o rpg e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (luiz eduardo ricon de freitas)

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Luiz Eduardo Ricon de Freitas O Role Playing Game e a Escola: Múltiplas Linguagens e Competências em Jogo Um estudo de caso sobre a inserção dos jogos de RPG dentro do currículo escolar Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Orientador(a): profª Maria Aparecida Campos Mamede Neves Rio de Janeiro, setembro de 2006

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Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Orientador(a): profª Maria Aparecida Campos Mamede Neves

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Page 1: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

Luiz Eduardo Ricon de Freitas

O Role Playing Game e a Escola: Múltiplas Linguagens e

Competências em Jogo

Um estudo de caso sobre a inserção dos jogos de RPG dentro do

currículo escolar

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

Orientador(a): profª Maria Aparecida Campos Mamede Neves

Rio de Janeiro, setembro de 2006

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Page 2: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

Luiz Eduardo Ricon de Freitas

O ROLE PLAYING GAME E A ESCOLA: MÚLTIPLAS LINGUAGENS E

COMPETÊNCIAS EM JOGO Um estudo de caso sobre a inserção dos jogos de

RPG dentro do currículo escolar

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação do Departamento de Educação do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada

Profª Maria Aparecida Campos Mamede Neves Orientador(a)

PUC-Rio

Profª Rosália Maria Duarte Presidente

PUC-Rio

Profª Maria Luiza Magalhães Bastos Oswald UERJ

Profº PAULO FERNANDO CARNEIRO DE ANDRADE Coordenador Setorial do Centro

de Teologia e Ciências Humanas - PUC-Rio

Rio de Janeiro, 01 de setembro de 2006

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Page 3: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e da orientadora.

Luiz Eduardo Ricon de Freitas Graduado em Comunicação Social pela PUC-Rio em 1992. É escritor, redator, roteirista e pesquisador da Multirio – Empresa de Multimeios da Prefeitura do Rio de Janeiro.

Ficha Catalográfica

CDD: 370

Ricon, Luiz Eduardo

O Role Playing Game e a escola : múltiplas

linguagens e competências em jogo / Luiz Eduardo

Ricon ; orientador: Maria Aparecida Campos Mamede

Neves. – 2006.

176 f. : il. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Educação)–Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, 2006.

Inclui bibliografia

1. Educação – Teses. 2. RPG. 3. Role Playing

Games. 4. Jogos Educativos. 5. Múltiplas Linguagens.

6. Competências. I. Neves, Maria Aparecida Campos

Mamede. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro. Departamento de Educação. III. Título.

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Page 4: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

À minha querida Maya, aos meus filhos David

e Pedro e também a todos aqueles que, direta ou indiretamente, inspiraram, guiaram,

apoiaram ou acompanharam esta jornada

E a todos os meus alunos, os verdadeiros heróis desta aventura

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Agradeço

à minha Orientadora, Aparecida Mamede, pelo carinho, dedicação e paciência; e

por estar lá nos momentos mais difíceis.

à minha querida Maya, que tanto sacrificou e que esteve sempre ao meu lado e

aos meus filhos maravilhosos, David e Pedro, pelo amor e confiança

incondicionais.

ao CNPQ e à FAPERJ (Programa “Bolsa Nota 10”) pelo apoio a este projeto.

aos Professores do Departamento de Educação da PUC-Rio com quem tive a

sorte de estudar: Isabel Lélis, Aparecida Mamede, José Carmelo, Maria Inês

Marcondes, Rosália Duarte e Zaia Brandão.

à Profª Alícia Bonamino e Sônia Kramer, coordenadoras do programa de Pós-

Graduação.

às Professoras Solange Jobim e Maria Luiza Oswald pelo apoio inicial.

a todos os colegas do Mestrado e Doutorado da PUC-Rio, por dividirem comigo

essa jornada.

à escola que abriu generosamente os seus espaços para esta pesquisa, acreditando

no novo e buscando sempre o melhor para seus alunos.

a todos os meninos e meninas que participaram das oficinas: com quem aprendi

muito mais do que ensinei e com quem me diverti muito mais do que entretive

ao Prof. Marcos Ozório e à Professora Regina de Assis, pelo apoio e confiança

em todos os momentos.

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Resumo

Ricon, Luiz Eduardo; Neves, Maria Aparecida Campos Mamede. O Role

Playing Game e a Escola: Múltiplas Linguagens e Competências em Jogo -- Um estudo de caso sobre a inserção dos jogos de RPG dentro do currículo escolar. Rio de Janeiro, 2006. 176 p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Este trabalho registra e analisa criticamente uma experiência de inserção

dos jogos de RPG (Role Playing Game) como parte integrante do currículo de

uma escola particular da zona sul do Rio de Janeiro, com o objetivo de se

trabalhar a expressividade e a criatividade dos alunos por meio do uso de

múltiplas linguagens e também como meio de se promover o desenvolvimento

de variadas competências dentro de sala de aula. Ao todo, 69 crianças e jovens

dos 9 aos 17 anos, alunos da 5ª série do Ensino Fundamental ao 2º ano do Ensino

Médio, participaram das oficinas focalizadas nesta pesquisa. A metodologia

utilizada no trabalho de campo incluiu tanto a observação, apoiada em cadernos

de campo e fotografias, quanto a análise dos artefatos produzidos pelos alunos

durante (e para) as sessões de jogo, sob a forma de descrições dos personagens,

histórias, textos diversos, desenhos, mapas, maquetes etc, além da participação

na montagem de mostras dos trabalhos, visitadas por pais, professores, familiares

e demais membros da comunidade escolar. Ao lado do teatro, da música, da

dança, do vídeo, dos desenhos animados e de outras linguagens e meios de

expressão artística e cultural, a prática de jogos como o RPG, que reúnem

ludicidade e criatividade, pode servir como forma de se aproximar o ambiente da

escola do mundo complexo, múltiplo e multi-midiático no qual as crianças e os

jovens das grandes cidades se encontram imersos em seu dia-a-dia.

Palavras-chave RPG; Role Playing Games; Jogos Educativos; Múltiplas Linguagens;

Desenvolvimento de Competências

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Abstract

Ricon Luiz Eduardo; Neves, Maria Aparecida Campos Mamede. Role

Playing Games and School: a game of multiple languages and competencies. A case study of Role Playing Games as part of the school's curriculum. Rio de Janeiro, 2006. 176 p. M Sc.Dissertation - Departamento de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This work documents an experiment in which Role Playing Games were

part of the curriculum in a private school in Rio de Janeiro. The game was used

as a tool to promote expression and creativity among the students and also the

development of several competencies inside the classroom. Sixty-nine children

and adolescents (ages 9 to 17, from the 5th to the 10th grade) took part in the

workshops studied here. The filedwork methodology included observation,

supported by field notes and photos, along with the analysis of artifacts produced

by the students during (and for) the game sessions, such as character profiles,

stories, assorted texts, drawings, maps, schetches, mock ups and others, and also

their engajement in the preparation of a show, visited by parents, teachers, family

membres and other members of the school community. As with theater, music,

dace, video-production, animation and other forms of artistic and cultural

expression, games like RPGs, that unite creativity and fun, might serve as a way

to straighten the ties between the school and the complex, multiple and multi-

midiatic world where children and adolescents in major cities are imersed in

day-to-day basis.

Keywords RPG; Role Playing Games; Educational Games; Multiple Languages;

Competencies

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Sumário

1. Introdução 13

2. Cenário e personagens 23

2.1 A Escola 23

2.1.1 Organização em ciclos 26

2.1.2 Pedagogia por projetos 27

2.1.3 Histórico da instituição 27

2.1.4 O projeto das oficinas de artes 30

2.2 Os Atores 32

2.2.1 Divisão por idade 32

2.2.2 Divisão por sexo 33

2.2.3 Divisão por série 34

2.2.4 Divisão por oficina 34

2.2.5 A relação com o RPG 35

2.2.6 Casos especiais 37

2.3 As Regras do jogo – A Metodologia de Pesquisa 38

3. RPG, ludicidade e escola 44

3.1 – Jogo ou brincadeira? 46

3.2 – RPG e Educação 51

3.2.1 – O que é RPG? 52

3.2.2 – Como se joga RPG? 55

3.2.3 – E o que não é RPG? 56

3.3 – O RPG e a Escola 61

4. RPG, conteúdos e competências 70

4.1 RPG e educação 70

4.2 A competência de Perrenoud 77

4.3 Competências... quais competências? 87

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5. As oficinas 94

5.1 – As oficinas de artes 95

5.1.1 As Oficinas de RPG 96

6. As Turmas: Descrição e discussão 108

6.1 Análise das categorias 108

6.2 A turma 5601 99

6.2.1 – Expressividade múltipla 126

6.3 – A turma 5602 128

6.3.1 – Pilhagem Narrativa 134

6.4 – A turma 7801 137

6.4.1 – Autonomia 144

6.5 – A turma EM01 148

6.5.1 Subjetividade contemportânea 151

7. Considerações Finais 153

8. Referências Bibliográficas 159

9. Apêndices 166

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Lista de Figuras

Figura 1: mestre e jogadores... 13

Figura 2: jogando com o conhecimento... 14

Figura 3: criando e recriando personagens e histórias 15

Figura 4: livros viram textos e desenhos 16

Figura 5: livros, dados, textos, desenhos, números... 18

Figura 6: mestre e jogadores em plena aventura 19

Figura 7: comemoração! 21

Figura 8: um jogo de crianças e livros... 22

Figura 9: brincadeira ou estudo? 33

Figura 10: Uma das mostras Amiúde 31

Figura 11: Múltiplas competências... 70

Figura 12: professor, mestre de jogo e pesquisador... 94

Figura 13: A Biblioteca do Ensino Fundamental 101

Figura 14: A Biblioteca do Ensino Médio 102

Figura 15: almofadas e mesas 104

Figura 16: Capa do livreto apresentado ... 106

Figura 17: Flagrante do pós guerra... 111

Figura 18: Referências ao cinema (Harry Potter... 114

Figura 19: Do esporte radical ao reino medieval... 114

Figura 20: Aleijadinha 116

Figura 21: O Papa 116

Figura 22: Magrão 117

Figura 23: João, o feto 117

Figura 24: Planejando o Stadium 119

Figura 25: A maquete do Stadium 120

Figura 26: O castelo 2D e 3D 121

Figura 27: Desenhos de G. 122

Figura 28: Trabalhos da mostra Amiúde 124

Figura 29: jovens mestres Jedi em ação! 126

Figura 30: Pilhando ou criando? 129

Figura 31: Aconteceu...virou piada! 130

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Figura 32: As muitas vozes de um elfo 137

Figura 33: grandes aventuras, cadeiras pequenas... 138

Figura 34: Superlotação na sala de jogos... 139

Figura 35: o RPG rompe os limites da sala de aula 147

Figura 36: Aventuras inclusivas no Ensino Médio 149

Figura 37: A Mostra de trabalhos do fim do ano 151

Lista de Gráficos

Gráfico 1 – Divisão por idade 33

Gráfico 2 – Divisão por sexo 33

Gráfico 3 – Divisão por série 34

Gráfico 4 – Divisão por oficina 35

Gráfico 5 – Conheciam o RPG 36

Gráfico 6 – Jogavam RPG 36

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Page 12: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

Mais do que um conjunto de regras a ser obedecido, ou

burlado, a LDB é uma convocação que oferece à criatividade

e ao empenho dos sistemas e suas escolas a possibilidade de

múltiplos arranjos institucionais e curriculares inovadores.

Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. O filósofo irlandês Richard Kearney fala da necessidade

urgente de que recuperemos um tipo de Imaginação que

inclua o Outro. Ao trazer essa noção para uma abordagem

cultural das mídias, a interpretamos como uma necessidade

da criação imaginativa coletiva, em que as crianças se

apropriem das histórias e imagens que encontram na TV, no

cinema, no computador, de tanto brincar com elas, ao mesmo

tempo em que se apropriam das histórias e formas artísticas

produzidas pelas pessoas que vivem a seu redor.

Giradello e Tuyama

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Page 13: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

1. Introdução

Figura 1: mestre e jogadores, professor e alunos, aula e brincadeira

Este trabalho registra e analisa criticamente uma experiência de

utilização dos jogos de RPG (Role Playing Game)1 dentro do ambiente de

uma escola particular da zona sul do Rio de Janeiro, como forma de se

trabalhar com múltiplas linguagens e o desenvolvimento de

competências2, na perspectiva dos Parâmetros Curriculares Nacionais

(PCNs), considerando-se sua inspiração no movimento teórico que

procura contrapor uma educação mais tradicional – centrada na

transmissão de conteúdos, compartimentalizados em saberes

disciplinares – a uma nova concepção pedagógica, fundada em princípios

originários do construtivismo, e que focaliza seus esforços no

desenvolvimento pelos estudantes de competências versáteis, verificáveis

em situações concretas e específicas da vida cotidiana.

1Role Playing Game, RPG ou Jogo de Interpretação, é uma brincadeira de criar e contar histórias

coletivamente, e que coloca os participantes em contato com um ambiente ficcional, dentro do qual eles

criam e interpretam personagens, descrevendo verbalmente as ações e reações dos seus personagens,

utilizando regras e dados numéricos para determinar as chances dos personagens realizarem ou não uma

determinada ação. Um dos jogadores é o Mestre do Jogo, e atua como narrador, descrevendo as situações

nas quais os personagens se envolvem, interpretando todos os demais personagens da história que não são

controlados pelos demais jogadores e também exercendo o papel de juiz da partida, determinando,

esclarecendo e julgando a aplicação das regras. Os jogos de RPG são descritos em mais detalhes no

Capítulo 2.

2 A idéia do desenvolvimento de competências, contraposta à mera transmissão de conhecimentos é um

debate ainda em andamento dentro do campo da Educação. Adota-se, aqui, uma noção de competências

bastante particular e bem delimitada, que nasce do confronto das idéias de vários teóricos, dentre eles

Perrenoud, Delors Ramos, Martín-Barbero, entre outros, e que é alvo de discussão mais detalhada no

Capítulo 3.

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Page 14: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

1. Introdução 14

Figura 2: jogando com o conhecimento, brincando com textos e desenhos

Por lidarem com múltiplas linguagens e diferentes suportes

midiáticos, articulando referências variadas com criatividade e imaginação

e ainda devido ao caráter lúdico envolvido em sua prática, os jogos de

RPG oferecem aos educadores a oportunidade de se trabalhar, de uma

só vez, com um rol de diferentes competências lógicas, linguísticas, inter-

pessoais e cognitivas, além de afetivas e criativas. Integrados a um

projeto pedagógico, no âmbito do Ensino Fundamental e Médio, que

privilegia algo mais do que a preparação para o mundo do trabalho ou o

bom desempenho no exame vestibular, a prática dos jogos de RPG, ao

lado do teatro, da música, da dança, do vídeo e de outras linguagens e

meios de expressão artística e cultural podem servir como forma de

aproximar o ambiente da escola do mundo complexo, múltiplo e multi-

midiático no qual os jovens das grandes cidades se encontram imersos

em seu dia-a-dia.

A metodologia utilizada no trabalho de campo aqui relatado se apóia

tanto na observação de oficinas, quanto na análise dos artefatos

produzidos pelos alunos durante (e para) as sessões de jogo, sob a forma

de personagens, histórias, textos, desenhos, mapas, maquetes etc, além

da análise de fotografias, muitas delas tomadas pelos próprios alunos,

durante o trabalho nas oficinas.

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Page 15: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

1. Introdução 15

Figura 3: criando e recriando personagens e histórias

Os achados do campo sugerem uma grande potencialidade na

utilização dos jogos de RPG como um elemento disparador da utilização

(e possivelmente também do desenvolvimento) de diversas e variadas

competências por parte dos jogadores. Competências essas que podem

(e devem) estar a serviço de um projeto de escola e de mundo voltado

para a constituição de conhecimentos e valores que garantam não só o

sucesso individual mas (muito mais importante) a criação de uma cultura

de cooperação, autonomia, criatividade e de uma relação lúdica com a

escola, o conhecimento e a informação.

A motivação para este trabalho surgiu com a oportunidade de se

trabalhar com os jogos de RPG dentro do ambiente e da própria grade

curricular da escola analisada, integrando um projeto (já existente) no

qual, a partir da 5a série do Ensino Fundamental, os alunos participam de

diversas “oficinas de artes”3, abrangendo diferentes linguagens e

expressões estéticas, tais como o Teatro, a Dança, as Artes Plásticas, a

Música, a Produção em Vídeo, o Desenho Animado e (a partir do ano de

2005) também os jogos de RPG.

Prática de lazer conhecida e apreciada por crianças e jovens das

grandes cidades brasileiras desde o início da década de 1990, o RPG é

frequentemente apresentado como “uma atividade positiva que

desenvolve uma série de habilidades no campo da escrita, leitura,

3As oficinas foram realizadas com alunos de 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental e com alunos das duas

séries iniciais do Ensino Médio. A organização e a dinâmica das oficinas e discutida no Capítulo 04.

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Page 16: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

1. Introdução 16

pesquisa, matemática e comportamento entre outras.” (BRAGA, 2000) ou

percebido por autores, jornalistas, pais e educadores como um possível

meio de se incentivar o hábito da leitura e da escrita em crianças e

jovens,. A suposta4 capacidade de desenvolver a criatividade e o

raciocínio, incentivar a leitura e a escrita e promover a integração social

entre os seus praticantes, que formam grupos coesos muitas vezes

integrados em verdadeiras redes sociais, por si só, já colocariam os jogos

de RPG numa intersecção direta com o campo da Educação, e não são

raras as experiências nas quais se vem buscando ou propondo a

utilização dos jogos de RPG dentro do ambiente educacional.

Figura 4: livros viram textos e desenhos

Além disso, ao longo dos últimos anos, diversos trabalhos

acadêmicos vêm sendo elaborados tendo como tema os jogos de RPG,

originados das áreas de pesquisa em Educação, Design, Letras,

Computação, entre outras, seja nos níveis da Graduação ou da Pós-

Graduação -- tanto no Mestrado como no Doutorado -- de forma que o

presente trabalho se insere numa discussão já em andamento, que se

apresenta de forma dinâmica e multi-disciplinar, através da publicação de

livros e artigos, da realização de encontros, simpósios e eventos dos mais

diversos além da existência de sites, fóruns e listas de discussão sobre

RPG na internet, muitos deles dedicados a discutir as possíveis relações

entre RPG e Educação.

4 Utilizo o termo “suposta” pelo fato desse discurso “a favor” do RPG ser construído, em grande parte,

pelos próprios jogadores, mestres, autores e editores que atuam no ramo, além de professores e educadores

que já se utilizam do RPG em sua prática. Esse “discurso construído” é muito bem analisado por Fairchild

(2004).

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Page 17: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

1. Introdução 17

Entretanto, apesar disso tudo, este ainda é um campo que, em

muitos aspectos, parece carente de uma maior consistência e rigor

científico em suas discussões. Como aponta FAIRCHILD (2004) este

discurso é construído em grande parte sob premissas originadas do

senso comum, influenciadas em alguma medida pelos interesses

pessoais dos autores/pesquisadores/editores e demais profissionais

envolvidos e que, portanto, ainda carecem em muitos casos de efetiva

comprovação empírica.

Desse modo, com o intuito claro de contribuir com este campo de

reflexões ainda em constituição, e contrapondo-se de imediato à

percepção de PAVÃO (1999) e de muitos outros autores, de que, ao

inserir-se o RPG no currículo das escolas, “ele seria escolarizado e

perderia seu caráter lúdico, sua espontaneidade e o prazer de produzir

histórias” (BRAGA, 2000), o presente trabalho documenta uma

experiência de aplicação dos jogos de RPG dentro do currículo de uma

escola, dentro do ambiente de sala de aula, mas promovendo essa

inserção através de uma metodologia de trabalho consistente com um

projeto pedagógico que, através da utilização dos jogos, visa contemplar

não apenas a transmissão de conteúdos, mas sim trabalhar a

multiplicidade de linguagens e expressões trazidas para a escola pelos

alunos, entendendo que o trabalho com múltiplas linguagens deve

considerar as formas próprias através das quais cada sujeito se apropria

e se utiliza destas linguagens de maneira articulada, considerando-se

ainda que a utilização de múltiplas linguagens na escola "favorece

múltiplas formas de ser, dizer e sentir, de expressar-se e de representar o

mundo à sua forma." (MULTIEDUCAÇÃO, 1996) e, mais, que este

trabalho deve abrir espaço para "as diferentes formas de entender, de

explicar, de interpretar e de simbolizar na sala de aula, através de gestos,

sinais, símbolos e signos e em diferentes situações de interlocução

possíveis." (idem)

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Page 18: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

1. Introdução 18

Figura 5: livros, dados, textos, desenhos, números...

Este trabalho, portanto, vem ao encontro de muitas discussões e

reflexões travadas atualmente sobre as potencialidades dos jogos de

RPG para o campo da Educação, mas acaba também indo de encontro a

muitas das suposições e crenças difundidas pelo que FAIRCHILD (op.cit.)

chama de "discurso da escolarização do RPG". A intenção aqui não é

polemizar, mas sim fazer avançar a discussão sobre as possíveis

relações entre o RPG e a escola. Mas também é vislumbrar algo mais

amplo do que isso, que é o modo pelo qual vem se dando a inserção, no

ambiente e nos espaços escolares, de práticas sociais e estéticas outras,

mais próprias das culturas infantis e juvenis contemporâneas, além de

refletir sobre as potencialidades que surgem a partir da utilização, pelos

professores e pela escola, de um leque de múltiplas linguagens, suportes

e expressões dentro de sua prática pedagógica -- o que acaba

envolvendo questões ainda mais amplas (apenas tangenciadas neste

trabalho), como a relação entre escola e sub-culturas juvenis urbanas; a

interação entre os campos da Mídia e da Educação; a apropriação, por

parte de crianças e jovens dos conteúdos e mensagens que circulam na

chamada “cultura de massa” e a inserção, no espaço e na cultura escolar,

dos novos modos de conhecer e de se expressar, especialmente através

do domínio crítico das novas tecnologias de informação, entretenimento e

comunicação, entre muitas outras.

Claro que não se pretende esgotar ou mesmo encampar todas

essas questões neste trabalho. Pretende-se, isso sim, discutir o RPG

dentro desse universo de práticas e produtos, de linguagens e suportes

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Page 19: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

1. Introdução 19

por meio dos quais as crianças e jovens das grandes cidades do Brasil (e

do mundo) vêm constituindo conhecimentos e valores, construindo suas

identidades e formando redes, lidando com o conhecimento, a informação

e a linguagem de forma lúdica e múltipla. Entender o RPG dentro do

multiverso das histórias em quadrinhos (sobretudo o mangá5, quadrinhos

japoneses), desenhos animados, cinema, moda, música, videogames,

DVDs (oficiais ou “alternativos”6), internet, telefones celulares etc. etc.etc.

Figura 6: mestre e jogadores em plena aventura

Este trabalho também é, em grande parte, fruto de uma experiência

pessoal de mais de 13 anos com os jogos de RPG, incluindo-se o

trabalho como autor e a realização de diversos cursos, palestras e

oficinas para professores e educadores, sobre o tema, além de uma

atuação como profissional e pesquisador, transitando no espaço

compreendido entre os campos da Mídia e da Educação.

Como autor de um dos primeiros RPGs publicados no Brasil (o

primeiro RPG a lidar com temas da cultura nacional), pude acompanhar

de perto o movimento de intensa aproximação entre o RPG e a Escola,

surgido seja a partir das demandas de professores e educadores,

interessados em utilizar os jogos de RPG num contexto pedagógico ou

por deliberados movimentos comerciais por parte das editoras

especializadas, que vislumbravam a oportunidade de adoção pelas

5 O estudo sobre os mangás e os animes (desenhos animados japoneses) têm motivado diversos trabalhos

interessantíssmos tanto no Brasil quanto em outros paìses. Recomenda-se inicialmente o trabalho de Sonia

Luyten, bastasnte esclarecedor acerca do universo dos quadrinhos japoneses, mas também os artigos de ITO

(2003) e SOUZA. e SALGADO (2004).

6 leia-se “piratas”...

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Page 20: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

1. Introdução 20

escolas de seus livros de RPG.

Além disso, ao longo desses 13 anos de atuação como autor7 de

livros de RPG, pude travar contato com muitos dos pesquisadores que se

dedicaram a estudar o RPG de forma mais consistente, tendo

acompanhado (com maior ou menor proximidade) muitos dos seus

trabalhos, seja como curioso, interessado ou até mesmo como

entrevistado em algumas de suas pesquisas (por conta do meu trabalho

como autor/profissional da área). Sendo uma espécie de “pioneiro” nesse

campo, e diante da crescente aproximação do RPG com o campo da

Educação, era natural que minha trajetória profissional me levasse a

tangenciar essas questões. Porém, esse interesse foi crescendo e se

tornou um movimento consciente, a partir da participação nos primeiros

Simpósios de RPG e Educação, realizados em São Paulo e da

apresentação de um trabalho no Simpósio Histórias Abertas, realizado na

PUC-Rio, em 2003.

Com o título de “Construindo Competências através da Imaginação

Criativa”, este primeiro artigo buscava uma aproximação entre as idéias

de Phillipe Perrenoud (especialmente seus estudos sobre a aplicação da

noção de competências dentro do campo da Educação) e a prática dos

jogos de RPG, articulando-as com alguns dos trabalhos acadêmicos

realizados sobre o RPG, levantando a possibilidade de se utilizar o RPG

na escola não para a mera transmissão dos conteúdos, mas com uma

visão mais ampla e mais profunda, que contemplasse as possibilidades

do desenvolvimento, pelos alunos, de competências e habilidades

trabalhadas naturalmente pelo RPG, por serem quase que “parte do jogo”.

7 Meus trabalhos nesta área incluem os livros “O Desafio dos Bandeirantes – Aventuras na Terra de Santa

Cruz” (1992), “Os Quilombos da Lua” (1994) e os títulos da sèrie mini GURPS,:“O Descobrimento do

Brasil” (1999), “Quilombo dos Palmares” (1999), Entradas e Bandeiras (2000), “No Coração dos Deuses”

(2000) e “As Cruzadas” (2002).

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Page 21: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

1. Introdução 21

Figura 7: comemoração!

Após a elaboração do artigo, recebi o convite para realizar oficinas

de RPG (que constituem o objeto de estudo deste trabalho) numa escola

particular da zona sul do Rio de Janeiro. As oficinas aconteceram de

março a novembro de 2005, o escopo desta pesquisa. Em maio deste

mesmo ano, um artigo inspirado pelas oficinas foi premiado no concurso

“Panorama do Ensino Médio”, realizado por uma universidade particular

do Rio de Janeiro, e publicado em livro8.

Enfocando somente o trabalho com a oficina de Ensino Médio, este

segundo artigo foi como que uma ampliação daquela discussão inicial a

respeito da relação entre o RPG e o desenvolvimento de competências,

realizando agora uma reflexão crítica sobre a própria noção de

competências aplicada à Educação e sobre os desafios que se colocam

diante do Ensino Médio.

Em grande medida, ambos os artigos formam a base teórica na qual

este trabalho está apoiado, e suas discussões serão retomadas mais à

frente, ao longo deste texto e mais especificamente no Capítulo 04.

Para a consecussão dos objetivos traçados, este trabalho se

estrutura da seguinte forma:

No Capítulo Dois são descritos a escola onde foram realizadas as

oficinas e o universo de crianças e jovens pesquisados, além da

8 O livro se chama “Panorama Atual do Ensino Médio: Virtudes, Problemas e Sugestões” e foi publicado

pela Editora Rio, em novembro de 2005.

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1. Introdução 22

metodologia traçada para esta pesquisa.

No Capítulo Três discute-se alguns conceitos básicos sobre a

relação entre Ludicidade, Escola e o RPG, além de se trazer à luz vários

conceitos básicos sobre o jogo, além de se traçar um panorama do que

há de mais relevante para este trabalho dentro da produção teórica e

acadêmica que explora as múltiplas relações entre o RPG e a Educação.

No Capítulo Quatro trava-se uma importante discussão a respeito

da noção de competências aplicadas à Educação e é realizada uma breve

reflexão teórica que busca definir e delimitar conceitualmente a noção de

competências com a qual este trabalho opera, ou busca operar. Não

como dogma, mas como norte.

No Capítulo Cinco são descritas as oficinas realizadas na escola

pesquisada, separadas pelas quatro turmas analisadas. Neste momento

também se discutem as categorias de análise e os dados colhidos no

campo, além dos achados mais importantes.

No Capítulo Seis toda a discussão travada nos demais capítulos

leva a algumas Conclusões e a novos encaminhamentos para o futuro.

Os Apêndices trazem amostras dos trabalhos desenvolvidos pelos

alunos, a matéria-prima desta pesquisa., além de documentos,

formulários, cartas e tudo o mais que possa dar uma noção mais clara e

vívida do percurso de pesquisa seguido neste trabalho.

Figura 8: um jogo de crianças e livros...

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2. Cenário e Personagens

Figura 9: brincadeira ou estudo?

A Educação foi o nosso caminho para mudar o mundo (...). Nós não pegamos em armas, nós criamos uma escola.

do site da escola PARAÍSO

2.1 A Escola

O local escolhido para a realização desta pesquisa foi uma escola

particular, localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro e que atende alunos

da Educação Infantil ao Ensino Médio. Caracterizada por um projeto

educacional bastante diferenciado, que se reconhece como sendo

influenciado pela experiência da escola inglesa Summerhill1, a escola

PARAÍSO2 integra um seleto grupo de escolas particulares cariocas que

poderiam ser consideradas como “de elite”3 e que reúne também diversas

escolas religiosas e colégios de aplicação.

1 criada em 1921, por A. S. Neill a escola Summerhill tornou-se mundialmente famosa nos anos 60, com a publicação de "Summerhill (A Liberdade sem Medo): Transformação na Teoria e na Prática", um livro que relata a experiência revolucionária de uma escola-comunidade gestionada democraticamente por crianças, jovens e adultos (diretor, professores e funcionários).

2 o nome é fictício

3 Em pesquisa da Revista Veja, em 2004, a PARAÍSO aparece entre as 5 melhores escolas do Rio de Janeiro.

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2. Cenário e Personagens 24

Atualmente, a PARAÍSO conta com 3 sedes, localizadas nos bairros

de Botafogo e Laranjeiras, em casarões adaptados para abrigar salas de

aula e outras instalações da escola. As sedes são divididas de acordo

com os diversos segmentos/ciclos de escolaridade. Desse modo, numa

das casas funciona a Educação Infantil, em outra o Ensino Fundamental I

(pela manhã) e o Ensino Fundamental II (à tarde), enquanto a terceira

sede abriga o Ensino Médio (além de um projeto de Educação de Jovens

e Adultos, oriundos de comunidades populares circunvizinhas). A

PARAÍSO atende hoje mais de 600 alunos, oferecendo ainda a opção de

Horário Extensivo para crianças do Grupo 1 da Educação Infantil (a partir

de 2 anos) até a 4ª série do Ensino Fundamental.

Segundo LELIS (2005)4, existe uma percepção muito clara de que a

PARAÍSO se diferencia das demais escolas que atendem às camadas

médias na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ao falar sobre os pais dos seus

alunos, uma das suas entrevistadas comenta:

...comparando com a escola PARAÍSO, os pais

desse colégio não se caracterizam por serem da elite

intelectual; são pais que se caracterizam pela relação

custo-benefício (...) São pessoas mais individualistas e

competitivas. (...) São pessoas com menos

comprometimento social e político. (...) A grande maioria

não percebe a riqueza do trabalho que a escola realiza.

LELIS, 2005: p.11

Por contraste, será que poderíamos inferir que a imagem da

PARAÍSO é de uma escola que se propõe a atender os filhos da “elite

intelectual”, buscando formar pessoas solidárias e participativas e com

“grande comprometimento social e político”?

Aparentemente, essa visão reflete em grande parte o projeto

4 Na PUC-Rio, Isabel Lélis, juntamente com Zaia Brandão, vem se dedicando a estudar a escolarização das camadas médias.

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2. Cenário e Personagens 25

pedagógico da PARAÍSO, descrito em detalhes no site da escola na

internet, do qual destaco o seguinte trecho:

Na PARAÍSO, privilegia-se, da Educação Infantil ao

Ensino Médio, o conhecimento crítico, ou seja, o

conhecimento sobre os processos históricos, culturais e

políticos que marcam as formas e os conteúdos do que se

apresentam como objetos do conhecimento, ao longo do

processo de escolaridade.

Também do site da escola na internet, retiro um trecho onde se

enumeram os princípios basilares do projeto pedagógico da PARAÍSO, e

que sintetizam, de forma bastante eficiente, muito da proposta

educacional que se pretende para a escola. Chamados de “Os Sete

Princípios”, eles são:

1. Conhecimento Significativo: Motivar o desejo de aprender sempre, estimular o gosto pelo conhecimento, a descoberta e a compreensão do mundo fornecendo critérios para a pesquisa e a busca de informações.

2. Convivência Social: Ensinar a respeitar limites e regras e a trabalhar conflitos para poder transformar, criar novas formas de convivência, propor novas bases para se relacionar com o outro e a coletividade.

