

catatônica. Se alguém tivesse me beliscado, com certeza não sentiria. Parece que ele percebeu o meu

estado, pois falou...

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O segredo dos girassóis

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“Todo pedido de perdão é um grande começo. Felizes aqueles que encontrarem a paz no bem

comum que fazem ao seu próximo. Se plantarmos espinhos, colheremos espinhos. Se plantarmos

amor, colheremos amizade. Quando magoamos alguém, seja por qual motivo for, recebemos uma

paga muito maior. Talvez não estejamos preparados para pagar tal preço. Devemos nos lembrar de

uma coisa chamada lei do retorno. Viva bem e em comunidade. Seja feliz, faça feliz a quem está ao

seu lado. Ame o próximo, mesmo que ele esteja longe de você. Reze para que os que na distância

estiverem encontrem-se em harmonia total. Pense, também, que por um orgulho ele deve estar tão

mal quanto você está agora. Reze para os seus inimigos, se é que eles existem! Muitas vezes você

criou esse inimigo e, na maioria das vezes, ele nem sequer sabe que você existe. Para que vingar-se?

Para que procurar uma ferida que você poderia já ter sanado? Siga em frente, ame ao seu próximo

como a si mesmo. Pense nisso. Muita paz e muita luz.”

(Padre Ângelo Wallejo Moralles).

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Capitulo VII – O Segredo dos Girassóis

senhorita está bem? Quer que eu chame alguém para ajudá-la? Sua voz parecia com aquela durante toda a minha vida, aquela que o vento trazia-me aos ouvidos... Meu Deus! Mal podia ver seu rosto por causa daquele capuz e da luz do sol

que invadia todo o corredor por trás dele. Mas isso era o que menos estava importando naquele instante. O amor da minha vida estava ali, parado bem na minha frente, e eu não sabia o que dizer! Aproximou-se de mim e meus joelhos começaram a tremer. Arregalei os olhos e fiquei como uma estátua. Até prendi a respiração. Agora vou morrer!, pensei. Que coisa estranha! Eu era uma bruxa capaz de enfrentar a Inquisição, mas não sabia como proceder diante daquela situação absurda e tola. Agachou-se à minha frente, puxando o capuz para trás. Tocando meu rosto, disse:

_ Senhorita, se não está se sentindo bem, diga-me que irei chamar agora mesmo por socorro. Sorri meio sem graça e fitei-o nos olhos, tentando demonstrar segurança ao lhe responder. Porém, a

ansiedade causada pela emoção fez-me cometer um pequeno deslize: pronunciei seu nome, expondo meus poderes adivinhatórios.

_ Eu... Estou bem, Wallejo, não se preocupe comigo! Ele arregalou os olhos e perguntou-me: _ Como sabe meu nome? - sorriu largamente, mais parecia um anjo. Sua pele era alva, com pequenas sardas nas faces. Seus cabelos eram castanhos da cor de mel. Ele

era muito alto e, embora estivesse por trás daquele hábito tão austero, sabia perfeitamente como era aquele corpo. Enrubesci com meus próprios pensamentos. E seus olhos? Ah! Aqueles olhos!... Tão azuis como o mar da minha Espanha. Dentro deles, pude ver um lindo céu, cheio de estrelas.

_ Como a senhorita sabe o meu nome? Será que as freiras já andaram caluniando-me assim, tão cedo?

_ E por que haveriam de caluniá-lo? Teriam motivo? - senti ciúmes e apreensão por imaginar aquelas freiras tão próximas do meu amor.

Ele, porém, justificou-se imediatamente: _ Não, senhorita, por certo que não. Só estava tentando fazê-la se distrair um pouco, pois há pouco

estava com o semblante empalidecido e tremendo como vara de bambu ao vento. Se ele soubesse o motivo..., pensei. Ele prosseguiu: _ Bom, agora vejo que já está melhor. Por certo deve ter sentido um mal-estar passageiro, causado

pelo calor. Posso saber o seu nome, já que tão misteriosamente sabe o meu? Devo admitir que poucas pessoas chamaram-me durante toda a minha vida como a senhorita chamou-me há pouco. Lembro-me de somente a minha mãe me chamar assim.

Sorriu novamente. Meu coração quase saltou pela boca. Por fim, meio gaguejando, respondi o meu nome a ele.

_ Anna. Chamo-me Anna Goldin. _ É um prazer, senhorita Anna, embora tenhamos que nos despedir tão cedo. Agora tenho que

voltar aos meus afazeres. Vim falar com a madre superiora. Mas, pelo que vejo, ela ainda está ocupada, atendendo os visitantes.

Tive vergonha e medo de contar a ele. Medo por não saber qual seria sua reação. Um monge afoito veio correndo e interrompeu a nossa conversa, dizendo:

_ Padre Ângelo! Por favor, o senhor tem que vir depressa! _ O que há, padre Alfredo? - disse Wallejo, com ar de preocupação. _ Uma de nossas ovelhas está tendo problemas no parto. Por favor, o senhor tem que vir rápido,

pois a pobrezinha irá morrer se o senhor não a acudir de imediato! Aquele homem desesperado salvou-me de uma resposta fora de hora. Ufa!, suspirei aliviada. Salva

pelo bendito parto de uma ovelha. Ele, porém, ficou meio confuso, parecendo não querer ir embora. Mas, por fim, virou-se em minha direção novamente e disse:

A

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_ Senhorita Anna, o dever chama-me. Espero que a senhorita tenha escolhido este caminho por livre e espontânea vontade. Se não… espero que acabe encontrando em Deus o caminho para suas respostas.

Em seguida, saiu em disparada. Meus olhos teimosos acompanharam-no até que sumisse, virando o corredor.

Eu estava sonhando, só podia ser isso! Naquele mesmo instante, a porta abriu-se e a madre mandou que eu entrasse. Levantei-me devagar, porque não podia demonstrar nenhuma emoção de felicidade ou qualquer outro tipo de excitação que contradissesse os preceitos normais e morais da Santa Madre Igreja.

Pediu para que me sentasse ao lado da condessa, mas preferi ficar de pé, ao lado da mesa. A madre observou a cena em silêncio. Sem mencionar nenhuma palavra a respeito, apenas prosseguiu com o assunto.

_ Senhorita Anna, sabe muito bem porque foi trazida sob meus cuidados. Portanto, não vou fazer-lhe muitas perguntas. Primeiramente, porque não gosto de hipocrisias.

Concordei com um aceno de cabeça. A madre prosseguiu: _ A senhorita foi trazida a esse convento sob a penalidade de viver aqui em total vigilância e

clausulo. Deverá cumprir quaisquer ordens minhas ou de qualquer outra superior à senhorita. Não terá nenhuma regalia, como vestes bonitas, jóias, entre outras coisas. - disse isso olhando para o anel que o conde havia me dado e que ainda estava em meu dedo por um milagre.

Naquela mesma hora, tirei o anel do dedo, entregando-a em seguida. Depois de avaliá-lo e devolvê-lo ao meu pai, ela prosseguiu:

_ Nunca poderá sair dos arredores deste convento e jamais deverá ser pega em atos suspeitos. Ou seja, não deve manter nenhum contato físico com os monges. Aqui somos obrigadas a conviver com a presença deles por motivos que não lhe dizem respeito, é claro. Sempre nos mantemos distantes deles, porque sabemos o quanto nós, mulheres, somos usadas por satã para tentar o sexo oposto. Seus trabalhos serão forçados. Dia e noite terá que trabalhar. Não poderá reclamar ou questionar quaisquer ordens impostas. Quero-a presente no santuário de acordo com as regras deste convento. Deverá acordar às quatro horas da manhã e só poderá deitar-se após terminar seus afazeres completamente. Jamais poderá dirigir palavra alguma a nenhuma das irmãs da ordem, a não ser que uma delas lhe dirija a palavra. Três vezes ao dia, deverá manter jejum e oração. Temos uma sala de claustro somente para isso. Deverá tomar banho uma vez na semana. Sugiro-lhe que deva fazê-lo o quanto antes, porque está cheirando muito mal, menina! Sua cama deve ser mantida limpa e em ordem. Sua cela deve estar sempre trancada. Irá trabalhar na lavanderia e também na cozinha. Três vezes na semana, deve lavar todos os corredores e escadarias deste convento. Receberá água e comida o suficiente para manter-se viva. Suas refeições deverão ser feitas na cozinha, e não com as outras irmãs no refeitório. Deverá cortar os cabelos e andará descalça. Todo sábado, irá para a colheita de algodão. Aos domingos, para o campo de girassóis. Não terá nenhum dia de descanso. Ressalto, ainda, que terá alguns minutos do seu tempo livre pela manhã para ir à igreja, que também fica dentro do convento, para se confessar. Isso deve ser feito todos os dias antes de iniciar cada trabalho. O abade estará à disposição à uma e meia, na capela. Nem um minuto antes e nem um minuto depois. Lembre-se de que deve se apresentar ao trabalho antes das três e meia. O mais importante: no período em que a mulher fica mais propensa às tentações do demônio, deve permanecer trancada dentro da sua cela, incomunicável, e em jejum de pão e água.

Ela estava se referindo ao ciclo menstrual. Eu havia morrido e não sabia, pensei comigo. Aquilo, sim, era o verdadeiro inferno. Fiquei ali, parada, ouvindo-a e imaginando onde é que eu encontraria tempo para tantas tarefas ao mesmo tempo. Pelo menos, deixar-me-iam tomar banho uma vez por semana. Isso já era alguma coisa. A madre deu um grito repentino, tirando-me daquele transe causado pelo pânico que invadia a minha alma. Eu sabia que aquelas regras seriam apenas o começo do meu purgatório.

_ A senhorita compreendeu bem o que acabei de lhe dizer? _ Sim, senhora madre superiora. Entendi.

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_ Ainda tem mais uma coisinha... Se não cumprir com as tarefas, saiba que será castigada impiedosamente. Estas foram as ordens repassadas a mim pelo próprio bispo.

Deu-me um aperto no coração... Não pelas severidades de meus castigos, mas porque senti que tinha alguma coisa errada no ar. Era como se algo pior estivesse por vir. Então, ela se virou para o padre que estava conosco na carruagem e falou:

_ Mandem que preparem minha carruagem imediatamente. Estou indo a Roma. O papa mandou chamar-me a pedido do inquisidor. Recebi ordens específicas para que viajasse assim que o senhor me entregasse esta carta em mãos.

_ E quem ficará em seu lugar até que retorne, madre? - perguntou o padre, parecendo preocupado com a tal notícia.

_ A irmã Vicenta. Ela está ciente de tudo o que falamos aqui e poderá perfeitamente, junto com o abade, encarregar-se das tarefas até meu retorno. Agora, levem daqui esta senhorita e façam-na tomar um banho, pois esta mulher cheira a chiqueiro. Depois, cortem os seus cabelos, que devem estar repletos de piolhos. Mantenham-na sob cárcere até amanhã. Logo cedo, certifiquem-se de que ela fez tudo conforme lhe foi ordenado nesta sala. Não quero ter problemas com a Santa Madre Igreja por causa de uma jovem que teve um surto inconsequente de rebeldia.

A condessa resolveu tagarelar: _ Madre, desculpe-me, não quero ser inconveniente. Mas esta criatura, devo-lhe ressaltar, está aqui

porque cometeu crimes contra a Santa Madre Igreja, e também contra o povo de Salamanca. A senhorita Anna, minha tão estimada enteada - por quem abdiquei toda a minha juventude por amor a meu marido, cuidando dela - nunca foi uma criança muito normal. Ela sempre teve um comportamento totalmente inadequado para uma criança. Várias vezes, vi-a perambulando pelos corredores da mansão durante a noite. Parecia estar morta. Ela não dormia, estava sempre a andar com criados e escravos. Todos sabem muito bem que os escravos são criaturas extremamente suspeitas. Envolvem-se com o oculto e com vodu. Ela tinha comportamento de uma pessoa louca. Várias vezes a flagrei falando sozinha nos corredores. Ela lia livros impróprios para uma jovem. Estava sempre de conchavo com a nossa governanta, que é uma feiticeira poderosa - ficamos cientes disso há pouco tempo. Não creio, portanto, que minha enteada deva ficar solta pelos corredores deste convento. Deveria ser trancada e, se possível, amordaçada pelo resto de sua vida, pois poderá praticar feitiços contra as pobres irmãs que vivem aqui. Sem contar que, com a boca, ela pode usar palavras para amaldiçoá-las...

Tentei conter-me, mas não deu para resistir. Por mais prejudicial que fosse para mim, tinha que falar alguma coisa em minha defesa. Então, dei um pulo à frente e disse:

_ Sua peste! Cheguei a ter pena de sua miserável vida. Agora vejo que cada um tem o que merece e que lhe foi permitido por Deus. Eu andava com os criados e com os escravos porque não tinha companhia dentro de casa. Caso não se lembre, era uma senhora muito ocupada e não podia dar a devida atenção a mim, que ainda merecia todos os cuidados de uma criança indefesa. Eu não falava sozinha: falava com minhas bonecas, como fazem todas as crianças de sete e dez anos. Não dormia, por certo, porque minha cabeça preocupava-se com os problemas da minha casa. Não era fútil, como a senhora sempre foi. Quando for se referir à Maria, lave sua boca imunda. Sabe muito bem que Maria nunca foi uma feiticeira. Ela era apenas uma senhora conhecedora da cura pelas ervas. Será que terei que lembrá-la da vez em que ela lhe curou certa mazela íntima?

Disse isso porque a condessa foi vítima de sífilis. Prossegui: _ E teria morrido se não fossem as ervas de Maria. Será que já não é satisfatório que eu já esteja

sofrendo o suficiente por causa das suas acusações levianas e por causa da covardia de ambos? O que mais querem de mim? Sabem muito bem que só estou aqui neste convento porque não quis ceder à vontade do meu pai de me casar por interesse para saldar suas dívidas e, com isso, manter seus caprichos. Sabe muito bem que é por isso que fui condenada a viver neste convento. Muito me admira a senhora condessa estar fazendo tudo isso comigo. Agradeça a Deus por ninguém querer ter me ouvido naquela sala de júri. Caso contrário, estaria a senhora aqui, junto comigo, ou quem sabe já teria sido queimada em uma fogueira? E a senhora sabe muito bem que estou falando do seu comportamento

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leviano. Eu poderia, mesmo que ninguém acreditasse em mim, ter citado o que e como a senhora faz para manter o seu casamento perfeito com meu pai. Mas fiquei quieta. Então, por que a senhora não me deixa em paz e segue a sua miserável vida?

A condessa tentou balbuciar alguma coisa, mas meu pai a impediu. Por fim, a madre superiora, depois de ouvir atentamente o que eu dizia, falou:

_ Senhorita Anna, teve uma pena muito dura, por certo. Por hora, acho que deverá ficar como está. Mas acredito no arrependimento e em milagres. Sei que aqui dentro a senhorita irá se arrepender de seus atos e comportamentos através dos sacrifícios, das punições, das penitências e das orações que lhe serão impostos. Não acredito em pessoas endemoniadas. Acredito em Deus e em nada mais. Sei que o Seu poder é infinito e Ele irá curá-la de suas feridas. Portanto, senhorita Anna, irá imediatamente para sua cela, onde terá todo o tempo do mundo para refletir sobre seus atos. Se realmente o demônio está agindo nesta jovem, aqui por certo ela irá encontrar a cura para a sua alma. Não sou ninguém para julgar nenhum de vocês. Mas, seja qual for a verdade, um dia ela virá à tona. Então, espero que este assunto seja encerrado por hora, para que nenhum outro sofrimento desnecessário caia sobre nossas almas.

Dizendo isso, pediu para chamar duas freiras, que quase imediatamente vieram. Percebi sensatez naquela mulher e, por certo, ela era verdadeiramente uma discípula de Deus. Então, assim que as duas freiras se posicionaram, ela prosseguiu, dirigindo-se a mim:

_ Espero, sinceramente, que eu não tenha que lhe aplicar nenhum castigo severo. Acredito, como já disse, somente em Deus e sei que Ele é capaz de recuperar até o mais perigoso criminoso. Mas não poderei segurar a mão de meus superiores se eles acharem que a senhorita não está de acordo com as normas da Santa Madre Igreja.

Novamente, a condessa interferiu: _ Madre! Ela é uma bruxa confessa. A senhora irá se arrepender de tê-la deixado solta. _ Caríssima senhora condessa, creio que todos têm o direito a uma segunda chance, não acha? Além

do mais, só acredito em confissões quando feitas a Deus sinceramente, e não sob imposições. Bruxa ou não, aqui ela será punida e tratada como me foram passadas as ordens recebidas. Creio que a senhorita Anna já entendeu o que lhe foi dito nesta sala. – disse, olhando-me nos olhos e procurando uma resposta positiva da minha parte.

Mediante tal atitude, só fiz abaixar a cabeça e, com um aceno, concordei. Em seguida, a madre superiora ordenou às suas subalternas:

_ Irmã Adelaide, oriente as outras irmãs para que, assim que a senhorita Anna termine seus afazeres, seja encaminhada à lavanderia. E que se cumpram, assim, minhas ordens. Não estarei aqui a partir de amanhã, mas quero um relatório de tudo em minhas mãos quando voltar de Roma.

_ Por que a senhora está indo para Roma, madre? - perguntou a irmã Carmencita. _ Isso só saberei quando lá estiver. Só sei que foi um pedido e indicação do inquisidor ao nosso

Santíssimo Papa. Por certo, serão reconhecidos os meus méritos como a tutora deste convento. Creio não me demorar tanto por lá. Logo estarei de volta. Fique tranquila: tudo correrá bem. A irmã Imaculada e a irmã Vicenta cuidarão de todas vocês e do convento em minha ausência. Sei que também manterão a fé acesa aqui enquanto eu estiver fora. Confio em Deus, Ele as protegerá. Não se esqueça, minha querida filha, de que também contamos com o auxílio e a proteção de nossos irmãos os monges, o abade e também de padre Ângelo, que nos têm sido de tanta valia nos últimos anos. Os monges defendê-las-ão dos invasores e salteadores.

Algo naquelas palavras soou como uma despedida. Eu poderia até estar enganada, mas não estava: a madre não retornaria a nós. Mais tarde, chegou-nos a notícia de que nossa madre sofreu um acidente gravíssimo que a levou a óbito.

A condessa e meu pai não se despediram de mim naquele dia. Embora já soubesse que isso iria acontecer, senti-me muito depressiva e triste, mas me mantive indiferente. A madre pediu às freirinhas que me levassem para a minha cela. Acompanhei-as em silêncio corredor afora, tentando não parecer insubordinada.

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Estátuas de mármore e bronze enfeitavam aqueles corredores escuros, iluminados apenas por tochas nas laterais. Fui observando a decoração interna do convento. Nas paredes, havia azulejos trazidos da China. Eram todos pintados à mão. Suas gravuras contavam a história da crucificação de Cristo - uma obra de arte inigualável e sem preço que ficaria naquele lugar, perpetuando sua história. O chão era todo de mármore marrom e bege. Pelo tamanho dos corredores, percebi que demoraria uma semana ou mais para limpar aquilo tudo. De repente, ouvi o canto gregoriano ecoando de novo, só que mais forte. Senti-me levitar naquele lugar devido à música que me parecia tão familiar aos ouvidos. Descemos várias escadas que nos levaram ao pátio central. No meio dele, havia uma enorme e exuberante fonte com um anjo segurando um peixe, expelindo água pela boca. Pequenos arbustos cercavam o redor da fonte e iam aumentando, fazendo um círculo, como se fosse um caracol. Conforme nos afastávamos, o caracol transformava-se em um pequeno labirinto rasteiro.

Ao sairmos do pátio, entramos por uma enorme porta de madeira maciça e deparamo-nos com um corredor iluminado por tochas gigantescas. Seus pilares eram enormes. Davam-nos a impressão de estarmos seguindo para dentro de um portal para o paraíso. Havia pinturas maravilhosas no teto, com detalhes em ouro e marfim. O ambiente, porém, era luxuoso demais para um lugar onde deveríamos manter o voto de pobreza. Isso só me mostrou, mais uma vez, a máscara por trás da aparente humildade. Enquanto os pobres passavam fome nas ruas, as igrejas construíam verdadeiros palácios ornamentais. Embora aquele fosse considerado um lugar santo, eu tinha que observar a verdade por trás da santidade e a falsa modéstia pregada atrás daquelas paredes.

De repente, as irmãs começaram a rir uma com a outra. Toda vez que se entreolhavam, riam mais. Por fim, interroguei-as:

_ Ora, irmãs... Por que estão rindo de mim? Sei que não estou limpa e que estou toda maltrapilha, mas não creio que o deboche por uma pessoa estar numa situação de desvantagem seja uma coisa de Deus. Sabiam que eu estava em um cárcere, onde ninguém me dava água sequer? Isso não é justo comigo. Sei que tenho que respeitá-las, mas não deviam caçoar de mim.

_ Não! Não, senhorita Anna, interpretou-nos muito mal. Não faça tal juízo de nós. Só estamos contentes porque a madre superiora irá a Roma: as irmãs que ficaram responsáveis pelo convento não são muito exigentes. Isso significa que trabalharemos bem menos. Ah, senhorita Anna! Nem imagina o quanto temos que trabalhar... Viemos para cá porque já estávamos dando despesas às nossas famílias e não conseguimos arrumar um marido. Já passamos da idade de casar e não temos mais atrativos aos olhos dos homens.

_ Sempre quis uma vida diferente. Gostava de ler. Os romances eram os meus favoritos. Mas meus pais diziam que eu estava seguindo o caminho da luxúria - disse uma das freiras, com um olhar triste e sem vida.

_ Mas a senhorita vai gostar daqui, logo se acostuma. Embora a madre nos coloque sob trabalhos forçados, nunca nos castiga. Ela é generosa, vai ver. Por trás daquele hábito e daquele ar severo, ela é uma excelente pessoa. Aqui vivemos todas em comunidade. - disse a outra.

Fiquei ouvindo-as falar enquanto atravessávamos todo aquele corredor que parecia não ter fim. Pareceu-me que havia uma grande necessidade de falarem. Deveria ser muito difícil ficar o tempo todo sem poder balbuciar uma palavra sequer. Além do mais, elas não me importunavam. Sentia vontade de ouvir vozes e de fazer amigos. Contaram-me coisas de suas vidas e cheguei a uma conclusão: pobres mulheres! Nunca viveram e agora se dedicavam a uma vida de sacrifícios, penitências e escravidão. Nunca iriam ver além daqueles muros. Jamais saberiam o que poderiam ter vivido se não lhes tivessem roubado toda a liberdade. Eram tão jovens e a mais velha só tinha vinte e sete anos. Mas, para aquela sociedade, era considerada uma mulher muito madura. Elas eram consideradas muito velhas para arrumarem maridos e tornaram-se dispendiosas para as suas famílias. Pois, em caso de falecimento do patriarca da casa, seus bens ficariam para um parente masculino mais próximo - como um primo, por exemplo. Isso queria dizer que a viúva não teria como se sustentar com as filhas mulheres encalhadas. No caso daquelas duas jovens, que eram de origem muito humilde e não tinham, portanto, um dote que chamasse a atenção de algum pretendente, foram levadas para o convento para que ali vivessem o resto

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de suas vidas. O restante de seus poucos pertences, como suas roupas, foram doados à Santa Madre Igreja. Havia muitas como elas em igual situação. Jovens que não tiveram nenhuma chance de serem felizes.

O tempo naquele lugar era lento. Elas nem percebiam se era sábado ou segunda-feira. Não fazia diferença, já que todos os dias eram dias de trabalhos e de orações. Depois de andarmos muito e subirmos várias escadas, felizmente chegamos ao lugar onde eu permaneceria em clausulo. Elas abriram a porta e, pelo que podia perceber, mais uma vez eu ficaria trancada. A primeira freira entrou na frente. Em seguida, eu, acompanhada da segunda.

_ Esta é a sua cela, senhorita Anna. Espero que goste. - disse a irmã Adelaide. Não era muito espaçosa, mas muito limpa. Tinha uma cama estreita, um colchão de palha, lençóis

muito alvos e um baú, onde eu poderia guardar os meus pertences - se os tivesse, é claro! Também havia uma mesinha com uma cadeira. Sobre ela, uma ânfora e uma bacia para eu lavar meu rosto. Uma cantoneira com um oratório e um enorme crucifixo na parede. Pareceu-me um lugar tranquilo. Não vi nenhum mau espírito a rondar ali. A janela era espaçosa, de madeira, mas com grades pelo lado de fora. Mesmo assim, dava-me a visão da plantação de girassóis, a estrada, o mosteiro ao lado e o restante ao redor, como as montanhas ao longe. Pelo menos não podiam me tirar a visão das coisas perfeitas de Deus.

