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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA 30ª. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA “POLÍTICAS DA ANTROPOLOGIA: ÉTICA, DIVERSIDADE E CONFLITOS” GT 051 Políticas das drogas: éticas de consumo, diversidade das práticas e conflitos acerca de seu controle. O “remédio” da legalização: os usos medicinais da maconha e a agenda antiproibicionista no Rio de Janeiro Emilio Figueiredo 1 , Frederico Policarpo 2 , Marcos Veríssimo 3 Introdução A discussão fora envolvente e acalorada durante aquela reunião semanal da Associação Brasileira para Cannabis ABRACannabis , grupo fundado por ativistas pela legalização e por usuários medicinais de maconha (Cannabis sativa L.). Fundada em março de 2015, na cidade do Rio de Janeiro, como uma associação civil de direito privado e sem fins lucrativos, de abrangência nacional, vem promovendo ações em duas frentes bem definidas: 1) na assistência a usuários medicinais desta planta posta na ilicitude; e 2) na promoção e difusão de estudos que contribuam para a construção do conhecimento sobre o tema das “drogas” em geral, abrangendo de saberes naturalísticos a políticas, passando pelos campos do direito, áreas médicas e da antropologia, entre outros. No que concerne à assistência a pessoas com doenças cujo uso da maconha alivie sintomas ou propicie melhor qualidade de vida ao doente, ajudam no contato com as redes que doam gratuitamente derivados ou mesmo a planta in natura prática enquadrada na lei como tráfico. A única precaução, por medida de segurança, é solicitar às pessoas que necessitam do remédio a apresentação da prescrição médica de um profissional legalmente habilitado. Já com relação à produção do conhecimento, os membros da associação, de forma individual, têm promovido oficinas, mini-cursos e debates funcionando também como um canal para a difusão 1 Advogado/ Consultor Jurídico do Growroom. ([email protected]) 2 Professor adjunto de Antropologia no curso de Políticas Públicas na Universidade Federal Fluminense e pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia/ Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP). ([email protected]) 3 Universidade Federal Fluminense (UFF)/ Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia/ Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC). ([email protected])

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

30ª. REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA

“POLÍTICAS DA ANTROPOLOGIA: ÉTICA, DIVERSIDADE E CONFLITOS”

GT 051 – Políticas das drogas: éticas de consumo, diversidade das práticas e

conflitos acerca de seu controle.

O “remédio” da legalização: os usos medicinais da maconha e a agenda

antiproibicionista no Rio de Janeiro

Emilio Figueiredo1, Frederico Policarpo2, Marcos Veríssimo3

Introdução

A discussão fora envolvente e acalorada durante aquela reunião semanal da Associação

Brasileira para Cannabis – ABRACannabis –, grupo fundado por ativistas pela legalização e por

usuários medicinais de maconha (Cannabis sativa L.). Fundada em março de 2015, na cidade do

Rio de Janeiro, como uma associação civil de direito privado e sem fins lucrativos, de

abrangência nacional, vem promovendo ações em duas frentes bem definidas: 1) na assistência a

usuários medicinais desta planta posta na ilicitude; e 2) na promoção e difusão de estudos que

contribuam para a construção do conhecimento sobre o tema das “drogas” em geral, abrangendo

de saberes naturalísticos a políticas, passando pelos campos do direito, áreas médicas e da

antropologia, entre outros.

No que concerne à assistência a pessoas com doenças cujo uso da maconha alivie

sintomas ou propicie melhor qualidade de vida ao doente, ajudam no contato com as redes que

doam gratuitamente derivados ou mesmo a planta in natura – prática enquadrada na lei como

tráfico. A única precaução, por medida de segurança, é solicitar às pessoas que necessitam do

remédio a apresentação da prescrição médica de um profissional legalmente habilitado. Já com

relação à produção do conhecimento, os membros da associação, de forma individual, têm

promovido oficinas, mini-cursos e debates funcionando também como um canal para a difusão

1 Advogado/ Consultor Jurídico do Growroom. ([email protected]) 2 Professor adjunto de Antropologia no curso de Políticas Públicas na Universidade Federal Fluminense e

pesquisador no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia/ Instituto de Estudos Comparados em

Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre

Psicoativos (NEIP). ([email protected]) 3 Universidade Federal Fluminense (UFF)/ Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia/ Instituto de

Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC).

([email protected])

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dos resultados de estudos em diversas áreas, tais como a medicina, o direito, a botânica, a

antropologia etc., o que acaba contribuindo também para a articulação em rede de pesquisadores

de diferentes áreas.

Já como um coletivo, recentemente a ABRACannabis começou a planejar a realização

de um curso de autocultivo direcionado para os pais, mães e familiares, bem como para os

pacientes que necessitam do extrato do óleo da cannabis. Os próprios membros da associação

estão montando o curso, que abrange uma ampla gama de assuntos que cercam a cannabis,

desde as considerações políticas e históricas da proibição, passando pelas técnicas de cultivo até

o ensino sobre a fisiologia da planta. Como uma jovem associação de adesão voluntária e

horizontal e que conta com um grupo bem diversificado de membros, não é de se estranhar que

as discussões sejam atravessadas de controvérsias.

E os dissensos que tornaram a reunião envolvente e acalorada, como já dissemos,

refletem de forma bastante clara essa fase de construção, de institucionalização, desta ousada

associação. Mais precisamente, de uma associação cujo objetivo é não apenas legalizar o

cultivo, mas também militar pela construção da verdade segundo a qual a maconha não é

propriamente uma “droga”, que está muito mais próxima de um “remédio”, e, definitivamente,

deve ser vista como uma planta. Portanto, a ABRACannabis é um agente ativo nos processos de

construção social da realidade (Berger e Luckmann, 2004) acerca da maconha, lutando pela

legalização do cultivo de uma planta cujas possíveis apropriações medicinais a colocam como

centro das atenções em campos distintos, a exemplo do político e do acadêmico.