3. Subjetividade Contemporânea: Interagir com o aluno como um ser inteiro, íntegro, constituído tanto pelo aspecto cognitivo quanto pelo afetivo e emocional, fortalecer sua auto-estima e oferecer-lhe a segurança de que precisa para construir sua subjetividade a partir de novos paradigmas.

4. Expressividade Múltipla: Propiciar a vivência e a experimentação de diferentes linguagens, artes plásticas, cinema, vídeo, teatro, visando ao auto-conhecimento, à auto-expressão, abrindo a possibilidade da emergência do novo.

5. Autonomia: Incentivar a autonomia para pensar, escolher, decidir, para não se deixar manipular, enganar quanto a seus propósitos e desejos.

6. Leitura Textual e Leitura de Mundo: Apresentar a diversidade de textos e suas múltiplas funções sociais com o objetivo de propiciar o desenvolvimento de aptidões relacionadas ao escrever e ao entendimento do mundo.

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2. Cenário e Personagens 26

7. Participação Social: Estimular a participação em projetos, atividades, trabalhos voltados para o benefício do outro, levando a perceber a relevância da atuação de cada um no contexto social.

2.1.1 Organização em ciclos

Desde 1996, a PARAÍSO organizou sua escolaridade em ciclos,

definidos pela própria escola em seu site na internet como:

“períodos de 2, 3 ou 4 anos, definidos a partir da

observação das etapas do desenvolvimento sócio-

afetivo e cognitivo, que separam o longo período de

formação previsto pela escola, concretizando em

objetivos parciais as intenções educativas gerais”.

A idéia dos ciclos de aprendizagem, presente na obra de teóricos

como Wallon, e cujas experiências pioneiras surgiram na década de 60

em vários estados brasileiros, representa uma alteração radical na

organização escolar estruturada em séries, numa busca por combater,

entre outras coisas, também a evasão e a reprovação, que seriam a

expressão mais cruel do chamado fracasso escolar. A discussão sobre a

validade dessa nova organização da escolaridade mobilizou e mobiliza

muitos educadores e pensadores da área da Educação, com argumentos

contrários e favoráveis quase que na mesma quantidade. E no Brasil,

muitos sistemas públicos de ensino (entre eles o da cidade do Rio de

Janeiro), já adotam a organização por ciclos, pelo menos em algum nível.

A própria LDB (Lei no. 9394/96), a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação já indica a possibilidade de se organizar o Ensino Fundamental

em ciclos, o que (ainda segundo o site da escola PARAÍSO) :

“confere maior amplitude à visão do processo de aprendizagem,

possibilitando uma compreensão mais profunda da atuação pedagógica, a

avaliação processual e a análise adequada das condições de

conhecimento a serem oferecidas a cada etapa”.

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Page 27: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

2. Cenário e Personagens 27

Na PARAÍSO, a divisão em ciclos se organiza da seguinte forma:

CICLO I - Grupos 1, 2 , 3, 4, 5 e 6 - Educação Infantil CICLO II - 1ª e 2ª séries - Ensino Fundamental I CICLO III - 3ª e 4ª séries - Ensino Fundamental I CICLO IV - 5ª e 6ª séries - Ensino Fundamental II CICLO V - 7ª e 8ª séries - Ensino Fundamental II CICLO VI - 1º, 2º e 3º anos- Ensino Médio

Vale ressaltar que, para efeitos desta pesquisa, nos interessam

apenas os ciclos IV, V e VI, com os quais foram realizadas as oficinas de

RPG aqui estudadas.

2.1.2 Pedagogia por Projetos

A Pedagogia por Projetos está na base da organização didática da

PARAÍSO e seus fundamentos podem ser encontrados nas obras de

Celestin Freinet, no movimento da Escola Nova (especialmente John

Dewey) e, aqui no Brasil, a partir das idéias de Anísio Teixeira,

principalmente.

Para ESTEBAN (2003), como a Pedagogia de projetos “estimula a

introdução de atividades mais dinâmicas na relação ensino-

aprendizagem” (p.81), ela abre espaço no currículo das escolas para a

realização de atividades cooperativas, baseadas no diálogo, nas quais

professores e alunos interagem no processo de construção de

conhecimentos.

Se nos remetermos novamente aos “Sete Princípios” da PARAÍSO,

perceberemos facilmente a influência desses fundamentos da pedagogia

por projetos sobre os princípios escolhidos pela escola para orientar sua

proposta pedagógico.

2.1.3 Histórico da Instituição

Para que se torne mais fácil a compreensão das representações, do

discurso e dos pressupostos teóricos e ideológicos que norteiam a

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2. Cenário e Personagens 28

proposta de trabalho da escola PARAÍSO, e que, em última instância,

criaram o ambiente onde as oficinas com os jogos de RPG -- objeto desta

pesquisa -- foram realizadas, talvez seja fundamental conhecer um pouco

mais a fundo a trajetória e o histórico dessa instituição de ensino, até

porque ambas parecem ocupar um lugar de grande destaque nos textos

que apresentam a escola em seu site na internet, e também no discurso

dos seus representantes, ouvidos durante eventos como a festa junina, as

mostras dos trabalhos das oficinas e outros, o que já sinaliza de imediato

o quanto este histórico é revelador das representações e da imagem que

a escola tem de si mesma e do mundo no qual está inserida.

Sem esquecermos que as instituições de ensino são “pessoas

jurídicas”, ou seja, são fruto de movimentos sociais e coletivos, também

devemos reconhecer o quanto elas são moldadas por sonhos, projetos,

idéias, intenções e sentimentos, todos bastante humanos, muitas vezes

até mesmo contraditórios.

A PARAÍSO foi fundada em 1969, iniciando suas atividades em

1970, com a Educação Infantil (crianças de 2 anos de idade), ampliando

seu trabalho nos anos seguintes com as classes de Fundamental I e

formando sua primeira oitava série em 1979. Concebida por estudantes

de Psicologia e professoras primárias da Rede Pública de Ensino, a

PARAÍSO nasceu do interesse pelas teorias psicológicas do

desenvolvimento afetivo e cognitivo, marcas desses tempos iniciais da

escola e representativas do pensamento pedagógico da época.

O site da escola na internet faz questão de conferir um viés político à

sua atuação, ressaltando que a escola foi criada em plena ditadura militar:

“O país vivia o AI-5, a tortura e a censura. Era

difícil falar, criar, discutir e mesmo pensar. Mas foi

também o tempo de grandes mudanças, trazidas por

movimentos de rebeldia, contestação e renovação.

Criar uma escola, naquele momento, era resistir, era

apostar no futuro.”

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2. Cenário e Personagens 29

Dessa forma, A PARAÍSO parece querer reafirmar-se como “um

espaço de liberdade, participação e confiança nas possibilidades do

homem”. A esse respeito, alguns depoimentos colhidos pela escola em

comemoração aos seus 35 anos (e reproduzidos no site da escola) nos

interessam por serem bastante expressivos em captar e transmitir um

pouco das idéias e sentimentos por detrás da criação da PARAÍSO:5

"A necessidade de liberdade foi o elã que levou à

criação e que mantém a PARAÍSO até hoje. Essa

liberdade de criar uma nova linguagem, uma nova

abordagem. A idéia era fazer uma escola livre, onde as

crianças circulariam por um centro de interesses. A

abordagem era a da expressão. Era uma coisa nova,

mas a PARAÍSO se tornou uma das melhores escolas

e solidificou isso." (...)

"O momento social era opressivo. O movimento

estudantil (e nós éramos estudantes) puxava a

sociedade, era nele que estava localizado o maior

protesto. Nós estávamos imbuídos do espírito

revolucionário e de muita utopia." (...)

"A estrutura e o funcionamento da escola teve

inspiração em Sumerhill, na prática de fazer

assembléias com os alunos. Do método Montessori, a

gente aproveitou a experimentação.” (...)

A proposta da Escola Nova também estimulava a

experimentação e levava a gente a pensar desafios

sobre os quais a criança deveria criar em cima." (...)

5 O intuito aqui é o de “dar voz” à instituição, deixando que a mesma se expresse e se mostre “em suas

próprias palavras”. A idéia é mostrar o mais claramente possível como a escola PARAÍSO se enxerga, se

entende e se apresenta ao mundo. Entenda-se que isso não reflete a opinião ou as conclusões do

trabalho, sendo apenas o ponto de partida da pesquisa.

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Page 30: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

2. Cenário e Personagens 30

Além da influência das idéias da Escola Nova, e como a própria

escola propagandeia em seu site, a PARAÍSO se diz também influenciada

pela experiência da escola Summerhill6, na Inglaterra. Não cabe aqui nos

determos demais na descrição da escola Summerhill, até porque

Summerhill e a PARAÍSO são escolas bastante diferentes, mas fica

ressaltado aqui, uma vez mais, o fato da experiência de Summerhill ter

sido citada como inspiração inicial para a criação da PARAÍSO, o que

novamente é bastante revelador das concepções éticas, estéticas e

políticas que subsidiam as propostas pedagógicas da escola PARAÍSO.

2.1.4 O Projeto das Oficinas de Artes

Uma preocupação muito clara no dia-a-dia da escola PARAÍSO

parece ser demonstrar a importância dada às diferentes linguagens e

expressões artísticas. Ao lado de disciplinas como Língua Portuguesa ou

Matemática, os alunos também têm aulas de Artes (Artes Plásticas e

Comunicação Visual) e Música, desde os primeiros ciclos.

Porém, a partir do Ensino Fundamental II (5ª à 8ª séries, ou ciclos IV

e V) e também no Ensino Médio (ciclo VI), os alunos participam do

programa de Oficinas de Artes, que integram a grade curricular da escola,

não como atividades “extra-classe”, mas como disciplinas regulares.

São oferecidas aos alunos oficinas de Teatro, Música, Dança, Artes

Plásticas, Vídeo, Cinema de Animação e RPG (a partir de 2005).

Para os alunos de 5ª e 6ª séries, as oficinas são trimestrais e, no

decorrer das duas séries que compõem o ciclo IV, os alunos devem

passar por todas as oficinas. Essas são, portanto, oficinas introdutórias,

6 Criada nos anos 20 pelo escritor e professor A. S. Neil, a escola Summerhill buscava ser uma

comunidade totalmente democrática e libertária, onde alunos, professores, funcionários e diretores decidem

juntos, deliberando em assembléias sobre toda e qualquer matéria concernente à vida escolar.

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Page 31: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

2. Cenário e Personagens 31

de curta duração, que servem mais como uma apresentação às diferentes

linguagens e expressões.

Já para os alunos de 7ª e 8ª séries (ciclo V) e de Ensino Médio

(somente no 1º e 2º anos), as oficinas são anuais e a escolha de qual

oficina o aluno vai cursar é livre (mas a formação das turmas obedece

alguns critérios, que serão descritos mais adiante, quando se tratar mais

especificamente das oficinas, no Capítulo Quatro).

Figura 10: Uma das mostras Amiúde

Todas as oficinas ocupam dois tempos de aula semanais, sendo que

ao final do período letivo (trimestral ou anual) é realizada uma mostra de

trabalhos, que reúne pais, alunos e familiares. As mostras das oficinas

trimestrais são chamadas de “Amiúdes” e são mais modestas, enquanto

as mostras de fim de ano são eventos tradicionais no calendário da

escola, prestigiados e preparados com muito esmero.

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Page 32: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

2. Cenário e Personagens 32

2.2 Os Atores

Esta pesquisa foi realizada com a participação de 69 crianças e

jovens, todos alunos de escola PARAÍSO, que integravam diferentes

turmas, distribuídas entre a 5ª série do Ensino Fundamental e a 2ª série

do Ensino Médio.

Pela própria natureza da escola e da clientela que atende, esses

alunos podem ser considerados quase que na sua totalidade como

provenientes de famílias das camadas médias, com pais e familiares que

possuem alto grau de instrução e acesso a bens materiais e culturais

como filmes, livros, TV, computadores, internet, videogames, viagens,

cursos de língua, esportes etc.7 Vamos acompanhar, a seguir, uma

descrição mais detalhada do universo de crianças e jovens focalizados

por esta pesquisa.

2.2.1 Divisão por Idade

Distribuídos entre os 9 e os 17 anos, estes 69 alunos representavam

um universo bastante variado em termos de idade. No total, as oficinas

contaram com um aluno de 9 anos (1%), 6 alunos de 10 anos (9%), 14

alunos de 11 anos (20%), 8 alunos de 12 anos (19%), 13 alunos de 13

anos (19%), 11 alunos de 14 anos (16%), 8 alunos de 15 anos (12%), 3

alunos de 16 anos (4%) e finalmente 5 alunos de 17 anos (7%). No

gráfico 1 podemos ver a distribuição dos alunos por idade.

7 Parece seguro considerar o universo de alunos pesquisados aqui como sendo bastante similar ao das pesquisas sobre a escolarização das elites, realizadas na PUC-Rio por Zaia Brandão e Isabel Lélis, entre outros.

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Page 33: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

2. Cenário e Personagens 33

Divisão por idade

91%

109%

1120%

1212%13

19%

1416%

1512%

164%

177%

9

10

11

12

13

14

15

16

17

Gráfico 1 – Divisão por idade

2.2.2 Divisão por Sexo

No cômputo geral, houve um claro predomínio numérico dos

meninos (77%) em relação às meninas (23%), sendo que algumas turmas

estavam mais equilibradas do que outras neste sentido. Enquanto uma

das turmas contava com 15 meninos e apenas 1 menina (94% contra

6%), uma outra contava com 7 meninos e 5 meninas (58% contra 42%).

As duas turmas restantes contavam com 12 meninos e 3 meninas (80%

contra 20%) e com 19 meninos e 7 meninas, sendo esta última a que

mais se aproximou da proporção geral das oficinas (73% de meninos

contra 27% de meninas).

No gráfico 2 podemos ver a divisão geral por sexo.

Gráfico 2 – Divisão por sexo

Divisão por Sexo

meninos

77%

meninas

23%

meninos

meninas

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2. Cenário e Personagens 34

2.2.3 Divisão por Série

Como as oficinas direcionadas à 5ª e à 6ª séries renovavam suas

turmas trimestralmente, enquanto as demais séries mantinham-se com

uma mesma turma ao longo de todo o ano letivo, e também devido aos

critérios de escolha dos alunos que integrariam cada turma (e que serão

explicados detalhadamente na descrição das oficinas, mais adiante)

houve uma maior concentração de alunos de determinadas séries em

detrimento de outras.

No total, as oficinas contaram com 13 alunos de 5ª série (19%), 18

alunos de 6ª série (26%), apenas 3 alunos de 7ª série (4%), 23 alunos de

8ª série (33%) e ainda com 6 alunos do 1º ano do Ensino Médio (9%) e

com também 6 alunos do 2º ano do Ensino Médio (9%).

No Gráfico 3 podemos ver a distribuição dos alunos por série:

Divisão por Série

5ª19%

6ª26%

7ª4%

8ª33%

EM 1º9%

EM 2º9%

EM 1º

EM 2º

Gráfico 3 – Divisão por série

2.2.4 Divisão por Oficina

Ao longo do ano, foram realizadas cinco oficinas, sendo 3 trimestrais

com alunos da 5ª e 6ª séries e duas anuais, uma para alunos de 7ª e 8ª

séries e outra para alunos do 1º e do 2º anos do Ensino Médio. Devido ao

cronograma traçado para a coleta de dados, e por julgar que estes dados

seriam redundantes, escolhi desprezar a terceira oficina de 5ª e 6ª séries

para efeitos desta pesquisa.

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2. Cenário e Personagens 35

Dessa forma, este trabalho cobre 4 das 5 oficinas: duas oficinas

trimestrais de 5ª e 6ª séries (tratadas daqui por diante como 5601 e 5602),

uma oficina anual de 7ª e 8ª séries (tratada daqui por diante como 7801)

e por último uma oficina anual de 1º e 2º anos do Ensino Médio (tratada

daqui por diante como EM01).

A distribuição dos alunos pelas oficinas também variou muito. As

duas turmas trimestrais (5601 e 5602) contaram com 15 e 16 alunos

respectivamente (22% e 23% do total), enquanto a turma 7801 foi a mais

populosa, com 26 alunos (38% do total), em contraste com a EM01, que

contou com apenas 12 alunos (17% do total). Em média, tivemos

aproximadamente 17 (17,25) alunos por turma.

No Gráfico 4 podemos ver a distribuição dos alunos pelas oficinas.

Divisão por Oficina

560122%

560223%7801

38%

EM0117%

5601

5602

7801

EM01

Gráfico 4 – Divisão por oficina

2.2.5 A relação com o RPG

É necessário ainda descrever os alunos pesquisados em sua

relação com o objeto dessa pesquisa, ou seja, com os jogos de RPG.

Segundo o que foi declarado pelos próprios alunos no início das

oficinas, a grande maioria deles já conhecia os jogos de RPG, seja de

ouvir falar ou de já ter jogado uma ou duas vezes. Dos 69 alunos, 45 já

conheciam o RPG (65%), ao passo que para 24 alunos (35%) o RPG era

uma novidade. Porém, mesmo os que desconheciam o jogo já tinham

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2. Cenário e Personagens 36

“ouvido falar” de RPG, sendo raros os casos de algum aluno que “nunca

tinha ouvido falar” desses jogos, o que pode sugerir tanto que o RPG

alcançou uma divulgação maior nos últimos anos e deixou de ser algo

desconhecido para a maioria das crianças e jovens ou que os jovens das

camadas médias têm mais acesso à informação sobre esse tipo de

atividade de lazer/cultural. Infelizmente não houve como apurar isso (e

nem era esse o intuito do trabalho...)

No entanto, nem todos os 45 alunos que já conheciam o RPG eram

praticantes desses jogos. Apenas 15 alunos (22% do total) costumavam

jogar RPG como atividade de lazer, geralmente com amigos e conhecidos

(“no meu prédio”, “no condomínio do meu pai”) ou com familiares (“com

meu tio”, “com meu irmão”).

Nos Gráficos 5 e 6 vemos todas essas informações.

Gráfico 5 – Conheciam RPG

Gráfico 6 – Jogavam RPG

Conheciam RPG

Sim 65%

Não

35% Sim

Jogavam RPG

Sim22%

Não 78%

SimNão

Não

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2. Cenário e Personagens 37

2.2.6 Casos Especiais

Pelo fato de ser uma escola inclusiva8, a PARAÍSO atende famílias e

alunos portadores de necessidades especiais. As oficinas de RPG

focalizadas neste trabalho, contaram com a presença de alunos com

necessidades especiais ou distúrbios de aprendizagem, o que tornou a

pesquisa potencialmente muito mais interessante.

Mesmo não sendo um dos meus objetivos mergulhar a fundo no

campo da Educação Especial e de suas relações com os jogos de RPG,

uma seara que mereceria tempo e dedicação muito além do escopo desta

pesquisa, a presença destes alunos dirigiu o trabalho no sentido abarcar

também minimamente este universo de estudos, até porque esta foi uma

rara oportunidade de se observar a relação de alunos com necessidades

especiais e a prática do RPG, o que, até onde se apurou, foi assunto

tratado apenas por KLIMICK (2003), em sua pesquisa sobre o uso do

RPG na educação de alunos surdos.

Durante as oficinas realizadas na PARAÍSO, surgiu a oportunidade

de trabalhar com o RPG junto a alunos autistas, portadores de dislexia e

cadeirantes (portadores de paralisia cerebral)9 e também alguns alunos

com variados distúrbios de aprendizagem.

No total, as oficinas de RPG contaram com 07 alunos com

necessidades educativas especiais ou distúrbios de aprendizagem, o que

representa pouco mais de 10% do número de alunos, um percentual

pequeno mas ainda assim expressivo, já que, em média, 10% da

8 “Por educação inclusiva se entende o processo de inclusão dos portadores de necessidades especiais ou de distúrbios de aprendizagem na rede comum de ensino em todos os seus graus.(...) Na escola inclusiva o processo educativo é entendido como um processo social, onde todas as crianças portadoras de necessidades especiais e de distúrbios de aprendizagem têm o direito à escolarização o mais próximo possível do normal. O alvo a ser alcançado é a integração da criança portadora de deficiência na comunidade.”

MRECH, L. M. O que é Educação Inclusiva? http://www.inclusao.com.br/projeto_textos_23.htm (acesso em 03/2005)

9 Os diagnósticos baseiam-se em informações recebidas de outros professores, funcionários da escola, além da declaração de alguns dos próprios alunos.

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2. Cenário e Personagens 38

população mundial e 14,5% da população brasileira10, possuem algum

tipo de necessidade especial.

Nas oficinas focalizadas neste trabalho, havia 02 alunos com

necessidades especiais na turma 5601 (29%), 01 aluno na turma 5602

(14%), 03 alunos na turma 7801 (43%) e 01 aluno na turma EM01 (14%).

2.3 As Regras do Jogo: A Metodologia da Pesquisa

No caso da pesquisa aqui relatada, o trabalho de campo

apresentava alguns grandes desafios. O primeiro deles era o de garantir o

rigor diante da proximidade e da familiaridade do pesquisador com o

objeto da pesquisa.

Como seria possível garantir que aquilo que estava sendo visto

estava mesmo ali diante dos olhos, e não era apenas um mero reflexo de

experiências passadas, como as miragens de outras paisagens já vistas

ao longo da estrada mas que se fixam na retina dos olhos cansados,

ofuscando a visão durante um tempo?

Como saber se o que se ouvia era realmente aquilo que se dizia e

não aquilo que se queria ouvir, aquilo que já se esperava ouvir, como o

eco de nossa própria voz, ouvida no interior de uma enorme caverna

diante das sombras lançadas nas paredes pela luz da fogueira?

Como garantir que os papéis de professor, autor, jogador e mestre

de RPG não se misturassem ao personagem do pesquisador, na hora

deste último entrar em cena e partir na aventura da pesquisa?

Como aproximar o meu olhar e a minha atenção o máximo possível

do que seria a real expressão da voz das crianças e jovens pesquisados,

sem com isso comprometer o vínculo que deveria existir entre professor e

alunos e entre mestre do jogo e jogadores de RPG?

10 segundo os dados estatísticos da ONU e o censo 2000 do IBGE

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2. Cenário e Personagens 39

Ou, de modo sintético, como seria possível impedir que a pesquisa

interferisse no desenrolar do jogo e vice-versa?

Para atacar todas essas questões de uma só vez, seria preciso

traçar uma estratégia metodológica própria e única, tendo sempre em

vista os objetivos principais do trabalho.

A primeira decisão importante foi a de se construir uma proposta de

trabalho que, inserida no domínio da pesquisa qualitativa, pudesse se

caracterizar como um tipo de estudo que me permitisse “compreender a

trama intrincada do que ocorre numa situação microssocial” (Lüdke e

André, 1986, p.7), segundo “uma nova atitude de pesquisa, que coloca o

pesquisador no meio da cena investigada, participando dela e tomando

partido na trama da peça.” (idem) Entendendo, a partir de Bogdan e

Biklen (1982, apud Lüdke e André, op.cit.), que a pesquisa qualitativa

caracteriza-se pela “obtenção de dados descritivos, no contato direto do

pesquisador com a situação estudada, enfatizando mais o processo do

que o produto e se preocupando em retratar a perspectiva dos

participantes” (p.13)

Pela própria natureza incomum do trabalho focalizado nessa

pesquisa (a utilização da prática dos jogos de RPG como uma disciplina

dentro do currículo escolar), decidi que o mais correto seria construir uma

proposta de pesquisa dentro do modelo dos Estudos de Caso, indicados

exatamente quando “queremos estudar algo singular, que tenha um valor

em si mesmo” (Lüdke e André, op. cit., p.17).

Dentro dessa concepção, e compreendendo que o estudo de caso

se fundamenta na idéia do conhecimento como algo que não está

acabado, mas que se encontra em constante construção, que precisa

levar em conta o contexto no qual o objeto se situa, com a intenção de

revelar a multiplicidade de dimensões de um determinado problema,

utilizando uma variedade de fontes de informação, apresentando os

dados de modo a permitir generalizações naturalísticas a partir do

confronto dos dados da pesquisa com as experiências próprias dos

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2. Cenário e Personagens 40

leitores, abrindo ainda espaço para que os diferentes pontos de vista

presentes possam se manifestar e, por fim, utilizando-se de uma forma

narrativa ricamente ilustrada e acessível quando da apresentação dos

resultados, procurei traçar as linhas mestras da minha estratégia

metodológica.

O primeiro passo foi trabalhar primordialmente dentro do espaço das

próprias oficinas, concebidas aqui como grupos operativos11,

documentando-as o máximo possível através da observação participante,

apoiada em relatórios de campo e em registros visuais, por meio de

fotografias, muitas delas tomadas pelos próprios alunos com o intuito de

serem exibidas nas mostras dos trabalhos, realizadas ao fim de cada

período letivo.

A difícil decisão de não me utilizar de registros em vídeo ou

gravações de áudio veio da experiência com os jogos de RPG e da

percepção de que essas técnicas de registro não são capazes de captar

as sutilezas presentes na interação criativa e intensa entre os

participantes de uma partida de RPG, além do fato desses equipamentos

se apresentarem como elementos invasivos dentro do espaço das

oficinas. É preciso ressaltar que, quando chegou a hora de me utilizar da

máquina fotográfica dentro do contexto de sala de aula, tomei antes o

cuidado de apresentá-la como uma parte integrante da oficina, dizendo

aos alunos que muitas das fotos poderiam ser apresentadas nas mostras

de encerramento dos trabalhos. Com isso, as turmas não se sentiram

invadidas ou ameaçadas por aquele elemento externo, na medida em que

ele se tornou parte do trabalho.

A partir dessas concepções, procurei centrar meu olhar naquilo que

acontece entre os jogadores dentro das (e durante as) rodas de jogo,

11 Pichon RIVIÈRE (1998) define o grupo operativo como um conjunto de pessoas com um objetivo em comum. Para ele, o grupo operativo consiste em uma técnica de trabalho coletivo, cujo objetivo é promover um processo de aprendizagem. Nos grupos operativos, os integrantes precisam realizar um trabalho ou tarefa a fim de alcançarem um objetivo em comum, acionando esquemas mentais que organizam os processos de pensamento, comunicação e ação que se instalam entre os membros do grupo. Trabalhando na dialética ensino-aprendizagem, o grupo operativo permite um nível de interação entre as pessoas no qual elas tanto aprendem quanto tornam-se sujeitos do saber.

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2. Cenário e Personagens 41

participando delas como mestre, apoiando-me em minha experiência

anterior com os jogos de RPG, mas também (e sobretudo) na análise

daqueles textos e materiais produzidos pelos próprios alunos para (e

durante) as sessões de jogo, seja através de fichas de personagens,

textos descritivos, desenhos, mapas, pesquisas de imagens, maquetes e

até mesmo em sua participação nas mostras dos trabalhos, realizadas ao

final dos períodos letivos.

Outra decisão difícil foi a de prescindir do recurso de entrevistas com

os alunos e com os demais representantes da comunidade escolar, por

entender que o foco do meu olhar não deveria estar dirigido àquilo que os

alunos queriam dizer, mas sim no que diziam sem querer.

Uma rápida passagem por diversos textos que problematizam essas

questões dentro do universo da pesquisa em Educação apontou

claramente que qualquer trabalho nesse campo levado a cabo com

crianças possui características próprias, que devem ser observadas.

Piaget é um dos mais célebres defensores da idéia de que dever-se-

ia ouvir as crianças, numa atitude diante da metodologia que, mais

recentemente, vem ganhando força em campos como o da Sociologia da

Infância, por exemplo, com sua percepção clara de que torna-se cada vez

mais necessário “dar voz” às crianças e aos jovens pesquisados. Mas

será que, no caso específico desta pesquisa, por todas as suas

peculiaridades, isso se daria de forma mais espontânea e “verdadeira” por

meio do uso das entrevistas? Ou será que as entrevistas não acabariam

criariando a possibilidade de um “outro discurso”, um “discurso falacioso”,

nas palavras de Jodelet (2001)?

Sarmento (2003) é um dos autores que defende esse ponto de vista,

considerando que, no trabalho com crianças, as entrevistas formais não

seriam as mais indicadas, devendo o pesquisador, ao contrário, dar mais

atenção à coleta de informação decorrente da observação e da análise do

que ele chama de "documentos reais", ou seja, de materiais produzidos

com uma determinada finalidade, além das conversas informais, pelas

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2. Cenário e Personagens 42

quais perpassa o que este autor chama de "uma voz autónoma e livre, tão

difícil de captar na forma estruturada da entrevista formal." (SARMENTO,

2003: p. 163)

Além disso, por mais que fosse buscado um distanciamento entre os

papéis de professor, mestre de jogo e pesquisador, essa interseção de

personagens fatalmente enviesaria as respostas, seja dos alunos ou dos

demais professores, funcionários ou diretores da escola, além dos

próprios familiares dos alunos.

Por isso, ainda que com certo receio, também no caso dos

informantes adultos, optei por buscar somente o que se caracterizasse

como a “fala espontânea”, o discurso não-provocado, não-instigado e

sobre o qual não recaíssem as expectativas e representações que

poderiam mascarar as respostas, pintando quadros com as cores que o

informante achasse mais interessante ao pesquisador.

Desse modo, decidi buscar essa “fala espontânea” naqueles textos

nos quais a escola, enquanto instituição, expõe-se ao público em geral,

por meio de documentos, textos retirados do site da escola na internet e

demais materiais impressos, que inevitavelmente carregam toda sorte de

representações e imagens de como a escola estudada se enxerga, se

compreende e se apresenta perante a comunidade e o mundo. Algo que

me parecia muito mais rico e verdadeiro, legítimo e fiel do que qualquer

entrevista que o professor/mestre de jogo/pai de alunos/pesquisador

pudesse realizar com integrantes da comunidade pesquisada.

No fim das contas, acredito que essa pequena “análise documental”

tenha sido muito proveitosa para a minha compreensão do histórico e da

trajetória da instituição, do perfil das famílias e dos alunos que ela atende

e, sobretudo de como a escola estudada “se vê”. E isso também

possibilitou uma visão de conjunto, uma visão “macro”, que, contraposta à

visão “micro”, nascida da interação em sala de aula entre professor e

alunos, entre mestre do jogo e jogadores e entre pesquisador e objeto, foi

bastante enriquecedora para o trabalho como um todo.

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2. Cenário e Personagens 43

Mais tarde, os dados colhidos durante as oficinas foram analisados

em dois momentos distintos. O primeiro deles consistiu na tabulação dos

dados quantitativos em planilhas eletrônicas (com a utilização do software

Microsfot Xcell), para melhor caratcterizar o universo de alunos,

explictando algumas diferenças e aproximações.

Num segundo momento, os gráficos gerados a partir dessas

planilhas (e que ilustram este capítulo) serviram como apoio para a

interpretação dos demais dados, colhidos nos relatórios de observação,

nas fotos e nos materiais produzidos pelos alunos, como desenhos,

textos, maquetes, além da própria mostra dos trabalhos.

Como costumeiramente acontece nesse modo de investigação, a

análise desse material foi feita através do método indutivo, com as

categorias e hipóteses nascendo do confronto das teorias e estudos

prévios com os achados e indicações que emergiram do próprio campo,

da própria natureza singular do fenômeno estudado, num movimento de

ida e vinda, ou de espiral, onde nem a teoria e nem a empiria assumem a

prevalência, mas, pelo contrário, dialogam e se fecundam mutuamente.

Sem partir da teoria para a empiria e nem o oposto, mas buscando o

diálogo constante entre esses dois momentos da pesquisa, fui pouco a

pouco juntando os achados, comparando-os, procurando entendê-los

tanto no contexto do campo quanto em contraponto com outros trabalhos

e reflexões já elaboradas tendo como objeto a interação dos jogos de

RPG com o campo da Educação.

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3. RPG, Ludicidade e Escola

Na brincadeira, temos uma licença para explorar a nós mesmos e a nossa sociedade. Na brincadeira, investigamos a cultura mas também a criamos.

SILVERSTONE, 2002: pp.124-125

A reflexão sobre o papel da ludicidade e do jogo na experiência

humana perpassa muitos campos de estudo, desde a Filosofia à

Psicologia, passando pela Semiótica, a Sociologia etc. Nomes como

Piaget, Vygotsky, Winnicott, Huizinga e muitos outros construíram a base

do que se discute hoje em relação ao papel do brinquedo e do jogo dentro

do universo da Educação, uma discussão que já figura com destaque

(inclusive) nas propostas governamentais de Ensino, como é o caso dos

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e do Multieducação (1996), o

Núcleo Curricular Básico da Secretaria Municipal de Educação do Rio de

Janeiro, do qual destaco o seguinte trecho:

"Jogo, sonho, fantasia sempre estiveram

associados a coisas pouco sérias ou sem importância.

Nossa sociedade insiste na divisão em dois mundos

opostos onde, de um lado, estariam a brincadeira, os

sonhos, a imaginação e, de outro, o mundo sério da

razão, do trabalho.(...) Esta idéia justifica o descaso,

tão freqüente na cultura adulta, pelo ato de brincar, não

levando em conta que adulto também brinca. (...)

Podemos afirmar que, independente das diferenças

individuais, todo adulto precisa de brincadeira e de

alguma forma de jogo para viver. (...) Por outro lado, o

jogo e a brincadeira não devem ser entendidos apenas

como situações em que se envolvam as crianças

menores. Qualquer aula se torna mais interessante,

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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quando se conhece através do jogo, quando se reúnem

jogo e trabalho."

