o quixote de floripa · olhando para a fotografia de sua ponte famosa. É o caso da cidade de...

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Sérgio Meira O Quixote de Floripa

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Sérgio Meira

O Quixote de Floripa

Capa da 1ª. edição, 2009

Créditos: Fotos (por ordem): Capa/Florianópolis/Ponte: O autor Gigante: Henrique Schucman Revisão Final: O autor Projeto gráfico: O autor

SUMÁRIO

PREFÁCIO Capítulo 1: A CIDADE E A PONTE Capítulo 2: NEMINHO SILVA Capítulo 3: O MIMO DA DONZELA: O PARAFUSO Capítulo 4: EU VOU SALVAR A PONTE Capítulo 5: O PLANO TEM INÍCIO Capítulo 6: A BELEZA, A BELEZA DA CIDADE E DE SUA MUSA: A PONTE Capítulo 7: O EDITOR-CHEFE DO NEW TIMES Capítulo 8: O ROQUEIRO Capítulo 9: COM O DIRETOR-PRESIDENTE Capítulo 10: A OCASIÃO FAZ O LADRÃO Capitulo 11: DE NOVO, A INTERNET Capítulo 12: THE TURNING POINT Capítulo 13: CELEBRIDADE Capítulo 14: NEMINHO CONHECE O PLANO Capítulo 15: PREPARANDO OS MEGAEVENTOS Capítulo 16: NEM TUDO SÃO FLORES NA VIDA DE UM HERÓI Capítulo 17: A CONVERSA COM O ASSESSOR DO GOVERNO Capítulo 18: QUEBRA DE SIGILO Capítulo 19: NEMINHO PASSA A SER OBSERVADO Capítulo 20: O AMIGO JORNALISTA Capítulo 21: BASTIDORES DO PODER Capítulo 22: A REUNIÃO DA TÁVOLA QUADRADA Capítulo 23: OS DEBATES ESQUENTAM Capítulo 24: NEMINHO VAI À MONTANHA Capítulo 25: O NOVO ENCONTRO COM O ASSESSOR Capítulo 26: NEMINHO VOLTA DA MONTANHA Capítulo 27: AS PONTES Capítulo 28: AS RAZÕES DO ASSESSOR

Capítulo 29: O ASSESOR PRESSIONA O EDITOR-CHEFE DO NT Capítulo 30: O PLACAR: MILHÕES A FAVOR DE NEMINHO Capítulo 31: A GOTA D’ÁGUA Capítulo 32: O PESADELO: O GIGANTE DEITADO SE LEVANTA Capítulo 33: O MEGAEVENTO FINAL Capítulo 34: NEMINHO FALA URBI ET ORBI Capítulo 35: A ENTREGA DA VERBA Capítulo 36: A TEIA DE ARACNE: A BUROCRACIA Capítulo 34: O NAVIO Capítulo 36: RECONSTRUIR EPÍLOGO

PREFÁCIO

A esperança tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem.

A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a

coragem, a mudá-las.

Santo Agostinho1

Este texto é resultado de um exercício literário feito

com o objetivo de construir uma narrativa ficcional para tratar de um problema real - esse foi o meu desafio inicial: encontrar no mundo real à minha volta, que é a cidade de Florianópolis, o tema da estória. Mas também é resultado de uma indignação compartilhada com a população da cidade de Florianópolis com relação ao descaso dos governantes com o mais famoso cartão postal da cidade.

Para reforçar esse próprio real, uma segunda condição se impôs: a estória deveria ser atual, contemporânea, e assim colaborar para preencher uma lacuna que considero existir na literatura local: textos de temática urbana, que mostrem o cidadão florianopolitano descolado das raízes regionalistas. Em resumo, o desafio era criar uma espécie de mané moderno, que em vez da tarrafa e da canoa acessa o wi-fi e o avião, que viaja, se desloca, que sai pra fora da “membrana citoplasmática” em que viveu até então nas estórias locais, como se fora da ilha não houvesse mundo. E como sabemos que há muita vida lá fora, é, portanto, necessário idealizar o contato desse mané com o mundo, ainda mais num momento em que Florianópolis começa a chamar a atenção de todo o planeta, abrindo-se para novos contatos, novas relações e novas culturas. Diante desses fatos, a proposta que se impôs foi criar um herói mané moderno, ou que resumisse essa nova cidade – que, como a

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rememorar os áureos tempos dos navegadores ilustres, vai outra vez se tornar cosmopolita.

Para construir a estória, além do tema foi preciso também criar um herói. Na busca para definir seu perfil, recorri a algumas referências na literatura, mais precisamente no romance, entendido aqui como o gênero literário que surge dentro de um contexto histórico marcado como a gênese do pensamento burguês, grosso modo datada no Século XVII, quando o mundo vê surgir na cena a figura de Dom Quixote de La Mancha, criação do espanhol Miguel de Cervantes, que com sua criatura fez nascer o adjetivo quixotesco, meio-irmão do adjetivo sonhador, mas que também remete à ideia do herói. Assim, no imaginário popular, ser Quixotesco nada mais é do que ser sonhador e ser herói ao mesmo tempo. E, considerando que o papel do herói é (real)izar o sonho, a partir de seu ato único, individual, de livre iniciativa, a materialização de um sonho passa, então, por este ato liberal do herói. Foi esse entendimento que me levou a construir a estória que aqui será narrada e optar pelas teorias que nela são discutidas.

Outro desafio que eu me propus foi construir uma estória na qual as personagens não tivessem nomes cartoriais, sendo referidas apenas pelas ações que praticam; assim é que apenas a personagem central possui um nome: Noêmio da Silva, que, na boca dos amigos manés - cujo falar local, como estudos linguísticos já mostraram, tende para um uso excessivo de diminutivos -, com o tempo vira Noeminho, e depois Neminho, que pode ser também o diminutivo do nome Nemo (do grego = ninguém). Com isso, o objetivo foi criar uma estória cuja personagem central é Ninguém (alguém é ninguém) e assim dar uma pequena mostra de como nossa língua é rica de possibilidades, para construir as ideias de mundo, as ideias do real, que é quando fazemos uso

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dela (falando ou escrevendo) para materializar o que é apenas ideia (pensamento, imaginação, sonho).

E já que as personagens não receberam nomes, por consequência outro desafio se impôs: evitar ao máximo qualquer descrição física delas. Tal decisão se justifica porque a intenção do texto é mostrar que qualquer um pode se tornar um herói (ou qualquer das outras personagens), e por isso, por essa possibilidade de cada um, de qualquer um, qualquer pessoa ser qualquer um (até o herói), eu preferi optar pela ausência de referentes físicos e de nomes, deixando essa liberdade para o leitor, tornando a leitura mais lúdica. Assim, cada leitor pode vestir a “roupa” do herói (pois ela “vai caber em qualquer corpo”).

No que se refere aos assuntos tratados na narrativa, convém ressaltar que todos eles (em especial a colonização da ilha, a livre iniciativa, a representação do Estado e algumas ideias monetaristas) são exercícios de “liberdade poética”, portanto não representam necessariamente uma visão acadêmica, oficial, das teorias. Elas surgem no texto para compor a estrutura da narrativa e espero que o leitor usufrua o texto como obra de ficção e não científica. Da mesma forma digo isso com relação aos temas da área de Língua e Literatura, cuja profundidade não se poderia discutir aqui.

E neste ponto do prefácio, é preciso fazer mais uma ressalva: que as personagens aqui presentes são mera criação ficcional e não têm qualquer relação com nomes ou pessoas da realidade.

Essa ressalva tão comum, mas tão necessária, deve ser dita, pois tenho como proposta fazer o público local refletir que, se a cidade quiser se inserir num panorama de literatura nacional (e até mesmo mundial) precisa aprender a “descolar” aquilo que é ficção daquilo que é realidade. Como toda grande cidade do mundo, Florianópolis precisa aprender

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a conviver com a ficção, com a abstração, ou seja, quando se estiver falando de criação artística, o consumidor local desta criação (e a cidade como um todo) precisa aprender a operar com qualidades e relações e não com a realidade. É desse modo que torço para que cada leitor faça esse descolamento, e evite buscar aqui qualquer relação com nomes e pessoas do real. Afinal, não importa a cara, nem tampouco o nome: vilão é vilão; e infelizmente temos vários vilões nesta nossa cidade.

Feitas essas reflexões, posso dizer que esta não é, portanto, uma obra “panfletária” no sentido político e tampouco tem a intenção de apontar qualquer culpado com o fato de existir o problema aqui apontado, ou mesmo dizer que existem culpados. Nada disso! Muito menos fazer qualquer conexão entre as personagens e a estória narrada, com fatos ou pessoas da cidade – É chegado o momento de abstrair!

A intenção aqui é, claramente: construir um texto de natureza literária e a partir dele apresentar para a cidade, de um modo artístico, na forma de uma parábola, um problema que se insere num quadro de problemas reais da modernidade e, a partir daí, iniciar uma discussão que precisa ser urgentemente realizada.

Mas como discussões dessa natureza são chatas e cansativas na opinião de muitas pessoas, quero colaborar para o debate propondo uma abordagem do problema não a partir de pilhas e pilhas de projetos técnicos, gráficos, mapas etc. etc. etc., aumentando ainda mais o tecnicismo e excluindo o cidadão leigo (pois é isso o que tem sido feito até hoje), mas sim utilizando a arte, a literatura, a parábola, para fazer uma discussão mais prazerosa, mais informal (ou menos formal) do problema e desse modo incluir qualquer pessoa no debate – e não somente aquelas que a maçonaria dos “técnicos” permite que se manifestem.

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Por isso essa forma romanceada de tratar aqui da saga de Neminho Silva, que deve ser recebido por todos como um herói de natureza urbana e ecológica – e mais nada! A intenção aqui é, apresentar ao leitor uma estória cujas tensões, embora envolvam algumas teorias clássicas e se manifestem no terreno político, têm como temática principal e foco de interesse a ecologia, que é em minha opinião, o mais urgente problema urbano que a cidade precisa discutir e enfrentar se quiser, de verdade, tornar-se exemplar aos olhos do mundo.

Peço, portanto, a todos que se identificarem com a temática da obra, que, a partir dessa identificação, redupliquem infinitamente a quixotesca vontade de lutar de Neminho; assim estaremos colaborando para melhorar o nosso ambiente, o mundo.

Florianópolis, 2015. Sérgio Meira (Soma)

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Capítulo 1 - A CIDADE E A PONTE

O lócus da estória – A musa da estória: a donzela metálica

Pontes fascinam as pessoas. Pontes embelezam as cidades e são muitas vezes uma referência, um motivo de orgulho; basta ver quantas cidades reconhecemos apenas olhando para a fotografia de sua ponte famosa.