Logo na abertura do site que puseram no ar na internet, encontramos a seguinte

definição dos objetivos da ABRACannabis:

Promover, consolidar e expandir a inclusão social e o respeito aos direitos humanos

principalmente dos pacientes de cannabis medicinal, nas suas diversas

expressões, criando uma cultura de acolhimento, autonomia e superação dos

preconceitos e discriminações. Atuar na educação e conscientização quanto

aos usos da planta e contribuir na reforma das Leis e Políticas Públicas. (ABRA

Cannabis)

Desse modo, na hora de pôr em prática o princípio enunciado, não é de se estranhar

quando surgem os dissensos. Naquele dia, a notícia de que a associação receberia de aliados no

exterior a remessa de centenas de frascos de CBD (canabidiol, um dos canabinóides presentes

na composição da planta, cujo uso medicinal isolado para o alívio de sintomas de síndromes

raras tem sido muito difundido no Brasil e no mundo), provocou controvérsias. A associação

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repassaria gratuitamente o remédio para os pacientes. Um dos membros da associação fez

questão de lembrar aos outros que um dos objetivos centrais daquele empreendimento político

era construir a legalidade do cultivo da maconha, da produção da planta (que entre outros usos

funciona como “remédio”), e não figurar como “ponte”, ou mesmo “reserva de mercado” para

empreendimentos comerciais ou filantrópicos provenientes de outros países visando o

consumidor ou paciente brasileiro.

O acordo em relação a isso foi o de que era necessário explicitar por canais de

comunicação e redes sociais que a associação aceitava funcionar como “ponte” naquele caso,

mas em caráter emergencial, em nome do princípio da compaixão para possibilitar o rápido

acesso ao medicamento. Afinal, já havia demanda para isso, e o que membros da associação

conseguiam produzir começavam a não dar conta da necessidade (assunto freqüente nas

reuniões). Mas, principalmente, seria necessário aproveitar o ensejo, a exceção, para reafirmar o

foco, a regra que intentam construir: a legalização do cultivo da planta. Legalizar o cultivo e

regular os mercados desta planta vista há quase um século no Brasil como “droga”, com base na

redescoberta recente de seus usos como remédio.

Ou seja, seus usos bem sucedidos no tratamento de sintomas de males incapacitantes,

que causam atraso no desenvolvimento psicomotor em crianças, certamente subverteu antigas

reificações. A maconha ganhou recentemente destaque na agenda pública a partir das mães que

demandam o remédio para aliviar os males sofridos pelos seus filhos. É justamente a partir

destas configurações e dessa nova reificação (maconha = remédio) que a ABRACannabis se

forma.

Resolvidas as questões mais ou menos ideológicas, a discussão se inclinou para

preocupações mais ou menos práticas. Em caso de a procura ser grande (uma possibilidade),

como definir quem recebe ou deixa de receber, quem recebe na frente, o remédio doado do

exterior? Que critérios utilizar? Apareceram dois principais: o clínico e o social. De acordo com

o primeiro critério, deveriam ser priorizados os mais gravemente adoecidos. E aí mais

discussão: quem definiria os casos que se enquadram ou não nestes critérios? Já do segundo

ponto de vista, o social, os mais pobres, sem recursos para arcar com os custos, é que deveriam

ter a precedência nesse fornecimento gratuito. E de novo surgiu a pergunta: quais critérios

adotar? A questão central que sempre voltava à tona nessa discussão é se a associação teria

autonomia para distribuir os frascos de CBD como quisesse ou se seria o fornecedor o

responsável pela seleção das pessoas escolhidas. Quanto a isso, parece que todos concordaram

que a associação teria que ter um protagonismo maior do que simplesmente servir de

intermediária entre o fornecedor e as pessoas. Por fim, a conclusão foi a de que se formaria uma

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junta de membros da associação, no caso, a maioria da assim compreendida “área da saúde”,

mas os critérios sociais também deveriam ser levados em conta.

Como vimos, a reunião estava bastante produtiva, com várias deliberações. Havia um

pesquisador de São Paulo que fora à reunião a convite de um dos membros da associação. Este

ofereceu ao visitante uma prova de bud (flor da maconha) 4 oriunda de seu próprio cultivo, já

confeccionada em forma de cigarro. Outros participantes entenderam a situação e se retiraram,

junto com os dois, alguns também com cigarros confeccionados, para uma sala contígua àquela

onde a reunião acontecia, na sede da associação. Acontece que um dos acordos firmados entre

os membros, desde a fundação da ABRACannabis, foi o de que só fumariam maconha após

finda a reunião, o que não era o caso. Contudo, desde o início, essa regra nunca foi seguida à

risca. Sem qualquer tipo de prejuízo para o andamento da reunião ou qualquer demonstração de

desprezo pelo assunto em pauta. Esse era o clima até então.

Nesse dia, porém, uma das integrantes do grupo, fundadora, tida como um importante

quadro da associação, e também “mãe” – como será discutido adiante – entrou no lugar onde a

roda de fumo transcorria animadamente – e até mesmo de maneira barulhenta – para lembrá-los

do acordo e reprimir a prática. As pessoas se olharam entre si, algumas estranhando um pouco o

que acontecia, e fizeram brincadeiras. Aquele que fizera o convite ao amigo paulista, iniciando

assim a transgressão, foi justamente quem disse: “Ela está certa... vamos voltar pra reunião...

no final a gente fuma”. E assim foi feito. Apagaram-se temporariamente os cigarros,

domesticando o exercício da liberdade em prol do exercício da democracia (uma vez que a regra

de fumar só ao final fora deliberada democraticamente entre os membros), aproveitando ainda o

ocorrido para enunciar publicamente estes valores democráticos como uma marca de seus

processos de tomada de decisão.