(Multieducação, cap. 6)

Huizinga, em seu livro “Homo Ludens” (1999), uma referência quase

obrigatória no estudo da ludicidade e dos jogos, propõe que “a cultura

surge sob a forma de jogo”, e é por meio dele que “a sociedade exprime

sua interpretação da vida e do mundo” (p.59). Para este autor, o jogo é

um elemento básico na constituição da cultura humana, que, em seu

nascedouro, seria dotada de “um caráter lúdico, que ela processa

segundo as formas e no ambiente do jogo” (idem).

Para Huizinga, portanto, jogo e cultura são duas faces de uma

mesma moeda. Buscando caracterizar melhor o que chama de jogo,

Huizinga delimita suas características formais, definindo o jogo como:

“uma atividade livre, consciente, tomada como

‘não séria’ e exterior à vida habitual, mas ao mesmo

tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa

e total.” (p.16)

Para ele, o jogo ainda se caracteriza por não estar ligado a nenhum

interesse material imediato e por ser praticado dentro de limites espaciais

e temporais próprios, segundo ordens e regras bem estabelecidas.

Criticando Huizinga, Roger Caillois também caracteriza o jogo como

uma atividade livre, delimitada (espacial e temporalmente), incerta,

improdutiva, regulamentada e fictícia. Todavia, em seu livro “Os jogos e

os homens” (1990), ele estuda o jogo segundo quatro princípios básicos:

agôn, alea, ilinx, mímica.

Para Caillois, o primeiro princípio (agôn) caracteriza os jogos

competitivos (lutas, disputas e confrontos). Alea, o segundo princípio,

designa os jogos aleatórios, dependentes da sorte, nos quais existe um

contexto externo que conduz o jogo (como nos jogos de cartas, dados

etc.). Mímica (o terceiro princípio) englobaria os jogos imaginários, de

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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fantasia, faz-de-conta, simulação e imitação. E por último, o quarto

princípio, Ilinx, compreende os jogos corporais vertiginosos, cujo objetivo

é provocar a instabilidade da percepção, brincando com o desequilíbrio, a

vertigem, a tontura, a velocidade etc.

Além desses princípios, Caillois ainda nos fala de mais duas

categorias importantes, sempre em tensão entre si e com os quatro

princípios: paideía (a brincadeira livre e descompromissada) e ludus (o

limite, as regras).

Vale destacar que, para Caillois, essas não são categorias

excludentes, já que os jogos geralmente se encaixariam em mais de uma

delas. No caso dos jogos de RPG, então, poderíamos dizer que estamos

lidando com um jogo de ludus, alea e mímica, por exemplo.

Ao se reportar a essas caracterizações propostas por Caillois e

Huizinga, PEREIRA (2005) vai falar de um dito “estado de brinquedo”, que

caracteriza a atitude dos participantes dos jogos durante sua execução, e

que, além de englobar as características de “atividade voluntária,

delimitada no espaço e no tempo, incerta, improdutiva, com regras

acordadas e imbuídas de conteúdo fictício (ou imaginário)” (p. 20) teria

também outras características próprias, como a intencionalidade (o

sentido que o jogador dá ao jogo), a significação (perceptível nas ações

dos jogadores em seus gestos, falas ou nas relações estabelecidas

durante o jogo), a consciência (o “saber-se jogando”, que ondularia num

contínuo “entrar” e “sair” do jogo) e o rito (o encadeamento de gestos e

ações que caracterizam o “estado de brinquedo”).

3.1 Jogo ou Brincadeira?

A dificuldade que encontram alguns pesquisadores (como KLIMICK,

por exemplo) em definir o RPG como jogo ou brincadeira nos remete à

própria análise desses dois conceitos seja na Sociologia, História,

Filosofia, Psicologia ou na Educação.

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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No campo da História, Huizinga aponta o jogo como elemento

fundante da cultura, o que é criticado por autores como Brougère, que

estuda as relações entre o brinquedo e a cultura contemporânea e

também entre o jogo e a Educação ao longo dos tempos. Ariès (1981), em

seu trabalho amplamente conhecido sobre o desenvolvimento do conceito

de infância no decurso da História do ocidente, vai mostrar como o jogo

foi um importante fator de coesão na sociedade medieval, apontando a

crescente diminuição do lúdico na vida adulta, dividida mais

contemporaneamente entre os universos do trabalho, da vida doméstica,

da mídia etc. Mas será que, a partir da leitura de Silverstone (2002),

poderíamos nos arriscar a dizer que nesse mundo moderno tardio (ou até

pós-moderno) o universo do lúdico vem ficando cada vez mais circunscrito

ou mediado pela nossa relação com a Mídia e as novas tecnologias, seja

na transmissão de eventos esportivos, nos programas no estilo “Reality-

show”, ou cada vez mais por meio da interatividade, do hipertexto ou do

“roleplaying” (interpretação de personagens) caracterísitcas básicas da

Internet, dos videogames, dos chats, blogs e orkuts da vida?

Avançando um pouco mais, lembraríamos de Barthes ou Benjamin,

por exemplo, que vão trazer importantes reflexões sobre as mensagens

que o brinquedo transmite enquanto objeto e do lugar do brinquedo, do

jogo e da brincadeira na modernidade. Adorno e Horkheimer, por outro

lado, vão estudar o brinquedo e os jogos a partir do seu papel dentro da

indústria cultural, que seria o de promover a submissão através da

subversão “instituicionalizada”, limitada e contida, pelo fato dos jogos da

cultura de massa nos privarem do senso crítico, representando uma fuga,

não da realidade que nos oprime, mas antes de nossa própria capacidade

de questionar e resistir a essa opressão.

Indo mais adiante, poderíamos nos remeter ainda às visões sobre

brinquedo e jogo do ponto de vista da Psicologia e da Psicanálise, seja

com Freud, Winnicott, Piaget ou Vygotsky.

Segundo a Psicanálise, tanto desejos insatisfeitos quanto

experiências dolorosas ou traumáticas, medos e angústias podem surgir,

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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de forma simbólica, por meio das brincadeiras e dos jogos. Freud, em seu

famoso relato sobre o bebê brincando com o carretel, postula que o

brinquedo (ou o jogo) permite à criança lidar com a realidade da dor ou da

perda, favorecendo seu desenvolvimento psíquico. Mais tarde, tanto Anna

Freud quanto Melanie Klein inauguram práticas psicológicas mediadas

pelo brincar, a partir da Psicanálise, seja na área educativa ou clínica.

Mas é Winnicott quem vai trazer uma dimensão bem mais

interessante a este trabalho, quando aproxima o jogo e a cultura e coloca

o brincar no centro da sua psicologia infantil. Para ele, a partir do

momento em que o bebê começa a se individualizar, “separando-se” da

mãe, cria-se aí uma zona intermediária, a chamada zona “potencial” ou

“transacional”, fronteira entre o mundo subjetivo e a realidade objetiva, e

que não é um espaço vazio, mas sim preenchido de diferentes maneiras

ao longo do tempo, primeiro pelos objetos transacionais, depois pelo jogo

e, mais tarde, pelas experiências culturais, definidas pelo próprio

Winnicott como: “algo que pertence ao fundo comum da humanidade,

para o qual indivíduos e grupos podem contribuir e do qual todos nós

podemos fruir (p. 138)”.

Assim, esta dimensão intermediária entre o subjetivo e o objetivo

ajudaria o homem a separar essas duas esferas. E, mais ainda, Winnicott

vai enxergar a brincadeira e o jogo como uma forma de comunicação, e,

portanto, de grande importância tanto na psicoterapia quanto na

Educação. Através da brincadeira, a criança se torna adulto e o adulto

criança, os limites se esgarçam, se comprimem, as experiências com o

novo, o diferente, o diverso tornam-se possíveis. Durante o jogo, a vida

“real” é abandonada, através do princípio da “suspensão da descrença”,

mas o jogo continua inscrito no mundo, ainda que numa zona “livre”. Por

isso, tudo o que se vive, se aprende, se descobre ou se constrói durante o

jogo ou a brincadeira sobrevive ao momento de sua experiência. Ou seja,

nunca se volta ao mundo “normal” sem que se traga alguma bagagem da

“jornada” empreendida. A brincadeira é fuga, mas também é encontro,

conexão.

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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Desse modo, por ser um dos processos por meio dos quais

estabelecem-se as relações afetivas ao longo do desenvolvimento

psíquico do indivíduo, o brincar deveria manter este mesmo caráter de

afetividade e segurança, pois, para brincar precisamos nos sentir seguros

e relaxados, sendo ainda necessário, em situações educativas, que se

preserve o caráter criativo da brincadeira, sendo fundamental que a

participação do adulto (dinamizador, mestre, professor) não represente

uma imposição sobre o brincar da criança, que deve ser sempre livre e

espontâneo.

Dentro das teorias construtivistas, a partir, especialmente, dos

trabalhos de Piaget, também existe um espaço importante dedicado ao

jogo e à brincadeira. Piaget propõe a existência de quatro estágios no

desenvolvimento psíquico: o estágio sensório-motor (0 a 2 anos), o

estágio pré-operatório (2 a 6 anos), o estágio das operações concretas (7

a 11 anos) e o estágio das operações formais (a partir dos 12 anos) e

entende que o jogo acompanha este desenvolvimento, percorrendo três

fases distintas, que seriam a passagem do Exercício para o Símbolo e,

mais tarde, deste para as Regras, o que o próprio Piaget aponta como:

“as três fases sucessivas que caracterizam as

grandes classes de jogos, do ponto de vista de suas

estruturas mentais (1971: apud Pereira, 2005).

Assim sendo, segundo esta concepção, seria condenável para o

educador adotar uma conduta intrusiva e desorganizadora do jogo infantil,

devendo-se, isso sim, investir no jogo compartilhado, respeitando a

capacidade das crianças de tomarem suas decisões e iniciativas, já que a

educação teria como objetivo sempre a constituição da autonomia,

inclusive no brincar.

Para a Psicologia histórico-cultural (especialmente no pensamento

de Leontiev e Vygotsky), a bricadeira se origina da contradição entre o

“querer ser” e o “não poder ser” como os adultos. E seria através da

interação com o outro, em situações sociais concretas, mediadas pela

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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linguagem, que as funções psíquicas como a memória, a percepção e a

atenção estariam sendo constituídas e desenvolvidas. Nessa concepção

da construção das funções superiores (pensamento, linguagem,

criatividade e imaginação), o brincar impulsionaria vários processos

psicológicos relevantes no sentido da formação de competências

importantes para as crianças.

Através do brincar, a criança substitui um objeto pelo outro e,

através desse exercício imaginário, explora suas possibilidades e

descobre suas funções. É através do faz-de-conta e da interpretação de

papéis (ou “role-playing” ?) que a criança experimenta esse sentimento de

alteridade, colocando-se no lugar do outro, para definir-se a si mesma.

Nesse processo, ela acaba trazendo para o momento do jogo aquilo

que já conhece e experimenta, o que ainda não pode ser, o que é

socialmente vedado ou o que deseja tornar-se. E dessa forma, a

brincadeira cria novas possibilidades para a criança compreender e

explorar o universo de relações sociais que a cerca, dando origem a uma

“zona de desenvolvimento proximal”, que Vygotsky define como a

distância entre o nível de desenvolvimento real (aquilo que a criança é

capaz de realizar sozinha) e o nível de desenvolvimento potencial

(aquilo que ela é capaz de realizar com apoio externo, como a ajuda de

um companheiro mais experiente, ou “par mais capaz”).

Vygotsky diferencia ainda o “jogo com regras” da “brincadeira de faz-

de-conta” (a mesma tensão entre ludus e paideía, de Caillois?), pois num,

as regras predominam sobre o imaginário, delimitando e comandando as

ações dos jogadores, e, na outra, ocorre o inverso, com o imaginário

comandando as ações diante de algumas regras simples.

Para Vygotsky, tanto a brincadeira (faz-de-conta) quanto o jogo (com

regras) se caracterizam por um estado de abstração, de suspensão da

realidade concreta, pela instauração de uma nova realidade: a realidade

“do jogo”, uma realidade distinta e delimitada no tempo e no espaço, e

além disso, ambos (brincadeira e jogo) favoreceriam o desenvolvimento

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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da noção do auto-controle e da disciplina, pois, para os jogadores, a

fruição do jogo depende da obediência e da observância estrita às regras,

já que o desejo de participar da brincadeira ou do jogo se sobrepõe ao

desejo de burlar as regras em proveito próprio.

Vygotsky aponta ainda que a brincadeira não é imaginação pura,

mas sim “memória em ação”. Para ele, é somente na adolescência que a

imaginação, em conjunto com a abstração, é capaz de ser

verdadeiramente criadora e original, aproximando intelecto e imaginação.

A imaginação do adolescente, para ele, não se apóia mais em objetos

reais e concretos, mas em imagens, representações visuais e simbólicas.

Finalmente, para este trabalho, interessa sobretudo ressaltar o

caráter voluntário da brincadeira, do jogo... do lúdico, enfim. Afinal, todo

jogo, toda brincadeira nasce a partir de uma vontade. “Ninguém brinca por

obrigação”, resume Pereira (2005, p. 21). E devemos guardar bem essa

idéia ao pensarmos na utilização de jogos como o RPG (bem como outras

práticas lúdicas) dentro do ambiente escolar.

3.2 RPG e Educação

Este trabalho se insere num campo de discussões em plena

constituição, onde se ampliam e se aprofundam cada vez mais as

reflexões sobre o potencial, as formas e os possíveis reflexos da

utilização dos jogos de RPG dentro do campo da Educação, seja dentro

das salas de aula, dos espaços e tempos escolares (como atividade extra-

classe) ou mesmo em empresas ou outros ambientes e momentos de

aprendizado, seja em sua modalidade “de mesa” (com livros, papéis e

dados) ou na versão eletrônica (os chamados RPG “de computador”).

Porém, para melhor situarmos a discussão dentro deste campo de

reflexão em pleno crescimento, precisamos primeiro definir e discutir

alguns conceitos básicos sobre o RPG.

A primeira pergunta, obviamente, é “O Que é RPG?”

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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3.2.1 O Que é RPG?

RPG, Role-Playing Game, ou "Jogo de Interpretação" (numa

tradução bastante literal) pode ser descrito como

“um jogo de criar e contar histórias, no qual cada

ouvinte faz o papel de um personagem. O narrador

desta história (chamado de Mestre do Jogo) descreve

as situações, mas são os ouvintes que decidem o que

seus personagens vão fazer” (RICON, 1999, p.6).

Bastante popular entre crianças e jovens dos grandes centros

urbanos, e de forma semelhante aos desenhos animados japoneses, aos

videogames e jogos de computador ou aos jogos de cards colecionáveis,

o RPG possui fãs bastante atuantes, muitos dos quais participam de

fóruns e listas de discussão na Internet, criam e editam fanzines, netbooks

(livros em formato digital), sites e portais, transitando num mercado que

comporta quase uma dezena de editoras especializadas (muitas delas

criadas e administradas por ex-jogadores de RPG) que publicam livros,

revistas e demais materiais, com excelente qualidade gráfica e muitas

vezes distribuídos em todo o território nacional, em bancas de jornal ou

grandes cadeias de livrarias.

Os RPGistas (como são conhecidos) frequentam lojas

especializadas, congregam-se em eventos periódicos, que chegam a

reunir mais de 15.000 participantes num único fim de semana e

mobilizam-se em intensas discussões virtuais que podem dar origem até

mesmo a ações políticas concretas, como nos recentes casos nos quais

as investigações sobre homicídios ocorridos em Teresópolis (RJ), Ouro

Preto (MG), Vila Velha e Guarapari (ES) ou Brasília (DF) apontaram para

a possibilidade da prática do RPG ter influenciado esses atos criminosos1.

1 Há diversos sites na internet com material sobre esses casos. Muitos são marcados por um discurso “pró-

RPG” diante do que FAIRCHILD chamou de “campanha de difamação do RPG”(na percepção dos

jogadores de RPG), mas são uma boa referência inicial para qualquer pesquisa d esses casos. Indica-se:

http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=311FDS002 (acesso em maio,2005) e

www.rederpg.com.br (acesso em maio, 2005)

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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Criando movimentos virtuais em defesa do seu hobby, organizando-

se em listas de discussão e até mesmo tomando a iniciativa de intervir

junto ao Poder Público, reunindo documentos, testemunhos e pareceres

favoráveis ao jogo, vindos de professores, psicólogos e outros

profissionais, com o intuito de se contrapor a um projeto de lei que

propunha a proibição da venda dos livros de RPG na cidade de Vila Velha

(ES), os jogadores de RPG demonstram na prática a sua capacidade de

integração e coesão enquanto rede social muito bem articulada.

Porém, muitas vezes, ao se tenar definir o RPG, já se pretende, na

sua caracterização, um afastamento do conceito de “jogo” e aproximação

bastante clara com o conceito de “brincadeira” e, mais ainda, com a idéia

de “narrativa”, de “criação de histórias”, o que levaria o RPG a tangenciar

os campos da Educação e da Literatura.

Do site da ONG Ludus Culturalis na Internet, entidade que organiza

os Simpósios de RPG e Educação, retiramos o seguinte texto:

“RPG (...) é uma atividade lúdica na qual os

participantes contam histórias e nelas têm um papel

ativo ao interpretar personagens. É um ato coletivo de

criação de narrativas orais; é a arte de contar histórias,

recuperada, revisitada e adaptada ao gosto moderno. É

o resgate da tradição oral e da troca espontânea de

experiências.”

Para BRAGA, que estudou os hábitos de leitura e escrita entre os

jogadores de RPG, o Role Playing Game é:

“um jogo de interpretação grupal desenvolvendo-

se no plano da imaginação. (...) Surgiu na década de

70 nos EUA e no Brasil por volta da década de 90. Um

grupo de jovens se reúne para se divertirem sem os

aparatos da atual tecnologia, como instrumentos têm

livros, blocos de anotações, lápis, canetas e sobretudo

imaginação. (2000b)

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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Para Sonia Rodrigues, autora de uma tese pioneira no Brasil ao

tomar o RPG como objeto de estudos, pelo fato de ser um estilo de

“literatura de massa”, o RPG tem como estímulo de sua produção, o

mercado. Para ela, o RPG:

“existe e se espalha como coqueluche porque

existe uma necessidade, cada vez maior, de retorno à

ficção. A ficção é o objeto principal do desejo, o

objetivo a ser alcançado, o triunfo da partida. (...) O

RPG se constitui, assim, numa resposta a um contexto

social que nega cada vez mais os ritos de passagem, a

fantasia e a participação. O jogo constitui, por isso

mesmo, uma iniciação, com uma nova roupagem, à

contação de histórias e ao faz-de-conta.” (site)

Buscando resolver essa tensão entre “jogo” e “brincadeira” e

tentando definir mais claramente a natureza dos jogos de RPG, KLIMICK,

após uma breve reflexão a respeito da diferença entre “jogo” e

“brincadeira”, apoiado nas idéias de Huizinga, propõe que o RPG

“é, ao mesmo tempo, um método e uma

brincadeira em que os participantes, controlando as

ações de suas personagens e cooperando entre si,

criam histórias coletivamente.” (KLIMICK, 2003)

A idéia de classificar o RPG não como jogo, mas como brincadeira

de contar histórias reaparece em Jackson e Reis, quando apontam que:

"A principal diferença que existe entre o contar

histórias tradicional e o RPG é que no primeiro caso o

narrador conta uma história que ele já conhece e

praticamente nunca altera (...). Num RPG, por outro

lado, cada um dos ouvintes representa um personagem

que faz parte da história que está sendo contada pelo

narrador e interfere no seu desenvolvimento,

transformando-a em uma criação coletiva.” (1999)

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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No site da escola PARAÍSO, ao registrar uma das mostras das

oficinas de artes, a escola, foco desta pesquisa, revela um pouco de sua

visão e das representações que tem sobre os jogos de RPG, ao descrever

o jogo da seguinte forma:

“O RPG – sigla que significa Role Playing Game

ou "Jogo da Interpretação" – é uma atividade que

depende sobretudo da criatividade de seus

participantes, o Mestre e os demais jogadores. O

Mestre é o responsável pela construção e articulação

da aventura. Ele é o narrador onisciente da trama que

envolverá os personagens, desempenhados pelos

demais jogadores. Contudo, diferentemente de um

contador de histórias comum, que pode montar as

peripécias como lhe convém, o Mestre não possui total

onipotência sobre os rumos da aventura, já que os

personagens podem agir arbitrariamente dentro da

situação narrada, por isso, cabe a ele ser astuto e

ardiloso para lidar com situações imprevisíveis”

3.2.2 Como se joga RPG?

Jackson e Reis descrevem o processo narrativo/lúdico do RPG da

seguinte maneira:

“O narrador expõe uma situação e diz aos

ouvintes o que seus personagens vêem e ouvem. Em

seguida, os ouvintes descrevem o que seus

personagens fazem naquela situação e o narrador,

então, diz qual o resultado das ações dos personagens

dos ouvintes... e assim por diante. A história vai sendo

criada pelo narrador e pelos ouvintes à medida que ela

é contada e vivenciada como uma aventura." (1999)

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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Enquanto Braga (2000) ressalta que:

“de uma sessão ou encontro de RPG participam o

mestre (também chamado narrador) e os jogadores.

Aquele, mais experiente, tem a função de apresentar

ao grupo uma história, uma aventura contendo

enigmas, situações e conflitos que exigirão escolhas

por partes dos jogadores. Os jogadores, geralmente em

número de 4 ou 5, não são meros espectadores, mas

participantes ativos, que como atores representam um

papel e, como roteiristas, escolhem caminhos e tomam

decisões nem sempre previstas pelo Mestre,

contribuindo na recriação da aventura.”

Já para Rodrigues, o jogo acontece da seguinte forma:

“ Crianças, adolescentes e adultos reúnem-se em

torno de um “mestre” que prepara uma aventura com o

auxílio de um livro de regras. Os jogadores são autores

e, ao mesmo tempo, roteiristas da ficção produzida em

grupo. É um jogo onde não existem vencedores entre

os que participam. Os derrotados, quando existem, são

uma necessidade do enredo. O jogador assume a

identidade de uma personagem e finge sê-la durante o

desenrolar da aventura. Esta personagem é construída,

elaborada numa ficha de forma detalhada, trabalhosa,

como detalhado e trabalhoso é o caminho da criação.

Estas fichas são decisivas para o desenvolvimento da

narrativa.” (RODRIGUES – site)

3.2.3 E o que não é RPG?

É muito frequente a inclusão de uma vasta gama de diferentes tipos

de jogos sob a classificação genérica de “jogo de RPG”, o que muitas

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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vezes confunde aqueles menos familiarizados com o tema. Entre esses

outros tipos, incluem-se os livros-jogos2 (ou Aventuras-solo), os jogos de

cards colecionáveis3, os jogos de miniaturas4, alguns jogos de tabuleiro,

jogos de ação ao vivo (live-action), além de muitos videogames e jogos de

computador, incluindo games jogados via Internet -- desde os jogos mais

“simples”, oferecidos por sites especializados no público infanto-juvenil

(como o do Cartoon Network) até os complexos MMORPG5, jogos onde

milhares de jogadores interagem em tempo real via Internet, seja em casa

ou nas cada vez mais populares LAN-houses6.

Tentando esclarecer esse aspecto, FAIRCHILD (2004) aponta

alguns dos diferentes “tipos” de RPG, considerando que o universo do

RPG está dividido “em pelo menos três grandes modalidades” que seriam:

“RPG de mesa, Live Action Roleplaying (LARP7) e aventura-solo.”

KLIMICK partilha de visão semelhante, apontando que os jogos de RPG

teriam 4 caracterísitcas principais que os diferenciariam de outros jogos, e

que seriam: “socialização, interatividade, narrativa e ‘hipermídia’”,.

Existe uma clara posição desses autores no sentido considerarem

alguns jogos (especialmente os videogames e os jogos de computador)

como não sendo RPGs “de verdade”, numa atitude que parece refletir

concepções encontradas também em textos retirados de diversos sites

2 Histórias de aventura e mistério escritas no estilo “hipertexto”, onde pequenos trechos se interligam por

meio de opções de caminhos diferentes para a continuação da trama. Ver RICON, L. E. mini GURPS No

Coração dos Deuses, São Paulo, Devir: 2000.

3 Mistura de jogo de cartas com coleção de figurinhas, onde os jogadores colecionam cartas, vendidas em

envelopes e com elas montam um baralho individualizado para enfrentar outros jogadores numa disputa de

estratégia.

4 Jogos de estratégia onde se simulam batalhas utilizando figuras de chumbo ou plástico

5 Sigla inglesa para a expressão Massive Multiplayer Online Role Playing Game Games (Jogos de

Interpretação via rede, para múltiplos jogadores simultâneos), um tipo de jogo bastante popular onde os

jogadores se conectam a um servidor via internet e comandam personagens em cenários, missões e aventuras

coletivas, interagindo tanto com o cenário “pronto” quanto com os milhares de outros jogadores de todo o

mundo, que estiverem concetados no momento. Dentre os MMORPGs mais populares no momento dessa

pesquisa destacam-se: Ragnarok, Tibia, Mu Online e outros. 6Estabelecimentos comerciais onde os jogadores alugam tempo de uso em computadores ligados

em rede, jogando coletivamente o mesmo jogo, mas cada um num computador diferente.

7No Brasil, o LARP é mais conhecido como “live”. Note que não se trata do verbo to live <tú líve>, que

significa viver, morar, mas sim o adjetivo live <láive>, que significa “ao vivo”. em inglês.

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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relacionados ao RPG e que sugere, de início, tratar-se mais de

“preconceito” ou de uma espécie de necessidade de demarcar claramente

o território do RPG, evitando confusões e contribuindo para que o jogo, e

por extensão toda a grande comunidade de aficcionados por RPG tenham

uma identidade mais clara e definida, sem que seja confundidos com os

entusiastas dos jogos de computador ou dos videogames, por exemplo.

Mas essa me parece, cada vez mais, uma divisão sem sentido.

Afinal, hoje em dia não podemos ignorar a enorme disseminação dos

jogos eletrônicos8 e dos jogos online, nos quais milhares de jogadores se

conectam simultaneamente via Internet ou em redes locais (nas Lan-

houses), para partilharem aventuras geradas em ambientes eletrônicos

(ao invés de apenas na imaginação dos jogadores), interagindo entre si

de diversas formas, seja através da ação de suas personagens no

ambiente do jogo, seja através de mensagens trocadas por janelas de

texto ou por programas de mensagens instantâneas, como o popular

MSN, da Microsoft, ou ainda através das comunidades virtuais e fóruns

nos quais se reúnem, encontram-se e debatem, interagem, criam...

Confesso que, pelo menos para mim, fica muito difícil olhar para esses

jogos e ver neles alguma terrível limitação que os torne “reativos” e não

“interativos” (para usar a mesma caracterização proposta por Klimick a

partir de Arlindo Machado e Raymond Williams).

Logicamente, nenhum computador jamais vai ser capaz de substituir

a criatividade e a expressividade da mente humana. Porém, já começa a

ser difícil não enxergar a profunda e quase essencial interatividade que

esses jogos (especialmente os MMORPGs) permitem aos jogadores. E

mais, não se pode esquecer que esses jogos “habitam” o mesmo universo

e “falam a mesma língua” que o Orkut, o MSN, o e-Mule e todos os outros

sites e softwares de uso corrente entre os jovens, e que, de certa forma,

se apresentam a eles como algo bem mais próximo, inteligível, amigável e

“interativo” do que muitos dos extensos livros de regras dos RPGs.

8 Como ilustração, vale a informação de que o mercado de videogames e jogos de computador já movimenta

somas maiores do que a indústria do cinema, por exemplo.

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Portanto, mais do que o grau de liberdade ou interatividade no

desenvolvimento/interpretação das personagens durante o jogo (o que

inclusive pode variar enormemente, já que cada sistema de RPG possui

regras diferentes e, além disso, cada jogador, cada mestre e cada grupo

pode interpretar essas regras de maneira bastante diversa), parece muito

mais seguro que essa concepção procure apoiar-se muito mais no

aspecto de criação coletiva de uma história ou narrativa como marca

distintiva daquilo que seria (e do que não seria) um RPG.

Assim, um card-game colecionável como YU-Gi-Oh!9, por exemplo,

não seria um RPG, na medida em que ali o que está em jogo é uma mera

disputa, uma partida entre dois (ou mais) competidores. E, ademais, ali

não se está criando nenhuma espécie de narrativa que se sustente por si

só, como acontece nos RPGs -- ainda que as histórias, no RPG, não

sejam registradas em nenhum suporte. Mesmo assim, mesmo sem estar

escrita ou registrada em lugar algum, a narrativa criada durante uma

sessão de RPG é vivenciada de forma profunda e intensa pelos jogadores

e, com isso, é praticamente incorporada às suas memórias, como se

todos a tivessem lido num livro ou assistido no teatro, cinema ou TV, ou

como se realmente a tivessem vivido. Por isso, não é raro ouvir os

jogadores de RPG se referindo a “fatos” ou “pessoas” que fazem parte

apenas do universo do jogo, mas que eles parecem tratar como parte de

seu repertório pessoal/coletivo de experiências/vivências.

Porque realmente assim o são.

Através da interface criada pelo RPG, seja através do computador

ou de sua imaginação, os jogadores “realmente” viveram aquelas

aventuras virtuais, realmente enfrentaram os dragões, conquistaram os

tesouros, perderam companheiros em batalhas etc.

Por isso, após analisar muitas e diferentes definições para o RPG

(presentes em quase todos os trabalhos sobre o tema), e seguindo o

indicado por KLIMICK (2003) é possível enumerar alguns pontos que, em

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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princípio, seriam suficientes para definir o que seria (ou não seria) um

RPG. Esses elementos são:

1. É uma atividade de grupo, ainda que o grupo se resuma à

relação mestre/narrador e jogador/ouvinte;

2. É organizada numa sequência encadeada de "sessões de jogo",

que compõem “aventuras” (histórias completas) e por sua vez

integram “campanhas” (conjuntos de histórias fechadas), e não

em uma série de “partidas” estanques;

3. É uma atividade cooperativa e não competitiva;

4. Há personagens sendo interpretadas em maior ou menor grau

pelos jogadores, sendo que estes decidem livremente as ações

dessas personagens na história;

5. As personagens “evoluem” ao longo do jogo, seja “passando de

nível” ou através da melhora gradativa de suas características

através de algum sistema de recompensa que relaciona a

experiência nas aventuras com a evolução das personagens.

6. O enredo da história vai sendo continuamente alterado pelo

Mestre/Narrador, a partir do confronto entre as ações das

personagens dos jogadores e as regras do jogo, incluindo muitas

vezes o rolamento dos dados;

7. Existe um ambiente ficcional que serve de cenário para as

histórias;

8. Há um claro compromisso com a diversão;

Refletindo mais ainda, poderíamos chegar a uma caracterização

mais resumida, e que me parece mais adequada, que seria a de que, num

jogo de RPG, qualquer que seja ele:

9 Para um estudo sobre esses jogos, ver os trabalhos de Raquel Salgado e Solange Jobim e Souza

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1. Existe uma clara relação entre um narrador/mestre e um ou mais

ouvintes/leitores/jogadores. Mesmo numa aventura-solo ou livro-jogo,

o texto “faz o papel” de Mestre do Jogo, apresentando e descrevendo

as situações através da narrativa. E em determinados jogos de

computador ou videogames, o computador incorpora essa função do

mestre/narrador/juiz, construindo a interface dos jogadores com o

ambiente ficional no qual transcorre o jogo.

2. É uma atividade cooperativa e não competitiva. O Mestre/narrador não

compete com os jogadores e tampouco os jogadores competem entre

si. Ainda que seus personagens possam se antagonizar, não existe

uma disputa em jogo, na qual uma vez que seja declarado o vencedor,

encerra-se a disputa, como em muitos outros jogos. E, em última

instância, ainda que surjam conflitos e competitividade entre eles,

mestre e jogadores colaboram, cooperam na criação daquela história,

na realização daquele jogo.

3. É interativo, no sentido de que a ação livre e autônoma (até certo

ponto, já que sempre existem os limites impostos pelas regras) das

personagens controladas pelos jogadores muda o cenário e o

desenrolar da história.

Portanto, será a partir desses referenciais, que evoluiremos em

nossa reflexão examinando agora as relações que existem entre o RPG e

a Educação.

3.3 O RPG e a Escola

Como apontam Rodrigues (1993), Pavão (1999), Braga (2000),

Bettocchi (2002), Firchild (2004) e Klimick (2003), entre outros, as

reflexões sobre as possibilidades de utilização pedagógica do RPG se

iniciaram no Brasil logo após a chegada dos primeiros títulos traduzidos

ao mercado brasileiro, no início dos anos 90, quando surgiam também as

primeiras incursões de autores nacionais no gênero dos RPGs.

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Um desses RPGs nacionais era "O Desafio dos Bandeirantes"

publicado pela editora GSA em 1992. Miscigenando a fantasia medieval

européia (bastante popular no universo dos RPGs e presente em livros

como “O Senhor dos Anéis” ou em jogos como “Dungeons & Dragons”)

com o folclore e a História do Brasil, “O Desafio dos Bandeirantes” foi

muito provavelmente o primeiro livro de RPG a demonstrar, de forma

bastante clara, o potencial educacional dos jogos de RPG no mercado

brasileiro, indo além da idéia do "incentivo à leitura e pesquisa".