As duas freiras saíram, mas voltaram algumas horas depois com água, sabão e uma tina. Despi-me para me lavar. Enquanto uma arrumava minhas roupas, a outra amolava a tesoura. Ajudaram-me a lavar os cabelos, que mantive presos em um coque. Depois de vestida e seca, a irmã Carmencita disse:

_ É mesmo uma pena termos que cortar os seus cabelos... São tão lindos! Após eu tomar banho, elas me ajudaram a secá-los e o pentearam com carinho. Então, começaram a

cortá-los. Não os colocaram rente à cabeça, como pensei. Ficaram nos ombros, descendo em cascata, formando vários bicos. Como eram cacheados nas pontas, não deu para ver as falhas deixadas pelas artistas. Mas meus cachos foram-se embora, no meio da poeira que elas varreram do chão. Quase chorei, porque cada pedaço de cabelo era uma boa lembrança de Maria e de tudo que eu havia vivido com ela no meu passado. Era como se a minha alma estivesse em chamas, e meus restos mortais estivessem esvaindo-se com o tempo. Fiquei na frente do espelho, olhando aquela pessoa. Não me reconheci, trajando vestes de linho branco, sem nenhum enfeite. O rosto pálido e sofrido. Meus olhos não tinham cor ou brilho. As irmãs pareciam ter percebido aquilo em mim, pois começaram a limpar tudo e, quando já iam se recolher, perguntei-lhes:

_ São felizes aqui? A irmã Carmencita respondeu: _ Não temos tempo de nos lembrar como é a felicidade. Mas, na medida do possível, quando

podemos parar nossos afazeres, oramos e pedimos a Deus e aos anjos para que nos deem forças para seguir nosso caminho com paciência. Sei que agora está um pouco apreensiva quanto a toda essa mudança, mas fique tranquila: Deus está com você. Verá que aqui tudo passa despercebido.

Esse era o meu medo: perder a noção do tempo. Não saber mais quem eu era, morrer sem ser enterrada! A pior morte não é a do corpo, e sim a do espírito, quando nos esquecemos de quem realmente somos e apagamos nossa memória. Precisava do meu diário. Precisava pôr tudo sobre um pedaço de papel. Não queria tornar-me uma morta viva, como a maioria ali dentro era. Precisava lembrar-me de quem fui. Precisava das minhas lembranças. Não poderia deixar minha história morrer. Já me bastavam os meses que havia passado em uma prisão escura, que quase me deixou louca.

Logo que elas saíram, trancando a porta da cela, olhei ao redor. Não vendo nada para fazer, fui à janela e fiquei olhando pelas grades o mosteiro ao longe, no meio daquela vasta vegetação e plantações. Onde eu olhasse, tinha um monge trabalhando. As freiras ficavam dentro do convento e faziam todos os tipos de serviços domésticos, como cozinhar, bordar, passar e tingir. Eram infinitas as tarefas ali dentro. Mas eu não poderia deixar que a minha verdadeira essência morresse. Precisava de mim mesma. Queria fugir não dali, mas das prisões mentais.

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Os monges tinham seu espaço, mas ficavam em um mosteiro a certa distância do convento. Eles se ocupavam diariamente com tarefas e afazeres domésticos e agrícolas para não se lembrarem de quem eram. A cada dia, a vida lhes passava despercebida e mais um morto vivo nascia. Eu era uma bruxa. Não poderia deixar que me anulassem isso. Minha alma gritava por socorro. Abri os braços e girei, tentando capturar o pouco de vida que o vento me trazia naquele momento: o cheiro das plantações, dos campos dos girassóis.

Voltei à janela e olhei para baixo. Lá estava ele, olhando-me. Acenou com um gesto simpático e caloroso, pois não poderia demonstrar nada que desabonasse nossa conduta naquele lugar. Dei-lhe um sorriso largo e baixei a cabeça. Na verdade, queria voar para seus braços. Pela primeira vez em minha vida, quis que tudo o que falavam sobre as bruxas fosse verdade, principalmente a parte em que voavam em vassouras – porque, assim, eu o levaria para bem longe comigo. Quando levantei a cabeça, ele havia desaparecido. Foi tão rápido que pensei estar sonhando ou algo assim.

Procurei algo para fazer naquele quarto, mas não achei nada. Abri o baú e encontrei uns retalhos e umas agulhas. Então, comecei a emendar os retalhos para fazer uma colcha. Passei o resto da tarde fazendo aquilo. Aprendi muitas coisas com Maria. Bordar e costurar eram duas delas. De repente, a porta abriu-se e por ela entrou uma irmã pequenina e rechonchuda, com uma carinha muito simpática, que veio logo dizendo:

_ Olá! Deve ser a senhorita Anna. Sou a irmã Narzira. Vim apresentar-me à senhorita. Disseram-me que era muito bonita. Mas vejo que tais elogios não fazem jus à sua real beleza. Não se assuste comigo: sou muito tagarela. E não respeito nada das leis que regem este convento - falou isso dando uma risadinha, levando a mão à boca.

_ É um grande prazer, irmã Narzira! Mas estou aqui há tão pouco e já sabe de coisas a meu respeito?

Fiquei admirada de saber como as notícias corriam em qualquer lugar, mesmo naqueles onde o silêncio predominava. Ela respondeu, sorrindo:

_ Oh, não há muitas novidades aqui! Qualquer fato diferente para nós é uma bênção. Não vou me demorar e também não vou perturbar o seu momento de silêncio, pois sei o quanto deve estar precisando ficar só.

Ela não sabia, mas o que eu menos queria era ficar sozinha de novo. Prosseguiu: _Só vim trazer-lhe esses biscoitinhos com chá. É um presente de boas vindas de todas nós. Mas,

antes que eu saia, diga-me uma coisa. _ Sim, claro. _ Como é estar lá fora? _ Como assim? A senhora deve ter suas lembranças. Ela sorriu novamente e continuou: _ Oh! Não, senhorita. Fui deixada aqui quando era um bebê. Nunca tive contato com o mundo

exterior. Não sei o que se passa por trás dos portões e nem dos muros. _ Quer dizer que a senhora jamais viu atrás dos muros? _ Nunca estive lá fora. _ Santo Deus! Como conseguiu viver sem memória? _ Ah, mas tenho memória! Lembro-me de tudo desde que era criança. As irmãs sempre me deram

de tudo. Se hoje estou viva, agradeço a elas por terem me acolhido aqui com carinho. _ Mas por que foi abandonada aqui, à própria sorte? _ Porque nasci defeituosa. Sabe como é... Pessoas como eu são muito mais propensas a terem

ímpios demoníacos. Dizendo isso, ela levantou a saia e mostrou-me os pés. Faltava-lhe o dedinho mindinho em um

deles. Sacudi a cabeça, pois nem conseguia acreditar naquilo. Para mim, não fazia a menor diferença. Mas, para aqueles loucos, era um sinal do mal e, por certo, quem se casasse com aquela mulher teria azar para o resto da vida. Se os pais tivessem ficado com ela, não teriam paz, porque, no mínimo, a parteira já deveria ter espalhado por toda a vizinhança que certa senhora teve uma filha marcada pelo diabo.

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_ Não há nada demais lá fora. Acredite: está muito melhor aqui, dentro do convento. _ Mas me responda, por favor! Como é o mundo lá fora, por trás desses muros? Preciso saber,

senhorita Anna. _ Também não tenho muito a contar. Não sou tão viajada como pensa. Conheci muito pouco do

mundo. Mas, percebendo o quanto era importante para ela me ouvir, mesmo que eu quase não tivesse muito

a falar, contei-lhe como era a minha cidade em detalhes. _ A cidade de Salamanca, de onde venho, é maravilhosa! Há muitos bailes e festas em dias de

santos, e pessoas elegantes. Príncipes, lordes e duques visitam muito minha cidade, por ser uma cidade anfitriã e festeira. Ela é tão linda!

Fui detalhando-a. Ela ia se maravilhando com as coisas que lhe contava. Contei-lhe todas as histórias que ouvira de Maria, todas que li no diário de minha mãe - principalmente sobre sua viagem à Índia. Quando acabei, ela me abraçou com os olhos cheios de lágrimas. Em seguida, saiu sem falar uma palavra sequer. Fiquei pensando, ao vê-la partir, que nunca estamos no lugar errado. O lugar errado é que não deveria existir.

Voltei à janela e fiquei olhando aquela paisagem, que misturava o rústico das plantações com a harmonia e a simplicidade divina. O entardecer era perfeito. O sol escondia-se por trás das montanhas no majestoso horizonte! De repente, uma leve brisa do mar veio ao meu rosto. Seria possível? Cheguei a fechar os olhos para me aproximar mentalmente e ver as ondas quebrando as pedras. Deus! Como é fantástico comungar com o universo! Se dermos asas à imaginação, podemos ir aonde bem quisermos. A natureza é fantástica. Nunca desistiria de ser quem eu era. Ela me levou ali e agora me recompensava pela paciência e pela devoção. Nunca devemos desistir de nossos objetivos, mesmo que os caminhos sejam tortuosos e a esperança já esteja por um fio. Eu estava ali, comungando com as forças da magia. Tudo é magia, até a gota de um orvalho sobre uma folha é magia. Tudo tem algo a nos dizer, mas é preciso prestar atenção nos detalhes. Observei cada detalhe do mosteiro e, mentalmente, fiz o seu mapa interno em minha cabeça. Comecei a viajar pelo mosteiro e detalhar cada pedacinho de sua história.

Nos mosteiros de toda a Europa medieval, os monges eram arrancados do minguado conforto dos seus colchões de palha e ásperos cobertores pelos sineiros, que os despertavam às duas horas da madrugada. Momentos depois, dirigiam-se apressadamente, ao longo dos frios corredores de pedra, para o primeiro dos seis serviços diários na enorme igreja. Sempre havia uma em cada mosteiro, cujo altar, esplendoroso na sua ornamentação de ouro e prata, resplandecia sob a luz de centenas de velas. Seus dias eram iguais a todos os outros, com uma rotina invariável de quatro horas de serviços religiosos, outras quatro de meditação individual e seis de trabalhos braçais nos campos ou nas oficinas. As horas de oração e de trabalho eram entremeadas com períodos de meditação. Os monges deitavam-se, geralmente, pelas seis e trinta da noite durante o verão. Era servida apenas uma refeição diária e sem carne. No inverno, havia uma segunda refeição para ajudá-los a resistir ao frio. Era esta a vida segundo a Regra de São Bento, estabelecida no século VI por Bento de Núrsia, o italiano fundador da Ordem dos Beneditinos. Canonizado mais tarde, São Bento prescrevia para os monges uma vida de pobreza, castidade e obediência, sob a orientação monástica de um abade, cuja palavra era lei. Luís, o Piedoso, imperador carolíngio entre 814 e 840, encorajou os monges a adotarem a Regra de São Bento. Por volta de 1000, a regra seguida praticamente em todos os mosteiros da Europa ocidental inspirava-se na dos Beneditinos, tal como muitos dos edifícios baseavam-se no modelo delineado para o Mosteiro de Santa Gallen, na Suíça, no ano de 820. Tanta ostentação e regras... Os monges nem podiam respirar.

Pelo que consegui observar, tinha alguma coisa de secreto naquele mosteiro. Embora o silêncio entre eles fosse unânime e visível, tinha algo diferente até na maneira de gesticularem e de procederem uns com os outros. Era como se fosse um código secreto. Já eram sete horas da noite quando uma carroça parou em frente à plantação de girassóis. Dez monges desceram e outros dez, parecendo feridos, subiram na carroça. Os que subiram seguiram viagem apressadamente. Se não fosse muita distância e a Lua não estivesse ainda muito alta, diria que vi uma espada na bainha da orla da túnica de um deles, pois

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o brilho de algo metálico reluziu com a luz da Lua. Desviei essas ideias e continuei com meus pensamentos no mosteiro.

Por que um convento uniu-se a um mosteiro? Essa pergunta estava dentro de mim desde o momento em que vi a união daquelas duas abadias. Por isso, ficava tão intrigada. Sabia que ali era uma espécie de junção convento-mosteiro, mas sabia que esse tipo de junção era muito raro. Precisava descobrir o que estava acontecendo naquele lugar. Precisava tirar aqueles pensamentos da minha cabeça. Pois, se bem me conhecia, não teria sossego até que descobrisse tudo. Os monges dedicavam-se aos estudos. Mas aqueles, em si, pareciam ser cultos demais. Suas maneiras de se portarem eram de nobres cavalheiros. Não eram homens frágeis e pequenos, mas esguios e bem fortes. Não pareciam trabalhadores braçais ou homens comuns. Muito menos pareciam monges.

Anna, disse a mim mesma, pare com isso! Santo Deus, quando eu começava a pensar, não conseguia parar. Olhei à volta e comecei a desviar meus pensamentos para a plantação. Fechei os olhos de novo. Nas plantações muradas, os monges também cultivavam ervas medicinais. Num dado momento - ninguém sabe quando-, ocorreu-lhes a ideia de adicionar algumas ervas à aguardente, inventando, assim, o licor. A alquimia era permitida para eles. Mas para nós, bruxas, não. Eram verdadeiros magos alquimistas e julgavam-nos por sermos individuais e não lhes contar certos segredos. Ora, que tinham eles contra sermos individualistas? Pode parecer estranha esta associação da vida monástica com o luxo das bebidas alcoólicas - e era mesmo. Mas isso também seria necessário no duro e frio inverno. O vinho era uma bebida permitida aos monges. No entanto, os banhos, exceto para os doentes, eram desaconselhados, pois era considerado um luxo exagerado. Isso era realmente uma incoerência. Quer dizer: beber podia; mas tomar banho, não.

De acordo com a sua imutável rotina, os monges, em geral, viviam e trabalhavam em obediência absoluta ao seu abade. Eram eles que o elegiam. Mas, a partir de então, sua autoridade era total e vitalícia. Era o abade quem deliberava sobre a faceta privilegiada do mosteiro, se este deveria primar pela santidade austera, pela cozinha ou pela erudição. No interior das suas paredes maciças, que nenhum cristão ousaria atacar, os mosteiros possuíam bibliotecas nas quais se conservaram intactas grandes partes das heranças literárias das antiguidades durante os séculos em que a Europa foi assolada por invasões e guerras. Na realidade, a segurança, tanto econômica como física, que os mosteiros ofereciam às respectivas irmandades deve ter constituído um dos seus principais atrativos. Séculos após séculos, tanto os Beneditinos quanto os Franciscanos e monges de outras ordens religiosas viveram sem temer a fome, a guerra ou o desamparo. Reconfortava-os sempre a ideia de que, no fim, tinham maiores probabilidades de salvação do que os camponeses ou os cavaleiros, que viviam apegados às coisas mundanas. Bom, era um pensamento ingênuo - creio. Porque sabia que a Inquisição não perdoou ninguém, nem monges, nem cavalheiros, ninguém mesmo.

Corri meus olhos pelos campos sob a luz da Lua, que magistralmente brilhava no céu estrelado. As estrelas eram como gotas de orvalho em uma fina folha de manhã de inverno. A brisa longínqua do mar embriagava-me as narinas. Era como se eu pudesse sentir até o cheiro das conchinhas. Sabia que estava presa, mas precisava arrumar um jeito de encontrar o caminho até o mar. Era quase meia-noite quando resolvi deitar-me. Adormeci de imediato. Meu corpo estava muito cansado. Sabia que teria um longo dia pela frente.

_ Bom dia, senhorita Anna! Acordei com uma mão suave e agitada a me sacudir.

_ Hã? O que houve?

_ Sou a irmã Manuelita, encarregada de lhe mostrar seus afazeres. Já são três horas. Deve se levantar para ir ao oratório e ao confessionário. Tem muitas tarefas, senhorita. E o dia passa a voar.

Não acreditei naquilo. Era um pesadelo - só podia ser!

_ Vamos, senhorita! Pegue o seu hábito e vista-se. - disse, batendo palmas.

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Vesti-me muito rápido. Lavei o rosto e saí da cela, seguindo a freira, que mais parecia correr pelos corredores. Fui levada à sala de orações, onde fiquei por vinte minutos. Depois, seguimos para o confessionário, que ficava dentro da igreja, dentro do convento. O abade não estava presente e, por isso, a irmã deixou-me sozinha enquanto ela mesma foi procurá-lo. Nunca havia rezado tanto em minha vida. E ainda tinha que confessar. Não sabia o que teria realmente que dizer, mas estaria ali, pronta para o que fosse. Será que teria que contar para o abade tudo o que havia ocorrido comigo até aquele determinado ponto? Tomara que suas penitências não fossem tão severas. Santo Deus!

Meus olhos ainda pesavam de tanto sono. Fiquei em frente ao altar, de joelhos, enquanto a irmã procurava o abade. Aproveitei para admirar todo o esplendor e a magnitude daquele templo. A igreja e convento de San Francisco foram fundados pelos padres franciscanos, em 1645. Possuía duas fachadas e uma torre única de canteira, de estilo espanhol. No interior do convento, destacava-se uma tela monumental, na qual o artista retratava a genealogia da família franciscana. Além disso, encontravam-se obras pictóricas de artistas importantes e memoráveis. Era um santuário, mas sua arquitetura era de tirar o fôlego. O teto era coberto por anjos e nuvens. Senti como se o céu estivesse sobre mim. Parecia que o chão estava rodando aos meus pés, ou melhor, aos meus joelhos, que já estavam adormecidos de ficar ali, como uma criança ajoelhada no milho. Senti vontade de rir. Era uma felicidade ingênua. Como esses santuários transformam pessoas em seres angelicais? Estava cansada e, mesmo assim, ainda tinha que confessar. Era muita penitência para uma pessoa apenas. Mas, ao mesmo tempo, era maravilhoso estar ali, pois parecia que o canto gregoriano nunca parava, mesmo quando ninguém o estava cantando. O som ainda ecoava pelas paredes como uma flauta.

À minha frente, observava todos aqueles santos e lembrava-me de tudo que aprendi em minhas aulas de catecismos. Bem na minha lateral esquerda, vi mais uma santa linda - uma bruxa, em minha opinião: Santa Inês. Sua história, cheia de controvérsias, foi muito triste. Entre todas as heroínas da Igreja primitiva que derramaram o sangue em testemunho da Santa Sé, Santa Inês é aquela a que os Santos Doutores da Igreja tecem os maiores elogios. São Jerônimo, em referência a esta santa, escreveu: todos os povos são unânimes em louvar Santa Inês

porque, vencendo a fraqueza da idade e o tirano, coroou a virgindade da morte como martírio. De modo semelhante, exprimem-se Santo Ambrósio e Santo Agostinho. Como Maria Santíssima, Santa Inês era invocada para

se obter a virtude da pureza. Fiquei ainda alguns minutos admirando a imagem da santa, até que uma voz rouca e, ao mesmo tempo, familiar falou quase ao meu ouvido. Senti meu corpo todo se

arrepiar e virei-me para trás, para fitá-lo melhor.

_ Ou assusto a senhorita, o que já está se tornando um hábito, ou a senhorita vive com a consciência pesada?

Ficamos nos olhando ali, parados, por uns três minutos, sem nada conseguir dizer. Não conseguia falar nada, e ele também não conseguia tirar os olhos de mim. No entanto, deu-me o sorriso mais lindo que eu já tinha visto. Por fim, prosseguiu:

_ Espero que a primeira hipótese seja a mais correta.

Porém, gaguejei, tentando responder:

_ Eu!? Estou esperando o abade. Tenho que me confessar, embora não saiba de que ainda!

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Ele sorriu novamente, respondendo-me:

_ Sou mesmo um homem de muita sorte: no meu primeiro dia como substituto do abade, não terei que ouvir as confissões de uma freira velha e ranzinza. Deus, ao contrário, abençoou-me com uma jovem e bela noviça. Estarei no lugar do abade por duas semanas. Mas me diga: qual seria o pecado tão grave que uma jovenzinha como a senhorita teria para ter que vir a este templo tão cedo para se confessar?

Antes de responder, pensei comigo Como é estranha a maneira como este monge fala! E sorte só se fosse a dele, pois o destino estava era caçoando de mim: como eu poderia contar toda a minha vida àquele homem? Se ele soubesse que eu era uma bruxa, por certo nunca mais falaria comigo. Mas, por outro lado, por uma questão de ética e moral, não poderia mentir a ele. Com certeza, não era a minha intenção. Eu estava entre a panela e a caldeira. Ser uma bruxa é demasiadamente difícil. Naquele momento, não sabia como dizer com palavras o que eu era. Se o antepassado dele, Edward, havia me condenado à fogueira, o que não faria aquele monge? Por que ele não escolhera vir como alguém comum? Como era difícil o meu destino! Amar alguém que poderia ser o meu algoz novamente... O monge, porém, depois de muito me fitar e parecendo perceber que eu estava desorientada, disse, tentando tirar-me daquele devaneio mental:

_ Desculpe-me, senhorita Anna, ter que interromper seus pensamentos. Mas, por favor, podemos seguir para o confessionário? - ele parecia meio irritado com o meu comportamento distraído.

_ Sim, claro, padre!

Eu estava tão atordoada com aquela presença que fiquei sem saber o que fazer. O que era pior: nem sabia o que dizer a ele. Por fim, fomos para o confessionário. Ele se sentou de um lado e eu do outro. Assim, não podíamos nos ver - e talvez fosse mais fácil. Ele se benzeu com o sinal da cruz, fiz o mesmo. Ao entrarmos, cada um por um lado do confessionário, prosseguiu:

_ Rezemos... A senhorita aceita o Senhor como seu único salvador?

_ Sim, aceito.

_ Tem a consciência de que não pode mentir durante uma confissão, e que deve ser inteiramente honesta em tudo o que lhe for perguntado?

_ Sim, padre, tenho.

_ Ótimo. Então, podemos prosseguir, pois não tenho o dia todo para ficar ouvindo as histórias de uma jovem noviça rebelde.

Suas maneiras de falar eram tão estranhas... Nunca havia conhecido um padre que falasse assim. Geralmente, eles eram mais polidos ao falar. Este era informal demais.

_ O que trouxe a senhorita a este convento?

_ Minha família, padre. Eles não me queriam mais por perto. - baixei a cabeça.

_ Não perguntei quem a trouxe para este convento. Perguntei o que a trouxe aqui. Ou seja, o que a fez sentir vontade de seguir os caminhos do Cristo? Já que a senhorita antecipou a segunda pergunta, poderia, então, desde já responder-me os motivos pelos quais os seus familiares não a quiseram por perto, minha filha?

Ele parecia mesmo curioso quanto a isso. Então, tentei ser polida e sincera na resposta.

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_ Fui acusada de feitiçaria, padre, e de tantas outras coisas abomináveis que nem sei por onde começar. Minha família trouxe-me para este convento porque me recusei a casar sem amor. Creio que isso responde a outra pergunta.

_ Sim, creio que sim. Mas pode começar do princípio e com calma. Resolvi ouvi-la com mais atenção. Portanto, ficaremos aqui o quanto for necessário. Antes, apenas me responda algumas perguntas. Por que não sentenciaram a senhorita à morte? Por que a trouxeram para um lugar como esse, sabendo eles que, se estiver realmente endemoniada, poderá contaminar todas as outras irmãs com seus pensamentos e ideias pecaminosas? Desculpe-me, senhorita, mas algo não está se encaixando. Não está me escondendo nada, não é?

Aquelas palavras cortaram meu coração como lâminas afiada. Ele não me achava digna de um julgamento. Achava-me suja demais, capaz de sujar até mesmo o lugar que eu pisasse. Mas, por outro lado, aquelas hipóteses começaram a fazer sentido para mim. Por fim, respondi-lhe:

_ Não acharam culpa verdadeira em mim, padre. Não tenho ideias pecaminosas. Sou apenas uma pessoa que acredita na liberdade de expressão e de religião. Acho que qualquer pessoa merece obter o direito de ir e vir e de escolher qual caminho seguir. Se eu tivesse mais tempo de vida, juro ao senhor que lutaria pela igualdade das raças e, principalmente, pelo direito que acho que as mulheres têm de serem livres. Não cometi nenhum crime, padre. Mesmo assim, fui considerada uma criminosa. Se o senhor quiser acreditar em mim, fico feliz. Mas, se não quiser, não me fará diferença, pois já vivo sob o julgo de muitas pessoas. Um julgamento a mais ou a menos não vai aliviar minha sentença.

_ Por que se julga no direito de achar que seu tempo de vida é curto? Acaso se sente superior às vontades de Deus? Menina... Tenha mais cuidado com as suas palavras. Dependendo de quem as ouvir, poderá pensar que está sendo insubordinada. Ainda não tomei conhecimento do fato real pelo qual sentenciaram a senhorita a vir para este convento, tão distante do seu povoado. Por hora, quero que se mantenha afastada de todas as outras irmãs, principalmente dos monges. Não quero que induza ninguém ao mal que supostamente a acompanha. Sentencio-a a duzentas Ave Maria e a trezentos Pai Nosso por dia. Saiba que vou saber se rezou ou não. Por hora, é só. Amanhã, aguardo a senhorita neste mesmo horário.

Porém, não fiquei calada. Mediante tal afronta, respondi:

_ Não quero e não posso admitir que o senhor fique sabendo quem sou pela boca de outras pessoas. Sei que elas falarão o que bem quiserem a meu respeito. Portanto, padre Ângelo, quero que o senhor saiba de minha própria boca que fui considerada pela Inquisição uma traidora das ordens da Santa Madre Igreja, e que só não me lançaram à fogueira porque sou filha de um nobre, e ele ainda tem esperança de que eu volte atrás e aceite me casar com um inescrupuloso conde para que, com essa união, eu possa saldar as dívidas da família.