Mais próximo do final da reunião, teve lugar uma discussão de caráter mais conceitual,

por assim dizer. Alguém falou em usos “recreativos” em oposição aos usos “medicinais”. Foi

então que um dos membros da associação explicitou, eloqüentemente, sua crítica ao uso do

conceito de “uso recreativo” da maconha. “Se não é recreativo é o que?” – perguntaram. E o

que ele respondeu foi: “É social... é ritual... depende do contexto” – e depois concluiu: “É

como no caso do álcool... você já viu alguém falar que bebe uísque de forma recreativa? Ele

bebe socialmente, não é?”.

Ou seja, se uma verdade construída em torno do consumo de bebidas alcoólicas é a de

que se pode fazer um uso social das mesmas, o mesmo raciocínio deveria valer para uma

modalidade do uso da maconha (mal-entendida, segundo nosso interlocutor, como “recreativa”).

4 A parte da planta consumida pelos cultivadores, onde estão concentradas as propriedades psicoativas e

medicinais da maconha.

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Contudo, esta noção de “uso recreativo” é usada, academicamente e no senso comum, em

correspondência com usos não problemáticos. E mais, que esse uso social, como acontece no

caso dos consumos de bebidas alcoólicas, seja também, no caso da maconha, um aspecto

legitimador a ser considerado para as regulações mais liberalizantes de seus consumos e

mercados.

Deste modo, dando conta de suas questões – sejam estas de caráter ideológico, prático,

ou conceitual – este grupo de ativistas, alguns cultivadores, alguns declaradamente pacientes

medicinais da maconha, pesquisadores, médicos, familiares de pacientes – empreendem, se

envolvem (uns de maneira mais, outros menos, visceral) com os processos de mudança social,

política e legal que giram em torno da construção social da verdade segundo a qual uma planta

proibida de germinar e crescer em grande parte do mundo é também um “remédio”. No Brasil,

em janeiro de 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), órgão ligado ao

Ministério da Saúde, retirou o canabidiol (CBD), mas não a maconha, a planta, da lista de

substâncias proibidas no país. Sendo assim, a ação política continua sem trégua para nossos

interlocutores.

Em conformidade com os objetivos do projeto intitulado “Os pacientes de maconha

medicinal, a lei e a medicina: produzindo dados para o debate em torno do Canabidiol”,

elaborado pelos autores do presente capítulo, submetido e aprovado no Edital CNPq/MCTI N°

25/2015, empreendemos uma etnografia das reuniões da ABRACannabis no intuito de observar

de perto o movimento original que é esta forma de associativismo. Sendo assim, propomos a

partir de agora trabalhar em separado alguns aspectos desta etnografia, em especial explicitados

na citada reunião que serviu de material para a elaboração destas linhas introdutórias.

Dentro da associação, figuramos na qualidade de “pesquisadores”, e sob essa identidade

somos também agentes atuantes nestas discussões. Desse modo, nossa busca por reflexividade

na escrita e na formulação de modelos interpretativos se dá num campo em que prováveis

justaposições entre estarmos como “pesquisadores” (um papel entre os atores do campo) ao

mesmo tempo em que exercemos a criação como “pesquisadores” (que realizam a pesquisa e

produzem o texto) envolvem desafios. Ao invés de evitar ou negar esta justaposição, tentaremos

utilizá-las de modo produtivo, reflexivo e não ingênuo. Essas aproximações nos permitem,

portanto, dar a devida importância ao conhecimento e aos idiomas experienciais dos próprios

consumidores de drogas (Policarpo, 2010). É levando em consideração essa problematização

que pretendemos verificar como esse conhecimento acerca da experiência de consumo é

considerado pelas normatividades – a Biomedicina e o Direito – que visam controlá-los.

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O “remédio” da legalização

Em seu pioneiro trabalho sobre aquilo que identificou como o “renascimento” da

“cultura do cultivo” de maconha, primeiro no mundo, depois no Brasil, Sergio Vidal destaca as

pretensões dos grupos formados em torno de tal “cultura” em atuar decisivamente no campo

político (Vidal, 2010). Para isso, associaram-se com outros coletivos para formarem marchas da

maconha em todo o Brasil (Veríssimo, 2011), onde sempre figuravam como “os cultivadores”.

Evidentemente que, mesmo entre aqueles que se identificam como “cultivadores”, o que

predomina é a heterogeneidade, seja no plano dos posicionamentos políticos ou no das

expectativas a respeito de atuação no mercado no caso de um possível quadro de regulação mais

liberal da maconha, que é o que objetivo geral a ser construído e aquilo que os faz se verem

dentro de um mesmo “coletivo”.

Em trabalhos anteriores (Veríssimo, 2011, 2013), a etnografia demonstrou que o

ativismo no âmbito das marchas da maconha na capital e no interior do Rio de Janeiro, das

quais os “cultivadores” participavam vivamente nessa época, tinha como principal e repetitivo

ponto de pauta a ideia de que era imperioso “legalizar a maconha” para combater a

“criminalização da pobreza”, dito assim, como palavras de ordem. De fato, o raciocínio se

fundamenta em uma verdade há muito já construída e consolidada no Rio de Janeiro e sua

chamada região metropolitana, da qual nunca poderemos nos esquivar. Esta verdade é que a

repressão policial aos mercados e à circulação de drogas postas na ilicitude atinge especialmente

segmentos muito extensos da população pobre, principalmente os que vivem em favelas e

outros pontos onde estes mercados se instalam formando domínios com o poder de armamento

pesado.

Com sua agenda em torno da “descriminalização da pobreza” e outras bandeiras, estes

ativistas, com justiça, comemoraram conquistas nos últimos anos. No Brasil, no ano de 2011, o

Supremo Tribunal Federal declarou que as marchas da maconha não poderiam ser postas na

ilegalidade, com base nos direitos de opinião e reunião. Com o passar dos anos foram

conquistando adesões através da realização de marchas por todo o país, e que no Rio de Janeiro

se constituíram através de uma união original entre militância, humor e hedonismo (Veríssimo,

2011; Silvestrin, 2013).

