o santo inquerito - dias gomes

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  • 8/8/2019 O Santo Inquerito - Dias Gomes

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    Desvendando teatro (www.desvendandoteatro.com)

    O Santo Inqurito(Dias Gomes)

    Primeiro Ato

    (O palco contm vrios praticveis, em diferentes planos. No constituem propriamenteum cenrio, mas um dispositivo para a representao, que completado por umarotunda. total a escurido no palco e na platia. Ouve-se o rudo de soldadosmarchando. A princpio, dois ou trs, depois quatro, cinco, um peloto. Soa uma sirenede viatura policial, cujo volume vai aumentando, juntamente com a marcha, at chegarao mximo. Ouvem-se vozes de comando confusas, que tambm crescem com os outrosrudos at chegarem a um ponto mximo de saturao, quando cessa tudo, de sbito, eacendem-se as luzes. As personagens esto todas em cena: Branca, o Padre Bernardo,

    Augusto Coutinho, Simo Dias, o Visitador, o Notrio e os guardas)

    PADRE BERNARDO - Aqui estamos, senhores, para dar incio ao processo. Os queinvocam os direitos do homem acabam por negar os direitos da f e os direitos de Deus,esquecendo-se de que aqueles que trazem em si a verdade tm o dever sagrado deestend-la a todos, eliminando os que querem subvert-la, pois quem tem o direito demandar tem tambm o direito de punir. muito fcil apresentar esta moa como umanjo de candura e a ns como bestas sanguinrias. Ns que tudo fizemos para salv-la,

    para arrancar o Demnio de seu corpo. E se no conseguimos, se ela no quis separar-sedele, de Satans, temos ou no o direito de castig-la? Devemos deixar que continue a

    propagar heresias, perturbando a ordem pblica e semeando os germes da anarquia,

    minando os alicerces da civilizao que construmos, a civilizao crist? No vamosesquecer que, se as heresias triunfassem, seramos todos varridos! Todos! Eles noteriam conosco a piedade que reclamam de ns! E a piedade que nos move a abrir esteinqurito contra ela e a indici-la. Apresentaremos inmeras provas que temos contra aacusada. Mas uma evidente, est vista de todos: ela est nua!

    BRANCA - (Desce at o primeiro plano) No verdade!

    PADRE BERNARDO - Desavergonhadamente nua!

    BRANCA - Vejam, senhores, vejam que no verdade! Trago as minhas roupas, comotodo o mundo. Ele que no as enxerga!

    (Padre sai, horrorizado)

    BRANCA - Meu Deus, que hei de fazer para que vejam que estou vestida? verdadeque uma vez numa noite de muito calor eu fui banhar-me no rio... E estava nua.Mas foi uma vez. Uma vez somente e ningum viu, nem mesmo as guriats quedormiam no alto dos jeribs! Ser por isso que eles dizem que eu ofendi gravemente aDeus? Ora, o senhor Deus e os senhores santos tm mais o que fazer que espiar moastomando banho altas horas da noite. No, no s por isso que eles me perseguem e me

    torturam. Eu no entendo... Eles no dizem... S acusam, acusam! E fazem perguntas,tantas perguntas!

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    VISITADOR - Come carne em dias de preceito?

    BRANCA -No...

    VISITADOR - Mata galinhas com o cutelo?

    BRANCA -No, torcendo o pescoo.

    VISITADOR - Come toicinho, lebre, coelho, polvo, arraia, aves afogadas?

    BRANCA - Como...

    VISITADOR - Toma banho s sextas-feiras?

    BRANCA - Todos os dias...

    VISITADOR - E se enfeita?

    BRANCA - Tambm...

    VISITADOR - Quanto tempo leva enfeitando-se?

    NOTRIO - Quanto tempo?

    TODOS - Quanto tempo? Quanto tempo?

    (Saem todos, exceto Branca)

    BRANCA -No sei, no sei, no sei... Oh, a minha cabea... Por que me fazem todasessas perguntas, por que me torturam? Eu sou uma boa moa, crist, temente a Deus.Meu pai me ensinou a doutrina e eu procuro segui-la. Mas acho que isso no o maisimportante. O mais importante que eu sinto a presena de Deus em todas as coisas queme do prazer. No vento que me fustiga os cabelos, quando ando a cavalo. Na gua dorio, que me acaricia o corpo, quando vou me banhar. No corpo de Augusto, quando roano meu, como sem querer. Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentado, commuita farofa, desses que fazem a gente chorar de gosto. Pois Deus est em tudo isso. Eamar a Deus amar as coisas que Ele fez para o nosso prazer. verdade que Deus

    tambm fez coisas para o nosso sofrimento. Mas foi para que tambm o temssemos eaprendssemos a dar valor s coisas boas. Deus deve passar muito mais tempo na minharoa, entre as minhas cabras e o canavial batido pelo sol e pelo vento, do que noscorredores sombrios do Colgio dos Jesutas. Deus deve estar onde h mais claridade,

    penso eu. E deve gostar de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e gozandoessa liberdade, porque foi assim que nasceram e assim devem viver. Tudo isso queestou lhes dizendo, na esperana de que vocs entendam... Porque eles, eles noentendem... Vo dizer que sou uma herege e que estou possuda pelo Demnio. E issono verdade! No acreditem! Se o Demnio estivesse em meu corpo, no teriadeixado que eu me atirasse ao rio para salvar Padre Bernardo, quando a canoa viroucom ele!...

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    PADRE BERNARDO - (Fora de cena, gritando) Socorro! Aqui del rei! Branca saicorrendo. Volta, amparando Padre Bernardo, que caminha com dificuldade, quasedesfalecido. Ela o traz at o primeiro plano e a o deita, de costas. Debrua-se sobre elee pe-se a jazer exerccios, movimentando seus braos e pernas, como se costuma jazercom os afogados. Vendo que ele no se reanima, cola os lbios na sua boca, aspirando e

    expirando, para levar o ar aos seus pulmes.

    PADRE BERNARDO - (De olhos ainda cerrados, balbucia) Jesus... Jesus, Maria,Jos...

    (Ele se vai reanimando aos poucos. Abre os olhos e v Branca, de joelhos, a seu lado)

    PADRE BERNARDO - Obrigado, Senhor, obrigado por terdes atendido ao meu apelodesesperado... No sou merecedor de tanta misericrdia. (Ele beija repetidas vezes umcrucifixo que traz na mo) Alma de Cristo, santificai-me; Corpo de Cristo, salvai-me;Sangue de Cristo, inebriai-me...

    BRANCA - Achava melhor o senhor deixar pra rezar depois. Agora era bom quevirasse de bruos e baixasse a cabea pra deixar sair toda essa gua que engoliu.

    (Ajudado por ela, ele vira de bruos e baixa a cabea. Ela pressiona sua nuca, parafazer sair a gua)

    BRANCA - Se eu no chego a tempo, o senhor bebia todo o rio Paraba...

    PADRE BERNARDO - (Senta-se, meio atordoado ainda) A minha canoa?...

    BRANCA - A canoa? Seguiu emborcada, rio abaixo. Tinha alguma coisa de valor?

    PADRE BERNARDO - Tinha, o cofre com as esmolas...

    BRANCA - Muito dinheiro?

    PADRE BERNARDO - Bastante.

    BRANCA - Agora deve estar no fundo do rio.

    PADRE BERNARDO - S consegui agarrar o crucifixo; tinha de escolher, uma coisaou outra...

    BRANCA - Foi uma pena. Com o dinheiro, o senhor talvez comprasse dois crucifixos.E quem sabe ainda sobrava.

    PADRE BERNARDO -No diga isso, filha!

    BRANCA - Por qu?

    PADRE BERNARDO - Porque o Cristo... No coisa que se compre. Tivesse eu

    escolhido o cofre e certamente a esta hora estaria no fundo do rio com ele. Foi Jesusquem me salvou.

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    BRANCA - (Timidamente) Eu ajudei um pouco...

    PADRE BERNARDO - Eu sei. Voc foi o instrumento. No estou sendo ingrato. Seique arriscou a vida para me salvar.

    BRANCA -No foi tanto assim. O rio aqui no muito fundo e a correnteza no lto forte. Quando a gente est acostumada...

    PADRE BERNARDO - Acostumada?...

    BRANCA - Venho banhar-me aqui todos os dias. Sei nadar e salvar algum que est seafogando. s puxar pelos cabelos. Com o senhor foi um pouco difcil por causa datonsura. Tive de puxar pela batina. Me cansei um pouco, mas estou contente comigomesma. Hoje vai ser um dia muito feliz para mim.

    PADRE BERNARDO - Deus lhe conserve essa alegria e lhe faa todos os dias praticar

    uma boa ao, como a de hoje.

    BRANCA -No fcil. Acho que as boas aes s valem quando no so calculadas. EDeus no deve levar em conta aqueles que praticam o bem s com a inteno deagradar-Lhe. Estou ou no estou certa?

    PADRE BERNARDO - Bem...

    BRANCA -No foi querendo agradar a Deus que eu me atirei ao rio para salv-lo. Foiporque isso me deixaria satisfeita comigo mesma. Porque era um gesto de amor ao meusemelhante. E no amor que a gente se encontra com Deus. No amor, no prazer e naalegria de viver. (Ela nota que o Padre se mostra um pouco perturbado com as suas

    palavras) Estou dizendo alguma tolice?

    PADRE -No fundo, talvez no. Mas a sua maneira de falar... Quem o seu confessor?

    BRANCA - No tenho confessor. Vivo aqui, no Engenho Velho, que de meu pai,Simo Dias, que o senhor deve conhecer de nome. Custo a ir cidade.

    PADRE -No vai missa, aos domingos, ao menos?

    BRANCA -Nem todos os domingos. Mas no pense que porque no vou diariamente igreja no estou com Deus todos os dias. Fao sozinha as minhas oraes, rezo todas asnoites antes de dormir e nunca me esqueo de agradecer a Deus tudo o que recebo Dele.

    PADRE - Gostaria de discutir com voc esses assuntos. No hoje, porque estamosambos molhados, precisamos trocar de roupa.

    BRANCA - Vamos l em casa, o senhor tira a batina e eu ponho pra secar. Posso lhearranjar uma roupa de meu pai, enquanto o senhor espera.

    PADRE - (A proposta parece assumir para ele uns aspectos de tentao) No... Isso

    no direito...

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    BRANCA - Por que no?

    PADRE - J lhe dei muito trabalho por hoje. E preciso voltar o quanto antes ao colgio.

    BRANCA - Que colgio?

    PADRE - O Colgio dos Jesutas. Sou o Padre Bernardo.

    BRANCA - L aceitam moas?

    PADRE -No... S meninos, rapazes.

    BRANCA - Por que nunca aceitam moas nos colgios?

    PADRE - Porque moas no precisam estudar.

    BRANCA -Nem mesmo ler e escrever?

    PADRE - Isso se aprende em casa, quando se quer e os pais consentem.

    BRANCA - (Com certo orgulho) Eu aprendi. Sei ler e escrever. E Augusto diz que faoambas as coisas melhor do que qualquer escrivo de ofcio.

    PADRE - Quem Augusto?

    BRANCA - Meu noivo. Foi ele quem me ensinou. Mas foi preciso que eu insistissemuito e quase brigasse com meu pai. to bom.

    PADRE - Ler?

    BRANCA - Sim. Sabe as coisas que mais me divertem? Ler estrias e acompanharprocisso de formigas. (O Padre ri) Srio. Tanto nos livros como nas formigas a gentedescobre o mundo. (Ri) Quando eu era menina, conhecia todos os formigueiros doengenho. O capataz botava veneno na boca dos buracos e eu saa de noite, de panela em

    panela, limpando tudo. Depois ia dormir satisfeita por ter salvo milhares de vidas.

    (O Padre espirra)

    BRANCA - Oh, mas o senhor com essa roupa molhada no corpo e eu aqui contandoestrias. O senhor me desculpe...

    PADRE - No tenho de que desculp-la, tenho que lhe agradecer, isto sim. Gostariamuito de continuar a ouvir as suas estrias. Todas, todas as estrias que voc tiver parame contar.