Percebendo que ele teve uma reação de espanto por trás do confessionário, prossegui:

_ Mas sou mesmo uma bruxa, como irão lhe dizer. Não importa o que há de acontecer comigo. Daqui por diante, saiba que nunca mudarei meu jeito ou deixarei de ser quem sou. Sigo o caminho que escolhi. E se o senhor for me castigar, que faça, então, desde já. Ser diferente e seguir um caminho diferente não significa que isso nos faça seguidores de satã. Amo a Jesus e nunca neguei Deus como meu único Salvador. Está dito. Se o senhor não tem mais nada a me dizer, também não tenho mais nada a lhe confessar por hora. Não se preocupe: não tenho a menor intenção de fugir deste convento.

Dizendo isso, saí, sem nada mais a dizer. Percebi quando ele saiu atrás de mim, no confessionário. Ficou em pé, indignado. Porém, não precisei olhar para trás para me certificar daquela reação. Não acreditava que teria que sofrer por amor outra vez. Meu Deus! Ele era totalmente cego, egoísta e, por

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certo, já me odiava. Pensei comigo O servo de Cristo e uma bruxa... não é justo. Ele nunca iria me aceitar como eu era, e eu nunca mudaria o meu jeito de ser. Nunca. Não daria certo. Por que me escolheu, Senhor, para tal martírio? – perguntei, virando meus olhos para o céu. Seria um suplício eterno ter que conviver ao lado de um homem que só me daria o desprezo. A fogueira estava acesa e a caldeirinha me esperando! Seria uma luta difícil, pois ambas esperavam para ver quem seria a primeira a me tostar.

Do lado de fora da igreja, vi a pobre irmã Manuelita esperando-me impaciente. Ela não disse uma palavra sequer comigo. Quando saiu andando, tive que adivinhar que era para segui-la. Aquela história de silêncio estava me dando nos nervos. Nunca fiquei tanto tempo assim, calada e taciturna.

Fui levada à cozinha do mosteiro, onde fui recebida pela irmã Maria Perpétua e a irmã Vicenta, uma das responsáveis pelo convento na ausência da madre superiora. Elas me mostraram todos os serviços. Depois, serviram-me uma tigela de mingau de aveia e um pedaço de pão de milho. Comi com boca boa, pois sabia que só voltaria a comer muito mais tarde. Quando terminei meu desjejum, tive uma pilha de canecas e pratos para lavar. Ainda ajudei a sovar a massa dos pães da tarde, sem contar os tachos de cobre que tive que mexer no fogão de lenha.

Quando terminei na cozinha, levaram-me para a lavanderia, onde tive que lavar pilhas e pilhas de roupas sujas. Percebi, entre elas, hábitos dos monges. O que mais me intrigou foi que estavam sujos de sangue. O que será que estava havendo naquele convento? Algo não ia bem! Durante todo este serviço, não abri a boca, mas observei o comportamento de todos ali dentro. O silêncio pode, às vezes, parecer-nos uma tortura, mas é um grande professor e aliado. Não sabia o que havia de errado naquele lugar, mas estava disposta a investigar minuciosamente. Minha curiosidade estava aguçada.

Terminado aquele serviço árduo, levaram-me para o tingimento, onde tive que tingir toda a roupagem suja de sangue. As túnicas, alvas, tornaram-se marrom - o que explicava o porquê de alguns monges trajarem vestimentas brancas e outros trajarem vestimentas marrons. A lavanderia era muito quente. Minhas mãos ficaram com bolhas por causa da água fervente. Depois, fui para a sala de costura, onde bordei e remendei por duas horas. Novamente fui levada à cozinha, onde lavei duas pilhas de copos e pratos outra vez. Eram três da tarde e eu ainda não havia comido nada. Depois de lavar toda a louça, serviram-me um prato de sopa de arroz e mais um pedaço de pão. Senti minhas pernas bambearem de fraqueza. Depois de ter que lavar toda a louça suja, fui levada aos corredores do convento. Lá, deram-me água e um esfregão para começar a lavar tudo. De joelhos no chão, lavei sessenta e dois degraus e seis pavimentos. Por fim, quando terminei, era meia noite. Ainda bem que duas vezes por semana era o suficiente para aquele serviço.

Depois de secar todo o chão e escadarias e guardar os utensílios, subi para minha cela. Levei comigo água para me refrescar. Troquei a roupa e fiquei olhando minhas mãos: estavam vermelhas e inchadas. Meus joelhos estavam esfolados e doíam muito. Olhei para a janela e a Lua ainda estava alta no céu. Estava tão cansada que nem me atrevi a levantar e dar uma olhada. Ouvi quando alguém veio fechar a porta com chave por fora. Sacudi a cabeça. Como uma pessoa que não tinha para onde ir e estava cansada em demasia poderia querer fugir? Esbocei um sorriso e deixei meu corpo cair sobre a cama. Adormeci profundamente em seguida. Nem pensei em rezar ou balbuciar qualquer coisa aos céus. Por certo, Deus não me castigaria por não rezar só por aquela noite!

Não sei por quanto tempo adormeci, mas logo pude escutar uma vozinha doce e torturante ao fundo, chamando-me:

_ Acorde, senhorita Anna! Está vinte minutos atrasada.

Irmã Manuelita era como um tremor de terra sacolejando-me. Nem conseguia identificar o que ela dizia direito, porque o badalar do sino da igreja também gritava aos meus ouvidos. Aquilo era o

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purgatório, só podia ser! - pensei comigo. Não estava mais viva - estava morta e se esqueceram de me avisar! Já deveria estar queimando no mármore do inferno. Levantei meio tonta e ela já foi logo me dizendo, impaciente:

_ Ande, irmã. Tem que ser rápida: o padre Ângelo já a está esperando.

Nossa, que notícia romântica! Encontrar-me-ia com aquele rabugento de novo, pensei!

_ Que horas são, pelo amor de Deus, irmã!?

_ São duas e vinte. Teria que ter se levantado quinze minutos antes.

Santo Deus, o atraso era mesmo enorme... Imaginei o que fariam se fosse um atraso de uma hora! Porém, apenas respondi:

_ Está bem. Já estou indo.

Levantei, cambaleando, lavei o rosto e vesti meus trajes. Enrolei os que estavam sujos nas mãos e os levei comigo. Santo Deus, pensei, só poderia ser brincadeira. O destino e Deus estavam unidos para brincarem comigo em uma peça teatral e dramática. Não deu tempo para eu tomar o meu desjejum. Então, fui direto para o confessionário. Só tinha um pedido em mente: não deixe que Wallejo pense mal de mim, Deus. Eu poderia suportar tudo, menos o desprezo daquele homem. Fui mentalmente fazendo minhas preces. Quando coloquei meus pés dentro da igreja, ele apareceu como um fantasma vindo sabe Deus de onde! Não me fez as mesmas perguntas do dia anterior, mas falou num tom severo e irônico ao mesmo tempo.

_ Descobri coisas sobre o seu passado, senhorita. Coisas que me deixaram muito preocupado.

_ O que foi que o senhor descobriu? – perguntei, tentando fazer-me de desentendida, usando com ele o mesmo tom de voz.

_ Que a senhorita não merecia estar aqui, mas em uma masmorra. Cometeu crimes contra uma comunidade inteira, senhorita Anna. É uma pessoa monstruosa, de uma maldade infinita. Confesso-lhe que pensei dezenas de vezes em vir aqui e ouvir sua confissão.

_ Já lhe disse, padre Ângelo, não fiz nada daquilo de que me acusam.

Contei a ele toda a história verdadeira. Depois de me ouvir, fazendo ares de incrédulo, disse-me:

_Acha que vou acreditar em uma vírgula do que me conta? Sou imune a feitiços e seduções de bruxas como a senhorita. Sou um cavaleiro....

Ele pausou esta frase e prosseguiu.

_ Sou um servo do Senhor. Nenhuma bruxa poderá me seduzir. Nenhum mal pode entrar no meu corpo e pensamento. Se estou neste monastério é porque o senhor quis. Tenho certeza de que ele nunca me incumbiria de uma missão tão árdua como esta se não soubesse que sou capaz.

Aquilo começou a me irritar. Levantei-me, saindo da sacristia. Ele, porém, saiu atrás de mim, dizendo em alto tom:

_ A senhorita não pode fazer isso! - olhando-me com indignação.

_ É mesmo? Sei que não posso. Afinal, o senhor pode me condenar a mais mil penitências e até me mandar para as masmorras. Ou quem sabe me excomungar ao inferno!? Pois fique sabendo que já vivo

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em uma prisão silenciosa e este mundo em que estamos, para mim, já é o verdadeiro inferno. Minha vida já é uma penitência. Já fui excomungada pelo meu pai, já perdi tudo o que tinha, e estou aqui como o Cristo: de braços abertos e coração limpo, dizendo-lhe a mais pura verdade. Não cometi os crimes dos quais me acusam, padre Ângelo. Mas o senhor, embora tenha ouvido ainda em confissão e eu lhe tenha dito que sou inocente, mesmo assim prefere acreditar no que os outros lhe disseram a me dar um voto de sua confiança. Mas o que não vou permitir, de forma alguma nesta minha curta vida neste mosteiro, é que um homem comum como o senhor, só porque está trajando uma vestimenta santa e fazendo-se de bom samaritano, venha insultar-me com qualquer tipo de palavra que seja. Prefiro a morte a ter que me submeter a tal humilhação. Agora, se não quer acreditar, o problema é seu unicamente. E se está se sentindo tentado com a minha presença, padre Ângelo, não tenho culpa nenhuma se também é um homem por trás da sua batina. Tenho certeza de que não sou o tipo de senhora que faz por onde esses tipos de desejos fluam na mente de uma pessoa respeitável ou de qualquer outra. Acho que o senhor deveria é procurar o abade assim que ele voltar e confessar-se também. Agora, se não tem nada mais a dizer, tenho muito serviço a fazer. Caso não saiba, fui colocada aqui para cumprir a pena dos pecados e crimes que nunca cometi.

Disse aquilo tudo porque vi claramente o que se passava na mente dele enquanto eu ficava atrás do confessionário. Afinal, sou uma bruxa e, como tal, entre meus dons, o da clarividência era um deles. Saí em seguida, sem olhar para trás. Ele, porém, ainda me chamou:

_ Espere um minuto aí, mocinha. Ainda não terminei. Está passando por cima de ordens superiores. Não vou me comprometer por causa de uma insubordinada como a senhorita. Levarei o seu caso aos meus superiores, acredite.

_ Tenho certeza de que o fará. Faz parte da índole dos padres também serem delatores e perversos, pois não sabem como resolverem seus próprios problemas. Não se preocupe: coloco mais mil ladainhas em minha penitência.

Respondi de costas e de costas continuei. Ai, como ele me deixava louca! Eu o queria longe de mim, mas nem tão longe. Corrigi aquele pensamento. Que estúpido! Como podia ser tão cego? Fui para a cozinha e arrumei tudo muito rápido. Estava soltando fogo pelas ventas. Fui à lavanderia e terminei o serviço às pressas. O mesmo aconteceu com as costuras. As irmãs, se perceberam alguma coisa, não se manifestaram em nada. Naquele mesmo dia, fui levada à colheita de girassóis. Enchi vários balaios em poucas horas. Parecia que a raiva estava me dando forças, pois em minutos terminei aqueles afazeres. Às três horas, almocei na cozinha, como da última vez. Depois de lavar toda a louça, fui levada à colheita de algodão. Parecia fácil. Mas, no final do dia, minhas mãos sangravam por causa dos espinhos. Uma das freiras ajudou-me a preparar um bálsamo para as feridas que estavam abertas. Chorei de tanta dor que senti. Era água de sal, vinagre e aguardente. Às sete horas da noite, subi para minha cela. Minhas mãos estavam enfaixadas com tiras de trapo. Chorei a noite toda, de tanta dor. Tive febre. Não conseguia dormir. Por mais que clamasse a Deus par aliviar minha dor, parecia que ela só piorava.

Na manhã seguinte, quando a Irmã Manuelita veio me chamar, já estava de pé e batendo o queixo de febre. Muito admirada, falou:

_ Santo Deus, senhorita Anna, o que houve?

_ Minhas mãos! Acho que infeccionaram. - disse isso mostrando o estado em que se encontravam.

_ A senhorita colheu algodão, isso é normal! Não se preocupe: logo isso passa. É só nos primeiro dias. Depois, a senhorita se habitua. Vamos, tenho que levá-la para o desjejum e, depois, ao confessionário.

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Ela pareceu fazer pouco caso de mim e nem ligou para minha febre. Rezei para que o padre Ângelo não estivesse por lá. Não queria que ele me visse naquele estado. Mas, por mal dos meus pecados, ele estava de pé, na frente do confessionário, e foi logo dizendo:

_ Bom dia! A irmã Manuelita deixou-nos e saiu em seguida, como sempre fizera. Ele entrou no confessionário,

mas fiquei parada, no meio da igreja, em frente ao altar. Minhas pernas começaram a tremer. Estava sem forças. Ele saiu do confessionário e parecia estar furioso comigo.

_ Está me desafiando, mocinha? Quer que faça um relatório sobre essa sua insubordinação? Não me custaria nada.

Minha cabeça estava rodando... Queria responder, mas não conseguia. _ Senhorita Anna! O que há? Está se sentindo bem?- ele pareceu, por fim, entender que havia algo

de errado comigo. Apenas mostrei as mãos envolvidas nas bandagens a ele, que sagravam e estavam com indício de

infecção purulenta. _ Senhorita!... Não consegui ver mais nada. Caí por terra. Acordei e já era alta hora da noite. Meu corpo estava tão

cansado e fraco... Minha boca estava seca e ressecada. Havia uma irmã ao meu lado que nunca tinha visto antes. Ela era tão simpática! Passava sobre minha testa um pano embevecido em água fria para baixar a minha febre. Pedi um pouco de água e ela pingou umas gotas em minha boca para que eu não vomitasse.

_ Vou buscar um caldo para que não fique muito debilitada, e também pedir ao padre Ângelo que entre, pois ficou a tarde toda sentado em um banquinho do lado de fora. Pareceu-me muito preocupado com a senhorita. Ele nem foi para os seus afazeres hoje. Ficou em oração pela senhorita. Tem muita sorte. Ele é um homem maravilhoso e um sacerdote exemplar. Aguarde. Volto já, não me demoro.

_ Como se chama, irmã? - perguntei, curiosa. _ Juanita. - deu um largo sorriso e saiu porta afora. Fiquei pensando... No mínimo ele estava preocupado comigo porque pesava sua consciência. Virei a

cabeça para o lado, onde estava a janela, tentando achar a Lua. Não dava para ver devido à posição em que se encontrava o meu leito. Quanto voltei o rosto para o lado da porta, ele estava ali, parado, com um pequeno girassol nas mãos.

_ O que senhor veio fazer aqui? Certificar-se de que não enfeiticei suas freiras? Vê? Também sangro. Não sou demônio. Sou de carne e osso, como o senhor. – disse isso levantando as mãos para ele, mostrando o estado em que estavam.

Ele baixou a cabeça e disse: _ Desculpe-me. Fui um tolo. Não quis ofendê-la. Olhe, colhi este girassol para a senhorita! Pensei

que gostaria. Aceite, é um pedido de desculpas, por favor! Sabe, não sei explicar... Mas, enquanto estava desmaiada, fiquei sentado ali fora, pois queria saber como estava passando. Por fim, adormeci sentado. Então, sonhei com a senhorita. No sonho, pedia-me um girassol. Foi tão real que, quando acordei, fui à plantação de girassóis e colhi este – ainda pequenino no tamanho, mas grandioso na qualidade e beleza. Senhorita, por favor, aceite este mimo. É a forma que encontrei de lhe pedir perdão. Já estou aqui, na sua frente, sentindo-me um tolo. Não tenho ouro nem jóias caras, como a senhorita deve estar acostumada, mas tenho a certeza de que irá fazê-la bem olhar para a flor. A mim sempre acalma. Esta flor é como uma fada: sempre traz boas novas. Se aceitar, conto-lhe a lenda dela.

Ele parecia Maria, tentando acalmar-me com histórias sem pé nem cabeça. Os homens... Parecem meninos quando querem se desculpar depois de cometerem algo errado! Sorri largamente e peguei o girassol, pois era irresistível ver aquele homem adulto virando-se do avesso para se desculpar comigo. Nossas mãos tocaram-se e ele ficou fitando-me, como se só eu existisse. Seus olhos eram mel e pareciam ter uma luz divina que saía deles. Aquele toque quase sem querer teve um efeito mágico e fez meu sangue correr mais acelerado. Os anjos novamente tocaram suas harpas para nós... Mas ele se afastou de mim e passou as mãos pelos cabelos. Sorri, porque vi que estava envergonhado e confuso. Se ele

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soubesse que era o meu amor por quem eu estava esperando havia tanto tempo, não teria se afastado de mim. Embora eu respeitasse a sua condição de padre, pensei Meu grande amor! Queria poder falar isso a ele, mas tinha que esperar o momento certo, pois éramos de mundos e crenças muito diferentes. O amor é a mistura de uma série de coisas. Mas, entre elas, o respeito tem que falar mais alto. Caso isso não aconteça, as diferenças tornam-se insuportáveis. Temos a obrigação de sermos sempre sinceros, mas tem que usar a sinceridade com cautela, porque ofensa nunca foi sinceridade.

Ele ficou ali, contando-me como funcionavam as regras dentro do convento. Falava com tanto entusiasmo que não quis interrompê-lo. Seus olhos brilhavam como estrelas. Acho que, no fundo, ele também tinha necessidade de falar, pois o silêncio ali dentro era sufocante e insuportável.

Juanita entrou, trazendo-me um caldo de galinha e um copo de suco de uva. Aquele caldo quente e forte fez-me suar frio, pois eu estava fraca e sem me alimentar havia muitas horas. Observando a minha aflição ao comer, a irmã falou calmamente:

_ Coma devagar, menina! Se necessário for, trar-lhe-ei mais um pouco. Mas a fome era tanta que nem me importei se estavam me olhando ou reparando os meus modos.

Ao terminar, percebi que a irmã Juanita estava fitando o padre Ângelo, como se o tivesse interrogando por ele estar me olhando daquela maneira. Porém, como ele não parava de me fitar, por fim a irmã fez-lhe uma pergunta na tentativa de tentar tirá-lo daquele transe de fascinação repentina.

_ E então, padre, como andam as ovelhas? Padre, o senhor está me ouvindo!? _ Hã? Sim, irmã. Estão ótimas. Creio que este ano teremos muitas crias de primeira linhagem.

Fizemos um bom negócio com aquele fazendeiro quando trocamos aquela ovelha no ano passado. Ele falava, mas com o olhar grudado em mim. Essa maneira indiscreta já estava me deixando sem

graça e poderia nos comprometer. O que era pior: nada havíamos feito de errado. A irmã, parecendo ter percebido que eu estava constrangida, argumentou:

_ Padre, ficamos muito agradecidas pela sua companhia, mas a jovenzinha precisa descansar. Não quero que o senhor me interprete mal, mas está ficando muito tarde e o senhor precisa ir.

_ Sim, sim... Claro, irmã, a senhora está certa. As horas passaram e nem percebi. É o claustro. Ficamos tanto tempo sem poder falar aqui dentro que, quando encontramos uma boa companhia para conversar e que queira nos ouvir, esquecemo-nos das horas. Perdoe-me, senhorita Anna, retirar-me-ei. Amanhã passarei aqui para dar-lhe a comunhão e ouvir sua confissão. Espero que a senhorita durma bem.

A irmã Juanita, porém, tomou a frente nas palavras: _ Padre Ângelo, se preferir, o senhor pode deixar que, assim que ela estiver melhor, poderá ir com

as próprias perninhas. Não creio que haja necessidade de o senhor vir aqui amanhã para vê-la. Ele ficou muito sem graça com os dizeres da irmã Juanita, pois percebeu que ela havia notado suas

intenções verdadeiras. Ele, então, tentou se retratar, dizendo: _ Imagina! A pobre noviça está acamada e não é bom que fique sem receber a eucaristia. Também é

minha obrigação como sacerdote levar a comunhão e as bênçãos do Senhor aos arrependidos e doentes enfermos. Além do mais, esta jovem está neste convento sob a pena de ter que se confessar todos os dias para se redimir dos seus crimes através de confissões e orações.

_ Está bem, padre Ângelo. Faça como o senhor desejar, então. - disse a irmã, percebendo que não havia argumentos que o fariam mudar de ideia.

Ele, porém, estava tão encabulado que saiu, sem mais nada a dizer. Olhamo-nos uma para a outra e arregalamos os olhos. Irmã Juanita falou, parecendo muito preocupada:

_ Parece que temos um sério problema aqui. _ Como assim, irmã? - tentei disfarçar, fingindo não estar entendendo. _ Olha, senhorita Anna, destas coisas do coração entendo muito bem. Acredite-me: já passei por

isso antes de vir para cá. Conheço um homem quando está apaixonado. Isso até não seria mal se ele não fosse o que ele é e...

_ E?... Continue, por favor! _ Se a senhorita não fosse uma noviça, ora!

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Ela parecia que não sabia totalmente da minha história. Então, resolvi contar-lhe, pois senti que podia confiar nela. Quando acabei, deparei-me com uma mulher branca como cera, que só teve duas reações. Caiu sentada boquiaberta em uma cadeira e disse, em seguida:

_ Santo Deus misericordioso, que história! Eu, que sempre achei a minha história a mais triste deste convento... Senhorita Anna, sinto dizer-lhe que está encrencada. Não sei como e em que posso ajudá-la. As acusações feitas contra a senhorita são muito sérias.

_ Acredita que sou tudo o que falaram de mim? Sei que mal me conhece, mas acha que eu seria capaz de fazer tamanhas barbáries? Se fosse tudo isso, acha que eu contaria em confissão minha história ao padre Ângelo, sabendo que ele pode a qualquer momento quebrar o sigilo de confessionário para me entregar ao inquisidor? Ou acha, irmã, que contaria algo tão pessoal sobre mim, sendo que pode me delatar? Estou correndo risco, irmã. Sabe muito bem disso. Por favor, pense um pouco. Se já amou de verdade, deixe que essa essência que ainda está no seu coração lhe mostre a verdade.

_ Deixe-me pensar sobre o assunto. Amanhã lhe responderei o que acho disso tudo. Nunca passei por tal situação antes. Tudo isso é muito novo para mim. Envolver-me com uma bruxa de verdade... Saiba que posso perder a minha vida por causa da senhorita. Não creio que devesse ter me contado tais fatos da sua vida. Mas não vou tomar nenhuma decisão precipitada. Prometo consultar meu coração e pedir a Deus que não me dê sabedoria e discernimento para saber o que fazer em relação a esta situação tão delicada. Até lá, fique quieta e não comente sobre isso a mais ninguém. Porque, se mantiveram segredo sobre sua história até agora, é porque estão observando-a ou tem algo a mais envolvido.

_ O que acha que pode ser, irmã? - lembrei do meu amigo Ramon, que me disse exatamente aquilo enquanto estávamos na prisão, e também das suposições do padre Ângelo.

_ Não sei, mas tem alguma coisa errada no meio disso tudo. _ A única coisa errada que percebi até agora, desde o primeiro dia em que cheguei aqui, é que os

monges comportam-se como lordes. Posso jurar ter visto uma espada na bainha de um deles durante a noite, enquanto descarregava uma carroça com abóboras. Mas as abóboras que trouxeram não eram suficientes para o almoço de um dia aqui neste convento. Percebi, então, que havia monges sendo substituídos. Desciam dez e ficavam dez. Também reparei que alguns pareciam estar doentes, pois foram amparados pelos irmãos da ordem.

_ É muito perspicaz, senhorita Anna... Está há tão pouco tempo aqui e já observou tantas coisas. Confesso-lhe que já ando a bisbilhotar há alguns anos. Tudo começou depois que um dos abades faleceu, há três anos. Ele era um verdadeiro carrasco. Houve muitas mortes neste convento, senhorita. Muitas coisas lastimáveis. Estas paredes choram sangue inocente.

_ Sério? Meu Deus! Que absurdo... Até neste lugar santo houve torturas? _ Conta-se, às escondidas, a história de um monge que parece ter traído a Santa Madre Igreja e foi

torturado até a morte. _ Que tipo de traição ele cometeu? _ Não sei dizer ao certo, mas acho que foi porque ele fez alguma coisa que não condizia com as

normas morais da Santa Madre Igreja. Até o próprio padre Ângelo, dizem, está aqui por motivos obscuros. Dizem que está se escondendo de algum tipo de crime.

_ Mas o que pode ter sido? Ele me parece uma pessoa tão sensata! _ Sim, por certo é. Mas a Igreja não perdoa nenhum deslize de seus seguidores. Sabe muito bem

disso, senhorita Anna. Ainda mais ele, sendo um sacerdote. _ E que tipo de tortura usaram com o monge que foi assassinado aqui, no passado? _ A roda do despedaçamento. _ Santo Deus misericordioso! Que crueldade... _ Sim. Dizem que houve uma grande multidão assistindo, e que o infeliz custou a morrer. _ Que gente mais sádica. E depois quem são os maus? São os bruxos, os ciganos, os judeus, os

sodomitas e tantos outros. Todas acusações levianas para esconder seus próprios crimes. Acha que algum de nós seria capaz de cometer um pecado deste? Isso é não só um crime contra a humanidade,

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mas também contra o nosso Deus. Vocês, cristãos, pregam uma coisa, mas procedem de maneira totalmente diferente.