Sem esquecer que, desde o lançamento da versão em português do

RPG GURPS (em 1991), sempre houve uma clara intenção de seus

editores em divulgar o RPG não apenas como um jogo, mas sim como um

processo de criar histórias e personagens, em grande parte devido à

flexibilidade trazida pelo GURPS (no qual um mesmo conjunto de regras é

usado para criar personagens e histórias em qualquer cenário realista,

histórico ou imaginário), poderíamos dizer com alguma propriedade que

muito foi no contato com o jogo “O Desafio dos Bandeirantes” em livrarias

e eventos dedicados aos fãs de RPG e histórias em quadrinhos (como a

Bienal do Livro, por exemplo) que foram surgindo muitos dos primeiros

questionamentos, por parte dos professores e educadores, sobre a

possibilidade de utilização do RPG em sala de aula.

Caracterizado como estilo de ficção, como movimento cultural e

social e como linguagem e discurso, o RPG também é estudado, dentro

do ambiente acadêmico, a partir de suas potencialidades didáticas ou

pedagógicas. Sem a pretensão de re-inventar a roda ou fazer uma

pesquisa do “estado do conhecimento” da área, o que fugiria ao escopo

deste trabalho, limito-me a recomendar algumas das pesquisas aqui

citadas, e que trazem, em seu bojo, boas revisões bibliográficas sobre as

relações entre o RPG e o campo educacional.

Mesmo assim, alguns desses trabalhos são dignos de nota, diante

dos objetivos traçados para a minha pesquisa. E, dentro do ambiente

acadêmico, devemos destacar o trabalho pioneiro de Sônia Rodrigues

Mota (1993), que dedicou sua tese de doutorado em Letras à discussão

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sobre os jogos de RPG enquanto criação ficcional. Relacionando o seu

duplo caráter de ficção e jogo às tradições do conto maravilhoso e da

cultura oral, a tese de Mota identificava algumas características básicas

da prática dos mestres e jogadores de RPG, dentre as quais, aquilo que

ela chamou de "pilhagem narrativa", e que seria o movimento pelo qual os

jogadores e mestres de RPG "pegam emprestadas'" referências das mais

variadas fontes, omitindo sua autoria e transmutando-as em matéria-prima

para sua brincadeira de ficcionar.

Fazendo um paralelo com a obra de Monteiro Lobato, ela defende a

idéia do RPG como mais uma das “narrativas sem-dono”, presentes cada

vez mais na cultura de massa e que seriam revisitações das tradições dos

contos maravilhosos e da cultura oral.

A partir desse encontro com o universo do RPG, Mota dedicou-se a

organização de eventos nos quais o RPG era apresentado junto a outras

manifestações estéticas e artísticas, sempre em ambientes de

reconhecida relevância cultural, como o Centro Cultural Banco do Brasil

ou o Museu Histórico Nacional, ambos no Rio de janeiro. Assim, foi

realizado, em 1995, o ciclo RPG e Arte, uma série de palestras e debates

sobre a relação entre o RPG e o cinema, o teatro, literatura, o cinema e a

mídia em geral, que ocupou o CCBB, dando origem mais tarde a um Cd-

Rom e um livro, que reunia a transcrição das palestras e debates

realizados durante o evento.

Na apresentação deste livro, Sônia Rodrigues Mota define mais

claramente essa processo da “pilhagem narrativa”, quando diz que no

RPG “se produz, mas também se toma emprestado. (...) Tudo é possível

no RPG, porque o mosaico narrativo é feito por nós”. (MOTA, 1996: p.7)

Mais adiante, no mesmo livro, encontramos a transcrição de sua

palestra dentro do evento, que se encerra com uma frase que resume o

pensamento dela a respeito dos conceitos de narrativa-sem-dono e

“pilhagem narrativa” e que transcrevo a seguir:

“A narrativa, realmente, não tem dono. O que

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existem são formas novas, mais interativas de lidar

com a arte da ficção, que é um patrimônio e uma

necessidade de todos nós.” (MOTA, 1996: p.144)

Porém, a partir da reflexão, da pesquisa e da análise do material

colhido neste trabalho passei a questionar cada vez mais esta idéia de

“pilhagem narrativa” pela qual os jogadores de RPG vão reunindo

elementos das mais diversas fontes, das mais diversas origens e, com

eles, passam a criar seus personagens e suas histórias.

Sendo uma prática referencial por excelência, a criação de

personagens e histórias no RPG é sempre muito mais uma “recriação”,

uma colagem de diferentes elementos, uma “salada” de aproximações e

associações de idéias do que uma criação genuína e plena de ineditismo,

lógico. Nesse sentido, a “pilhagem narrativa” pode ser entendida quase

que como o “sistema operacional” sobre o qual o jogo de RPG se

estabelece.

No entanto, apesar deste ser um dos conceitos mais sólidos dentro

do campo de estudos dos RPGs, e que de certa forma pude identificar na

prática a todo momento, seja como jogador, mestre, autor e, mais

recentemente , também como professor, sempre me pareceu impreciso (e

até mesmo injusto!) chamar de “pilhagem” o processo pelo qual mestres e

jogadores de RPG articulam criativamente tantas referências e links,

operando com maestria essas redes de intensas e quase vertiginosas

referências cruzadas.

Consultando qualquer dicionário, descobriremos, com certeza, que

pilhagem significa: “ato de pilhar. O que resulta do que se pilhou. Saque

praticado por soldados que conquistam uma cidade ou por multidões

amotinadas”

No decorrer desta pesquisa, foi ficando cada vez mais claro para

mim que apesar do conceito ser correto, ele não era preciso, não dava

conta de uma parte importante do processo criativo de mestres e

jogadores de RPG. Que o buscar referências em diversas fontes sem dar

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o devido crédito era parte essencial da diversão. A brincadeira do RPG é,

entre outras coisas, exatamente essa: jogar com as referências, misturar

histórias, personagens, fatos e mitos e brincar de ficcionar.

Por isso, na hora de refletir sobre os dados colhidos durante as

oficinas na escola PARAÍSO, percebi uma boa oportunidade para buscar

um outro conceito para fundamentar minha reflexão. Mas agora não é o

momento para trata disso ainda. Mais à frente, no Capítulo 5, que trata

especificamente das oficinas de RPG, voltaremos a essa discussão. Por

ora, basta ficarmos com a clareza de que, apesar de correto e importante

para o estudo do RPG como fenômeno cultural, o conceito de “pilhagem

narrativa” proposto por Sônia Rodrigues não será aplicado neste trabalho.

De todo modo, alguns anos após o trabalho pioneiro de Sõnia

Rodrigues, um segundo trabalho acadêmico de muita relevância no

estudo do RPG e do seu impacto no campo da Educação foi a

dissertação de Mestrado de Andréa Pavão, publicada mais tarde em livro

pela editora Devir (1999), na qual, por meio de um mergulho etnográfico

profundo e sensível no universo dos mestres e jogadores de RPG, a

autora procurou mapear suas práticas de leitura e escrita, desenhando,

com rara maestria, um perfil acurado e fiel do RPG como fenômeno social

e dos seus praticantes como parte de uma das muitas sub-culturas

juvenis urbanas, ligando o RPG ao rock, ao punk e a outros movimentos

estéticos e políticos típicos da juventude contemporânea.

Porém, devido à sua escolha metodológica de manter-se “de fora”

das mesas de jogo e também, em certa medida, pela pouca familiaridade

da autora (honestamente assumida por ela, aliás) com muitos dos

personagens, histórias, universos ficionais etc. que fazem parte do

“caldeirão” no qual os mestres e jogadores de RPG vão buscar as

referências para suas aventuras e personagens, o seu trabalho acaba

mostrando um grande distanciamento entre a pesquisadora e o objeto,

tratado por ela com muita propriedade através do conceito das “janelas”,

quando reconhece que enxerga o RPG do seu lugar de pesquisadora e

professora, e não do lugar de jogadora ou mestre de jogo, ou mesmo do

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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lugar de conhecedora ou apreciadora de quadrinhos, desenhos animados

japoneses ou videogames, o que, quem sabe, poderia ter acrescentado

novos pontos de vista ao seu trabalho.

Trabalhando com um referencial teórico apoiado principalmente em

Bakhtin, Pavão opera com o conceito de exotopia e registra de forma

eloquente as tensões de ordem histórica e social que se mostram

presentes entre os mestres de RPG ao longo do tempo, materializadas no

conceito de “gerações” de jogadores e mestres, onde mostra, inclusive,

uma visão mais aproximada do conceito de “pilhagem narrativa”, aplicado

por Mota ao RPG, ao registrar empiricamente a presença entre os

mestres de RPG de muitas e várias influências, vindas não só da

literatura, mas também das histórias em quadrinhos, dos filmes de

cinema, dos videogames e de outras linguagens e suportes próprios da

cultura de massa.

Na Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Jane Maria

Braga (2000) realizou uma pesquisa que guarda certos paralelismos com

o trabalho de Pavão, ao analisar similarmente os hábitos de leitura e

escrita entre jogadores e mestres de RPG. Porém, ao acompanhar as

mesas de jogo, a autora buscou relacionar o RPG e sua prática aos

referenciais mais contemporâneos no universo da Educação,

especialmente a idéia dos quatro pilares10, de Jacques Delors, elaborada

para a UNESCO como propostas para a Educação no Século XXI.

Segundo ela,

“o RPGista aprende a conhecer além do que lhe

é oferecido. Através do imaginário, da confortabilidade

de uma cadeira, ele se envereda por leituras diversas,

viaja para mundos distantes combinando sua realidade

com a cultura geral. Ele aprende a fazer, ensaia

10 Aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver, aprender a ser.

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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situações reais no nível imaginário e que podem ajudá-

lo a enfrentar situações de vida, de trabalho, de

relacionamentos, entre outros. Sobretudo, esses

sujeitos aprendem a viver em grupo, respeitando-se,

ajudando-se e formando-se nas interações com o outro

necessário para o jogo e para a vida. Enfim o jogador

de RPG aprende a ser, através da interpretação

diversos personagens, coloca-se em papéis diferentes

sabendo agir com autonomia e responsabilidade já que

cultiva o seu personagem como alguém bem próximo e

dependente de suas atitudes. (BRAGA, 2000)

A pesquisa de Braga serviu de modelo metodológico inicial para a

minha pesquisa, pelo fato da sua estratégia metodológica se aproximar

bastante da que tracei para minha pesquisa (observação participante,

análise dos materiais produzidos pelos jogadores e mestres, análise de

fotografias etc) e, apesar de não ser tão citada quanto os trabalhos de

Sônia Rodrigues ou Andréa Pavão é, no meu entender, uma pesquisa

muito bem elaborada e fundamentada dentro do universo de pesquisa das

relações entre o RPG e a escola.

Um terceiro trabalho na PUC-Rio, dessa vez uma dissertação de

mestrado na área do Design, realizada por Eliane Bettocchi, jogadora,

mestre de jogo e ilustradora de livros de RPG, veio enriquecer as

reflexões sobre o jogo, ao relacionar sua prática e estrutura à cultura

cibernética, ou ciber-cultura, através do seu caráter de hiper-texto, de

multimídia e trazendo também um importante questionamento crítico

acerca da estética e do discurso de gênero implícito nos livros de RPG,

manifesto tanto no texto quanto nas ilustrações que os adornam.

Lido em conjunto com o trabalho de KLIMICK (2003), outro

conhecedor do RPG “na prática” que se aventurou a estudar o tema, e

que aplica muito da base teórica e dos pressupostos de BETTOCCHI em

seu trabalho com o RPG junto a alunos do Instituto Nacional de Educação

de Surdos, no Rio de Janeiro, têm-se um percurso interessante, que vai

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3. RPG, Ludicidade e Escola

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da reflexão teórica à prática, através da utilização do RPG como uma

ferramenta didática per se, sem a intenção de ser uma mera estratégia de

transmissão de conteúdos, mas antes entendendo o jogo como uma

linguagem a mais da qual pode se lançar mão na mediação professor-

aluno, para colaborar com a constituição de conhecimentos e valores.

Outro trabalho de grande influência em minha pesquisa foi a

dissertação de mestrado de Thomas Fairchild, apresentada no

departamento de Educação da USP, em São Paulo, no ano de 2004. Ao

analisar criticamente o que chama de “discurso da escolarização do

RPG”, ele traz um olhar profundamente crítico ao campo, desvendando

alguns dos processos através do qual veio se construindo, ao longo do

tempo, um discurso no Brasil que entende o RPG como uma ferramenta

poderosa para o ensino e a Escola.

Mostrando o quanto existe de interesse comercial por detrás desse

discurso, FAIRCHILD questiona os enunciados mais recorrentes a

respeito da relação entre os jogos de RPG e a Educação e chama a

nossa atenção para o fato de muitas das conclusões sobre as quais se

ergue esse discurso carecem de comprovação empírica ou nascem de

pesquisas e reflexões sem o devido rigor e, por conseguinte, sem a

necessária credibilidade.

Para ele:

“o discurso sobre a escolarização do RPG não

produz novos significados, mas, antes, insere-se em

uma formação discursiva cristalizada, reproduzindo

lugares-comuns aplicáveis à escolarização de qualquer

objeto(...) o interesse das editoras por uma reserva de

mercado do RPG escolar, a captação de um discurso já

existente da insuficiência da escola, a necessidade de

responder a um discurso que difama o RPG a partir de

um caso específico e o desejo dos jogadores pelo

reconhecimento de sua prática.”

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Page 69: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

3. RPG, Ludicidade e Escola

69

Seu alerta, ainda que, no meu entender, seja carregado demais nas

cores, é uma sinalização importante para qualquer um que pretenda

desenvolver pesquisas nessa área, no sentido de questionar as fontes e

os referenciais sobre os quais pretende trabalhar, sob pena de ameaçar a

validade do trabalho ou, mais tarde, a credibilidade do mesmo.

Por essa razão, decidi tomar como referenciais principais para a

minha pesquisa apenas trabalhos apresentados como dissertações de

mestrado ou teses de doutorado, ou ainda artigos publicados em

periódicos reconhecidos, ou livros de editoras atuantes no âmbito

acadêmico ou de autoria de pesquisadores com alguma trajetória de

pesquisa e publicação, para evitar a contaminação da minha

argumentação pelos discursos francamente “pró-RPG”.

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4. RPG, Conteúdos e Competências

O objetivo da escola não deve ser passar conteúdos, mas preparar todos para a vida numa sociedade moderna

Philippe PERRENOUD

Figura 15: múltiplas competências, múltiplas linguagens em ação

4.1 RPG e Educação

Pelo simples fato de ser travada num campo em plena constituição,

a discussão a sobre as possibilidades e potencialidades da utilização

pedagógica dos jogos de RPG está sempre sujeita à tensão que advém

do embate das idéias que se vão cristalizando e tomando corpo, à medida

que avançam as reflexões e os trabalhos exploratórios nesta área.

Porém, mesmo num cenário onde ainda há tanto por se desbravar, e

que se constrói e modifica à nossa volta a cada novo passo, já é possível

identificar pelo menos uma grande cisão que se faz visível nessa

paisagem em constante mutação.

De um lado, coloca-se claramente um movimento de idéias, ações e

projetos no sentido de se pensar o RPG como uma “revolucionária

ferramenta pedagógica para uso em sala de aula” (MARCATTO),

propondo aos professores e educadores que se apropriem e se utilizem

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4. RPG, Conteúdos e Competências

71

do jogo como forma de tornar suas aulas mais cativantes e interessantes,

baseando-se no argumento de que, através do uso do RPG em sala de

aula, e, por conseguinte, ao “transformar uma aula em jogo, facilita-se o

envolvimento do aluno com o tema, tornando a aula mais agradável,

divertida e produtiva.” (MARCATTO, 1996)

Esta corrente, que tem sua origem mais provável nas próprias

demandas de professores e educadores que travaram contato com o RPG

logo no início da década de 90 e que vislumbraram nesses jogos alguma

potencialidade que, em sua maioria, ainda não sabiam como introduzir em

sua prática pedagógica, teve um grande impulso com o lançamento do

livro “Saindo do Quadro”.

Psicólogo e psicoterapeuta, Alfeu Marcatto publicou em 1996, de

forma independente, um pequeno manual no qual descreve o que é o

RPG, delineia os principais títulos presentes no mercado brasileiro (à

época do seu lançamento) e sugere uma metodologia bem simples que,

segundo o autor, “derruba alguns mitos da educação acadêmica e foge

completamente da monotonia dos manuais pedagógicos.” Para Marcatto,

esta técnica, baseada nos jogos de RPG:

“oferece subsídios para que professores de

qualquer grau e disciplina transformem suas aulas em

atividades animadas, interativas e, principalmente,

muito produtivas.” (MARCATTO, 1996)

Segundo esse raciocínio, mais tarde endossado por muitos

educadores e profissionais (editores, autores e outros) ou amadores

(jogadores e mestres de RPG) que até hoje defendem o uso do RPG em

sala de aula, um dos maiores problemas da Educação atualmente seria o

de “demonstrar a importância de conteúdos que não tenham aplicação

prática imediata”, mesmo que estes contribuam para formação geral do

aluno, tornando-o mais capacitado e competente em outras áreas da sua

própria vida.

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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Marcatto sugere ainda que, por meio de “uma simulação como o

RPG, podemos demonstrar mais facilmente o que será útil na aplicação

do conteúdo”, já que o RPG “possibilita a vivência do conteúdo.” E essa

vivência garantiria o interesse do aluno.

Porém, deve-se ressaltar que, apesar de toda essa argumentação, o

autor pondera sensatamente que o RPG é somente mais um dos

inúmeros recursos à disposição de professores e alunos, sugerindo que o

RPG não deveria ser “tomado como o mais importante e, muito menos,

como o único recurso a ser usado em aula.”

Mas o fato é que, ao longo dos anos, especialmente em São Paulo,

esta corrente acabou se consolidando cada vez mais. Ao lado de outras

iniciativas, a publicação, a partir de 1999, da série de livros mini GURPS,

RPGs para iniciantes inspirados na História do Brasil (tendo como meta

clara o uso em sala de aula) acabou dando origem a projetos e produtos

que ilustram muito bem essa concepção de trabalho pedagógico

utilizando-se dos jogos de RPG para “dinamizar” ou “potencializar” a

transmissão dos conteúdos.

Um desses projetos foi o livro “Resgate dos Retirantes”, uma

aventura de RPG publicada pela mesma editora (embora escrito por um

autor diferente) dos demais títulos de RPGs didáticos, e que se destina a

ser quase que uma “aula” de História da Arte, usando uma aventura de

RPG como “ferramenta didática” para transmitir conceitos e informações

sobre a vida e a obra do artista plástico Cândido Portinari.

E mais recentemente, essa corrente tem se consolidade em torno do

trabalho da ONG Ludus Culturalis e dos Simpósios de RPG e Educação,

realizados em São Paulo pela própria LUDUS (uma organização não-

governamental ligada com muita estreiteza à editora Devir, especializada

em livros de RPG do Brasil, que publica títulos de RPG destinados ao

mercado didático).

Ilustrativamente, num dos Simpósios de RPG e Educação, quando

do lançamento do livro “Resgate dos Retirantes”, pedia-se aos

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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participantes (em sua maioria professores e educadores) que

respondessem a um pequeno questionário sobre a vida de Portinari, para

que, em seguida, após jogarem uma partida de RPG, na qual era usada a

aventura “Resgate dos Retirantes”, refizessem o mesmo questionário.

De posse das informações transmitidas durante a brincadeira, os

participantes conseguiam responder ao questionário de forma muito mais

“fácil”, demostrando assim (pelo menos segundo a argumentação dos

organizadores) a potencialidade do RPG como ferramenta de ensino.

A esse respeito, escreve FAIRCHILD:

“Tomemos por exemplo a atividade realizada no

II Simpósio RPG & Educação sobre O Resgate de

"Retirantes" (...) Promoveu-se a democratização de um

saber: tornando-se dono de informações tais como o

nome de algumas obras de Portinari, o sujeito investe-

se de um pequeno poder, uma vez que não ser capaz

de citar o nome de uma obra de Portinari é uma forma

de exclusão cultural.

Não obstante, algo permanece inacessível. A

experiência de conhecer Portinari através de O

Resgate de "Retirantes" não passa pelo contato direto

com a própria obra do pintor ou com a bibliografia a seu

respeito. Ela leva ao domínio de alguns enunciados

autorizados sobre o tema, mas não leva à possibilidade

de autoria.” (2004)

Como fica claro, existe todo um outro lado subjacente a esta

questão, o qual me parece legítimo questionar e, acima de tudo,

necessário de se ressaltar, e que se refere à própria concepção de

Educação e de prática pedagógica que se decide seguir.

A visão da escola como lugar da mera transmissão de conteúdos já

foi suficientemente criticada por um número suficiente de autores, entre

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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eles Paulo Freire, que comparava essa concepção de Educação a um

sistema “bancário”, propondo que a Educação, ao contrário, deveria ser

uma prática de diálogo e de libertação: o lugar da formação do indivíduo

crítico e não de um simples repositório de informações, conteúdos e

saberes estanques.

Ao mesmo tempo, essa idéia de que existe uma necessidade, por

parte dos professores, de buscar alguma espécie de fórmula “mágica”,

“inventiva”, “criativa”, “lúdica”, “interessante” (e um sem-número de outros

adjetivos) para motivar seus alunos ao “aprendizado” também não é nova.

Partilho da convicção de que essa abordagem, centrada na

transmissão dos conteúdos e na proposta de uma utilização “instrumental”

do RPG na escola, considerando o jogo como mera “ferramenta didática”

é exatamente o que leva Braga (2000), Pavão (1999) e Fairchild (2004),

entre outros, a questionarem a validade de se propor a introdução dos

jogos de RPG na escola, já que isso, segundo eles, retiraria do RPG toda

a sua espontaneidade, esvaziando o seu caráter lúdico e de prática

legítima das culturas juvenis contemporâneas, para, ao contrário,

"institucionalizá-lo", num visível contra-senso, onde se pretenderia tornar

compulsória uma prática de liberdade, como se fosse realmente possível

obrigar alguém a se divertir.

Por isso, para o meu trabalho com os jogos de RPG dentro do

campo educacional, preferi trilhar um outro caminho, percorrer uma rota

alternativa, que acabou motivando a presente pesquisa.

Mais do que usar o RPG como uma “ferramenta” para a transmissão

de conteúdos, sempre me pareceu muito mais adequado trabalhar a partir

daquilo que parece ter despertado, naturalmente, o interesse dos pais,

professores, psicólogos e educadores para o RPG, e que, a julgar pelo

que registram várias pesquisas sobre os RPGs, nasceu da observação de

seus filhos, sobrinhos ou alunos jogando RPG nos fins de semana, em

evrntos ou em outras ocasiões, de forma livre e descompromissada, por

puro lazer... e prazer. E também, é claro, pela observação do que se

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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modificava no comportamento e na relação dos jogadores de RPG com o

conhecimento, os livros, a leitura etc.

A esse respeito, Braga vai dizer, de forma bastante sintética, que

dentre as muitas mudanças que o RPG produz nos jogadores estão:

“desenvolvimento da criatividade (imaginação),

estímulo à leitura e à convivência em grupo,

desenvolvimento do raciocínio, desenvolvimento da

habilidade na área da escrita (redação) e da própria

fala”. (2000)

Portanto, partindo de uma discordância veemente da concepção e

da proposta de utilização do RPG dentro das escolas como uma mera

ferramenta pedagógica, que centra seus esforços na demonstração de

como o RPG pode tornar as aulas mais “dinâmicas e interessantes” e os

conteúdos mais “úteis e aplicáveis” (numa grave simplificação do conceito

de conhecimento significativo), comecei a ser levado a um

questionamento cada vez maior sobre se seria possível pensar numa

alternativa a essa visão limitante do RPG e da Escola. Comecei a me

perguntar se seria possível utilizar os jogos de RPG, exatamente como

eles existem, em forma e conteúdo, como atividade livre e prazerosa, só

que dentro do ambiente da escola, tomando o cuidado de não macular o

que o jogo tem de mais precioso (no meu entender), que é justamente a

“mudança de atitude” que o RPG provoca e promove nos participantes

naturalmente.

Com o tempo, o que era apenas um questionamento foi evoluindo

para tomar a forma de reflexões e propostas mais concretas, que

desenvolvi e apresentei em cursos, palestras e oficinas ministradas a

professores, educadores, bibliotecários, pais e alunos em várias ocasiões.

O meu raciocínio era simples: já que a prática do RPG não se encaixava

com os tempos e nem com a rotina escolar, qualquer utilização do RPG

na escola deveria tratar o jogo, obrigatoriamente, como uma atividade

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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“extra-classe” ou “extra-curricular”, preservando as especificidades tanto

do trabalho em sala de aula quanto da prática do RPG.

Porém, muito embora tivesse confiança na validade dessas

propostas, construídas a partir de vários anos de contato com os jogos de

RPG, seja como jogador, mestre de jogo ou autor de diversos livros de

RPG, ainda me angustiava a falta de uma maior solidez teórica para

balizar minhas concepções. E algo ainda me dizia que tinha de ser

possível uma “terceira via”, que fizesse a ponte entre o RPG e a sala de

aula sem sacrificar nenhum dos dois.

A resposta às minhas indagações, ainda que de forma incipiente,

começou a tomar corpo a partir do meu contato com os textos de Phillipe

Perrenoud1, o que me motivou a escrever um artigo2 apresentado no

simpósio Histórias Abertas, realizado na PUC-Rio, em 2003.

Um dos inspiradores dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs),

estudioso das desigualdades sociais e da evasão escolar, do ofício dos

alunos, das práticas pedagógicas e do currículo escolar, Perrenoud é um

dos defensores da idéia da organização do ensino em ciclos de

aprendizagem de três anos, ao invés do ensino seriado, dividido em

“ciclos anuais”, o que já é adotado em diversas cidades brasileiras, tanto

em escolas públicas quanto privadas3, sendo alvo tanto de elogios quanto

de críticas.

Perrenoud é um pensador polêmico mais bastante atual, cujas

propostas, ainda que contestadas, encontram-se em pleno vigor,

influenciando em grande medida a base conceitual do ordenamento

1 Sociólogo suíço, professor na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, autor de vários livros e artigos, Perrenoud é um autor em muita evidência atualmente, por suas idéias sobre a avaliação dos alunos, a formação dos professores, a prática pedagógica, mas sobretudo por sua defesa firme e persistente da idéia da escola como lugar do desenvolvimento de competências, e não apenas da mera transmissão de conteúdos.

2 “RPG e Educação: construindo competências através da imaginação criativa”, disponível em www.multirio.rj.gov.br/seculo21/generico.asp?id_tipo=4&id_tbl_gen=1720

3 inclusive na escola PARAÍSO, local escolhido para minha pesquisa.

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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jurídico da Educação Brasileira, instituído a partir das reformas realizadas

na década de 90, com a LDB, os PCNs e outras.

4.2 A competência de Perrenoud

Em inúmeros livros e artigos, Perrenoud explora o tema das

competências, que ele define como:

“a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos

cognitivos (saberes, capacidades, informações etc)

para solucionar com pertinência uma série de

situações” (2000).

Dessa forma, saber orientar-se numa cidade desconhecida, por

exemplo, mobilizaria as capacidades (ou competências) de se ler mapas4,

de se localizar no espaço, de pedir informações ou conselhos; além de

saberes como: ter noção de escala, conhecer os elementos de topografia

ou algumas referências geográficas etc. As competências não são os

saberes, nem as capacidades e nem as informações em si, mas sim a

capacidade de selecionar, combinar e aplicar todos eles de acordo com

situações inesperadas.

A noção de competências dentro do campo da Educação vem

como uma resposta à constatação de que, muitas vezes, os alunos

armazenam uma série de informações e saberes que não conseguem

relacionar ou aplicar em situações concretas ou mesmo hipotéticas onde

se mostrem necessários. É uma crìtica à visão da escola como lugar da

transmissão de conteúdos e a afirmação dela como local da construção

de conhecimentos e valores.

Para Perrenoud, o desenvolvimento das competências está

intimamente relacionado às experiências e vivências, condicionadas pelo

meio e os contextos culturais, profissionais e condições sociais. E como

4 Coincidentemente (ou não), muitas aventuras de RPG envolvem mapas, cidades desconhecidas e outras situações onde múltiplos talentos, múltiplas capacidades e múltiplos saberes são exigidos. Além disso, no RPG, o próprio personagem é criado e descrito pelos jogadores através de suas capacidades físicas, mentais

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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os seres humanos não vivenciam todos as mesmas situações, acabam

desenvolvendo competências adaptadas a seu mundo, à sua vida. Ou

seja:

“A selva das cidades exige competências

diferentes da floresta virgem, os pobres têm problemas

diferentes dos ricos para resolver. Algumas

competências desenvolvem-se em grande parte na

escola. Outras não.” (Perrenoud, op. cit.)

Perrenoud argumenta que, segundo o paradigma educacional

centrado na mera transmissão de conteúdos “os alunos acumulam

saberes, passam nos exames, mas não conseguem mobilizar o que

aprenderam em situações reais, no trabalho e fora dele.” Para ele,

“formulando-se mais explicitamente os objetivos

da formação em termos de competência, luta-se

abertamente contra a tentação da escola de ensinar

por ensinar, de marginalizar as referências às situações

da vida e de não perder tempo treinando a mobilização

dos saberes para situações complexas.” (Perrenoud,

op. cit.)

Apesar da produção de Perrenoud sobre o tema das competências

ser vasta e extensa, pelo menos neste momento, nosso interesse vai se

voltar para uma pequena lista de oito grandes categorias de

competências, que ele acredita serem fundamentais para a autonomia

das pessoas e que deveriam ser trabalhadas pela escola. Para

Perrenoud, essas 8 competências seriam:

1. Saber identificar, avaliar e valorizar as suas possibilidades,

os seus direitos, os seus limites e as suas necessidades;

2. Saber formar e conduzir projetos e desenvolver estratégias,

individualmente ou em grupo;

e espirituais, numa planilha que é um verdadeiros rol de suas "competências".

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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3. Saber analisar situações, relações e campos de força de

forma sistêmica;

4. Saber cooperar, agir em sinergia, participar de uma atividade

coletiva e partilhar liderança;

5. Saber construir e estimular organizações e sistemas de ação

coletiva do tipo democrático;

6. Saber gerir e superar conflitos;

7. Saber conviver com regras, servir-se delas e elaborá-las;

8. Saber construir normas negociadas de convivência que

superem diferenças culturais.

(Perrenoud, op. cit.)

Diante dessa lista, será que poderíamos vislumbrar algumas dessas

(ou todas essas) oito competências sugeridas por Perrenoud sendo

contempladas na prática do RPG?

Vamos tentar?

“Saber identificar, avaliar e valorizar as suas possibilidades, os seus

direitos, os seus limites e as suas necessidades”.

A prática do RPG começa com a “criação do personagem”, quando o

jogador avalia as possibilidades oferecidas pelo jogo (habilidades,

poderes, magias, raças, equipamentos, tipos de personagem etc) à luz de

seus anseios, desejos e aspirações, colocadas em prática através do

personagem, que funciona como o “alter-ego” do jogador. No decorrer das

partidas, o jogador vai percebendo quais de suas escolhas para o

personagem foram adequadas e quais não foram, na medida em que o

personagem se mostra ou não capaz de realizar as ações que ele (o

jogador) deseja empreender durante o jogo. Confrontado com os limites

impostos pelas regras e pela “sorte” (os rolamentos de dados), o jogador

vai equalizando o desejado e o possível, a aspiração e a frustração,

dentro do universo simbólico de representação do RPG.

“Saber formar e conduzir projetos e desenvolver estratégias,

individualmente ou em grupo”

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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O RPG é originário dos jogos de estratégia e de guerra (war games)

e, por ser jogado em grupo, de forma cooperativa, faz parte da própria

natureza dessa atividade o desenvolvimento de estratégias individuais e

grupais para a superação dos desafios apresentados pelo Mestre do Jogo

aos seus jogadores durante as partidas. A diversidade de personagens

dentro dos cenários propostos (magos, guerreiros, cavaleiros etc. nos

cenários de “fantasia medieval”, por exemplo) também coloca os

jogadores diante da necessidade da cooperação estratégica para que,

juntos, unindo suas capacidades e combinando suas competências

individuais, possam chegar coletivamente ao objetivo comum da história.

“Juntos resistimos, divididos caímos”5, como diz o ditado.

Ao planejar a invasão do covil dos bandidos ou a melhor maneira de

se enfrentar um dragão, os jogadores pensam estrategicamente, medindo

e avaliando quais das competências individuais de seus personagens

podem ser usadas para o atingimento dos objetivos ansiados pelo grupo.

A partir da experimentação “em campo” com essas competências, os

jogadores avaliam e re-avaliam constantemente suas estratégias, diante

do sucesso ou fracasso de suas tentativas. Assim refazem planos, criam

padrões de atuação, rotinas de trabalho etc.