É o caso da cidade de Florianópolis, localizada na ilha de Santa Catarina, no Sul do Brasil, um dos cenários desta estória, facilmente identificável quando olhamos para a fotografia de sua ponte mais famosa: a Hercílio Luz.

Na foto, em primeiro plano está a parte insular da cidade (o centro comercial). No plano central estão as pontes que atravessam o canal de mar e fazem a conexão ilha-continente (ou continente-ilha): a ponte Hercílio Luz é a solitária da direita, a cada dia mais difícil de ser vista do Morro da Cruz, quase “encoberta” pelos altos edifícios que vão tomando conta da paisagem. Ao fundo, a parte continental da cidade, com destaque para o bairro do Estreito, onde habita o herói desta estória.

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A Hercílio Luz foi a primeira ponte, e surgiu na vida da cidade em 1926, para ligar os dois lados – ilha e continente – que cresciam separados pelo canal de mar, onde até 1920 costumavam passar os navios, tanto para o norte como para o sul.

A travessia do canal para ambas as comunidades só era possível através de pequenas embarcações; com a ponte tornou-se possível a entrada de veículos na ilha, o intercâmbio de pessoas, a passagem da adutora de água e, conforme consta do projeto original, de uma linha férrea, a qual se sonhou que chegaria até a Ilha, mas nunca foi construída.

Para uma cidade insular, as pontes têm fundamental importância. Basta dizer que, assim que a primeira ligação entre ilha e continente foi construída, a cidade experimentou de imediato seu primeiro boom.

As duas pontes seguintes, construídas nos anos 1970/80, marcaram a segunda onda que transformou Florianópolis. Diferentemente da primeira, construída totalmente com ligas de ferro, as outras duas são de concreto armado e possuem um desenho comum, retilíneo, sem graça.

Os habitantes de Florianópolis, tanto os insulares quanto os continentais, têm uma forte ligação com suas pontes, pois elas acabam fazendo parte da vida de cada um, diretamente; a ponte é a entrada e a saída, a passagem, o elo.

As pontes, quando belas, também podem se tornar objeto de veneração, seja ela coletiva, como é o caso de tantas cidades que têm nelas o seu principal ícone, seja ela individual, como é o caso de tantos artistas que fazem delas suas musas, pintando, esculpindo, fotografando ou mesmo descrevendo em poemas as suas formas delgadas e elegantes, sem falar ainda da veneração paternal dos

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engenheiros ou arquitetos (e das empresas) que as constroem.

Esta é a Ponte Hercílio Luz, principal cartão-postal da cidade de Florianópolis e “musa” inspiradora desta estória. Com aproximados 830 m, e um vão de quase 340 m, ela encanta, antes de tudo, pela beleza das linhas metálicas; atualmente, é única em seu estilo, já que, das outras duas “irmãs”, a primeira teve um fim trágico, desabando; e a segunda foi desmontada por precaução. Assim, restou a ela a missão de encantar pelo seu belo estilo.

Ao ficarem sabendo que ela vive hoje “solitária, sem

suas irmãs”2, inexplicavelmente alguns, encantados, sentem

vontade de cuidar dela, de protegê-la. A partir daqui iremos conhecer uma estória fantástica

sobre um desses encantados, que, certo dia, cansou de esperar que o poder público – ou alguém - salvasse a sua linda donzela metálica e resolveu dar, ele mesmo, um

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diferente rumo ao triste fado de sua musa, ameaçada de desabar, de ruir.

Vamos, então, primeiramente, conhecer nosso herói?

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Capítulo 2 - NEMINHO SILVA

A questão da origem do povo da ilha: portugueses ou açorianos? – Ser um homem continental/ser um homem

ilhéu – A questão da originalidade - O 5º Império de Fernando Pessoa – De como Neminho Silva deixou (mas não deixou) de ser soldado do 5º Império – O verdadeiro império

será o 6º, e não o 5º

Muita gente pensa que todo o povo que habita a ilha

é manezinho. Nada disso! Neminho Silva, por exemplo, achava que ao menos um de seus quatro troncos familiares era açoriano – por causa do nome -, mas, para sua surpresa, quando conversara numa manhã de sábado na Praça XV com um senhor idoso integrante de um grupo folclórico açoriano que viera se apresentar na ilha, ficou sabendo que, das três famílias portuguesas cujos nomes ele herdara, nenhuma era encontrada naquelas ilhas. E foi assim que ele resolveu investigar o assunto mais a fundo e confirmou que suas famílias eram todas do continente: uma delas viera de Portalegre, outra de Lisboa, outra de Braga e a última, de nome Silva (os “da selva”), ele herdara por aqui mesmo; e era esta que lhe dava o “coroamento”, lhe marcava o sobrenome oficial: chamava-se Noêmio da Silva. O primeiro nome era uma homenagem que seu pai quisera prestar a uma irmã, de nome Noêmia, falecida quando ele estava chegando ao mundo, mas desde bebê passou a ser chamado carinhosamente de Noeminho, e com a síncope - metaplasmo típico do falar mané – virou o “Neminho”.

Famílias do continente! Neminho Silva gostava dessa denominação e brincava com a analogia de morar no continente, ser de famílias “do continente” (como o bairro

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continental do Estreito e seu correlato continental, Portugal3)

e não “da ilha” (como a ilha de Santa Catarina e suas correlatas, as ilhas do arquipélago dos Açores). E, como costumava lembrar ao discorrer sobre este assunto, os primeiros portugueses que colonizaram a ilha do Desterro (nome antigo da ilha de Santa Catarina), na maioria militares, na verdade não habitavam na ilha, pois esta inicialmente era um local de degredo, de desterro, uma prisão. Esses portugueses que para cá vieram trouxeram suas famílias, mas não eram “malucos” de mantê-las vivendo na ilha, junto dos desterrados; as famílias decentes, “direitas”, ficavam no continente, em São José da Terra Firme. Foi assim que a ilha começou a existir: através das famílias dos militares portugueses, e não dos colonos açorianos, que só chegaram muito, mas muito depois (Neminho não entendia porque a história, a tradição do povo local ignorava esse fato tão explícito e insistia em proclamar sua raiz tão somente açoriana: “eles negam parte da própria raiz, que coisa mais estranha”, refletia ele). Seguro então naquela época era morar no continente: na ilha ficava só a escória, a

“cacalhada”4 (os prisioneiros do governo que eram mandados de todo o país para cá). Por isso que a ilha se chamava Desterro ou, “para amaciar”, Nossa Senhora do Desterro, quando passou a “receber” as famílias dos militares, obviamente, todas cristãs.

Neminho sentia-se um homem continental, da terra, em oposição aos ilhéus, o que, na calada, lhe dava certo sabor de superioridade. Afinal de contas, não era um “Mané”, mas sim um homem continental – e sentia-se como o português universal do Fernando Pessoa, o oposto daquele português confinado, nacionalista, que ele via nos insulares (da Ilha) de Santa Catarina e que de certa forma - acreditava - era o que

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justificava o exacerbado bairrismo deles – o nacionalismo açoriano, o “nacionalismo mané”.

Quem mora no continente - achava Neminho -, de certa forma é mais aberto. Quem mora na ilha fica muito confinado, muito bairrista; já quem mora no continente é menos confinado, é mais cosmopolita, tem a sensação de saída, de liberdade, de morar em quatro, cinco cidades ao mesmo tempo e não depender de “uma única saída para sair”, como ele gostava de dizer, para acentuar essa única possibilidade de escapar (uma inferioridade do povo da ilha) no caso de uma emergência. Aliás, era essa possibilidade – escapar – que fizera com que sempre preferisse morar no continente, de onde sair nunca seria um problema.

E assim, geograficamente localizado no continente, mas usuário diário da ilha, desde pequeno acostumara-se a atravessar a ponte para lá chegar. Quando criança, era a linda

ponte de ferro5, única no canal do Estreito, imponente, que

suportava todo o tráfego nas suas pistas cobertas com pranchões de madeira, só muito mais tarde substituídos pelo asfalto. Depois, ela foi chegando ao seu limite, aos poucos sendo comida por um câncer chamado ferrugem e certo dia não conseguiu mais suportar nem mesmo seu próprio peso, sob o risco de desabar. Para tristeza geral, teve que ser fechada e só restaram as frias pontes de concreto, feias e sem graça, para a travessia do canal. E assim ela ficou: solitária no mundo (pois perdera suas duas únicas “irmãs”) só para ser vista e lembrada. Ou amada pelos encantados, uns poetas, outros sonhadores, outros “amalucados”, alguns até lhe fazendo versos.

Neminho sempre quis ser um escritor, mas esbarrava naquele velho problema que Silviano Santiago já gastara páginas e páginas a analisar, sobre a questão da dificuldade

de ser original hoje em dia6. Neminho adorava o Dom

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Quixote, tanto o livro quanto a personagem7. Se pudesse

escrever um livro, gostaria de escrever este, ou também algo

do tipo O Pêndulo de Foucault 8, mas sabia que, se tentasse

algo assim, no máximo seria mais um Pierre Menard, do Jorge

Luis Borges9, ou poderia cair no ridículo de sofrer a pecha pública de plagiador ao defrontar-se com a questão da originalidade de uma obra que, por já ter sido escrita, o impedia – e o proibia – de (re)escrevê-la, mesmo com as modificações que resolvesse fazer para lapidar, ao seu modo, a estória. Assim, o drama do escritor da América, do mundo “novo” - que toda vez que escreve uma obra acaba recebendo críticas de que seu texto parece com a obra de fulano ou beltrano lá da Antiguidade, lá do mundo “velho” – constituiu sempre o pavoroso impeditivo à carreira literária do nosso “português continental”: tudo que ele escrevia, já nascia parecendo com algo já escrito.

A depender dele como um dos guerreiros a lutar pela consagração do 5º Império – que, conforme o sonho de Fernando pessoa, será não o triunfo das armas, mas o triunfo da língua portuguesa sobre todas as irmãs latinas da Europa e, quiçá, sobre o mundo - não seria ainda dessa vez que a língua de Dom Sebastião se firmaria no alto do pódio da humanidade, pois, ao escolher ser professor, Neminho acabou, de certo modo, contribuindo para retardar a

consagração do 5º Império10

. Gostava de pensar sobre essa sua “honorável desonra” sem remorso, uma vez que, ao optar trabalhar com a gramática, também era um guerreiro (afinal, não era também parte do sonho de Fernando Pessoa um

império de gramáticos?11

), também fazia sua parte para solidificar o 5º Império, difundindo a língua-pátria-que-reedificará-Portugal. Mas, mesmo guerreando em favor de Portugal, Neminho costumava defender a teoria de que não mais do que um ou dois séculos bastarão para criar um novo

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“galho” na árvore das línguas, quando então nascerá o idioma brasileiro, filho do português e neto do latim, surgindo, aí sim, a verdadeira Nação Brasileira, que falará o brasileiro, língua que a representará na verdadeira essência: haverá, enfim, um falar brasileiro.

