o retrato das mulheres negras na obra o cortiÇo e as

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O RETRATO DAS MULHERES NEGRAS NA OBRA O CORTIÇO E AS PERSPECTIVAS EMANCIPADORAS NA CONTEMPORANEIDADE 1 Estudante: Jailsa Rodrigues da Silva Ricardo Orientador: Prof. Dr. Plínio José Feix RESUMO A presente pesquisa semeia sua investigação sobre a emancipação social das mulheres negras na contemporaneidade, a partir da análise da obra literária O cortiço (1890) de Aluísio Azevedo. O desenvolvimento deu-se por meio da pesquisa bibliográfica em leituras e análises baseadas em autores que abordam sobre o tema, pautado no olhar histórico e social em que estão configuradas as personagens femininas negras presentes na narrativa da obra literária em questão. A pesquisadora buscou traçar um paralelo sobre as condições em que viviam e sobreviviam no século XIX as mulheres negras retratadas por Azevedo e como essas mulheres da atualidade têm alcançado conquistas emancipadoras através da luta em movimentos feministas, avançando na direção da alteração das relações sociais que as separam em gênero, raça e classe. Esses movimentos de mulheres, apesar de todas as dificuldades, propiciam visibilidade social e conquista de direitos, permitindo um processo de construção de relações sociais mais igualitárias em termos de classes, cor e gênero. Palavras-chave: O Cortiço; Mulheres Negras; Discriminação; Emancipação. RESUMEN La presente investigación siembra su investigación sobre la emancipación social de las mujeres negras en la contemporaneidad, a partir del análisis de la obra literaria El cortijo (1890) de Aluísio Azevedo. El desarrollo se dio a través de la investigación bibliográfica en lecturas y análisis basados en autores que abordan sobre el tema, pautado en la mirada histórica y social en que están configuradas las personajes femininas negras presentes en la narrativa de la obra literaria en cuestión. La investigadora buscó trazar un paralelo sobre las condiciones en que vivían y sobrevivían en el siglo XIX las mujeres negras retratadas por Azevedo y cómo esas mujeres de la actualidad han alcanzado conquistas emancipadoras a través de la lucha en movimientos feministas, avanzando hacia la alteración de las relaciones sociales que las separan en género, raza y clase. Estos movimientos de mujeres, a pesar de todas las dificultades, propician visibilidad social y conquista de derechos, permitiendo un proceso de construcción de relaciones sociales más igualitarias en términos de clases, color y género. Palabras-claves: El Cortijo; Mujeres Negras; Discriminación; Emancipación. 1 Este artigo faz parte das exigências do curso de Pós-graduação Lato Sensu ‘’Sociedade, Política e Cidadania – Olhares Transdisciplinares’’ para a obtenção do título de Especialista. Rondonópolis, novembro de 2018.

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Page 1: O RETRATO DAS MULHERES NEGRAS NA OBRA O CORTIÇO E AS

O RETRATO DAS MULHERES NEGRAS NA OBRA O CORTIÇO E AS

PERSPECTIVAS EMANCIPADORAS NA CONTEMPORANEIDADE1

Estudante: Jailsa Rodrigues da Silva Ricardo

Orientador: Prof. Dr. Plínio José Feix

RESUMO

A presente pesquisa semeia sua investigação sobre a emancipação social das mulheres negras

na contemporaneidade, a partir da análise da obra literária O cortiço (1890) de Aluísio

Azevedo. O desenvolvimento deu-se por meio da pesquisa bibliográfica em leituras e análises

baseadas em autores que abordam sobre o tema, pautado no olhar histórico e social em que

estão configuradas as personagens femininas negras presentes na narrativa da obra literária

em questão. A pesquisadora buscou traçar um paralelo sobre as condições em que viviam e

sobreviviam no século XIX as mulheres negras retratadas por Azevedo e como essas mulheres

da atualidade têm alcançado conquistas emancipadoras através da luta em movimentos

feministas, avançando na direção da alteração das relações sociais que as separam em gênero,

raça e classe. Esses movimentos de mulheres, apesar de todas as dificuldades, propiciam

visibilidade social e conquista de direitos, permitindo um processo de construção de relações

sociais mais igualitárias em termos de classes, cor e gênero.

Palavras-chave: O Cortiço; Mulheres Negras; Discriminação; Emancipação.

RESUMEN

La presente investigación siembra su investigación sobre la emancipación social de las

mujeres negras en la contemporaneidad, a partir del análisis de la obra literaria El cortijo

(1890) de Aluísio Azevedo. El desarrollo se dio a través de la investigación bibliográfica en

lecturas y análisis basados en autores que abordan sobre el tema, pautado en la mirada

histórica y social en que están configuradas las personajes femininas negras presentes en la

narrativa de la obra literaria en cuestión. La investigadora buscó trazar un paralelo sobre las

condiciones en que vivían y sobrevivían en el siglo XIX las mujeres negras retratadas por

Azevedo y cómo esas mujeres de la actualidad han alcanzado conquistas emancipadoras a

través de la lucha en movimientos feministas, avanzando hacia la alteración de las relaciones

sociales que las separan en género, raza y clase. Estos movimientos de mujeres, a pesar de

todas las dificultades, propician visibilidad social y conquista de derechos, permitiendo un

proceso de construcción de relaciones sociales más igualitarias en términos de clases, color y

género.

Palabras-claves: El Cortijo; Mujeres Negras; Discriminación; Emancipación.

1 Este artigo faz parte das exigências do curso de Pós-graduação Lato Sensu ‘’Sociedade, Política e Cidadania –

Olhares Transdisciplinares’’ para a obtenção do título de Especialista. Rondonópolis, novembro de 2018.

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INTRODUÇÃO

Este artigo objetiva descrever e analisar a vida privada e social das mulheres negras

no cenário brasileiro no final do Século XIX a partir da análise da obra literária O Cortiço, de

Aluísio Azevedo, publicado em 1890. Esta escolha partiu de um interesse pessoal de dialogar

com autores que abordam temas sociais relacionados às mulheres, mais precisamente as

mulheres negras, do ponto de vista histórico e sociológico. A ênfase será sobre a narrativa

produzida por Azevedo sobre como viviam essas mulheres neste tempo na periferia urbana da

cidade do Rio de Janeiro, especialmente sob a perspectiva das relações de classe, raça e

gênero, bem como sobre as transformações ocorridas no decorrer do tempo, as conquistas

obtidas e as opressões enfrentadas e que ainda sofrem até os dias atuais no processo de luta

emancipadora dessas mulheres.