    BRANCA - Pois venha, venha nos visitar l no engenho. Eu me chamo Branca.

    (Ela beija a mo que ele lhe estende)

    PADRE - Branca... Voc um dos tesouros do Senhor. Preciso cuidar de voc.

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    (Sai)

    BRANCA - (Acompanha a sada do Padre, envaidecida com as suas ltimas palavras.Depois desce at a boca de cena, dirigindo-se platia) Ele disse isso, sim. Disse queeu era um dos tesouros do Senhor e precisava cuidar de mim. No que eu fosse vaidosa

    a ponto de acreditar. Mas ele viu que eu era uma boa moa e o Demnio no era pessoadas minhas relaes. Muito menos podia estar em meu corpo, pois coisa provada queSatans quando v uma cruz corre mais do que o no-sei-do-que diga. Ele tinha umcrucifixo e devia saber disso. Tanto que voltou, alguns dias depois.

    (Muda a luz)

    AUGUSTO - (Entra) Voltou?

    BRANCA - Esta tarde. Pedi a ele que ficasse mais um pouco pra conhecer voc. Masele tinha hora de chegar no colgio. Os jesutas se submetem a uma disciplina muito

    rigorosa. Parecem militares.

    AUGUSTO - E ningum menos militar do que Cristo. Se Ele voltasse terra e entrassepara a Companhia de Jesus, ia estranhar muito.

    (Sentam-se a boa distncia um do outro, como no noivado antigo)

    BRANCA - Foi pena, queria que voc o conhecesse. um bom padre. (Ri) Se voc ovisse engolindo gua e gritando: Aqui del rei! Que Deus me perdoe, mas depois medeu uma vontade de rir.

    AUGUSTO - Padre Bernardo... Acho que j ouvi falar dele.

    BRANCA - J?

    AUGUSTO - Era padre adjunto do visitador do Santo Ofcio, em Pernambuco, quandoPero da Rocha foi condenado.

    BRANCA - Condenado, por qu?

    AUGUSTO - Por trabalhar aos domingos e negar a virgindade de Nossa Senhora.

    Degredo por dois anos, foi a pena; tendo antes que andar por todo o Recife, com grilhoe barao, apontado execrao pblica.

    BRANCA - Agora me lembro. Foi no ano passado. Mas era um herege perigoso. Atiroude arcabuz no familiar do Santo Ofcio, quando o foram prender.

    AUGUSTO - Concordo com o degredo, no concordo com a humilhao. Pero daRocha um herege, mas um homem. Merecia ser punido, morto, mas com respeito.Eu estava no Recife e o vi passar, com o barao no pescoo, tangido como um co, entreinsultos e pedradas de uma multido que ria e incentivava a violncia. E nuncaesquecerei o seu olhar. Parecia dizer: Isto que aqui vai, um homem. Um ser feito

    semelhana de Deus.

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    BRANCA - Mas ele devia ter culpa. Muita culpa. Se Padre Bernardo o julgou. Se oSanto Ofcio o condenou. Padre Bernardo tem o olhar transparente das pessoas de almalimpa. E o Santo Ofcio misericordioso e justo.

    AUGUSTO - No o Santo Ofcio. que em nome dele, em nome da Igreja, do

    prprio Deus, s vezes cometem-se atos que Ele jamais aprovaria. Em nome de umDeus-misericrdia, praticam-se vinganas torpes, em nome de um Deus-amor, pregam-se o dio e a violncia. Os rosrios so usados para encobrir toda sorte de interesses queno so os de Deus, nem da religio.

    BRANCA - (Fita-o com admirao e amor) Voc o mais justo e o melhor de todos oshomens.

    AUGUSTO - Eu?

    BRANCA - Sim, e por isso que se revolta. Porque justo e bom.

    AUGUSTO - Sou apenas cristo. E no momento talvez possa dizer, sem blasfmia, quesou mais cristo do que Sua Santidade, o Papa, porque tenho o corao repleto de amor.

    (Ele toma a mo dela e beija, calorosamente. Branca cerra os olhos, seu corpo pareceinvadido por um gozo infinito. Sbito, estremece, numa convulso, puxa a mo,rapidamente. Levanta-se)

    AUGUSTO - Que foi?

    BRANCA - Um calafrio... A morte passou por aqui.

    AUGUSTO -No diga tolices.

    BRANCA - Sinto isso toda a vez que voc me beija. Um calafrio de morte... Por queser que o amor d essa tristeza imensa, essa vontade de morrer? Deve haver um pontoonde o amor e a morte se confundem, como as guas do rio e do mar.

    (Ele roa os lbios nos cabelos dela)

    BRANCA - Que est fazendo?

    AUGUSTO - Gosto de aspirar o perfume dos seus cabelos.

    BRANCA - Eles cheiram a qu?

    AUGUSTO - A capim molhado.

    (Muda a luz. Branca desce at o primeiro plano, enquanto Augusto sai)

    BRANCA - Capim molhado... Vocs no acham que se eu estivesse possuda doDemnio meus cabelos deviam cheirar a enxofre? No uma coisa lgica, uma prova

    evidente da minha inocncia? Mas eles no aceitam as coisas lgicas, as coisas simplese naturais. Eles s aceitam o mistrio.

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    (Muda a luz. Padre Bernardo entra e estende a mo a Branca)

    PADRE - Venha...

    (Toma-a pela mo e a leva a percorrer todos os planos do cenrio. Branca passeia os

    olhos em torno, como se contemplasse as altas paredes de um templo)

    PADRE - Ento?

    BRANCA -No me sinto bem.

    PADRE -No se sente bem na Companhia de Jesus?

    BRANCA - Falta sol. Claridade. Deus luz. No ?

    PADRE - tambm recolhimento. Voc precisa habituar-se sombra, ao silncio e

    solido. A solido necessria para se ouvir a voz de Deus. Foi na solido do Sinai queDeus entregou a Moiss as tbuas da Lei. Foi na solido da Palestina que Joo Batistarecebeu a plenitude do Esprito Santo.

    BRANCA - Foi para isso que me trouxe aqui?

    PADRE - No. Queria que voc conhecesse o colgio. Mas queria, principalmente,conhec-la mais a fundo.

    BRANCA - J lhe fiz a minha confisso, j me conhece tanto quanto eu mesma. Maisat, porque lhe disse coisas que a mim mesma no teria coragem de dizer.

    PADRE - Sei e estou tranqilo agora, porque poderei proteg-la e salv-la.

    BRANCA - Salvar-me?

    PADRE - Voc me estendeu a mo uma vez e me salvou a vida; agora a minha vez deretribuir com o mesmo gesto.

    BRANCA - Mas eu no estou em perigo, padre.

    PADRE - Toda criatura humana est em permanente perigo, Branca. Lembre-se de queDeus nos fez de matria frgil e deformvel. Ele nos moldou em argila, a mesma argilade que so feitos os cntaros, que sempre um dia se partem.

    BRANCA - (Ri) Tenho um cntaro que meus avs trouxeram de Portugal. Durou trsgeraes e at hoje no se partiu.

    PADRE - Naturalmente porque sempre teve mos cuidadosas a lidar com ele e a proteg-lo. Queria que voc me permitisse proteg-la tambm, defend-la tambm,porque uma criatura to frgil e to preciosa como esse cntaro.

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    BRANCA - Eu lhe agradeo. Mas no acho que merea tantos cuidados de sua parte.Sou uma criatura pequenina e fraca, sim, mas no me sinto cercada de perigos etentaes.

    PADRE - A segurana com que voc diz isso j , em si, um perigo. Prova que voc

    ignora as tentaes que a cercam.

    BRANCA - Talvez eu no ignore, mas aceite como uma coisa natural.

    PADRE - Pior ainda. Ningum pode aceitar o Demnio como companheiro de mesa.

    BRANCA - Eu no disse isso.

    PADRE - Se aceitamos a sua existncia como coisa natural, acabamos por admiti-locomo parceiro. Porque, no tenha dvidas, o Diabo est a todo o momento a nos rondaros passos, a se insinuar e a se infiltrar. E principalmente os ingnuos, os sem-maldade,

    como voc, que ele escolhe para seus agentes. um erro imaginar que Satans prefereos maus, os corruptos, os ateus. Engano. Satans escolhe os bons, os inocentes, os

    puros, porque so eles muito teis e insuspeitos na propagao de suas idias. Repareque as grandes heresias surgem sempre de pessoas que pretendem salvar a humanidade.Por isso, quando encontro algum que se julga to prximo de Deus que pode at senti-lo em sua prpria carne, no ar que respira, ou na gua que bebe, temo por essa criatura.Porque ela deve estar na mira do Diabo.

    BRANCA - Se for o meu caso, o Diabo vai perder tempo e munio. E vai acabarcansando. Garanto.

    PADRE - O Diabo no se cansa nunca. E no devemos correr dele, devemos enfrent-loe obrig-lo a fugir de ns. Para o cristo, Branca, toda prova, toda tentao um meiode santificao e a vida na terra s vale como preo para ganhar o cu.

    BRANCA - Mas eu no quero ser santa. Minhas pretenses so bem mais modestas.No pela ambio que o Capeta h de me pegar. Quero viver uma vida comum, comoa de todas as mulheres. Casar com o homem que amo e dar a ele todos os filhos que

    puder.

    PADRE - (No como uma acusao, como notao apenas) Durante a sua confisso,

    voc pronunciou sete vezes o nome desse homem.BRANCA - (Surpresa) O senhor contou?

    PADRE - Contei.

    BRANCA - Bem... Eu o amo.

    PADRE - Enquanto que o nome de Deus voc pronunciou apenas trs vezes.

    BRANCA - Isso tem importncia?

    PADRE -No, no tem importncia.

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    BRANCA -No se deve invocar o nome de Deus em vo.

    PADRE - Claro. So apenas nmeros. Mas nem tudo so nmeros em sua confisso. Ostormentos da carne, por exemplo.

    BRANCA - Eu no falei em tormentos da carne.

    PADRE - Mas confessou que certa noite rolava na cama sem poder dormir...

    BRANCA - Por causa do calor. Meu corpo queimava.

    PADRE - E no podendo mais, levantou-se e foi mergulhar o corpo no rio, paraacalm-lo. Tirou a roupa e banhou-se nua.

    BRANCA - Era noite de lua nova. Nenhum perigo havia de ser vista. Nem mesmopodia haver algum acordado quela hora.

    PADRE - Agora responda, Branca, lembrando-se de que est ainda diante de seuconfessor: que sentiu ao mergulhar o corpo no rio?

    BRANCA - Que senti? Bem, senti-me bem melhor, refrescada.

    PADRE - Sentiu prazer?

    BRANCA - (Hesita um instante) Senti, senti prazer.

    PADRE - E depois, quando voltou para o leito?

    BRANCA - Pude, enfim, dormir.

    PADRE - Algum pensamento pecaminoso lhe atravessou a mente nessa noite?

    BRANCA - Eu... No me lembro.

    PADRE -No pensou em seu noivo nessa noite?

    BRANCA - possvel. Eu penso nele todas as noites, todos os dias. Tudo que me

    acontece de bom, eu penso em compartilhar com ele, tudo que me acontece de mau, euacho que no seria to mau se ele estivesse a meu lado.

    PADRE - E ele nunca a viu tomar banho no rio? Responda.

    BRANCA - Uma vez... Sim. (Adivinha os pensamentos do Padre, reage prontamente)Mas no foi naquela noite! Juro por Deus, no foi!

    PADRE - (Cerra os olhos, como se procurasse fugir a todas aquelas vises emergulhar em si mesmo) Branca... Pode ir. Eu preciso fazer minhas oraes.

    (Ela vem descendo, de costas, os olhos fixos nele, que parece em xtase)

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    PADRE - (Murmura) Senhor, ajudai-me. Ela precisa de mim e eu devo proteg-la. Elatem to pouca noo das tentaes que a cercam, que ser uma presa fcil para oDemnio, se no a guiarmos pelo caminho que a levar at Vs. Dai-me foras, Senhor,

    para cumprir essa tarefa. Dai-me foras e defendei-me tambm de toda e qualquertentao. Amm.