- O 6º Império, esse sim o nosso Império, logo, logo, mostrará seu primeiro estandarte – dizia ele. Um estandarte que poderá conter qualquer frase escrita no idioma “brasileiro”, a verdadeira língua nacional: On co tô? Kem co sô? On co vô? On tu Vaz? Kés di quê? Tás tola? Tás aí? Tás esperano oms? Ocê ta aí? Ocê ta comeno vrido minino? É pra você ou pra mim fazer? Eu vi ela: ela tá ca cara na janela, cos pé no sopé, cas mão no corrimão - e que todo brasileiro reconhecerá como sua língua, plenamente compreendida, honesta, com uma gramática da qual ninguém fugirá com pavor. Um dia nosso idioma ainda vai impor como regra: o mínimo de redundâncias! – defendia ele.

- Quanto menos redundâncias, mais próxima é a língua do povo: Nós vamo na casa dos mano pra encontrá as mina! Isso sim é língua brasileira falada. Como gramáticos vamos ter muito trabalho, mas quem manda é a língua, a fala, o enunciado... A vida da língua está no uso, nas ruas... Isso é que tem de imperar! Fala culta é mais uma forma de poder, de domínio da elite sobre as pessoas comuns – Dizia às vezes, de maneira informal.

E para se fazer mais claro, insistia em outro exemplo, para demonstrar a dificuldade de a língua formal dar conta da realidade da fala no cotidiano:

- A gente é assim ou nós somos assim? Qual o certo? E se a gente é nós, então também vale dizer “nós é” assim? – indagava.

E ele mesmo respondia:

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- Veja que podemos dizer: nós somos assim ou a gente é assim... e temos que assumirmo-nos assim ou e a gente tem que se assumir assim... Em português do Brasil, essas são formas possíveis, mas creio que com o tempo o Brasil será apenas a língua do pronome “a gente” e não do “nós”.

Era, portanto, em conversas desse tipo, que Neminho defendia a sua teoria em defesa do 6º Império, que há de vir, cheio de glória – brincava ele.

Conhecemos, assim, um pouco sobre Neminho Silva, professor, cidadão comum, que tanto admirava Dom Quixote, e quem, em certo dia, levando dois amigos para conhecer a ponte Hercílio Luz bem de perto (como sempre fazia com todos os amigos que vinham conhecer a cidade), olhou para sua velha e amada ponte e, percebendo um pequeno detalhe que revelava o quanto ela estava abandonada e doente, revoltou-se com o descaso da cidade (que dela se valia para se promover, como quem explora uma mulher bonita, mas dela não cuida) e teve uma ideia, inspirada na “valentia” de seu herói, tomando uma decisão que mudaria para sempre a sua vidinha pacata.

Vamos conhecer, então, que ideia foi essa?

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Capítulo 3 - O MIMO DA DONZELA: O PARAFUSO

A importância de um pequeno detalhe – Neminho percebe o parafuso e salta para apanhá-lo

Às vezes, como já disse o escritor angolano Ondjaki (e

tantos outros mais), numa pequena coisa podemos encontrar as coisas grandes da vida; não é preciso muito, basta olhar12. Assim, um pequeno detalhe, que, para a maioria das pessoas, passa despercebido, pode se constituir no motivo principal para alguém tomar uma atitude - e às vezes ficamos tentando entender o que levou tal pessoa a fazer isso ou aquilo, embora nossa percepção seja inútil para decifrar o mistério.

No caso de Neminho, estava ele na cabeceira da ponte com amigos turistas observando os detalhes da estrutura e comentando justamente sobre a ferrugem visível que a ameaça. A ponte do estilo pênsil é toda feita como uma construção de “palitos”, que vão sendo encaixados, unidos.

Nas junções desses palitos, são colocadas placas para reforço, fixadas com uma série de parafusos e arrebites, que dão um estilo “blindado” à construção. Esses arrebites e parafusos têm no mínimo a espessura de um dedo médio de uma pessoa adulta. E foi numa dessas junções que Neminho percebeu um dos parafusos solto, quase caindo da placa.

Para qualquer pessoa, a imagem poderia ser simplesmente vista, como a de um reles parafuso que estava se soltando de uma placa pela ação de uma força física qualquer (peso, vento, corrosão etc.), mas para Neminho aquilo dava bem a medida do problema todo: sua musa começava a não suportar mais o próprio peso; e como aquele parafuso, deveria haver muitos outros em igual situação. E ficou imaginando que cada placa daquelas, contendo quase

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vinte, trinta ou cem parafusos, multiplicada por mais mil, representava vinte, trinta, cem mil parafusos; e ficou imaginando também as vigas de ligação, num total de quase mil, que continham cada uma mais de duzentos arrebites; e ficou imaginando ainda os parafusos maiores que unem o vão inteiro a cada um dos cabos que o sustentam no ar por quase quatrocentos metros... e os números foram se acumulando: vinte mil, cem mil, duzentos mil, dois milhões, vinte milhões, milhões, milhões, milhões... E de repente a imagem assumiu proporções gigantescas e ele viu incontáveis parafusos em situação de perigo, como pequenas feridas a denunciarem que, por dentro, o corpo da sua amada deveria sofrer muito mais.

- Vejam o estado de abandono em que ela se encontra; é de dar dó, não é mesmo? – indagou tristemente aos amigos, recebendo deles um sinal silencioso de concordância.

E completou: - E já faz anos e anos que essa situação persiste; e

mesmo assim eles continuam a faturar em cima da fama dela, embora não dê mais para disfarçar o abandono, como vocês podem ver. Uma dó!

Olhando mais uma vez o parafuso quase a cair, não teve nenhuma dúvida em arriscar-se a saltar uma pequena grade que impede o acesso de pessoas à pista da ponte, para pegá-lo; e o pegou. Mal sabia ele que dali por diante aquele parafuso faria parte de sua vida de forma tão significativa, e só mais tarde ele compreenderia o seu real significado: um mimo oferecido a ele por sua donzela, para que ele sempre o carregasse junto do peito e pudesse lembrar-se dela nas horas de luta.

E assim ocorreu: um reles parafuso, algo que para mortais comuns é um objeto banal, foi o detalhe que tornou

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da noite para o dia o nosso “encantado” professor em protagonista de uma peculiar estória romântica, se assim podemos defini-la.

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Capítulo 4 - EU VOU SALVAR A PONTE

A dor ao ver sua musa sofrendo faz de Neminho um herói – A “cafetinagem” malvada sobre a velha senhora – A decisão

de salvar a musa

O que Neminho Silva não engolia era um fato que se explica melhor pelo seu sentimentalismo: como pode alguém se valer tantos anos de algo tão importante como a ponte, que marcou a vida de tanta gente, e simplesmente abandoná-la no caminho, jogar fora feito um bagaço imprestável aquela que serviu de maneira tão gloriosa a um povo? A ponte não é gente, “mas é como se fosse”, pois foi útil, ajudou, serviu, auxiliou, colaborou, enfim, esses são todos verbos carregados de “sentido humano”, o que a torna quase humana.

- E hoje ainda encanta, alegra o olhar, atrai gente de muito longe para vê-la. Como pode uma coisa assim tão importante na vida de tanta gente ser desprezada e ficar ali, na nossa frente, todos os dias, e todos passando por ela indiferentes? Como se ela não significasse nada... Que desumanidade! Que maldade! Não se faz isso nem com o pior inimigo. Como um povo podia ser assim tão mal agradecido a algo que diz lhe ser tão caro? Que falácia! Se a ponte fosse realmente valiosa para eles, já teriam feito alguma coisa para salvá-la. E um povo que se diz orgulhoso dela! Putz! - Comentava.

O interminável debate sobre a recuperação da ponte só serviu para fazer a cama de meia dúzia de oportunistas que todos os anos, em épocas eleitorais, surgiam e surgem com propostas mirabolantes. Já é folclórica a relação dessas propostas: que seria aberta ao tráfego geral e depois apenas para automóveis, que sobre ela seria feita uma área de lazer, que na cabeceira seria erguido um museu com memorial e

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centro cultural, que sobre ela construiriam um boulevard com cafés e lojas (imagine isso com o vento que por ali passa), que carruagens fariam o trajeto levando turistas (para lembrar os passeios no Central Park de Nova York – Très chic!), e que inclusive linhas de trens urbanos futuristas passariam por ela... Isso numa cidade que sequer tem uma linha de barco ou de trem... E, o pior, algumas dessas figuras acabaram eleitas...

Para Neminho, isso soava como uma pura exploração do “corpo” da velha senhora, como uma “cafetinagem barata”.

- E isso tem que acabar! O que contribuía para deixar Neminho mais triste era

o silêncio tanto da imprensa quanto da população, que não cobrava das autoridades uma ação que colocasse um fim àquela situação vergonhosa.

Mas nem tudo estava perdido, achava Neminho. Não era o fato de hoje em dia a imprensa não se manifestar que impediria que o assunto virasse notícia. Ele iria mostrar a todos que sozinho, tal e qual um Dom Quixote, iria fazer um movimento – até mundial se preciso fosse - para salvar a ponte.

E sabia muito bem como começar a fazer isso. Se desse certo, seria no mínimo um acontecimento digno de um filme – idealizava ele enquanto sua mente vagava pelos caminhos de seu mirabolante plano.

Um plano muito ma-lu-co, sorria dizendo para si, prevendo a surpresa dos que iriam conhecer suas ideias...

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Capítulo 5 - O PLANO TEM INÍCIO

As mil possibilidades que a internet abre para os cidadãos dos países pobres – Os e-mails – As intenções de Neminho

ao colocar seu plano em ação - É na beleza da ponte que ele aposta

Um fato incontestável é que a popularização mundial

da internet possibilitou novas oportunidades e facilidades na comunicação humana, principalmente para os habitantes de países pobres, que podem valer-se da rede mundial de computadores para acessar conhecimento, pedir auxílio e fugir da mesmice em qualquer local do país, seja Rio Branco, Vitória, Belém ou mesmo Parintins, Porto Alegre do Norte, Mossoró ou Bom Retiro. Assim sendo, a internet tem permitido que muitos brasileiros possam buscar auxílio, procurar novas ideias, pessoas, fazer contatos e buscar ajuda onde bem possam imaginar.