O romance O Cortiço é um clássico da literatura nacional amplamente estudado na

academia, sendo uma obra que superou o advento do Naturalismo desenvolvido na França por

Émile Zola2. Azevedo tem conquistado seguidores por ser considerado o representante

brasileiro desta escola literária. Este escritor ganhou espaço ao retratar a sociedade a partir de

uma visão científico-realista, unindo as teorias vigentes na época para falar e mostrar assuntos

do cotidiano brasileiro. Retrata temáticas ousadas que se mostravam inerentes ao contexto

social de então e próprias para serem representadas por este gênero literário, e que não tinham

sido explicitamente ilustrados em períodos anteriores. Aluísio Azevedo era narrador

onisciente e conhecedor de tudo o que escrevia, entrelaçava na narrativa seus personagens no

contexto social e político. Trata-se de um contexto sócio-político brasileiro imediatamente

posterior à Abolição oficial da escravidão (1888) e da Proclamação da República (1889), e de

aceleração da expansão do capitalismo.

Esta pesquisa orienta-se em termos metodológicos na análise do citado texto

literário, bem como o desenvolvimento da pesquisa bibliográfica sobre distintos autores da

época e da contemporaneidade para referenciar a análise do nosso objeto de estudo. O texto

está estruturado em três capítulos. No capítulo I – o realismo e o naturalismo – conceituamos

esses dois gêneros literários, mostrando o estilo adotado por Aluísio Azevedo. Neste espaço

2 Émile-Édouard-Charles-Antoine Zola. Jornalista e romancista francês do século XIX, considerado um dos

principais escritores do Naturalismo. Émile Zola. Disponível em: < https://www.suapesquisa.com/ quem

foi/emile_zola.htm>. Acesso em: 09 nov. 2018.

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fazemos também uma breve contextualização histórica do Brasil do final do século XIX, com

ênfase ao espaço social da periferia urbana na cidade do Rio de Janeiro, tendo como suporte

teórico alguns autores: Nelson Werneck Sodré (1965), José Murilo de Carvalho (2004) e

Antônio Cândido (1991).

No Capítulo II adentramos no tema em questão – a representação das mulheres

negras na obra –, analisando as personagens femininas negras no que se refere às condições

de vida, de trabalho, formação familiar, situação de preconceito e violência de gênero e raça.

É analisada também a forma como é descrito o cotidiano das mulheres negras a partir das

teorias científicas da época, tendo como representantes mais analisadas na obra as

personagens Bertoleza, Rita Baiana, Marciana e a sua filha Florinda.

O capítulo III é uma abordagem sobre as mulheres negras da contemporaneidade na

perspectiva do processo de luta de sua emancipação pessoal e social. Serão tratadas algumas

conquistas alcançadas através da organização do Movimento Negro no Movimento Feminista.

Para a análise de questões pertinentes deste processo emancipador, utilizamos estudiosas

como Carneiro (2003), Davis (1982) e Saffioti (1992), constituindo-se em pesquisadoras que

abordam de distintas formas a desconstrução de estereótipos que marcaram a história das

mulheres negras brasileiras e os resultados conquistados no que tange ao protagonismo, à

autonomia e aos direitos sociais.

1 - O REALISMO E O NATURALISMO

Neste tópico iremos, brevemente, conceituar os gêneros literários do realismo e do

naturalismo, estilos adotados pelo Aluísio Azevedo para escrever a obra O Cortiço. Também

faremos uma sucinta contextualização histórica do Brasil no período da produção desta obra,

principalmente a cidade do Rio de Janeiro, espaço social retratado pelo escritor brasileiro.

1.1- Conceituação dos dois gêneros literários

O Realismo é uma escola literária que se desenvolveu na Europa no século XIX após

Gustave Flaubert publicar o romance Madame Bovary. No Brasil é adotado principalmente

nas obras de Machado de Assis no romance Memórias Póstumas de Brás Cubas e na obra o

Mulato de Aluísio Azevedo.

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O Realismo propôs uma representação objetiva e fiel da vida humana. Esta não era

mais vista do ponto de vista idealista do romantismo, como subjetivação direcionada para os

sentimentos, mas como forma de crítica às instituições sociais decadentes no século XIX. Da

mesma forma, o realismo não é um gênero artístico que se guiava pela interpretação, sendo

que nesta preponderava a dimensão subjetiva do artista e estimulava a mesma perspectiva no

público ao apreciar a obra. O realismo, ao retratar a realidade de forma objetiva, tinha como

objeto principal revelar a hipocrisia burguesa através das instituições sociais básicas, tais

como o casamento e a igreja, como explica Tufano (1995).

Esse período é marcado por profundas transformações no campo cultural, social e

econômico, inicialmente na Europa, proporcionados pela Revolução Industrial. Nesta época a

civilização burguesa, industrial e materialista firma as suas ideias liberais e, por outro lado,

surgem as rebeliões e os protestos dos trabalhadores camponeses e operários em todos os

países que estavam passando por estas mudanças profundas na expansão do capitalismo. As

cidades industriais crescem e atraem um grande número de operários que vivem em condições

subumanas e passam a organizar-se em associações para lutar contra a exploração.

No Brasil, os intelectuais defensores do liberalismo influenciaram o comportamento

da classe burguesa, o que resultou em processo de transformações sociais. De acordo com

Sodré (1965), a luta pelo fim da Monarquia e a instauração da República foi durante muito

tempo o projeto exclusivo dos setores liberais que aspiravam um ordenamento social

democrático. A instauração da República (1889), dentre todas as mudanças provocadas,

influenciou diretamente a arte e a literatura aos olhos dos escritores da época que descreveram

as mudanças no modo de ser e de viver da população e o processo de urbanização.

O gênero literário naturalista adotado para a produção de O Cortiço propiciou para

Azevedo a descrição da situação social vivida nos subúrbios pela população carioca.

O Realismo, e principalmente o Naturalismo, tiveram como base teórica, filosófica,

científica e cultural de várias vertentes surgidas no século XIX. Esses movimentos literários

foram influenciados decisivamente por pensadores que marcaram essa época. Augusto Comte,

francês, desenvolveu a teoria positivista pautada no método da observação, da experimentação

e da comparação da realidade empírica mensurável. Charles Darwin, inglês, naturalista,

revolucionou o mundo com a teoria da evolução das espécies, defendendo a concorrência

entre os seres vivos, onde “os mais fortes e aptos conseguiam sobreviver” (TUFANO, 1995).

Karl Max, pensador alemão que mais influenciou a teoria social no século XIX, procurou

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entender a história humana a partir da teoria política alicerçada na luta de classes no modo de

produção capitalista, cujo processo culminaria com a ascensão do proletariado ao poder do

Estado, via revolução. Hippolite Taine, francês, filósofo e historiador, autor da teoria

determinista, sustentava que o indivíduo era resultado da influência da raça (hereditariedade),

do meio ambiente e do momento histórico.

O Naturalismo nasceu com o pesquisador Emile Zola que utilizou anotações a partir

de observações de ambientes, cenários e pessoas não idealizadas, não dantes mostradas em

obras literárias, sob a visão determinista. No Naturalismo, a Natureza é a referência para a

análise do comportamento dos seres humanos e das relações sociais. Tudo na Natureza tem

um comportamento regular, previsível, determinado, observável empiricamente, possível de

ser conhecido por meio da ciência. Os seres humanos se comportariam da mesma forma que

os outros seres vivos, sofrendo a ação de diversos fatores naturais que determinam a sua ação

e que seria compreensível à luz do determinismo natural.