    (Muda a luz. Padre sai. Branca est em primeiro plano, onde surge Simo)

    SIMO - (Muito preocupado) Que que ele quer, afinal?

    BRANCA - Quer proteger-me, pai.

    SIMO - E no sai daqui, e faz tantas perguntas.

    BRANCA - Ele acredita que eu esteja em perigo. E como o salvei de morrer afogado,quer tambm salvar-me. O curioso que eu antigamente me sentia to segura e agora...

    Mas ele deve ter razo, talvez eu no veja os perigos que me cercam. Se ele v, porquede fato existem, pois ningum pode saber das artimanhas do Co melhor do que um

    padre, que tem isso por ofcio.

    SIMO - Mas ns nunca precisamos dessa proteo. Eu disse isso a ele, na ltima vez.Quem nos protege Deus, ningum mais.

    (Muda a luz. Padre Bernardo surge. Branca permanece na sombra, durante o dilogo)

    PADRE - Isso no verdade. A Virgem tambm nos protege e tambm os santos daIgreja. Tambm o papa e os sacerdotes. preciso cuidado com essas afirmaes, Simo,

    porque freqentemente as ouvimos da boca dos hereges. Que s Deus protege, que sDeus justo, que s a Ele devemos prestar conta dos nossos atos.

    SIMO - Eu no disse isso, padre.

    PADRE - Acabar dizendo, se prossegue nesse caminho.

    SIMO - Meu caminho o da f crist, caminho abraado por meus antepassados.

    PADRE -No por todos os seus antepassados. Seus avs no eram cristos, seguiam a

    lei mosaica.SIMO - Sim, mas os meus pais se converteram.

    PADRE - Sei disso. Vieram para o Brasil em fins do sculo passado.

    SIMO - J eram cristos quando aqui chegaram.

    PADRE - Cristos-novos. Chegaram pobres e logo enriqueceram.

    SIMO - Honestamente.

    PADRE - E aqui geraram um filho a quem chamaram Simo.

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    SIMO - A quem batizaram e crismaram.

    PADRE - E Simo gerou Branca, a quem tambm batizou e crismou. E Branca esperagerar quantos filhos puder.

    SIMO - Est noiva. Augusto Coutinho, seu noivo, tambm catlico. De boa famlia.Estudou na Europa.

    PADRE - Em Lisboa.

    SIMO - muito inteligente e muito preparado. Conhece leis a fundo.

    PADRE - Conhece as leis dos homens, que no se podem sobrepor s leis de Deus. Masele pensa que sim.

    SIMO - Ele pensa?...

    PADRE - Soube de certas atitudes de rebeldia desse rapaz.

    SIMO - Coisas da juventude. Quem nunca foi rebelde, nunca foi jovem.

    PADRE - Preocupa-me a influncia que ele exerce sobre Branca.

    SIMO - natural. Ela o adora.

    PADRE - O senhor disse a frase exata: ela o adora.

    SIMO - Cresceram juntos, brincando de esconder no canavial. O velho Coutinho eratambm senhor-de-engenho. Bom homem, muito respeitador. Depois, Augusto foiestudar na Europa. Voltou j homem feito e disposto a casar. Era do meu gosto e eu stinha que aprovar.

    PADRE - Quando ser?

    SIMO - Em setembro. Faltam trs meses somente e j encomendei o enxoval; virtudo de Paris. Custou-me os olhos da cara. (Sorri) filha nica, o senhor compreende.Alegria que s terei uma vez na vida. Quem sabe se o senhor mesmo no poderia cas-

    los?PADRE - (Estranha a idia) Eu?

    SIMO - Sim, Branca ia ficar muito contente, tendo pelo senhor o respeito e a amizadeque tem.

    PADRE - (Constrangido) Ser para mim tambm uma satisfao, se Branca me deressa honra.

    (Muda a luz. O Padre sai)

    SIMO -No fiz bem em convid-lo?

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    BRANCA - Fez. Eu j havia pensado nisso. Ele deve ter ficado satisfeito.

    SIMO - Penso que sim. No demonstrou muito.

    BRANCA - Porque tmido. Mas pode ficar certo de que o senhor lhe deu uma grande

    alegria.

    SIMO - Voc acha?

    BRANCA - Ele muito sensvel a qualquer gesto de simpatia.

    SIMO - Ainda bem.

    BRANCA - Por qu? O senhor parece preocupado. Teme alguma coisa?

    SIMO - O temor um legado de nossa raa.

    BRANCA - Somos cristos.

    SIMO - Cristos-novos, ele frisou bem.

    BRANCA - Que tem isso? Jesus nunca fez distino entre os velhos e os novosdiscpulos.

    SIMO - Eles no confiam em ns, em nossa sinceridade. Estamos sempre sobsuspeita.

    BRANCA - No suspeita, pai, que eles tm o dever de ser vigilantes. essavigilncia que nos defende e nos protege.

    SIMO - Essa proteo custou a vida a dois mil dos nossos, em Lisboa, numa chacinaque durou trs dias.

    BRANCA - Dois mil?

    SIMO - Sim, dois mil cristos-novos. Poucos conseguiram escapar, como seu av,convertido fora e despojado de todos os seus bens.

    BRANCA - Meu av no era um cristo convicto?

    SIMO - O dio no converte ningum. Uma coisa um Deus que se teme, outra coisa um Deus que se ama. E no h nada mais prximo do dio que o amor dos humildes

    pelos poderosos, o culto dos oprimidos pelos opressores.

    (Muda a luz, Simo sai. Branca senta-se, pensativa. As palavras do pai a perturbaramum pouco. A insegurana, cujos germes Padre Bernardo conseguira incutir em seuesprito, acentua-se. Augusto entra)

    AUGUSTO - Por que me mandou chamar com tanta urgncia?

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    BRANCA - Porque at hoje ainda no havia pensado que o meu gesto podia serinterpretado de outro modo.

    AUGUSTO - Voc acha que era absolutamente necessrio fazer o que fez?

    BRANCA - Acho.

    AUGUSTO - Ele morreria, se no o fizesse?

    BRANCA - Quem sabe? Talvez no. Mas foi com o intuito de salv-lo que o fiz. Scom esse intuito. Estou lhe dizendo isto agora para saber se voc acredita em mim.

    (Ele no responde. Sua perturbao evidente)

    BRANCA - Em sua opinio, eu continuo pura como antes?

    AUGUSTO - (Pausa) Eu preferia que isso no tivesse acontecido.

    BRANCA - Ento porque voc no acredita na pureza do meu gesto.

    AUGUSTO - (Rpido) No, no...

    BRANCA - Ou porque tem dvidas.

    AUGUSTO -No tenho dvidas. Mas ningum gostaria que a mulher que ama beijasseoutro homem, mesmo sendo esse homem um padre e o beijo apenas um gesto dehumanidade. Aceito e compreendo a nobreza de seu gesto, mas ele me choca.

    BRANCA - Voc o aceita, mas no o compreende esta que a verdade. Porm,no isto o que mais me preocupa. verificar que hoje eu no seria capaz de um gestodesses. Se visse um homem morrendo, com falta de ar, eu o deixaria morrer. Nocolaria a minha boca na dele, no lhe daria o ar dos meus pulmes, porque isso poderiater outra interpretao. Porque tanto Josu pode ter parado o Sol, como pode ter paradoa Terra. Tudo depende de saber se estamos do lado do Sol ou do lado da Terra.

    AUGUSTO - Branca, eu sei que voc continua to pura quanto antes...

    BRANCA - E voc sabe que o Diabo prefere os puros?AUGUSTO - Eu confio em voc, Branca.

    BRANCA - Mas no deve. Meu pai me disse que estamos sempre sob suspeita. Eumesma lhe confessei h pouco que j me sentia capaz de recusar a um moribundo o ardos meus pulmes. Algum que se sente capaz disso deve estar mesmo sob vigilnciaconstante, porque no pessoa em quem se possa confiar.

    AUGUSTO - (Segura-a pelos braos, como para cham-la a si) Branca, no faleassim. Voc est sendo injusta consigo mesma.

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    BRANCA -No, no estou. que comeo a me conhecer. E estou descobrindo coisas...Coisas que no descobri nem mesmo nos livros que voc me deu. Padre Bernardo talveztenha razo...

    AUGUSTO - (Com desagrado) Padre Bernardo!

    BRANCA - Sim, Padre Bernardo deve ter razo, toda criatura humana est em perigo!

    AUGUSTO -No voc, Branca!

    BRANCA - Sim, eu, eu sim! (Atira-se nos braos dele e faz-se pequenina, pedindoproteo) Augusto, no podemos esperar at setembro!

    AUGUSTO - Por qu?

    BRANCA - No me pergunte, eu no saberia responder. S sei que o mundo, que me

    parecia to simples, comea a ficar muito complicado para mim. Eu mesma j no meentendo... Nos seus braos eu me sinto segura.

    AUGUSTO - Em setembro, voc vir de vez para os meus braos, vir de vez...

    BRANCA -No, no me deixe desamparada at l! Eu no posso esperar tanto!

    AUGUSTO - Voc acha que seu pai concordaria? Ele mandou buscar o seu enxoval naEuropa...

    BRANCA - O enxoval chegaria depois, isso no tem importncia.

    AUGUSTO - Ele vai ficar sentido.

    BRANCA - Eu falo com ele, explico... O que eu no posso ficar por mais tempo namira do Diabo!

    AUGUSTO - (Num gesto brusco, puxa-a para si e beija-a na boca. Um beijo violento,desesperado, que interrompido tambm bruscamente) Foi assim que voc o beijou?

    BRANCA - (Com horror) No!

    (Augusto sai. Branca fica s. Pensativa, agacha-se e pe-se a seguir com os olhos umcaminho de formigas)

    PADRE - (Entra) Branca...

    BRANCA - (J no revela a mesma espontaneidade diante dele) Padre...

    PADRE - (Mais como uma queixa do que como uma censura) Nunca mais foi missa,nunca mais confessou-se, nunca mais me procurou, por qu?

    BRANCA - (Evasiva) Por nada. Tenho estado muito ocupada.

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    PADRE - Com suas formigas?

    BRANCA -No so tambm criaturas de Deus?

    PADRE - So seres daninhos, que somente destroem, que somente trabalham em seu

    prprio benefcio e cuja existncia nenhum bem, nenhuma utilidade representa.

    BRANCA - Se Deus deu s formigas o benefcio da vida, elas tm o direito deconserv-lo, no acha? Da maneira que Deus ensinou.

    PADRE - Elas no sabem distinguir entre o bem e o mal. Ao passo que ns temos aobrigao de sab-lo.

    BRANCA -No to fcil como eu julgava.

    PADRE - J percebi que voc tem certa dificuldade. Por isso estou aqui novamente.

    BRANCA -Nunca mais fui procur-lo porque, como j lhe disse, tenho andado muitoatarefada. Com o meu casamento.

    PADRE -No em setembro?

    BRANCA -No, resolvemos apress-lo.

    PADRE -No sabia de nada.

    BRANCA - verdade, devamos ter falado com o senhor, que quem vai oficiar acerimnia.

    PADRE - (H uma pausa um tanto longa, que traduz a atual dificuldade decomunicao entre eles) H alguma razo especial que justifique a pressa?

    BRANCA - O senhor disse: ningum pode aceitar o Demnio como companheiro demesa. Casada, terei o meu marido cabeceira e o Demnio no ousar sentar-se aonosso lado.

    PADRE - Seu marido talvez o convide...

    BRANCA -No creio. Conheo Augusto e confio nele como confio em Deus.

    (O Padre se choca com a frase. Ela percebe)

    BRANCA - Disse alguma coisa errada?

    PADRE - Lamentavelmente.

    BRANCA - Perdoe-me...

    PADRE - No a mim que voc deve pedir perdo, a Ele, de quem voc se afastacada vez mais.