É essa facilidade que vai permitir a Neminho colocar seu plano em ação: enviar e-mails para os principais jornais de todas as cidades importantes que têm como símbolo uma ponte, como Sidney, San Francisco, Nova Iorque, Londres, Colônia, Veneza, Montreal, Lisboa, Porto, Tóquio, Hong Kong, e muitas outras, contando aos editores ou aos principais jornalistas de cada um dos jornais escolhidos a tristeza de ver sua cidade “maltratada, magoada, esquecida” pelos governantes – sujeitos arquetípicos do sistema político do terceiro mundo -, a tal ponto que o próprio símbolo-maior de seu orgulho (sua ponte) tornou-se “peça de barganha eleitoral” e nada mais, pois afinal há décadas se diz que “a ponte será recuperada” e... NADA. E o tempo passa, a ferrugem aumenta, o perigo cresce e o fim se aproxima. É como ver uma musa desfigurar-se enquanto políticos que se

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passam por poetas lhe enviam louvores e lhe tecem elogios... Só porque ainda ela continua de pé, e eles sabem que ela atrai, e atraindo lhes propicia ganhos – e essa exploração “turística” vai se perpetuando... Tal situação não poderia mais continuar assim!

É a tristeza na sua alma, ao ver tamanha maldade, que Neminho relata nos e-mails, apelando para todas as formas de sentimentalismo que uma ação dessa natureza requer, visando a atingir um efetivo grau de convencimento. Sua intenção é que lá do outro lado alguém influente possa sensibilizar-se com uma estória maluca dessas: um homem sozinho querendo salvar uma ponte e assim salvar o orgulho de uma cidade inteira.

- Quixotesco demais! Isso no mínimo vai chamar a atenção, nem que seja só como reportagem – disse ele; e sorriu ao dar-se conta dessa imagem heroica.

Felizmente Neminho dispunha da internet, o que baratearia em muito os custos e o tempo que teria que dispor para montar seu projeto, anexar fotos, gráficos, planilhas de custos... Enfim, ele poderia montar um dossiê com todos os dados necessários para ajudar no convencimento e , devido ao baixo custo (por ser digital), poderia reproduzir ao infinito

(agora ele entendia o que Walter Benjamin13 queria dizer com sua tese da era da reprodutibilidade), podendo enviar seu apelo até para pequenas cidades - coisa que ele preferiu não fazer porque, afinal de contas, seu plano envolveria uma vultosa soma em dinheiro.

- E o dinheiro está na cidades grande! – sabia ele. Após formular o projeto, ele passa a falar de seu

objetivo: pedir que um jornalista influente abrace sua ideia e o ajude a pedir socorro a todas as cidades do mundo que tenham orgulho de suas pontes, para que façam um movimento destinado a salvar a ponte que é o orgulho de

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uma cidade pobre, distante, lá de um país do terceiro mundo, com todas as mazelas que isso possa significar.

É em nome da beleza que ele vê na ponte de sua cidade que ele quer lutar, para impedir que a magnífica obra acabe ruindo e se perca, virando apenas lembranças. Essa sua luta se traduz numa ideia: fazer um movimento para angariar fundos e salvar o orgulho da “pobre cidade do terceiro mundo”. É na possibilidade de criar uma “corrente mundial de solidariedade” (o que num mundo tão violento tem um significado muito forte, como a lembrar de que nem tudo está perdido, que a humanidade ainda tem solução etc. etc. etc. – ou seja, uma ação global politicamente correta) que Neminho aposta.

- Quixotesco demais!

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Capítulo 6 - A BELEZA, A BELEZA DA CIDADE E DE SUA MUSA: A PONTE

O que disse Neminho em seus e-mails para convencer os

jornalistas de sua intenção? – O maior atributo da donzela é a beleza - A mini Golden Gate inspirou a Califórnia brasileira

– A frustração de quem quer passar na ponte, mas não pode, porque ela está, há muitos anos, “doente”

O que disse Neminho em seus e-mails para convencer

os jornalistas de sua intenção? Sabemos que ele teria que apelar para toda forma de convencimento e a primeira que lhe veio à mente foi falar daquele atributo que geralmente nos romances ocupa o primeiro lugar quando falamos da musa: a beleza. A beleza é inerente à musa e é por ela que o herói inebria-se. Há outros atributos, como o caráter, a “virgindade”, a discrição, mas a beleza é sempre o atributo que atrai mais o herói romanesco. Assim, para apresentar sua musa e sua cidade, Neminho valeu-se então de um discurso mais ou menos no tom que segue:

“As pessoas devem à sua autoestima muito daquilo que espelham com orgulho. Assim, uma mulher bela estampará orgulhosa sua face na rua. Um homem belo também. Ambos cuidarão de seu corpo e seu rosto com extremo cuidado, pois a beleza pede toda uma preocupação com seu entorno (saúde, higiene, caráter, comportamento, atributos...). Assim como as pessoas, uma cidade bela também precisa manter sua autoestima; e se houver algo que eclipse, que manche sua beleza, isso terá um peso grande na manutenção desse orgulho.

Minha cidade é belíssima, e se orgulha disso. Florianópolis (também chamada de Floripa) é um pedaço privilegiado de mundo. Uns dizem que temos a beleza da Baía

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de Nápoles, outros, que parece Nova Zelândia, outros, que é San Francisco... Enfim, vivo num lindo lugar (em Anexo seguem links com páginas sobre a cidade para todos conhecerem).

Floripa, por estar localizada numa ilha, chamada de ilha de Santa Catarina, é identificada por seu principal ícone:

uma ponte, chamada Hercílio Luz14. Uma linda estrutura pênsil que só foi erguida de forma similar em mais dois locais no mundo e que hoje está solitária (uma desabou e outra foi desmontada por segurança), o que a torna ainda mais preciosa, a tal ponto que, entre diversas estórias que não se sabe se são ou não verdadeiras, corre “à boca-pequena” que a própria empresa que a construiu tentou recomprá-la, para tê-la como sua joia preciosa. É uma mini Golden Gate de San Francisco, uma mini Verrazano Narrows de Nova Iorque, com toda a elegância e leveza que marca o desenho dessa forma de ponte onde quer que seja construída – e dificilmente não ficamos encantados ao olhar uma delas. É reconhecidamente a musa da cidade e aqui também digo que ela é a minha musa, motivo desse meu ato em seu favor.

A ponte da minha cidade é assim: amada por todos, a tal ponto de ter sido elevada a ícone principal, marca característica da cidade para o mundo. Para mim, é a minha donzela metálica. E foi graças a ela que a cidade se fez (re)conhecida e atrai gente de todo lugar para conhecê-la, bem como as lindas praias da ilha. Foi também graças ao fato de ela parecer a Golden Gate que a cidade um dia se imaginou uma San Francisco brasileira; e aí veio por extensão o Califórnian way of life com todos os seus mitos e também por extensão o surf, que fez da cidade sua capital nacional.

E como o espírito da Califórnia acabou imperando, a cidade é o paraíso de quem quer uma vida boa, alternativa, ecológica; e também tornou-se o paraíso para os esotéricos,

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gente estranha e muito boa que deu uma nova cara à ilha. Assim temos desde freudianos e lacanianos, leitoras de todo tipo de cartas e sortilégios, bruxas e diversos ritos célticos, até pós-apocalípticos, ateus e anarquistas de toda a espécie, mas todos convivendo em espírito proativo. A ilha é um verdadeiro “caldeirão de bruxa” e toda essa população esotérica (que não é pequena) colabora para o reforço do mito da “ilha da magia”, que é como a cidade se tornou conhecida. Mas também tem o seu lado Califórnia-chic, Malibu, o que atrai todos aqueles que querem viver com qualidade.

E tem, evidentemente, toda a espécie de maluco no sentido “californiano” (pós-Carlos Castañeda, se me entendem). Isso explica porque em Floripa raramente se toca axé music e se toca tanto reggae e rock and roll. Depois da cidade de São Luiz, no Estado do Maranhão (esta sim, por ser próxima do Caribe, justifica a preferência local pelo som caribenho), Floripa é o lugar do país onde mais se escuta reggae, com a curiosidade de que a cidade está a 5.000 km do Caribe, e a 5.000 km da Terra do Fogo, o fim do mundo – um fenômeno de abrangência da música da Jamaica, ainda mais se pensarmos que a cidade é terra de branco, já que a maioria de sua população é descendente de europeus.

A cidade tem mesmo uma magia: quem a conhece não quer sair mais...

Um dia acredito que todo o mundo vai ouvir falar muito daqui.

Mas a ponte que fez a fama da cidade certo dia

apresentou um problema estrutural15

e foi interditada; após anos e anos de discussão, num interminável conclave técnico-burocrático, nenhuma solução para sua recuperação foi adotada e ela encontra-se lá, abandonada, à espera de sua recuperação pelos que mais deveriam cuidar dela: o governo

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e uma gigantesca rede de industriais e comerciantes do turismo e das imobiliárias, que exploram há anos a sua imagem e nada fizeram para evitar a sua decadência.

Hoje todos os que vêm à cidade chegam com a expectativa de passar na ponte, mas ficam frustrados ao saber que este passeio está proibido.

E assim arrastam-se os anos... Muitos anos, décadas, e a beleza da musa está cada vez mais desgastada...

Agora, para piorar, ela pode ruir, pois sofre com um câncer corrosivo que acabará por provocar a sua queda, o que será muito triste, principalmente para a autoestima da minha cidade.

E é isso que estou tentando evitar ao pedir socorro a todas as cidades que tenham orgulho de sua ponte, para que se juntem num movimento para arrecadar fundos para salvar a “musa de um autoproclamado Quixote da cidade de Florianópolis, Floripa, no sul do Brasil”, porque entendo que só há um jeito de resolver esse impasse: é conseguir dinheiro para assim desmascarar o álibi do governo, que se alicerça na falta de verba para nada fazer, e obrigá-lo a restaurar a glória da imponente donzela metálica.

Ajudem-me a salvar a minha musa!” E foi mais ou menos esse texto que diversos editores

jornalísticos em todo o mundo leram assim que abriram suas caixas de e-mails nos dias seguintes.

A sorte estava lançada! Agora era aguardar, para ver de onde poderia vir o

auxílio.

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Capítulo 7 - O EDITOR-CHEFE DO NEW TIMES16

O Editor-Chefe do NT lê o e-mail de Neminho Silva e fica sabendo de sua estória - Ao meio-dia, ele já aceitava que a

estória em si tinha elementos para se transformar num grande happening - Isso bem explorado “vai vender muito

jornal”

Ao abrir a sua caixa de e-mails naquela manhã, o Editor-Chefe do prestigiado jornal New Times, seguiu sua rotina: deteve-se primeiro na leitura das mensagens enviadas pelos seus contatos mais diretos, respondendo-as ou encaminhando-as conforme a urgência; depois, fez a leitura dos e-mails comerciais, respondendo a alguns, e por último tratou de ler as mensagens encaminhadas por leitores ao editor, com os mais diversos temas, para selecionar aquelas que seriam publicadas na próxima edição.