“Saber analisar situações, relações e campos de força de forma

sistêmica”

O universo dos RPGs é construído em cima de um sistema de

regras, de números e probabilidades matemáticas. Ao criar seu

personagem, o jogador é levado a “traduzir” este personagem nos termos

propostos pelas regras do jogo, ou seja, precisa quantificar e relativizar as

competências de seu personagem diante dos outros personagens do

grupo e dos NPCs, (os personagens coadjuvantes, controlados pelo

Mestre do Jogo). Depois, a cada passo de sua jornada, o jogador vai

travando contato com as possibilidades concretas de ação que aquelas

competências garantem ao seu personagem. Com o tempo, passa a ser

5 “Together we stand, divided we fall”

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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natural para os jogadores a capacidade de avaliar, em termos numéricos

e probabilísticos, as possibilidades de sucesso diante dos desafios do

jogo e com isso são capazes de pautar sua interpretação do personagem

e suas decisões a partir dessa nova visão da realidade do jogo. Dominar

um sistema de regras complexo, onde muitas variáveis estão em ação ao

mesmo tempo é parte da rotina nos jogos de RPG, é o “feijão com arroz”

dos RPGistas...

“Saber cooperar, agir em sinergia, participar de uma atividade

coletiva e partilhar liderança”

Todos os estudos sobre o RPG ressaltam como positiva a natureza

cooperativa, interativa, negociada e coletiva dessa atividade. E pelo fato

do personagem só “agir” através da verbalização, do discurso e da

narração do jogador, que descreve em detalhes a ação e as “falas” de seu

personagem, a condução de uma aventura de RPG é, na verdade, uma

grande experiência narrativa dialógica, onde a liderança (centralizada na

forma da “palavra”, do direito ao controle da narrativa através do discurso)

é passada de um para o outro durante todo o decorrer do jogo, estando

sempre sob a “batuta” do Mestre do Jogo.

Na verdade, o RPG é, em sua essência, um exercício de criação

compartilhada e coletiva: uma história que vai se construindo aos

pedacinhos, com a participação de cada jogador, mas sob a “direção” do

Mestre do Jogo, que cumpre a função de “narrador principal”. Dentro de

uma partida de RPG, o personagem de um jogador só age quando ele (o

jogador) declara isso, descrevendo as ações e reações de seu

personagem diante dos elementos da história que se apresentam a cada

nova “cena”. Se o jogador se omite, ou se cala, seu personagem deixa de

agir, congela-se, cessa sua existência ativa na história. Passa a ser mais

um coadjuvante. Acaba aí o prazer do jogo, cessa a diversão...

Para jogar e para agir, é preciso verbalizar, é preciso que o jogador

se afirme e se coloque diante dos companheiros, tomando decisões,

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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assumindo suas posições, argumentando, defendendo seus pontos de

vista (os do personagem, claro!) etc.

“Saber construir e estimular organizações e sistemas de ação

coletiva do tipo democrático”

O grupo de jogadores é uma célula social bastante democrática,

onde qualquer tentativa de “desequilíbrio” de uma ou outra parte acaba

sendo percebida e rejeitada pelos demais. Se o Mestre é injusto,

favorecendo demais ou prejudicando intencionalmente algum(ns) dos

personagens, esse fato logo gera um movimento de discussão e

reavaliação dentro do grupo, em busca do equilíbrio e da “justiça” que

garanta a “igualdade de oportunidades” durante o desenrolar do jogo.

Como todo jogo, o RPG é governado pelo princípio do prazer e pela

suspensão da descrença, por um contrato tácito que os jogadores e o

mestre firmam entre si, sacrificando interesses pessoais em prol da

manutenção da diversão.

Além disso, as regras do jogo estão sempre em julgamento, não

sendo raros (pelo contrário, sendo até bastante freqüentes) os casos em

que o grupo discute e, consensualmente, muda as regras sugeridas nos

livros, adequando-as à sua visão particular do que seria mais justo e

interessante, ou mais divertido para o jogo e para o grupo. Os próprios

livros de RPG incentivam esse comportamento, muitas vezes dizendo que

a regra mais importante do jogo è que não existe regra mais importante

do que a diversão. Não é de se estranhar que um movimento natural seja

aquele que leva muitos grupos de jogadores a criarem do nada as suas

próprias regras, os seus próprios “sistemas de RPG”, num exercício em

que se apropriam do código gerador do jogo e da sua prática, re-

inventando e “customizando-os” em benefício próprio.

Além disso, o próprio caráter gregário da atividade do RPG favorece

a criação de verdadeiros e profundos laços de comunidade entre seus

membros, sendo muito comum a existência de clubes, associações,

grupos e redes de contatos entre os adeptos. Os eventos de RPG

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4. RPG, Conteúdos e Competências

83

(chamados de “convenções” ou “encontros”), muitas vezes organizados e

geridos pelos próprios grupos e associações de jogadores, chegam a

reunir em alguns casos milhares de participantes, que têm em comum

apenas o gosto pela prática do RPG, vindo muitas vezes de bairros,

cidades e estados (e até países!) diferentes e distantes. A internet, outro

meio marcado pela existência dessa prática das “comunidades”, acabou

tornando-se um habitat natural para os adeptos do RPG, que exercitam

por toda a “rede” essa vocação gregária do seu hobby através de sites,

listas de discussão, portais e fóruns de idéias espalhados pelos quatro (ou

mais?) cantos do ciberespaço.

“Saber gerir e superar conflitos”

O conflito é a base de qualquer narrativa e, por consequência,

também das aventuras de RPG. Sem o conflito entre os personagens,

seus desejos e aspirações e os desafios, situações e inimigos criados e

narrados pelo Mestre do Jogo, não haveria graça nenhuma no RPG. Além

disso, como o grupo geralmente é formado por personagens com

diferentes habilidades e poderes (ou competências...), isso vai levar a

diferentes objetivos individuais dentro do mesmo grupo, que surgem e se

expressam durante as partidas. Na hora do grupo decidir que rumo a

história deve tomar, cada jogador é chamado a se colocar diante do

dilema que se apresenta, desafiando sua capacidade argumentativa e

aprendendo a conviver com os conflitos internos no grupo, assim como

com os conflitos entre o grupo e as situações de jogo. Por último, o maior

conflito dentro de uma mesa de RPG acontece exatamente entre os

jogadores e o Mestre de Jogo. Representando a autoridade, o juiz, mas

também o “outro lado”, “os inimigos”, o Mestre toma para si a difícil tarefa

de gerir os conflitos entre jogadores e regras, entre jogador e jogador e

entre jogadores e “cenário”, num eterno papel de conciliador, que mantém

a narrativa em movimento e em relativa harmonia.

Não é uma tarefa fácil ser mestre do jogo. Saber harmonizar todos

os vetores criados pelos desejos e aspirações em conflito durante o jogo

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4. RPG, Conteúdos e Competências

84

requer uma capacidade argumentativa, organizacional e uma entrega que

parece irrealizável quando se percebe a idade e a experiência de vida dos

jogadores de RPG. Aliás, um trabalho que estudasse mais a fundo o ofício

do Mestre do Jogo, confrontando-o com outras atividades gerenciais e de

monitoria ou mesmo com o ofício do professor pode trazer revelações e

apontamentos muito interessantes no campo da Educação, mas também

na Psicologia ou mesmo na Administração de Empresas. Fica lançado o

desafio a novos aventureiros...

“Saber conviver com regras, servir-se delas e elaborá-las”

O RPG é basicamente uma ferramenta de simulação de realidade,

apoiada sobre um grupo organizado e estruturado (um “sistema”) de

regras de representação e probabilidade. Ao criar seu personagem

segundo as regras de um determinado “sistema”, o jogador vai

apreendendo as relações numéricas e probabilísticas que permitem que

ele represente o que imagina de seu personagem dentro daquele cenário

e segundo aquelas regras. Com o tempo, o jogador vai experimentando

com os limites do sistema, conhecendo até onde pode ir com seu

personagem, o que pode e não pode realizar dentro do jogo, o que é fácil,

difícil ou mesmo impossível. Esse uso estratégico das regras é parte

integrante da prática do RPG, e mais cedo ou mais tarde, a discussão

acerca das regras do jogo passa a ser um elemento constante dentro do

grupo. E, como já foi dito, com grande freqüência os grupos de jogadores

desenvolvem novas regras, aprimorando as já existentes ou partindo do

zero e construindo seus próprios “sistemas de RPG”. Além disso, como

toda atividade de grupo, o RPG se apóia numa “etiqueta” própria do jogo,

que inclui o saber falar e silenciar, permitindo que a narrativa flua, o

aguardar a sua vez na rodada e o exercício contínuo da cooperação entre

personagens (dentro da história) e entre os jogadores (na mesa de jogo)

para que a fruição do jogo seja a mais completa possível.

Saber “jogar” com as regras, forçando seus limites, descobrindo e

elaborando combinações interessantes entre características, poderes,

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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capacidades e competências variadas na hora de criar o personagem e

até mesmo encontrando “brechas” nas regras que beneficiem o seu

personagem acabam sendo quase que necessidades de sobrevivência

para os jogadores, num jogo constante de avaliação e re-avaliação de

limites e possibilidades.

“Saber construir normas negociadas de convivência que superem

diferenças culturais”

Tudo numa mesa de RPG é resolvido através da conversa e da

negociação. O jogo acontece a partir da narrativa inicial do Mestre e das

intervenções verbais dos jogadores, descrevendo as decisões, as ações e

as falas dos seus personagens. E se desenvolve nessa narrativa

compartilhada, onde cada um contribui para o todo com sua parte. Além

disso, por seu caráter social, gregário, uma partida de RPG se constrói a

partir da interação real entre os jogadores, de sua convivência em torno

de uma mesa por horas a fio. A etiqueta “fora do jogo” é tão (ou mais)

importante que dentro dele. As diferenças entre os jogadores às vezes

precisam ser mais trabalhadas do que as que existem entre seus

personagens. Ou seja, a harmonia de um grupo de RPG deve ser

conquistada e mantida pelos próprios jogadores e pelo mestre, rodada a

rodada. As regras sociais de boas maneiras são tão importantes quanto a

habilidade de se tornar parte do grupo. Os desrespeitos às normas

aceitas pelo grupo durante o jogo são facilmente detectados e devem ser

resolvidos rapidamente, sob pena do jogo ser paralizado e da diversão se

esvair. A busca da fruição do jogo dirige inexoravelmente o grupo em

direção à resolução dos conflitos.

Além disso, os cenários e universos ficcionais descritos nos jogos de

RPG são via de regra constituídos por sociedades multiraciais e

multiculturais, onde convivem (harmoniosamente ou não) personagens de

diferentes raças, origens, capacidades e características. Raças e

nacionalidades separadas por ódios e inimizades, colonizadores e

colonizados, escravos e escravizadores muitas vezes dividem a cena nas

partidas de RPG.

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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Este exercício multicultural expõe os jogadores de RPG a toda sorte

de situações geradas pelo choque de culturas e civilizações durante as

histórias. Num ambiente de diversidade, gerido pela regra do equilíbrio e

da igualdade entre os personagens, os jogadores de RPG exercitam a

capacidade de tolerância diante da diversidade, ou experimentam

situações de intolerância de ordem racial, religiosa ou de outras origens,

que se colocam como dilemas a serem resolvidos pelos personagens. No

ambiente virtual, na simulação de realidade e sociedade onde seus

personagens ganham vida, os jogadores aprendem (muitas vezes na

“própria pele”, ou seja, através de seus personagens) a conviver com a

diversidade e a discriminação.

Em suma, como é possível notar facilmente, numa análise rápida

como esta, todas as oito competências consideradas por Perrenoud como

fundamentais para a vida num ambiente democrático parecem estar

sendo totalmente contempladas pela simples prática “normal” do RPG,

sem nenhuma pretensão ou planejamento “didático” ou “pedagógico” por

trás do jogo. Isso me levou a ver, se não uma certeza, pelo menos um

indício claro de que, dentro de uma proposta de pedagogia que contemple

a questão do desenvolvimento dessas (e de outras) competências, o RPG

poderia ser usado com grande potencial sucesso, sem que se precisasse

com isso submeter a prática do RPG à posição instrumental de

“ferramenta didática” para a transmissão de conteúdos ou saberes.

Mas qual será a opinião (e as conclusões) dos pesquisadores que se

debruçaram sobre o tema do RPG? Como as pesquisas acadêmicas e

teóricas realizadas no Brasil acerca da relação entre os Role Playing

Games e a Educação têm visto o jogo e sua prática entre os jovens

brasileiros? Estariam as competências listadas por Perrenoud (e outras

mais) realmente sendo desenvolvidas e trabalhadas de alguma forma

pelos jogadores através da prática RPG?

Braga (2000) lista algumas competências que o RPG ajudaria a

desenvolver nos participantes, concluindo que, “o RPG pode ajudar na

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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construção de conhecimento socialmente estruturado e no conhecimento

pessoal.”

Parece bem seguro afirmar-se então que, por seu caráter

multidisciplinar, por seu desenvolvimento com características de

multimídia (narração oral, escrita, desenhos etc.) e de hipertexto (v.

Bettochi, 2002), os RPGs movimentam, em sua realização, diversos

saberes e trabalham diversas competências em seus praticantes.

Isso me trouxe a convicção de que o tema do RPG e das

competências merecia ser pesquisado e estudado com mais

detalhamento, já que, à primeira vista, parecia haver uma confluência

muito frutífera entre os apontamentos dos pesquisadores que se

debruçaram sobre o uso pedagógico do RPG e as teorias e propostas de

Perrenoud acerca da construção das competências.

Ou seja, o RPG, encarado como mais uma ferramenta possível na

mediação cultural dentro da prática escolar, assumindo a forma de espaço

de representação onde os participantes investem um grande potencial

criativo e afetivo, poderia desempenhar um papel de destaque em

qualquer estratégia ou projeto pedagógico que trabalhasse não apenas os

conteúdos, mas também a constituição e o desenvolvimento de

competências pelos alunos.

Porém, antes de seguir em frente, não havia como me esquivar das

profundas e intensas discussões que envolvem o tema das competências

aplicadas à Educação.

4.3 Competências... Quais Competências?

A proposta de se organizar o currículo escolar a partir de um modelo

orientado ao desenvolvimento de competências ao invés da transmissão

de conteúdos, compartimentalizados em saberes disciplinares, nasce da

constatação, que hoje já é praticamente um consenso, de que as

mudanças ocorridas no mundo, trazidas e potencializadas pelo

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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desenvolvimento e a disseminação das novas tecnologias de informação

e comunicação, transformaram profundamente o papel da escola, da

família e do saber.

A idéia de organização curricular para o desenvolvimento de

competências repousa na base das grandes e profundas reformas

educacionais implementadas em muitos países europeus e latino-

americanos durante a década de 1990 e que visavam adequar a

educação às demandas do mundo contemporâneo, partindo de

pressupostos e teorias psicológicas originadas do Construtivismo, para o

qual são de grande importância as idéias de funcionalidade do

conhecimento e de aprendizagem significativa, entre outras.

Pensando o problema não a partir (simplesmente) da Escola mas

também (e especialmente) dos meios de comunicação, MARTIN-

BARBERO (2003b) vai falar do "embaçamento das fronteiras" entre as

diversas instâncias sociais, operando com os conceitos de

descentralização, deslocalização/destemporalização e disseminação

do conhecimento.

Para MARTIN-BARBERO, outrora localizada, contida e concentrada

em locais e papéis sociais bem claros e definidos (os templos, os

mosteiros, a escola, a universidade) ou em artefatos e códigos fixos (a

escrita, o livro, a leitura), a informação se dissemina com tamanha

velocidade e abrangência no mundo atual que torna-se instantânea,

avassaladora, vertiginosa e praticamente onipresente.

Num mundo no qual a TV ou a internet oferecem o acesso imediato

e remoto a um volume de informações virtualmente inesgotável, o papel e

o local social da leitura, do livro, do professor e da escola devem ser

necessariamente repensados. Além disso, no plano da constituição das

identidades, MARTIN-BARBERO (op.cit.) vai sinalizar para o fato de que

estamos hoje diante de um modelo de indivíduo:

"cuja auto-consciência é muito problemática, porque

o mapa de referência de sua identidade já não é um só,

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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pois as referências de seus modos de pertencimento são

múltiplos e, portanto, trata-se de um sujeito que se

identifica a partir de diferentes âmbitos, com diferentes

espaços, ofícios e papéis" (op.cit.: p.21).

Ou seja, num mundo onde as identidades tornam-se múltiplas e

multifacetadas, construídas como um mosaico de infinitas inter-conexões

estabelecidas nas redes sociais, culturais e informacionais pelas quais os

sujeitos transitam, o papel formativo da escola também precisa ser

redimensionado.

Hoje, poderia-se dizer com relativa segurança que a TV ensina e

educa tanto (ou mais) do que a escola ou até mesmo a família6. Num

multiverso de comunidades virtuais, globais e interativas, unidas por

interesses e padrões de consumo e comportamento, fragmentado numa

miríade de sub-culturas bastante próprias e distintas, a escola e os

educadores não poderiam se furtar ao desafio de incorporarem

criativamente essas novas identidades e práticas culturais, trazendo para

dentro dos muros da escola o tremendo potencial de diversidade que

circula nas ruas e nos guetos, fervilhando no meio cultural e social dos

jovens.

Só que, antes disso, talvez fosse imprescindível que se repensasse

a noção de competências, cada vez mais recorrente no discurso oficial da

Educação no Brasil e em muitos países da Europa e da América Latina.

Pois pode ser que as novas configurações sociais – originadas nas

mudanças efetuadas nos modos de produção e circulação da informação

e do conhecimento – estejam recriando um tipo de competências culturais

e cognitivas que não parecem apontar no sentido das competências para

a geração de rentabilidade e competitividade, predominantes no campo

empresarial. Para MARTÍN-BARBERO, a superação desta situação passa

6 Várias pesquisas realizadas noBrasil e em outras partes do mundo vem apontando que as criançs e jovens passam uma quantidade muito maior de horas por dia expostos aos conteúdos e mensagens da mídia (TV, rádio, cinema, internet etc.) do que nos bancos das escolas.

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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"pela incorporação de uma transversalidade que

termine com o preconceito que separa as ciências das

humanidades, e por resgatar aquele tipo de saberes que,

não sendo diretamente funcionais são, no entanto,

socialmente úteis, os saberes lógico-simbólicos, históricos

e estéticos. Os saberes indispensáveis" (2003b: p.18).

O caminho, portanto, passaria pela redefinição da noção de

competências a ser aplicada à educação. E esta re-contextualização pode

começar, como aponta RAMOS (2001) por reconhecer que esta proposta

pedagógica

"confere excessiva ênfase aos aspectos subjetivos

dos alunos, em especial àqueles relacionados à

aprendizagem, negligenciando o conjunto das

determinações históricas e sociais que incidem sobre a

educação, promovendo uma certa despolitização de todo

o processo formativo e de inserção social."

Vendidas como uma das possíveis soluções para a chamada "crise

da Educação", na qual se acentuam cada vez mais o descompasso e o

contraste entre o mundo da escola e o mundo "da rua", "do trabalho", "da

mídia" etc, as propostas educaionais baseadas na noção de

competências são alvo de pesadas críticas e questionamentos, dirigidos

inicialmente à falta de clareza conceitual na definição, pelos diversos

autores ou defensores dessas propostas, da expressão "Pedagogia das

Competências".

Como aponta BURNIER, as posições diante dessa questão polêmica

"variam desde a adoção quase religiosa dessa terminologia, passando por

uma visão crítica dela mas que resgata seus aspectos positivos até a

recusa total de qualquer abordagem ou proposta onde apareça o termo

‘competências’ "(BURNIER, 2001)..

RAMOS (2001) aponta ainda para o fato da noção de competências

ter sua origem numa corrente de pensamento voltada para uma

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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concepção quase behaviourista da educação, apoiada na modelagem de

comportamentos, dirigidos à ação concreta e a objetivos pontuais e muito

bem definidos.

Ou seja, utilizada dessa forma, a noção de competência acabaria

muito associada à "ação", ao campo da inteligência prática. E com essa

redução do seu escopo, ela se tornaria bastante vulnerável a uma

aplicação instrumental ou condutivista, já que essa visão identifica

competência com desempenho, numa indesejável confusão entre

comportamento e conhecimento.

Para superar o perigo dessa redução condutivista, a noção de

competências precisa primeiramente incorporar a idéia da construtividade

do conhecimento, com base na teoria da equilibração de Piaget, que fala

do desequilíbrio que o indivíduo experimenta diante de uma situação nova

ou desafiadora, que leva à busca pela re-equilibração, por meio da

reorganização do pensamento num nível mais elevado que o anterior,

numa espiral ascendente.

Nessa visão, as competências seriam, "as estruturas ou os

esquemas mentais responsáveis pela interação dinâmica entre os

saberes prévios do indivíduo – construídos mediante as experiências – e

os saberes formalizados" (RAMOS, 2001). Assim, torna-se possível se

deslocar o foco do processo educativo dos conteúdos disciplinares para o

próprio sujeito que aprende e, como conseqüência, ganha importância a

idéia de aprendizagem significativa.

Ou seja, a idéia de um currículo orientado ao desenvolvimento de

competências nasce de uma crítica à compartimentalização disciplinar do

conhecimento e da busca por um currículo que ressalte a experiência

concreta dos sujeitos, criando situações significativas de aprendizagem a

partir de princípios curriculares tais como integração, globalização ou

interdisciplinaridade.

E mais, pelo fato da pedagogia das competências trabalhar a

resolução de problemas, ela traria a oportunidade de se transformar um

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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currículo fragmentado em muitos domínios disciplinares numa proposta de

ensino integral, unindo conhecimentos gerais, específicos, profissionais,

além de experiências de vida, culturais e de trabalho que, normalmente,

seriam tratadas isoladamente, ou jamais contempladas.

É justamente sobre essa base teórica que as reformas educacionais

implantadas no Brasil vão operar com a seguinte definição de

competências:

"Competências são as modalidades estruturais da

inteligência, ou melhor, ações e operações que

utilizamos para estabelecer relações com e entre

objetos, situações, fenômenos e pessoas que

desejamos conhecer. As habilidades decorrem das

competências adquiridas e referem-se ao plano

imediato do ‘saber fazer’. Por meio das ações e

operações, as habilidades aperfeiçoam-se e articulam-

se, possibilitando nova reorganização das

competências." (ENEM, 1999: p.7)

Mas como despertar no processo de constituição de competências o

seu verdadeiro potencial de emancipação? Para RAMOS (2003a), a

solução passa por um movimento de re-significação da noção de

competências num sentido contra-hegemônico, concebendo a realidade

como totalidade e o homem como sujeito histórico-social, disposto não

apenas à conformidade, mas à transformação, e que constrói sua

identidade na síntese das relações sociais.

Um outro caminho possível nos é indicado novamente por MARTIN-

BARBERO (2003b), para quem, se quisermos recuperar a noção de

competência em seu sentido cognitivo, deveríamos associá-lo a outros

dois conceitos:

O primeiro seria o conceito de habitus, de Bourdieu. Definido como

um "sistema de disposições duráveis que, integrando às experiências

passadas, funciona como matriz das percepções e das ações

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4. RPG, Conteúdos e Competências

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possibilitando tarefas infinitamente diferenciadas", BARBERO diz que o

habitus tem a ver com a forma pela qual adquirimos os saberes, as

destrezas e as técnicas artísticas, sendo que o modo de aquisição se

perpetua nos modos de uso.

Já o conceito de prática, BARBERO vai buscar em DE CERTEAU, e

empregado na compreensão da cultura cotidiana do povo, centrando seu

olhar sobre aqueles "saberes que contêm e possibilitam novos fazeres"

(p.26) e que vão sendo redesenhados, reconquistando sua utilidade

social.

Portanto, para BARBERO, somente um conceito de competência

despojado da "obsessão competitiva da sociedade de mercado" (p.26),

resignificado a partir das competências culturais do habitus e da prática

poderá nos ajudar "a transformar nossos modelos de ensino pondo-os

em uma densa relação com as competências de aprendizagem que os

novos sujeitos levam para a escola" (p.26)

Portanto, o que está em jogo aqui, e que reflete os ideais e as

práticas pedagógicas da escola PARAÍSO é um projeto pedagógico

pautado em princípios éticos, estéticos e políticos dirigidos não à

conformidade com o mercado, ou à competição pelo emprego, ou muito

menos a preparação para o exame Vestibular, mas sim um trabalho

direcionado a um compromisso claro com a liberdade, a transformação, a

criatividade e a diversidade.

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5. As Oficinas

Figura 12: professor, mestre de jogo e pesquisador... que aventura!

As oficinas de RPG na PARAÍSO nasceram quase que por puro acaso. A

partir da decisão de matricular meus filhos na escola e de uma conversa com a

coordenação da escola, foi aventada a possibilidade de haver algum tipo de

aproveitamento, por parte da escola, da minha experiência com os jogos de RPG

dada a intersecção do meu trabalho com o universo educacional. Depois de

algumas conversas, surgiu a proposta mais concreta de desenvolver um trabalho

com o RPG integrado ao projeto de oficinas de artes. Convite feito, convite

aceito...

O contato com o coordenador do projeto das oficinas de artes foi muito

estimulante. Depois de uma descrição rápida mas detalhada de como

funcionavam as oficinas, ele me disse o que esperava da oficina de RPG,

ressaltando que o estímulo à criação e ao estabelecimento de uma relação mais

lúdica com o texto eram os pontos mais desejados pela escola nesse trabalho.

Afora esse direcionamento geral, ele me deu total liberdade para apresentar uma

proposta de trabalho à escola, o que fiz, por meio de um projeto bem conciso.

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5. As Oficinas 95

5.1 As oficinas de artes

Oferecidas aos alunos da escola PARAÍSO desde a 5ª série do Ensino

Fundamental, as oficinas de artes ganharam, a partir de 2005, a companhia dos

jogos de RPG, através da oferta de oficinas específicas sobre o tema.

Organizadas em 3 ciclos diferentes - um reunindo a 5ª e 6ª séries, outro a 7ª e 8ª

e um terceiro direcionado ao Ensino Médio - as oficinas de RPG contaram com

uma média de aproximadamente 17 alunos por turma, sendo seus trabalhos

realizados em dois tempos de aula, totalizando 100 minutos por semana para

cada turma.

No início do ano letivo, os alunos optaram pela oficina que desejavam cursar,

manifestando sua ordem de preferência entre os temas disponíveis. Depois, de

acordo com regras pré-estabelecidas, destinadas a dar equilíbrio e justiça na

escolha dos alunos que integrariam cada oficina, as turmas foram formadas, em

parte pela escolha dos alunos e em parte pelos arranjos necessários feitos pela

coordenação.

As aulas consistiam inicialmente em sessões de jogo, coordenadas por mim

e por um ou dois alunos, que já conheciam os jogos de RPG e se declaravam

dispostos a atuar como narradores. Não houve nenhuma pretensão de uso

"didático" do RPG e nenhum conteúdo deveria ser transmitido através do jogo, a

não ser as regras e o funcionamento do próprio jogo. A idéia era tomar o RPG

enquanto linguagem em si mesma, ao invés de dar a ele a dimensão instrumental

de estratégia ou ferramenta de transmissão de conteúdos. Em suma, a idéia era

simplesmente trabalhar o jogo, a brincadeira, a criatividade, enfim, a ludicidade no

currículo da PARAISO, dentro de uma proposta pedagógica organizada por

projetos e orientada segundo princípios bem claros e definidos (v. os sete

princípios, no capítulo Um).

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5. As Oficinas 96

5.1.1 As Oficinas de RPG

No currículo da PARAÍSO, dividindo espaço com Matemática, História ou

outras disciplinas “tradicionais”, os alunos participam, ao longo do ano letivo, de

diversas “oficinas de artes”, especializadas em linguagens estéticas e artísticas

diversas. Atualmente, são oferecidas as oficinas (já bastante tradicionais na

escola) de Teatro, Música, Dança, Vídeo e Artes Plásticas, além das oficinas de

RPG e Desenho Animado. Essas duas últimas foram planejadas, em 2005, como

forma de suprir um problema operacional que envolvia a duração das oficinas de

5ª e 6ª séries e o número de alunos por turma no ano de 2005. E, enquanto a

oficina de RPG era uma novidade completa, a de Desenho Animado já tinha sido

oferecida em outros anos, sendo ministrada pelo coordenador das oficinas de arte

da PARAÍSO.

No ano de 2005, os alunos de 5ª e 6ª séries participaram de oficinas

trimestrais, sendo vedado a eles repetirem as mesmas oficinas no ano seguinte.

Assim, ao final dos dois anos, os alunos deveriam ter passado por todas as

oficinas oferecidas, travando contato com cada uma das temáticas e linguagens

abordadas. Já para os alunos de 7ª e 8ª séries, as oficinas foram anuais, assim

como para os de Ensino Médio.

No encerramento de cada uma das oficinas, foram realizadas mostras dos

trabalhos, sendo as mostras das oficinas trimestrais chamadas de “AMIUDES” e

de natureza mais modesta do que a mostra de encerramento das oficinas anuais.

Nessas mostras, os pais, professores e familiares dos alunos se reuniam na sede

do Ensino Médio, onde assistiam apresentações de dança, teatro, exibições de

vídeos e animações feitas pelos alunos e também uma exposição com os

trabalhos das oficinas de artes visuais. No caso das oficinas de RPG, o

planejamento das mostras de trabalhos foi um dos tópicos interessantes do

trabalho, e será relatado mais adiante.

No início do ano letivo, as turmas receberam a visita dos professores de cada

oficina, que expuseram em linhas gerais o trabalho que pretendiam realizar. Após

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5. As Oficinas 97

essas mini-palestras, os alunos decidiram de qual(is) oficina(s) desejavam

participar, preenchendo um formulário onde elegeram suas preferências,

justificando a escolha.

De posse desses formulários, a coordenação da escola dividiu e distribuiu os

alunos entre as oficinas, procurando atender suas preferências mas fazendo-o

segundo alguns critérios estabelecidos e explicados previamente. Os principais

critérios de escolha foram: a preferência para os alunos da série mais alta (que

não teriam a chance de participar daquela oficina no ano seguinte), a justificativa

apresentada pelos alunos em suas argumentações e a necessidade de se manter

um número semelhante de alunos em cada turma (por volta de 15 alunos por

oficina).

A semana que antecedeu a escolha das oficinas foi bastante concorrida. O

coordenador lembrou aos professores que deviam “vender” bem suas oficinas,

fazendo alusões a “marketing” e “propaganda”. Durante uma manhã, os

professores das oficinas percorreram as salas, revezando-se e cruzando-se nos

corredores. Havia um clima de camaradagem mas podia-se sentir um leve tom de

competição entre os professores mais antigos, que aparentavam ser bastante

entrosados. Durante as mini-palestras, os alunos mostraram-se interessados ou

procuraram demonstrar seu desinteresse em cada oficina de modo bem claro.

Fizeram perguntas, aplaudiram, cumprimentaram, ou claramente ignoraram as

explicações. Os alunos também procuravam os professores pelos corredores,

pedindo informações, como se buscassem fundamentar melhor a sua decisão.

Afastando-se em seguida, claramente satisfeitos, levemente decepcionados ou

totalmente desinteressados.

Por diversas vezes, os alunos manifestaram-se publicamente, dentro da sala

ou nos corredores, declarando sua preferência por determinado professor/oficina,

ou mesmo virando as costas, desinteressados no tema ou oficina que estava

sendo apresentada (mas sempre de modo bem "natural", nunca em clima de

desrespeito ou agressividade).

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5. As Oficinas 98

Parecia haver uma certa rivalidade natural no ar, uma velada competição

pela preferência dos alunos, mas tudo num clima de brincadeira e camaradagem.

Mesmo assim, um dos professores confessou logo de início que os alunos "não

gostavam muito” da sua oficina, indicando que existia o que identificava como uma

certa “hierarquia” entre as oficinas e os professores, pelo menos na preferência

dos alunos. Preferência esta que, segundo este relato, seria motivada, em grande

parte, pelo carisma pessoal dos professores e por sua relação com os alunos, mas

também, é claro pela atração natural inspirada pelo tema de cada oficina.

Assim, segundo este professor, “as oficinas de teatro e música eram as

preferidas”. Pude observar que aqueles dois professores (de teatro e música)

eram realmente bem próximos dos alunos, brincando e tratando a todos com um

misto de camaradagem e afetividade que era visível nos corredores e nos espaços

comuns da escola, como na hora do recreio, por exemplo. Naturalmente, as

preferências dos alunos eram variadas e sempre havia algum aluno procurando

determinado professor para declarar sua preferência: “vou escolher a sua oficina,

tá bom?” foi uma frase bastante ouvida, ou “cara, adoro a sua aula!”, inclusive em

relação à oficina do professor que apontou a existência da tal “hierarquia de

preferências”. Eram muito freqüentes os cumprimentos efusivos, abraços e demais

manifestações de carinho entre professores e alunos, deixando bem clara a

relação de afeto que muitos alunos mantinham com os professores e, por

conseguinte, com as oficinas e, por extensão, com a sua escola.

Como a oficina de RPG era uma novidade, parecia haver uma expectativa

natural no ar. Todos queriam saber como seria a procura pela nova oficina. Nos

corredores, os alunos dividiam-se entre os que demonstravam total desinteresse

pelo RPG, os que tinham uma curiosidade superficial (seja por uma questão de

cortesia com o “novo professor” ou por uma curiosidade genuína) e finalmente os

que estavam muito animados e excitados com a possibilidade de “jogar RPG na

escola” -- mostrando-se até mesmo incrédulos de que fosse o RPG que já

conheciam.