A partir da Marcha da Maconha do ano de 2013 na cidade do Rio de Janeiro, um novo

coletivo passou a figurar naquele ato, levado pelos “cultivadores”. Trata-se das “mães”

(categoria nativa) de pacientes de uso medicinal da maconha, que a partir de então ocupam o

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lugar de “comissão de frente” (outra categoria nativa), juntamente com seus filhos, à frente, à

testa da marcha. O encontro das “mães” com os “cultivadores” se deu em um contexto de

descobertas sobre a eficiência do uso da maconha como terapia para casos de epilepsia infantil

que teve origem nos Estados Unidos, país cujos pesquisadores e cidadãos de boa parte de seu

território contam com a venda e consumo legal e dentro de regras, da maconha, para suas

pesquisas e experimentações.

O fato de a maconha aparecer como um remédio que cura crianças não poderia deixar

de ser colocado como um valor por aqueles que militam há tempos pela legalização da maconha

no Brasil. Valores apoiados pela imagem da mãe que faz tudo pelo bem-estar do filho, a ponto,

não só de “colocar a cara” na Marcha da Maconha, mas também de traficar produtos ilegais que

possam usar como remédio. Da família que sofre pela séria e incapacitante doença de um dos

seus, em que cada membro tem o compromisso de em alguma medida tornarem-se jardineiros

de plantas ilegais, se preciso for. Em suma, o valor da compaixão, estrategicamente acionado no

campo das lutas políticas aí envolvidas.

Na mesma medida em que Sergio Vidal fala em uma “redescoberta” dos cultivos

caseiros de maconha (Vidal, 2010), podemos dizer também que há hoje, em vários lugares do

mundo, uma espécie de “redescoberta” dos usos terapêuticos da maconha, uma vez que estes

usos efetivamente existiam e os saberes aí envolvidos eram passados oralmente em uma ordem

anterior ao recrudescimento do proibicionismo, que pôs estas tradições na ilicitude, no Brasil e

no mundo, por volta do início do século XX (Rodrigues, 2008).

Se, para o legislativo e o judiciário brasileiros, ideologicamente alinhados a valores

hierárquicos (Kant de Lima, 2008), parece que a descriminalização da pobreza nunca se

constituiu em motivo para uma mudança na lei de drogas mais favorável à produção, venda e ao

consumo da maconha, talvez a compaixão motivada pelas mães de crianças que sofrem seja um

valor mais forte. Neste contexto é que a ABRACannabis é uma associação formada por

“cultivadores” e “pacientes” (onde as “mães” se enquadram), que depois atraíram os

“pesquisadores” (de diferentes áreas, como biólogos, químicos, advogados e antropólogos, entre

outros).

Um dos primeiros relatos mundialmente difundidos do uso medicinal e eficiente do

CBD é o da norte-americana Charlotte Figi, filha de um “boina verde”5 que havia combatido no

Afeganistão. Desde os três meses de idade que os Figi passaram a conviver com as crises de

convulsão de uma de suas filhas gêmeas (Charlotte), que foram fazendo com que seu

desenvolvimento corporal e cognitivo ficasse bastante atrasado em relação ao de sua irmã. A

5 Integrante de grupo de elite dentro das Forças Armadas norte-americanas.

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menina foi acometida pela Síndrome de Dravet, rara e considerada intratável pela medicina

ocidental.

Em sua 64ª. Edição (agosto de 2013), “THC: la revista de La cultura cannabica”,

publicação mensal argentina mantida e elaborada por ativistas de Buenos Aires6, conta a história

da família Figi. Esta foi a matéria de capa daquela edição, com a seguinte chamada: “A saúde

de nossos filhos: se expande o uso de óleo canábico para tratar a epilepsia pediátrica. A voz dos

médicos, os estudos e um caso que comove o mundo”. (Armada, 2013, capa – tradução nossa).

Um ponto a seu favor é que moram no Colorado, estado onde a venda e o consumo (incluindo

não-medicinal) de maconha são permitidos e formalmente regulados. Desse modo, enquanto “a

ciência se move ao ritmo que a lei e a indústria médica lhe impõem, os Figi gozam das

possibilidades de atenção hoje possíveis no Colorado” (Armada, 2013, p. 28, tradução nossa).

Mas, e onde a maconha não é legalizada, nem seus usos formalmente regulados? O

artigo da revista fala de famílias que se mudaram para o Colorado, visando tratar os filhos. De

tom ativista, em conformidade com o veículo em que foi publicado, o texto de Armada busca

construir a verdade segundo a qual, como também crêem os criadores da ABRACannabis, a

legalização da maconha é também um ato de compaixão com todos aqueles que sofrem (bem

como de suas famílias), e cujo sofrimento pode ser consideravelmente amenizado pelo uso desta

planta na qualidade de remédio.

O caso, na forma como foi publicado, demonstra também que, para a consolidação de

uma medicina canábica em seus termos próprios, não é só a lei que teria de ser revista, mas

também moralidades que giram em torno da planta e seus usos. Os próprios pais de Charlotte

tinham preconceito em usar a maconha como remédio, e só o fizeram porque, depois de terem

passado por todos tratamentos existentes e autorizados, foi a única terapia eficiente naquele

caso. Isso a despeito de o CBD, o principal componente da planta que atua como princípio ativo

nestes casos, não possuir significativamente propriedades psicoativas – que é o caso do THC,

componente responsável pelo “barato”, pela “onda”, como se referem os consumidores de

maconha em relação aos efeitos desejados que motivam seu consumo.

Uma vez superadas as barreiras morais da família, em um processo que a planta deixa

de ter a carga negativa de ser uma “droga ilegal” e adquire a positividade de se transformar em

um “remédio”, iniciou-se uma batalha nos labirintos legais para se conseguir o CBD. Era

6 Em seu trabalho, Marcos Veríssimo (2013) toma o conteúdo desta revista como parte do ponto de vista

nativo daqueles que, na capital portenha, militam pela “legalización de la marihuana”. Orientado pelos

próprios editores da revista, que o receberam em diversas entrevistas, empreendeu uma etnografia do que

era publicado com vistas a conhecer os valores estruturantes na interação entre os que escrevem e os que

lêem, ou seja, os valores sociais ali predominantes. É com o mesmo intuito que usaremos aqui parte do

material publicado nesta mesma revista.