Entre essas mensagens estava o e-mail enviado por Neminho, e foi com crescente atenção que o Editor-Chefe começou a inteirar-se da estória. O que ali estava sendo contado era algo inusitado, pensou ele, à medida que se enredava na leitura da trama arquitetada pelo nosso herói. E precisou ler novamente o texto, o que fez, ainda com mais atenção.

Era uma estória realmente curiosa: um homem sozinho resolve insurgir-se contra o Estado incompetente e, por livre iniciativa, quer salvar uma ponte e com ela o orgulho de uma pequena cidade. E mais curiosa ainda é a forma que esse homem encontra para fazer isso: pedir socorro às cidades que se orgulham de uma ponte e com isso criar uma corrente mundial para salvar sua pequena musa. O Editor-Chefe pensou que aquela atitude quixotesca, no mínimo, renderia uma curiosa matéria no caderno de

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domingo. Mas lá pelas onze da manhã aquela estória ainda não lhe saíra da cabeça e ele já tinha articulado diversas ideias como solução para o caso. Ao meio-dia, ele já aceitava que a estória em si tinha elementos para se transformar num grande happening, numa grande ideia de marketing para uma ação global, e, além disso, num grande “espetáculo”: cidades ricas que se orgulham de suas pontes movimentando-se numa ação solidária para salvar o orgulho de uma pobre e pequena cidade do terceiro mundo:

- Isso é puro Woodstock, é puro “paz e amor” – pensou ele -, vai na contracorrente desse marasmo em que está esse planeta. Eu e meus concorrentes estamos focados praticamente em notícias de morte, terrorismo, crise, aniquilamento, concorrência, difamação, violência... E no meio de tudo isso um cara sozinho declarando seu amor por uma ponte e querendo salvá-la da ruína! Isso é amor! Não é fácil encontrar estórias reais assim facilmente no mundo. E como isso é raro na mídia... Acho que tenho aqui uma grande ideia, que pode valer muito e bem explorada vai vender muito jornal.

E lá pelas quatro da tarde ele já se encontrava esboçando um projeto de mídia onde relacionava as várias alternativas para conseguir a quantia que o heroico cidadão dizia precisar para salvar sua ponte: doações de parceiros comerciais, possíveis patrocínios e – o que parecia lhe agradar mais como ideia de marketing – uma série de megaeventos musicais nas grandes cidades para arrecadar o dinheiro; e já ia longe a tarde quando ele deu o trabalho por encerrado e dirigiu-se à rua.

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Capítulo 8 - O ROQUEIRO

O encontro do Editor-Chefe com o astro de rock no Wheel17 Bar – Ele fala sobre o e-mail e pede uma opinião ao amigo

roqueiro - Um projeto começa a ser esboçado – Coincidências

Ah, o universo conspira a favor – disse alegre o Editor-

Chefe quando encontrou casualmente seu velho amigo roqueiro.

- E aí ... Que alegria é essa? O que tá pegando? - Tem tempo para ouvir uma história? - Todo o tempo, meu amigo... Vamos ali no Wheel? Entraram no Wheel Bar, que ficava próximo ao jornal,

um boteco já com ares decadentes, mas que ninguém “da roda” deixara de frequentar, mesmo que raramente. O Editor-Chefe considerava aquele o melhor local no centro para encontrar pessoas quando se quisesse ter uma conversa mais reservada – e para a conversa de hoje, que pedia o máximo sigilo, não havia outro melhor. Foi nesse cenário que ele contou ao amigo roqueiro sobre o e-mail que havia recebido e as ideias que começava a ter.

Ao conhecer a história relatada pelo amigo, bem como as alternativas em que ele havia pensado, especialmente os megaeventos musicais, o roqueiro de imediato interessou-se:

- Cara, isso é demais! E como você pensa produzir tudo isso? Vai ser através de concertos? Com que bandas, produção, datas, enfim, como vai se realizar tudo isso? Você é quem vai ser o produtor? Ou vai fazer pelo jornal?

- Eu mesmo vou produzir, mas será através do jornal, pois a intenção é fazer tudo num período curto, talvez em seis meses, numa média de dois eventos por semana, e aí você

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sabe que é necessária uma mídia forte, no que somos imbatíveis. Mas eu resolvi conversar com você porque, primeiro, preciso de uma opinião profissional e segundo porque pensei em contar com você para fazer a produção musical dos eventos.

- Acho que eu posso fazer um pouco mais que isso... – disse o roqueiro

- De que maneira? - Como você acha que tem sido minha vida nesses

últimos quinze anos, depois do fim da banda? Vou te dizer: um ma...ras...mo. Conhece essa palavra? Tédio, meu amigo. Vontade de fazer tudo para matar a sensação de não estar fazendo nada. Vontade de chutar o balde. Vontade de virar Hare Krishna, Mohamad, alpinista... Um marasmo! Só lembranças, homenagens, entrevistas saudosistas em talk-shows, gente na porta pedindo cessão de direitos... E mais nada acontece. E você sabe, meu amigo, que eu só vivo no palco... Só tenho tesão ali. Foi o único lugar do mundo onde tive meus orgasmos de verdade! Às vezes eu acho que a pior coisa que fiz foi ter parado com a banda. Ganhei muito dinheiro, é verdade, mas o pessoal não aguentava mais tanta pauleira e quis parar; mas a única coisa ruim de parar é quando você não quer parar... Tenho uma ideia... Ainda vou amadurecer para depois apresentar a você, mas por ora já posso adiantar: que tal eu conversar com o pessoal e reunir a banda para promover pelo mundo uma série de shows? E se a banda se reunisse somente para essa causa? – Falou isso sorrindo dando a impressão de estar fazendo piada.

- Oh... Isso é sério? Ou é brincadeira? – Indagou o Editor-Chefe.

- Preciso de “algo novo na veia” meu amigo... E dessa vez o que tá faltando na veia eu sei o que é: é rock-and-roll.... Ehe! Maluco, maluco, ma-lu-co! Vamos fazer algo maluco...

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Finalmente algo maluco... ma... lu... co. Cara... Algo maluco de novo!! Uhuuu!

Ao final daquele dia, já em casa, o Editor-Chefe estava indo tomar um banho quando o celular tocou; no visor estava o número do amigo. Ao atender, ouviu o grito feliz do outro lado:

- Rock and roll!! Uhuuu! A roda começava a girar.... Um segundo telefonema do roqueiro logo depois

seria ainda mais emblemático: - Escuta essa: você acreditaria se eu dissesse que falei

com o Rod Stewart e ele disse que já tocou lá naquela cidade? E quer saber quem mais? O Eric Clapton! Até o Eric já tocou lá.... Coisa maluca!!! É como você diz: o universo conspira a favor!

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Capítulo 9 - COM O DIRETOR-PRESIDENTE

O Editor-Chefe tem a primeira conversa sobre seu projeto com o Diretor-Presidente do jornal - A apresentação do

produto

Na manhã seguinte o Editor-Chefe chegou ao trabalho com uma decisão já tomada e dez minutos depois batia na porta da sala do Diretor-Presidente, com quem tinha uma relação bem informal:

- Bom dia! Preciso ter uma conversa com você, mas primeiro peço que leia este e-mail que eu recebi ontem e assim que terminar me ligue que eu volto aqui – disse o Editor-Chefe, e foi para sua sala esperar que o Diretor desse o sinal, o que não demorou mais do que meia hora.

- E então? O que você achou dessa história? – indagou o Editor-Chefe.

- Curiosa, mas só isso. O que você está querendo me dizer?

- Você lembra da nossa conversa nas últimas férias sobre a falta que anda fazendo uma história interessante para vender jornal? Algo completamente diferente? Pois bem, meu caro. Quais são as nossas notícias nos últimos dez anos? Violência, terrorismo, corrupção política, crise econômica, acidentes, tragédias, ou seja, é uma mesmice só; cada edição de jornal é puro deja-vú. A mídia toda está presa a um marasmo interminável, só apresentando assuntos que todos os dias parecem se repetir e matam os leitores de tédio.

- Mas esse não é um problema apenas nosso. É de toda a concorrência, inclusive – disse o Diretor-Presidente.

- Concordo com você. Mas podemos nos diferenciar mais uma vez da concorrência – declarou o Editor-Chefe – Afinal, quantas vezes fizemos isso? Várias, não é verdade?

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- O que você tem em mente? Indagou o outro. - Imagina uma história como essa que temos na mão:

no meio de tanta violência e terrorismo, de tanta corrupção e crises, de tantas tragédias, vem um sujeito lá de uma cidade do terceiro mundo pedir socorro à humanidade para salvar não uma vida, mas... Uma ponte... E o orgulho de uma cidade... Isso não existe mais, meu caro, e bem explorada essa história pode fazer com que vendamos novamente jornais como água. As pessoas estão precisando de uma estória inacreditável, maluca, como um conto de fadas. E acho que temos aqui exatamente o que nos faltava para que isso acontecesse: uma estória! E, o que é melhor: uma estória real, que está acontecendo, é fato, não foi inventada! É um produto e tanto, meu amigo, não pode ser desprezado.

- Mas de que modo podemos fazer disso um produto vendável? Concordo que é uma história interessante, mas, mostre-me: como fazê-la rentável? – indagou o Diretor.

- Ora, você me conhece o suficiente para saber que isso é uma questão de pura estratégia, de puro planejamento, coisa que dominamos bem; afinal, quantas campanhas de sucesso fizemos juntos? Você bem sabe que temos público – e muito público – para ajudar num projeto dessa natureza.

- Isso é verdade! – concordou o Diretor-Presidente. - Dê-me mais algumas horas – disse o outro -, pois

preciso fazer alguns contatos, amarrar alguns pontos e checar as possibilidades de executar o projeto que tenho em mente. Voltaremos a conversar amanhã, ok?

- Ok. Até amanhã. Pelo que vejo, percebo que você está bastante empolgado – observou o Diretor.

- Para lhe dizer francamente, eu já andava meio assustado com a falta de uma boa ideia. Afinal, faz quase três anos desde nossa última campanha. Preciso dar um alô para

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os concorrentes, senão eles acabam “esquecendo de mim” – disse sorrindo.

- Como se eles pudessem esquecer você! – emendou o Diretor, também sorrindo.

O Editor-Chefe saiu apressado para sua sala. Estava eufórico com o plano que acabara de idealizar e já no caminho fazia seguidas alterações na sua ideia inicial.