A roda do despedaçamento foi um dos maiores instrumentos de tortura da santa Inquisição. Era, depois da forca, a forma mais comum de execução na Europa germânica, desde a baixa Idade Média até princípios do século XVIII. Na Europa latina e gálica, o despedaçamento era feito por meio de barras maciças de ferro e maças, em lugar da roda. A vítima, nua, era esticada de barriga para cima na roda, no chão ou no patíbulo, com os membros estendidos ao máximo e atados a estacas ou anilhas de ferro. Por baixo dos pulsos, cotovelos, joelhos e quadris, colocavam-se suportes de madeira atravessados. O verdugo aplicava violentos golpes com a barra, destroçando todas as articulações e partindo os ossos, evitando dar golpes que pudessem ser mortais. Isso provava como é fácil imaginar-se um verdadeiro paroxismo de dor, o que muito divertia a plateia. Depois do despedaçamento, desatavam o condenado e entrelaçavam-lhe os membros com os raios da grande roda, deixando-o ali até a morte, ao cabo de algumas horas ou até dias. Os corvos, outros sim, arrancavam pedaços de carne e vazavam os olhos até a chegada do último momento. Esta era a mais atroz e longa agonia prevista dentre todos os procedimentos de execução judicial. Assim como a fogueira, o despedaçamento ou desmembramento era um dos espetáculos mais populares que tinham lugar nas praças da Europa. Multidões de plebeus e nobres deleitavam-se ao contemplar um bom despedaçamento. Na verdade, a desgraça alheia sempre foi e será uma diversão para a sociedade sádica e hipócrita. Ninguém que vê o outro caído nas ruas é capaz de juntar-se para ajudá-lo, mas sim para terem o que falar. Enquanto se divertem às custas das desgraças alheias, elas se esquecem da própria desgraça. Falar dos outros era um sinal de poder; rir de alguém era sinal de soberania - na cabeça deles, é claro. Porque, na verdade, são fracos e doentes. Pessoas sem instrução, sem nível, submissas e levianas, escondendo-se por trás da flagelação alheia.

Juanita, porém, prosseguiu, tirando-me daquele devaneio de pensamentos: _ Mas isso foi muito antes da madre superiora vir para cá. Naquela época, quem regia este convento

com punhos de aço era um inquisidor que, segundo me contaram, foi o próprio diabo encarnado. - ela se benzeu ao pronunciar o nome diabo.

Vendo aquela atitude tão religiosa e infantil, resolvi perguntar-lhe: _ Por favor, irmã, diga-me: há quanto tempo a senhora está aqui, enclausurada neste convento? Pelo

que percebo, está há um século neste lugar. A senhora parece saber de tudo o que aconteceu e, pelo jeito, passou pelos piores momentos de sua vida aqui dentro.

_ Sim, confesso que sim. Vim para cá aos dezesseis anos de idade, porque meus pais descobriram meu romance com o filho de um fazendeiro rival à nossa família, cujo nome era José Navarro. Deste dia adiante, fui obrigada a ficar neste convento. A princípio, contra as minhas vontades. Mas, depois, acabei me conformando. Estávamos muito apaixonados, senhorita Anna. Ele tinha dezoito anos; era só um menino também. Encontrávamos às escondidas na divisa de nossas fazendas. Ele era tão especial... Éramos apenas duas crianças descobrindo o mundo.

Os olhos de Juanita pareciam estar cheios de estrelas, de tanto que brilhavam. Este amor nunca haveria de morrer e podia apostar que se encontrariam em outra encarnação. Ela começou a contar toda a história. Resolvi ficar quieta, ouvindo-a.

_ Conhecemo-nos no dia em que minha mãe estava dando à luz meu irmão caçula, o Pedro Manuel Borges. Minha casa era construída no alto de uma colina. Tínhamos as ovelhas mais produtivas de toda aquela região. Naquele dia, não pude ficar no quarto com as parteiras. Então, saí para caminhar um pouco. De repente, vi-o pulando a nossa cerca. Corri até ele, tentando impedi-lo de ultrapassar nossos limites. Mas, quando olhei em seus olhos, nada pude dizer, pois me vi rendida por uma força muito maior. Deste dia adiante, passamos a nos encontrar às escondidas. Mas a história era muito mais antiga por causa de uma rixa entre nossas famílias - coisa de nossos avós e bisavós... Éramos uma família livre, senhorita Anna. Andávamos por todos os lados. Não existiam limites para as nossas criações pastarem. Mas a família Navarro mudou-se para a parte mais baixa da colina. Desde então, nossas ovelhas começaram a desaparecer misteriosamente. De igual modo, o pasto dos Navarro crescia de um dia a outro. Isso começou a gerar certa desconfiança por parte da minha família. Meu bisavô e meu avô

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tentaram dialogar com os Navarro, que os expulsaram a balas de suas terras. Minha família não gostava de confusão. Acharam melhor deixar para lá esta questão. Cercaram a fazenda e colocaram um capataz com vários escravos protegendo os arredores, para evitar outras perdas e danos. Minha família proibiu qualquer contato nosso com os parentes dos Navarro. Crescemos assim, por várias gerações, odiando uns aos outros, sem saber como agir e, ignorantemente, alimentando esse sentimento que nem era nosso, mas sim de nossos bisavôs. Certo dia, eu e José estávamos deitados e esticados ao solo, olhando para o céu e conversando. Não fazíamos nada, senhorita, apenas conversávamos. Foi neste momento que ouvimos o capataz gritando para que capturassem José. Pedi a ele que corresse o mais rápido que pudesse, mas foi atingido pelas costas por uma bala. Corri e tentei acudi-lo, mas foi inútil. José faleceu em meus braços, deixando-me apenas a lembrança de um jovem cheio de sonhos e planos. Meus pais, então, trouxeram-me para este convento. Diziam que a família dos Navarro havia me enfeitiçado porque eu não queria mais comer. Mas eu não poderia. Só quis morrer e encontrar o meu grande amor.

Ela parecia ter uma grande necessidade de pôr para fora tudo o que estava dentro do peito aqueles anos todos. Depois de muito fitar o espaço vazio à sua frente, pôs as mãos no rosto, baixou a cabeça e chorou profundamente. Queria consolá-la, mas Juanita precisava daquele desabafo. Depois, olhou-me nos olhos e disse:

_ Não tem ideia, senhorita Anna, do que é perder um amigo, um amor, uma pessoa que a compreendia e, só de olhar para você, já sabia o seu estado interior. Tiraram-me tudo, senhorita... Aqui é só o túnel escuro para um caminho sem volta. Na verdade, sei que sou uma pessoa esquecida pelos meus parentes. A única que vinha aqui me ver era a minha avó Teodórcia, mas faleceu há alguns anos. A senhorita vai acabar se acostumando à solidão e ao silêncio. Tudo na vida é uma questão de costume.

Ela sorriu tristemente. Prosseguiu: _ O ser humano tem a capacidade de se adequar a várias situações. A senhorita vai acabar se

esquecendo de que tem um passado, uma história... _ Nunca vou esquecer-me de quem sou. Nunca vou esquecer-me das pessoas ou das coisas que

fizeram parte do meu passado, por pior que tenha sido. Quero sempre lembrar-me da minha história. Não quero perder a minha essência no vácuo do esquecimento, fazendo que, assim, morra a minha alma. Mesmo que sejam histórias tristes, elas fazem parte da nossa memória. – respondi, agoniada só de pensar que poderia virar um vegetal sem memória e estático.

_ Viver do passado, senhorita Anna, não é bom. O passado pertence aos mortos. Deixe que eles fiquem incumbidos de levarem para o túmulo esta história triste.

_ Não vivo do meu passado, irmã. Apenas acho que a memória não deve ser apagada. Não sou um vegetal. Sou um ser humano. Quero que meus vestígios fiquem aqui, gravados e escritos, para que meus descendentes, ou até estudiosos, possam ver o outro lado da moeda. Nunca cometi tais crimes, irmã, e sei que minhas outras irmãs também nunca cometeram. A verdade não pode ser calada. Temos que dar um basta a esse silêncio e ao medo de ser livre.

Juanita colocou uma caneca de água para mim e saiu, sem nenhuma palavra dizer. Mas pude ver em seus olhos que havia uma semente plantada naquele coração. Fiquei olhando os raios de luar que entravam no quarto. Pareciam formar figuras como uma sacristia. Sabia que podia ser um sinal: tudo nos fala na magia, mesmo que silenciosamente. O sono veio e adormeci quase que de imediato.

Quando o dia amanheceu, dei uma espreguiçada ainda de olhos fechados. Meu corpo estava bem descansado. Mas, de repente, abri os olhos e dei um pulo na cama quando me lembrei de onde estava. Já estava colocando os pés no chão quando senti uma mão tocar meus ombros... Imaginei que já era a irmã Manuelita a me chamar para o trabalho. Então, quando olhei para trás, tive uma grande surpresa.

_ Olá, senhorita Anna! Como passou a noite? Sorri espontaneamente. Era Wallejo, que estava atrás de mim, olhando-me com os olhos que mais

pareciam duas pedras preciosas de tão brilhantes que estavam. _ Dormi muitíssimo bem, padre Ângelo. E o senhor, como passou a noite? _ Não tão bem como a senhorita.

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_ Sério? Por quê? Houve algo de inesperado no decorrer da noite que o fez ficar assim, tão apreensivo e com insônia?

_ Não, nada disso. Não dormi bem porque a senhorita não me saiu do pensamento a noite toda. Passei a noite pensando nas coisas que me contou. Não sabia qual decisão tomar. Não posso sequer lhe dizer que passei a noite a rolar na cama, porque nem mesmo sobre ela deitei-me.

_ Como assim? Está pensando em me denunciar? Saiba que nunca neguei que sou uma bruxa. E tão pouco vou deixar de sê-lo.

Levantei-me da cama e fui para frente dele. Seus olhos estavam grudados nos meus e brilhavam. Apontei o dedo bem em seu nariz e prossegui:

_ Acha que por que o senhor é um padre pode me intimidar? Sou uma mulher forte. Nem que me cozinhe viva vou negar quem sou. Escolhi este caminho, padre Ângelo, e nem o senhor e nenhum outro ser humano sobre esta terra vai mudar o meu jeito de ser e a religião que escolhi só porque pensam diferente de mim. Saiba que isso não quer dizer que esteja errada.

Ele me olhou com um ar surpreso e respondeu: _ Não é nada disso, senhorita Anna. Não tenho a intenção de mudar a sua maneira de ser. Não

estou aqui para questionar a sua crença. Mas, se a senhorita me der um minuto para eu poder falar, poderei explicar-me melhor.

Fiquei curiosa e sem graça. Nunca procedi daquela maneira com ninguém. Principalmente sendo Wallejo um padre, eu poderia pôr tudo a perder. Ele poderia considerar uma ofensa insubordinável. Tentei retratar-me, respondendo:

_ Desculpe-me, padre Ângelo. Não sei porque procedi desta maneira. Mas, agora que me deixou curiosa, poderia me dizer o porquê de não ter conseguido dormir à noite?

Ele enrolou as mãos umas nas outras, respirou e, por fim, pareceu que ia sair um som daquela boca. Wallejo estava tremendo. Disse-me:

_ Eu... Não sei o que está acontecendo comigo, senhorita Anna. Não quero levar para o lado da fé, pois vou achar que a senhorita me enfeitiçou. Estou me sentindo perdido.

_ Acha realmente isso de mim, padre Ângelo? Saiba que não estou entendendo aonde o senhor quer chegar. Nunca faria um sortilégio, mesmo porque não teria como fazê-lo neste lugar, sendo que nem tempo para as refeições me sobra.

_ Senhorita Anna, por favor, deixe-me terminar... Já me está sendo difícil demais prosseguir. Nunca em toda a minha vida senti algo assim por alguém. Até anteontem, quando foi ao confessionário, ainda achava que o amor era apenas uma ilusão na cabeça dos tolos e dos poetas. Mas, depois que me confessou toda a sua história, fiquei com uma espécie de ódio e tristeza no peito... Ódio porque sigo severamente os passos de Cristo e sei que uma bruxa, como você diz ser, não amaria Cristo com sinceridade.

_ Quem disse tal absurdo ao senhor? _ Por favor, senhorita, deixe-me prosseguir... E também tristeza porque sei que os nossos caminhos

nunca poderiam ter sido cruzados, principalmente aqui, em um convento, onde as normas são totalmente rígidas. Tentei lutar contra mim mesmo e contra todos os meus princípios. Depois, quando a senhorita saiu pisando duro, quis matá-la, mas caí foi na gargalhada. Nunca havia conhecido uma pessoa tão impetuosa e corajosa ao mesmo tempo. E quando voltou ontem, pela manhã, ao confessionário, tinha tanto a lhe dizer... Mas meu coração morreu quando a vi cair ao chão. Pensei tê-la perdido para sempre. Por isso, fiquei como um cão, sentado ali, do lado de fora, esperando que acordasse para falar-lhe dos meus sentimentos.

Gelei. Estava prestes a ouvir a maior confissão da minha vida, e só queria desmaiar de novo. Ele prosseguiu:

_ A cada minuto, minha agonia aumentava. Tenho a necessidade de falar-lhe do meu sentimento. Caso não o faça, morrerei a cada instante de minha vida.

_ Padre... Não prossiga, não faça isso. Conheço os seus sentimentos e acredite: os meus são de igual tamanho. Mas temos caminhos diferentes a seguir. Não quero prejudicá-lo de forma alguma. O risco

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para um sentimento como o nosso é perigoso demais, mesmo porque não vamos conseguir ficar sem nos tocar.

_ Senhorita... Ele se aproximou e segurou-me pelos ombros, puxando-me para junto de si. Olhando fixamente

nos olhos, disse-me: _ Eu... Não sou quem pensa... Eu... Sou um cavaleiro e... Ele ia me beijar antes de prosseguir, mas... Naquele momento, que parecia único, Juanita entrou e,

aos nos ver tão próximos, disse: _ Espero não estar interrompendo nada! Wallejo levou um susto! Com isso, empurrou-me abruptamente e, em seguida, saiu sem se despedir

de ninguém. A irmã Juanita arregalou os olhos, sem entender aquela atitude, e perguntou: _ O que aconteceu neste quarto? Espero que a senhorita não tenha extrapolado ao ponto no qual

estou a pensar. _ Não aconteceu absolutamente nada, irmã. Mesmo porque a senhora irmã entrou no exato

momento. Contei-lhe tudo nos mínimos detalhes. Ela respirou profundamente e sacudiu a cabeça. Disse-me: _ Não sei quem dos dois é o mais louco: a senhorita ou ele. E o que é pior: sei que sobrará para

mim. Sou cúmplice de um romance proibido entre uma bruxa e um monge. Deus tenha misericórdia de minha alma.

_ Desculpe-me, irmã. Não queria envolvê-la nessa situação. _ Terão que ter mais cuidado com as outras irmãs. Aqui dentro, as paredes têm olhos e ouvidos.

Desculpe minha indiscrição, senhorita, mas quando entrei pude ouvir o que o padre Ângelo dizia. Estou me referindo a quando ele lhe disse que era um cavaleiro. Isso ressalta a minha desconfiança sobre o que conversamos ontem.

_ O quê? Como assim? _ Estou falando sobre o padre Ângelo estar envolvido em alguma coisa ilícita. Ele mesmo disse à

senhorita Não sou quem a senhorita pensa... Sou um cavaleiro. Se ele não é um monge, então é um usurpador e está aqui disfarçado. Santo Deus, será que ele é um criminoso? Isso aguça ainda mais as minhas suspeitas.

_ Como assim? Ainda não a compreendi. _ Ora, mulher, está muito claro: ele acabou de dizer-lhe que não é quem você estava pensando. E se

este homem for um criminoso? _ É verdade... Definitivamente, irmã, há algo muito estranho acontecendo neste convento. E por

que será que a madre superiora tem sido conivente com esses fatos? Sinceramente, não consigo pensar que o padre Ângelo possa ser um criminoso. Deus não iria me colocar em uma situação tão difícil como essa. Mas prometo que vou investigar isso minuciosamente.

_ Também eu. Imagina! Se tem algo acontecendo neste convento, quero saber o que é. Definitivamente, senhorita Anna, depois que a senhorita veio para este convento, minha vida ficou muito mais emocionante. E a senhorita só está aqui há alguns dias. Minha nossa! A vida ao seu lado é definitivamente muito intensa.

_ Isso quer dizer que a senhora aceita a minha amizade? _ Não sei, mas confesso que nunca tive em minha vida tantas emoções intensas assim.

Definitivamente, a senhorita sabe transformar as rotinas em algo muito excitante. Não falamos mais sobre o assunto. Juanita levou-me para a sala de coser. Passei toda a tarde ali, e

até gostei de fazer os bordados. Mas minha cabeça não parava de pensar em Wallejo. A cada instante, mais intrigada eu ficava. O que poderia aquele homem estar escondendo? Conhecia-me muito bem e sabia que, enquanto não descobrisse, minha vida seria um inferno. Fui para o refeitório às duas da tarde. Não me colocaram para lavar a louça, porque minha mão ainda estava enfaixada. Eu estava tomando minha sopa de legumes quando aquela voz perguntou-me, em um tom que mais parecia um sussurro:

_ Posso sentar-me aqui?

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Levantei meus olhos e senti minhas pernas tremerem. Dava para ouvir os barulhos que faziam meus joelhos batendo um no outro.

_ Hã? Sim, claro, padre Ângelo. Fiquei ali, parada, com a colher de sopa que não entrava nem saía da boca. Por fim, resolvi falar

para quebrar aquele clima de constrangimento. _ Diga-me, padre Ângelo, o que o traz aqui? _ Precisamos terminar a nossa conversa desta manhã. _ Quando o senhor quiser, estarei disponível.

_ Então, amanhã a espero no confessionário. _ Acho que pode ser arriscado, padre. Afinal, sabemos qual será o rumo que esta

conversa tomará. _ Acha que não consigo controlar meus impulsos? _ Não quis ofendê-lo. Só acho que o senhor, por ser um padre, não deveria querer falar com uma

mulher a sós. E logo eu, que sou uma... O senhor sabe bem o que quero dizer. _ Quero falar-lhe também sobre isso. Ele estava quase debruçado em cima da mesa. A irmã Imaculada estava prestando atenção a tudo,

embora não pudesse ouvir-nos. Por fim, tive que dizer-lhe: _ Padre, por favor, controle-se! O senhor está fora de si? Ele sorriu e respondeu: _ A senhorita enfeitiça-me. Está enlouquecendo minha alma! Estou a perder a razão por você. Senti meu rosto corar e queimar como brasas de fogo. Como é complicado ser uma bruxa e ainda estar

apaixonada por um padre!, pensei comigo. Estava me vendo sem saída mediante aquela atitude inesperada. O amor havia se aliado ao destino, e ambos estavam caçoando de mim - só poderia ser isso! Precisava ter muito autocontrole por nós dois, pois Wallejo estava totalmente guiado pelos impulsos carnais. Estava como um lobo na época de acasalamento. Os homens são assim: não agem racionalmente, mas por impulsos. Isso serve em qualquer situação, tanto emocional quanto financeira. Eles tomam a primeira decisão que lhes vem à mente. E são orgulhosos demais para admitirem quando erram. Poderia dizer que estava muito feliz, não precisava de mais nada. Mas não era bem assim. Se alguém percebesse quais eram as intenções de Wallejo, poderíamos ser acusados de fornicação. Por fim, Wallejo percebeu que a irmã Imaculada estava atenta a tudo o que conversávamos. Então, retirou-se da cozinha, afirmando que estaria me esperando na sacristia, no dia seguinte.

O restante da tarde passou rapidamente. O amor havia invadido o meu ser. Era como se eu pudesse voar sem sair do chão. Minha alma estava comungando com o universo. Se o mundo acabasse, morreria feliz. Meu eu estava amando, e sabia que era correspondida. Daria a vida por ele. O ar que eu respirava vinha dele. Queria gritar para todos saberem como estava o meu coração.

Fui para a minha cela sozinha. Desta vez, ninguém me acompanhou. Também pude observar que não trancaram minha porta pelo lado de fora, como de costume. Parecia que as freiras estavam confiando um pouco mais em mim. A primeira coisa que notei de diferente quando entrei foi que havia um pedaço de pão de milho e um girassol sobre a mesinha. Quando peguei o pão para comer, notei que dentro dele tinha um bilhete. De imediato, peguei-o e um delicioso cheiro de sândalo invadiu o ar. Fez-me lembrar de Edward, trazendo o meu passado todo à tona, como uma realidade presente. Incrível como um simples aroma podia trazer lembranças tão remotas à tona! A mente é fantástica, capaz de criar imagens e lembranças através de um simples aroma... Isso é o poder da magia. Ela está em tudo. É só prestar atenção aos pequeninos detalhes.

Abri aquele bilhete. Foi como se o mundo estivesse aos meus pés. Senti-me tão feliz, tão forte... tão grande! Meu peito parecia que iria explodir de tanta felicidade. Senti meu coração bater dentro do peito de maneira descompensada. Esse era o mais puro sentimento de felicidade que alguém poderia sentir. O bilhete estava escrito em papel amarelo. A caligrafia era perfeita, parecia ter sido desenhada nos mínimos detalhes. As palavras contidas eram:

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Espanha, vinte e dois de julho de 1819. Senhorita Anna, Acredito que deva estar confusa, tanto como eu. Sinto como se meu coração fosse explodir se não lhe falasse tudo isso que está

dentro de mim antes de amanhã - sendo que amanhã poderemos não ter muito tempo para falarmos, pois sempre estamos sob a mira de olhos que vivem a nos vigiar... Estou em prantos e não é de tristeza, mas de pura felicidade: estou me sentindo como um menino tolo e irracional. Tolo porque acabei de ganhar um presente há tanto esperado pelo meu coração. Irracional porque não sei mais como proceder mediante tal situação, que me impulsiona a cada momento para os seus braços.

Hoje estava no campo de girassóis e o cheiro deles lembrou-me o cheiro dos seus cabelos no primeiro dia em que a vi sentada, cabisbaixa, no banco frente à sala da madre superiora. A senhorita parecia uma miragem no deserto. Quase pensei que estivesse sonhando ao vê-la. De imediato quis tocá-la, senti-la. Mas, naquele momento, só pude me contentar com a sua doce presença. Depois disso, venho lutando contra os meus princípios e contra tudo o que aprendi neste convento. Mas, infelizmente, não pude mais me conter: esse sentimento, aqui dentro do meu peito, gritou muito mais forte do que pude resistir. Perdoe-me pela ousadia das palavras em lhe falar dos meus sentimentos assim, tão inesperadamente...! Durante toda minha vida, busquei um caminho através da religiosidade. Mas só encontrei minha luz e esperança agora, no brilho dos seus olhos.

Anna, minha doce Anna! Meu peito grita, minha alma grita! Sinto que posso voar sem asas... Sinto-me menino, inconsequente, inexperiente. É como se eu tivesse que voltar a aprender a andar. É tudo muito novo. Nunca senti nada assim antes. Juro. Mas estou tão feliz que poderia perder o ar! Não quero saber das consequências. Enfrentaria o mundo pela senhorita. Acredite.

Quando olhar este girassol, lembre-se de mim, mesmo que um dia o destino venha a nos separar... Esta flor sempre será o elo entre mim e a senhorita.

Amo-a loucamente, desesperadamente. É a minha vida, o ar que respiro. Desde o primeiro instante em que a vi, senti que não mais poderia viver sem a senhorita. Não sei se o que sente por mim é o mesmo... Mas sei que, se não confessasse este sentimento, não poderia mais ter um dia de sossego. Aguardo-a amanhã na sacristia, minha flor.

Amo-a, amo-a, amo-a...

A.W.M.

Não sabia o que pensar. Fiquei surpresa, apreensiva e maravilhada ao mesmo tempo. Todos os

sentimentos do mundo estavam dentro de mim. Um nó formava-se dentro do meu estômago. Temia por ele. Sabia que, se fôssemos pegos, seria duro o castigo que nos seria imposto. Mas ele, como um sacerdote, poderia sofrer ainda mais. Meu amor... Tudo o que eu queria era ser feliz ao lado dele, mas os nossos universos eram completamente diferentes. Oh! Destino cruel... Era como se uma espada transpassasse minha alma. Estava feliz como nunca, mas também estava insegura - não pelo seu sentimento em relação a mim, mas pelo futuro que nos esperava. Sabia que, quando estamos apaixonados, comportamo-nos inconsequentemente. Caí por terra, de joelhos. Naquela noite, orei como nunca havia feito em toda a minha vida. Pedi a Deus que me desse discernimento e sensatez para tomar uma decisão sábia e correta. Nem me dei conta que, de tanto orar, acabei adormecendo em um cantinho da parede, debaixo da janela.