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    BRANCA - (Protesta com veemncia) No! Isso no verdade!

    PADRE - A ponto de coloc-Lo em p de igualdade com um simples mortal. AmanhO colocar em situao inferior; e, por fim, o substituir inteiramente.

    BRANCA - O senhor no pode falar assim s porque eu disse uma tolice.

    PADRE -No me esqueci de sua frase, na beira do rio, quando nos conhecemos: noamor que a gente se encontra com Deus. Sim, mas no nesse tipo de amor que voctem por Augusto. Isto que eu quero que voc entenda, Branca. Seu esprito est cheiode confuses.

    BRANCA - possvel. Para mim, tudo amor. E todo amor uma prova da existnciade Deus.

    PADRE -Neste caso, est em comunho com Deus quem ama um co, ou adora uma

    vaca. E tanto justo adorar um Deus verdadeiro, como um deus falso.

    BRANCA - Se somos sinceros em nossos sentimentos isto que Deus deveconsiderar em primeiro lugar.

    PADRE - Mas os judeus e os mouros tambm so sinceros em sua lei e em sua religio.Acha voc que eles podem se salvar, como os cristos?

    (Ela, atnita, sentindo que caiu numa armadilha, no sabe o que responder)

    PADRE - Responda, Branca. Os judeus e mouros podem salvar-se?

    BRANCA -No sei... Confesso que no sei...

    PADRE - (Olha-a com imensa ternura e piedade) Pobre Branca. Como precisa dequem a ajude.

    BRANCA - (Numa queixa) Mas o senhor no tem ajudado em nada, padre. O senhor stem lanado a dvida em meu esprito.

    PADRE - Essa dvida a luta entre a luz e as trevas. Eu lhe trago a luz, mas voc

    resiste. Abandone-se, Branca, abandone-se a mim e eu dissiparei todas as dvidas que aatormentam.

    BRANCA -No, padre, no.

    PADRE - (Choca-se com a recusa) Por que recusa?

    BRANCA - Preferia que me deixasse com as minhas dvidas, as minhas tolices, e osmeus perigos e tentaes. Sei que o senhor quer salvar-me, mas eu me salvarei por mimmesma.

    PADRE - E se no se salvar? Eu terei a culpa.

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    BRANCA -No.

    PADRE - Sim, porque a abandonei. Porque no cumpri o meu dever de sacerdote, nemmesmo o mais elementar dever de gratido. No s voc quem est em causa, Branca.Eu, seu confessor, sou a um tempo seu guia, seu mestre, seu conselheiro, seu amigo, seu

    irmo. Queria que voc visse em mim todas essas pessoas e se confiasse a elas, como agente se confia a uma slida ponte sobre o abismo. Eu sou essa ponte, Branca, que podetransport-la de um lado para o outro, com segurana.

    BRANCA - (As palavras do Padre a abalam um pouco) Eu sei... Eu confio tambm nosenhor.

    PADRE - Confia mesmo?

    BRANCA - Confio. (Consegue reagir) Mas no vejo necessidade de atravessarnenhuma ponte, de mudar de lado. Eu estou bem onde estou e acho que estamos do

    mesmo lado.

    PADRE - (Comea a experimentar o sabor do prprio fracasso) No sei, Branca, nosei... s vezes temo que voc no esteja apenas confusa, no esteja apenas inconscientedos perigos que corre. Que no seja por pura inocncia que se deixa tentar...

    BRANCA - Como? No entendo!

    PADRE - Temo, sinceramente, que o Diabo tenha j avanado demais...

    BRANCA - Padre!

    PADRE - Temo por voc, como temo por mim, Branca. Acredite! (Ela sente que elearrancou essas palavras da prpria carne, rompendo barreiras que at ento haviamresistido)

    BRANCA - (Timidamente) O senhor tambm se julga em perigo? Ele no responde.Cerra os olhos, como se procurasse recompor-se intimamente. Por fim, avana para elae pe-lhe a mo sobre a cabea, escorregando-a depois, lentamente, pelo rosto, comofazem os judeus para abenoar as crianas. Branca ri.

    PADRE - Por que se riu?BRANCA - O senhor agora me fez lembrar o meu av. Quando eu era pequena, elecostumava pr a mo na minha cabea e escorreg-la pelo meu rosto, como o senhor fezagora.

    PADRE - Seu av, fale-me dele.

    BRANCA - Oh, era um bom homem. Me levava para chupar cajus na roa, depois faziaum enorme colar com as castanhas, pendurava no meu pescoo e dizia: Branca, s maisrica do que a rainha de Sab! (Ri) Eu no sabia quem era essa rainha de Sab, e s a

    imaginava ento cheia de colares de castanhas de caju em volta do pescoo.

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    PADRE - (Olha-a com tristeza e preocupao) Que mais?

    BRANCA - No me lembro de muitas coisas mais. Eu tinha seis anos quando elemorreu.

    PADRE - Lembra-se desse dia?

    BRANCA -No gosto de me lembrar. Foi o meu primeiro encontro com a morte. Todavez que me recordo, sinto a mesma coisa...

    PADRE - Qu?

    BRANCA - Um cheiro ativo de azeitonas e um frio aqui acima do estmago. Masnunca vou poder esquecer... Era um velho cheio de manias. Pediu que botassem umamoeda na sua boca, quando morresse.

    PADRE - E cumpriram a sua vontade?

    BRANCA -Sim, meu pai me deu uma pataca e eu coloquei sobre seus lbios.

    PADRE - (Murmura) Virgem Santssima!

    BRANCA - (Estremece e treme) Fiz mal?

    (Padre Bernardo, ereto, cabea levantada, leva as mos em garras ao rosto, escorrega-as pelo pescoo, at o peito, como se dilacerasse a prpria carne, num gesto de

    suprema angstia)

    PADRE - Branca, o visitador da Santa Inquisio acaba de decretar um tempo de graa.Durante quinze dias, os pecadores que espontaneamente confessarem as suas faltas econvencerem o inquisidor da sinceridade de seu arrependimento, recebero somente

    penitncias leves.

    BRANCA - Por que est me dizendo isso?

    PADRE - Para que voc medite e se aproveite da misericrdia do Tribunal do Santo

    Ofcio.(Muda a luz. O Padre sai. O Visitador surge no plano mais elevado, desenrola umedital e l. Branca, Simo e Augusto, em planos inferiores, escutam atentamente.Tambm o Notrio e dois guardas)

    VISITADOR - (Lendo) Por merc de Deus e por delegao do inquisidor-mor emestes reinos e senhorios de Portugal, eu visitador do Santo Ofcio, a todos fao saberque, num prazo de quinze dias, devem os culpados de heresia ou que souberem queoutrem o est, virem declarar a verdade. Os que assim procederem ficaro isentos das

    penas de morte, crcere perptuo, desterro e confisco. E para que as sobreditas cousas

    venham notcia de todos e delas no possam alegar ignorncia, mando passar apresente carta para ser lida e publicada neste lugar e em todas as igrejas desta cidade e

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    uma lgua em roda. Dada na cidade da Paraba, aos dezoito do ms de julho, do ano donascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1750.

    (Muda a luz. Sai Augusto. O Visitador desce ao plano inferior. um bispo. O Notriovem reunir-se a ele. Os dois percorrem toda a cena com os olhos perscrutadores,

    detalhadamente, como se estivessem jazendo uma vistoria. Simo e Branca assistem,um tanto intimidados)

    VISITADOR - Desculpem, uma tarefa bastante desagradvel, mas somos obrigados acumpri-la.

    NOTRIO - o nosso dever.

    SIMO - (Mais intimidado do que Branca) Estejam vontade... Ns entendemosperfeitamente.

    BRANCA - Quem ainda no entendeu nada fui eu. Afinal, que que os senhoresprocuram? Somos catlicos, nada temos em nossa casa que possa ofender a Deus ou Santa Madre Igreja.

    VISITADOR - (Enigmtico) Recebemos uma denncia. Temos de apurar.

    SIMO - Denncia contra ns? Absurdo.

    BRANCA - Quem nos denunciou?

    VISITADOR - O Tribunal do Santo Ofcio no permite revelar o nome dosdenunciantes.

    SIMO - Deve ter havido um equvoco.

    VISITADOR - A nica maneira de saber se h equvoco ou se h fundamento, investigar.

    SIMO - Sim, isto parece lgico...

    (Notrio sai, com os guardas)

    BRANCA - No acho. lgico que se procure entre os cristos os inimigos docristianismo?

    VISITADOR - Houve uma denncia.

    BRANCA - De que nos acusam?

    VISITADOR - De alguma coisa.

    (O Notrio e os guardas entram com uma enorme bacia)

    NOTRIO - Senhor visitador!

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    VISITADOR - Que isso?

    NOTRIO - Uma bacia.

    BRANCA - pecado ter em casa uma bacia?

    NOTRIO - A bacia contm um lquido.

    SIMO - gua!

    NOTRIO - Estou vendo que gua... Mas a cor da gua...

    (O Visitador examina detidamente a gua, molha as pontas dos dedos)

    NOTRIO - Vossa Reverendssima se arrisca... Ningum sabe o que h nessa gua!

    VISITADOR - (Enxuga a mo) Sim, a cor indica que a gua levou algum preparado...

    NOTRIO - Algum p mirfico para invocao do Diabo!

    SIMO - Vossas Excelncias me perdoem, mas o nico p que h a o p dasestradas, de vinte lguas no lombo dum burro.

    VISITADOR - Como?

    SIMO - Acabei de tomar banho nessa bacia...

    VISITADOR - Acabou de tomar banho... Hoje, sexta-feira?

    SIMO - Cheguei de viagem, empoeirado...

    VISITADOR - Tambm trocou de roupa?

    SIMO - Tambm; a outra estava imunda.

    VISITADOR - Hoje, sexta-feira.

    NOTRIO - Hoje, sexta-feira.VISITADOR - (Para o Notrio) Leve daqui esta bacia.

    (O Notrio e os guardas saem com a bacia)

    SIMO - Foi uma coincidncia!

    VISITADOR - Estranha.

    SIMO - Cheguei suado, cheio de poeira...

    BRANCA - H alguma lei que proba algum de tomar banho?

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    (Notrio entra com um candeeiro)

    VISITADOR - Mudaram a mecha?

    NOTRIO -No, parece que no mudaram.

    VISITADOR - (Examina a mecha do candeeiro) Tambm ainda no acenderam.Que horas so?

    NOTRIO - Quase seis.

    VISITADOR - (Para Simo) Isto ser anotado em favor de vocs. Sexta-feira, quaseseis da tarde. Candeeiro apagado. Mecha velha.

    (Notrio sai com o candeeiro)

    BRANCA - Se querem, podemos pr mecha nova...

    SIMO - (Apressadamente) No, no! Nunca mudamos a mecha do candeeiro s sexta-feiras. Vossa Reverendssima viu, a mecha est velha, estragada, h um ms que nomudamos. Tambm no jejuamos aos sbados, nem trabalhamos aos domingos. Somosconhecidos em toda essa regio e todos podem dizer quem somos. Tudo no deve passarde um mal-entendido, ou maldade de algum que quer nos prejudicar.

    VISITADOR - Se for, nada tm a temer. A visitao do Santo Ofcio lhes garantemisericrdia e justia. No desejamos servir a vinganas mesquinhas, mas precisamosser rigorosos com os inimigos da f crist. Temos de destru-los, pois do contrrio elesnos destruiro.

    NOTRIO - (Entra com a pilha de livros. Como se encontrasse uma bomba) Livros!

    BRANCA - Meus livros! So meus! Que vai fazer com eles?

    VISITADOR - Sabe ler?

    BRANCA - Sei.

    VISITADOR - Por qu?BRANCA - Porque aprendi.

    VISITADOR - Para qu?

    BRANCA - Para poder ler.

    VISITADOR - Mau.

    BRANCA -No so livros de religio, so romances, poesias...

    NOTRIO - Amadis de Gaula! (Passa o livro ao Visitador)

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    VISITADOR - Amadis!