Nas obras literárias da escola Naturalista ou influenciada por esta, os fenômenos

sociais são analisados e explicados a partir de determinações que fogem do poder de

intervenção humana. É uma teoria social que fomenta a resignação. Inclusive, como existiria

uma hierarquia na ordem do Universo, a mesma existiria no âmbito das relações sociais. Esses

aspectos aparecem claramente no O Cortiço.

Estudiosos, tal como Sodré (1965, p. 27), caracterizou o Naturalismo como sendo

“uma escola como as outras que se sobrepõe ao realismo”, isso porque utilizam determinadas

fórmulas empíricas das ciências naturais, especialmente a biologia para representação da

realidade.

O Naturalismo brasileiro é uma escola peculiar da fase de crise com a emergência da

burguesia, tendo como intuito apresentar as características e as circunstâncias típicas do real

social, bem como resgatar determinados valores que estavam em declínio na vida urbana. Ele

enfatiza o fundamento materialista como característico do Naturalismo:

De modo geral, 1870 marca no mundo uma revolução nas ideias e na vida, que

levou os homens para o interesse e a devoção pelas coisas materiais. Uma

geração apossou-se da direção do mundo, possuída daquela fé especial nas

coisas materiais. Haveria muito que discutir nesse período, inclusive a forma

de se dar a ideia de desenvolvimento, pela categoria de geração, mas não é

esse o problema aqui. O problema começa quando, na sequência da exposição,

surgem as características do naturalismo e, portanto, as diferenças entre as

duas “escolas” (SODRÉ, 1965, p. 28).

Sodré apresenta, por sua vez, como características do realismo:

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procura apresentar a verdade; procura essa verdade por meio do retrato fiel de

personagens; encara a vida objetivamente; fornece uma interpretação da vida;

retrata a vida contemporânea; retira a maior soma de efeitos do uso de

detalhes específicos; sua narrativa move-se lentamente; apoia-se sobretudo nas

impressões sensíveis. Se isso é o realismo, o que é o naturalismo? (Idem, p.

28).

Ainda de acordo com Sodré, historiador que nos fornece muitos elementos teóricos

para compreender a forma de abordagem da realidade social por meio destes gêneros

literários, afirma que, para diferenciar do realismo, o naturalismo é: “o realismo fortalecido por

uma teoria peculiar, de cunho científico, uma visão materialista do homem, da vida e da sociedade”.

(Idem, p. 28, grifo nosso). Observa-se, portanto, que o Naturalismo é um realismo aprofundado.

Na ânsia em mostrar o ser humano como um objeto de estudo experimental, ele é explicado a

partir de uma visão materialista, científica e social, assim como a ciência natural estuda,

analisa e explica seu objeto de estudo. O ser humano é observado em todos os sentidos, e

mostrado na literatura sob os princípios ou as leis que o rege e o torna como é e se comporta

na sociedade, bem como a sua relação com o meio natural e com a herança biológica, fatores

que determinam e condicionam a conduta dos indivíduos.

Um exemplo do naturalismo usado nas ciências sociais é a teoria das raças. Esta

teoria surgiu na Europa no século XIX, e teve o seu auge com o desenvolvimento do chamado

racismo científico. Quando essas teorias cientificistas chegaram ao Brasil, em fins do século

XIX, “o país ainda era escravista, com forte presença de traços típicos de uma ex-colônia, com a

economia débil e dependente – baseada em monocultura, latifúndio e exportação de bens primários –,

politicamente desestruturados e com infraestrutura urbana deficiente” (TAMANO, 2009, p. 759).

O Cortiço é um romance que fugiu da idealização da elite burguesa, sendo uma

aversão ao idealismo romântico precedente. Azevedo detalha na obra os momentos finais da

escravidão, a urbanização e o comportamento dos habitantes do Rio de Janeiro, pautado

principalmente na teoria determinista de Hippolite Taine, pensador influente que acreditava

que o sujeito é condicionado pela raça, pelo meio ambiente e pelo momento histórico. Além

do determinismo, foram referência as teorias científicas e de branqueamento das raças.

Cândido (1991), em sua obra De Cortiço a Cortiço, esclarece que o racismo pós-

abolição continuava vigente no Brasil, apoiado pela pseudociência antropológica que pensava

a mestiçagem local, o instinto racial, a raça inferior e o desejo de melhorá-la por meio do

contato redentor com a raça branca, considerada superior. Esta teoria das raças é chamada por

Cândido de racismo científico.

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Portanto, o realismo e o naturalismo, duas escolas literárias, tem muitos traços em

comum. O realismo procura retratar a realidade como é (opondo-se ao romantismo),

descrevendo-a; o naturalismo, por sua vez, procura explicar essa realidade social à luz das

teorias científicas das ciências naturais, em especial a biologia. Essa concepção cria sérios

problemas para a compreensão da complexa realidade humana, as relações desenvolvidas

entre os indivíduos nos diferentes grupos coletivos, problemas presentes na obra O Cortiço.

1.2– O Cortiço: uma representação da periferia urbana brasileira

Nesta parte vamos abordar, em linhas gerais, o contexto social urbano brasileiro no

período da Proclamação da República. Mais especificamente, será tratada a cidade do Rio de

Janeiro, capital nacional e espaço social retratado na obra literária em análise.

O Naturalismo embasado na obra O Cortiço, de Aluísio Azevedo, dialoga com a

história do Brasil no final do século XIX, o processo de transição do regime político imperial

para o republicano, assim como o avanço do projeto de sociedade burguesa. Com base na

observação e análise empírica, o escritor brasileiro descreve fatos do cotidiano vividos ou a

que estava condicionado a população da periferia urbana da capital federal.

Neste contexto social brasileiro da produção de O Cortiço, as ideias liberais

imprimiram um processo intenso de conflitos entre escravocratas e liberais que se expressam

em vários fatos relevantes da história, como descreve Sodré:

Começam com o encerramento da guerra com o Paraguai, a fundação do

Clube Republicano e do jornal A República, e o lançamento do Manifesto

Republicano, fatos do ano citados. Seguem, na seriação cronológica, com a

Lei do Ventre Livre, de 1871; a Questão Religiosa, em 1874; a libertação dos

sexagenários, em 1885; a Abolição e a Questão Militar, em 1888; a República,

em 1889; a primeira Constituição republicana, em 1891; o governo de

Floriano e a rebelião Federalista, em 1892; a campanha de Canudos, em 1897;

o primeiro junding-loan, em 1898 (1965, p. 158).

A cidade do Rio de Janeiro, capital e a de maior poder econômico do país, foi a que

mais sentiu as mudanças que culminaram na Abolição da Escravidão e na Proclamação da

República. De acordo com Carvalho (2004), a cidade alterou-se significativamente em termos

demográficos, ocorrendo uma intensa migração e imigração, principalmente de portugueses.