- Ok, Dom Quixote de Floripa. Acho que está chegando a sua hora!

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Capítulo 10 - A OCASIÃO FAZ O LADRÃO

Tudo é uma questão de estar no lugar e na hora certos – A ideia de Neminho era apenas uma ideia que teve a sorte de ter um leitor certo – Já para o Editor-Chefe, ela era um mero

golpe de sorte

Alguém por certo está a indagar: - Mas as coisas aconteceram assim, simplesmente, de

maneira tão fácil? Isso é impossível! As coisas não acontecem desse jeito!

Posso até concordar com o leitor, mas nada impede que as coisas também aconteçam desse jeito, como estão sendo contadas. A questão é que em certos momentos aquilo que parece não ter nenhuma utilidade, não fazer nenhum sentido, assume uma dada importância para a estratégia de alguém (lembram do parafuso?). E, neste caso, aquilo que parecia uma simples atitude de um amalucado sonhador de um lugar distante e pobre assumia uma importância imagética fundamental para as pretensões de um homem de mídia, acostumado, portanto, a ver em pequenas coisas - para muita gente coisas até mesmo bobas, “estúpidas”, como essa atitude do nosso herói - uma potencialidade incrível de fazer (e ganhar) dinheiro.

Sim, ganhar dinheiro. Porque ninguém pense que, vivendo a vida atribulada que o Editor-Chefe vivia, ainda mais numa cidade grande e rica como aquela e com um cargo profissional de tamanha importância para manter, ele fosse um “romântico sonhador” qualquer, como “parece ser” o Neminho. Ao contrário, tinha a sensibilidade para captar oportunidades e inclusive sabia – pelo domínio que tinha no uso do texto – como atingir a sensibilidade do público; era isso que havia feito dele o Editor-Chefe do maior jornal da

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maior cidade do maior país etc. etc. etc. E é dessa forma que se pode justificar aqui tamanho interesse de um sujeito tão importante por aquela história, a princípio tão simplória, tão non sense, para alguns até mesmo bizarra. O que havia de aproveitável nela eram alguns poucos ingredientes que ele farejava, farejava e não encontrava na mídia ultimamente; e era com isso que ele sabia trabalhar bem: com aquilo que estava faltando, com aquilo que pegava o público de surpresa – e ele bem sabia que aquele público avidamente esperava e pagava (bem) para ver.

Era assim que ele vendia jornal, era assim que ele se sustentava no cargo, era assim que ele era um homem de mídia e granjeara respeito entre os profissionais (e os mercados) do mundo todo: explorando a emoção do público. Afinal, de que vive a mídia senão do impacto emocional que ela causa em tudo que se mostra? Se olhamos para a tela da TV, do cinema, do celular, se olhamos para a página do jornal, do livro, é porque a mídia nos chamou a atenção, cutucou nosso lado emocional. À exceção do celular, não olhamos para a TV ou para o livro porque eles nos fazem “ei, psiu, olhe aqui”. Olhamos para eles sempre que a mídia atiça nosso lado emocional, seja ele na forma de interesse, curiosidade, muitas vezes mórbida, compaixão, pavor ou surpresa. Enfim, onde quer que a mídia nos chame a atenção, ela nos chama pelo viés da emoção. Agora, fica mais fácil compreender como um sujeito chamado Chico Mendes, que vivia lá no interior da selva, da noite para o dia virou celebridade mundial. Sua “sorte” foi apresentar o problema certo para a pessoa certa, supostamente um jornalista de prestígio, que estava atrás de uma grande história de fundo ecológico, atrás de um herói ecológico; daí para frente tudo foi um grande trabalho de mídia e o que vimos foi uma das mais belas histórias da luta ambientalista mundial, infelizmente com um

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final trágico, que foi a morte daquele grande defensor dos povos da floresta.

Eram histórias assim, de criação de heróis, bem-sucedidas, que faziam o Editor-Chefe analisar com tamanha seriedade aquela história que “caíra de paraquedas” na sua caixa de e-mails. Era o seu “cavalo encilhado”, assim como era também o de Neminho Silva. Ambos eram mutuamente a matéria-prima para a empreitada do outro, eram problema e solução para o outro; era esse pequeno - mas principal, importantíssimo - detalhe que os unia, que fazia um dar importância ao outro. O valente, mas fraco Neminho, contava com a força do cavaleiro do poderoso reino para vencer sua luta, e este cavaleiro precisava de uma causa para manter-se cavaleiro. Sem uma história, sem um enredo, o cavaleiro não poderia brilhar, não se constituiria num herói; então, sem o fraco não haveria o forte. E, de outro lado, sem o forte o fraco não venceria. O Editor-Chefe sabia muito bem disso. Neminho também sabia muito bem disso.

É possível então concluir que não havia nada de espetacular, de inusitado no interesse do jornalista pela causa de nosso herói. A sorte de Neminho foi que a sua história preenchia os requisitos para aquilo que o jornalista considerava mais uma excelente cartada profissional, com a qual outra vez surpreenderia o mercado, fazendo jus à sua fama de criador de sucessos. O Editor-Chefe era um homem de ideias. Seu maior prazer era gerar ideias; e esmerava-se para que todas elas fossem bem-sucedidas. Afinal, iria pegar uma história simplória, romântica, transformá-la num fato jornalístico, sensibilizar milhares de pessoas e por fim transformar a personagem central num bom produto, tão bom que, no fim das contas, após todos os eventos, todas as vendas, renderia a cada empresa jornalística envolvida um faturamento no mínimo em torno de dez milhões de dólares.

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Assim, calculando que a “singela” história apresentava potencial para movimentar, nas cinquenta cidades que viessem a encampar a sua ideia, meio bilhão de dólares num período de seis meses, ele resistiu a esboçar um leve sorriso ao imaginar a cifra, que era grande em qualquer mercado. Era desse tipo de emoção que ele gostava: emoção que gera dinheiro; essa sim bem ao seu gosto capitalista. Quanto ao sucesso, ele como bom nova-iorquino sabia que o produto “ponte” é altamente vendável em Nova Iorque, portanto o risco de um erro de avaliação era muito baixo.

E havia ainda que considerar o lado não econômico de todo esse interesse, mas que também apresentava potencial para enormes ganhos: prêmios jornalísticos, prêmios sociais, destaque nas diversas mídias, aprovação social da causa, interesse emocional pela história, sem contar as diversas e inusitadas manifestações vindas dos mais diversos locais e níveis sociais que um case assim acaba motivando. Esse tipo de lucro não tinha como ser mensurado; estava acima de qualquer valor monetário. E no caso do Editor-Chefe, que já tinha sua vida econômica para lá de bem resolvida, o lucro que o interessava mais era este: do reconhecimento, do prestígio social e profissional.

Daí, portanto, que ninguém conclua apressadamente que ele fazia tudo isso por simples bondade; ele também tinha seus interesses. Como todos no mundo têm os seus.

E foi mais ou menos dessa maneira que aquela inusitada história lançada ao léu na internet por um solitário e quixotesco professor de gramática acabou virando uma grande ideia de marketing que originou uma campanha humanitária há tempos não vista na mídia.

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Capítulo 11 - DE NOVO, A INTERNET

As mil possibilidades que a internet abre também para os cidadãos ricos dos países ricos – O lado Produtor do Editor-Chefe do NT - Os e-mails apresentando o plano de mídia –

Um nome com credibilidade sempre pesa na balança

A internet, da mesma forma que auxilia sujeitos pobres, como Neminho Silva, também auxilia sujeitos ricos, como o nosso jornalista. E é pela rede que ele vai encaminhar um e-mail para diversos jornalistas amigos que também são editores-chefes dos principais jornais nas principais cidades da Europa, Ásia e Oriente Médio, pessoas que ele confia e considera importantes colaboradores, caso o seu projeto se torne viável.

No e-mail, ele apresenta aos amigos a ideia que pretende pôr em prática, pedindo a cada um deles que mantivesse o assunto por enquanto em sigilo. Sua intenção inicial era saber se um projeto dessa natureza poderia ser encampado pelas empresas em que eles atuavam, embora já desse isso como certo; afinal, seu nome impunha respeito.

Como bom produtor, o Editor-Chefe do NT se preocupava muito com a apresentação de uma ideia, para ele o momento certo para deixar a marca: – a primeira impressão é a que conta! Tendo em consideração essa certeza, ele monta um pequeno dossiê contendo um relato introdutório sobre o e-mail recebido e a história nele contida, anexando informações sobre a cidade e a ponte, e escreve um breve artigo comentando o impacto positivo que lhe causou aquela história e mostrando as possibilidades de ela tornar-se uma grande matéria jornalística (e por extensão uma grande ideia de marketing para uma campanha). Afinal, não era todo dia que aparecia um herói de natureza tão quixotesca quanto

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este e com uma proposta tão mirabolante: salvar uma ponte; um fato inusitado que – devidamente trabalhado pelos profissionais de mídia – poderia tornar-se uma causa, uma campanha, gerando um movimento em escala global, já que era preciso envolver diversas cidades para que o sonho do Quixote de Floripa se tornasse realidade. Assim, ele tinha convicção de que estava diante de um fato que poderia render – e muito – em termos de mídia e de finanças para as redes jornalísticas envolvidas.

E diz ele em certa parte do texto: “O que está fazendo falta no mundo é atitude, mas

atitude com fundamento, com filosofia! E uma história dessas é mais que romance; é filosofia, mexe com o que está mais escondido hoje em dia na alma do homem e raramente aparece na mídia: o seu lado bom. E é de histórias que falem desse lado bom que as pessoas mais estão sentindo falta! Terror, ódio, racismo, crises e violência, temos às pencas; já histórias do bem, são cada vez mais raras.”

Quanto aos aspectos econômicos dos eventos, o Editor-Chefe apresenta diversos argumentos positivos. Sobre o principal deles, conseguir a verba para salvar a ponte, cada cidade se encarregaria de arrecadar um valor estipulado inicialmente em três milhões de dólares, valor fácil de conseguir nas grandes cidades do mundo: bastariam 100 mil pessoas pagando trinta dólares cada, um preço considerado bem baixo, para atrair um grande público, cinco milhões de pessoas num total de cinquenta eventos. O excedente das verbas geradas com a publicidade e a realização de cada evento ficaria com a empresa jornalística promotora (e este era o argumento que o Editor-Chefe insistia aos amigos para usarem nas reuniões com suas diretorias, para convencê-las de que poderiam lucrar – e muito – com o evento).