    BRANCA - Estrias de cavalaria. Me emocionam muito.

    NOTRIO - As Metamorfoses. (Passa o livro ao Visitador)

    VISITADOR - Ovdio. Mitologia. Paganismo.

    NOTRIO - Eufrsina. (Repete o jogo)

    VISITADOR - Tambm!

    NOTRIO - E uma bblia em portugus!

    VISITADOR - Em portugus!

    BRANCA - Foi meu noivo quem me trouxe de Lisboa. Vejam que tem uma dedicatriadele para mim.

    VISITADOR - Estou vendo...

    BRANCA - Fiquei muito contente porque, como no sei ler latim, pude ler a bblia todae j o fiz vrias vezes.

    VISITADOR - (Entrega os livros ao Notrio) Todos esses livros so reprovados pelaIgreja; vamos lev-los.

    BRANCA - Tambm a bblia?!

    NOTRIO - Em linguagem verncula!

    BRANCA - Mas a bblia!

    VISITADOR - Em linguagem verncula.

    (Saem o Visitador, o Notrio e os guardas. H uma grande pausa, como se elestivessem cavado um enorme precipcio diante de Branca e Simo, que se olham

    perplexos)BRANCA - Por qu?...

    SIMO - Como?...

    BRANCA - Quem?...

    SIMO - Em linguagem verncula. (Depois de uma pausa, volta-se contra ela) Eu bemlhe disse... Eu bem que me opus sempre... Esses livros para qu? Uma moaaprender a ler para qu? Que ganhamos com isso? Estamos agora marcados.

    (Sai)

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    (Muda a luz. Padre Bernardo surge no plano superior)

    BRANCA - Foi o senhor!

    PADRE -No, Branca, no fui eu. Deus poupou-me esse penoso dever.

    BRANCA - Quem foi, ento?

    PADRE - O Tribunal no revela o nome dos denunciantes.

    BRANCA - O Tribunal?...

    PADRE - Voc agora vai ter de comparecer ante ele. Melhor seria que tivesse idoespontaneamente, aproveitando os dias de graa.

    BRANCA - Mas por que iria? Que fiz eu?!

    PADRE - Talvez eles lhe digam.

    BRANCA - Eles, quem?!

    PADRE - Os seus inquisidores. Pobre de voc, que ter de comparecer ante eles, semreconhecer os prprios erros; pobre de mim, que estarei entre eles e terei de julg-la.

    BRANCA - Mas no... Eu no irei... No irei...

    (Corre para a direita, mas a surge um guarda que lhe barra a fuga; corre para aesquerda e aparece outro guarda, que a obriga a retroceder)

    PADRE - intil, Branca. Perdeu sua liberdade, pelo mau uso que fez dela. Melhor para voc que no tente fugir e se entregue misericrdia dos seus juizes. Eles tudofaro para salv-la.

    BRANCA - (Encolhe-se, no centro da cena, pequenina, esmagada, perplexa) MeuDeus! Eu no entendo!... Eu no entendo!...

    (Uma enorme grade, tomando toda a boca da cena, desce lentamente. As luzes se

    apagam em resistncia)

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    Segundo Ato

    BRANCA - (Deitada de bruos, atrs da grade. Sua atitude revela abandono e perplexidade. H um longo silncio, antes que ela comece a falar) Se ao menos eupudesse ver o sol... (Pausa) Ser que essa a melhor maneira de salvar uma criatura que

    est na mira do Diabo? Tirar-lhe o sol, o ar, o espao e cerce-la de trevas, trevas onde oDiabo rei? (Dirige-se platia) Vem vocs o que eles esto fazendo comigo? Estome encurralando entre o Co e a parede. Ser que foi para isso que me prenderam aqui eme tiraram o sol, o ar, o espao? Para que eu no pudesse fugir e tivesse de enfrentar oDiabo cara a cara. justo, senhores, que para me livrar dele me entreguem a ele, noitese noites a ss com ele, sem saber por que, nem at quando, sem uma explicao, uma

    palavra, uma palavra, ao menos. No sei... No sei o que eles pretendem. J no entendomesmo o que eles falam. Deve ter havido um equvoco. No sou eu a pessoa... Halgum em perigo e que precisa ser salvo, mas no sou eu! preciso que eles saibamdisso! Houve um equvoco! (Grita) Senhores! Guardas! Senhores padres! Venham aqui!

    GUARDA - (Entra) Que algazarra essa? Estamos num convento.

    BRANCA - Houve um equvoco! No sou eu a pessoa!

    GUARDA - Que pessoa?

    BRANCA - A que procuram.

    GUARDA - Procuram algum?

    BRANCA - Claro.

    GUARDA - Claro por qu?

    BRANCA - Tanto que me prenderam.

    GUARDA - E por que prenderam voc?

    BRANCA -No sei.

    GUARDA - Devia saber. Isso piora a sua situao.

    BRANCA - Piora? O senhor sabe por que estou aqui?

    GUARDA -No.

    BRANCA - Ento uma prova! O senhor quem devia saber!

    GUARDA - Por que eu devia saber?

    BRANCA - Porque guarda.

    GUARDA -No diga tolices. Os denunciantes denunciam, os juizes julgam, os guardasprendem, somente. O mundo feito assim. E deve ser assim, para que haja ordem.

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    BRANCA - E os inocentes?

    GUARDA - Devem provar a sua inocncia, de acordo com a lei.

    BRANCA - Mas no est certo.

    GUARDA - Se no est certo, no me cabe a culpa. Sou guarda. E no foram osguardas que fizeram o mundo.

    (Sai)

    BRANCA - Est errado... Cada pessoa conhece apenas uma parte da verdade. Juntandotodas as pessoas, teramos a verdade inteira. E a verdade inteira Deus. Por isso as

    pessoas no se entendem, por isso h tantos equvocos.

    PADRE - (Entra) Infelizmente, no h equvoco nenhum de nossa parte, Branca.

    voc mesma quem est em perigo. Mas poder salvar-se.

    BRANCA - Como? Se me deixam aqui, sozinha, abandonada... O senhor mesmo,padre, o senhor me abandonou!

    PADRE - (Ele sente profundamente a acusao) No diga isso! Eu tenho rezadomuito... E no tenho me afastado daqui, das proximidades de sua cela. noite, tenho

    passado horas e horas andando no corredor, at sentir-me exausto e poder dormir.

    BRANCA - Por que precisa fazer isso? Por que precisa se martirizar desse modo?

    PADRE - (Exterioriza o seu conflito interior) Sou to responsvel quanto voc pelosseus erros.

    BRANCA - Oh, no, o senhor no tem culpa de nada. Se pequei, devo pagar sozinhapelos meus pecados.

    PADRE - Agora j impossvel. Tudo o que lhe acontecer, me acontecer tambm. Suapunio ser a minha punio, embora a sua salvao no importe na minha salvao.

    BRANCA - No entendo. Se o senhor no pode ajudar-me, quem poder? Para quem

    devo apelar, alm de Deus? Meu pai? Meu noivo?PADRE - Tambm eles nada podero fazer por voc; ambos foram presos.

    BRANCA - Presos? Por qu?

    PADRE - O visitador do Santo Ofcio promulgou um tempo de graa. Aqueles que nose aproveitaram desse gesto misericordioso no s para confessar-se, mas tambm paradenunciar as heresias de que tinham conhecimento, devero comparecer perante oTribunal.

    BRANCA - Mas eles...

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    PADRE - Alm de culpados de pequenas heresias, so testemunhas importantes do seuprocesso.

    BRANCA - Testemunhas de qu?

    PADRE - Deviam saber que voc estava sendo tentada pelo Diabo.

    BRANCA -No, eles no sabiam! Se nem eu sabia!

    PADRE - Deviam ter denunciado voc ao Santo Ofcio.

    BRANCA - Denunciado? Meu pai? Meu noivo?

    PADRE - Os laos familiares ou sentimentais no podem ser colocados acima dosdeveres que assumimos com a religio, no momento do batismo. Por mais que isso noscuste, s vezes.

    BRANCA - Presos... Meu pai e tambm Augusto. Estou s, ento!

    PADRE -No, Branca, voc no est s, porque est entregue misericrdia da Igreja.

    BRANCA - Que vai a Igreja fazer comigo?

    PADRE - Inicialmente, proteg-la; depois, tentar recuper-la; finalmente, julg-la.

    BRANCA - Quando ser isso? J que tenho de ir, por que no me vm logo buscar?

    PADRE - Eu vim busc-la.

    BRANCA - O senhor? (Ante a perspectiva, ela treme um pouco) Agora?

    PADRE - preciso que voc entenda... Sou um simples soldado da Companhia deJesus. Estou sujeito a uma disciplina e devo cumprir ordens. Muitas vezes, do lado doinimigo h um irmo nosso; mas do nosso lado est o Cristo, que nosso capito.Devemos obedecer-Lhe, porque Ele tem o comando supremo.

    BRANCA - Compreendo.

    PADRE - Podemos ir?

    BRANCA - Podemos.

    PADRE -No quer preparar-se espiritualmente?

    BRANCA - Estou preparada.

    PADRE - Reze um ato de esperana. Repita comigo: eu espero, meu Deus, com firmeconfiana...

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    BRANCA - (Mos entrelaadas sobre o peito) Eu espero, meu Deus, com firmeconfiana...

    PADRE - ... Que pelos merecimentos de meu Senhor Jesus Cristo...

    BRANCA - ... Que pelos merecimentos de meu Senhor Jesus Cristo...

    (Sobe a grade)

    PADRE - (Comeam a movimentar-se, como a caminho do Tribunal) ... Me dareis asalvao eterna...

    BRANCA - ... Me dareis a salvao eterna...

    PADRE - ... E as graas necessrias para consegui-la...

    BRANCA - ... W as graas necessrias para consegui-la...

    PADRE - ... Porque Vs, sumamente bom e poderoso...

    BRANCA - ... Porque Vs, sumamente bom e poderoso...

    PADRE - ... O haveis prometido a quem observar fielmente os Vossosmandamentos...

    BRANCA - ... O haveis prometido a quem observar fielmente os Vossosmandamentos...

    PADRE - ... Como eu proponho fazer com Vosso auxlio.

    BRANCA - ... Como eu proponho fazer com Vosso auxlio.

    (Muda a luz. Surge o Visitador no plano superior. O Padre e Branca ficam no planoinferior. Entram tambm o Notrio e quatro padres, que se colocam nas laterais,enquanto o Guarda surge e permanece ao fundo)

    VISITADOR - Ajoelhe-se.

    BRANCA - Ajoelhar-me diante de vs? Com ambos os joelhos?

    VISITADOR - Sim, com ambos os joelhos.

    BRANCA - Perdo, mas no posso fazer isso.

    VISITADOR - Por que no?

    BRANCA - Porque ningum deve ajoelhar-se diante de uma criatura humana.

    NOTRIO - E essa agora! Perdeu a cabea? No v que est diante do visitador doSanto Ofcio, representante do inquisidor-mor?

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    PADRE - Um momento, senhores. Ela talvez tenha motivos que devamos considerar.(Dirige-se a Branca com brandura) Por que diz isso?

    BRANCA - Foi o que aprendi na doutrina crist: somente diante de Deus devemos nosajoelhar com ambos os joelhos.

    PADRE - Na verdade, ela tem razo. Dos trs cultos a latria, hiperdulia e dulia deve-se dar somente a Deus o culto da latria, no que se compreende ajoelhar com ambosos joelhos.

    BRANCA - Sempre soube que era pecado!

    VISITADOR - Aqui se trata de um costume do Tribunal. O ru deve estar de joelhosquando examinado sobre a doutrina e tambm quando lida a sentena.

    BRANCA - Mas se foi nessa mesma doutrina que aprendi que no devo ajoelhar-me...

    VISITADOR - (Impacienta-se) Bem, vamos abrir uma exceo. Pode ficar de p.

    NOTRIO - (Apresenta-lhe os Evangelhos) Jura sobre os Evangelhos dizer toda averdade?