O número de habitantes negros lançados no mercado livre após a Abolição engrossou o

contingente de subempregados e desempregados, o surgimento das periferias populosas sem

infraestrutura, tendo como resultado o aumento expressivo da pobreza nas cidades.

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Segundo Alfredo Bosi apud Santos (2017), as transformações ocorridas na sociedade

brasileira no período em pauta consistem no processo de redução gradativa do poder político

ancorado nos interesses latifundiários e o fim da escravatura, tornando-se uma sociedade

sempre mais burguesa, urbana e com maior autonomia e liberdade interna. A crise da

economia açucareira foi um fator significativo para a crise enfrentada pela oligarquia agrária.

Essas mudanças sociais intensificaram o processo de migração para as cidades,

gerando o fenômeno da urbanização. Um problema enfrentado pela população pobre nas

cidades, apontado por Carvalho (2004) e Soihet (2004), é a “absoluta falta” de moradias. Essa

população procurava se estabelecer nas áreas centrais, próximo ao mercado de trabalho,

ocupando, em sua maioria, habitações coletivas, casas de cômodo ou cortiços.

Uma realidade resultante do processo de urbanização, e que aparece de forma

destacada na obra literária objeto deste estudo, é a desestruturação ou não adesão à família

tradicional. Nessa época, o casamento era um valor relevante para um número pequeno da

população branca que buscava se afirmar em termos morais através desta instituição social.

No entanto, grande parte da população negra não aderiu à constituição deste modelo de vida,

o que será visto como fator de comportamentos sociais não condizentes com os princípios

morais advogados pela elite dominante. Soihet (2004) explica que, mesmo se quisessem, os

pobres não teriam condições para regularizar suas famílias, sendo que o alto custo com as

despesas matrimoniais era um dos motivos que levava as camadas mais pobres a adotar o

regime de concubinato.

Os cortiços, áreas precárias de moradia e vivência dos pobres na periferia urbana,

passam a ser um incômodo para a sociedade burguesa. Esta exige a sua extinção porque era

geradora de comportamentos sociais detestados pela elite branca, além de ser visto como

espaço disseminador de epidemias, tais como a febre amarela e a varíola. Soihet afirma o

seguinte sobre esta questão:

Em relação ao Rio de Janeiro, face ao seu estatuto de capital da República e

cidade mais populosa do Brasil, urgia acelerar o seu projeto de modernização,

tornando-a cartão de visitas do progresso alcançado por todo o país. A

derrubada dos cortiços nas áreas do centro afigurava-se como indispensável,

inclusive porque eram considerados focos das epidemias que,

periodicamente, infestavam a cidade. A medicina e os interesses econômicos

uniram-se no propósito de transformar a velha cidade numa metrópole

moderna que deveria atrair capitais e homens estrangeiros. (SOIHET, 2004, p.

305-306, grifos nossos).

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O ambiente social retratado no O Cortiço é urbano, localizado no subúrbio do Rio de

Janeiro do final do século XIX. A pedreira de João Romão é símbolo da exploração. O

aglomerado de povos que viviam miseravelmente no cortiço era formado por lavadeiras,

passadeiras, crianças, velhos, mães solteiras, negros, mulatos, imigrantes portugueses e

italianos. O ambiente retratado neste espaço social é de festas, bebidas, violência verbal e

física, promiscuidade, sexo, predomínio da ação dos mais fortes sobre os mais fracos,

ausência de políticas públicas, etc. Carvalho descreve o ambiente de vivência nos cortiços:

O cortiço de Botafogo, descrito por Aluísio Azevedo, possuía no final mais de

400 casas e constituía uma pequena república com vida própria, leis próprias,

detentores da inabalável lealdade de seus cidadãos, apesar do autoritarismo do

proprietário. Aluísio, aliás, fala expressamente na ‘’república do cortiço’’. Ali

se trabalhava, se divertia, se fornicava, principalmente, se falava da vida

alheia e se brigava. (CARVALHO, 2004, p. 39).

Os personagens de O Cortiço são constituídos por brancos imigrantes, pretos e

mulatos, sendo estas duas últimas etnias consideradas a “ralé” da sociedade. O retrato social

da periferia urbana é identificado com temas relacionados à patologia social, miséria,

criminalidade, racismo, desequilíbrios psíquicos, incestos, bem como temáticas até então

ocultadas e evitadas pela literatura, tais como o sexualismo e o homossexualismo.

A narrativa da obra literária está organizada por Azevedo em 23 capítulos estruturados

em tempo natural ou cronológico. O autor, ao sequenciar o enredo, situa-o em horas, dias,

meses e anos: ‘’Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita luz e

pouco calor’’. Esta lógica de narração, como já apontamos, está alicerçada no cientificismo

dominante na época, tais como a precisão do tempo cronológico.

O cortiço é, na verdade, considerado o personagem principal da narrativa de

Azevedo e exerce uma grande influência sobre a vivência de seus habitantes: “Eram cinco

horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e

janelas alinhadas” (AZEVEDO, 2006, p. 30). O cortiço é visto como um corpo pulsante, de

vida intensa, onde os habitantes se constituem parte desta. A escola literária ao qual se filia a

obra literária em análise e o contexto social por ela retratada é fundamental para a

compreensão dos objetivos de Aluísio Azevedo com esta produção.

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2 – A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS NA OBRA

Esse tópico dedica-se a mostrar as principais personagens negras identificadas na

obra O Cortiço, sendo Bertoleza e Rita Baiana as mulheres mais representadas no contexto da

narrativa. Ao longo do enredo outras personagens negras ganharam sentido e expressão, tais

como a mulata Florinda e sua mãe Marciana. O objetivo neste espaço é retratar a

discriminação social e todo tipo de preconceitos sofridos pelas mulheres negras no cortiço.

As personagens na obra são uma representação típica da situação vivida pelas

mulheres negras em geral, a começar por suas moradias, o cortiço de João Romão, o trabalho

exercido, o tratamento pessoal e a violência de gênero que sofriam, a forma como eram vistas

aos olhos da elite burguesa num contexto de marginalização social. O preconceito racial das

mulheres negras representadas na obra em questão, para reforçar nosso argumento, é

analisado sob a perspectiva determinista e por meio das teorias científicas de viés positivista

e/ou naturalista.