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preciso que os médicos receitassem maconha para a criança. Neste sentido, a produção e difusão

de óleos feitos a base de CBD (e com um baixo teor de THC) facilitou a terapia. No Rio de

Janeiro, mesmo com a lei desfavorável, como já foi dito na introdução, há bastante tempo

“cultivadores” ligados à ABRACannabis produzem este óleo de maneira artesanal. No caso de

Charlotte, a legalidade formalmente regulada da produção de maconha e seus derivados

permitiu um encontro favorável à sua terapia.

Produzindo maconha para o mercado legalizado no Colorado, membros de uma mesma

família que ficaram conhecidos no meio como os “irmãos Stanley”, além do empreendimento

que fazem no mercado, criaram também uma fundação chamada Real of Caring (ROC), através

da qual fomentam pesquisas e experimentos para o desenvolvimento de produtos terapêuticos a

base de maconha para serem vendidos a baixo preço. Em sua busca, os pais de Charlotte

chegaram nos “irmãos”.

A partir daí, na Real of Caring, foi desenvolvida, através de complexos cruzamentos,

uma variante da maconha muito rica em CBD, e com muito pouco THC, e cuja difícil produção

se supostamente se justifica mais pelo princípio da compaixão do que pelos imperativos do

mercado. Em um trecho da entrevista que Josh Stanley (um dos “irmãos”) explica a Martin

Armada (autor do artigo, que também figura como editor geral da revista) os desafios

envolvidos na criação e produção da “Charlottes’s Web”, assim batizada em homenagem a sua

mais ilustre paciente.

A planta parece uma planta enferma, com carências [alimentares], como que

marmorizada, com verdes claros e escuros, às vezes muito amarelas. (...) E é muito

difícil de cultivar, não tem uma grande capacidade de pegar no solo, portanto, não

pode suportar muito peso. De fato, como cultivador, diria que não é uma boa opção

econômica, porque o rendimento é muito baixo, por isso cultivá-la foi uma opção

muito pessoal, além disso ninguém queria porque não pega [sem efeito psicoativo].

Esse não era nosso objetivo para nada. Por isso essa planta, para nós, é como uma

benção, porque é uma prova de que a canábis não só pode ajudar as pessoas, como

também salvar-lhes a vida. (Armada, 2013, p. 26, tradução nossa)

Seguindo esta mesma linha editorial e de ativismo calcada na associação entre maconha

e pediatria, na edição de n° 78 (Outubro de 2014), os usos medicinais e compassivos de óleos à

base de CBD voltam à capa de THC, com a seguinte chamada: “Mamãe cultiva: o fenômeno das

mães que desafiam a proibição e cultivam maconha medicinal para seus filhos” (Ramos, 2014,

capa, tradução nossa). Ilustrando esta parte tão importante e estratégica da revista que é a capa,

a foto de duas pessoas se olhando muito ternamente, evidenciando-se se tratar de mãe e filha.

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No meio das duas e ao fundo, um frondoso pé de maconha em período vegetativo (ou seja,

período de crescimento). A tônica é na triangulação entre a ideia mística de “Mãe Terra” em

uma das pontas (sendo a terra, por suposto, indispensável em qualquer cultivo), do princípio da

maternidade (e todos os deleites e sacrifícios aí envolvidos), e por último, mas não menos

importante, este renascimento das terapêuticas canábicas.

As duas pessoas na capa são Paulina Bobadilla e sua filha Javiera, que sofre de epilepsia

refratária e que, por isso, segundo a matéria, só vivia à época uma vida normal para uma criança

de sua idade (então com 7 anos), graças aos óleos feitos a base de maconha que tomava.

Chilenas, viviam em Santiago, onde o consumo da planta e venda de seus produtos é proibido

por lei. Paulina afirmou que ela e seu marido jamais haviam tido contato com maconha. Por

isso, assim como aconteceu com a família do Colorado por nós descrita acima, tiveram que

antes de tudo superar os próprios preconceitos e reposicionar suas moralidades em relação à

planta, fazendo o árduo caminho de transformar a “droga ilegal” em “remédio”, uma vez que os

tratamentos ditos convencionais não foram capazes de aliviar as crises da filha, proporcionando

a ela qualidade de vida e pleno desenvolvimento. Contudo, as semelhanças parecem que

terminam aí, uma vez que, superados entraves de ordem moral, em sua busca pelo remédio da

filha, se depararam com um ordenamento jurídico mais para proibicionista do que para

liberalizante.

Por isso ocorreu, no Chile, o encontro desta e outras “mães” que a princípio buscavam

apenas a cura para os males que faziam seus filhos sofrerem, com os saberes sobre a planta e os

“cultivadores” que há anos empreendiam seus ativismos, como acontece no Rio de Janeiro. Daí

surgiu a agrupación denominada Mamá Cultiva. O resultado deste encontro entre “mães” e

“cultivadores” é que a regulação de formas muito bem definidas de usos medicinais da Cannabis

sativa L. foi sendo construída, tornando-se verdade, passo a passo, como procura nos

demonstrar a revista da cultura canábica.

Mamá Cultiva se gestou na Fundação Daya, que conseguiu a autorização para

cultivar cannabis com fins terapêuticos em La Florida – destinado a 200 pacientes

com câncer -, com o apoio de Rodolfo Carter, prefeito da dita comuna de Santiago.

Obviamente que não foi simples. Contudo, depois de idas e voltas, e um grande

apoio da opinião pública, os SAG (Serviço Agrícola e Pecuário), deu visto positivo

para que se germinasse em La Florida. (Ramos, 2014, p. 22; grifos nossos, tradução

nossa.)