    BRANCA - (Hesita) Toda a verdade? Como posso prometer dizer toda a verdade, senem sequer sei sobre que vo interrogar-me? No tenho a sabedoria dos padres jesutas,sou uma pobre criatura ignorante.

    NOTRIO - (Tem um gesto de contrariedade) Mas tem de jurar. praxe.

    BRANCA - Jurar o que no sei se vou poder cumprir?

    NOTRIO - Se no jura, no tem valor o depoimento.

    PADRE - Branca, s se exige que voc diga a verdade que for de seu conhecimento.

    BRANCA - Bem, se assim... (Coloca a mo sobre o livro)

    NOTRIO - Jura?

    BRANCA - Juro.

    VISITADOR - No se justifica, Branca, sua preveno contra este Tribunal. Nenhumde ns deseja a sua condenao, acredite. Ao contrrio, o que queremos tentar aindasalv-la, recuper-la para a Igreja. Tudo faremos para isso. E ser sempre nesse sentidoque orientaremos este inqurito, no sentido da misericrdia.

    BRANCA - Misericrdia. Mas um ato de misericrdia deixar uma pessoa dias e diasencerrada numa cela sem luz e sem ar, sem ao menos lhe dizer por qu, de que aacusam?

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    (O Notrio tem um gesto de contrariedade, enquanto o Padre Bernardo acompanha asreaes de Branca em crescente angustia)

    VISITADOR - Voc conhece as obras de misericrdia?

    BRANCA - Conheo.

    VISITADOR - Recite em voz alta.

    BRANCA - Dar de comer a quem tem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir osnus; dar pousada aos peregrinos; visitar os enfermos e os encarcerados; remir os cativos;enterrar os mortos; dar bom conselho; ensinar os ignorantes; consolar os aflitos; perdoaras injrias; sofrer com pacincia as fraquezas do prximo; rogar a Deus pelos vivos edefuntos.

    VISITADOR - Voc saltou uma: castigar os que erram.

    BRANCA - verdade. Desculpe-me.

    VISITADOR - Sim, Branca, castigar os que erram uma obra de misericrdia.

    BRANCA - E comeam logo a castigar-me; isto quer dizer que j me consideramculpada antes de ouvir-me.

    PADRE - Voc ainda no sofreu nenhum castigo, Branca; a priso uma medidaexigida pelo processo.

    NOTRIO - Essa medida foi tomada com base nas denncias e provas que temoscontra ela.

    BRANCA - Denncias e provas? De qu?

    VISITADOR - De heresia e prtica de atos contra a moralidade.

    BRANCA - (Mostra-se perturbada com a acusao) Heresia... Atos contra amoralidade... Talvez essas palavras tenham outra significao para os senhores. Peloque eu entendo que querem dizer, no posso, de modo algum, aceitar a acusao.

    (O Notrio tem um gesto de reprovao)

    PADRE - Branca, pense bem no que est fazendo, mea com cuidado suas palavras eatitudes. Como disse o senhor bispo, estamos aqui para tentar reconcili-la com a f.Mas isso depende muito de voc.

    BRANCA - Mas que querem? Que eu me considere uma herege, sem ser?

    PADRE - De nada lhe adiantar negar-se a reconhecer os prprios pecados. Essa atitudes poder perd-la.

    NOTRIO - Parece que isso que ela est querendo.

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    VISITADOR - Um momento, senhores. Sejamos pacientes. Creio que ela no estavasuficientemente preparada para esta inquirio. O Padre Bernardo no a visitou nocrcere durante esses dias?

    PADRE - (Sente-se que o sangue lhe sobe ao rosto)No... Visitei-a hoje.

    VISITADOR - Hoje, somente?

    PADRE - Julguei que no fosse necessrio.

    VISITADOR -Necessrio ou no, a maneira de proceder do Santo Ofcio.

    (O Padre sente profundamente a reprimenda. E, ao perceber que Branca tem os olhosnele, baixa o rosto, envergonhado)

    VISITADOR - Branca, estamos aqui para ajud-la. Mas preciso tambm que voc

    nos ajude, a ns que temos por ofcio defender a f.

    BRANCA - No creio, senhor, que esteja no momento em condies de ajudar quemquer que seja, mas no que depender de mim...

    VISITADOR - A Igreja, Branca, a sua Igreja, est diante de um perigo crescente eameaador. Toda a sociedade humana, a ordem civil e religiosa, construda comimensos esforos, toda a civilizao e cultura do Ocidente, esto ameaados dedissoluo.

    BRANCA - E sou eu, senhor, sou eu a causa de tanta desgraa?!

    VISITADOR -No voc, isoladamente; so milhares que, como voc, consciente ouinconscientemente, propagam doutrinas revolucionrias e prticas subversivas. Est a o

    protestantismo, minando os alicerces da religio de Cristo. Esto a os cristos-novos,judeus falsamente convertidos, mas secretamente seguindo os cultos e a lei de Moiss.

    BRANCA - Se algum converteu-se, sem estar de fato convicto, que foi obrigado aisso pela fora. (Repete as palavras do pai) O dio no converte ningum.

    PADRE - (Agora fala com mais rigor para com ela) uma acusao injusta e falsa.

    Nunca empregamos a fora para converter ningum.BRANCA - Meu av foi convertido fora.

    PADRE - E isso no isenta ningum de culpa. Se o dio no converte, tambm o medo,a covardia ou a hipocrisia no absolvem.

    VISITADOR - verdade, Branca. No devemos usar a fora para converter, masdevemos ser rigorosos com os convertidos. Quem assumiu, no batismo, o compromissode conservar a f, de ser membro da Igreja e da cristandade at a morte, contraiuobrigaes inalienveis. E as autoridades eclesisticas tm o direito e o dever de exigir o

    cumprimento dessas obrigaes.

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    BRANCA - Estou de acordo.

    NOTRIO - (Com ar zombeteiro) Ora viva! Enfim ela est de acordo com algumacoisa!

    VISITADOR - Alegro-me por ver que entendeu os motivos da instituio do Tribunaldo Santo Ofcio e das visitaes que o inquisidor-mor ordenou para o Brasil.

    BRANCA - Isto eu entendi; o que no entendo por que estou aqui. No fui convertida,nasci crist e como crist tenho vivido at hoje. Cristos de nascimento so tambmmeu pai e meu noivo, que tambm esto presos, afastados de mim. Na verdade,senhores, no entendo coisa alguma.

    (O Visitador faz um sinal ao Padre Bernardo, cedendo-lhe a palavra)

    PADRE - ( para ele uma ingrata tarefa. Sua auto-suspeio o leva, s vezes, durante

    o interrogatrio, a exceder-se em rigor e no tom da acusao, para cair, em seguida,numa ternura e num calor humano que o redimem e o traem) Branca, h um gesto queseu av costumava fazer quando voc era criana. Voc me disse, lembra-se?

    BRANCA - Lembro-me.

    PADRE - Pode repetir aqui esse gesto?

    BRANCA - Posso, mas... Precisaria faz-lo em algum. Posso faz-lo no senhor?

    PADRE - (Fica um pouco constrangido, mas concorda) Pode.

    (Branca faz a bno judaica. O Visitador e o Notrio trocam olhares significativos)

    BRANCA - Era assim. Mas o que tem isso?

    PADRE - Voc me disse tambm que no gostava de lembrar do dia da morte de seuav. E toda vez que o fazia tinha a impresso de sentir aquele mesmo cheiro marcante e

    peculiar. Quer repetir que cheiro era esse?

    BRANCA - Cheiro de azeitonas.

    (Novamente o Visitador e o Notrio trocam olhares significativos)

    PADRE -Nesse dia, seu pai lhe deu uma pataca e mandou que voc a pusesse sobre oslbios de seu av.

    BRANCA - Ele mesmo havia pedido, antes de morrer.

    PADRE - (Mais severo) E voc fez o que seu pai mandou.

    (O Visitador e o Notrio deixam escapar um Oh! de horror. Os padres tambm se

    escandalizam)

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    BRANCA - (Atnita, sem entender o significado e muito menos a gravidade de tudoaquilo) Eu era uma criana... Faria tudo que me mandassem... Agora mesmo eu o faria,se algum me pedisse!

    NOTRIO - (Horrorizado) Agora mesmo?!

    PADRE - (Temendo por ela) Branca!

    BRANCA - Acho que uma coisa idiota algum querer que lhe ponham uma moedasobre os lbios quando morrer, mas todo desejo de um moribundo um desejo sagrado!

    VISITADOR - Acho que ela no sabe, realmente, o que est dizendo.

    BRANCA - O que eu no sei aonde os senhores querem chegar com essa estria demeu av, patacas e azeitonas.

    VISITADOR - Aquele gesto que voc fez h pouco, como os judeus abenoam ascrianas.

    NOTRIO - Quando morre algum, eles passam a noite comendo azeitonas!

    PADRE - A pataca que voc ps na boca de seu av era para ele pagar a primeirapousada, segundo a crena judaica.

    VISITADOR - Tudo isto quer dizer, Branca, que seu av, cristo-novo, continuava fielaos ritos judaicos. E que os praticava em sua prpria casa.

    BRANCA - possvel. Se o batizaram fora, era justo...

    NOTRIO - Era justo?!

    (Reao dos padres)

    VISITADOR - Cuidado com as palavras, Branca!

    BRANCA - Uma pessoa deve ser fiel a si mesma, antes que tudo. Fiel sua crena.

    PADRE - Isso basta para algum se salvar?BRANCA - Devia bastar, penso eu...

    PADRE - (Triunfante) Ento seu av, que continuou intimamente fiel sua crena,conseguiu salvar-se! E todos os judeus e todos os mouros, fiis sua religio e aos seusdeuses, esto salvos!

    BRANCA - Como posso saber?!

    PADRE - Voc tem que saber! Porque o cristo sabe que s existe um Deus verdadeiro

    e no pode haver mais de um.

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    BRANCA - Eu sei, eu creio nisso firmemente. No estava falando por mim, mas pormeu av.

    VISITADOR - O que voc acaba de insinuar, Branca, uma grande heresia. No deverepetir.

    BRANCA - Sim, senhor.

    PADRE - (Volta a um tom mais brando, mais humano) Branca, seu pai costumabanhar-se s sextas-feiras?

    BRANCA - Ora, senhores, sou uma moa e no fica bem estar observando quais os diasem que meu pai toma ou no toma banho.

    PADRE - E voc? Costuma banhar-se s sextas-feiras?

    BRANCA - Costumo banhar-me todos os dias; acho que assim que deve fazer umapessoa asseada.

    PADRE - Tambm s sextas-feiras?

    BRANCA - E por que no?

    PADRE - E tem por costume vestir roupa nova nesse dia, ou enfeitar-se com jias?

    BRANCA -No uso jias. A nica que tenho este anel que meu noivo me deu no diaem que me pediu em casamento. E nunca o tiro do dedo, nem mesmo quando tomo

    banho.

    PADRE -Nem mesmo quando vai banhar-se no rio?

    BRANCA -Nem assim.

    PADRE - Que traje costuma usar quando vai banhar-se no rio?

    BRANCA - O traje comum...

    PADRE - (Interrompe) Mas naquela noite voc no estava com o traje comum.Estava nua.

    NOTRIO -Nua!?

    (Reao dos padres)

    BRANCA - Eu j expliquei, padre, foi uma noite somente e ningum viu...

    VISITADOR - Que foi que a levou a proceder assim, Branca?

    BRANCA - O calor...

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    PADRE - Seu corpo queimava...

    VISITADOR -No ouviu alguma voz?

    BRANCA - Como?...

    VISITADOR - Uma voz incentivando-a a despir-se...

    BRANCA -No, senhor, no ouvi voz nenhuma. Em minha casa todos dormiam.

    PADRE - O fato de no ter ouvido no quer dizer que no estivesse possuda peloDemnio.

    BRANCA - Pelo Demnio!

    PADRE - Sim, o Demnio pode no falar, mas ele quem a empurra para o rio e a

    obriga a despir-se!

    NOTRIO - (Gravemente) H casos...