Cândido (1991) enfatiza que no romance de Azevedo os brancos europeus, sobretudo,

os portugueses, eram considerados diferentes e superiores aos demais brasileiros. Ele afirma

que era vista como legítima a seguinte composição social (CÂNDIDO, 1991, p. 124):

BRANCO = EUROPEU; EUROPEU X MESTIÇO OU NEGRO = BRASILEIRO

Nesta hierarquia social naturalizada, as mulheres negras ocuparam a posição mais

baixa e deprimente da pirâmide social, não figurando como brasileiras. Rago faz a seguinte

descrição da situação social vivida por elas:

As mulheres negras, por sua vez, após a Abolição dos escravos, continuariam

trabalhando nos setores os mais desqualificados recebendo salários

baixíssimos e péssimo tratamento. Sabemos que sua condição social quase não

se alterou, mesmo depois da Abolição e da formação do mercado de trabalho

livre no Brasil. Os documentos oficiais e as estatísticas fornecidas por médicos

e autoridades policiais revelam um grande número de negras e mulatas entre

empregadas domésticas, cozinheiras, lavadeiras, doceiras, vendedoras de rua e

prostitutas, e suas fotos não se encontram nos jornais de grande circulação do

período – como o Correio Paulistano e O Estado de São Paulo ou o Jornal do

Comércio e A Noite, do Rio de Janeiro –, ao contrário do que ocorre com as

imigrantes europeias (RAGO, 2004, p. 487).

Já no primeiro capítulo da obra literária, a subordinação dos negros aos brancos é

identificada pelo narrador ao citar a posição da personagem Bertoleza diante de suas escolhas

ao aceitar o convite de João Romão para morarem juntos: “Bertoleza não queria sujeitar-se a

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negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua” (AZEVEDO, 1997,

p. 2, grifo nosso).

A situação se repete com a personagem Rita Baiana, considerada pelo escritor de

“volúvel como toda a mestiça’’. Quando viu que o português Jerônimo a queria, procurou

logo largar o praticante de capoeira Firmo, mulato como ela, porque "o sangue da mestiça

reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferiu no português o macho de raça

superior” (AZEVEDO, 2006, p. 156, grifo nosso).

Rita Baiana era mulata, solteira, sensual, embora vivesse em regime de concubinato

com o capoeirista e mulato Firmo, é narrada com bons olhos, quiçá a única que possui

atributos comparados à tropicalidade de sua terra: “ela era a luz ardente do meio dia; ela era o

calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que a

atordoava nas matas brasileiras” (AZEVEDO, 2006, p. 54). Ela era querida por todos no

cortiço, comunicativa, tinha um grande coração, mantinha sua própria independência,

autonomia e a nada se prendia; suas concepções eram à frente de seu tempo no tocante à

própria liberdade quando o assunto era casamento. “Casar? Protestou a Rita. Nessa não cai a

filha de meu pai! Casar? Livra! Para quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o

diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! Qual! Deus te livre!” (Idem, p. 56).

Na verdade, o casamento formal se constituía no “ideal mais elevado de realização”

apenas para as mulheres brancas da classe dominante (SOIHET). Entre as mulheres pobres do

cortiço, esta formalização da relação conjugal era exercida por uma minoria. Ainda de acordo

com esta autora

O fato é que no seio dos populares o casamento formal não preponderava. Isso

se explica não só pelo desinteresse decorrente da ausência de propriedades,

mas pelos entraves burocráticos. A dificuldade do homem pobre em assumir o

papel de mantenedor, típico das relações burguesas, é outro fator, ao que se

soma, em alguns casos, a pretensão de algumas mulheres de garantir sua

autonomia (SOIHET, 2004, p. 308).

Dadas às condições precárias de vida da população pobre, o ideal de vida das

mulheres negras e mulatas era outro quando comparado ao das mulheres da elite branca. Não

havia essa rigidez em relação a certos valores morais burgueses, tais como a virgindade antes

do casamento, e a própria institucionalização do casamento.

Quanto àquelas [mulheres] dos segmentos mais baixos, mestiças, negras e

mesmo brancas, viviam menos protegidas e sujeitas à exploração sexual. Suas

relações tendiam a se desenvolver dentro de outro padrão de moralidade

que, relacionado principalmente às dificuldades econômicas e de raça,

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contrapunha-se ao ideal de castidade. Esse comportamento, no entanto, não

chegava a transformar a maneira pela qual a cultura dominante encarava a

questão da virgindade, nem a posição privilegiada do sexo (SOIHET, 2004, p.

308, grifo nosso).

Davis (1983) explica que na segunda metade do século XIX a percepção do caráter

opressiva do casamento era recente. As feministas desta época começaram a descrever o

matrimônio como uma “escravidão” parecida ao sofrimento da população negra, mesmo

sabendo que a escravidão era muito pior do que o casamento. Devido ao patriarcalismo, essa

comparação implicou em algo que as mulheres brancas de classe média sentiam afinidades

com as mulheres e os homens negros, para quem a escravidão significava chicotes e correntes.

Nesse contexto da narrativa de Azevedo, há visibilidades de violência de gênero

sofrida pela personagem Rita Baiana, mesmo não estando casada. O seu relacionamento com

Firmo vinha de longe e “era uma coisa muito complicada”, cita o escritor. Eles brigavam por

causa dos ciúmes de Firmo:

Ele tinha ‘paixão’ pela Rita, e ela, apesar de volúvel como toda mestiça, não

podia esquecê-lo por uma vez; metia-se com outros, é certo que de quando em

quando, e o Firmo então pintava o caneco, dava por paus e por pedras, enchia-

a de bofetadas, mas, ao final, ia procurá-la, ou ela a ele, e ferravam-se de

novo, cada vez mais ardentes, como se aquelas turras constantes reforçassem o

combustível de seus amores (AZEVEDO, p. 60, 2006).

Esta situação configura uma violência doméstica contra as mulheres, embora Rita

apresente um desejo ou ideal de protagonismo, autonomia e liberdade feminina. Ela é

rebaixada por sua condição feminina porque Firmo, na condição masculina representado na

obra, tinha o “direito natural” de se sobrepor a ela: quando queria, “afogava-se em numa boa

pândega com a Rita Baiana. A Rita ou outra” (AZEVEDO, 2006, p. 59). Rita, mesmo

temendo o casamento, era condicionada numa perspectiva de liberdade que a mesma não

tinha consciência da real ausência da mesma ao sujeitar-se “às turras” de seu homem.

Segundo Duarte (2010, p. 24), “a mulata construída pela literatura brasileira tem sua

configuração marcada pelo signo da mulher fornicaria da tradição europeia, ser noturna e

carnal, avatar da meretriz”. Numa cultura patriarcal, a mulher mulata serve para satisfazer os

instintos masculinos em oposição ao desejo materno de também ser mãe, constituir família. A

mulher mulata deve, de preferência, estar livre para atender os desejos sexuais dos homens,

sejam eles brancos ou negros.

Isaura e Leonor são outras duas personagens na obra que representam as mulheres

negras. Elas são descritas pelo escritor como trabalhadoras domésticas e dando evidência à

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sua disposição para a prática sexual, utilizando os termos “tecnologia da obscenidade” para se

referir à sua esperteza em atrair os homens desejosos de relacionamentos íntimos. Nas

palavras do autor:

Isaura, mulata ainda moça, moleirona e tola, que gastava todo vintenzinho que

pilhava em comprar capilé na venda de João Romão; uma negrinha virgem,

chamada Leonor, muito ligeira e viva, lisa e seca como um moleque,

conhecendo de orelha, sem lhe faltar um termo, a vasta tecnologia da

obscenidade (AZEVEDO, 2006, p. 25, grifo nosso).