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Como vimos a partir do recorte particular que nos foi possível e verossímil construir a

partir deste olhar etnográfico para a produção editorial de THC, há uma série de valores e

imperativos atravessando as Américas, em contextos e realidades aparentemente desconexos,

mas que podem ser colocados em conexão a partir disso que chamamos aqui de redescoberta

dos usos terapêuticos da maconha. Os empreendimentos filantrópicos da empresa do Colorado,

criada para explorar as potencialidades comerciais da maconha, se encontram com a angústia de

pais que viram seu “sonho americano” desmoronarem em virtude do grave mal que acometeu

uma de suas filhas. Os fatos que surgem deste encontro (a “Charlotte´s Web”, a visível melhora

no quadro clínico e psíquico da criança etc.), se conectam no âmbito da linha editorial da revista

portenha dedicada à “cultura canábica”, com outro encontro que, no Chile, vêm produzindo

formas originais, pioneiras e inovadoras de regular formalmente os usos medicinais da

maconha.

Os “cultivadores” cariocas, por sua vez, entraram em associação com as “mães” e

famílias que, conectadas com as informações que chegam do Colorado, do Chile ou da

Argentina (entre outros), os procuraram em busca de alívio para seus filhos. Um dos resultados

que podemos certamente creditar a este encontro em terras cariocas é a ABRACannabis, e seu

ativismo de traços originais, por fora da militância há tempos mais estabelecida em torno do

movimento Marcha da Maconha, embora integrantes chave daquela participam das reuniões de

organização desta.

A partir de agora, vamos destacar os principais pontos que atravessam a organização e o

funcionamento da ABRACannabis.

Terapêuticas: holismo (a planta) versus biomedicina (o CBD)

Cultivada antigamente no contexto, por assim dizer, da “horta da vovó”, de onde, assim

como o boldo, a babosa, a erva cidreira e o saião, saía para curar males ou mal-estares. No caso

da maconha a lista era longa: insônia, falta de apetite, enjôo. Havia formas diversificadas de

administração, que passam pela feitura de óleos, chás, artigos culinários ou cigarros (Carneiro,

2006; MacRae e Simões, 2000), a maconha é uma planta cuja construção do saber em torno de

suas faculdades medicinais foi obscurecida pela assim compreendida lógica proibicionista.

Agora, quando as associações entre militância e cura, entre “cultivadores” e “mães”, se

consolidam, atraindo também pesquisadores aparentemente empenhados no preenchimento

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dessa lacuna referente à construção do conhecimento academicamente qualificado, encontrarão

aí campo para suas inquietações e pesquisas.

Uma questão que aparece com frequência neste contexto, e que pensamos que merece

nossa atenção, é a da contradição entre formas de saber sobre terapias à base de maconha mais

tradicionais, que se apoiam em princípios holísticos de relação entre paciente e planta de um

lado, e os paradigmas biomédicos, de outro, por sua vez focados em reações químicas e

moleculares a ocorrer no interior do organismo dos indivíduos. As perspectivas são

absolutamente distintas.

Em “Fármacos e outros objetos sociotécnicos: notas para uma genealogia das drogas”, o

antropólogo Eduardo Viana Vargas, a partir de uma perspectiva foucaultiana (Foucault, 1998),

desenvolve sua interessante ideia de “dispositivo das drogas” e suas relações com o

engajamento dos indivíduos com o mundo. Porém, o que mais interessa deste texto para a

construção argumentativa do presente capítulo, é o resgate que é feito da figura de Paracelso

(1493 – 1541), alquimista do período renascentista que faz parte, por assim dizer, dos mitos de

origem da medicina contemporânea.

(...) Para Paracelso, as doenças não resultavam do desequilíbrio dos humores ou

fluidos corporais, não devendo, portanto, ser tratadas mediante dietas, sangrias e

purgas; segundo ele, as doenças constituíam “entidades” (ens) que deviam ser

tratadas mediante o emprego de substâncias químicas. Ele postulava ainda que

todas as substâncias da natureza podiam exercer influências positivas (e constituir-

se, nesse caso, como essentia) ou negativas (e tornar-se, nesse caso, venena), sendo

a diferença entre essentia [remédio] e venena, basicamente, uma questão de dose,

já que dosis sola facit venenum. (Vargas, 2008, p. 45 – grifos do autor)

Nesse campo de forças entre saberes e concepções sobre em que consiste a arte de livrar

alguém de um mal que o acometa, os valores e o sistema de crenças dos “cultivadores” está

mais alinhado com a crença em humores e fluídos corporais que precediam e são

contemporâneas da concepção de medicina inaugurada por Paracelso. Esta, por sua vez, é a

perspectiva dominante hoje na academia e nas práticas terapêuticas ditas ocidentais, ou

modernas. Daí que os “cultivadores” se posicionam em favor do uso da planta como um todo e

consideram que seu efeito terapêutico não é apenas pontual e localizado, mas é amplo7. Por isso

também que a rigorosa distinção entre CBD e THC é problemática, seguindo a racionalidade da

7 Para uma discussão mais ampla sobre o uso da planta como um todo, como uma “planta maestra”, ver Labate e Goulart, 2005.

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medicina ocidental. Para os “cultivadores” a planta deve ser pensada como um todo. O

“remédio” é a planta, não o CBD.

Esse posicionamento, no entanto, não impede o diálogo com as formas de produção de

conhecimento e os protocolos de pesquisas estritamente científicos. Pelo contrário, as reuniões

da ABRACannabis proporcionam um encontro interessante entre o saber científico – através de

importantes pesquisadores de ponta da área biomédica que frequentam a reunião – e o saber dos

“cultivadores”. Esses últimos, aliás, considerando o intenso uso da internet que atravessa o

cultivo urbano, são muito bem informados sobre vários aspectos da planta. E acumulam anos de

experiência sobre o cultivo.

Os “pesquisadores” demonstram bastante interesse em todo esse conhecimento dos

“cultivadores”. As contribuições que oferecem de imediato, como fazer análises laboratoriais

em amostras de óleos da planta, são vistas com de grande entusiasmo pelos “cultivadores”.