Quando acordei no dia seguinte, estava com o corpo em frangalhos e cheia de dores. Arrumei-me rapidamente, pois precisava estar na sacristia antes que o galo cantasse. Ainda era alta madrugada, mas queria estar na sacristia o quanto antes. Embora ansiosa e apreensiva com toda aquela situação, saí da cela calmamente, caminhando pelo corredor, que parecia não ter fim. Das outras vezes, saíra tão apressada que nem me dei conta do quanto brilhava aquele chão. E ao pensar que no sábado teria que lavá-lo novamente... Mãe de Deus! Estava sendo irracional. Estava tentando tirar da minha mente o que estava para acontecer... Ia encontrar com o meu amor e comecei a pensar no chão, para ver se parava de tremer tanto! Às vezes, quando uma mulher está ansiosa demais, sua cabeça fica confusa e cheia de pensamentos desconexos.

Desci as escadas apressadamente. Atravessei o patíbulo, alcançando rapidamente o trajeto que dava para a igreja. Subi aqueles degraus tão rapidamente! A igreja estava vazia, para meu espanto. Fiquei imaginando que ele tinha desistido. Engraçado: quando estamos amando, damos visão a detalhes que nunca pensaríamos em observar. Até o meu respirar estava diferente: era profundo e, ao mesmo tempo, leve. Minha boca estava cheia d’água. Era a sensação mais estranha que já havia sentido em toda a minha

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vida terrena. Havia uma espécie de vazio no meu estômago, e não era de fome. Era bom e estranho... Uma mistura do real e do imaginário. Uma sensação de tonteira invadia meu corpo.

Fiquei ali, de pé, no meio daquela igreja, olhando o teto minuciosamente. Era tão simples e harmonioso em detalhes que mais parecia sonho... Seus anjos pareciam dançar e sorrir para mim. Estranho ele não estar ali. Será que houve alguma coisa? Comecei a ficar preocupada. Fui até a sacristia e abri a cortina. Não vi ninguém. Quando virei para trás, dei um grito!

_ Padre! Quer me matar? – disse eu, com a mão ao coração. _ Não desta forma! – sorriu, maliciosamente. Senti-me corar. Um calor percorreu meu corpo como um raio. No entanto, ele prosseguiu: _ Entremos no confessionário, por favor! Não é conveniente que nos vejam a falar aqui fora. Fiz o que ele sugeriu. Fiquei dentro do confessionário. Ele foi para a parte onde ficam os padres. Só

podíamos nos ver por entre a tela que nos separava. _ A senhorita leu? _ Sim, li. - falei com voz quase trêmula. A presença dele entorpecia-me os sentidos. _ Não dormi muito bem esta noite. A senhorita não me saía do pensamento. _ Sabe que não deveria falar destas coisas comigo, padre Ângelo. _ Desculpe-me, senhorita Anna, mas hoje sou eu quem vai confessar os pecados aqui. Por isso,

peço-lhe que apenas me ouça, por favor! Se depois do que eu lhe contar ainda nada quiser comigo, prometo sair de vez da sua vida.

_ Compreendo. Baixei a cabeça pesarosamente, pois não sabia o que poderia sair daqueles lábios que, naquele

momento, eu só queria tocar com os meus. Mas, se ele dissesse fuja comigo, não pensaria duas vezes. Meu coração parecia que ia saltar pela boca. Ele começou a falar e gaguejava tanto que eu mal podia entendê-lo. Deus, pensei, não deixe que ele seja um inquisidor. Não de novo! Wallejo, depois de muito pensar na maneira correta com que iria me contar o seu segredo, prosseguiu:

_ Escolhi o caminho da fé pela espada, e a Igreja traiu-me pela ambição de seus superiores. Éramos muitos, mas fomos traídos. São poucos os que nos dão abrigo. Estamos espalhados pelo mundo. Refugiados, por assim dizer.

_ Então, você é um cavaleiro da ordem, é isso o que está tentando me dizer? _ Sim. Sou sim.

_ Então, o que eu vi pela minha janela na noite em que cheguei aqui faz sentido. Vocês estão refugiados neste convento por qual motivo?

_ Sim, mas não deveria ter visto nada. Os homens que observou eram soldados da fé, estavam muito feridos. Diariamente, trazemo-los aqui para curarem as feridas. Quando se restabelecem, trocamo-los por outros que precisam de igual tratamento. É assim que voltam para a batalha. Temos um acordo com a madre superiora. Protegemos o convento dos invasores. Em troca, elas cuidam de nós, dão-nos abrigo e alimento, e também curam as feridas dos nossos soldados.

_ Mas sobre que tipo de batalha o senhor está falando, se acabou de me dizer que são desertores? _ A batalha silenciosa contra a Santa Madre Igreja, senhorita. Descobrimos que estávamos matando

muitos inocentes em nome de Deus. _ Desculpe-me. Não queria parecer uma bisbilhoteira, mas estava à janela naquela noite. _ Evite, senhorita. Quanto menos souber da ordem e do que se passa aqui dentro, melhor será para

a senhorita. _ Não sei muito sobre a sua ordem. Apenas o que ouço. _ Então, quanto menos souber, melhor. _ E quem são os cavaleiros, afinal? O que fazem de tão secreto? _ Posso apenas resumir a história, mas nunca confiá-la a você, entende? Somos uma ordem secreta

e devemos sigilo e fidelidade uns aos outros. Fizemos um juramento de lealdade e silêncio. Prometa-me que nunca irá me trair, mesmo que eu lhe fale muito pouco sobre a ordem! Prometa-me que esse assunto

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será esquecido pela senhorita para todo o sempre assim que eu lhe contar o que acho necessário para que me conheça melhor.

_ Sim, prometo, lógico que prometo. _ Então, escute com atenção: a Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo do Templo de Salomão é

também conhecida como Ordem dos Cavaleiros Templários. Existimos já há 200 anos. Tudo começou quando um grupo de nove cavaleiros decidiu defender a Terra Santa dos Sarracenos e transformou-se, mais tarde, na maior e mais poderosa organização secreta da nossa história. Estes monges guerreiros que a senhorita viu possuem muitos tesouros religiosos, incluindo, assim por dizer, a coroa de espinhos de Jesus Cristo. Há um pensamento errôneo sobre nós, o de que somos também os guardiões daquele que, para a maioria, seria a maior relíquia Cristã: o Santo Graal.

_ E vocês não são?

_ Não, nem nunca o vimos. Deixe-me continuar, por favor! Os Templários possuem uma riqueza incomensurável. Os reis da Europa vivem negociando-nos empréstimos, pois criamos muitos aspectos fundamentais do sistema financeiro. Contudo, por sermos fiéis, fizemos votos solenes jurando pobreza. Os membros individuais desta sociedade secreta são paupérrimos, acredite-me. Andam a tentar destituir-nos e há um boato sobre as reais intenções de Filipe, rei da França, o Belo. Por isso, refugiamo-nos em conventos. Assim, ainda não desconfiaram de nada. Filipe tem uma enorme frota atracada em La Rochelle. E há alguns anos, os membros da ordem simplesmente vêm desaparecendo. Creio que, enquanto não for declarada uma guerra real contra nós, também não nos manifestaremos em nossas reais intenções. Mas estamos sob alerta, caso haja uma traição ou emboscada repentina. Nunca sequer vimos o Santo Graal, mas isso é o que nos protege e mantém a ordem viva, por enquanto. Nossos inimigos não sabem disso. Há boatos de que existimos secretamente, mas isso não está fundamentado pelos poderosos, pois eles acham que somos uma lenda e nada mais. O fim da nossa ordem Templária foi anunciada com a execução do nosso último Grão mestre, Jacques de Molay, que foi queimado vivo em Paris, em 1314. Esse fato fez com que muitos acreditassem na nossa extinção. Mas, pessoalmente, acredito que seja apenas um boato infundável. Acredito que ele mudou simplesmente seu nome e continuou vivo anonimamente. Possivelmente, ainda existem herdeiros dele espalhados pelo mundo afora.

_ Acha mesmo que ele pode estar vivo, então?

_ É quase uma certeza, senhorita, assim como estou aqui, contando-lhe tudo isso. Há citada evidência que liga figuras famosas da história mais recente com a Ordem centenas de anos após ela ter cessado oficialmente. Embora todos pensem que somos uma lenda e já não existimos mais, há provas - como o senhor Isaac Newton, que foi nomeado como sendo um de nós. O grande explorador português Vasco da Gama viajou com as insígnias transversais

dos Templários nas suas velas, como Cristóvão Colombo também. Há evidência de que nós, os Templários, descobrimos a América oitenta anos antes de Cristóvão Colombo. Mas, como Cristóvão Colombo foi quem fincou a bandeira naquelas terras – confirmando, assim, seu descobrimento-, conseguiu ser, então, com isso, o intitulado descobridor. Mas, senhorita, houve tantos outros... Deveria saber essas coisas, pois percebo que é uma mulher muito instruída. Basta que observe pelo menos os sinais.

_ Sim. Agora, ouvindo o senhor contar, percebo com clareza que, na verdade, nunca deixaram de existir.

_ Estaremos sempre no mundo. Nunca nos exterminarão. Talvez, com o passar dos anos, até tenhamos que mudar o nome da ordem. A senhorita não sabe a honra que é para nós ser um Templário.

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Percebi, pelo tom de voz, o quanto Wallejo falava com real sentimento pela ordem que ele seguia não só com destreza, mas também com o coração.

_ Quando a notícia do nosso sucesso por parte das cruzadas chegava à Europa, houve uma grande exaltação. Dos locais mais remotos do continente, peregrinos punham-se em marcha rumo à Terra Santa, esperando ver a cidade onde tantos episódios da vida de Jesus Cristo haviam desenrolado. Mas estas peregrinações começavam a criar consideráveis problemas para os governadores de Outremer, o nome francês para terras do ultramar ou além-mar. Um reino cristão foi rapidamente estabelecido para delinear os territórios conquistados durante a nossa primeira Cruzada. Mas não nos trouxe paz para a região. Os cristãos continuavam cercados por estados islâmicos hostis. Os turcos e os muçulmanos, que perderam muitas das suas terras para os cristãos, não estavam dispostos a simplesmente desistir. Em cinquenta anos, os turcos sarracenos tinham feito severas investidas no Novo Reino. Havia ataques contínuos e assaltos às habitações cristãs. Os descontraídos peregrinos, viajando por terra desde a costa até Jerusalém, eram particularmente alvos fáceis. Em um único incidente em 1119, por exemplo, um grupo de peregrinos foi cercado por bandidos sarracenos e foram mortos cerca de 300 homens. Em 1120, guerras entre sarracenos podiam ser observadas na parte exterior das muralhas de Jerusalém. Mas, nesse tempo, muitos dos cruzados originais tinham regressado com as suas riquezas saqueadas para a Europa. A missão do Santo Papa para recapturar a Cidade Santa estava completada. O nosso trabalho estava feito. Com isso, não tínhamos mais nenhuma valia. Aí, começaram a nos explorar e usurpar nossas riquezas. Somos pobres cavaleiros porque também somos monges. Fizemos os votos usuais de pobreza, castidade e obediência para com os nossos superiores. Durante as cruzadas, éramos frequentemente ilustrados em pares, cavalgando em um único cavalo. A noção heróica dos nove destemidos monges guerreiros, valentemente defendendo os peregrinos em viagem contra as investidas muçulmanas, não deixou de apreender a imaginação das pessoas. Mas, nesse tempo, houve uma selvagem campanha dos cruzados para capturar a Terra Santa, que foi perfeitamente aceitável. A terrível carnificina infringida aos muçulmanos durante a própria cruzada tinha sido abençoada pelo Papa em nome de Deus. Muitos de nós, como eu, não concordávamos com isso, mas tínhamos que obedecer os nossos superiores. O povo passou a ter uma ideia errada de nós. Alguns começaram a imaginar os Templários com uma reverência romântica e ofereciam-se como novos recrutas. A Ordem crescia lentamente no início. Depois, mais célere. Para cada cavaleiro no terreno, havia ao lado dele dois ou três sargentos. Estes eram homens que ainda não tinham um compromisso definitivamente firmado com os templários. Poderiam ser guerreiros sargentos-de-armas, ou podiam servir de uma maneira mais pacífica em certas casas ou Conventos dos Templários. Mantendo sempre o compromisso de pobreza, os cavaleiros usavam roupa simples, que contrastava com o ornamento. Usávamos uma cobertura lisa de cor branca que, posteriormente, adornamos com a famosa cruz vermelha, que significa a nossa pureza e dedicação. Em campanha, nós, os templários, em nossos cavalos de guerra, usamos armaduras de malha metálica. Nossos sargentos usam armadura mais leve. Podemos combater em terra, se necessário for. De regresso à casa, os Cavaleiros Templários receberam o apoio do mais poderoso professor de moral da Europa. Esse homem era Bernardo de Clairvaux. E o apoio e evangelização de Bernardo levaram-nos à que se constitui como uma ordem com benção do Papa, em 1129. Começaram a nos ver na Europa como novos heróis em consequência dessa medida. Com a benção oficial do Papa, nós,

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Cavaleiros do Templo, podíamos ativamente começar a recrutar novos membros. Foi assim que a nossa ordem cresceu em tal proporção. O mais importante: ainda podíamos começar a ganhar dinheiro. Confesso que isso não foi nada mal. Os representantes da ordem foram enviados através da Europa numa campanha para angariar donativos para a causa. Poucos de nós perceberam o quão fácil isso iria se tornar. A tarefa dos Templários tornou-se famosa através da Europa. Éramos vistos como nobres guerreiros, defensores da Terra Santa, contra os odiosos sarracenos. Estes indivíduos eram ainda humildes e verdadeiros devotos a Deus. Assim, como outros, usaram as cruzadas como uma oportunidade para encherem os bolsos. Mas os outros Cavaleiros peculiares juravam votos de pobreza e castidade. Era injusto e, por certo, foram esses ambiciosos homens que traíram a nossa ordem. A nossa lendária bravura era tipificada num outro voto. Eram expressamente proibidos de se retirarem do campo de batalha, a não ser que a inferioridade numérica fosse de três para um. Donzelas jogavam-se a nossos pés. Muitos de nossos homens traíram pelo desejo de estarem com uma mulher. Esses foram poucos. Uns foram executados, outros fugiram com suas amadas pelo mundo afora. Juntamos fortunas, tanto em ouro como em propriedades. Poucos foram tão generosos com o rei Afonso I de Aragão, que à sua morte, em 1134, testamentou que nos fosse concedido um terço de todo o seu reino no Nordeste da Espanha. As pessoas mais pobres davam tudo o quanto pudessem. Tomando um exemplo, entre centenas, em 1141, Conan, duque da Bretanha, deu à Ordem uma pequena ilha da costa Bretã, e também uma renda anual de boa parte das suas propriedades na parte Norte da França.

_ Por que as pessoas estariam preparadas para dar seu dinheiro e propriedades em favor da Ordem? – perguntei, curiosa.

_ Sei que lhe passou isso à cabeça. Sem dúvida, ofertas de caridade com intuitos religiosos eram vistos como uma via para ganhar a salvação depois da morte. Efetivamente, as pessoas achavam que estariam comprando o seu lugar no céu. Mas, também, sob a influência de padres poderosos, como é o caso de Bernardo, os objetivos limitados da Ordem no Oriente eram exagerados até que o seu papel foi visto como os defensores da cristandade num todo. As pessoas colocavam as mãos bem no fundo dos seus bolsos. No fim do décimo segundo século, William de Tyre escreveu: não existe, neste momento, uma região no mundo cristão que não tenha transferido uma parte das suas riquezas para estes irmãos. Tudo isto contribuiu para aumentar consideravelmente o número dos Templários. Não somente precisavam de cavaleiros e de irmãos para tomar conta das suas casas na Europa, como 300 novos Cavaleiros tinham partido para o Médio Oriente nos finais de 1120. Posteriormente, continuou a haver um fluxo contínuo, assim como a sua posição era vastamente fortalecida em 1139, quando o Papa Inocêncio os libertou de qualquer superior real. Daí em diante, éramos apenas questionados pelo próprio Papa. Ninguém queria proteger o Papa como o seu Mestre. Como muitos esperavam, com tamanha acumulação de riqueza e poder, a nova Ordem tinha os seus críticos. Não tendo que prestar contas a ninguém, era frequentemente acusada de arrogância. E os seus negócios, conduzidos em segredo, fizeram transpirar profundas suspeitas acerca das suas atividades. Muitas figuras religiosas reprovavam o seu desempenho de guerreiros de Cristo. O que poderia ser menos cristão do que massacrar seres humanos numa batalha, ou saquear cidades? Rumores persistentes também se espalharam, dizendo que a nossa atividade principal era secreta e esotérica. Como Guigo, um famoso monge europeu, escreveu para a nova Ordem em 1129: é inútil para nós atacarmos os inimigos exteriores sem que, primeiro, tenhamos conquistado aqueles que estão no interior. Nós,

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Templários, obtivemos uma reputação de sincretismo. Mas os que nos apoiavam em muito superavam os detratores, tanto em número como em autoridade. Assim, a ordem prosperou no oriente e no ocidente. Entretanto, foi somente com a segunda cruzada de 1147 que nós, Cavaleiros Templários, tornamo-nos realmente proeminentes. Em meados do século XII, o controle cristão na Terra Santa encontrava-se fragilizado. Em 1147, o rei alemão Conrad III e Luis VII, da França, apelavam a uma segunda cruzada para fortalecer o reino cristão no oriente. O Papa Eugenius III deu a esta campanha a sua benção, e Bernardo de Clairvaux clamava apoios em seus sermões. Na altura da segunda cruzada, os Templários da Europa estavam em situação de enviar várias centenas de cavaleiros para Outremer. A experiência adquirida a proteger peregrinos ser-lhe-ia de total importância para proteger a missiva armada europeia na sua movimentação através da Terra Santa. Os Templários ganharam a confiança dos líderes reais das cruzadas, com o apoio financeiro e militar. Mas esta segunda cruzada tornou-se um desastre. Os franceses e alemães sofreram graves perdas nas suas batalhas com os turcos. Em fins de janeiro de 1148, os cruzados estavam severamente enfraquecidos e praticamente sem cavalos. Luis VII regressou à sua casa, assumindo a grande responsabilidade pela campanha dos Templários. Mas, depois dos desastres que ocorreram durante a segunda cruzada, os europeus sobreviveram intactos. E, é claro, os Templários estavam ali para ficar. Estes eram ricos em propriedades, e ganharam grande parte de território pela conquista. Nos terrenos desertos do Médio Oriente, estabeleceram uma cadeia de fortificações. Por volta de 1180, nós, Cavaleiros do Templo, tínhamos uma rede de castelos para nos defender contra invasões e podíamos agir como depósitos de mercadorias e pontos de passagem. Estes castelos eram construídos de maneira pessoal, e eram os mais fortes do mundo. Novos recrutas chegavam da Europa para orientar essas fortificações. Eram, também, a armada mais disciplinada e organizada daquele tempo. Não tínhamos dificuldade em recrutar novos homens, que vinham até do calibre superior para a Ordem. Era mais que uma guerra: era como se o nosso sangue fervesse. Era excitante, confesso. Éramos guerreiros dedicados, conduzidos pela mais severa disciplina monástica. Não tínhamos qualquer medo de morrer. Amamos ser o que somos. É um prazer ser um soldado da ordem. É uma honra ser um guerreiro de Cristo. Mas a guerra estava mudando. No ano de 1170, o grande líder sarraceno Saladino conseguiu unir os setores rivais do islã numa só força. À volta do reino cristão de Jerusalém, Saladino governava as terras do Egito para o sul e efetivamente conduzíamos, também, a Síria na parte norte. Os anos de tolerância entre os cristãos e muçulmanos no Médio Oriente tinham chegado ao fim. Agora, teríamos a guerra aberta. E era uma guerra que Saladino estava progressivamente a ganhar. A ajuda do ocidente mostrava-se muito vagarosa na sua chegada. Os habitantes de Outremer estavam por conta própria. Os próprios muçulmanos desenvolveram a sua própria seita de monges guerreiros. Os Assassinos eram o equivalente muçulmano dos Templários ou os Hospitalários. Mas os Assassinos eram ainda mais fanáticos. Assim como tomando lugar em todas as operações militares, eram especialistas treinados para atingirem pessoas singulares. A palavra assassino é a forma inglesa de Hashishyun, que quer dizer comedores de hashish. Era relatado que seu primeiro líder, conhecido como o Velho das Montanhas, tinha por hábito usar ervas entorpecentes para escolher objetivos e descrever visões do paraíso. Isso acontecia antes de enviar os seus homens em missões sinistras. Os Assassinos eram fanaticamente leais ao seu mestre. O sobrinho de Ricardo Coração de Leão, Henrique de Champagne, visitou uma vez uma fortaleza Assassina na Síria, na tentativa de negociar um tratado de paz com os

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muçulmanos. Para impressionar o visitante com a absoluta obediência dos seus homens, este ordenou a vários assassinos, um por um, a se atirarem para a morte das muralhas do castelo. Henrique ficou visivelmente perturbado com esta cena suicida que havia presenciado. Estas fortificações assassinas estavam implantadas através das montanhas do atual Líbano e Síria, e constituíam uma constante ameaça para as fronteiras nordestes do reino cristão. Mas os assassinos também não eram amigos de setores rivais islâmicos, os quais eram atacados pelo menos tantas vezes quantas os cristãos. Em 1173, o rei Amalric I de Jerusalém recebeu uma mensagem do próprio Velho das Montanhas, propondo-lhe a paz. Amalric entendeu que tal proposta não só deixava mais seguras as fronteiras, como também abria fissuras no próprio Islão, cada vez mais espalhado. Aceitou fazer a paz com os Assassinos. Os Templários tinham, neste tempo, assumido papéis adicionais. A sua honestidade e integridade eram, contudo, inquestionáveis. Éramos os melhores guerreiros no reino. Tínhamos ambos as qualidades para transportarmos o dinheiro dentro e fora do reino. Éramos, também, os coletores de impostos perfeitos. Ninguém se atrevia a nos enfrentar. Amalric, no seu tratado com os assassinos, apressadamente disse aos Templários para pararem de receber seus impostos. Mas os Templários não gostavam que ninguém fizesse promessas em seu nome, mesmo sendo o rei. Abdullah, o agente assassino, foi emboscado no caminho, quando regressava das negociações com Amalric. Foi morto por um Templário que tinha um só olho, cujo nome era Walter de Mesnil. Amalric estava furioso. O seu bem traçado plano de paz com os assassinos tinha sido sabotado. A desconfiança começou a partir daí e atingiu a impecável reputação dos Templários. Podíamos agir independentemente do rei - isto diziam algumas pessoas! Fomos chamados de arrogantes. Jogaram-nos vagas acusações de subornos. A inveja cresceu desmedidamente sobre nós. Passamos a ser altamente suspeitos. Todos queriam saber exatamente o que os Templários tinham debaixo da sua manta de sincretismo. Mas Amalric e outros oponentes tinham que engolir a sua ira e tolerar-nos. Éramos, ainda, sem dúvida alguma, a força de combate suprema em Outremer. Uma nova fase começou para os Cavaleiros Templários: o que era para ser uma sociedade com o objetivo de proteger a Terra Santa acabou por virar uma desordem. O grande segredo estava despertando a curiosidade de todos. Por isso, acabamos por nos tornar mal falados em todos os lugares por onde passávamos. A ilusão de sermos os guardiões do Graal estava no fim. Começaram a lançar boatos de que tínhamos o envolvimento com forças ocultas. Éramos a guerra, e a ordem estava se desmoronando. Durante os dois dias da batalha, Saladino usou o terreno e o clima brilhantemente em sua vantagem. Atacamos as forças cristãs em deserto aberto, no calor flamejante, em terreno sem água. Ajustamos o ataque a favor do vento, de modo que o fumo denso, adicionado à sua miséria, serviu de tampa para suas tropas. As setas choveram severamente para debaixo dos Europeus prostrados. Duzentos e trinta cavaleiros morreram nessa batalha, ou foram executados imediatamente após. Estas execuções eram uma medida do respeito de Saladino para com os cavaleiros. Indubitavelmente, trariam ricas recompensas ou mesmo preços elevados nos mercados de escravos por onde passassem. Saladino, por onde passou, apagou todos os traços dos Templários, demolindo todos os seus edifícios. Logo, o único posto cristão principal era o porto de Tyre. A terceira cruzada 1189-1192 trouxe Ricardo Coração de Leão à Terra Santa. Mas, quando Saladino morreu, em 1193, as seitas islâmicas rivais recomeçaram as suas querelas. Os cristãos lutavam para reconquistar território, e suas fortunas desvaneceram-se. Havia algumas vitórias, mas havia também derrotas terríveis. Muitos Templários caíram na batalha de La Forbie, perto de Ghaza, em

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1244. Somente 33 cavaleiros foram deixados em todo Outremer. O fim estava perto. A moeda nesses dias era ouro ou prata, e valia simplesmente o seu próprio peso, quer fossem dinars árabes ou solidi italianos. Os Templários tinham uma enorme responsabilidade, pois todo o dinheiro estava em suas mãos. Com isso, a cada dia crescia a ambição dos monarcas e da igreja - o que acarretou perseguições.

_ Com isso tudo, padre Ângelo, o senhor quer me dizer que é um fugitivo? _ Sim. Também a maioria aqui dentro deste convento encontra-se na mesma posição que eu. A

Igreja quer nos tirar tudo o que conquistamos. Não mais nos reconhecem como heróis. Somos seus inimigos.