Ainda sobre o casamento, que é um assunto que emana discussões em torno das

mulheres negras representadas por Azevedo no romance O Cortiço, não é mostrado nenhuma

mulher negra casada e com filhos nos moldes defendidos pela elite burguesa. Durante a Belle

époque (1890 a 1920), instaurada pela ordem burguesa, a modernização e a higienização do

país era defendida com a intenção de tornar os hábitos civilizados, inspirado no modelo

parisiense. No entanto, a estrutura da família das classes populares não seguia o padrão

idealizado, assumindo uma multiplicidade de formas, com inúmeras famílias chefiadas por

mulheres sós, evidenciado pelas dificuldades econômicas, às normas e valores diversos que

são próprios da cultura popular.

Marciana, a mulata mais antiga do cortiço, é descrita por Azevedo como “muito séria

e asseada em exagero”. Sua casa sempre estava húmida pelas constantes lavagens, pois,

quando estava de mau humor, punha-se a varrer e a limpar. Era mãe solteira, sendo a única

negra do cortiço que é apresentada com uma filha de 15 anos, de nome Florinda.

Florinda é descrita como garota atraente, desejada pelos homens do cortiço. Nas

palavras do escritor, ela tem:

Pele de um moreno quente, beiços sensuais, bonitos dentes, olhos luxuriosos

de macaca. Toda ela estava a pedir homem, mas sustentava a sua virgindade e

não cedia, nem a mão de Deus Padre, e aos rogos de João Romão, que a

desejava apanhar a troco de pequenas concessões na medida e no peso das

compras que Florinda fazia diariamente na venda (AZEVEDO, 2006, p. 34).

Em alguns momentos no enredo esta personagem é assediada pelo vendeiro da loja

de João Romão que, ao passar por ela enquanto apanhava roupas no chão, “ferrou-lhe uma

palmada na parte do corpo então mais em evidência”. Ela, por sua vez, erguendo-se, grita e

tenta se defender. Florinda, ao se encontrar com João Romão, acusa o vendeiro de roubar a

venda no peso, xinga-o de “diabo do galego, eu não te quero, sabe”! Quando João Romão já

havia se retirado, o vendeiro soltou-lhe uma palmada com mais força e saiu correndo porque

ela se armara com um regador cheio de água, relata Azevedo (2006, p. 42).

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Florinda, no desenrolar do enredo, é deflorada por Domingos e engravida. Sua mãe

Marciana fica histérica com a situação: “trêmula de raiva, fechou a porta da casa, guardou a

chave no seio e, furiosa, caiu aos murros em cima da filha” (AZEVEDO, 2006, p.89). A

personagem sofre violência física por parte da mãe porque, inicialmente, ela não queria contar

quem a engravidou. Após a descoberta, a mãe vai em busca da reparação do “erro”:

Marciana, sem largar a filha, invadira a casa de João Romão e perseguia

Domingos que preparava já sua trouxa.

– Então? Perguntou- lhe. Que tenciona fazer?

Ele não deu resposta.

– Vamos, vamos, fale! Desembuche!

– Ora, lixe-se! Resmungou o caixeiro, agora muito vermelho de cólera.

– Lixe-se, não!... Mais devagar com o andor! Você há de casar: ela é menor!

Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha.

– Ah, sim? Bradou esta. Pois veremos! (AZEVEDO, 2006, p. 92).

Marciana lutou pela honra da filha, mas esta foi duplamente enganada. João Romão

prometeu pagar o dote à menina, no entanto, com isso aproveitou-se da situação para não

pagar ao caixeiro o que lhe era de direito. Em meio às discussões, com a mãe amparada pelas

mulheres do cortiço que foram à venda atrás de Domingos para dar-lhe uma “lição”, João

Romão disse que ele casaria com ela senão lhe pagaria o dote por direito. No entanto, ele

ajudou o caixeiro a fugir e o dote não foi pago.

A mãe foi em busca dos direitos da filha na lei por ser menor:

Marciana foi com a pequena à procura do sub-delegado e voltou aborrecida

porque lhe disseram que nada se poderia fazer enquanto não aparecesse o

delinquente; andaram em busca de justiça, secretarias, estação de polícia. Mas,

quando lhe perguntavam quanto dispunha para gastar com o processo, as

despacharam sem mais considerações logo que se inteiravam da escassez de

recursos de ambas as partes (AZEVEDO, 2006, p. 101).

Soihet (2004) comenta que a lei em nada favorecia as mulheres. Nesse caso, as

solteiras que se deixassem desvirginar perdiam o direito a qualquer consideração, e no caso de

uma relação ilegítima, os homens não se sentiam responsabilizados porque a honra da mulher

se baseava na ausência do homem por meio da virgindade ou pela presença masculina no

casamento, caso contrário, caía sobre as mulheres a responsabilidade e o peso das

consequências do “erro”.

Florinda, grávida, maltratada pela mãe, não vê outra saída a não ser sair de casa, o

que a conduziu à prostituição, pois, além de pobre, não tinha apoio familiar na situação em

que se encontrava. Marciana, ao ver que perdera a filha, ficou em estado de choque,

monologava o tempo todo. João Romão ordenou que desocupasse o cômodo. Após ser

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afrontado por sua fúria, esbravejou: “este galego é que teve a culpa de tudo! Maldito sejas tu,

ladrão! Se não me deres conta de minha filha, malvado, meto fogo na casa!” (AZEVEDO,

2006, p. 102). Marciana foi expulsa de sua habitação. Por influência de João Romão, um

policial a levou presa.

Esse contexto retrata os abusos duplamente sofridos por Marciana: na condição de

mulher e de mulher negra. No contexto geral elas eram qualificadas de “vagabundas”, termo

que durante o Império configurava quem não trabalhava e não produzia lucros para a

sociedade. Logo, por sua condição social, não lhe era dado o devido respeito, sofrendo

assédios, preconceitos, estereótipos, animalização e anulação de seus direitos.

Outro aspecto que merece ser destacado é o fato de ter sido comum na literatura

alinhada ao Naturalismo a equiparação dos pobres aos animais. No caso das mulheres negras,

elas foram rebaixadas à condição de “bestas de carga”, como afirma Cândido (1991). Essa

animalização é um preconceito imposto principalmente às mulheres negras que estavam

sujeitas ao trabalho escravo e à exploração sexual. No O Cortiço os personagens pobres

sempre são considerados e equiparados aos animais e à carga. Esse retrato feito por Azevedo

mostra que o zoomorfismo é uma das grandes influências recebidas pela literatura naturalista,

a qual remete aos personagens e determina o que são perante aos olhos da sociedade.