Portanto, esses dois grupos de participantes têm trocado informações e colaborado mutuamente.

Podemos dizer que todos veem a possibilidade do avanço das pesquisas com a planta como

entusiasmo.

“Plantando direitos”: as formas de fazer política da ABRACannabis

Assim como ocorre no movimento ativista em Buenos Aires, tal como descrito por

Florencia Corbelle (2016), os ativistas cariocas defendem a legalização da planta e não somente

a descriminalização. Como os interlocutores da autora observaram, a simples descriminalização

do porte de drogas, que está em apreciação no Supremo Tribunal Federal brasileiro, não atende

às demandas desses ativistas, já que o cultivo da planta continua proibido. Continuando na

clandestinidade, os cultivadores também continuam sendo alvo da polícia e da persecução

criminal. É por isso que a posição da ABRACannabis é de defesa intransigente do cultivo.

Todas as ações da associação e as formas de pressão adotadas são pautadas por esse ideal.

Corbelle observa que os ativistas portenhos adotam as seguintes “formas de fazer

política”: “dar a cara” e ser um “usuário responsável”. O primeiro diz respeito a dar visibilidade

pública ao posicionamento individual de cada ativista, é não ter receio de assumir publicamente

o uso e cultivo da planta. O segundo, ser “usuário responsável”, é uma tentativa de dissociar o

uso da planta de comportamentos considerados como antissociais, de modo a evitar que a

maconha seja usada para dar base a categorias de acusação, como de “maconheiro”, ou

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“drogado” (Velho, 2004). Apoiando-se em moralidades que atravessam a classe média portenha,

ser um “usuário responsável” é ter família, estudar e trabalhar.

Esse contraste com Buenos Aires nos ajuda aqui a dar mais visibilidade ao contexto do

Rio de Janeiro. Diferentemente dos portenhos, os ativistas cariocas têm adotado outras formas

de fazer política. Em primeiro lugar, o “dar a cara” não é um aspecto visto como fundamental,

pelo menos até agora. Embora vários ativistas fumem maconha sem reservas, atuem

regularmente na Marcha da Maconha e também participem de debates públicos defendendo o

uso e o cultivo, não há qualquer tipo de cobrança para que alguém tenha que assumir

publicamente que cultiva ou fuma. Isso depende de cada um, sem gerar nenhum tipo de

desprezo ou descrédito para o indivíduo. As razões para a prudência quanto a adotar uma

identidade pública de cultivador ou usuário são muitas. Uns têm receio de perder oportunidades

de emprego e até mesmo sofrerem perseguições; em outros casos, a questão é doméstica e

envolvem relações de proximidade com vizinhos e parentes.

Seja qual for o motivo, não há uma vinculação necessária entre ativismo e “dar a cara”.

Da mesma forma, não há nenhuma cobrança para que os membros da ABRACannabis tenham

um comportamento exemplar, como um “usuário responsável”. Apesar de a grande maioria,

senão todos os membros se enquadrarem facilmente como “usuários responsáveis”, pois todos

trabalham, têm elevada formação acadêmica e relações familiares estáveis, nada disso parece

importar de maneira significativa para o ativismo que promovem. O que conta mais é a

participação regular nas reuniões semanais e a disponibilidade de empreender ações que são

planejadas de forma colegiada. Assim, nesta perspectiva contrastiva com Buenos Aires, o

ativismo no Rio de Janeiro parece dar mais ênfase na atuação coletiva do que na individual.

Uma das principais ações que a ABRACannabis está realizando é buscar apoio

institucional para avançar com a agenda do cultivo no país. Como já foi mencionado, a

associação congrega entre seus membros pesquisadores da área médica, “cultivadores”,

ativistas, pacientes e “mães”. Tendo em vista que o objetivo central é promover o cultivo de

modo geral, e o autocultivo, em particular, surgiu a ideia, durante uma das reuniões, de provocar

as instituições públicas de pesquisa com sede na cidade do Rio de Janeiro para a importância do

cultivo para fins medicinais e de pesquisa. A primeira etapa foi a ABRACannabis elaborar um

projeto de cultivo; depois, conseguiu a adesão de importantes pesquisadores de universidades

públicas; e, por fim, o contato com um grande centro de pesquisa nacional, foi realizado e está

sendo ensaiado a articulação possível para que o projeto da associação saia do papel. Embora

essa conversa interinstitucional esteja apenas no início, as expectativas são promissoras.

Portanto, essa forma de fazer política, para retomar a abordagem de Corbelle, tem sido

construída de modo coletivo e horizontal entre os membros da associação com o intuito de

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buscar apoio de pesquisa institucional. É uma política de aliança, entre todos os membros, que

se pauta na forma de decisão colegiada e com o objetivo de promover o cultivo.

“Cultivando conhecimentos”: o curso de autocultivo

Outra ação que a ABRACannabis está organizando é um curso de autocultivo

direcionado especialmente para as “mães”. A ideia é promover o cultivo caseiro com o objetivo

de possibilitar a produção do óleo rico em CBD de modo artesanal. O autocultivo é visto,

portanto, como uma alternativa mais barata e simples de acesso ao óleo do que as opções

disponíveis no mercado. Além disso, é uma maneira de evitar a demora dos trâmites

burocráticos de importação do óleo, os altos custos dos frascos e também de garantir o acesso

ininterrupto ao tratamento.