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Além disso, a temática da campanha era por demais interessante: as pontes sempre chamaram a atenção das pessoas em todo mundo, fazem o orgulho das populações de milhares de cidades em todo o planeta; e principalmente as maiores cidades, o que significa grandes populações, milhões de pessoas precisando consumir avidamente histórias interessantes e dispostas a pagar muito dinheiro por isso. E dificilmente as pessoas em todo o mundo não se comoveriam com essa atitude “romântica” de um cidadão solitário de uma pequena cidade lá da “pobre” América do Sul. O tema abriria um leque gigantesco de oportunidades para lucro: além de CDs e DVDs dos concertos, venda de ingressos, venda de transmissão, venda de publicidade, de roupas, séries de souvenirs poderiam ser fabricadas para a campanha (imaginem só o quanto venderia um “kit de colecionador” contendo as 50 miniaturas das pontes das cidades onde acontecessem os megaeventos). Enfim, se a questão fosse “ganhar dinheiro”, ideias e argumentos para convencer os departamentos de finanças dos jornais por certo não faltariam.

Como aquele era um primeiro contato, apenas para testar a factibilidade da proposta, o jornalista tratou de ser econômico e – inclusive para salvaguardar sua ideia - adicionou mais alguns tópicos de forma genérica, com a intenção de esclarecer detalhadamente cada dúvida à medida que as respostas fossem chegando. Quanto a um teste público do produto, ele iria ser feito em breve, inicialmente para o público de Nova Iorque e depois para todos os jornais envolvidos no projeto.

E, como se a roda do destino estivesse girando claramente a seu favor, não demorou mais do que cinco dias para que quase todas as empresas jornalísticas respondessem

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mostrando-se avidamente interessadas no projeto e dispostas a conversar para torná-lo realidade.

Londres, Sidney, San Francisco, Lisboa, Hong Kong, Tóquio, ...

O Editor-Chefe vibrou na solidão de sua sala. Imprimiu alguns dos e-mails e ligou para o Diretor-Presidente, comunicando o interesse das empresas e pedindo para lhe falar. Meia hora depois deixava a sala do Diretor já autorizado por este a apresentar uma versão definitiva do seu projeto para aprovar na próxima reunião.

Voltou para sua sala e resolveu então que era hora de fazer o primeiro contato com o nosso herói:

- Agora sim, é hora de o mundo conhecer você, senhor Quixote de Floripa!

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Capítulo 12 - THE TURNING POINT

Neminho recebe o e-mail do Editor-Chefe do NT e leva um susto – O dia em que o nome de Neminho deu no New

Times

A primeira sensação de Neminho Silva ao abrir sua caixa de e-mails e deparar com a mensagem do Editor-Chefe do NT foi de susto. Era certo que ele passara as últimas semanas em total expectativa de resposta a um de seus e-mails, mas receber uma resposta do Editor-Chefe daquele jornal superava todas as expectativas.

E foi desse modo que Neminho ficou sabendo da existência do jornalista que ficara encantado com sua história e que estivera nesses dias envolvido em contatos com diversos jornalistas no mundo todo para encontrar uma forma de ajudá-lo a salvar a sua musa. Como era um primeiro contato, o jornalista achou melhor omitir os detalhes do projeto que estava arquitetando, mas comunicou a Neminho que estava disposto a fazer uma espécie de “teste de produto”, publicando sua história, para ver qual seria a reação do público ao conhecer sua luta e, aí sim, partir para a elaboração de um projeto visando arrecadar o dinheiro necessário. A mensagem terminava com um convite para uma entrevista e instruções de contato com a sucursal brasileira do jornal, que providenciaria tudo para realizar a matéria.

Para Neminho, foi um susto, com toda a certeza. Naquele momento veio de dentro do corpo um calafrio que ele nunca sentira. Pela primeira vez teve consciência de que decidira ser um herói e que agora chegara a hora de sê-lo verdadeiramente. Teria coragem de ser esse herói? Conseguiria realizar seu objetivo? Sentiu que chegara o seu momento de decisão, o seu turning point, e recuar justo

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agora que a primeira porta estava se abrindo não fazia o menor sentido. Afinal, não quisera a vida toda fazer um gesto heroico, ser um cavaleiro que salva a sua donzela? Pois chegara, enfim, a hora!

Ainda padecia desses temores quando ligou para o contato brasileiro do jornal, comunicando estar pronto para ser entrevistado. Era tudo ou nada: a roda iria começar a girar. Marcou a entrevista, que se realizou alguns dias depois. O Editor-Chefe encaminhou de Nova Iorque as perguntas que necessitava fazer para elaborar sua matéria.

E foi assim que o nome de Neminho Silva, herói quixotesco que quer salvar uma ponte, deu no New Times e deixou Nova Iorque encantada com aquele simpático “manezinho” – palavra difícil de pronunciar para o povo de lá, que desconhece o sufixo que mais caracteriza o falar de Florianópolis: o diminutivo “inho” – e sua inusitada luta para salvar uma ponte e, por extensão, o orgulho de uma cidade inteira. Como as pontes são a marca de Nova Iorque, e as pessoas lá têm uma ligação muito sentimental com elas, não é difícil imaginar como a população reagiu à história, que ocupou três páginas na edição de domingo. Basta dizer que foi, naquele ano, a terceira reportagem do jornal que mais recebeu manifestações dos leitores, na sua grande maioria querendo saber como poderiam ajudar o “pobre Quixote” do terceiro mundo a salvar sua donzela.

Na tarde da segunda-feira, após o almoço, ao chegar na redação o Editor-Chefe foi chamado na sala do Diretor-Presidente do jornal, que queria inicialmente lhe comunicar sobre a grande repercussão da reportagem e da entrevista e lhe autorizar a colocar de vez em andamento seu projeto dos megaeventos:

- A emoção está de volta! Você fez as pessoas se emocionarem meu amigo; e é isso que qualquer empresa de

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mídia quer atingir hoje em dia: o coração das pessoas. Sensibilidade e simplicidade. Há muito tempo este jornal não recebia tantas mensagens e com tamanha carga emocional. Todos querem ajudar, todos querem engajar-se. Temos um grande filão aí, meu amigo. Um grande filão. Vamos levar o projeto adiante. E já que temos um herói, é hora de apresentá-lo para o mundo.

E foi dessa forma que Neminho Silva, de uma hora para outra, virou celebridade.

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Capítulo 13 - CELEBRIDADE

Neminho Silva é convidado para ir a Nova Iorque e conhece o Editor-Chefe – Num voo panorâmico Neminho conhece as

pontes da cidade e se emociona

A repercussão da matéria foi o suficiente para o Editor-Chefe confirmar que estava com um excelente produto nas mãos. Neminho Silva era esse produto e agira certo ao investir nele. Era prioridade agora criar a infraestrutura para vender esse produto, fazê-lo dar o retorno financeiro esperado e, se possível, superar as expectativas.

Como bom jornalista, sabia que manter o foco na figura de seu herói, mantê-lo em evidência na mídia era o mais importante. Enquanto a luz estivesse acesa sobre Neminho, ele seria consumido e esse consumo faria com que fosse cada vez mais valorizado e, por extensão, o seu criador (este o tipo de lucro mais importante para o jornalista). Portanto, era necessário conhecer primeiramente (e bem) seu produto, ver suas capacidades, suas qualidades, seu potencial, enfim, era preciso ficar frente a frente com Neminho, conhecê-lo, saber de suas reais intenções e, evidentemente, estabelecer as regras para o projeto que ambos iriam encaminhar dali para frente.

Para Neminho, o projeto era uma história de vida, mas para o Editor-Chefe o projeto era antes de tudo mais uma empreitada comercial e, por isso mesmo, ele sabia que não poderia apostar errado, não poderia cometer qualquer erro por mais primário que fosse.

E foi com essa intenção que o jornalista resolveu de imediato convidar Neminho Silva para um encontro, determinando ao seu staff que providenciasse a sua ida a

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Nova Iorque. Nosso herói recebeu o convite e foi finalmente conhecê-lo.

Ao chegar a Nova Iorque, Neminho foi tratado com todas as honras, uma exigência do próprio Diretor-Presidente do jornal, que já via no singelo brasileiro uma nova celebridade.

Após conhecer a sede do jornal, bem como diversas pessoas da equipe que fizera a reportagem sobre ele, foi levado a uma sala no topo do edifício, para então ser apresentado ao Editor-Chefe e ao Diretor-Presidente, que o trataram com visível cortesia e simpatia.

Neminho fala um inglês razoável, mas mesmo assim havia sido providenciado um tradutor para a conversa, que não teve quase nada que fazer, pois os dois nova-iorquinos falam também espanhol e a conversa se desenrolou tranquilamente, com raros momentos de dúvidas, estas mais com relação ao vocabulário, quando então o tradutor podia intervir e cumprir seu papel.

Na conversa Neminho pôde contar com mais detalhes toda a sua história e, aos poucos, alguns pontos que ainda estavam em dúvida foram sendo explicados para os jornalistas, causando neles ainda mais interesse.

Esse primeiro encontro era de caráter social e Neminho recebeu alguns presentes, entre eles um voo panorâmico de helicóptero para que pudesse conhecer o que a equipe do jornal julgou ser do maior interesse do visitante: as diversas pontes da cidade. Sua reunião de trabalho com o Editor-Chefe seria somente no dia seguinte e assim ele tratou de aproveitar bem seu passeio. Afinal, estava na cidade do mundo que mais ama e valoriza suas pontes. Desnecessário dizer que a emoção dominou Neminho durante todo o trajeto do voo. A paisagem é de uma beleza indescritível, pois, além de seu gigantismo, a cidade toda cresceu na foz de grandes

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rios, dentro de ilhas, na beira do oceano, e a água é ali uma presença marcante. Com o crescimento, a cidade precisou estabelecer uma rede de ligações entre seus intermináveis bairros e distritos, optando pelas pontes, e o que se vê é um número interminável delas, cada uma com sua beleza arquitetônica singular, uma mais espetacular que a outra, de tal maneira que Neminho não sabia qual delas era a mais admirável. Mas sua grande emoção foi sobrevoar a ponte Verrazano Narrows, pois durante muitos anos ele sonhou poder vê-la de perto imaginando que nunca a conheceria, muito menos num voo panorâmico; e agora isso tudo acontecia... E ele se emocionou fortemente com a beleza da arquitetura daquela maravilhosa travessia. Para ele, a Verrazano parecia uma “irmã maior” de sua amada. E toda aquela imponência só fazia aumentar nele o desejo de que sua amada também voltasse a figurar assim, linda, na paisagem de sua cidade, cumprindo sua gloriosa função como ponte, como travessia. Naquele momento, ele mais uma vez jurou que ela voltaria, sim, a essa condição.