De acordo com Beltran (2011), o zoomorfismo dá-se as coisas ou seres humanos

características que são próprias dos animais, agindo predominantemente através dos instintos.

Exemplos, entre muitos outros que poderiam ser apresentados, de atribuição de

comportamentos próprios dos animais à forma de ser dos pobres do cortiço, em especial as

mulheres negras, ou seja, a animalização dessa população na obra de Azevedo:

[...] ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida que

esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele [...]

[...] compreendeu perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos,

brilhantes e cheirosos da mulata principiavam a formar um ninho de cobras

negras e venenosas que iam devorar o coração [...]

[...] trabalhando [ela] e mais a amiga como uma junta de bois [...]

[...] ululando como uma cadela de quem roubaram o cachorrinho (AZEVEDO,

2006, pág. 13, 70-71 e 107).

A comparação dos seres humanos aos animais ou o rebaixamento do seu nível

racional aos instintos próprios dos animais expressa a representação feita pela elite burguesa

em relação aos pobres negros da periferia urbana, aos moradores em cortiços. Trata-se de uma

discriminação social em todos os sentidos, agravada em relação às mulheres negras. Essa

marginalização social e a discriminação, inclusive sua definição como seres inferiores pela

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elite branca dominante, perpassa explícita e implicitamente toda a história brasileira posterior

a 1890, data de publicação de O Cortiço.

No momento de redação deste texto (2018), deparamo-nos com um discurso e

práticas idênticas de políticos quando se referem às chamadas minorias étnico-sociais que se

encontram em situação social de marginalização na atualidade, e tratadas desta forma.

A forma como são vistas e tratadas as mulheres negras pela sociedade elitista no final

do século XIX e a maneira como são retratadas na obra literária objeto deste estudo fica clara

a vinculação deste olhar a uma concepção de sociedade hierárquica e excludente

fundamentada na teoria positivista e na literatura alinhada à vertente naturalista. As

desigualdades sociais e as diferenças de gênero, de raça, de etnia, de sexualidade, etc. são

vistas como naturais, ou seja, são naturalizadas. Cria-se uma série de preconceitos, e que são

justificados por esta concepção teórico-filosófica desenvolvida no século XIX e vigente até os

dias atuais. As mulheres negras são as que mais padecem com essas práticas discriminatórias,

como é mostrado e justificado por Azevedo.

3 – MULHERES NEGRAS NA CONTEMPORANEIDADE: PERMANÊNCIAS

E MUDANÇAS NO PROCESSO DE SUA EMANCIPAÇÃO

Falar das mulheres negras na contemporaneidade é buscar definir explicações para

várias teorias que descrevem um passado distante e ao mesmo tempo presente no tocante às

respostas que anseiam uma verdade plausível para o sofrimento que essas mulheres tiveram e

têm no contexto sócio histórico para a conquista de autonomia, identidade e respeito em todos

os aspectos da sua vida. Nesta parte do texto queremos tratar brevemente o processo de luta

emancipadora das mulheres negras.

Antes de abordar as mudanças e a emancipação obtidas ao longo do tempo, o poema

‘’Mulata exportação’’ de Elisa Lucinda (2009) representa a situação de suborno que a mulher

negra tem vivido e buscado se libertar em relação ao mundo patriarcal e racista.

Mas que nega linda3

E de olho verde ainda

Olho de veneno e açúcar!

3 LUCINDA, Elisa. Mulata exportação. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/de-elisa-lucinda-mulata-

exportacao/>. Acesso em: 22 set. 2018.

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Vem nega, vem ser minha desculpa

Vem que aqui dentro ainda te cabe

Vem ser meu álibi, minha bela conduta

Vem, nega exportação, vem meu pão de açúcar!

(Monto casa procê mas ninguém pode saber, entendeu meu dendê?)

[...]

Digo, repito e não minto:

Vamos passar essa verdade a limpo

porque não é dançando samba

que eu te redimo ou te acredito:

Vê se te afasta, não invista, não insista!

Meu nojo!

Meu engodo cultural!

Minha lavagem de lata!

Porque deixar de ser racista, meu amor,

não é comer uma mulata.

Quando se fala em mulheres negras é preciso abordar sua identidade acima de tudo.

Couto (2016) ressalta que as mulheres negras brasileiras vêm se organizando na defesa de sua

identidade e pontuando suas diferenças dentro do próprio movimento negro e no movimento

feminista. O maior desafio ainda hoje é conseguir ressignificar uma identidade feminina que

se faz presente no imaginário social brasileiro, representada apenas pela ideia de um corpo.

Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos

como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras,

prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas

disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte

de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de

frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. São suficientemente

conhecidas as condições históricas nas Américas que construíram a relação de

coisificação dos negros em geral e das mulheres negras em particular.

Sabemos, também, que em todo esse contexto de conquista e dominação, a

apropriação social das mulheres do grupo derrotado é um dos momentos

emblemáticos de afirmação de superioridade do vencedor. Hoje, empregadas

domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação

(CARNEIRO, 1994, p. 190-191).

O Feminismo Negro no Brasil surgiu no final da década de 1970 protagonizado por

mulheres negras que tinham o intuito de trazer visibilidade às suas pautas e reivindicar seus

direitos em posição de igualdade junto aos homens negros.

Já Ribeiro (2015) pontua que bem antes disso as mulheres negras desafiavam o

sujeito mulher determinado pelo feminismo, onde a situação da mulher negra era radicalmente

diferente da situação da mulher branca. Enquanto as mulheres brancas lutavam pelo direito ao

voto, ao trabalho, ‘’as mulheres negras lutavam para serem consideradas pessoas’’.

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Em 1851, Sojourner Truth, ex-escrava que se tornou oradora, fez seu famoso

discurso intitulado “E eu não sou uma mulher?” na Convenção dos Direitos

das Mulheres em Ohio [EUA]. Dentre alguns questionamentos, ela diz:

“Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa

carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem

ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa

carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou

uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei,

juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou

uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando

tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou uma mulher?

Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando

manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou

uma mulher? 4

Esta fala é em si extremamente libertadora. Ainda mais considerando o país e o

contexto social da época. Somente 100 anos depois o movimento dos negros tomou as ruas

das principais cidades americanas em protestos contra o racismo e em favor da universalidade

dos direitos civis. Portanto, não foi ainda especificamente o movimento das mulheres negras.

Compreende-se que a participação efetiva de mulheres negras em movimentos

sociais ocorreu a partir do 3º Encontro Feminista Latino-Americano ocorrido em São Paulo,

na cidade de Bertioga, em 1985. Neste evento objetiva-se trazer à tona a visibilidade política

das mulheres negras, sendo que durante décadas houve rejeição por parte de algumas

mulheres negras em aceitar a identidade feminista. E isso acontecia devido ao fato de não se

identificarem com o movimento que era formado a princípio exclusivamente por mulheres

brancas e de classe média, assim como pela falta de empatia em perceber que mulheres negras

tinham como objetivos e pontos de partida diferentes para a luta, especificidades que

precisavam ser priorizadas.