Para atender a esse objetivo de criar a autosustentabilidade do cultivo e do óleo, a

associação começou a se organizar para colocar o curso em prática. O primeiro passo foi pensar

nos módulos. Aproveitando a heterogeneidade dos seus membros, que conta com pesquisadores

de várias áreas do conhecimento, profissionais que atuam em diferentes ocupações e

cultivadores com expertises diversas, o curso da ABRACannabis foi planejado para ser

interdisciplinar. Os advogados ficaram responsáveis pela parte sobre as leis; os pesquisadores da

área de humanas, pela parte sobre história e ativismo; os pesquisadores da área biológica, pela

parte do remédio; e, finalmente, e o mais importante, os cultivadores ficaram responsáveis pelas

partes que tratam das diferentes fases do cultivo. O formato inicial do curso foi o seguinte:

MODULO I

Aula 1: Cannabis fisiologia e cultivo

Aula 2: Germinação e clonagem

MODULO II

Aula 3: Fertilizantes, aditivos e defensivos

Aula 4: Cultivo Indoor

MODULO III Aula 5: Cultivo Outdoor

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Aula 6: Colheita

MODULO IV

Aula 7: Preparação do remédio

Aula 8: Administrando o remédio

MODULO V Aula 9: Segurança e Leis

Aula 10: História e Ativismo

Com essa proposta em mãos, a ABRACannabis realizou um curso piloto. A ideia era

testar se esse formato funcionaria, se as informações compiladas eram adequadas para o público

alvo, qual deveria ser a duração de cada aula, qual deveria ser o número de alunos para cada

curso, enfim, um teste para que pudesse ser avaliado essas e outros quesitos. As aulas foram

ministradas durante toda a tarde de uma sexta feira e durante todo o dia de um sábado, e todas

elas foram filmadas. Agora, o plano é que seja feita uma avaliação das gravações para que todos

os membros possam fazer comentários e sugestões sobre o curso.

Esse curso, assim como a busca por aliados institucionais, mostra como a

ABRACannabis tem se organizado e planejado suas ações. O pano de fundo que parece dar

apoio a todas essas iniciativas é a promoção do cultivo. Com o curso, a associação espera

incentivar as “mães” a plantarem e, assim, difundir o conhecimento sobre a planta, seus usos

terapêuticos, as técnicas de cultivo. Mas também é um esforço de levar outras informações a

públicos que talvez não tenham acesso ou interesse pela planta. É uma tentativa de quebrar

estereótipos e preconceitos, através do cultivo. Não é difícil ouvir cultivadores principiantes

relatando que começaram a ver a planta de outra maneira, de forma positiva depois de iniciado o

autocultivo (Verissimo: 20130. E também se espera que o alcance dessa valoração positiva da

planta extrapole para além dos cultivos caseiros e atinja a vizinhança. Como comentou um dos

membros: “aí, quando alguém ver um vasinho de planta na janela vai começar a pensar que é

para cultivo medicinal”.

Conclusões

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“Eu não quero ficar sentado no sofá, em casa, vendo novela. Quero fazer alguma coisa

de útil”. Essas palavras foram ditas por um dos membros da ABRACannabis mais

visceralmente envolvidos com as metas e ações desta associação. Havia acabado a reunião

semanal, e quase todos já haviam ido embora. Aproveitamos para ter uma conversa com ele na

qual colocamos algumas questões oriundas já de nossa reflexão sobre o trabalho de campo, e

assim podermos dar a elas um tratamento mais reflexivo. Assim falando, nosso interlocutor

procurava dar sentido ao seu ativismo experiente, e metodicamente orientado, que o torna um

dos principais organizadores de pautas e atas das reuniões. O que faz e como faz no âmbito da

associação, proativamente, “alguma coisa de útil”, quando colocado deliberada e

reflexivamente como em contraponto àquilo que ele não quer, envelhecer acomodado no sofá

assistindo TV, quebra com modos estereotipados de compreender os consumidores de maconha,

exatamente como preguiçosos, esquecidos, desorganizados, e outros rótulos do tipo.

E o que produz esta associação oriunda do encontro de consumidores de maconha

(alguns sendo também “cultivadores”) com pacientes medicinais desta planta proibida

(representados ou não por “mães”)? Em um primeiro plano, pensam estar construindo a

legalização dos cultivos, na forma da construção de ordenamentos legais que permitam também

que a planta possa compor como “remédio” na interação com pessoas que buscam diversos

tipos de tratamento. Em grande medida, por trabalharem com os valores da compaixão, com a

ideia de maternidade, e atraindo interesse do meio acadêmico, têm fortes motivos para pensarem

que vão chegar a formas decididamente mais liberais de regular a produção, a venda e o

consumo da maconha.

Em outro plano, em grande medida por intermédio da chegada cada vez mais expressiva

destes que são ali vistos como “os pesquisadores” (categoria nativa), realizam também a

sistematização do conhecimento sobre maconha e a produção de massa crítica. E eles também

se mostram muito entusiasmados com a proximidade com os “cultivadores” e ativistas.

Demonstram interesse nas discussões e se adequam ao ambiente informal das reuniões e aos

modos de decisões colegiadas e horizontais da associação. Também a expectativa de que a

flexibilização das regras para a utilização da maconha em pesquisas é iminente – e os fizeram se

juntar à associação – parece aguçar a curiosidade dos pesquisadores e abrir um horizonte de

possibilidades de pesquisas imenso.

Por fim, vale destacar que o trabalho de campo em que se baseou esse capítulo está

apenas no começo. O presente texto é o primeiro esboço dessa pesquisa em torno de uma forma

específica de associativismo em torno da maconha que, ao que tudo indica, crescerá nos

próximos anos no Brasil. Isto porque, acompanhando os ventos liberalizantes em torno da

maconha que estão abalando os alicerces do probicionismo na América Latina, capitaneados

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pelo Uruguai, diversos segmentos da sociedade brasileira parecem ter começado a perceber as

possibilidades da planta. A diversidade de ocupações e áreas de atuação dos ativistas e

“cultivadores”, das “mães” e dos “pesquisadores” é um indício da diversidade de grupos sociais

que estão engajados e interessados em mudanças. Seja no registro da pesquisa – regulando as

investigações dos “pesquisadores” sobre a planta –, seja na dos direitos – retirando o rótulo de

droga ilegal de modo a garantir o direito dos “cultivadores” ao cultivo – ou, seja no da

compaixão – possibilitando a administração do remédio às “mães” – o que parece unir a todos

na ABRACannabis é o desejo pelo fim da proibição ao cultivo e uso da maconha.

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