_ Entendo-o. Deve ser duro ter que viver foragido desta forma. _ Sim, é um pesar. Não tentamos nos esconder e, por causa disso, vários milhares foram feitos

prisioneiros. Juridicamente falando, essas prisões eram ilegais. Os Templários respondiam unicamente ao Papa. Mas o atual Papa, Clemente V, devolveu essa condição para Filipe, o rei francês que transferiu o assento papal de Roma para Avignon, na França. Filipe esteve, também, por trás da morte suspeita do precedente papa - deixando, assim, o trono papal livre para Clemente. Inevitavelmente, o atual papa toma o partido de Filipe. E, com apoio papal, ataques similares foram feitos aos Templários através da Europa. Foram levados a julgamento aqueles que não acatavam as acusações levantadas contra eles. E eram abandonados com uma mísera pensão, deixados na miséria ou, ainda, como pedintes. Qualquer um que recusasse era encarcerado para toda a vida. Mais de cento e vinte Templários foram queimados na fogueira. Após as torturas, confissões e execuções, Clemente V aboliu oficialmente a Ordem dos Cavaleiros Templários, a vinte dois de Março de 1312. O Grande Mestre patriarca, Jacques de Molay, foi um dos que confessou. Mas a quatorze de março de 1314, enquanto ele era exibido no exterior da catedral de Notre Dame, em Paris, para ouvir a sua sentença de prisão perpétua, De Molay discursou uma dramática declaração: penso verdadeiramente que neste solene momento eu deva proferir toda a verdade. Ante o céu e a terra, e com todos vocês aqui como minhas testemunhas, admito ser culpado da mais grotesca das iniquidades. Mas essas iniquidades foram eu ter mentido ao ter admitido as grotescas acusações emitidas contra a Ordem. Declaro que a Ordem é inocente. A sua pureza e santidade estão acima de qualquer suspeita. Admiti, de fato, que a Ordem não era culpada. Mas unicamente assim agi para evitar contra mim as terríveis torturas. A vida foi-me oferecida, mas pelo preço da infâmia. Por este preço, a vida não vale a pena ser vivida. Depois de ter retratado publicamente a sua confissão, Jacques de Molay, o último dos vinte dois grandes mestres da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e Templo de Salomão, foi queimado vivo, em Paris. Enquanto expirava, amaldiçoou o rei Francês e o Papa. Disse que no prazo de um ano seriam chamados a prestar contas pela perseguição aos Templários. Apenas um mês depois, o Papa Clemente V faleceu, aparentemente de causas naturais. A vinte e nove de novembro do mesmo ano, Filipe IV morreu também num acidente a cavalo, enquanto caçava. Com isso, associaram as mortes à praga de Molay. Com mais este fato, passamos a ser temidos e acusados de mais um crime que não cometemos: o de ocultismo e bruxaria. Como pode ver, não é só a senhorita que sofreu acusações levianas da Santa Madre Igreja. Também sofremos tais acusações. Como pode ter percebido, fomos cavaleiros defensores desta que nos traiu por ambição e covardia. Acredite: ninguém está livre das punições desta mãe tão cruel.

_ Mas por que tudo isso aconteceu? E o que fizeram os Templários? _ Não fizemos nada. Mas, nos julgamentos, éramos acusados de heresia por participar de práticas

obscenas, de cuspir na imagem de Cristo e adorar ídolos, especialmente uma cabeça chamada Baphomet. Fomos acusados de bruxaria. Fomos, ainda, acusados de sodomismo. Fomos acusados de avareza, entre outras tantas coisas que, nem que ficasse aqui lhe contando por toda a eternidade, chegaria ao fim dessas barbáries e acusações. Fundamos uma nobre causa, e por ela fomos traídos, defendendo a Terra Santa. A mesma Igreja que defendemos jogou o povo contra nós. Não devemos assumir que muitos ou nenhum Templário era, na realidade, culpado das muitas acusações contra ele: idolatria, sodomismo, e por aí em diante. Estas eram as acusações principais que se faziam contra os heréticos. E eles foram contra elementos específicos nas regras da Ordem. Mas é possível que muitos dos Templários não fossem realmente cristãos ortodoxos, embora nunca fora encontrado nenhum testemunho em relação a este

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fato. Isso é uma história contínua e incerta. É dito, frequentemente, que destruímos os registros para que nunca pudessem ser usados contra nós. De qualquer modo, não posso afirmar-lhe que é ou não uma mentira. Mas é possível que estes fatos se tenham simplesmente perdido, provavelmente em Chipre, alguns anos mais tarde. Há, ainda, livros e papeis que sejam fáceis de destruir. O fato é que o nosso tesouro está desaparecendo. Não sabemos ao certo para onde ele está indo. Temos muitos informantes por toda a parte, mas está ficando cada vez mais difícil controlar os espiões entre nós. Estes se vendem para não morrerem, ou suas famílias são ameaçadas. Há uma teoria de que nosso tesouro está secretamente sendo transportado pelos esgotos de Paris. Mas não é um fato consumado. A complexidade de catacumbas e esgotos que se encontram por baixo da capital francesa nunca foi mapeada. Temos mapas detalhados dessas passagens subterrâneas. Mas é infinitamente complexo afirmar tal hipótese. Uma vez em segurança, podem ter transportado o tesouro para um destino desconhecido por uma frota Templária, e posteriormente nunca mais foi visto.

Wallejo terminou de contar-me sua história e disse: _ Essa é a minha história, senhorita Anna. Como pode ver, não somos tão diferentes assim.

Também sou perseguido por bruxaria. Tudo por causa da ignorância de um povo - do mesmo povo que nos colocou no topo de um mundo de maravilhas e batalhas.

_ Mas ainda não o entendo. Como e por que o senhor veio parar aqui? _ Estou sendo acusado de ter matado um homem cujo assassino está aqui, neste condado. Vim para

cá com o pretexto de que sou um padre. Estou aqui sigilosamente. Ninguém sabe disso, a não ser a madre superiora. Agora, confesso-lhe que sua partida para Roma preocupa-me, porque sei que estão para substituí-la. Espero que acredite em mim. Não estou mentindo em uma só vírgula. Este homem do qual lhe falo está escondido e usurpa o lugar de um homem inocente e desaparecido. Ele assassinou ambos. É um impostor e espião dos mulçumanos. Sabe Deus o que anda aprontando entre o povo inocente e de fácil engambelação. Há pouco tempo, obtive informações precisas de que este mesmo cidadão esteve em Salamanca, a cidade de onde a senhorita veio. Soube que ele andou a tentar firmar um compromisso com certa senhorita. Mas, graças a Deus, parece que seus planos foram frustrados. Ele está tentando se infiltrar na sociedade a todo custo. É o assassino de uma família inteira. Sabe Deus de quantos mais! Este homem, definitivamente, não pode continuar impune assim. Tenho que fazer alguma coisa.

_ Como isso tudo ocorreu? Como ele pode ter tomado o lugar de uma pessoa? Seus súditos e criados não reconheceram este herdeiro?

_ O duque de certa província, que não vem ao caso agora, enviuvou cedo demais. Quis viver a vida sob a liberdade de sua juventude. Como não queria casar-se novamente, enviou seu filho com somente três anos de idade para um internato, na Inglaterra. Esta criança, pelo que sei, nunca saiu do internato, nem mesmo para as festas comemorativas.

_ Pobre menino... Que vida solitária e sem amor! Ninguém merece viver desta forma. Para mim, este tal duque nada mais era do que um carrasco cruel e sem sentimentos para com sua própria prole. Imagine, o pobre menino já havia perdido a mãe e ainda tivera que viver sem o aconchego do seu lar e o afeto do pai. Que cruel! Que monstruoso este senhor - em minha opinião, nem merece ser chamado assim. Já o detesto, mesmo sem conhecê-lo, por esta atitude tão sem crédito.

_ Sim, concordo com a senhorita. Tal atitude gerou muita revolta no jovem conde, que passou a se rebelar dentro do internato, agindo da pior maneira possível, juntando-se a maus elementos que usufruíam do dinheiro que o duque lhe enviava para suas despesas extras. O jovem conde, segundo fui informado, passou até a fazer uso constante de ópio. Ele tinha um amigo, um informante meu, e este me escrevia, contando quais seriam os planos e expectativas do conde ao sair do internato. Ele queria gastar toda a fortuna de seu pai e viajar para curtir a juventude supostamente perdida. Esses tais planos também foram ouvidos por outro jovem de muito mau caráter e muito ambicioso. Nele, aflorou a inveja. Este jovem havia conseguido ir para o internato custeado pelos nossos maiores inimigos, os sarracenos. Estes, mesmo depois de terem perdido várias guerras, infiltraram espiões em toda a parte da Europa. Um dia, já em idade muito avançada, o duque resolveu ter a consciência de manda chamar o rapaz de

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volta à casa paterna. E ele trouxe na bagagem este amigo. Este amigo, em meio ao caminho de Valencia, tramou a morte do jovem conde. Em uma hospedaria que ele mesmo havia escolhido, juntou-se com mais dois capangas e deram cabo do jovem monarca. Esconderam o corpo. Nunca o encontramos. Este jovem de aparência doce é um gatuno e assassino, um homem capaz de qualquer coisa para alcançar seus objetivos. Este homem tem uma mente diabólica e cruel. Ao chegar à casa do duque, tranquilamente se passou como filho do mesmo, pois sua aparência física era muito semelhante à do jovem conde assassinado. Isso passaria despercebido se eu não começasse a desconfiar do comportamento deste jovem.

_ Então, o senhor estava lá? E o que fazia no meio desta trama toda? Qual era o seu papel? _ Como lhe contei, éramos incumbidos de cuidar dos bens e da segurança destes fidalgos. Mas,

entre mim e o duque, havia uma amizade fraternal. Ele e eu tornamo-nos muito amigos. Éramos confidentes, embora eu fosse bem mais jovem do que ele.

_ E o que fez o suposto conde para que chegasse a tal desconfiança? _ Tínhamos um relatório semanal de tudo o que o verdadeiro conde fazia dentro do internato.

Embora nunca o tivéssemos visto e nem o próprio pai soubesse como era a verdadeira face do filho, tínhamos também um informante lá dentro que nos passava tudo o que ele fazia, inclusive suas conversas. Por isso, sabíamos qual seria o seu interesse ao sair do internato. Estávamos preparados para enfrentar um jovem revoltado e rebelde. Mas ele estava demasiadamente meigo e submisso. Comecei a observá-lo a fio. Embora ele não desse motivos aparentes para que ninguém leigo no assunto levantasse uma suspeita, comecei a controlar cada ato aparentemente correto dele. Esse usurpador passou a levar o desjejum para o pai todas as manhãs. Como o duque estava muito debilitado devido à idade e já não enxergava muito bem, foi fácil para esse crápula engambelá-lo. Mas, com esse falso carinho e atenção súbita pelo pai, fez com que o duque começasse a ter sérios problemas de estômago. Nada parecia parar em seu organismo. Era visível a sua palidez repentina. A doença começou a se agravar dia após dia. Os médicos nada encontravam. Então, comecei a investigar e descobri que o larápio estava colocando certo veneno dentro do açúcar. Assim, ficou difícil de se diagnosticar. Só que já era tarde demais: o duque estava muito debilitado e, nos seus últimos dias de vida, já havia passado toda a sua fortuna e bens às mãos do falso conde. Mediante esse triste episódio e com a morte do duque, tentei, ainda, recuperar o testamento e provar a falcatrua do usurpador. Mas ele foi mais esperto e já tinha fortes aliados a seu lado. Quando percebeu nossa intenção de desmascará-lo, logo expulsou meus soldados da mansão. Ele sabia que eu poderia fazer muito mais contra ele. Então, maquinou uma nova trama. Acusou-me de envenenar o duque e colocou toda a corte atrás de mim. Nada pude fazer, porque não tinha como provar que este rapaz era um usurpador. Afinal, nada tinha em minhas mãos, nenhum documento, nenhuma testemunha. Entende?

_ Sim, entendo. Mas que fim levou a única testemunha que estava também dentro do internato com o verdadeiro conde? Pois, afinal, ele pode ser uma testemunha. Também deve considerar a freira que tomava conta do internato. Ela é uma testemunha. O que fez quanto a isso?

_ Quando o falso conde acusou-me levianamente de assassinato, viajei imediatamente para o internato à procura de provas, mas a madre tinha sido transferida de seu posto. O jovem que era nosso espião desapareceu misteriosamente, sem deixar vestígios. Com isso, supus que ele também tinha sido assassinado.

_ Santo Deus! Para onde foi transferida a madre, então? _ Para este convento, senhorita Anna. _ Quer dizer que a nossa madre superiora é a sua testemunha? Ela é a sua prova-chave? _ Sim. Mas suponho que não a deixarão voltar de Roma. _ Por que diz isso? _ Porque, como citei para a senhorita, o usurpador fez aliados em muitos lugares. Já interferiu para

que ela fosse transferida. _ Santo Deus misericordioso! Padre Ângelo, temos que fazer alguma coisa.

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_ Nós? Nunca a deixarei envolver-se nisso. É perigoso demais. Essas pessoas são assassinas. Não medirão esforços para alcançarem seus objetivos.

_ Acha que o abandonarei? Já estou envolvida nessa história até os cabelos. Quando me contou tudo, tornou-me sua cúmplice. Amo-o e sempre o amarei. Esperei-o por muito tempo, amor da minha vida, para ter que o abandonar assim, no meio de uma tempestade. Não vou entrar em detalhes com você agora, mas quero que acredite apenas em uma coisa: esperei-o por muitas vidas e estou aqui, nesta, para viver e morrer contigo.

Wallejo saiu da sacristia, abrindo a minha cortina. Então, saí. Fitando-o nos olhos, percebi que naquela hora sua áurea iluminou todo o ambiente ao nosso redor. Ele não precisou de palavras para me dizer o quanto estava feliz. Nossas mãos se tocaram e nossos lábios se juntaram pela primeira vez. O chão não estava mais debaixo de nós. Parecíamos ter levitado uma luz muito superior, e um cheiro de rosas tomou-nos por completo. Quando duas almas encontram-se, a magia toma sua forma e o universo se agita. Ele se afastou lentamente e olhou-me nos olhos. Seus olhos tinham toda a constelação dentro deles.

_ É linda. Não só sua aparência física, mas é linda em todo o seu interior. Agora sei que nunca poderia amar outra além da senhorita.

Ele chorou e ficamos abraçados por mais alguns segundos. _ Não podemos nos arriscar, amor. Temos que ter cuidado de agora em diante. Se formos

descobertos, as consequências serão graves. _ Só não consigo entender uma coisa: como esse tal conde conseguiu envolver e, ao mesmo tempo,

trazer tanta gente para junto de si? _ Ele mentiu, amor... Disse a todos que eu e os cavaleiros fizemos tudo de caso pensado, para

roubar a fortuna do duque. Ainda aumentou a maledicência, pois disse que todos os cavaleiros só queriam roubar os monarcas. Isso gerou muitas desconfianças e até a Igreja, que já andava ambicionando nossos tesouros, aproveitou a oportunidade para arquitetar contra nós. Na verdade, a Igreja pouco se importa com o usurpador. Só quer é nos tirar de nosso posto. Assim, toma conta de toda a população e passa, também, a controlar a fortuna dos monarcas e das cortes.

Olhei para Wallejo e interrompi antes que ele começasse com o discurso sobre os Templários novamente.

_ Desculpe, meu amor. Não quero interromper, mas temos que ir, antes que dêem falta de mim e comecem a desconfiar que essa confissão está longa demais.

_ Sim. Precisamos ir antes que desconfiem de nós. Beijou-me na testa e olhava-me como se não quisesse deixar-me ir. Por fim, despedimo-nos com

um beijo longo e saí da igreja, tentando não ser vista. Nem sabia por quê. Afinal, todos os dias tinha que me confessar. Engraçado o quanto as coisas mudam quando estamos com a consciência pesada por algum motivo... Naquele momento, eu estava pensando no meu pecadinho: no beijo de Wallejo! Isso, para as freiras, seria um ato de fornicação! Sorri, sem conseguir controlar-me.

Fiz minhas tarefas do dia rapidamente. Fui para a lavanderia e até cantei com as freiras, que se admiraram ao ver-me tão feliz. Quando estamos amando de verdade, vemos luz no meio das trevas e sol em gotas de chuva. O orvalho das manhãs são lágrimas de felicidade. A vida, pétalas de flores. Depois de ter terminado minhas tarefas da tarde, procurei minha amiga Juanita, que estava lendo um livro perto da fonte, no meio do patíbulo, em um banquinho em meio a uma refrescante sombra. Ao colocar a mão em seus ombros, a freira deu um pulo de susto. Como ri daquela situação!

_ Não tem juízo, criatura? O que anda pensando ao sair por aí, assim, a assustar as pessoas? _ Não tive a intenção de assustá-la, juro! Mas bem que foi divertido vê-la dar pulos. Ela tentou segurar o riso, mas não conseguiu. Depois de rirmos como duas tolas, contei-lhe tudo o

que me acontecera pela manhã. _ Jura? Santo Deus! Que história! - disse ela, com os olhos que mais pareciam dois pires. _ Quem será este maldito conde? _ Isso é o que eu não sei. Ele não quis me dizer.

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_ Mas precisamos saber quem é o larápio. E se ele vier aqui? Precisamos saber para nos defendermos deste peste. Espere! Santo Deus, e se...

_ Diga, irmã! O que está pensando agora? Não gosto quando faz esta cara... Hum, aí vem coisa, viu!?

_ Senhorita Anna, como era o nome do seu conde? _ Por quê? Acha que ele pode ser a mesma pessoa? _ Não acho, tenho certeza. Meu Deus, raciocine comigo: a senhorita não quis casar-se com este

famigerado. Certo? _ Certo. _ Então, seu pai a enviou de imediato para este convento, certo? _ Certo. Mas ele sempre me ameaçava porque minha madrasta colocava em sua cabeça estas ideias

estapafúrdias. Não consigo ver em que o conde tem ligação com Wallejo. _ Sim, entendo seu modo de pensar... Mas pare um minuto só e pense mais um pouco. O senhor

seu pai poderia ter lhe mandado para qualquer convento. Existiam conventos mais próximos a Salamanca e outros mais longe, se o caso realmente fosse bani-la da presença familiar… Entende agora, senhorita Anna? As peças deste jogo estão se encaixando. Seu amigo Ramon tinha razão: uma dívida era muito pouco para seu pai entregá-la nas mãos da Inquisição. Ele, com a influência que tem, por certo poderia ter revertido toda a história. Afinal, não é uma pessoa qualquer, tem sangue nobre. Essas coisas acontecem com alguns nobres que não seguem a fio os mandamentos da Santa Madre Igreja. Mas me desculpe a sinceridade. Sem ofendê-la, a senhorita é muito modesta, com uma historinha sem significância para estar incomodado tanto a pessoas tão importantes. Entende-me agora?

_ Sim. Começo a perceber coisas que não percebia antes. Mas por que meu pai se vendeu desta forma?

_ Senhorita Anna, se o seu conde for mesmo que pensamos, ele por certo é muito poderoso e persuasivo. Com certeza, a senhorita está correndo risco de vida. Porque este homem não lhe dará mais sossego em lugar nenhum. Sua presença aqui é apenas a ponte para que ele se aproxime e consiga assassinar o padre Ângelo. Sua presença neste convento nada mais foi que um pretexto para alcançarem o objetivo de pegarem o padre Ângelo. Mais nada, senhorita Anna. A senhorita não passa de uma isca. Só que eles não sabem de uma coisa.

_ Do quê? _ Que juntariam dois amores de vidas passadas. Deus que me perdoe por pensar desta forma... Mas

o destino tem suas artimanhas também. Pregou uma peça em todos vocês. Meu coração deu um nó. Estava feliz, mas também muito pesarosa. Se o conde fosse a mesma pessoa

de quem falávamos, Wallejo seria capturado assim que o conde fosse me fazer uma visita - o que já era de se esperar.

_ Amanhã bem cedo falarei com padre Ângelo. Tenho certeza de que chegaremos a um consenso juntos. Vamos conseguir achar uma solução. Que Deus me ajude! Agora, perdoe-me. Preciso ir para minha cela. Tenho que refletir um instante. Tenho que rezar a Deus e pedir forças. Agradeço-a por me dar esta luz.

Beije-lhe as mãos e saí, sem nada a dizer, porque senti minhas forças esvaírem-se de dentro de mim. Chegando à minha cela, só queria chorar sem parar, porque estava sem saber como ajudar Wallejo. Mas minhas lágrimas secaram-se de imediato ao ver outro bilhete e outro girassol em cima da mesinha. O bilhete dizia assim:

Espanha, vinte e três de julho de 1819 Meu amor, meu único amor... Espero que esteja bem. Quero que saiba que seu sorriso ilumina a escuridão da minha

alma. Que sua presença é a força que me faz seguir, e é só pela senhorita que entrarei nesta batalha sem medo de perder. Amo-a, amo-a, amo-a... Seu sempre...

A.W.M.

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Depois de tais palavras, não pude mais chorar. Tinha que tirar forças de dentro do útero, se assim fosse necessário. Meu amor precisava de mim. Não era hora de bancar a menina tola, chorona e fraca. Ergui a cabeça e fui à janela observar o luar, que não estava mais tão cheio. As crianças da noite rondavam à procura de alimento noturno. Seus apetites eram vorazes. Chacais famintos procurando alguma presa para devorar. Engraçado como a vida não para, nem de noite, nem de dia e nem em lugares secos. Mediante tais observações, percebi que a natureza estava me dando mais uma lição. Ela estava me dizendo... Se eles não paravam e tinham que esperar que a noite caísse para poderem sobreviver, por que eu tinha que me deixar ser vencida no primeiro obstáculo? Esbocei um sorriso e agradeci pela lição que tivera naquela noite. Fui me deitar bastante tarde. Nem vi o sono chegar. Já eram altas horas da noite quando uma voz torturante chamou-me:

_ Senhorita Anna, por favor, acorde! Sou eu, Juanita... A voz parecia estar vindo de muito longe... Abri apenas um dos olhos, lentamente, e deparei-me

com uma freira ainda de roupa de dormir, com uma touca de abas largas que mais parecia dois chifres de boi. Então, mediante aquela lastimável figura exótica e aterrorizante cena, disse entre dentes:

_ Morri, não foi? E agora Satã está me enviando sua mensageira para me torturar! Não precisa tanto: confesso, fui eu.

_ Eu o quê, santa criatura? Para de dizer blasfêmias! Sou eu, Juanita. Tive um sonho. Quero que me traduza este, por favor! - respondeu a irmã, parecendo não ter entendido minha ironia.

_ Já disse: confesso, fui eu quem colocou a coroa de espinhos em Cristo! Agora arrede-se daqui, criatura torturante.

Dizendo isso, virei para o canto da cama e tapei a cabeça com o travesseiro. Achava que, agindo daquela forma, ela iria embora. Mas foi uma doce ilusão da minha parte, pois Juanita puxou o travesseiro abruptamente, dizendo:

_ Estou a falar sério. Tive mesmo um sonho ruim. Quero que a senhorita ajude-me a traduzi-lo. Diante os fatos, só me restava uma coisa: ouvir o que a aquela santa mulher tinha para me dizer de

tão importante! _ Está bem. Já percebi que a senhora hoje não tem a menor intenção de me deixar dormir. Deixe-

me adivinhar: sonhou que estava no céu e havia virado anjo! Aí, veio aqui saber se é um bom presságio? Sim, digo sim: todas vocês, freirinhas, vão virar anjos e vão direto para o céu. Agora posso dormir? – disse, meio sem paciência.

_ Não é nada disso, senhorita Anna! Sonhei que estava no meio de uma floreta e enormes serpentes enrolavam-se no meu corpo. Quando conseguia me livrar delas e fugir, deparava-me com um urso enorme. Ele abraçava o padre Ângelo e, com isso, tirava todo o ar dele. Mas o estranho é que o urso parecia sorrir para ele, como se o conhecesse. Aí, corri para buscar ajuda, mas acabava dentro de uma caverna, fria, suja e escura. Lá, vi a senhorita, presa em uma teia de aranha gigantesca. E dizia-me por favor, ajude Wallejo... Ele corre perigo de vida. O traidor está chegando. Depois disso, acordei toda suada.

Se eu fosse uma pessoa comum, diria a ela que simplesmente teria ficado impressionada com a nossa conversa do dia anterior. Fiquei espantada com o sonho de Juanita! Ouvi-a atentamente. Por fim, disse-lhe:

_ As cobras negras é um sinal de traição. Como eram cobras gigantescas, isso significa que é uma pessoa de muito poder, que está ou estará bem perto de nós. O abraço do urso sorridente significa traição de alguém que está muito perto do padre Ângelo. A caverna escura é uma situação pela qual eu ou a senhora passaremos. E será, por certo, um lugar frio, escuro e muito úmido. As teias de aranha significam que não poderemos nos livrar de tal situação. Quanto à parte de padre Ângelo... quer dizer que sua morte será causada pelo seu próprio inimigo.