Para quebrar o gelo, o coordenador do projeto de oficinas de artes, em tom

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5. As Oficinas 99

de brincadeira, chegou a apresentar a oficina de RPG como sendo um “tipo de

ginástica” (Reeducação Postural Global), o que causou uma divertida confusão em

algumas turmas. Foi possível perceber nesse momento que muitos alunos se

mostraram decepcionados quando o coordenador brincou dizendo que não se

tratava do RPG jogo e sim da técnica de fisioterapia. Felizmente, tudo logo se

esclareceu e os alunos deram risada.

O passo seguinte foi o preenchimento do formulário e a formação das

turmas. A ansiedade foi grande entre os alunos, que procuravam os professores,

pedindo que intercedessem a seu favor quando da escolha das turmas. “Me

escolhe aí, vai?” ou “Não esqueça que eu quero fazer a sua oficina, tá?” foram

frases muito ouvidas por todos os professores.

Nas justificativas dadas pelos alunos para suas preferências, havia de tudo:

desde alunos que declaram objetivamente gostarem mais de determinados temas,

até outros que procuraram estratégias mais “criativas”, como frases de efeito ou

defesas muito bem fundamentadas de por que deveriam ser escolhidos para cada

oficina. Esse caráter de jogo, de estratégia, de suspense e de vitória/derrota (com

a presença ou não na oficina escolhida) foi algo que marcou muito essa etapa do

trabalho, ampliando o caráter lúdico presente no programa das oficinas de artes

da PARAÍSO.

A distribuição final dos alunos foi feita pelo coordenador, com a presença e

auxílio dos professores. Sobre uma mesa grande, foram sendo separados os

formulários, reunidos de acordo com a primeira opção declarada pelos alunos.

Foi uma grande surpresa a procura pela oficina de RPG. O número de

alunos que elegeu a oficina de RPG como sua primeira opção foi claramente bem

maior do que o esperado pelo coordenador e pelos demais professores, chegando

a um terço do número total dos alunos, no caso da 5ª e 6ª séries. Um leve

desconforto se instalou entre os professores durante a "apuração". "É porque é

novidade...", disse o coordenador, explicando dessa forma a procura expressiva

pela oficina de RPG. Os demais professores pareceram surpresos, mas logo

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5. As Oficinas 100

relaxaram, tratando tudo com uma boa dose de humor.

De fato, como imaginado a partir da observação da reação dos alunos diante

da exposição em sala de aula, as turmas de RPG de 5a e 6a e de 7a e 8a séries

tiveram grande procura, iniciando seus trabalhos com mais de 15 alunos

(chegando a 26 alunos no caso da turma de 7a e 8a), enquanto a de Ensino Médio

teve uma procura bem abaixo do número padrão de 15 alunos, iniciando suas

atividades com apenas 12 alunos.

Feita a apuração inicial, o trabalho do coordenador foi o de equalizar as

turmas, montando as listas de alunos que foram mais tarde afixadas nos murais

da escola. Como num exame vestibular, os alunos amontoavam-se diante dos

murais e das listas de nomes. As reações também foram as mesmas do

vestibular: alegria de quem conseguiu o que queria, decepção de quem foi

preterido.

É necessário registrar a reação explosiva de um aluno de 8a série, que,

quando percebeu que não conseguira sua vaga na oficina de RPG, saiu chutando

cadeiras e mesas na área da cantina da escola. Classificado imediatamente por

um dos professores como um "aluno problemático", (uma expressão que não

condiz em nada com o projeto pedagógico exposto pela escola em seu site), ele

foi abordado pela coordenação. Depois de uma rápida conversa, o aluno recebeu

uma advertência, mas acabou conseguindo o que queria, ou seja, mais tarde, veio

o pedido para que ele fosse aceito na turma de RPG, o que foi feito sem

problemas. A “estratégia” do aluno surtiu efeito? Aparentemente sim... Aliás, cabe

ressaltar que esse mesmo aluno viria a ter uma trajetória bastante interessante

durante a oficina, e que será relatada mais à frente.

Como local para a realização das aulas de RPG foi oferecido o espaço da

biblioteca, o que, de imediato, já sugeria muitas coisas sobre a representação que

a escola e os professores possuíam sobre os jogos de RPG, associando-os

claramente a livros, leitura, literatura etc. Mas como esse não é o foco do presente

trabalho, fica aqui a indicação de um aspecto a mais ainda por se pesquisar nesse

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5. As Oficinas 101

campo, no tocante às representações do RPG e da sua relação com a escola e a

educação entre pais, alunos e professores, além de jogadores e mestres de RPG.

A biblioteca do Ensino Fundamental era uma sala grande, com as paredes

cobertas de estantes cheias de livros dos mais diversos, todos destinados ao

público infanto-juvenil. Uma rápida olhada no acervo indicou uma grande e variada

coleção de autores e títulos conhecidos e reconhecidos, além de clássicos em

diversas versões diferentes e mesmo os últimos lançamentos do mercado de

literatura infanto-juvenil. Ou seja, aquela era uma biblioteca que poderia ser

classificada como excelente, e que demostrava claramente a preocupação da

escola com um projeto de formação de leitores desde as séries e ciclos iniciais.

Figura 13: A Biblioteca do Ensino Fundamental

Numa das metades desta sala existiam três mesas -- uma mais alta e duas

mais baixas, com diversas cadeiras. Na outra metade, um grande espaço com

muitas e muitas almofadas coloridas, utilizadas pelos alunos quando precisavam

sentar-se em círculo, para discussões e dinâmicas diversas. A mesma sala foi

usada para as aulas de 5a e 6a e de 7a e 8a séries.

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5. As Oficinas 102

O Ensino Médio ocupava uma outra casa, em outra sede da escola, onde

existia uma outra biblioteca, dedicada exclusivamente a esse segmento. A

biblioteca do Ensino Médio contava com sensivelmente menos livros que a do

Ensino Fundamental. O acervo não era nem de longe tão vasto ou variado,

consistindo majoritariamente de enciclopédias e obras de referência. A presença

de jornais e revistas era uma constante, o que sugeria um perfil um pouco

diferente no trabalho com relação à leitura para esse segmento. Na biblioteca do

Ensino Médio, existiam ainda 5 computadores (um deles de uso exclusivo da

bibliotecária) e três mesas redondas com várias cadeiras, para estudo e trabalhos

em grupo. Durante as aulas, foi observado que várias vezes alunos e alunas de

outras turmas procuravam a biblioteca para utilizarem os computadores, seja para

trabalhos de pesquisa ou simplesmente para o lazer, usando a internet para visitar

sites de relacionamento, fotologs, blogs e outros.

Figura 14: A Biblioteca do Ensino Médio

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5. As Oficinas 103

A falta de um quadro negro ou quadro branco (utilizado com canetas

hidrocor) em ambas as bibliotecas saltou logo aos olhos, representando uma

dificuldade clara para que as oficinas se organizassem no esquema de "aulas"

normais. Isso em si já indicou que seria necessário um caminho "não-

convencional" para a organização do espaço, do tempo e das atividades durante

as oficinas de RPG.

As demais oficinas de artes ocupavam espaços já definidos para elas, sendo

uma sala de música com instrumentos e equipamentos, uma sala de dança com

espelho e barras e uma sala de artes plásticas, preparada para o trabalho com

tintas e materiais os mais diversos, que ocupava um espaço que já foi claramente

dedicado a um laboratório de ciências. As oficinas de teatro e vídeo ocupavam

salas "normais", assim como a de desenho animado, que contava também com

equipamento para visionamento de vídeo.

As aulas de todas as oficinas aconteciam no mesmo dia e horário. As de 5a

e 6a séries ocupando os dois primeiros tempos de aula e as de 7a e 8a durante os

dois últimos, ambas na quarta-feira e na mesma unidade da escola. Já as oficinas

do Ensino Médio também aconteciam nos dois primeiros tempos de aula, mas às

quintas-feiras, em outra unidade.

Para esta pesquisa, foram observados e documentados os trabalhos de

quatro oficinas: as duas primeiras oficinas (trimestrais) de 5a e 6a séries e as

oficinas anuais de 7a e 8a séries e de Ensino Médio.

Os trabalhos se estenderam de março até fins de novembro, e os relatórios

foram divididos por turma, sendo assim organizados:

• 1ª Turma de 5a e 6a séries (ou 5601) - de março a maio

• 2ª Turma de 5a e 6a séries (ou 5602) - maio a setembro

• Turma de 7a e 8a séries (ou 7801) - março a novembro

• Turma de Ensino Médio (ou EM01) - março a novembro

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5. As Oficinas 104

As primeiras turmas sofreram o ônus (e receberam o bônus) da novidade. O

trabalho com RPG na PARAÍSO era uma novidade para os alunos, para a escola

e também para o próprio professor. Assim, apoiado em experiências anteriores de

aplicações do RPG em escolas, coordenadas por mim, por amigos e por outros

pesquisadores conhecidos meus, além de experiências relatadas em textos na

internet e/ou pesquisas acadêmicas sobre o tema do RPG na Educação, comecei

a planejar como seriam os trabalhos com a turma.

A primeira grande dificuldade foi o espaço. A biblioteca do Ensino

Fundamental não oferecia mesas e cadeiras em número suficientes para todos os

alunos. Ficou claro que seria necessário dividir as turmas entre os que ocupariam

as mesas e os que se sentariam em almofadas, num grande círculo no chão.

Figura 15: almofadas e mesas

Isso impedia a utilização confortável de atividades escritas ou de trabalhos

com textos mais extensos, tanto de leitura como de escrita, durante as aulas.

Também não havia quadro negro (ou branco), o que não permitia a utilização do

recurso de passar instruções para toda a turma de uma vez, por escrito, com giz

ou canetas hidrográficas.

Diante disso, a primeira estratégia utilizada foi tentar dividir a turma entre os

que já conheciam RPG e os que ainda não conheciam o jogo. Após uma conversa

de "aquecimento", onde me apresentei e expus, em linhas gerais, o que pretendia

realizar, pedi que os alunos de todas as turmas escrevessem numa folha de papel

o que sabiam sobre RPG, se já jogavam (ou não) e o que esperavam da oficina.

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Page 105: O RPG e a escola - múltiplas linguagens e competências em jogo. (Luiz Eduardo Ricon de Freitas)

5. As Oficinas 105

Essas "folhinhas" foram meu primeiro "guia" para planejar o trabalho. A partir do

que os alunos escreveram e disseram, percebi que, apesar de muitos deles

saberem o que era o RPG, havia nitidamente uma diferença entre os que já

jogavam e os que não jogavam (e que eram a maior parte das turmas).

Como as oficinas trimestrais tinham curta duração (apenas 11 aulas) e havia

a necessidade de se gerar material para ser exibido nas mostras de

encerramento, paralelamente ao trabalho de ensinar as regras do jogo e realizar

as partidas, tracei logo de início as seguintes estratégias gerais para o trabalho:

1. concentrar os esforços em apresentar o RPG para os alunos em linhas bem gerais, sem usar regras detalhadas ou complexas demais;

2. trabalhar majoritariamente com o registro oral (sem anotações no quadros, sem cadernos, materiais impressos, apostilas ou outros), pela falta de mesas e quadro;

3. realizar jogos de curta duração, utilizando regras e histórias bem simples, procurando adequar o RPG aos tempos da escola;

4. trabalhar a criação dos personagens com pouquíssimos detalhes de regras, deixando muito espaço para a interferência criativa dos jogadores;

5. incentivar, a todo momento, a produção de textos e desenhos pelo alunos, relacionados sempre ao que acontecia nas aventuras;

6. estar aberto a modificar o curso das atividades de acordo com os interesses manifestados pelos alunos;

7. estar pronto e flexível para atender demandas variadas diante do caráter de diversidade no perfil dos alunos (meninos x meninas, jogadores x não-jogadores, mestres x não-mestres, entusiastas x novatos no RPG, jogadores de RPGs de livro x jogadores de RPGs de computador, etc).

Além, disso, havia ainda um eixo condutor na minha proposta, que tomou a

forma de uma espécie de "filosofia" que decidi aplicar ao trabalho: “dar liberdade

aos alunos”. Liberdade para ir e vir, liberdade para sair da sala (para ir ao banheiro

ou beber água), liberdade para se engajar ou não nas atividades. Nada disso foi

dito aos alunos, claro.

Essa filosofia nasceu do desejo de não estabelecer nenhuma forma de

coerção ou "obrigação" no trabalho com o RPG. Esse foi sempre um dos

pressupostos básicos do trabalho, que intencionava criar um claro diferencial com

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5. As Oficinas 106

relação às atividades escolares "tradicionais" e marcar a oficina de RPG como um

espaço onde a liberdade e o interesse dos alunos fossem os reais motivadores

dos trabalhos.

Coincidentemente (ou não?), o que nasceu ao longo dos anos, fruto das

minhas reflexões sobre o uso do RPG nas escolas, a partir da pesquisa e da

experiência de muitos anos com o jogo, acabou refletindo os princípios básicos da

proposta pedagógica da PARAISO, o que foi uma surpresa muito positiva.

Ao final do período letivo (seja trimestral ou anual), foram realizadas as

mostras com os trabalhos das oficinas, contando com exposições e apresentações

dos alunos. As mostras dos trabalhos das oficinas de RPG, consistiram em

exposições com desenhos, textos, mapas, personagens etc. desenvolvidos pelos

jogadores para seus jogos, ao longo das partidas, além da confecção de livretos

temáticos para algumas das oficinas. Havendo espaço também para projetos

individuais ou em grupo, realizados pelos próprios jogadores, que desenvolveram

seus próprios jogos de RPG, seja em formato padrão (RPG “de mesa”) ou

eletrônico (utilizando um software de domínio público para desenvolver pequenos

videogames inspirados no RPG).

Figura 16: capa do livreto apresentado numa das mostras

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5. As Oficinas 107

Outro traço de relevante interesse no projeto das oficinas de RPG veio do

fato das turmas contarem com alunos portadores de necessidades especiais ou

com dificuldade de aprendizagem, já que a PARAÍSO possui uma proposta

pedagógica de trabalhar no sentido de uma política clara de inclusão.

Pelo fato de articular múltiplas linguagens e formas de expressão diversas,

tanto verbais quanto escritas, pictóricas, gráficas, de representação,

argumentativas e relacionais, os jogos de RPG ofereciam uma gama muito rica e

flexível de possibilidades de atuação para os integrantes da oficina,

especialmente aqueles com alguma dificuldade específica em se expressar

segundo os códigos mais comumentes trabalhados na escola, ou seja, os da

leitura e escrita. Isso ficou claro desde o início dos trabalhos, mas foi mais

pungente em determinados momentos e casos que estão relatados mais à frente.

A afetividade foi outro elemento que se mostrou presente e necessário ao

trabalho desde o início. A todo momento, os alunos buscavam construir comigo

uma relação marcada pelo afeto, sendo comuns as manifestações de carinho

(como acenos, sorrisos e abraços) nos corredores e em momentos como o recreio

ou a hora da saída. Essa afetividade contribuiu muito para o trabalho,

aproximando professor e alunos também através da dimensão lúdica do jogo e da

brincadeira, criando uma relação de amizade e companheirismo, muito parecida

com aquelas que surgem naturalmente nas mesas de RPG entre o mestre de jogo

e os jogadores.

Claramente, ainda que a afetividade parecesse ser um traço marcante da

escola PARAÍSO como um todo, algo como a “personalidade”, o “estilo” da escola,

em muitos momentos foi como se o jogo potencializasse essa relação de afeto

que os alunos buscavam construir com o professor (e a escola), na medida em

que, como professor, eu me colocava muito mais como “mestre de jogo”, jamais

me posicionando como uma figura cuja autoridade era “imposta” por sua posição,

mas sim como alguém cuja autoridade era um elemento necessário para a fruição

do jogo e o desenrolar produtivo dos trabalhos.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

Numa tentativa de delimitar melhor a análise dos dados colhidos para este

trabalho, optei por dividir a apresentação de acordo com as quatro turmas com as

quais o trabalho foi desenvolvido ao longo do ano. Assim, além de uma descrição

mais ou menos cronológica dos eventos, tornou-se possível passar ao leitor uma

visão mais global de como se deu o trabalho com cada uma das quatro turmas e

abriu-se a oportundade para a discussão de alguns dos temas e fatos mais

marcantes a partir do momento onde eles se manifestaram de forma mais

cristalina ou pungente.

Dessa forma, após a descrição do trabalho com cada uma das turmas, trava-

se uma rápida discussão de um único aspecto, aquele que se mostrou mais

relevante no confronto entre os objetivos da pesquisa e os dados colhidos no

campo com aquele grupo, naquele momento da pesquisa. Obviamente, um

mesmo fato ou fenômeno poderia muito bem ter se manifestado e ter sido

observado em muitos outros momentos, em outras turmas. Porém, em prol de

uma proposta de organização das idéias e pelo fato de algumas turmas terem se

notabilizado mais por um ou outro aspecto dentro do escop dete trabalho, escolhi

manter a discussão dos dados o mais próxima possível da descrição dos mesmos.

6.1 Análise das categorias

Na busca por delimitar e recortar melhor as categorias que orientariam o meu

olhar nesta pesquisa, parti do que foi discutido inicialmente sobre Competências, e

busquei contrapor o modelo das “8 competências essenciais para a vida

moderna” proposto por Perrenoud, aos “quatro pilares para a educação no

século XXI”, do relatório elaborado por Jacques Delors para a Unesco e também

aos “8 Códigos da Modernidade”, propostos por Bernardo Toro como sendo “as

capacidades mínimas para participação produtiva no Século XXI” (TORO, 1996).

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Ao fazer isso, percebi de imediato algumas recorrências no trabalho desses

autores, o que poderia ser um indício de onde os seus pensamentos e propostas

mais se aproximam e onde eles começam a se afastar. Mas algo ainda mais útil

para esta pesquisa me pareceu ser o contraponto entre estas três concepções de

autores tão distintos (Perrenoud, Delors e Toro) e os “Sete Princípios” da escola

PARAISO (v. cap. Dois). Ao fazer isso, pude perceber que, de um jeito ou de

outro, cada um dos sete princípios da escola PARAÍSO contém (ou contempla)

uma ou mais das competências de Perrenoud, ou reflete um ou mais dos pilares

de Delors ou expressa uma ou mais dos códigos de Toro...

Reuni todas essas informações e, em seguida, por meio de uma tabela,

procurei determinar em qual(is) dos 7 princípios da PARAÍSO os modelos de

Perrenoud, Delors e Toro se expressam mais claramente.

AS 8 “COMPETÊNCIAS ESSENCIAIS” DE PERRENOUD: 1. Saber identificar, avaliar e valorizar as suas possibilidades, os seus direitos,

os seus limites e as suas necessidades; 2. Saber formar e conduzir projetos e desenvolver estratégias, individualmente

ou em grupo; 3. Saber analisar situações, relações e campos de força de forma sistêmica; 4. Saber cooperar, agir em sinergia, participar de uma atividade coletiva e

partilhar liderança; 5. Saber construir e estimular organizações e sistemas de ação coletiva do tipo

democrático; 6. Saber gerir e superar conflitos; 7. Saber conviver com regras, servir-se delas e elaborá-las; 8. Saber construir normas negociadas de convivência que superem diferenças

culturais. OS 8 “CÓDIGOS DA MODERNINDADE” DE TORO:

1. Domínio da leitura e da escrita; 2. Capacidade de fazer cálculos e resolver problemas; 3. Capacidade de analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situações; 4. Capacidade de compreender e atuar em seu entorno social; 5. Receber criticamente os meios de comunicação; 6. Capacidade de localizar, acessar e usar melhor a informação acumulada; 7. Capacidade de planejar, trabalhar e decidir em grupo. 8. Capacidade de desenvolver uma mentalidade internacional

OS “4 PILARES” DO RELATÓRIO DELORS E DA UNESCO:

1. Aprender a conhecer 2. Aprender a fazer 3. Aprender a conviver

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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4. Aprender a ser

OS 7 PRINCÍPIOS DA PARAISO PERRENOUD TORO DELORS

Conhecimento Significativo 1,2,3 3,5,6, 1, 4

Convivência Social 3,4,5,6,7,8 4,7,8 3, 4

Subjetividade Contemporânea 1 4,5, 4

Expressividade Múltipla 2 1,2,5 1,2

Autonomia 1,2,4,7 3,6 1,2,4

Leitura Textual e Leitura de Mundo 3 1,3,5,6 1,4

Participação Social 4,5,6,7,8 4,7,8 2,3

A partir de uma rápida análise da tabela, parece seguro considerar que as “8

competências” com as quais se (pre)ocupa Perrenoud estão mais claramente no

campo da convivência e da participação social, da formação da autonomia e de

uma noção do viver democrático, podendo-se até mesmo dizer que seriam

competências muito mais “polìticas” do que “educacionais”, no sentido estreito

desses termos, o que é o oposto de como se apresentam os “8 códigos” de Toro,

aparentemente muito mais ligados à relação do indivíduo com a informação e o

conhecimento do que a proposta de Perrenoud, muito mais preocupado com a

formação para a convivência dos indivíduos entre si, dentro de uma sociedade

democrática.

Já os “4 pilares” propostos por Delors, até pelo simples fato de serem

apenas 4 e não 8 como os outros, apresentam-se como uma proposta mais

“enxuta” e abrangente, podendo ser identificados mais facilmente em vários dos 7

princípios da escola Paraíso, o que me pareceu também um indício de uma maior

aproximação do projeto pedagógico da escola com aquilo que é preconizado pelo

documento da UNESCO com vistas à Educação no século XXI.

E, lembrando o Capítulo Dois, a partir do que foi apontado por uma das

entrevistadas de Lélis (2005), a escola PARAÍSO parece manter mesmo (pelo

menos até onde se apurou) essa imagem de uma escola que busca formar

pessoas solidárias, participativas e com “grande comprometimento social e

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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político”, sobretudo a julgar pelo modo como a escola expõe suas propostas

pedagógicas e pelo discurso da instituição e de seus representantes colhidos ao

longo desta pesquisa.

6.2 A Turma 5601

A primeira turma de 5a e 6a séries contou com 15 alunos (12 meninos e 3

meninas). A maioria deles não conhecia e nem jogava RPG, sendo que os poucos

que conheciam o jogo, mencionavam muitos RPGs “de computador” e jogos

online, como Tibia, Mu ou Ragnarok.

Não foram poucas as dificuldades no trabalho com essa turma. A primeira e

maior delas veio no quesito "disciplina". Minha inexperiência como professor

aliada à crença na construção de um espaço de liberdade total no trabalho com o

RPG em sala de aula colocavam-se como grandes desafios ao trabalho.

O fato de não haver inicialmente nenhum aluno que pudesse atuar como

mestre e dividir comigo a condução dos grupos de jogo apenas agravava a

situação. A solução encontrada foi dividir a turma em três grupos diferentes e

cuidar de cada um deles separadamente.

Muitas vezes, foi necessário cuidar de três mesas de jogo simultâneas,

narrando três histórias diferentes ao mesmo tempo. Algo que nunca tinha feito

como “mestre de jogo”... E nessas horas, a solução foi apresentar um desafio a

um grupo e pedir que pensassem na resposta enquanto me dirigia ao grupo

seguinte para retomar a narrativa.

O problema era que, enquanto o primeiro grupo ouvia a narração e o

segundo grupo pensava no problema, ainda havia o terceiro grupo, no qual alguns

alunos já tinham se deconcentrado do jogo e preferiam se dedicar a intermináveis

“guerras de almofadas”.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Figura 17: Flagrante do pós guerra...

Depois de várias tentativas infrutíferas de controlar essa situação, parecia

inevitável a tomada de uma atitude disciplinar mais drástica, o que contrariava

frontalmente o objetivo traçado para o trabalho.

Foi então que tentei uma abordagem diferente. Usando a experiência como

mestre de jogo, apelei para a “etiqueta de jogo” e para outros elementos típicos da

prática do RPG. A todo momento, passei a lembrar aos alunos que seus

personagens só poderiam ter sucesso se eles se concentrassem na história,

tentando motivá-los a se integrarem ao jogo. Ao mesmo tempo, fui apostando na

formação de novos mestres de jogo entre aqueles alunos, mesmo sabendo que

ainda não conheciam o RPG. Adotando um sistema de regras mínimas, facilmente

entendido por todos, identifiquei alguns alunos mais aplicados e interessados e

passei a incentivá-los a atuarem como mestres.

O resultado foi que dois desses alunos realmente se interessaram e

passaram a atuar como mestres, mesmo sem saber as regras ou sem ter

experiência prévia com o RPG. Abordando o RPG como uma brincadeira de

contar histórias, numa mistura interessante com muitos elementos dos

videogames, desenhos animados, mangás (histórias em quadrinhos japonesas) e

filmes de cinema inspirados em livros (como O Senhor dos Anéis ou Harry Potter),

os alunos começaram a criar suas próprias histórias, comandando seus próprios

jogos, tomando para si a tarefa de manter seus colegas em silêncio ou

participando do jogo.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Em alguns momentos, alguns alunos recusaram-se a participar dos jogos,

preferindo deitar sobre as almofadas, ler revistas ou livros ou até mesmo terminar

algum dever de uma outra disciplina. Recorrendo novamente à filosofia de

“liberdade total”, deixei claro a eles que, enquanto não atrapalhassem os colegas

ou a aula, podiam fazer o que quisessem.

Surpreendentemente, foram poucos os que recorreram a esse tipo de

comportamento, e mesmo os que o fizeram, não fizeram disso algo recorrente,

sendo mais uma insatisfação eventual, vinda de um dia onde declaravam estar

com sono, ou irritados por algum motivo, ou alguma frustração vinda da má-sorte

de seus personagens no jogo.

O fato de haver alunos de 5a e 6a séries misturados criou alguns problemas

de entrosamento entre eles. Como esperado, os alunos se dividiram em grupos

formados entre aqueles que já se conheciam ou já eram amigos. Nas ocasiões em

que houve a necessidade de “misturar” os alunos, alguns atritos surgiram.

Num desses casos, um aluno de 6a série foi eliminado do seu jogo (seu

personagem foi morto num combate) e ele pediu para ser encaixado em outro

grupo, pois se dizia “perseguido pelo mestre”. Quando tentei introduzi-lo como

personagem num outro grupo, cuja história já estava bem avançada, houve uma

reação de recusa veemente. “Sai daqui, seu mala!”, gritou uma das alunas,

recusando-se a aceitar o novo companheiro de jogo.

Recorrendo a uma estratégia muito comum nos RPGs (tomada emprestada

de muitas narrativas), que consiste em introduzir na história um novo personagem

que chega trazendo consigo a solução do problema, seja na forma de uma

informação essencial ou como portador de um poder (mágico ou não) necessário

à consecussão dos objetivos dos protagonistas, disse aos jogadores que aquele

novo personagem era um mago, e dei a ele algumas magias que facilitariam a

missão dos personagens.

Na história, eles precisavam invadir um navio pirata, onde o príncipe herdeiro

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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do trono estava aprisionado. Mas havia muitos guardas de prontidão. Quando

disse que o novo personagem era um mago e possuía a magia de sono, os

demais jogadores finalmente concordaram em aceitá-lo na mesa e o novo jogador

conseguiu se entrosar no novo grupo, usando seus poderes para adormecer os

guardas, permitindo que seus novos companheiros tivessem sucesso em sua

missão.

Conforme as aventuras foram acontecendo, passei a dirigir os trabalhos dos

alunos, pedindo que descrevessem em palavras ou com desenhos os locais onde

aconteciam as histórias. E propus que reuníssemos todo o material que fosse

gerado até o fim da oficina, criando assim uma cidade. Os alunos concordaram e,

na prática, a abertura proporcionada pelo tema da cidade dava liberdade a eles

para produzirem materiais dos mais diversos, descrevendo locais, casas, regiões,

personagens, monstros, equipamentos etc.

Em alguns dos desenhos foi possível identificar aquilo que Sônia Mota

chamou de “pilhagem narrativa” e que defendo que passemos a chamar de

heteroglossia e que se refere ao processo pelo qual os jogadores e mestres de

RPG recorrem às mais diversas vozes, fontes e referências, tomando

emprestados os muitos e mais variados elementos ao seu dispor para construírem

seus personagens e suas histórias.

Foi possível observar também o que Pavão registrou, com uma grande

preponderância de produtos e linguagens próprias da cultura de massa

contemporânea em relação à literatura, os clássicos ou à mitologia entre as

referências dos mestres e jogadores. Muitos dos desenhos e descrições feitos

pelos alunos mostravam uma interessante e rica mistura de elementos retirados

de livros de RPG, desenhos animados, histórias em quadrinhos, filmes e, acima

de tudo, videogames e jogos eletrônicos em geral.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Figura 18: Referências ao cinema (Harry Potter), mangá e aos videogames presentes no jogo

Outro ponto muito interessante foi observar como os jogadores “trocam”

referências entre si, construindo seus personagens e desenhos a partir dos

desenhos dos colegas, reciclando e resignificando referências. Num desses

casos, um dos alunos desenhou um castelo e, ao criar uma bandeira, utilizou um

símbolo que foi rapidamente adotado por outro aluno quando este desenhou a

casa da guarda. Mais tarde, ao conversar com o pai do primeiro aluno, vim a

descobrir que aquele símbolo usado na bandeira era na verdade o logotipo de

uma griffe de roupas e materiais relacionados à prática do skate. Retirado do

contexto dos esportes radicais e resignificado como brasão medieval, o desenho

foi imediatamente passado adiante em uma nova forma, com novo significado.

Figura 19: Do esporte radical ao reino medieval: mesmo símbolo, diferentes encarnações

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Outra forma de heteroglossia foi apresentada por um aluno quando este

criou vários personagens utilizando fotos de revistas e jogando doses generosas

de ironia e humor, interagindo de forma muito criativa com as fotos em suas

descrições.

Seus personagens representam uma crítica ácida ao que os colegas

estavam fazendo durante as aulas, buscando criar (como quase todos os

jogadores de RPG, aliás...) personagens cheios de poderes e capacidades,

enquanto ele trazia personagens com limitações físicas, de idade, etc. mas que

ainda assim conseguiam um jeito ou outro de terem sucesso. A crítica social

presente em alguns momentos também me chamou a atenção e, me arriscaria a

dizer que é sua forma de interagir criticamente com o posicionamento da escola

como um todo, que, como já dissemos, goza de uma reputação e se enxerga a

partir de um viés de participação política e social de orientação bastante

progressista.

Suas interferências criativas junto às fotos também representam um aspecto

muito interessante na prática da heteroglossia, numa interação consciente e lúdica

com as vozes presentes nas referências e nas fontes, através de releituras,

resignificações, paródias, jogos de palavras (ou de idéias, conceitos) etc. A

“narrativa sem-dono” descrita por Mota acaba não sendo uma “narrativa tão sem-

dono assim”, na medida em que o jogador de RPG elabora, dialoga, critica, brinca

e antropofagicamente digere a referência transmutando-a em algo seu, próprio,

original. Veja os exemplos:

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Figura 20 - Aleijadinha: Ela corre mais rápido que uma preguiça, ela é a... Aleijadinha!!! Ela é mais

lerda que a minhha avó, mas minha avó não é ladra. (...)

Figura 21 - O Papa: Papa é um bandido que deve ter sessenta anos. Ele é meio lento porque ele é

zen. Por exemplo: quando vai assaltar um banco ele diz: - ô moço, leia a bíblia que faz bem e

deixa eu roubar só mil dólares? E o moço deixa.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Figura 22 - Magrão - Ele é um pouco desastrado porque está só um pouquinho fora do peso. Deve

ter mais um menos seus quarenta anos. (...)

Figura 23 - João, o feto - Ele é inteligente, parece até o Jimy Neutron, ele assalta assim, vai se

ajoelhando até chegar no cofre, porque aí quando alguém abrir o cofre ele vai ver o segredo.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Nesta primeira turma, houve dois casos muito especiais. O primeiro foi o

aluno G, que passou as primeiras aulas numa grande apatia. Não se integrava às

histórias, não se manifestava como personagem e não interagia muito com os

colegas. Participando de uma das mesas onde um dos alunos atuava como

mestre, G passava a maior parte do tempo folheando livros e revistas, totalmente

alheio ao que acontecia no jogo.

Ao final da terceira aula, ao ser interpelado, G manifestou sua insatisfação e

declarou sua vontade de trocar de oficina. Perguntado sobre o motivo, ele disse

que não estava gostando porque não conseguia entender direito o que estava

acontecendo durante o jogo. O próprio aluno declarou então que tinha muita

dificuldade de ler e escrever: “É que eu tenho dislexia”, disse ele.

De imediato, pedi que desse outra chance ao RPG e que, juntos, tentaríamos

encontrar uma solução. Prometi a ele que, se ao final da próxima aula ele ainda

estivesse insatisfeito, iríamos juntos ao coordenador pedir a troca de turma (algo

que está previsto no regulamento das oficinas, inclusive).

Na aula seguinte, G trouxe uma pequena carta onde descrevia seus

principais descontentamentos com a oficina, e que incluí nos Anexos deste

trabalho (v. Anexos - Relatório da Oficina).