    BRANCA - Padre, lembre-se de que eu mergulhei uma vez no rio para salv-lo. Foitambm o Diabo quem me empurrou?

    PADRE - J no sei se foi realmente para salvar-me...

    BRANCA - Como, padre?!

    PADRE -Naquele dia tambm voc estava quase nua!

    BRANCA - Eu?!

    PADRE - E me disse que devia ter salvo o cofre, em vez do crucifixo. Isso prova queera Satans quem falava por voc.

    BRANCA -No, padre, no!

    PADRE - (Chegando ao mximo da exacerbao) Se no estava possuda pelo

    Demnio, por que aproveitou-se do meu desmaio para beijar-me na boca?!VISITADOR - Jesus!

    NOTRIO -Na boca! E seminua!

    BRANCA - Fiz isso para que no sufocasse, para que no morresse!

    PADRE - (Grita) Cnica! Foi esse o pretexto que Satans arranjou para o seu pecado!

    (H um grande silncio. Branca sente-se perdida e arrasada. Padre Bernardo, por sua

    vez, cai numa espcie de exausto, como depois de um autoflagelo)

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    PADRE - (Sua voz desce a um tom de orao) Branca, voc est diante do visitador doSanto Ofcio. Ele tem autoridade para puni-la. Leve ou duramente depende de voc.Aproveite a misericrdia deste Tribunal, misericrdia que voc no encontraria numtribunal civil.

    BRANCA - Aproveitar, como?

    PADRE - Da nica maneira possvel: declarando-se arrependida de todos os pecadosque cometeu. Dos pecados mortais e veniais e dos pecados que bradam aos cus.

    VISITADOR - Veja, Branca, que este um Tribunal de clemncia divina. Seu simplesarrependimento, se sincero, poder salv-la. Qual o tribunal civil que absolve umcriminoso por ele estar arrependido?

    PADRE - (Vendo que ela est indecisa, quase numa splica) Branca...

    BRANCA - (Sem muita firmeza) Sim, eu estou arrependida. Mas o meu arrependimentoter valor, se no estou convencida de ter praticado esses pecados?

    VISITADOR - E por no estar convencida disso seria capaz de pratic-los novamente?

    BRANCA - Acho que sim.

    PADRE - (Tem um gesto de desnimo) Seria bom chamar Augusto Coutinho.

    VISITADOR - (Alto, para fora) Tragam Augusto Coutinho! (O Guarda sai e volta comAugusto. Est algemado e seu aspecto deplorvel. Foi torturado)

    BRANCA - (Precipita-se para ele) Augusto!

    VISITADOR - (Enrgico) No, Branca! Afaste-se.

    (Ela obedece, afasta-se para um canto, enquanto o Guarda traz Augusto at o meio dacena, deixa-o diante dos inquisidores e volta ao seu posto)

    NOTRIO - (Coloca as mos algemadas de Augusto sobre os Evangelhos) Jura sobreos Evangelhos dizer a verdade?

    AUGUSTO - Juro.

    (O Notrio volta ao seu lugar)

    VISITADOR - Augusto Coutinho, sabe que est ameaado de excomunho?

    AUGUSTO - Sei.

    VISITADOR - Como cristo, isso no o apavora?

    AUGUSTO - Apavora mais no ter a fibra dos primeiros cristos.

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    VISITADOR - Para que desejaria ter a fibra dos primeiros cristos?

    AUGUSTO - Para resistir s torturas.

    VISITADOR - Ordenei a tortura pela sua obstinao em esconder a verdade.

    AUGUSTO - E vo acabar obtendo de mim a mentira. Isto o que me apavora, mais doque a excomunho.

    VISITADOR - (Ao Guarda) Durante quanto tempo o torturaram?

    GUARDA - (Adianta um passo) Quinze minutos.

    VISITADOR - Lembre-se de que o limite mximo permitido pelas normas do processo uma hora.

    GUARDA - Paramos porque ele desmaiou.

    VISITADOR - (Severo) No deviam ter chegado a tanto. A finalidade da tortura apenas obter a verdade. Tenho recomendaes muito enrgicas do inquisidor-mor paraevitar os excessos.

    GUARDA - Mas a culpa foi dele, senhor. Ele assinou a declarao.

    NOTRIO - verdade, antes de ter incio a tortura, ele assinou a declarao de praxe.Tenho-a aqui. (Mostra um papel, que l, depois de engrolar algumas palavras) ... edeclaro que se nestes tormentos morrer, quebrar algum membro, perder algum sentido, aculpa ser toda minha e no dos senhores inquisidores. Assinado: Augusto Coutinho.

    GUARDA - J vem os senhores que a culpa toda dele. (Volta ao seu posto)

    VISITADOR - Aquilo que no foi obtido por meio de torturas, talvez o simples bomsenso obtenha.

    PADRE - a minha esperana. (Para Augusto) Conhece essa moa, Augusto?

    AUGUSTO - O senhor sabe que sim. minha noiva e j seria minha esposa se... Se

    tudo isso no tivesse acontecido.PADRE - Pois ela ainda poder ser sua esposa, se voc nos ajudar a salv-la.

    AUGUSTO - Eu faria tudo para isso.

    PADRE - Ento, salve-a. Diga a verdade. Ainda que possa parecer o contrrio, a nicamaneira de ajud-la faz-la reconhecer os prprios erros e arrepender-se.

    AUGUSTO - Mas que espcie de verdade querem que eu diga? Que a vi nua, banhando-se no rio? Que a vi invocando os diabos na boca dos formigueiros? Para

    salv-la ento preciso lanar calnias e infmias contra ela? E quem me garante que

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    no se aproveitaro disso justamente para conden-la? No, podem arrancar-me umbrao, uma perna, mas no me arrancaro uma palavra que no seja verdadeira.

    BRANCA - (Grita) No, Augusto, no! Se o torturarem muito, pode dizer o que elesquiserem! No quero que sofra por minha causa!

    VISITADOR - (Num gesto enrgico para que ela se cale) Chiiii!

    PADRE - (Mostra a bblia apreendida) E este livro, tambm calnia?

    AUGUSTO - Este livro uma bblia e fui eu quem lhe deu de presente.

    PADRE - Uma bblia em portugus. No sabia que estava lhe dando um livro proibidopela Igreja?

    AUGUSTO - Para mim a bblia a bblia, em qualquer lngua.

    VISITADOR - O que est afirmando uma grave heresia.

    PADRE -No se arrepende de t-la arrastado a essa heresia?

    AUGUSTO - No. No me arrependo porque assim a fiz conhecer a sabedoria e abeleza dos Evangelhos.

    PADRE - Rebela-se ento contra uma determinao da Igreja?

    AUGUSTO - No me parece que seja uma determinao da Igreja, mas de algunsprelados, que no so infalveis.

    PADRE - uma determinao do papa.

    VISITADOR - (Incisivo) Nega, por acaso, a autoridade do papa?

    AUGUSTO -No, no nego.

    VISITADOR -Nega a autoridade da Igreja?

    AUGUSTO -No, no nego.VISITADOR - Acredita na justia e na misericrdia do Tribunal do Santo Ofcio?

    AUGUSTO - (Tem uma leve hesitao) Acredito na justia e na misericrdia deDeus.

    VISITADOR - (J um pouco irritado) Nega que o Santo Ofcio seja justo emisericordioso?

    AUGUSTO - Afirmo que Deus justo e misericordioso.

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    VISITADOR - (No pode conter um gesto de irritao) Acho que devemos encerraraqui esta parte do interrogatrio.

    (O Padre Bernardo assente com a cabea)

    VISITADOR - Podem lev-lo.

    (O Guarda avana para levar Augusto)

    BRANCA - Senhores, eu queria fazer um pedido, confiando na misericrdia doTribunal.

    VISITADOR - Faa.

    BRANCA - Antes que nos separem novamente, podamos conversar durante algunsminutos?

    PADRE - Os regulamentos no permitem. As normas do processo...

    VISITADOR - (Interrompe, conciliador) No acho que devamos ser assim torigorosos. No vejo inconveniente em que eles fiquem juntos por alguns momentos econversem.

    PADRE - (Evidentemente contrariado) Perdoe-me a interferncia; VossaReverendssima quem decide.

    VISITADOR - (Ao Guarda) Pode deix-los um instante.

    (Levanta-se e sai, seguido do Padre Bernardo, do Notrio, do Guarda e dos outrospadres)

    (Augusto senta-se no cho, esgotado. Branca senta-se a seu lado)

    BRANCA -(Aps alguns segundos de hesitao, ela se lana nos braos dele, que a beija noscabelos) Meus cabelos ainda cheiram a capim molhado?

    AUGUSTO -(Aspira) No.

    BRANCA - Que perfume tm agora?

    AUGUSTO -Nenhum. Parecem um manto. Cheiram a pano.

    BRANCA - (Muito triste) Pano... E voc gostava de beij-los e aspirar o seu perfume.

    AUGUSTO - Talvez a culpa seja minha, que j estou incapaz de sentir.

    BRANCA - Que fizeram com voc?

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    AUGUSTO - Deitaram-me numa cama de ripas e me amarraram com cordas, pelos pulsos e pelas pernas. Apertavam as cordas, pouco a pouco, parando a circulao ecortando a carne. (Ele lhe mostra os punhos, ela os sopra e beija) E faziam perguntas,

    perguntas, e mais perguntas. As mais absurdas. As mais idiotas.

    BRANCA - Como voc deve ter sofrido!

    AUGUSTO - A dor fsica no tanta; di mais o aviltamento. Vamos nos sentindocada vez menores, num mundo cada vez menor.

    BRANCA - mesmo, o mundo se fecha cada vez mais sobre ns. E por qu? Quefizemos? Que que eles querem de voc? Que me acuse?

    AUGUSTO - Querem fazer de mim o que fizeram de seu pai.

    BRANCA - Meu pai, que fizeram com ele?

    AUGUSTO - Um trapo.

    BRANCA - Onde ele est?

    AUGUSTO -Na minha cela.

    BRANCA - Tambm o torturaram?

    AUGUSTO -No foi preciso. O que fizeram comigo foi suficiente.

    BRANCA - E tudo isso... por minha causa. Vocs esto pagando pelos meus erros.

    AUGUSTO - Quais so os seus erros, Branca?

    BRANCA - (Angustiada) No sei... Devo ter cometido alguns, sim. Mas eles meacusam de tanta coisa. E parecem to certos da minha culpa. Talvez o meu erro maiorseja no entender. Ou quem sabe se no quero entender?

    AUGUSTO - A mim eles no conseguiram e no conseguiro jamais convencer de quevoc no a criatura mais pura que j nasceu. Ainda que tenha cometido erros, ainda

    que tenha feito confuses, ainda que tenha pecado.BRANCA - Voc diz isso porque me ama. Ns no podemos ver as nossasimperfeies, porque estamos um dentro do outro. Mas eles, eles nos olham de fora e decima. Eles sabem que eu no sou assim. E egosmo da minha parte permitir que voc e

    papai sofram o que esto sofrendo, quando bastaria concordar com tudo, reconhecertodos os pecados, mesmo aqueles que fogem ao meu entendimento, e cumprir a penaque me for imposta.

    AUGUSTO -No, Branca, no.

    BRANCA - (Est de p, muito excitada) Era o que eu j devia ter feito. Assino em branco que reconheo todas as culpas de que me acusam ou venham a acusar-me e

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    pronto. Assim, talvez devolvam a vocs a liberdade e a mim a luz do sol! (Sobe aoplano superior e grita) Guarda! Guarda!

    AUGUSTO - Branca, por Deus, no faa isso! Por que terei ento resistido a todas astorturas? Para qu?

    BRANCA - Mas eu no quero que voc sofra!

    AUGUSTO - Mas algum tem de sofrer!

    BRANCA -No por minha causa.

    AUGUSTO - Por uma causa qualquer, grande ou pequena, algum tem que sofrer.Porque nem de tudo se pode abrir mo. H um mnimo de dignidade que o homem no

    pode negociar, nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca do sol.