_ Nossa! Deus do céu... E não há nada que possamos fazer para livrá-lo deste destino tão cruel? Baixei a cabeça e as lágrimas rolaram. _ Não, infelizmente não podemos interferir no destino de outra pessoa. Juanita baixou a cabeça e disse:

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_ Perdoe-me, amiga! Sinto ter sido portadora de tão más notícias. Não queria ser eu a dizer-lhe coisas tão abomináveis.

Tentei ironizar as coisas, sendo um pouco divertida. Então, disse: _ Imagina... Agora virei tradutora de sonhos de irmãs que cismaram em ser bruxas! Eu ria e chorava, não conseguia me controlar. _ Mereço, viu, senhor!? - disse isso olhando para o teto do quarto. Ela começou a chorar e nos abraçamos. Ficamos o resto da madrugada conversando. A conversa

parecia não ter fim, porque Juanita tinha muitas coisas a perguntar. Quando o galo cantou a primeira vez, ela foi embora cumprir seus afazeres cotidianos. Fiquei sentada na cama por uns minutos, sem saber o que fazer. O galo cantou a segunda vez, o que me fez despertar daquele transe. Vesti-me rapidamente e fui para a sacristia, como de costume. Wallejo estava na soleira da igreja à minha espera. Parecia inquieto.

_ Não dormi nada. – disse, com voz rouca. _ Eu também não! Ele nem me deixou contar-lhe o que havia se passado. Puxou-me como um louco para dentro da

igreja. Entramos na sacristia e ele beijou-me com a fome de um lobo. E cada vez mais ficavam quentes aqueles beijos. Quando percebi o seu frenesi, tive que afastá-lo repentinamente.

_ Desculpe, amor! Temos que nos controlar. _ Não quero me controlar. Quero-a só minha. Preciso da senhorita agora. _ Sim, sei. Sinto o seu desejo ao tocar meu corpo. Acredite, é recíproco o que sinto por você. Mas

precisamos ser cautelosos. Tenho que lhe contar uma coisa que a irmã Juanita e eu descobrimos ontem à noite. É um detalhe que poderá surtir efeito em sua história e no seu destino.

Ele ficou estático e falou: _ Meu Deus, mulher. Tanto que lhe pedi que não contasse minha história a ninguém, por que foi

contar tudo que lhe confiei a uma das irmãs? _ Por favor, perdoe-me, mas confio na irmã Juanita e peço que me ouça com atenção. Conde

Alfred Celso D’ Louchoa. É esse o nome do homem com quem meu pai queria que eu me casasse. Filho do duque Albert Celso D’ Louchoa.

Na mesma hora, seus ternos olhos tornaram-se fumegantes de ódio. O semblante daquele anjo transfigurou-se em uma forma amargurada e com expressões faciais pesadas. Por fim, meio que trêmulo, balbuciou algumas palavras:

_ Sim, faz muito sentido o que acaba de me contar. Prometa-me uma coisa: nunca mais verá este conde!

_ Sim, prometo. Mas creio que ele não me incomodará aqui neste convento. _ Não o conhece. Ele, por certo, é o único responsável por estar aqui agora. _ Então crê que falamos da mesma pessoa? _ Sim. Naquela hora, agarrou-me em seus braços e beijou-me com loucura. Depois, afastou-me e disse-me

com a voz pesarosa: _ Não quero perdê-la. _ Nunca isso irá acontecer. Estaremos juntos sempre, enquanto eu tiver forças. Embora eu soubesse que não poderia afirmar com certeza aquelas palavras, precisava aquietar o

meu próprio coração que estava aflito e pesaroso. Ficamos juntos, dentro da mesma sacristia, alguns minutos a mais. Depois, saímos às pressas e meio tontos por causa do frenesi da nossa paixão. Fomos cada qual para um local diferente para cumprirmos nossas tarefas e evitarmos que os demais desconfiassem do nosso sumiço. Aquele dia custou a passar, porque eu estava apreensiva com os novos acontecimentos. Senti medo e sabia que algo ruim estaria por vir.

Ao terminar meus afazeres, fui me refrescar perto do poço que ficava no pátio. De repente, ouvi meu nome ser chamado aos gritos! Ainda estava com as mãos sobre o rosto molhado, mas reconheci aquela voz, que mais parecia uma arara.

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_ Senhorita Anna!… Tenho algo para lhe falar. Ela estava ofegante e parecia ter algo muito importante a me dizer. _ Onde foi o incêndio? Diga-me, pois quero estar longe. De problemas, estou até os cabelos! _ Nossa, como você é ingrata! E logo comigo? Pois saiba que sou portadora de boas notícias. _ Sendo assim, fale logo. Já estou curiosa! _ Agora não, que estou cansada! _ Está a brincar comigo? Não posso ficar ansiosa, pois sofro dos nervos. _ Então, falo. Mas com uma condição. _ Qual? Já está a me irritar. _ Se não se portar bem, não falo e pronto! Ela realmente estava me irritando! Quase a joguei dentro poço, mas a curiosidade foi mais forte.

Juanita cruzou os braços e disse, depois de fazer o maior drama: _ Tenho um bilhete. _ É do padre Ângelo? Se for, dê-me logo. _ Não. Há outras pessoas que também gostam da senhorita. _ Não consigo imaginar. Quem poderia ser? _ Ah! Claro, não significo nada, não passo de uma pedra em seu caminho. Por certo, estou em outra

dimensão espiritual, pois nem me enxerga mais. Agora, só o padre Ângelo tem importância! Ri muito de Juanita, pois estava com ciúmes de nossa amizade e estava fazendo pirraça comigo. _ Está bem, é minha única e melhor amiga. Mas, por favor, pode me dar o bilhete, antes que eu

tenha uma síncope!? _ Dou-lho. Só que tenho uma condição! _ Ah, agora sim está abusando de minha paciência! _ Calma! Só quero que leia em voz alta. _ Nossa, que falta de privacidade! Uma pobre prisioneira não pode sequer ler uma carta de amor a

sós. Logo nas primeiras linhas, soltei um grito de felicidade: era de Maria. Depois de saltar de um lado

para o outro, perguntei ainda, eufórica: _ Como? Onde está ela? Oh, Deus! Quero vê-la! Que saudades de Maria! _ Não sei se merece. Você foi muito ingrata comigo. _ Por favor, imploro-lhe: preciso vê-la! - disse isso juntando as mãos e olhando para ela com olhar

de súplica. _ Está bem. - disse ela, cruzando os braços novamente e fazendo um bico com a boca. Dei-lhe um sorriso. Ela prosseguiu: _ Escute isso: Maria não pode ser vista por ninguém, pois não podem saber que eles estão aqui! _ Eles? _ Sim, ela veio com o esposo, Joseph. A Inquisição e os guardas estão atrás de ambos. Parece que o

seu conde e seu pai agiram juntos novamente. Desta vez, o conde usou todas as armas para prejudicar todos que poderiam ter interferido em seus planos diabólicos. Portanto, se Maria e Joseph forem apanhados aqui, todos nós sairemos perdendo. Pois ele sabe que Maria não ficará sem vir visitá-la.

Dizendo isso, Juanita saiu seguindo na minha frente, para não chamar atenção. Encontramo-nos perto do campo de girassóis. Seguimos dali por uma pequena estradinha de terra, entrando, em seguida, em uma casinha feita de madeira, onde os monges guardavam as sacas de sementes de girassóis. Ao abrirmos a porta, não consegui falar nada: corri direto para os braços da minha amiga, que estava com os olhos também a escorrer. Ao me abraçar, ela foi logo dizendo:

_ Não chore, minha pequena. Deixe as lágrimas para mim. Ainda é muito moça. Logo tudo se resolverá. Sou velha e não me fazem mal algumas rugas a mais.

_ Não tem como, minha Maria. Dos meus olhos escorre o mar da minha alma. Ando a trabalhar como louca e, quando acabo minhas tarefas, coloco-me em outra. Mas, para mim, esta é a forma que não

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me deixa pensar no meu triste e descabido destino. Sei, Maria, que não vou sobreviver para contar minha história. Por isso, peço-lhe: traga-me meu diário!

_ Acaso achou que eu fosse uma pessoa sem noção? Pois ele já está aqui! Quando soube da sua prisão, procurei por Tereza e a pedi umas coisas suas. Escondi, é claro. Tudo o que ela pode afanar, trouxe para mim.

_ Sério? O que ela conseguiu? _ O caldeirão, sua varinha, suas poções, o diário de sua mãe e outras miudezas. Mas não poderá usar

tudo isso aqui. Dizendo isso, pegou uma maleta de couro marrom e puxou para fora um livro do qual parecia sair

luz. _ Meu diário! Tenho tanto a dizer-lhe... Maria, quero que fique com as outras coisas. Guarde todos

os objetos e conte no meio da irmandade a história de minha mãe. _ Não estou me despedindo de você! Virei muitas vezes aqui vê-la. Acredite: não se livrará de mim

assim, tão fácil. _ Prometa-me que não virá! É muito arriscado. Contei-lhe toda a história verdadeira do conde. _ Madre de Diós! Que crápula! Nunca gostei deste homem. Ele sempre me passou algo de muito

ruim. Mas agora, mais que nunca, não poderei abandoná-la à própria sorte. Segurei-a pelos ombros e falei seriamente: _ Maria, tenho um destino a cumprir. Você tem o seu, tem que zelar por seu esposo, seguir com a

vida. Cuide para que esta história seja contada entre muitos povos e muitas gerações. Não deixe que se apague da terra o que escreverei neste diário.

Dizendo isso, mostrei-lhe meu diário. Abraçamo-nos por um bom tempo. Deixei que Maria colocasse pra fora tudo o que estava preso na garganta durante todo aquele tempo que ficamos separadas. Foi quando, ao fundo, ouvi um pigarrear.

_ E eu? Ninguém me enxerga? Sou mesmo insignificante! Vou-me embora, já que ninguém me vê. _ Joseph! Ainda com os olhos úmidos, fui à sua direção para abraçá-lo. _Onde estava? - segurei suas mãos. _ Escondendo a carroça. Ao entrar, vi uma linda cena. Então, resolvi ficar bem quietinho em um

canto. Pegou um lindo ramalhete de flores do campo, que havia deixado perto da soleira da porta, para me

entregar. Abracei-o e beijei-lhe as mãos, em sinal de respeito. _ Sinto interromper uma cena familiar, mas temo por todos. Devo dizer-lhes que já é bem tarde e é

muito perigoso seguir caminho à noite pelas estradas em momentos tão difíceis como estes. - disse Juanita.

Despedi-me tristemente de meus amigos. Quase morri ao ver Maria distanciando-se. Meu coração ficou pequeno… Chorei como nunca naquele dia. Eu e Juanita voltamos para o convento e tentamos não ser vistas por ninguém. Juanita conhecia uma passagem secreta e fomos por ela. A passagem era localizada debaixo da torre da igreja, perto da capela de orações. Entrei em minha cela e lá estava outro bilhete. Não sabia se sorria ou se chorava, pois meus sentimentos estavam em desordem. Não li o bilhete naquele dia. O cansaço era muito e não demorei a adormecer. Meu corpo caiu pesado sobre a cama e nada mais vi.

O galo cantou e fingi não estar ouvindo. Assim foi até a terceira vez. De repente, percebi que minha cabeça estava dando ecos. O sino da igreja tocava incessantemente. Levantei-me aos pulos, pois algo de errado estava acontecendo. Arrumei-me como pude e desci as escadarias, voando. Ao chegar ao patíbulo, todas as irmãs estavam reunidas. Entrei no meio de todas para ver o que se passava. Foi quando vi uma carruagem muito alinhada cercada de guardas e escravos. Desceu dela uma freira de uns sessenta anos de idade, alta, com cara de demônio. Nunca vi criatura mais sisuda e cheia de íncubos como aquela à minha frente. Eram tantos os demônios ao seu redor que virei o meu rosto. Meu corpo

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arrepiou-se dos pés à cabeça. Um gelo sobrenatural tomou conta de mim. Ela era mensageira da morte, com certeza. Um arauto ao lado da carruagem tocou uma trombeta para que prestássemos atenção ao que seria dito. Então, prosseguiu o homem com chapeuzinho engraçado:

Roma, 17 de julho de 1819. É de vontade real e da Santa Madre Igreja que a senhora madre superiora Edwiges Sollantes seja substituída pela

senhora madre superiora Madylene Cotas, cujo cargo passa a exercer a partir da data de sua chegada ao convento de San Francisco. Que fiquem todos cientes de que a minha vontade é soberana e inquestionável. Dado e dito, consumo este fato a partir da data citada.

Eu, o rei, revogo este caso sem mais a dizer. Que se cumpra a minha vontade, em nome de Deus Nosso Senhor. Assina: Don Marquez Castelani, Rei e Regente de Roma. Vi Wallejo do outro lado do patíbulo. Seus olhos pareciam preocupados. Com a notícia que

recebemos naquele dia, seria dada a definição para o meu destino e o de Wallejo. _ Santo Deus! O que faremos, senhorita Anna? _ Não sei, irmã Juanita! Fomos todos pegos de surpresa. _ O que acha desta nova madre? Sorri antes de respondê-la. _ Digo-lhe apenas uma coisa: ela não precisa de secretário, pois já é o próprio. Ela se benzeu e arregalou os olhos para mim. _ O que quer dizer? _ Que esta mulher é o próprio demo encarnado. Juanita quase caiu para trás. _ Por que está afirmando tal coisa? _ Porque posso ver o que mais ninguém neste lugar pode. _ E o que vê? _ Melhor que nem saiba, para que não lhe tire o sono. Mudei de assunto para que Juanita não ficasse impressionada. A madre passou por mim e olhou-me

fumegante. Ela sabia quem eu era. O demônio em seu corpo lhe disse. Como pode as pessoas aceitarem tais criaturas em seu aparelho? Alguns demônios passam-se por anjos ou mensageiros divinos. E estas pessoas acreditam piamente que são iluminadas. Mas aquela mulher sabia quem falava com ela. E o que era pior: havia certa cumplicidade entre os dois.

_Quero esta mulher em minha sala imediatamente. Os demais, voltem aos seus afazeres. Direi quando for a hora do espetáculo. - disse a um dos guardas ao passar por mim.

O guarda pegou-me pelo braço e conduziu-me junto à madre. Juanita parecia uma mariposa em volta da fogueira. Não sabia qual rumo tomar. Todos os demais ficaram olhando espantados, sem nada entender. Fui colocada do lado de fora da sala da nova madre superiora. O guarda ficou em pé ao lado, como se fosse uma estatueta. Fiquei parada, ali, por quase duas horas, sem poder me mover. Ao término da conversa que teve com as irmãs responsáveis pelo convento na ausência da madre Edwiges, fui mandada entrar. E pelos rostos entristecidos das duas irmãs ao saírem, pude sentir o que me estava esperando.

_ Estou a postos, madre Madylene. Em que posso servi-la? Entrei e fiquei em pé, no meio da sala. Ela circulou todo o cômodo com os braços para trás.

Quando já estava para dar a segunda volta em torno de mim, disse: _ Nunca mais mencione o meu nome, filha do demônio. Sei muito bem quem é. O Senhor disse-me

assim que entrei neste lugar e coloquei os olhos em você. Saiba que a partir de hoje não terá nenhuma regalia. E lhe será aplicado o castigo do silício, para puni-la de seus pensamentos impuros. A dor fá-la-á refletir sobre seus atos pecaminosos e mostrar-lhe-á a verdade.

Eu estava de cabeça baixa para demonstrar humildade. Sabia que não seria bom irritá-la ainda mais. Mas também não podia me calar diante de tais acusações injustas.

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_ Senhora, apenas lhe perguntei em que poderia ser útil. Que mal eu, uma pequena e insignificante criatura, posso vir a lhe causar?

Ela deu uma risada que mais parecia estar vindo das profundezas do inferno. _ Realmente, a mim nada pode fazer mesmo. Mas o anjo de Deus avisou-me, assim que coloquei os

pés neste convento pecaminoso, que eu deveria ser a mão da justiça aqui dentro. Você será a primeira que deverei punir.

Desta vez, olhei-a nos olhos fixamente e disse-lhe: _ Nós duas sabemos que não é o anjo de Deus quem lhe fala essas coisas. O seu rosto transfigurou-se na minha frente. O demônio estava irado e sentindo-se desafiado. Não

me deixei intimidar e prossegui: _ Nunca, nem sob tortura, nem sob pena de morte, irá me tirar a essência. Vou morrer porque

escolhi este destino. Escolhi aceitar a minha missão. Pode enganar seus superiores nesta terra, com sua postura de santa, mas sabe bem que posso vê-lo. Como mulher e como ser humano, nada posso fazer contra você. Mas, como mística, posso - e sabe muito bem disso. Tem medo de que eu possa libertar esta pobre mulher que vem sugando toda a sua energia vital.

O demônio jogou o corpo da madre ao chão e veio diante de mim. Era deforme e monstruoso. Sua voz era rouca e abominável aos ouvidos terrenos. Apertei as mãos uma contra outra, criando em volta de mim um círculo de proteção. No mesmo instante, uma luz formou-se ao meu redor e o círculo fechou-se. O demônio não podia entrar no círculo. O que está dentro não sai e o que está fora não entra. Esse é o significado do círculo. O demônio urrava e debatia-se como um louco. Falou comigo a língua que só Deus e ele poderiam entender. Respondi-lhe sem demonstrar o menor medo. Ele se espantou ao ver que eu podia entendê-lo. Apertei mais forte as mãos e, em oração, chamei por Heixe, que me socorreu de imediato.

Wallejo entrou naquele momento e presenciou a cena. Tentou entrar no círculo, mas foi impedido pelo campo de luz. Heixe ordenou que o demônio se fosse e ele mesmo, a contragosto, teve que se retirar. Na mesma hora, caí por terra. Wallejo veio socorrer-me e, espantado, olhou para Heixe, que desapareceu no ar.

_ Anna, meu amor, o que houve? – disse, abraçando-me. _ Ela é o nosso destino… - disse, sem forças ainda. Contei-lhe em pormenores tudo o que se sucedera. Ele ficou perplexo, olhando a madre caída e

desacordada ao chão. _ Sempre ouvi falar em demônios, mas nunca tinha visto um. Esta foi minha primeira vez. _ E não será a última, meu amor. Ele se afastou por alguns momentos, mas voltará muito mais

irado sobre nós dois, pois agora ele sabe que você também pode vê-lo. _ Não o temo. O verdadeiro Deus é conosco. _Disso tenho certeza. Mas este tipo de demônio influencia a mente das pessoas, principalmente as

que têm algum poder. É assim que ele age. Pode colocar alguém, como esta pobre mulher, para nos prejudicar.

_ Pobre? Ainda tem pena desta peste? Ela quase a matou e ainda lhe impôs castigos. _ Ela não sabe o que está fazendo. Este tipo de demônio toma a mente e o coração de suas vítimas,

deixando-as completamente dominadas. _ Quero que fuja comigo. Diga que vai fugir, por favor! Anna, não me importo comigo, mas não

quero deixar nada acontecer com você. A única solução que vejo, depois do que presenciei há pouco, é a fuga.

_ Não deixarei minha amiga Juanita para trás. Ela tem sido muito boa comigo nas últimas semanas. Não posso fugir sem ela.

_ Apenas diga que irá comigo. Não me importo com quem queira levar conosco, desde que diga que aceita fugir.

_ Sim, meu amor, irei contigo aonde quer que você vá.

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Ele beijou-me com doçura e ajudou-me a levantar do chão, pois nem havíamos percebido quanto tempo ficamos ali, naquela posição, abraçados. Em seguida, fomos em direção à madre. Colocamo-la à sua mesa, sentada na cadeira. Wallejo tentou reanimá-la. Quando a mulher despertou, sem saber de nada que me aconteceu, demos um caneco d’água a ela. Sua voz era outra, doce. Seu semblante era sereno, completamente diferente de quando o demônio estava nela. Era muito provável que ela teria pouco tempo de vida. Por algum motivo, aquele demônio não a deixaria nunca mais.

_ A senhora está bem, madre? - perguntou Wallejo. _ O que aconteceu? Onde estou? _ Está em sua sala. Parece ter tido uma indisposição. Pode ter sido causada pela viagem muito

longa. _ Entendo. Preciso ficar a sós. Depois falamos novamente. Wallejo e eu saímos imediatamente, sem mais nada a dizer. Avisamos ao guarda que a madre queria

ficar sozinha e que não queria ser incomodada por ninguém, como ela nos havia ordenado. Seguimos em silêncio pelos corredores, para não levantar suspeitas. Ao chegar próximo à igreja, ele disse:

_ Encontre-me hoje com a irmã Juanita perto do celeiro.Temos que combinar nossa fuga. _ Sim, falarei com ela imediatamente. Fui para o refeitório e vi a irmã Imaculada chorando. Percebi que a madre já havia aprontado das

suas! Tomei a tigela de mingau de aveia, meio a contragosto. Lavei todas as louças que estavam por lavar. Corri para a lavanderia, dobrei a pilha de roupas que estava por cima de um móvel. Corri com a costura do dia, não queria levantar nenhuma suspeita. Havia em todo o convento um clima de medo e tristeza. Aquela mulher mal havia chegado e já trouxera na bagagem o terror àquele lugar harmônico. A paz havia sido quebrada e, com certeza, aquele lugar nunca mais seria o mesmo.

Quando encontrei Juanita perto do poço, contei-lhe sobre os planos de Wallejo. Só que ela disse que não iria conosco, pois estava acima do peso e só iria nos atrapalhar em nossa jornada. Disse que, ficando por ali, não levantaria suspeitas caso precisássemos dela futuramente. Concordei com ela. À noite, logo após todos estarem dormindo, eu e Juanita fomos nos encontrar com Wallejo. Passamos para ele a decisão de Juanita e ouvimos, nos mínimos detalhes, os planos para a fuga. Não demoramos a conversa desta vez, porque o convento estava repleto de guardas por todos os lados. Iríamos esperar o momento certo para a fuga.

No dia seguinte, fui acordada aos safanões por várias pessoas, acompanhadas da madre superiora. Com ela, estavam duas irmãs de sua confiança, que pediram aos guardas para saírem da cela e colocaram em minha perna o silício. A dor era tamanha que as lágrimas escorreram dos meus olhos, sem que eu fizesse o menor esforço. Em volta do silício, foi colocado um pequeno cadeado que prendia as partes para que eu não pudesse soltá-lo. À medida que ela o apertava, o sangue escorria. Ela disse, por fim:

_ Isso é só começo. A cada dia, quero que um nó seja apertado. O sofrimento ensina aos pecadores a grandiosidade da fé.

Saiu em seguida, com suas apóstolas seguidoras. Fui para a sacristia encontrar Wallejo. Tentei disfarçar a dor que sentia, mas ele percebeu que eu estava estranha com ele.

_ O que houve? _ Nada, meu amor. Só acordei indisposta esta manhã. Ele tentou abraçar-me, mas me afastei, dizendo que não podíamos arriscar. Minha perna estava

latejando. Dei-lhe um beijo na testa e disse para confiar em mim. Fui saindo, em seguida. Quando eu estava já perto da porta, ele me puxou pelo braço.

_ Espere. Por que está puxando a perna? _ Acho que torci o pé, não lembro onde! Ele sacudiu a cabeça negativamente. _ Por que está mentindo para mim? Deixou um rastro de sangue por toda a igreja. Ao perceber o sangue escorrendo, desabei em prantos. _ A madre mandou que colocassem silício em minha perna direita esta manhã. Deve ter perfurado

minha carne. Está doendo demais.

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_ Então, vamos tirar agora! Não tema, serei cauteloso. _ Você não entende? _ Não fique com vergonha de mim! Casaremo-nos ao chegarmos a Londres. Não há mal que eu

veja suas pernas. - dizendo isso, ajoelhou-se e levantou o meu hábito. _ Desgraçada, maldita! Ela colocou cadeado. Temos que procurar um ferreiro imediatamente para

ver o que conseguiremos fazer. _ Não. Posso aguentar até a fuga. Mas, se tirar agora, elas irão perceber. Porque a madre deixou

bem claro que irá apertar um nó a cada dia. Ele desandou a chorar. Ajoelhei-me perto dele. _ Não quero que fique assim por mim. Vamos conseguir. Mas não podemos fraquejar agora. _ E como quer que eu fique, sabendo que estão matando você lentamente? _Passaria por tudo de novo se soubesse que o encontraria apenas por um segundo. Precisamos ter

cuidado. Tenho que voltar às minhas tarefas. Cuide-se. Ele não quis me deixar sair. Tive que ser forte. O dia custou a passar. A semana custou a passar…

E, quando percebi, já haviam se passado três meses. A dor, por causa dos ferimentos causados pelo silício, estava ficando insuportável. Já puxava a perna visivelmente. Ela estava ficando escurecida. Quase não me dava fome, por causa das febres. Havia noites que nem dormir eu conseguia. Minha perna já não sangrava, mas tinha muitas infecções. A madre não deixava que ninguém me ajudasse. Os únicos remédios eram o vinagre e o sal, mas já não faziam efeitos. As próprias irmãs que acompanhavam a madre comentavam que não poderiam mais fazer aquilo, porque eu perderia a perna se continuassem. Ela simplesmente ignorou.