Conversando com G, disse-lhe que o objetivo da oficina de RPG era que

todos se divertissem e que, se ele não estava se divertindo com o jogo,

poderíamos encontrar outra forma dele se integrar ao grupo. Perguntei então se

ele gostava de desenhar, e ele disse que sim.

Como um dos trabalhos que sugeri à turma era o de desenvolver uma

cidade, descrevendo e desenhando os locais mais importantes onde as aventuras

estavam acontecendo, G me disse que poderia desenhar “um estádio”.

Tomando da estante um livro sobre a Antiguidade, com várias ilustrações de

teatros e estádios gregos e romanos, sugeri a G que se inspirasse naquelas

imagens. “Ah, é como o Coliseu, né? Minha tia já foi lá. Eu vi as fotos.”

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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A partir daí, quase que imediatamente, G iniciou uma série de estudos

detalhados sobre o estádio, desenhando várias tentativas de representar as

arquibancadas, estádios vistos de cima e estruturas das mais diversas.

Figura 24: Planejando o Stadium

Ao final de uma única aula, G tinha produzido mais de uma dezena de

pequenos desenhos a caneta, que me entregou com orgulho. Mais tarde, após

outros estudos, G me surpreendeu com uma pergunta: “Posso fazer uma

maquete? É que não estou conseguindo fazer as arquibancadas direito e vai ficar

melhor na maquete.”

Com a minha permissão, G pediu a ajuda de uma tia que era arquiteta e,

junto com ela, construiu uma enorme maquete do seu estádio, feita de isopor,

arame e papel colorido. No momento em que ele entrou na sala de aula

carregando sua maquete (que mal passava pela porta, de tão grande!) todos os

alunos da turma ficaram em silêncio.

Depois de alguns segundos, alguns me perguntaram: “a gente também pode

fazer maquete?” Trabalhando essa nova possibilidade, alguns alunos se reuniram

e decidiram fazer a maquete de um castelo.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Figura 25: A maquete do Stadium

Recorrendo novamente à biblioteca, ofereci a eles um pequeno livro ilustrado

onde havia um desenho detalhado de um castelo. Durante as próximas aulas, o

grupo passou a experimentar com materiais e sucata até chegar a uma versão do

castelo, que, por falta de tempo, não pode ser finalizada para a mostra.

Assim, a contribuição de um aluno que não encontrava seu espaço na aula

para se expressar e que, a partir da possibilidade de utilizar outros códigos e

linguagens, deu asas à sua criatividade, incentivou outros alunos a usarem novas

formas de expressão e trabalho dentro da oficina.

Figura 26: O Castelo 2D e 3D

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Outro caso digno de nota foi o da aluna G. A princípio tímida e de

comportamento “difícil” (segundo a avaliação de outros professores), G não

participava muito das histórias e, quando o fazia, adotava sempre atitudes meio

“caóticas”, com o intuito claro de “bagunçar” o jogo. Os companheiros a

censuravam e com a minha orientação como mestre do jogo, as coisas acabaram

indo bem.

Desse modo, G começou aos poucos a estabelecer comigo uma relação

marcada inicialmente por brincadeiras. Expressando-se sempre com um jeito

“infantilizado”, durante uma das aulas, G me perguntou: “posso te chamar de

‘coisinha’?” Em seguida, perguntou: “coisinha, posso te chamar de ‘psiu’?” E mais

tarde: “coisinha, quer dizer, psiu... posso te chamar de ‘mamãe’?”

Entrando na brincadeira, respondi: “Olha... ‘coisinha’, tudo bem... ‘psiu’ eu

até aguento, agora ‘mamãe’ já é demais!”

A partir daí, G começou a se “soltar” mais comigo e com os colegas. E algo

mais incrível aconteceu quando descobri um lindo desenho em seu caderno.

Quando perguntei quem tinha feito aquele desenho, ele me respondeu meio tímida

que tinha sido ela mesma. A partir daí, passei a incentivá-la a desenhar os

personagens da aventura, o que ela começou a fazer meio reticente.

G realmente demonstrava um inegável talento e uma grande habilidade de

desenho, expressando-se na linguagem típica dos mangás (quadrinhos

japoneses) com muita competência. Mas seu comportamento continuou marcado

pelas brincadeiras, pelo jeito “caótico” e por uma voz infantilizada, que insistia em

manter. Aliados às roupas pretas e meias compridas e aos cabelos desarrumados,

sua atitude parecia compor um personagem como os que desenhava no caderno.

Até que um dia, numa de nossas últimas aulas, ao elogiar mais uma vez

seus desenhos, disse que ela deveria procurar um curso ou professor particular de

desenho, pois seu talento era claro e não devia ser desperdiçado. Mudando

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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totalmente o tom de voz e até mesmo a expressão e a fisionomia, G me disse:

“Sabe o que é, é que eu acho um saco esse lance de aula...”

Surpreso pela súbita mudança de atitude, disse a ela que prosseguisse

estudando sozinha, procurando livros, histórias em quadrinhos, pinturas e

ilustrações famosas e que poderia mandar seus desenhos para editoras pois eram

quase profissionais. Talvez aquela tenha sido a única vez em que consegui

conversar com a “verdadeira” G , e não com a personagem “esquisita” que ela

parecia interpretar no jogo da vida real.

Mais tarde, observando seus desenhos, pude notar algo interessante. Ao

caracterizar seus personagens, G colocou num deles os tênis de cano longo que

sempre calçava e em outro as meias altas e listradas, que eram outra marca

registrada do seu guarda-roupa.

Figura 27: Desenhos de G. mostrando os tênis e as meias listadas

Será que isso poderia ser tomado como uma indicação de que, através dos

desenhos e do ambiente de “liberdade” e “não-escolaridade” representado pela

oficina de RPG, G conseguiu sentir-se segura e à vontade a ponto de mostrar uma

outra faceta que os professores, os colegas e a escola ainda não conheciam?

Parece que sim.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Ao final do primeiro trimestre, realizou-se a mostra “Amiúde”, apresentando

os trabalhos das oficinas de artes. Como era a primeira vez que a oficina de RPG

participaria dessa mostra, houve um momento de dúvida na própria coordenação

sobre o que deveria ser apresentado. Como apresentar o jogo de RPG aos pais?

Como apresentar o trabalho realizado pelos alunos? Que espaço e que materiais

e equipamentos seriam necessários? Além disso, pelo fato de também ser “novo”

na escola, eu também não sabia muito bem como eram as mostras,

desconhecendo o que acontecia e como deveria formatar o trabalho da oficina

para a “Amiúde”.

Aos poucos, por meio de muitas conversas com o coordenador das oficinas,

com os demais professores e ainda depois de observar muitos materiais

produzidos pelos próprios alunos na forma de murais, textos, jornaizinhos e

livretos que se encontram no acervo da biblioteca da escola, comecei a elaborar

um formato mais claro para essa apresentação.

Primeiro, planejei um livreto onde apresentava a oficina e explicava em

linhas gerais o que é o RPG, reunindo os desenhos e trabalhos feitos pelos

alunos. Além disso, a partir de cópias ampliadas das páginas do livro e de muitos

trabalhos dos alunos, fizemos cartazes com cartolinas coloridas.

No dia da mostra, muitos dos alunos fizeram questão de chegar antes da

hora para me ajudar na montagem da exposição. Alguns o faziam com nítido

interesse no conceito (“isso vale para a nota?”, perguntavam). Outros tinham uma

vontade sincera de contribuir, participar, de ver seus trabalhos exibidos na escola.

Ocupando um dos cantos do pátio da escola, numa área delimitada por

colunas, grades e muretas, os alunos e eu reunimos algumas mesas onde foram

dispostas as maquetes, vários livros de RPG e uma pilha com cópìas dos livretos

produzidos para o evento. Em cavaletes e suportes, ou colados pelas paredes e

nas grades, os cartazes produzidos pelos alunos decoravam o ambiente.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Enquanto esperavam pelo início das apresentações de teatro, dança, vídeo e

animação, realizadas num palco e em telões instalados na quadra da escola, os

pais e alunos passeavam pela exposição de artes visuais (nos corredores e no

pátio) e visitavam a área, reservada ao RPG. Muitos pais de alunos da oficina de

RPG me cumprimentaram, relatando o entusiasmo de seus filhos com o jogo e os

trabalhos, procurando maiores informações sobre as atividades e o desempenho

de seus filhos ou simplesmente como uma espécie de cortesia com o professor.

Figura 28: Trabalhos da mostra Amiúde

Os livretos, que deveriam ser distribuídos para os alunos, acabaram sendo

levados por pais de outros alunos, curiosos com o trabalho, ou por outros alunos,

interessados em conhecer o RPG. As 20 cópias produzidas para o evento foram

sumindo rapidamente, e acabaram se esgotando ao fim da noite.

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O site da PARAÍSO na internet registrou da seguinte forma o evento:

“O 1o Amiúde 2005 aconteceu no dia 11 de maio. Às 19 horas, horário marcado para o início do evento, pais, estudantes, professores e demais espectadores já lotavam o local marcado. O espaço foi dividido em dois ambientes: no pátio externo, foram exibidas as exposições de artes plásticas e RPG; na quadra de esportes, foi montado o palco para o show de música e os espetáculos de teatro e dança. Foi também colocado o telão, para as projeções da Oficina de Vídeo.

Enquanto a equipe de professores e alunos combinava os últimos detalhes na quadra, os convidados observavam as produções de artes plásticas e RPG.

(...) A Oficina de RPG, "Primeiros Jogos - Uma Aventura",

trouxe aos alunos uma oportunidade singular de entrar em contato com o universo do imaginário. (...) A exposição dessa oficina tratou de apresentar aos leigos os elementos que compõem o universo onírico do jogo. O público observou a reconstituição do espaço imaginário através de maquetes de castelos, arenas e casas feitas pelos alunos. Havia também inúmeros desenhos que retratavam personagens fantásticos, como elfos, anões, semi-elfos, dragões e guerreiros medievais.

6.2.1 Expressividade Múltipla

Vivenciar e experimentar novas e diferentes linguagens e formas de

expressão é o principal objetivo por trás do projeto das oficinas de artes da

PARAISO, no qual se inserem as oficinas de RPG enfocadas neste trabalho.

Partindo da compreensão de que o mundo de hoje não é mais capaz de ser

verdadeiramente compreendido por poucos ou estáticos códigos de expressão,

mas antes se apresenta como uma realidade multifacetada e fragmentada, onde a

percepção e a consciência de tempo, lugar, identidade, laços de pertencimento e

modos de conhecer, ser e fazer, passam obrigatoriamente pela esfera dos meios

de comunicação de massa e das novas tecnologias da informação, vem a noção

de que nos fala MARTIN-BARBERO (op. cit.) de que as fronteiras entre as

instâncias da vida social vêm se tornando mais permeáveis e menos perceptíveis.

Esse “embaçamento” das fronteiras passa pela resignificação da idéia e do papel

da família, da religião, da nacionalidade, mas também pelo questionamento

quanto ao lugar do saber, do conhecimento estruturado, da escola e do professor

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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nessa nova paisagem difusa.

E a possibilidade de expressão em diferentes linguagens é uma das

características definidoras do RPG. Unindo textos escritos, interpretação de

papéis, criação de personagens apoiados em imagens, desenhos, miniaturas,

cenários e articulando referências vindas do cinema, dos quadrinhos e da

literatura, o RPG possibilita aos jogadores e mestres, uma gama tão grande de

possibilidades de expressão que era mais do que natural que isso fosse

trabalhado nas oficinas de RPG da escola PARAISO. E os resultados (muitos dos

quais já comentados anteriormente) demonstram o acerto dessa escolha.

Encontrando no jogo a possibilidade de se expressarem de múltiplas formas,

por meio de múltiplas linguagens, jogadores e mestres puderam fazer da oficina

um lugar de criação e expressão livre, prazerosa, com o compromisso único da

diversão. Ao contrário das aulas de artes, onde a linguagem é objeto, aqui, na

oficina de RPG ela é instrumento, é meio. É o caminho pelo qual os jogadores se

comunicam, criam, representam, apreendem as informações do jogo e seguem

em frente. As múltiplas linguagens estão sempre a serviço do lúdico, da diversão.

Abrindo muitos e variados canais de comunicação e expressão entre os

jogadores, O RPG na PARAISO se apresentou sempre como possibilidade,

abertura, escolha, e nunca como imposição, exigência, limitação. Quem quer

escrever, escreve; quem quer desenhar, desenha; quem quer construir, constrói. E

todos criam, se expressam, participam e contribuem com o trabalho.

Seja por textos, desenhos, maquetes, criando jogos eletrônicos ou novos

RPGs, os alunos da PARAISO acabaram experimentando, na oficina de RPG um

pouco do que poderiam experimentar em cada uma das outras oficinas, em cada

uma das outras linguagens, exatamente por esse caráter multimidiático dos jogos

de RPG.

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6.3 A Turma 5602

A segunda turma de 5a e 6a séries contou com 16 alunos (15 meninos e

apenas uma menina). Logo de início, notei algumas diferenças com relação à

primeira turma. Havia uma clara divisão entre os alunos que já conheciam e

jogavam RPG e os que estavam na oficina para aprender o jogo. A rivalidade

entre esses dois grupos se mostrou presente desde o início das aulas. Além disso,

como muitos dos alunos tinham sido preteridos na escolha da turma do primeiro

trimestre, eles estavam chegando à oficina de RPG com muita expectativa e

desejo, o que deixaram claro em suas palavras iniciais de apresentação.

Dois alunos que já jogavam RPG se apresentaram como possíveis mestres

de jogo e rapidamente formaram dois grupos entre seus amigos, deixando o

restante da turma, que consistia no grupo dos que desconheciam o jogo, para

integrarem uma grande mesa de jogo coordenada por mim.

Um dos mestres utilizava regras próprias, criando aventuras inspiradas no

universo dos filmes de Star Wars, a saga cinematográfica dos cavaleiros Jedi,

criada por George Lucas, e que deu origem a muitos e muitos títulos de

quadrinhos, brinquedos e videogames. Tirando suas informações para o jogo de

uma enorme quantidade de revistas e livros sobre o universo de Star Wars,

comprados em bancas e livrarias, além de citar sempre cenas de filmes, desenhos

animados e videogames inspirados naquele ambiente ficcional, o aluno-mestre

reunia informações das mais diversas para compor seus personagens e histórias.

Os jogadores em sua mesa partilhavam do seu entusiasmo e demonstravam muito

conhecimento daquele universo e dos seus personagens, descrevendo

equipamentos, veículos, poderes e demais características.

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Figura 29: jovens mestres Jedi em ação!

Pela própria motivação dos alunos, aliada à experiência vinda do trabalho

com a primeira turma, nesta segunda oficina não houve tantos problemas com a

disciplina e a concentração. Os dois grupos de jogadores “experientes”,

coordenados por dois alunos, engajaram-se de imediato em suas aventuras,

enquanto o grupo de “novatos”, formado pela maior parte da turma, jogava comigo

como mestre.

Por diversas vezes, a rivalidade entre os dois grupos ficou patente,

especialmente entre alguns alunos, que manifestavam sua insatisfação quando a

atenção do professor era dirigida ao grupo dos “experientes”, que solicitavam

eventualmente algum esclarecimento.

Em determinado momento,a exemplo do que ocorreu em outras turmas, o

jogo extrapolou os limites físicos da oficina, com os jogadores pedindo para ficar

com as fichas dos personagens para poderem jogar durante o recreio ou no fim de

semana. Além disso, devido ao problema de acomodação enfrentado na

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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biblioteca, um dos grupos de alunos pediu minha autorização para usar uma mesa

fora da área da biblioteca, numa das salas desocupadas da escola.

Mesmo resistindo a princípio, decidi atender o pedido dos jogadores por

acreditar que esse impulso de autonomia que manifestaram deveria ser

incentivado. Consultando a coordenação, os próprios alunos conseguiram um

espaço para o jogo e, atuando de forma completamente independente, os alunos

jogaram algumas partidas em uma outra sala, elaborando relatórios individuais ao

final da aventura.

Com o correr das aulas, os grupos de jogadores “experientes” acabaram

desejando se integrar à aventura jogada pelos “novatos”. As razões para esse fato

foram várias: o término das aventuras propostas pelos alunos-mestres, a vontade

desses alunos-mestres de atuarem também como jogadores e a curiosidade

despertada neles pela atuação do professor como mestre de jogo, além do desejo

manifestado muitas vezes pelos alunos “experientes” de afirmar seu conhecimento

das regras e do RPG em geral diante dos “novatos”.

Apesar da resistência de alguns alunos, os três grupos acabaram se

juntando, formando um grande grupo de jogo com todos os alunos da turma. Foi

uma oportunidade de perceber diversas dificuldades e potencialidades no trabalho

com o RPG diante de um grupo tão grande de jogadores (16, no total).

A primeira dificuldade era a de acomodação. Depois de tentar utilizar as

mesas, ficou claro que a melhor forma era reunir toda a turma num grande círculo,

com os alunos sentados no chão, sobre almofadas. Atuando como mestre do jogo,

eu me sentava ora em uma das cadeiras e ora no chão, junto aos alunos. Algumas

vezes, os alunos pediram que eu me sentasse na cadeira, para que todos

pudessem me ver.

Ao longo das aulas, a rivalidade entre “novatos” e “experientes” foi

crescendo, com alguns jogadores assumindo atitudes bastante antagônicas,

reclamando contra a atenção dada a um ou outro grupo ou jogador

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individualmente. Alguns jogadores dentre os “experientes” criaram perfis de

personagens marcados pela hostilidade e individualismo, escolhendo interpretar

guerreiros, mercenários e outros personagens bélicos, de tendëncias hostis.

Nesta turma foi possível observar mais uma vez o quanto os jogadores de

RPG recorrem a um amplo e variado espectro de referências na hora de criar seus

personagens e histórias. Unindo elementos oriundos de fontes diversas como

livros, romances, encicliopédias, histórias em quadrinhos, filmes, seriados de TV,

desenhos animados e videogames, entre outros, os jogadores e mestres de RPG

vão tecendo suas tramas e moldando seus personagens por meio de um processo

semelhante à feitura de uma colcha de retalhos, ou de um trabalho de sucessivos

recortes e colagens.

No caso da turma 5602, quando pedi que criassem seus personagens para a

aventura que uniria toda a turma num grande grupo de jogo, foi possível observar

mais de perto como se dá esse processo de entrelaçar de referências, na medida

em que muitos dos personagens foram descritos, desenhados, representados

visualmente e até mesmo interpretados de forma muito semelhante a diversos

personagens das mais variadas origens.

Desde os personagens dos filmes da trilogia “O Senhor dos Anéis” ou da

série “Guerra nas Estrelas” até referências a desenhos animados e quadrinhos

japoneses (animês e mangás), além de muitas e muitas referências aos RPGs

eletrônicos, especialmente aos jogos no estilo MMORPG, como Mu Online, Tibia

ou Ragnarock, os personagens criados pelos alunos demonstravam de modo

muito claro aquilo muito daquilo que eles lêem, assistem e consomem dentro do

cardápio variado de meios de comunicação disponíveis às crianças e jovens das

camadas médias urbanas.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Figura 30: Pilhando ou criando?

Este processo de leituras e releituras sucessivas se manifestou de modo

muito interessante nesta turma, seja no momento em que vários jogadores

recorreram a livros da biblioteca ou aos livros de RPG para “copiarem” os

desenhos que mais interessavam ou então na ocasião em que um dos jogadores

teve uma tremenda má sorte nos dados e, ao tentar acertar um golpe no inimigo,

acabou acertando um dos colegas do grupo (no jogo apenas, não na “vida real”...).

Depois de darem boas gargalhadas com o acontencimento infeliz e de citarem o

fato diversas vezes nas aulas seguintes, um dos alunos decidiu, ao fim da oficina,

registrar num desenho aquele momento da aventura.

De imediato, outros alunos decidiram fazer suas próprias versões da cena,

criando charges e caricaturas que acrescentavam novos elementos ao episódio ou

procuravam retratá-lo da forma que seus autores achavam mais engraçado. O

aluno que tinha cometido a falha reagiu com um pouco de irritação, mas logo

percebeu que seria inútil o confronto e decidiu “entrar no jogo”, fazendo ele

mesmo desenhos nos quais ridicularizava os personagens dos colegas.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Figura 31: Aconteceu...virou piada!

Nesta turma havia um aluno com necessidades especiais, que apresentava

muita dificuldade na fala e na escrita. Assim que identifiquei essas dificuldades,

passei a trabalhar no sentido de dar ao aluno um apoio no sentido de permitir que

suas dificuldades não impedissem sua participação. Adotei para todos os alunos

uma descrição de personagens bem básica, e orientei o aluno na criação de um

personagem que se caracterizava por ser fisicamente o mais forte de todos. Além

disso, descrevi seu personagem como sendo do tamanho de uma das estantes da

sala, e a todo momento indicava visualmente a estante, para que os jogadores

imaginassem o personagem dele com seu tamanho “real”. E, a exemplo do que

fizera com um dos alunos da turma 5601, coloquei este personagem numa

posição-chave na história, como um elemento decisivo na aventura. Empoderado

com esse diferencial, e contando sempre com a ajuda de colegas que o apoiavam,

explicando as regras e orientando sua atuação, como verdadeiros parceiros, ele

foi se integrando cada vez mais ao jogo.

Ao final dos trabalhos, chegou novamente a hora de preparar a mostra das

oficinas. Adotando a mesma estratégia e metodologia usada na primeira turma,

decidi reunir, num livreto ilustrado, os trabalhos realizados pelos alunos ao longo

das aulas e percebi que eles consistiam basicamente de descrições de

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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personagens. Trabalhei então o conceito de uma coletânea de personagens,

descritos e desenhados pelos próprios alunos, incentivando-os a escreverem

sobre seus personagens ou sobre as aventuras que vivemos durante as aulas.

Com o uso de fotocópias ampliadas das páginas do livreto e de diversos

desenhos dos alunos, montamos uma nova exposição, no mesmo local da

anterior, dessa vez ocupando os espaços de forma mais consistente.

No site da escola PARAÍSO na internet, a mostra de trabalhos da segunda

leva de oficinas trimestrais foi descrita da seguinte forma:

“O segundo Amiúde de 2005 foi tão bom quanto o

primeiro. Antes do início das apresentações de Teatro, Dança e

Música, os pais, alunos e professores presentes puderam

conferir os trabalhos expostos das oficinas de RPG e Artes

Plásticas. (...) Na exposição da oficina de RPG - Role Playing

Game, desenhos de personagens oníricos - anões, elfos e

dragões - que fazem parte das histórias fantásticas

desenvolvidas pelos alunos. Ao lado dos desenhos, textos

breves, redigidos pelas próprias crianças, que descreviam o

caráter e outras informações pessoais da criatura. Em cartazes

distribuídos pelas pilastras, lia-se uma curta introdução à trama

da aventura.”

6.3.1 Pilhagem narrativa

Conforme o exposto no capítulo 3, aquilo que o termo “pilhagem narrativa”1

sugere como sendo quase que um plágio, sempre me pareceu muito mais como

um grande jogo intertextual, uma brincadeira quase “borgeana” de criar

hipertextos, escondendo links dentro de links dentro de links, em histórias

construídas não como labirintos, sólidos, enigmáticos e insondáveis, mas muito

mais como mosaicos, como tramas que percorrem caminhos tortuosos e que

1 proposto por Sônia Rodrigues para representar o processo pelo qual os jogadores de RPG recorrem às mais variadas

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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sempre se bifurcam, muitas vezes podendo nos dar a impressão de que estamos

andando em círculos, por termos quase certeza de já ter passado por aquele lugar

antes, de já ter visto aquela paisagem no passado.

O clichê, no universo do RPG, não é o plágio, a cópia pura e simples.

Bendito fruto da cultura de massa, produto e prática pop por excelência, o RPG é

como um liquidificador no qual toda a cultura pulp, os filmes B, as histórias em

quadrinhos, os desenhos animados, as notícias do jornal, os apreentadores de TV

e outros incontáveis elementos são processados, resignificados e incorporados.

É como na literatura de cordel, na qual o repentista usa regras consolidadas

e cristalizadas pela tradição para então, utilizando elementos das mais diversas

fontes e origens, exercitar sua criação, brincando de versejar, jogando com a

métrica e a rima, o ritmo e o som.

De modo semelhante ao cordel, onde a forma e a métrica rígida e os temas

retirados de muitas e diversas fontes não impede a criação, o lugar-comum no

RPG é muitas vezes isso mesmo, um lugar em comum, onde os caminhos se

cruzam, os links convergem, os fios da trama se adensam e se transformam num

nó. É como um território neutro, que o mestre e os jogadores usam como

plataforma ou ponto de partida para “brincar de ficcionar”.

Portanto, por se tratar o RPG de um jogo de referências cruzadas, para o

qual cada jogador contribui com seu repertório particular de referências, juntando

sua voz única e inimitável à multitude de vozes presentes nos personagens e

histórias sendo contadas pelo mestre, não acho adequado chamar essa prática de

“pilhagem”.

Será que não é a hora de aplicar ao RPG um outro conceito, que dê conta

dessa multitude de vozes, discursos e elementos entrelaçados na prática dos

jogadores e mestres de RPG?

Uma opção interessante me parece ser a idéia de heteroglossia.

fontes e referências para montar seus personagens e histórias,

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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O conceito de heteroglossia foi usado originalmente por Bakhtin no início do

século XX para descrever os aspectos polifônicos do romance, assim como a

pluralidade de vozes na democracia grega ou no carnaval. Na teoria dialógica de

Bakhtin, a heteroglossia é a presença das inúmeras vozes contidas num discurso

ou texto, relacionadas dialogicamente, como se realmente conversassem entre si.

Para Bakhtin, o diálogo era mais do que mera comunicação, era parte integral da

natureza da consciência e da trama da vida humana. Atualmente, podemos

seguramente afirmar que essa “trama da vida humana” é composta, em grande

parte, pela esfera da mídia e da cultura de massa, da qual o RPG é parte

integrante e na qual jogadores e mestres vão buscar os elementos para criarem

suas histórias e personagens.

Naturalmente, o conceito de heteroglossia vem assumindo uma grande

importância, especialmente dentro do campo dos estudos culturais, especialmente

a partir da lógica do “cortar-colar”, presente nos computadores e na lógica da

internet ou na música pop ou hip-hop, nas quais se montam canções com

pedaços, frases e sons retirados de outras gravações. E ainda que a heteroglossia

permita o uso distorcido do texto citado, ela também permite a apropriação cultural

e estética desses “pedaços” de textos, seja na montagem e edição frenética dos

vídeo-clipes, nos loops repetitivos da música eletrônica ou por meio da lógica do

hipertexto, cada vez mais presente no nosso dia-a-dia.

Se enxergarmos a prática de jogadores e mestres de RPG sob a ótica da

heteroglossia, e não mais da “pilhagem narrativa”, talvez fique mais claro o quanto

de criação, processamento, resignificação, interferência, intertextualidade e, acima

de tudo, diálogo existe entre os RPGistas e as fontes de onde retiram sua

inspiração.

Afinal, quando um jogador de RPG escolhe uma ilustração do elfo Legolas,

personagem do filme “O Senhor dos Anéis” para representar o seu personagem

no jogo, ele não está pilhando, não está roubando ou plagiando. Mas está

tomando emprestada uma multitude de vozes contidas naquela imagem: a voz de

J. R. R. Tolkien, que criou o personagem, a voz dos muitos artistas que retrataram

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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o personagem ao longo das décadas, a voz do diretor de arte, dos roteiristas e do

próprio diretor do filme “O Senhor dos Anéis”, que criaram sua própria versão de

Legolas e, sem esquecer, a voz do ator que desempenhou o papel, emprestando

seu corpo ao personagem de Tolkien. E, por fim, a voz do desenhista que criou

aquela ilustração.

Figura 32: as muitas vozes de um elfo

Porém, mesmo trazendo outras vozes, mesmo carregando a marca de outros

autores e de outras fontes, os jogadores e mestres de RPG não deixam de somar

a sua voz às demais. Não são como os soldados inimigos saqueando entoando

brados de guerra sobre os espólios das batalhas, nem são como os piratas,

cantando canções do mar sobre o caixão do morto, enquanto bebem uma garrafa

de rum, mas talvez sejam muito mais como os menestréis medievais, cantando

odes a outras terras, dando notícias de outros reinos, contando contos de outros

tempos, mas sempre com a sua própria voz e o seu próprio canto.

6.4 A Turma 7801

A turma que reunia alunos de 7a e 8a séries foi bem diferente das duas

descritas até aqui. A começar pela duração dos trabalhos, que se estenderam por

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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todo o ano letivo. Essa também foi a turma mais populosa, contando com 26

alunos (19 meninos e 7 meninas). Como os trabalhos com essa turma se iniciaram

ao mesmo tempo que a turma 5601 e se estenderam até bem depois do

encerramento da turma 5602, foi possível aplicar aqui muito do que foi sendo

observado de acertos nas duas turmas citadas, e vice-versa.

Figura 33: grandes aventureiros, cadeiras pequenas...

De início, a dificuldade maior foi o grande número de alunos e a falta de

espaço na biblioteca para que todos se sentassem em mesas. Adotando uma

solução que mais tarde apliquei à turma 5602, procurei identificar entre os alunos

alguns que pudessem atuar como mestres de jogo. Dentre os 26, somente 3

alunos se apresentaram voluntariamente para atuar como mestres, mas isso era

mais do que o suficiente para dividir a turma em 4 grupos, sendo um deles

formado pelos alunos que pouco ou nada conheciam sobre o RPG, do qual eu me

encarregaria e os três restantes coordenados por alunos atuando como mestres

de jogo.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Figura 34: Superlotação na sala de jogos

Dois desses alunos decidiram usar o mesmo sistema de regras, conhecido

como GURPS, um RPG que parte de regras genéricas para possibilitar a criação

de personagens e histórias em qualquer ambiente ou cenário desejado (medieval

fantástico, ficção científica, super-heróis etc.), enquanto o terceiro mestre optou

pelo jogo Dungeons & Dragons, já conhecido pelos jogadores e pelo mestre.

Utilizando o livro “mini GURPS As Cruzadas”, incentivei os alunos-mestres a

criarem personagens e histórias ambientadas neste período histórico, mas dei a

eles a liberdade para incluírem poderes mágicos e criaturas fantásticas, que não

existiriam num cenário rigorosamente histórico, aproximando a proposta dos

RPGs de fantasia medieval que eles estavam acostumados a jogar.

Ambos os mestres (E. e I.) optaram por fazer aventuras bem ao estilo das

campanhas de fantasia medieval, ignorando inicialmente o cenário das cruzadas.

O terceiro mestre (Y.) criou uma história bem no estilo do jogo Dungeons &

Dragons, que inclusive reproduzia o enredo de um dos videogames inspirados

neste RPG, e que era um dos games preferidos pelos alunos daquele grupo. Aos

mestres foi pedido que colocassem suas idéias no papel, escrevendo um pequeno

roteiro da aventura, para que eu pudesse acompanhar o trabalho dos seus grupos.

O mestre E. pareceu bastante incomodado com o pedido, perguntando se

aquilo era “realmente necessário”, se era “para a nota” etc., o que indicou uma

possível resistência de sua parte ao fato do RPG estar sendo “escolarizado”. Já o

segundo mestre (o aluno I.), parecia motivado a descrever a aventura, o que fez

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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num texto rápido, que me enviou pr email, e que reproduzido a seguir:

“Aventura: Todos os jogadores são mercenários. A aventura se passa no mundo de Yrth, um mundo de fantasia, magia e etc. Os jogadores estão em uma taverna a noite na cidade de Drift Abbey que fica numa ilha. Todos já se conhecem. Quando eles saem de lá, eles desmaiam (pois uma pessoa havia dado a eles uma poção do sono). Ao acordarem, descobrem que nada foi roubado, então vêem um homem que diz: -Vocês desmaiaram por causa de um homem que está a minha procura. Agora já esta tudo bem. Depois da conversa ele continua: - Já que os salvei, vocês me devem um favor e eu irei recompensá-los se o fizerem. Este homem está atrás de mim porque só eu sei a localização de um grimório único e muito poderoso , seu nome é necronomicom e ensina magias de conjuração de demônios. Ele está em uma caverna nas montanhas dos picos nevados e eu preciso que vocês o peguem para mim. Se os jogadores aceitarem, terão que ir até a montanha dos picos nevados que fica bem ao norte. Para sair da ilha eles precisarão pegar um barco e ir à cidade de Minder, uma cidade que fica na província de Cardiel. Depois, terão que passar por uma floresta e atravessar a fronteira chegando a província de Alhaz. Em seguida irão para o deserto, para Cathness e para Megalos (onde passarão pela floresta Blackwoods). Após atravessar a muralha do imperador, chegarão às montanhas dos picos nevados e entrarão numa caverna, onde lutarão para poder chegar ao livro . Quando saírem da caverna com o livro na mão, o mesmo homem que o havia pedido no início, fala que só fez isso para que ele não “sujasse as mãos”, o que detona uma batalha épica onde ele usa muito habilmente sua espada encantada. Porém, quando está quase ganhando, os guardas de Megalos chegam e tentam capturá-lo. O que o faz usar a magia de teletransporte e fugir. Ao final, os guardas de megalos levam o livro e dão uma grande recompensa aos jogadores. Ao longo da aventura poderão ser inseridas novas missões.