    BRANCA -Nem mesmo em troca do sol.

    GUARDA - (Entra) Que foi? Algum chamou?

    BRANCA - (Hesita ainda um instante) No, ningum Chamou.

    GUARDA - , mas o tempo j est esgotado. Era s um instante.

    BRANCA - (Toma as mos de Augusto e beija-as. H nesse gesto gratido, amor eadmirao) Ser que isto vai durar eternamente?

    AUGUSTO -No creio. demasiado cruel e demasiado idiota para durar.

    (Augusto e o Guarda iniciam a sada. O Guarda pra e volta-se para Branca)

    GUARDA -No fui eu que botei ele no potro.

    BRANCA - Potro?

    GUARDA -Na cama com ripas. S levei ele at l e fiquei olhando. Sou obrigado.

    (Sai com Augusto)BRANCA - Todos so obrigados. Obrigados a denunciar, a prender, a torturar, a punir,a matar. Mas obrigados por quem?

    (Muda a luz)

    PADRE - (Entra) voc, Branca, voc quem nos obriga a proceder assim.

    BRANCA - Eu?

    PADRE - A tentao que est em voc, o pecado que est em voc, a obstinaodemonaca que est em voc.

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    BRANCA - Que ser de mim, ento, padre, se sou portadora de tanto veneno?

    PADRE - nosso dever exterminar todas as venenosas plantas da vinha do Senhor, atas ltimas razes.

    BRANCA - Exterminar?!

    PADRE - um penoso dever que nos foi imposto. A ele no podemos fugir. Sob a penade deitar a perder toda a vinha.

    BRANCA - Como? Alm do mais, temem os senhores que eu contamine outraspessoas?

    PADRE - Voc j contaminou outras pessoas.

    BRANCA - Eu, padre? Quem? Augusto?

    PADRE - E continuar contaminando muitas outras, porque basta aproximar-se de vocpara cair em pecado.

    BRANCA - Padre, muitas pessoas se aproximam de mim sem que eu tenha sobre elas amenor influncia. O senhor mesmo j foi vrias vezes minha casa, fez-se meuconfessor e meu amigo...

    PADRE - Eu sei o quanto isso me custou!

    BRANCA - (Surpresa) Padre!

    PADRE - (Arrepende-se) No devemos falar nesse assunto.

    BRANCA - Que assunto, padre? Eu lhe fiz algum mal? preciso que me diga, poisassim talvez eu compreenda alguma coisa.

    PADRE - Veja... (Mostra os lbios descarnados)

    BRANCA - Que foi isso? Seus lbios descarnados...

    PADRE - Queimei-os com gua fervendo. Os lbios, a lngua, o cu da boca, paradestruir o sentido do gosto.

    BRANCA - E por que fez isso?!

    PADRE - Para eliminar o gosto impuro dos seus lbios. Mas o gosto persiste. Persiste.(Cai de joelhos, com o rosto entre as mos)

    BRANCA - Eu... Sinto muito. Acho que no devia mesmo ter feito o que fiz.

    PADRE - (Ainda com o rosto entre as mos, dobrado sabre si mesmo) Chego a ter

    alucinaes.

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    BRANCA - Se soubesse que ia lhe fazer tanto mal...

    PADRE - Antes de voc aparecer, eu vivia em paz com Jesus.

    BRANCA - Eu tambm, antes de conhec-lo, vivia na mais absoluta paz com Deus.

    PADRE - possvel que eu esteja sendo submetido a uma prova. E faz parte dessaprova o ter que julg-la e puni-la.

    BRANCA - Agora j no sei de mais nada. Os senhores lanaram a dvida e a confusono meu esprito e eu j nem tenho coragem de pedir a Deus que me esclarea. Cadagesto meu, mesmo o mais ingnuo, parece carregado de maldade e destruio.

    PADRE - Se uma provao, que seja bem rigorosa, para demonstrar a minhafidelidade e o meu amor ao Cristo. Que todos os suplcios me sejam impostos, minhaalma e minha carne.

    BRANCA - E o pior que j no conto com mais ningum.

    (Sente, pela primeira vez, em toda a sua terrvel realidade, que est s e perdida. E quenada modificar o seu destino)

    PADRE - (Mos postas e vergado sobre si mesmo com os lbios quase tocando o solo,reza um ato de contrio) Senhor meu Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro, Criadore Redentor meu, por serdes Vs quem sois sumamente bom e digno de ser amado sobretodas as coisas; e porque Vos amo e estimo, pesa-me, Senhor, de todo o meu corao,de Vos ter ofendido; pesa-me tambm por ter perdido o cu e merecido o inferno; e

    proponho firmemente, ajudado com os auxlios de Vossa divina graa, emendar-me enunca mais Vos tornar a ofender. Espero alcanar o perdo de minhas culpas pela Vossainfinita misericrdia. Amm. (Sente-se mais aliviado, levanta-se e, pela primeira vez,nesta cena, pousa os olhos em Branca. Um olhar j tranqilo e de imensa piedade)Mandaram-me visit-la pela ltima vez.

    BRANCA - Pela ltima vez?

    PADRE - Sim, para lhe oferecer a ltima oportunidade de arrependimento e perdo.

    BRANCA - E se eu recusar?PADRE - S nos restar o relaxamento ao brao secular.

    BRANCA - O que isso?

    PADRE - Isso quer dizer que voc ser entregue justia secular, que a julgar porcrime comum. E certamente a condenar.

    BRANCA - priso?

    PADRE -No, o brao secular sempre mais severo.

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    BRANCA - (Apavora-se) fogueira?!

    PADRE - bom que voc saiba o perigo que corre.

    BRANCA - (Cai em pnico) No! No podem fazer isso comigo! Eu no mereo!

    uma maldade! E o senhor que tudo prometeu fazer para salvar-me.

    PADRE - J nada mais posso fazer por voc, Branca. E desde o princpio seu destinodependeu sempre de voc mesma. Voc escolher.

    BRANCA - Mas que posso escolher? claro que no quero ser queimada viva!

    PADRE - Est disposta a arrepender-se?

    BRANCA - Estou disposta a tudo. Entrego-me em suas mos e nas mos do SantoOfcio.

    PADRE - Entrega-se sinceramente arrependida, Branca?

    BRANCA - Que importa? Os senhores venceram. V, diga ao visitador que reconheoos meus pecados e que estou disposta a arrepender-me e cumprir a penitncia que mefor imposta.

    PADRE - Voc no est sendo levada somente pelo desespero e pelo medo?

    BRANCA - E desde o princpio, no foi ao desespero e ao medo que tentaram levar-me?

    PADRE - No, Branca. Tentamos lev-la a um reencontro com a verdadeira f crist.No usamos a fora contra voc; tentamos convenc-la pela persuaso.

    BRANCA - Sim, uma bonita persuaso! Prendem-me entre quatro paredes, sem luz esem ar, e ameaam-me com a fogueira! Prendem meu pai e torturam meu noivo so

    bonitos mtodos de persuaso.

    PADRE - Sua arrogncia mostra que o Demnio ainda no a abandonou.

    (Inicia a sada)BRANCA - Padre! Espere! (Corre at ele e arroja-se aos seus ps) Perdoe-me! No seio que estou dizendo. A verdade que preciso de sua piedade. Aqui me tem, padre,humilde e humilhada, sinceramente arrependida de tudo, de tudo que decidirem quedevo arrepender-me.

    PADRE - (Pousa a mo sobre a cabea dela, num gesto de piedade e amor, depois aretira rapidamente) Vou transmitir sua deciso ao visitador.

    (Sai)

    (Branca fica ainda um tempo estendida no cho. Muda a luz. Entra Simo)

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    SIMO - Branca!

    (Ele traz, pregada roupa, no peito e nas costas uma grande cruz de pano amarelo)

    BRANCA - Pai!

    SIMO - (Corre a abra-la) Filhinha! Eles a maltrataram?

    BRANCA -No muito. E o senhor, est bem?

    SIMO - Estou vivo, pelo menos. E isso que importa, no acha?

    BRANCA - Sim, o principal.

    SIMO - uma loucura pensar que, num momento desses, se possa salvar algumacoisa alm da vida. Desde o primeiro momento compreendi que devia aceitar tudo,

    confessar tudo, declarar-me arrependido de tudo. Vamos ns discutir com eles, lutarcontra eles? Tolice. Tm a fora, a lei, Deus e a milcia tudo do lado deles. Que

    podemos ns fazer? De que adianta alegar inocncia, protestar contra uma injustia?Eles provam o que quiserem contra ns e ns no conseguiremos provar nada em nossadefesa. Bravatas? Tambm no adiantam. Eu vi o que aconteceu com Augusto.

    BRANCA - O senhor o viu ser torturado?

    SIMO - Vi. As duas vezes.

    BRANCA - Duas vezes? Ento o torturaram novamente!

    SIMO - Ele fez mal em no falar.

    BRANCA - Mas queriam que ele me denunciasse. Que me acusasse de coisas terrveise absolutamente falsas!

    SIMO - Que importa que sejam falsas? Se voc e ele confessassem, salvariam a pele!

    BRANCA - Augusto acha que preciso defender um mnimo de dignidade.

    SIMO - Em primeiro lugar, o homem tem a obrigao de sobreviver, a qualquerpreo; depois que vem a dignidade. De que vale agora para ns, para os pais dele, paravoc, para ele mesmo, essa dignidade?

    BRANCA - Como? (Ela percebe) Que fizeram com Augusto?

    SIMO - (Faz uma pausa. As palavras custam a sair) Ele no resistiu...

    BRANCA - (Num sussurro) Morreu! (Mais forte) Eles o mataram! (Seus joelhosvergam, repete baixinho) Eles o mataram... Eles o mataram...

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    SIMO - Eu sabia que ele no ia resistir. Estava vendo!... Depois de tudo, ainda openduraram no teto com pesos nos ps e o deixaram l... Quando os guardas voltaram,ainda tentaram reanim-lo, mas...

    BRANCA - (Sua dor se traduz por um imenso silncio. Subitamente) E o senhor no

    podia ter feito nada?!

    SIMO - Eu?...

    BRANCA - Sim, por que no gritou, no chamou algum?

    SIMO - Pensei em baixar a corda. Mas...

    BRANCA - Pois ento.

    SIMO - Eles tm leis muito severas para aqueles que ajudam os hereges. Eu j estava

    com a minha situao resolvida, ia ser posto em liberdade...

    BRANCA - Bastava um gesto...

    SIMO - E o que me custaria esse gesto? Um homem deve pesar bem suas atitudes, eno agir ao primeiro impulso. Eu podia ter tido o mesmo destino que ele. Era ou no eramuito pior?

    BRANCA -No sei se seria pior...

    SIMO - Voc preferiria que eu morresse tambm, que tivssemos todos os nossosbens confiscados ou que fssemos punidos com uma declarao de injria at a terceiragerao? Se nada disso aconteceu, foi porque eu agi com inteligncia e bom senso.

    BRANCA - E agora, como que o senhor vai conseguir viver, depois disso?

    SIMO -No entendo o que voc quer dizer...

    BRANCA - Augusto morreu porque o senhor no foi capaz de levantar um dedo em suadefesa.

    SIMO -No foi bem assim...BRANCA - Porque o senhor no quis se comprometer.

    SIMO -No foi por isso que ele morreu.

    BRANCA - Teria resistido, se a tortura tivesse sido abreviada.

    SIMO - Sim, mas...

    BRANCA - Para isso teria bastado que o senhor baixasse a corda.

    SIMO - Eu j lhe expliquei...

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    BRANCA - (Grita) E o senhor no foi capaz! O Senhor no foi capaz!

    SIMO - Minha filha, eu compreendo o seu sofrimento. Eu tambm sinto muito. Masno justo que voc se volte agora contra mim. No foi eu quem matou Augusto.Foram eles. Os carrascos, a Inquisio.

    BRANCA - O senhor tambm o matou. E o que mais me horroriza que o senhor umhomem decente.

    SIMO - Branca, voc no sabe o que est dizendo!