O Enegrecendo o feminismo apresentado por Carneiro (2003), explica que esse

movimento veio de encontro as questões raciais que envolvia/envolvem as mulheres negras na

sociedade, em uma representatividade considerada a expressão utilizada para designar a

trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro.

Buscamos assinalar, com ela, a identidade branca e ocidental da formulação

clássica feminista, de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e

prática política para integrar as diferentes expressões do feminino construídos

em sociedades multirraciais e pluriculturais. Com essas iniciativas, pôde-se

4 RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? apud TRUTH, Sojourner. Uma ex- escrava que se

tornou oradora, fez seu famoso discurso em 1851, intitulado “E eu não sou uma mulher?” na Convenção dos

Direitos das Mulheres em Ohio. Disponível em < http://lugardemulher.com.br/quem-tem-medo-do-feminismo-

negro/> Acesso em 30 out. 2018.

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19

engendrar uma agenda específica que combateu, simultaneamente, as

desigualdades de gênero e intragênero; afirmamos e visibilizamos uma

perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher,

negra e, em geral, pobre, delineamos, por fim, o papel que essa perspectiva

tem na luta antirracista no Brasil. (CARNEIRO, 2003, p. 118)

O significado de emancipação da mulher negra deve ser compreendido do ponto de

vista de suas lutas e conquistas, desde o trabalho doméstico do século XIX, onde era mais

difícil a sua participação nas organizações sindicais, segundo Davis (2016). Durante décadas

as mulheres brancas e até feministas demonstraram pouca importância em reconhecer as lutas

das trabalhadoras domésticas, bem como em melhorar suas condições de trabalho, sendo

tratadas semelhantemente à dinâmica do relacionamento entre senhor e escravo e/ou senhora e

empregada. Mesmo com o advento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a ocupação

das mulheres negras nas fábricas, o número de empregadas domésticas negras ainda perfazia

quase 60%.

Carneiro (2003) explica esta diferenciação nas lutas entre as mulheres brancas e

negras:

O racismo estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da população

em geral e das mulheres negras em particular, operando ademais como fator de

divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as

mulheres brancas. Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a

opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação

política feminista e antirracista, enriquecendo tanto a discussão da questão

racial, como a questão de gênero na sociedade brasileira. 5

Tiburi (2018) explica que essa condição no interior do mesmo gênero já vem de

berço, ou seja, a condenação de uma classe social, de uma raça e de outras marcações que não

permitem escolhas, onde a possibilidade de emancipação contra a opressão só advém de

muitas lutas. A realidade vigente ainda está longe de configurar o esperado no tocante à

valorização do trabalho e o respeito dado às mulheres negras.

Constata-se que essas mulheres negras precisam criar suas próprias formas de

sustento, mesmo tendo uma graduação e preparo para exercer a profissão. Não há vagas para

muitas delas, impondo-lhes uma vida de subemprego no que se refere ao mundo do trabalho.

Uma das principais lutas das mulheres negras no presente é alcançar total

visibilidade e inserção social, conseguir um emprego formal, uma boa profissão para buscar

5 CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na américa latina a partir de

uma perspectiva de gênero. Disponível em: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/375003/

mod_resource/content/0/Carneiro_Feminismo%20negro.pdf > Acesso em: 10 nov. 2018.

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20

viver dignamente. Além desse direito social, almejam ingressar no ensino superior, evitar uma

jornada tripla de trabalho, ser respeitada por sua cor, ser reconhecida como sujeito mulher

negra e não por sua classe social, e ter os mesmos direitos humanos usufruídos pelas mulheres

e homens brancos, etc. Há uma longa trajetória de lutas a ser protagonizada pelas mulheres

negras no combate à discriminação social enquanto classe, à violência de gênero e ao racismo,

principalmente nas favelas do país. Essas dificuldades do cotidiano, para serem solucionadas,

dependem do protagonismo das mulheres negras. Estas devem ser os principais sujeitos de

sua emancipação social e subjetiva das múltiplas formas de opressão e discriminação. Estas

questões não tinham como ser retratadas no O Cortiço devido às orientações teóricas

naturalista/positivista que orientaram a produção literária de Aluísio Azevedo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Cortiço de Aluísio Azevedo inova o romance brasileiro ao trazer para a sociedade

uma nova perspectiva literária, mostrando as mazelas sociais condizentes com a realidade

histórica, cultural e social do país nas últimas décadas do século XIX. Esta narrativa é

fundamentada em determinadas teorias científicas, filosóficas, principalmente o determinismo

propugnado por Taine, apontando como causas determinantes do comportamento social o

meio ambiente, a raça e o contexto social.

As personagens negras retratadas por Azevedo são descritas e o comportamento

social explicado pelo pensamento determinista vigente na época. O Naturalismo literário

permite uma determinada análise das mulheres negras e, inclusive, define-as por uma

caracterização zoomórfica, rebaixando-as à condição animal. Nenhuma personagem negra

retratada na obra se emancipou das opressões e discriminações sociais: cada uma teve o seu

desfecho vinculado aos seus aspectos histórico, cultural e social visto como determinantes de

sua forma de ser.

A observação do escritor traz reflexões acerca de como os negros são vistos e

tratados pela sociedade elitista e branca, sendo sujeitos marcados pelo conflito e por relações

de poder de poder discriminatórios, vistos de acordo com uma ideologia social e política

fundamentada no conhecimento científico de matriz positivista/naturalista. Trata-se de uma

visão que não cooperava para a humanização dos diferentes segmentos sociais, incluindo o

respeito à cor; ao contrário, concebia os negros como mancha social e perpetuaram

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estereótipos que se propagaram para além do tempo de produção da obra, sendo uma

realidade que ainda nos envergonha nos dias atuais.

Na contemporaneidade, portanto, ainda se visualiza o rebaixamento das mulheres

negras com base em terias de matriz naturalista, isso ao serem rechaçadas por sua cor, como

foi o caso vivido pela judoca Rafaela Silva, vítima de racismo, após sua desclassificação nas

Olímpiadas de 2016: a atleta foi chamada pelo twitter de "macaca" (Jornal O GLOBO, 2016).

Quando o assunto é a luta das mulheres negras por igualdade na sociedade, nota-se

que superar a hegemonia masculina perpetuada ao longo da história ainda é um desafio

inerente à realidade contemporânea a ser superada. Haja vista que a voz que mais clama é as

vozes femininas negras, classificadas socialmente como as mais vulneráveis, necessitando a

superação das ideologias patriarcais e racistas, ou seja, as opressões de gênero e de raça.

Nesse ínterim, novos caminhos de luta vêm direcionando a ações políticas antirracistas e de

gênero que impulsionam o protagonismo das mulheres negras para a emancipação subjetiva e

social.

REFERÊNCIAS

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