Certa manhã, Juanita veio acordar-me, dizendo que eu tinha recebido visitas e estavam na sala da madre superiora, esperando-me. Quando ela viu o meu estado, ficou apavorada. Minha perna estava muito mal. Eu estava tendo calafrios. Fui apoiada em Juanita até a sala da madre superiora. Na entrada, antes de entrar, ela disse:

_ Vou falar com o padre Ângelo. Não a abandonarei, amiga. Acredite: ficarei com você até o fim. Sorri meio sem força e entrei. Fiquei sem palavras ao ver quem eram as minhas visitas. _ Minha nossa, você está verde! O que anda comendo? Muitas folhas, pelo que vejo! - disse a

condessa, com um sarcasmo ridículo. _ Madre, o que fizeram a ela? Sinto informar, minha querida, mas está péssima. _ O que os dois estão fazendo aqui? Vieram ter certeza de que eu havia morrido? Pois se é isso,

perderam o tempo. Estou muito bem. _ Não é o que vejo, queridinha! A propósito, viemos aqui comunicá-la do falecimento de seu pai.

Não que mereça. Mas, por uma questão de ética, achamos melhor comunicá-la. _ Meu pai faleceu? Como isso aconteceu? Sei que estava com a saúde debilitada, mas não era nada

de tão grave. O que foi que vocês fizeram, seus monstros? _ Ora, senhorita! Que acusações mais levianas! E logo comigo? Sempre fui fiel ao seu pai! Feriu-me

os sentimentos, quero que saiba disso! - virou-se, fingindo enxugar uma lágrima. _ Senhorita, sei bem como deve estar se sentindo. Espero poder fazer alguma coisa por você. Usarei

todo o poder que tenho para tirá-la daqui. Ainda a amo. Minha nobreza é tamanha que me fez perdoá-la. - disse o falso conde.

_ Que foi que aconteceu com o meu pai? _ Infelizmente, foi atacado por saltimbancos durante uma de suas viagens de negócios. Eles

assaltaram o pobre homem, que não teve a menor chance contra os larápios. Sabe o quanto eu gostava de seu pai! E ele de mim também. Tanto que me passou a procuração de todos os bens dele em meu nome. Disse, ainda em vida, que faria muito gosto de nossa união. É claro que também receberei o seu dote quando nos casarmos.

_ Nunca me casarei com o senhor. É um… Eu ia acusá-lo quando Wallejo entrou na sala, sem bater. _ Padre Ângelo, que insubordinação é essa? - disse a madre superiora, espantada.

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_ Disseram-me que a senhora havia passado mal. Então, vim correndo ao seu socorro. - ele falava com a madre, mas seu olhar era fixo em mim.

_ Como pode ter comprovado, estou muito bem. - disse a madre, desconfiada a nos olhar atentamente.

Quando ele viu quem era a figura à sua frente, seus olhos fumegaram. Ambos não mencionaram uma só palavra. Mas, pelo duelo de olhares, pude perceber que não era boa a situação.

_ Sim, madre! Pelo que pude perceber, está realmente muito bem... Só sinto quanto à companhia. _ O que o senhor está insinuando, padre Ângelo? Tenho aqui em minha sala pessoas nobres e que

vieram aqui de muito longe, preocupadas com o bem estar de uma interna. Tenho que afirmar que o senhor interrompeu uma reunião familiar.

_ Espero, realmente, que a senhora saiba o que está fazendo. Prometo voltar aqui em outro momento mais oportuno para falarmos sobre este assunto, que ficará pendente por hora.

Ele me olhou com piedade, mas não pôde demonstrar nenhum sentimento. Quando ele saiu, todos se olharam com cumplicidade. Pude perceber que algo estava sendo tramado contra nós. À noite, quando encontrei com Wallejo no celeiro, como já estava acostumada a fazer quase todas as noites, ele tentou cerrar o silício. Mas foi inútil: a cada tentativa, cortava a carne, que já estava muito debilitada.

_ Vamos fugir hoje. – disse ele, sem pestanejar. _ Não posso, amor. Vá você. Só servirei para atrasá-lo. Estou muito doente. Não conseguirei seguir

viagem. Meu fim já é este. _ Não vou deixá-la nunca aqui, minha amada. Vai comigo a qualquer preço. Ajudá-la-ei. Juntos,

conseguiremos. É a minha vida, o ar que respiro. Nunca a abandonarei. Ficaremos juntos para sempre. Imediatamente, coloquei a mão sobre sua boca, pois ele acabara de fazer uma jura eterna. _ Não faça isso, meu amor! Já lhe disse tantas vezes sobre perigo de uma jura... Poderemos ficar por

séculos presos um ao outro. _ Não me importo. Só quero ficar com você.

_ Então, esperemos mais uma semana, por favor! Prometo que depois irei com você aonde queira.

Juanita discordou da minha ideia. Mas, por fim, consegui convencê-los. A semana passou tortuosa. Meu quadro clínico piorava dia após dia. Eu e Wallejo éramos vigiados até durante as refeições, mas ele não se importava com nada. Não queria deixar-me nem um segundo. Mal fazia minhas tarefas. A irmã que ficava na cozinha também havia sido substituída por uma das irmãs de confiança da madre superiora. Guardas estavam espalhados por toda a parte. Não parecia um convento, mas uma prisão. Irmãs e noviças eram punidas diariamente. O medo espalhou-se de tal forma que algumas enlouqueceram, sendo levadas a manicômios. Até que, finalmente, aproximou-se o sábado: o dia escolhido para a nossa fuga. Estávamos dentro da sacristia, beijando-nos, e fomos flagrados pela madre superiora, que gritou:

_ Filhos de Satã estão maculando a casa de Deus! Guardas! Levem estes devassos para a prisão imediatamente.

Logo os guardas vieram ao socorro da madre, como cachorrinhos obedientes. Wallejo pulou à frente e disse:

_ A senhora não pode encostar um dedo em nós! Tenho uma carta do rei da França dando-me imunidade por serviços prestados e por ser um cavaleiro da ordem. Mereço um julgamento justo. Exijo que a senhora comunique os fatos ocorridos a meus superiores imediatamente, para que eles possam julgar-me dentro das leis.

Os olhos da mulher pareciam ter brasas de fogo. Mas, com isso, Wallejo estava ganhando tempo. _ Também quero que um médico seja chamado neste local, pois há vários doentes aqui e acredite,

irmã: seus crimes serão avaliados também. Fui levada à minha cela, onde permaneci sem poder sair por duas semanas. Um médico veio olhar-

me e tratou-me de tirar o silício. As feridas estavam cheirando muito mal. Wallejo, segundo Juanita, não

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estava sob prisão como eu, por causa da imunidade dada pelo rei. Todos os dias, mandava-me um girassol e um bilhete, confortando-me. Finalmente, os superiores de Wallejo chegaram ao mosteiro. Eram eles: Dom Servano Gusmano, ministro real; Lord Jean Perrion, chefe da guarda real; e Dom Renan Marcovilles, emissário do rei.

O julgamento de Wallejo durou quase um ano a fio. Ele estava sendo absolvido quando, certa manhã, aconteceu algo de inesperado. Wallejo entrou na igreja porque havia sido chamado por um de seus superiores. Ao chegar lá, encontrou um homem encapuzado apunhalando Dom Renan Marcovilles. Wallejo ainda conseguiu lutar com o assassino e tomar-lhe o punhal. Mas este foi mais ágil e conseguiu fugir. Wallejo abaixou-se perto do amigo e ele ia lhe contar quem era o assassino. Mas, de repente, viu-se rodeado de soldados e de todos os seus amigos! Haviam preparado uma emboscada para ele. Ele tentou explicar, mas ninguém o ouviu. Foi conduzido ao patíbulo e, em seguida, seria levado à corte. Wallejo, então, correu e apanhou um cavalo. Conseguiu fugir. Os guardas tentaram alcançá-lo, mas ele era muito ágil em cima de um cavalo. Assim, não foi apanhado. E eu, mais uma vez, fui abandonada pelo meu amor.

Mediante tais fatos, a madre novamente tomou posse de seu cargo. Os cavaleiros e os demais seguiram em direção à Roma para velar o corpo do companheiro assassinado e levar as notícias ao papa. Wallejo seria excomungado pelo papa e expulso da ordem. Ele era inocente, mas demonstrou covardia em todos os sentidos. Fui trancada em um calabouço frio e, novamente, colocaram o silício em minha perna. Meu diário foi roubado e trancado a sete chaves na sala da madre superiora, mas Juanita logo deu um jeito de afaná-lo para mim. Cavei um buraco ao chão, onde pude escondê-lo. A madre fez vistoria em minha cela várias vezes, mas nada achou. Minha cela era suja e úmida, de chão de terra. Havia ratos por todo o lado. Devido ao mau cheiro e ao estado de putrefação da minha perna, eles começaram a roer-me à noite. Já não tinha permissão de ter ninguém para me visitar, pois já estava nas últimas e havia pedido um padre para a extrema unção. Juanita acompanhou o padre até o calabouço, onde pude vê-la pela última vez. Juanita, ao me ver, correu e veio abraçar-me. Porém, afastei-a de junto de mim e disse, baixinho:

_ Ele me abandonou! Jurou amor eterno, mas me deixou aqui, ao relento. Nunca o teria abandonado. Quero que faça um último desejo meu.

Ela estava chorando muito, mas não me negou. _ Pare com isso! Não vai morrer nada. Ainda vamos juntas ouvir os cantos gregorianos na capela. _ Não os ouço mais. São tão bonitos, não são? _ Sim, são. Ela levantou o lençol e, ao ver como estava minha perna, imediatamente tapou o rosto com as

mãos. Até mesmo o padre, presente com mais outras duas freiras, esquivaram. Vi quando uma vomitou sem querer.

_ Estou muito mal, não é? Não sinto mais a perna. Ela havia granguenado. A carne estava se soltando dos ossos. Juanita segurou em minhas mãos,

tentando confortar-me. _ Não está nada. Está linda e saudável, como da primeira vez em que a vi. _ Há quanto tempo estou aqui? _ Três anos. _ Fui muito ruim. Por isso mereci tal castigo, não foi? _ Não, amiga. Não foi nada. É a pessoa mais maravilhosa que já conheci, de uma força e sabedoria

sem igual. Aprendi muito com você e passarei a sua história a todos que cruzarem o meu caminho. Queria sorrir, mas não tinha mais os meus dentes. Senti vergonha. _ Quero que saiba de uma coisa: Wallejo mandou cartas todos os dias em que esteve aqui nesta

prisão. Mas perdoe-me, amiga: achei que lhe escondendo isso, fá-la-ia suportar os dias. Falando isso, tirou um monte de cartas de dentro do hábito. _ Perdoe-me, por favor! Achei que estava a lhe fazer um bem.

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_ Quem sou eu para perdoar alguém. Sei que pensou no meu melhor. Só quero que as leia pra mim agora.

Ela começou a ler, uma a uma. Wallejo dizia que não me esquecera um só dia. Em algumas cartas, ele reclamava da falta de respostas. Mesmo sem resposta, ele me escrevia. A dor das palavras, causada pela distância e pelo suposto desprezo que ele achava que eu sentia por ele, fez-me chorar compulsivamente. Ele passou por muitas coisas ruins. Dormiu em ruas escuras e frias, fugindo da milícia, que estava sempre à sua busca. Viajou clandestinamente em uma caravela, cuja tripulação foi quase toda morta pela peste. Wallejo sofreu horrores. Naquele momento, estava de volta à Espanha, refugiado em um farol abandonado. Ele mencionava em uma de suas últimas cartas que, às vezes, ia à beira de um precipício e tentava se jogar lá de cima, mas o vento lhe dizia para não fazê-lo porque eu o amava. A certeza era tão grande que ele não o fez na esperança de me encontrar um dia novamente. Fiquei imaginando o lugar em meus pensamentos. Vi-o em visões. Como era azul o mar da Espanha! O mar que eu nunca realmente pude conhecer. Do alto do precipício, viam-se as rochas lá embaixo. O vento trazia o cheiro do mar. A relva que se formava na beira do precipício era úmida e macia... Meus cabelos voavam e eu me sentia livre. Juanita tentou me chamar para eu voltar a mim novamente, pois estava partindo. Segurei em suas mãos e disse:

_ Leve este diário a Wallejo. Deve-nos isso. Ela concordou com a cabeça. Olhei e vi uma enorme luz à minha frente: Heixe estava ali. Com mais

seis outros que não conhecia, pegou minha mão e senti paz. Meu corpo levitou e eu não estava mais suja ou ferida. Eles me sorriram e Heixe disse:

_ Seja bem-vinda, minha filha! Olhei para trás e vi Juanita chorando, muito abraçada ao meu corpo. Vi o padre jogando água benta

em mim, rezando em latim junto às freiras. Fui levada à enorme luz que surgiu à minha frente. Chegando do outro lado do lugar - que chamei de cidade dos anjos-, fui levada a um hospital, onde permaneci adormecida por dias. Quando acordei, Heixe cumprimentou-me com um largo sorriso e apresentou-me a um jovem que se chamava Laionel. Laionel era um rapaz esguio, tranquilo, quase não dava para ouvi-lo falar. Todos se trajavam de linho branco. Aquela vestimenta era padrão. Laionel explicou-me várias coisas, inclusive o fato por eu ter estado dormindo durante tanto tempo. Era para eu recuperar minhas forças, pois em minha vida terrena eu havia tido muitas contrariedades. Por isso, precisei pôr meu espírito em repouso para que, ao acordar, estivesse mais serena e pudesse compreender a grandeza da minha missão. Segundo ele, eu já havia falecido havia dois anos no plano terreno. Laionel passou-me sua sabedoria. Logo depois, conduziu-me à colônia onde eu ficaria. A colônia de La paz era maravilhosa. Suas casas eram em estilo colonial, com enormes jardins ao redor de todas elas. Tudo era tão limpo e organizado! Conheci meus companheiros, eles dividiram a casa comigo. José Manuel havia sido um carpinteiro e, em sua vida terrena, foi um homem muito revoltado, pois não estava satisfeito com sua condição humilde. Ele estava aguardando ser transferido de colônia para ser preparado para uma nova encarnação, onde teria que ser um homem rico, porém escravo de seus bens e da sociedade à sua volta. Isso o faria valorizar a liberdade que teve quando era um simples carpinteiro, que tinha uma bela família e não soube dar valor a este bem tão precioso.

Havia, também, Maria Aparecida, uma mulher lindíssima. Quando encarnada, foi uma cortesã e levou muitas jovens a segui-la no caminho da prostituição. Maria tirou muitos maridos de suas esposas e deixou muito rastro de sofrimento e revolta por onde passou. Ainda não sabia qual seria seu destino ao reencarnar, pois estava em estudos para aprender a lidar com seu remorso. Laionel, por meses, conduziu-me a lugares diversos, mostrando-me várias colônias e ensinando-me diversas coisas. Por fim, quando eu estava preparada e já havia se passado mais alguns anos, ele me disse:

_ Tenho permissão de levá-la à Terra para ver sua amiga Juanita e o padre Ângelo. Fiquei muito feliz. Já havia aprendido a volitar e era a primeira vez que eu ia poder passar pelo

portal. Descemos à Terra, como se fosse fração de segundos. A impressão que dava é que caíamos. E dava para se ver vários planos terrenos ao mesmo tempo, e várias épocas. Era como se fosse um túnel do tempo. Chegamos ao plano terreno, por fim. Laionel mostrou-me Juanita, que estava em uma

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taberna, escondida da milícia. Ela havia fugido do convento e estava por anos à procura de Wallejo, para entregar o diário que eu havia pedido a ela. Emocionei-me ao ver sua fidelidade a mim. Minha missão parecia não ter terminado ainda, pois tive que induzi-la mentalmente ao local onde Wallejo se encontrava.

Juanita passou por várias etapas difíceis até chegar ali, onde estava. Foi torturada e perdeu a visão de um dos olhos. Por fim, conseguiu escapar e estava ajudando os pobres e miseráveis. Mantinha-se escondida em tabernas e, às vezes, em celeiros. Ela ensinava pessoas analfabetas a ler e a escrever. Elas lhe pagavam como podiam. Em uma noite, materializei-me a ela. Ensinei-lhe o caminho até onde Wallejo estava. Fi-la pensar estar sonhando, pois não temos o direito de assustar ninguém. Se um espírito faz isso, por certo não tem luz, é um obsessor. Ao cantar do primeiro galo daquela manhã, ela se aprontou e saiu para não ser vista por ninguém. Pagou um cocheiro para lhe levar ao topo da montanha onde Wallejo se escondia. Ele estava arando a terra. Ao avistar a pequena charrete, foi correndo ao encontro para ver quem era. Quando viu de quem se tratava, foi ao seu encontro, de braços abertos.

_ Onde está Anna? Não veio com você? Juanita abaixou a cabeça, tristemente, dizendo: _ Eis aqui tudo o que sobrou dela. - entregando a ele o meu diário. Ele, no entanto, ao vê-lo nas mãos de Juanita, prostou-se ao chão como uma ovelha caindo aos

prantos. Depois disso, convidou-a para dentro de sua casa, onde conversaram sobre tudo o que havia se passado comigo desde a sua fuga. Juanita contou-lhe que a madre, ao ver-se destituída de seu cargo, suicidou-se. E que ela e as irmãs que ficaram no convento iriam ser transferidas para outro. Foi durante esta transferência que ela fugiu, fingindo cair em um rio de correnteza forte. Deram-na como morta. Mas ainda tinha medo de ser encontrada. Por isso, vivia às escondidas.

_ Não a abandonei. Sempre lhe mandei as cartas. Avisei que, assim que tudo estivesse bem, buscá-la-ia e tirá-la-ia daquele lugar. Mas ela nunca as respondeu.

_ Se que fui culpada. Achei que, entregando suas cartas à Anna, apenas estaria alimentando seus sonhos. - disse ela, com a cabeça baixa

_ Não podia ter feito isso conosco! Voltei ao convento, mas ele estava todo incendiado. Não havia nenhum vestígio de ninguém. Fiquei sem saber onde procurar. Imaginei que Anna tivesse se casado com aquele crápula para não mais passar os sofrimentos que a madre lhe impunha.

_ Anna jamais faria isso. Ela o amou até o último momento de sua vida. _ E como conseguiu guardar este diário? _ Fiz um pequeno canteiro de girassóis, próximo ao local onde Anna foi enterrada. Enterrei-o.

Assim, ficou fácil achá-lo mais tarde. O engraçado é que os girassóis nunca morriam. Várias vezes a madre superiora arrancou as flores. Mas, no dia seguinte, lá estavam elas novamente, lindas como nunca.

Ele sorriu, emocionado. _ Obrigado por trazê-la para perto de mim novamente. _ Não faço isso pelo senhor. Faço isso por Anna. Devia isso a ela. Além do mais, nós é que temos

que agradecê-la. Pois tenho certeza de que ela foi responsável por eu ter encontrado o caminho até você. Juanita, então, contou-lhe de seu sonho, e de como sempre se desencontrava do caminho a seguir.

Eles tomaram chá juntos e, depois, despediram-se. Seria a última vez que os dois se veriam. Juanita foi pega em uma emboscada. Depois de ter sido torturada para dizer onde estava Wallejo, não resistiu e faleceu. Fomos recebê-la como muito gosto. Estava em recuperação, no hospital.

Seis semanas passaram-se e Wallejo recebeu uma carta de Maria, dizendo que iria encontrá-lo e que gostaria de que ele lhe entregasse o meu diário, para poder passar minha história a todas as irmãs da irmandade. Imediatamente, ele a respondeu, dizendo que seria um prazer lhe entregar em mãos tal tesouro. Só que Wallejo estava sendo vigiado e não sabia. O mensageiro que lhe levou a carta de Maria foi seguido e não retornou com a resposta para ela. Certa manhã, Wallejo estava em pé, à beira do precipício, como tinha o costume de fazer todas as manhãs. Assim, ele orava e comungava com a natureza. Às vezes, deixava-lhe sentir meu cheiro ao vento. Nunca abandonei o meu amor. Sempre que

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podia, estava perto dele durante os seus sonhos. Naquela manhã, uma pessoa misteriosa aproximou-se de Wallejo.

_ Então, finalmente o encontrei de novo. - disse o homem, aproximando-se por trás. Ele virou e reconheceu o encapuzado, dizendo: _ Ao menos retire esta capa e deixe-me olhar nos olhos do assassino de meu amigo. O homem retirou a capa e, para a surpresa de Wallejo,... _ Eu deveria ter suspeitado. Mas por que assassinou Dom Renan Marcovilles? Ele nada lhe fez. Era

um bom homem. E em que ele poderia estar interferindo em seus planos? _ Sim, concordo com você. Ele era bom demais, e estava interferindo, sim, em meus planos. Pois,

antes de chegarem ao convento, procurei-os e tentei-lhes convencer dos benefícios que poderiam ter se ficassem ao meu lado. Mas Dom Renan foi o único que não quis sequer me ouvir. E o que é pior: ainda convenceu os demais de, ao voltarem a Roma, fazerem uma denúncia formal contra mim. Além do mais, o senhor conseguiu conquistar o amor da única mulher que eu realmente amei nesta vida.

_ Amou? O senhor chama o que fez à Anna de amor? Jogou-a naquele lugar ao descaso da miséria! Provavelmente foi o culpado pelo assassinato do pai dela.

_ O senhor não entende, não é? O sucesso tem seu preço. Além do mais, Anna era muito orgulhosa e precisava de uma lição. Mas… ela morreu e a vida continua.

_ O senhor é um doente! Senhor, deixou que Anna morresse por capricho e por orgulho ferido. Isso não era amor. Jamais saberá o que é amar e ser amado. Não poderei deixá-lo impune de seus crimes. Eu mesmo farei a denúncia contra você. Aliás, adiei muito tempo isso.

_ Sim, adiou. Foi um covarde como eu. O senhor a deixou para salvar a própria pele. Creio não sermos tão diferentes assim. Ela foi uma tola de tê-lo escolhido. Bastava um sim e teria tido uma vida de rainha.

_ Sabe muito bem que vivo esta culpa. Fui um covarde, sim. Estava esperando o momento de resgatá-la. Mas esperei tempo demais, sei disso! Ela era e sempre será o meu único amor. Nunca a esquecerei. Se ela estava certa quanto a outras vidas… procurá-la-ei pela eternidade se assim for preciso.

O falso conde deu uma sonora gargalhada. _ Acredita nestas sandices? Nunca a terá de novo porque, se isso fosse verdade, eu nunca os

deixaria em paz. Quero que saiba de uma coisa: em breve os guardas e outros estarão aqui. Eu lhes disse que encontrariam o assassino de Dom Renan aqui, neste local, mas esqueci de dizê-los que o homem, após confessar-me a culpa, suicidou-se.

Dizendo isso, investiu contra Wallejo e o jogou do despenhadeiro. Em seguida, jogou o capuz para confirmar o crime. Ele procurou o meu diário, mencionado na carta de Wallejo à Maria, mas nada achou. Quando os soldados e os demais chegaram, ele disse exatamente a versão que tinha já arquitetado. Todos acreditaram que Wallejo era o assassino de seu amigo e também do duque. Suicidou-se porque a culpa lhe pesava os ombros. Alguns dias depois, Maria chegou ao local, pois havia ficado sabendo da tragédia através dos boatos que se espalharam no vilarejo próximo à floresta onde ela morava. Ela tentou achar o diário, mas nunca recebera a carta de Wallejo que dizia Onde jaz meu amor, deixarei minha alma.

Wallejo voltou ao mosteiro para ver onde eu havia sido enterrada. Em cima do meu túmulo, plantou novamente sementes de girassol, deixando enterrado debaixo dos girassóis, novamente, o meu diário. Embora Maria tenha suspeitado que Wallejo houvesse escondido o meu diário nas ruínas do mosteiro, jamais ousou mexer no meu túmulo por achar que seria um sacrilégio. Voltou, assim, triste e sem esperança para o meio das irmãs, onde viveu o resto de seus dias. Os girassóis bailavam com o vento, guardando para sempre o meu segredo.

Ainda hoje o vento silva no alto do despenhadeiro, clamando por justiça e verdade. Por isso, conto-lhes esta história. Meu amor precisava que soubessem que ele nunca assassinou ninguém. E que também não era um suicida. Wallejo ficou por anos vagando em desespero, sem querer confiar nos irmãos. Era um espírito revoltado e sem luz. Aceitou reencarnar, mas não nos encontramos em outra vida tão

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rapidamente. Também reencarnei algumas vezes, mas nunca fui feliz no amor, porque estava presa a uma jura.

Hoje, Wallejo é um espírito iluminado e ajuda as pessoas a compreenderem suas divergências. Vocês devem estar se perguntando E Wallejo e Anna? Encontraram-se? Houve, sim, um encontro entre nós. Tivemos uma oportunidade de nos encontrar e de resgatar nossas vidas. Mas isso é outra história...

“Às vezes, cometemos erros dos quais nunca nos perdoaremos. Não existe uma forma de voltarmos atrás. O melhor é pensar antes de seguir com as ideias e vontades. O ser humano é frágil e fraco porque sucumbe às vontades do aparelho. Não se preocupa com o mal que faz ao espírito. Essas consequências podem levar a várias encarnações para que este espírito aprenda a controlar as emoções e cresça - o que pode atrasar a sua evolução. Pense nisso. Muita paz e muita luz”.

(Padre Ângelo Wallejo Moralles).

Fim.