Em seu texto, I. traçava um roteiro rápido e seguro do que pretendia realizar

na aventura, demonstrando grande capacidade de roteirização e utilizando

referências tanto do próprio RPG GURPS (o mundo de Yrth, as cidades e locais

citados) quanto de outras fontes, como o livro místico Necronomicon, criado pelo

escritor norte-americano H. P. Lovecraft e que é citado em muitos de seus contos,

além de muitos filmes de cinema influenciados pela literatura de terror, como os

filmes da série “Evil Dead” (Uma Noite Alucinante), onde o Necronomicon aparece

com destaque.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Depois de algumas aulas, nas quais os alunos-mestres jogaram livremente,

percebi que suas histórias estavam chegando ao fim e eles começavam a ficar

ansiosos pelo que viria depois. Criando uma aventura ambientada no cenário do

livro mini GURPS As Cruzadas, mantive a divisão em quatro grupos. Enquanto Y

decidiu desfazer o seu grupo e os alunos se dividiram entre os demais grupos, E.

prosseguiu com sua aventura de fantasia medieval e I. decidiu criar uma nova

aventura dentro do cenário proposto (As Cruzadas), pedindo o meu livro

emprestado para que pudesse ler e se preparar melhor. Com isso, nas duas aulas

(duas semanas) que levei para explicar as regras e criar os personagens, I.

Dedicou-se a criar uma nova aventura, trocando mensagens e comigo pela

internet, nas quais me enviava suas idéias e textos e recebia de mim orientações

e sugestões para a aventura. Seu interesse foi tanto e sua relação com o livro

emprestado tão intensa que ele decidiu ampliar o escopo do livro e, além dos tipos

de personagem ali propostos, dedicou-se a criar um novo tipo de personagem, o

arqueiro-templário, que unia as capacidades do arqueiro com as do cavaleiro

templário, utilizando-se do mesmo modelo e estilo de textos para descrever sua

criação.

Porém, aos poucos, os alunos mestres começaram a manifestar o desejo de

atuarem também como jogadores, que decidi atender, tentando reunir todos os

grupos num só, o que fui fazendo em etapas.

Depois de criar personagens para todos, iniciei as aventuras com uma

narração para todos os grupos, que colocava todos os personagens dos alunos

como integrantes de uma mesma Cruzada, sob o comando de personagens

históricos. Porèm, aos poucos, fui trabalhando situações narrativas que envolviam

a interação somente entre os personagens dos jogadores dentro de um mesmo

grupo e, a seguir, comecei a estabelecer relações entre as situações vividas entre

os diferentes grupos.

Dessa forma, fui tentando reunir os personagens de todos os grupos numa

mesma situação-problema, na qual, para cada grupo era apresentado um dos

lados de um mesmo acontecimento.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Aproveitando a saída inesperada de um dos alunos, que transferiu-se para

uma outra escola, e que interpretava um personagem árabe em meio a vários

cruzados europeus, decidi transformar aquele personagem num espião infiltrado,

criando um elemento dramático para unir todos os grupos.

Assim, a cada aula eu reunia mais um grupo à narrativa principal,

conduzindo as narrativas paralelas para um mesmo ponto de convergência. Ao fim

de três aulas, havia somente um grande grupo, reunido num grande círculo de

alunos sentados no chão da biblioteca, todos integrados pelo final da história.

O passo seguinte foi novamente investir na liberdade e autonomia dos

mestres-alunos, que voltaram à carga, coordenando novas aventuras que os

ocuparam pelo restante do ano letivo.

A mim coube a coordenação de um grande grupo formado pelos iniciantes e

pelos jogadores que iam se dispersando dos demais grupos, seja por

desinteresse, por curiosidade de se juntar ao grupo maior ou simplesmente

enquanto esperavam a chance de voltar à aventura com um novo personagem em

seu(s) antigo(s) grupo(s).

Com um trabalho de mais longo prazo, foi possível criar histórias e

personagens mais próximos do que ocorre normalmente nos jogos de RPG, onde

jogadores e mestres desenvolvem longas sagas nas quais os personagens

evoluem, criando verdadeiras “histórias de vida”.

Foi possível, com isso, observar o modo pelo qual, através das memórias

dos feitos de seus personagens, os jogadores criavam laços de lealdade,

amizade, inimizades, rivalidades entre eles, gerando muitas lembranças em

comum, ainda que virtuais, nascidas na mesa de jogo.

Nessa turma houve uma grande oscilação em relação ao desenvolvimento

das atividades e trabalhos propostos para a mostra de final de ano. Enquanto

alguns alunos se esquivavam da obrigação, outros recusavam-se clara ou

veladamente a desenvolver qualquer tipo de trabalho proposto. Havia uma

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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diferença clara entre aqueles alunos que tentavam “dar um jeitinho”, adiar a

entrega das tarefas propostas ou então, por meio da lábia, encontrar uma

atividade “mais fácil” do que produzir textos ou desenhos e aqueles que (como o

aluno-mestre E.) pareciam francamente avessos a desenvolver qualquer tipo de

trabalho a partir dos jogos de RPG. O conflito entre o RPG “de lazer” e o RPG

“escolarizado”, antecipado por Pavão, entre outros, mostrou-se aqui de forma

muito nítida.

Ao mesmo tempo, outros alunos viram na oficina uma oportunidade de

lançarem mão de um rol de variadas linguagens de expressão. O aluno I.,

juntando-se a outro companheiro, chegou a desenvolver um RPG eletrônico. A

partir de ferramentas de programação gratuitas disponíveis na internet, os dois

criaram um jogo eletrônico inédito, baseado numa história criada por eles, e que

possuía uma boa dose de humor, além dos sempre presentes combates e

poderes comumente encontrados nos videogames.

Outro aluno, que colecionava livros de RPG e demonstrava passar muitas

horas na internet por semana pesquisando sobre o tema, entregou como trabalho

final um CD contendo uma grande coleção de imagens relativas aos RPGs, além

de páginas impressas com artigos, contos, fichas de personagem etc.

Mas um dos mais interessantes casos foi o do aluno Y., o mesmo aluno que,

por meio de sua reação explosiva e intempestiva ao fato de não ter conseguido

vaga na turma de RPG, acabou advertido mas entrou na turma, depois da

intervenção da coordenação da escola.

Apontado por alguns professores e funcionários como um “aluno

problemático”, Y. se juntou à oficina com um misto de timidez e desconfiança. Era

visível o seu incômodo com qualquer toque, olhar ou fala dirigida diretamente a

ele, e ele evitava claramente o contato visual, olho-no-olho. Respeitando essas

fronteiras muito bem delimitadas por ele mesmo, procurei mesmo assim, dedicar

uma atenção um pouco maior aos seus personagens, tentando trazê-lo mais para

dentro do grupo de jogo, o que acabou acontecendo.

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Ao longo do ano, Y. foi se sentindo mais seguro e já no segundo trimestre,

propôs-se a criar seu próprio RPG, com regras, cenário e personagens próprios.

Dedicando-se com afinco à tarefa e trocando muitos emails comigo, Y. foi

lapidando seu trabalho, reunindo um grupo de alunos para jogar seu jogo,

passando a atuar como mestre e, por fim, decidindo-se a apresentar sua criação

na mostra de fim de ano, jogando uma aventura com seu grupo. Durante o tempo

que duraram as apresentações das outras oficinas no evento, Y. e seu grupo,

acompanhados de algumas meninas que se mostraram curiosas, não arredaram o

pé da biblioteca, jogando o RPG que ele mesmo criou, saindo todos muito

satisfeitos ao final.

Alguns dos materiais criados por Y para o seu RPG estão nos anexos deste

trabalho.

As mostras dos trabalhos das oficinas de 7a e 8a séries e do Ensino Médio

acabaram sendo reunias num só evento, por decisão da coordenação e dos

professores das oficinas, por isso, esse evento estará descrito em mais detalhes

ao final da descrição da próxima turma.

6.4.1 Autonomia

O conceito de autonomia dentro do âmbito da Educação vem se tornando

cada vez mais importante. Articulado à noção de competências, a idéia do

desenvolvimento da autonomia dos alunos figura com destaque nos PCNEM

(Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio), onde se indica que a

construção de uma competência não se limita à situação de aprendizagem. Ela

“continua até o final do período de escolarização e, posteriormente, por toda a

vida. Por isso, deve-se garantir que o aluno adquira a autonomia necessária para

aprender a aprender.” (p.38)

Essa idéia do “aprender a aprender”, que se aproxima muito do primeiro dos

quatro pilares da proposta da UNESCO para a Educação no século XXI (aprender

a conhecer), e que, à primeira vista, parece caminhar no sentido de empoderar o

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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aluno, pode ser vista também de forma mais crítica como um desequilíbrio na

relação de ensino-aprendizagem, que poderia levar a um esvaziamento do lugar

do professor e da escola, colocando toda a carga de responsabilidade pela

aprendizagem apenas sobre os ombros do aluno. Algo muito semelhante ao que

ocorre com a noção de empregabilidade, sobre a qual também se travam intensas

discussões.

Por isso, antes de mais nada, é necessário deixar bem claro o que se

entende por autonomia para este trabalho.

Piaget é um dos autores que discutem a questão da autonomia e do seu

desenvolvimento. Para ele, autonomia não significa isolamento e ser autônomo

significa ser capaz de construir cooperativamente o sistema de regras morais e

operatórias necessárias à manutenção de relações permeadas pelo respeito

mútuo.

Na teoria de Piaget a autonomia se constrói em conjunto com o

desenvolvimento da autoconsciência, numa passagem da relação egocêntrica

com o mundo, travada de si para si mesmo, onde limites e regras são apenas

aqueles impostos pelo outro, para um estado de verdadeira autonomia, no qual as

leis e as regras são opções que o sujeito faz com vistas à sua convivência social,

através da auto-determinação.

Para Piaget, autonomia significa ser capaz de tomar decisões por si mesmo.

Mas autonomia não implica em liberdade completa. A verdadeira autonomia

significa considerar os fatores envolvidos para, aí sim, seguir o melhor rumo,

apoiado sempre na idéia do respeito mútuo.

Ao contrário de Piaget, cujas teorias centram seu olhar sobre o indivíduo,

Vygotsky acredita que todo conhecimento é construído socialmente, por meio da

interação. E embora a autonomia seja um conceito importante também em suas

idéias, o conceito de zona de desenvolvimento proximal nos indica que a

autonomia também é algo que tem que ser construído no contato e na interação

com o meio social.

Outro conceito importante de Vygotsky, que se articula ao de autonomia, é o

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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de mediação. Para ele, a aprendizagem não necessita da presença do professor;

ela pode se dar através da mediação de um artefato cultural, socialmente situado.

Não só o professor ensina, mas também os objetos, a organização do espaço, os

significados presentes nos elementos do mundo cultural. Ou seja, este "outro" que

me ensina pode se manifestar em eventos, situações, modos de organização e

também na linguagem, que cumpre um papel fundamental neste processo.

A autonomia, para Vygotsky, é um estágio para o qual o indivíduo caminha

pouco a pouco. Por isso, para construir a autonomia, não basta dar liberdade ao

indivíduo. É preciso que ele seja capaz de aprender a fiscalizar e orientar sua

própria atividade.

Já para Paulo Freire, a autonomia de ser e de saber do educando deve ser

sempre encorajada pelo professor em suas práticas pedagógicas, sendo vital,

para isso, que se respeite os conhecimentos que o aluno traz para a escola, por

ser ele um sujeito social e histórico.

Pela própria natureza de sua prática, o RPG já trabalha a autonomia dos

jogadores e mestres, que tomam para si a tarefa de gerar e gerir novos universos

ficcionais, criando e contando suas próprias histórias, com seus próprios

personagens. Porém, no trabalho com o RPG na escola PARAÍSO, mais do que

um pressuposto, trabalhar a autonomia dos alunos foi desde o começo uma

absoluta necessidade, pelo fato de ser um só professor (e mestre do jogo) para

cerca de 15 ou 20 alunos,

Além de investir na autonomia dos alunos que já conheciam o RPG no

sentido de que se tornassem mestres, foi preciso também incentivar a autonomia

dos grupos de mestres e jogadores para que jogassem entre si, sem a

necessidade da presença ou supervisão constante do professor. Em determinado

momento, por conta da falta de mesas para abrigar todos os grupos de jogo na

biblioteca, dois grupos pediram minha autorização para jogarem em outro local.

Rompendo os limites da sala de aula (a biblioteca), esses grupos ocuparam uma

grande mesa no hall da escola, e uma sala de reuniões que se encontrava

atualmente sem uso.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Figura 35: o RPG rompe os limites da sala de aula

Mas além dos limites físicos da sala de aula, o trablho com o RPG na escola

PARAISO possibilitou outras expressões de autonomia entre os alunos.

Desde a criação de personagens e aventuras até o desenvolvimento de

jogos de computador, os alunos puderam experimentar com a autonomia criativa

fomentada pelo RPG. Um dos alunos2, depois de experimentar um semestre

inteiro como jogador, teve a iniciativa de criar seu prórprio RPG.

Orientado por mim, através de conversas durante as aulas e também por

email, o aluno criou, desenvolveu, testou e apresentou seu RPG a um grupo de

colegas. Uma parte desse material (uma explicação das regras e a ficha de

personagem) estão entre os Anexos a este trabalho, para consulta.

2O mesmo aluno que depois de dar uma “cena”, chutando mesas e cadeiras foi repreendido mas conseguiu sua vaga na oficina...

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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6.5 Turma EM01

O Ensino Médio representava um universo totalmente diferente para a oficina

de RPG. Além de se localizar em outra casa, ocupando um outro espaço de

trabalho, os alunos do Ensino Médio reagiram de forma bem fria à proposta da

oficina de RPG. A maioria dos alunos se mostraram completa e visivelmente

entediados durante as apresentações de propostas, a não ser por alguns poucos

alunos que se identificaram logo como jogadores e mestres de RPG, para quem a

oficina parecia muito bem vinda.

Como era de se esperar, portanto, a turma de RPG do Ensino Médio foi a

menos numerosa, contando com apenas 12 alunos. Houve uma pequena

flutuação ao longo do ano, com três alunos matriculados pedindo para se retirarem

e um outro aluno que pediu para se integrar ao grupo, onde estavam alguns dos

seus amigos.

A divisão entre meninos e meninas foi de 7 para 5, sendo que havia uma

aluna cadeirante, que, por causa de suas necessidades especiais, precisava da

ajuda de funcionários da escola para chegar e se ausentar da biblioteca.

Totalmente integrada à escola, esta aluna, apesar de suas limitações físicas,

pareceu ter encontrado no RPG uma atividade na qual podia se expressar e se

integrar, muito mais do que nas oficinas de dança, música ou teatro, por exemplo.

Por ser uma atividade verbal, intelectual e apoiada na imaginação, o jogo de

RPG permitiu que a aluna se integrasse totalmente ao grupo, exercendo total

domínio dos mesmos recursos e possibilidades que os demais jogadores,

demonstrando um caráter inclusivo na prática do RPG que poucos autores

(excetuando-se, logicamente, KLIMICK, com sua pesquisa no INES) parecem ter

vislumbrado, e que, com toda certeza, mereceria um estudo mais detalhado.

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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Figura 36: Aventuras inclusivas no Ensino Médio

Desde o início, a exemplo do que ocorreu na turma 5602, houve na turma de

Ensino Médio um contraste claro entre um grupo que já conhecia e jogava RPG

(formado por meninos da 2a série) e outro formado por iniciantes

(majoritariamente formado por meninas da 1a série).

No primeiro semestre, os dois grupos se mantiveram separados, com os

jogadores experientes conduzindo aventuras durante as aulas e também em seu

tempo livre, reunindo-se nos fins de semana. As aventuras eram relatadas pelo

mestre e pelos jogadores toda semana, com ocorre normalmente entre

companheiros de jogo, em conversas nas quais os casos mais engraçados, as

jogadas de sorte ou azar extremo, os aspectos mais interessantes das histórias e

dos personagens eram trazidos por eles naturalmente.

Enquanto isso, o grupo dos jogadores iniciantes participava de aventuras sob

a minha coordenação, onde integravam-se animadamente à história. Porém, a

partir do segundo semestre, o aluno-mestre declarou que queria atuar como

jogador e foi necessário unir os dois grupos. De imediato surgiu uma grande

rivalidade entre eles, com atitudes de desconfiança e rejeição vindas dos dois

lados. Em muitos momentos, foi difícil equacionar os anseios de todos.

Por fim, depois de algumas sessões de jogo, os jogadores experientes

decidiram se separar mais uma vez, quando outro aluno se ofereceu para ser

mestre de jogo. Com essa turma foi possível trabalhar com livros de RPG como os

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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da linha “Vampiro: A Máscara”, destinados a um público mais maduro, e que

envolvem temas mais adultos e caracterizam-se por uma ênfase no

desenvolvimento das histórias e perfis psicológicos dos personagens.

Assim, utilizando as regras e o cenário desse RPG de grande sucesso junto

ao público adolescente, foi possível reunir toda a turma num só grupo, o que

possibilitou também um trabalho mais profundo de produção de textos e

desenhos, ligados à história e aos personagens interpretados por eles.

Ao final do ano, por motivos operacionais, as mostras de trabalho das turmas

de 7a e 8a séries foram reunidas às do Ensino Médio. Com isso, foi possível

construir um panorama bem variado de trabalhos com as oficinas de RPG.

Ocupando a biblioteca, a mostra foi concebida e realizada por ambas as

turmas, reunindo livros, cartazes, pesquisas e trabalhos realizados por alunos das

duas turmas indiscriminadamente. Utilizando os computadores da biblioteca e a

pesquisa de imagens feita por um dos alunos da turma 7801, foi montada uma

apresentação de “slides”, onde as mais variadas imagens (desenhos, ilustrações,

fotos de filmes, capas de livros etc.) se alternavam na tela de todos os

computadores, sendo que um deles, virado de frente para a porta de entrada,

exibia somente fotos tiradas durante as aulas, mostrando aos pais e professores

um pouco do trabalho realizado no ano todo.

Nas paredes, cartazes contavam um pouco da história do RPG, falavam dos

principais títulos e sistemas de regras mais famosos, falando ainda sobre os RPGs

eletrônicos, sendo que num dos computadores era demonstrado o jogo criado por

dois alunos da turma 7801, que podia ser testado pelos presentes.

As paredes também eram enfeitadas por ilustrações feitas por uma das

alunas, que utilizando o estilo dos mangás, retratava diferentes personagens,

alguns dos quais tinham sido interpretados por ela e suas amigas ao longo dos

trabalhos da oficina.

Numa das mesas foi montada uma pequena maquete demonstrando um jogo

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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de miniaturas e em outra foi montada uma pequena exposição com livros de RPG

diversos. A mesa restante foi ocupada por um dos alunos, que tinha desenvolvido

seu próprio RPG, e realizou uma divertida partida de demonstração, da qual

participaram alguns dos seus companheiros de oficina e mais algumas meninas,

que se mostraram curiosas para conhecer o jogo.

Como encerramento do ano e ponto final da coleta de dados para esta

pesquisa, esta mostra de trabalhos foi, acima de tudo, uma mostra bastante

eloquente da variedade e da multiplicidade de desdobramentos possíveis no

trabalho com os jogos de RPG dentro do ambiente escolar.

Figura 37: A Mostra de trabalhos do fim do ano

6.5.1 Subjetividade Contemporânea

Legítimos representantes de uma geração que processa a informação em

modo multi-tarefa e convivendo desde muito cedo num ambiente multimidiático,

marcado pela presença crescente das modernas tecnologias de informação e

comunicação, as crianças e jovens de hoje são absolutamente capazes de

navegar na internet enquanto ouvem música, falam no celular, assistem TV e

trocam torpedos ou mensagens em chats ou via programas de correio

instantâneo: tudo ao mesmo tempo, agora! E num mundo assim tão vertiginoso,

qual seria o lugar da escola? Qual o lugar do professor?

Essas e outras questões relativas à constituição da subjetividade

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6. As Turmas: Descrição e discussão

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contemporânea, as marcas da adolescência e o momento de vida pelo qual

passam os jovens no Ensino Médio, sintonizado com uma época de tremendas

incertezas e mudanças e, ao mesmo tempo, um momento onde grandes decisões

e definições para futuro precisam ser feitas, apareceram com muita força no

trablaho com turma EM01.

No seu lado mais drástico, uma das alunas, que inicialmente tinha

demonstrado um grande interesse na oficina, por conta de possuir um grupo de

amigos fora da escola que eram praticantes de RPG, o que segundo ela tinha

despertado sua curiosidade sobre o jogo, foi se distanciando cada vez mais do

restante da turma, alheia ao que se passava no jogo, passando grande parte do

tempo das aulas desenhando incessantemente em seu caderno. Mais tarde, esta

aluna começou a faltar diversas aulas seguidas, o que me levou consultar os

outros alunos, que relataram que “ela é assim mesmo. Falta muita aula. Não é só

a sua não. Não tem mais saco para a escola...”

Seria esta mais um indício de que, com o passar dos anos, a clivagem entre

o mundo “lá fora” e o mundo encerrado para dentro dos muros da escola vai se

tornando cada vez maior, ficando a escola cada vez mais distante dos anseios e

aspirações dos jovens? E em que medida a abertura da escola para aquelas

práticas e linguagens expressivas próprias das culturas juvenis contemporâneas

poderia (ou não) contribuir para criar pontes entre esses dois mundos tão

díspares? Ao incorporar a música e a dança, os jogos e o cinema, a informática e

as novas tecnologias à sua prática pedagógica, estariam professores e escola

abrindo-se para um diálogo mais franco e direto com as culturas infantis e juvenis

contemporâneas?

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7. Considerações Finais

Por meio da observação de uma experiência real com a prática dos

jogos de RPG, dentro das premissas e pressupostos traçados para este

trabalho, acredito ter sido possível demonstrar o quanto essa prática

lúdica e criativa pode oferecer aos educadores uma nova forma de

exercitar e desenvolver as mais diversas competências lógicas,

linguísticas, inter-pessoais e cognitivas, além de afetivas e criativas.

Integrado a uma proposta pedagógica voltada para mais do que a

preparação para o “mundo do trabalho” ou o “sucesso no vestibular”, o

projeto realizado na escola PARAÍSO utilizando os jogos de RPG dentro

do currículo, ao lado de outras linguagens estéticas como o teatro, a

música, a dança, as artes plásticas e outros meios de expressão artística

e cultural podem servir como uma forma de aproximar com sucesso o

ambiente da escola do mundo complexo, múltiplo e multi-midiático no qual

os jovens das grandes cidades se encontram imersos em seu dia-a-dia.

Por meio das oficinas e do contato direto em sala de aula com

alunos de diversas idades, indo da 5ª série do Ensino Fundamental à 2ª

série do Ensino Médio, pude perceber o quanto o RPG pode permitir a

expressão dos alunos em múltiplas linguagens, integrando alunos que

podem se sentir à margem do processo educativo por limitações de

ordem física, mental ou emocional. Por abrir espaço para o trabalho com

múltiplas linguagens, o RPG permite a expressão múltipla dos alunos, a

experimentação com outros códigos, outras formas de conhecer e

comunicar, com possibilidade de ampliar e facilitar o trabalho em sala de

aula.

Também foi possível perceber que o RPG não precisa entrar na

escola apenas como uma mera ferramenta para a transmissão de

determinados conteúdos, como uma “novidade” que o professor utilize

para “tornar sua aula mais interessante”.

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7. Considerações Finais 154

A prática do RPG pode e deveria ser entendida cada vez mais como

uma atividade educativa em si mesma, uma atividade que pode ser usada

com estratégias e objetivos claros, segundo um projeto e uma proposta

pedagógica apoiada no desenvolvimento de competências consideradas

por muitos autores como cada vez mais fundamentais para a Educação.

Acredito que este trabalho me permitiu também refletir sobre o

quanto o processo por meio do qual os mestres e jogadores de RPG

buscam e resignificam as mais variadas referências para criar sua ficção

pode ser entendido como algo além da “pilhagem narrativa”. Que existe

intenção estética, significado, consistência no uso das referências, que

elas cumprem as mais variadas funções, desde comunicativas até sociais,

e que essas referências continuam vivas, que as muitas vozes contidas

nelas continuam falando, comunicando.

Além disso, acredito que o trabalho com o RPG dentro da escola

PARAÍSO, demostrou também uma nova forma de vislumbrar um pouco

mais de perto as complexas e profundas relações que as crianças e

jovens de hoje travam com os meios de comunicação, com os conteúdos

e mensagens que circulam e são difundidos por eles na chamada “cultura

de massa” e também sobre o modo pelo qual essas mesmas crianças e

jovens processam e se apropriam de muitas dessas mensagens e

conteúdos.

Como indicam os textos de autores tão diversos (em termos teóricos

ou geográficos) quanto KELNER, OROZCO-GOMES, GIROUX, JENKINS,

BUCKINGHAM e ITO, a relação dos jovens com todo esse caldeirão de

cultura e entretenimento é sempre marcada por tensões, embates, mas

também por alguns processos muito objetivos, por meio dos quais as

mensagens e conteúdos da cultura de massa vão sendo ativa e

coletivamente resignificados e renegociados socialmente entre os pares.

Usados como passaporte ou garantia de pertencimento a determinado

grupo, como forma ou espaço de socialização ou tendo sua recepção

mediada exatamente por essas relações de pertencimento e inte(g)ração

social, muitas das vezes essas referências e informações são

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7. Considerações Finais 155

consideradas pelo grupo em seu valor de ineditismo e raridade, trocadas

como “figurinhas difíceis”.

Assim, conhecer a nova canção de um artista ou banda (ou seu

último videoclipe), saber o segredo para “passar de fase” no jogo ou

dominar o dialeto próprio da Internet ou os “atalhos” no teclado para se

utilizar dos mais interessantes e diferentes emoticons1 garante o acesso,

estabelece o contato, mantém abertos os canais de comunicação e gera

uma noção de pertencimento e inserção em determinado grupo ou sub-

cultura.

No caso das oficinas de RPG aqui estudadas, foi possível estudar de

perto os modos pelos quais este jogo, pelo fato de articular diversas e

variadas referências culturais e linguagens estéticas, pode servir como

“plataforma” ou “suporte” para o favorecimento e a observação mais

próxima desses fenômenos sociais e culturais tão atuais.

Afinal, durante os jogos, os participantes vão apresentando suas

referências, trazendo suas contribuições, suas citações e criando

hiperlinks com outros textos, outros personagens, outros universos

ficiconais. Comparando e negociando socialmente esses elementos, eles

vão identificando afinidades, atribuindo “valores”, estabelecendo as mais

diversas e complexas redes e relações.

Na verdade, os conteúdos e produtos veiculados atualmente no

âmbito da chamada “cultura de massa”, parecem cada vez mais

marcados por um intenso e ativo traço de intertextualidade, onde os

mesmos personagens e histórias são retratados pelos mais diferentes

meios e mensagens, inclusive dependendo uns dos outros para a

verdadeira apreensão dos enredos.

Mas o mais interessante disso tudo, no caso do presente trabalho, é

que os processos de multimídia, hipertexto e meta-linguagem (ou meta-

narrativa) trazidos pelos jogos de RPG parecem se integrar

1 Combinações de caracteres que indicam o estado emocional do emissor de uma mensagem na internet,

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7. Considerações Finais 156

harmonicamente às atuais conformações dos universos e produtos

destinados ao público infanto-juvenil.

Apoiada em Bakhtin, PAVÃO (1999) aponta, em sua pesquisa, a

existência de uma grande interpenetração de textos e referências na

formação dos mestres de RPG enquanto leitores, indicando a presença

marcante do cinema, dos quadrinhos, dos desenhos animados e dos

videogames entre esses jovens leitores e criadores de textos e

personagens.

No trabalho com o RPG dentro da escola PARAÍSO, muito mais do

que o mestre (ou o professor), os jogadores (ou alunos) traziam e

ofereciam ao grupo muitos e muitos textos, imagens, citações, hiperlinks,

apropriações, resignificações, paródias, paráfrases etc., num jogo de

referências cruzadas, tecidas como uma verdadeira colcha de retalhos,

uma trama de histórias, urdida com engenho e arte, humor e ironia,

estabelecendo relações bem mais profundas e intensas com os textos do

que uma mera “pilhagem”.

Mais do que piratas, assaltando ou saqueando o baú de histórias e

personagens da tradição, dos mitos, da literatura ou da cultura de massa

para montar suas sagas, os jogadores e mestres de RPG me parecem

muito mais bardos, repentistas e menestréis medievais, jogando com

palavras, textos e imagens, brincando com personagens e histórias,

fazendo da ficção a sua diversão e da cultura de massa o seu playground.

Criando com suas palavras e sua imaginação os seus universos

particulares, não com espaços privados, exclusivos, mas sim específicos,

únicos e, ainda que paradoxalmente, coletivos.

No trabalho com o RPG dentro do currículo da escola PARAÍSO, foi

possível perceber o quanto esse multiverso de práticas, linguagens,

suportes e referências presentes na cultura de massa contemporânea faz

parte quase que indissociável do processo de constituição das

identidades dos jovens das camadas médias urbanas. Foi possível

simulando “carinhas” felizes, tristes, animadas, surpresas etc. E que fazem parte da “cultura” da internet.

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7. Considerações Finais 157

observar também o quanto o trabalho dentro da sala de aula pode se

enriquecer e tornar-se mais significativo se a prática do professor

contemplar a expressão dos alunos em diferentes e diversas linguagens.

A fala, a escrita, as leituras, os desenhos, as colagens, as pesquisas, os

jogos, as maquetes, as interpretações, enfim, tudo o que os alunos

trouxeram para sala enquanto jogadores e mestres de RPG, poderiam

trazer também nas aulas de História, Língua Portuguesa, Matemática etc.

Abrir a sala de aula para os modos específicos de expressão das

culturas e sub-culturas infantis e juvenis urbanas e contemporâneas, mais

do que um movimento meio desesperado da escola e dos professores em

para tornar suas aulas mais atraentes, interessantes, provocativas e

“lúdicas”, deve ser, isso sim, uma tomada de consciência do professor (e

dos educadores) para o fato de que é cada vez mais necessário tornar a

sala de aula um espaço de troca e não de mera transmissão, lugar do

diálogo, apontado por Paulo Freire como o caminho para a verdadeira

liberdade. Investir na parceria com os alunos, abrir espaço para que eles

se manifestem e interfiram criativamente no processo de construção do

conhecimento e das situações, projetos e problemas discutidos em sala

de aula pode ser um caminho muito promissor para resignificar o lugar da

escola e do professor diante das mudanças profundas nos modos de

apreensão e relação com o conhecimento e a informação trazidos e

mediados pelas novas tecnologias.

Deixar para trás o lugar de “mestre-escola” e assumir o papel de

“mestre-do-jogo”, pode ser uma experiência interessante e desafiadora,

uma tentativa de trazer para o ambiente da escola essa relação lúdica e

prazerosa que a prática do RPG estabelece com textos e imagens. Mas

sem sacrificar o que a escola ou o RPG têm de particular, específico e

precioso, ou seja, sem submeter um ao outro: sem “escolarizar” o RPG e

nem adulterar o lugar e o papel que ocupam a escola, o pofessor, os

saberes e a relação ensino-aprendizagem.

Mesmo sendo uma escola que se poderia considerar como de “elite”,

que atende a segmentos muito particulares da população, e que, em tese,

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7. Considerações Finais 158

estaria muito distante da porção majotirária das escolas, especialmente as

da rede pública de ensino, acredito que o trabalho com o RPG na escola

PARAÍSO possa servir como indicação de um fenômeno que me parece

disseminado mais ou menos “democraticamente” entre crianças e jovens,

superando até mesmo profundas distorções de origem ou acesso a bens

materiais ou culturais que se expressam o meio social.

Afinal, se trocarmos uma referência por outra, se trocarmos o rock

pelo funk ou o pagode, a TV por assinatura pela TV aberta, os

videogames e filmes originais por cópias “alternativas” e as roupas e tênis

“de marca” pelos artigos “genéricos”, comprados nos vendedores

ambulantes, veremos com certeza que as diferenças, embora grandes e

profundas, não geram neste aspecto contrastes de matizes muito

intensos, sendo percebidas muito mais como variações de tom dentro de

um mesmo espectro cromático, ou diferentes notas dentro de uma mesma

escala ou campo harmônico.

Portanto, guardadas as devidas proporções e distorções, e desde

que tomados sob a perspectiva apropriada, acredito que os apontamentos

deste trabalho possam servir de guia para o aproveitamento dos jogos de

RPG em outras e diferentes escolas, em outros e diferentes contextos

educacionais, sociais e culturais.

Minha sugestão final é que o leitor (ou leitora!) faça com este

trabalho o mesmo que todos os mestres e jogadores de RPG fazem

constantemente com todos os textos, imagens, palavras, personagens,

histórias e universos ficionais que encontram pela frente: transformem,

resignifiquem, recriem, adaptem, interajam e tornem suas as idéias aqui

discutidas.

Porque, na verdade, as idéias e os textos não têm dono. E por isso

mesmo são (e sempre serão) nossas... de todos nós.

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