À noite Neminho foi convidado para um jantar informal com o Editor-Chefe e alguns amigos deste, pessoas que ele selecionara para conhecer seu novo motivo de interesse, como dissera brincando, mas de forma maliciosa, um desses convidados num comentário entre os amigos. O jantar foi agradável e Neminho, evidentemente, foi o centro das atenções. Praticamente todos conversaram com ele, já que a maioria falava espanhol ou português, e assim ele pôde mais uma vez falar com bastante desenvoltura sobre o que pretendia.

O acontecimento mais importante de sua viagem era, com certeza, a reunião que teria com o Editor-Chefe no dia seguinte para tratar diretamente do projeto; e diante de tamanha expectativa (e das duas horas de diferença no fuso

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horário), ele decidiu retirar-se mais cedo e foi levado para o hotel. Estava muito curioso para conhecer os planos do jornalista e isso causava uma certa excitação. Ele estava cheio de dúvidas e incertezas sobre o que lhe seria proposto; afinal, dali por diante passaria a pisar em um terreno completamente novo, minado, o terreno da mídia, e isso o deixara bastante reticente quanto às reais intenções do Editor-Chefe.

Neminho tinha suas razões, pois não estava acostumado com a magnitude e a velocidade dos fatos que estavam acontecendo em sua vida, de um momento para outro: tornar-se conhecido por tantas pessoas, fazer viagens internacionais, viajar de helicóptero... Ele tinha uma noção de que, nesse mundo da mídia, as coisas se tornam possíveis dos modos mais inacreditáveis, e de uma hora para outra a vida de alguém sofre uma reviravolta e a pessoa passa a ser o centro das atenções; e tinha também a noção de que nesse meio muitas empreitadas acabavam malsucedidas, e por isso precisava conhecer tão logo as intenções do norte-americano, que lhe parecera ser um sujeito de boa índole, embora isso não fosse nenhuma garantia, pois também deveria ter seus interesses nessa ajuda.

E no meio dessas dúvidas ele foi se distraindo, distraindo, e adormeceu. Dormiu um sono bom e acordou naturalmente, no dia seguinte: ainda era cedo e ele pôde admirar da janela do hotel a luz dourada da manhã incidindo sobre a torre da Brooklyn Bridge.

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Capítulo 14 - NEMINHO CONHECE O PLANO

A reunião com o Editor-Chefe - O diálogo franco entre ambos – O plano de Mídia - Questões profissionais são discutidas e Neminho fala de seus temores – Neminho

torna-se um produto

A reunião teve início pontualmente às nove horas da manhã. Ao chegar no edifício do jornal, Neminho foi conhecer a redação e lá foi recebido por um outro grupo de jornalistas, além de uma equipe de televisão que fora convidada para fazer a cobertura da visita, ocasião em que respondeu a algumas perguntas, sendo depois encaminhado à sala do Editor-Chefe, que lhe recebeu cordialmente.

Ele iniciou a conversa contando a Neminho sua surpresa quando recebeu o e-mail e ficou a par da sua história - uma boa causa para noticiar -, o que foi motivo para idealizar de imediato um projeto de mídia, cujos detalhes ele gostaria de discutir mais adiante. Antes, porém, disse que gostaria de saber um pouco mais da biografia de Neminho e direcionou a conversa para inteirar-se mais detalhadamente da sua vida e das reais condições em que surgiu a ideia de tomar uma atitude tão inusitada como aquela.

Neminho fez um pequeno relato de sua origem humilde, de sua carreira profissional, e contou da relação muito forte que estabeleceu com a cidade natal, com sua bela paisagem e com a ponte, pois desde criança sempre fora fascinado pela portentosa construção metálica, passando por ali tantas vezes que com os anos ela tornou-se parte integrante de seu cotidiano... Até o terrível dia em que foi oficialmente impedido de passar nela, como alguém que da noite para o dia se vê separado, por uma barreira, dos seus entes queridos, do convívio com o outro lado da cidade.

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- Foi o meu muro de Berlim – disse ele, metaforicamente.

A ponte deixara uma forte marca em sua vida e ele só se deu conta disso após ser impedido de passar por ela; foi então que começou a perceber que, ano após ano, o governo, responsável por sua manutenção, não dava sinais de que tão cedo – ou mesmo nunca – a ponte seria restaurada, retornando à função para a qual fora criada: ser ponte, ser ligação, local de passagem e comunicação entre pessoas. E, além de tão bela função, ainda há a beleza da estrutura, que por si só mereceria todos os cuidados e honras da cidade, mas esta parece ver a ponte apenas como cartão postal; e assim ela foi ficando lá, sem função, servindo apenas de modelo para fotografias... triste fim! Foi contra esse descaso dos governantes e da indústria turística que explora a cidade (e que não é pequena) e a favor da restauração da ponte em toda a sua magnitude que ele resolveu então insurgir-se e denunciar para o mundo o que estava acontecendo lá.

- E não há nenhum movimento local pela restauração com que você pudesse se aliar? Sabe, aquela coisa de unir forças... – Sugeriu o jornalista.

- Já fizeram algumas campanhas, o assunto já foi discutido à exaustão diversas vezes, principalmente quando é época eleitoral, mas aí, como o senhor deve saber, essas discussões são permeadas por uma série de interesses (principalmente os econômicos) e, na luta para impor sua solução, cada grupo esmera-se em barrar as intenções dos demais... E aí nada avança, não se chega a um consenso... E nesse meio tempo, a única coisa que avança é a ferrugem. E ainda há uma agravante: esses grupos de interesses são ou muito técnicos ou nada técnicos, e aí cria-se um fosso entre ambos que não permite que se estabeleça um diálogo que leve a soluções concretas. Assim, ou se entra no jogo como

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técnico e, portanto, representando interesses de construtores, ou apenas se fica do lado de fora esperneando, sem ser levado a sério. É desse modo que são tratadas as coisas no nível do coletivo em países onde não avançou a cidadania, o senhor sabe – disse Neminho lamentoso.

- Compreendo. Já presenciei casos semelhantes nos tempos em que fui correspondente. E os custos para a restauração que constam de seu e-mail são atualizados? A partir de que fontes você chegou a esse valor? – indagou o Editor-Chefe. - Pergunto isso para o caso de você conseguir os recursos e posteriormente eles não serem suficientes – explicou.

- Fiz todo um levantamento baseado nos cálculos dos especialistas em engenharia que foram publicados na imprensa – esclareceu Neminho; claro que são cálculos com valores que variam (embora não posso deixar de dizer que duvido que sejam “realmente” verdadeiros), e por isso precisei estabelecer uma média dos valores mais altos, o que acabou ficando em torno de cento e cinquenta milhões de dólares.

- Cento e cinquenta milhões... Uau! – disse o Editor-Chefe, os olhos voltados para o alto, como alguém que calcula mentalmente quanto isso representa.

Continuaram conversando sobre uma série de detalhes técnicos e Neminho teve a oportunidade de esclarecer as diversas dúvidas que trouxera na bagagem, motivo para muitos receios: como fazer para levantar tamanha quantia? E de que maneira seria arrecadada? Era preciso criar uma empresa para gerenciar o dinheiro? Ele teria que ficar em Nova Iorque ou teria que viajar? Quem se responsabilizaria por todo o dinheiro? E como lhe seria entregue para repassar ao governo?

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O jornalista tranquilizou Neminho, dizendo que ele, como produtor, já dispunha de toda uma estrutura para dar o suporte necessário às ações executivas e legais do projeto, e que portanto ele não se incomodasse por ora com essas questões. Quanto à presença do herói nos eventos de campanha, pediu que Neminho o escutasse atentamente e refletisse sobre o que ele iria lhe dizer:

- Uma coisa deve ficar bem clara nesta nossa conversa, meu amigo. Estamos em Nova Iorque, e, mais ainda, estamos na sede do grande jornal da cidade. Não chegamos até aqui apostando na sorte, mas sim através de uma sequência de estratégias bem elaboradas e bem-sucedidas, o que nos garante respeito e credibilidade perante milhões e milhões de pessoas e organizações. Diante disso, é preciso ficar bem claro que você torna-se a partir de agora parte de uma de nossas estratégias e, portanto, há certas condições que terão que ser cumpridas para que possamos ser bem-sucedidos.

- E que condições são essas? – indagou curioso Neminho.

- Na verdade não são condições, porque num caso desses o simples estabelecimento de condições nada garante. Eu poderia fazer você assinar um contrato com um milhão de cláusulas, mas como você conseguirá cumprir pelo menos uma delas se você não tiver a convicção do que quer, se não tiver a convicção da sua luta, enfim, se não tiver a gana e o talento para chegar lá? Compreende aonde quero chegar?

- Em parte – respondeu Neminho, curioso. - Nosso plano só dará certo se você sentir-se parte

dele, ou mais ainda, se você se sentir o próprio plano. E isso implica em dedicação, implica em doação de seu tempo para viagens, em participação nos eventos, reuniões, debates, enfim, há toda uma agenda a cumprir e da qual você não

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poderá esquivar-se, pois tudo vai passar a girar em torno do seu nome e todas as luzes vão estar sobre você. Assim, adeus aos amigos, adeus à vida calma, adeus à privacidade. Enfim, você se tornará um produto e em todos os lugares haverá um público ávido para consumi-lo. Então, se amanhã houver um show em Londres, ou em Hong Kong, todos estarão esperando por você lá, e você terá que estar lá; portanto, muito da sua atual rotina poderá repentinamente ser alterada. Compreende a dimensão do que estou lhe propondo?

- Posso fazer uma ideia, embora não consiga dimensionar o quanto – respondeu Neminho.

- Por isso você precisa estar convicto antes de decidir; e eu espero, torço, para que você já tenha essa certeza. Você se tornará um produto, repito, pois isso deve ficar bem claro, e essa condição implica assumir uma série de posturas, de comportamentos, de falas de acordo com nosso objetivo, que nada mais é do que levantar o dinheiro que você necessita para realizar seu sonho. Portanto, nada poderá sair do script que traçarmos para realizarmos nosso plano de mídia e você será doravante orientado tanto para relacionar-se com a imprensa quanto para receber homenagens. Não pense que você será transformado num mero robô; nada disso. A questão aqui é de estratégia, e para que ela funcione, temos que seguir rigorosamente os passos traçados. Por isso exijo daqueles com quem trabalho, acima de tudo, talento – sim, talento, pois corro muito menos risco de ser surpreendido no caminho; os talentosos dificilmente erram.

O Editor-Chefe percebeu que Neminho o observava com os olhos acesos, preocupado, completamente atento ao que ele dizia, e com receio de estar sendo muito contundente, tratou de suavizar o clima:

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- Mas você me parece ser do tipo que está plenamente convicto do que pretende.

- Acredito que sim – disse Neminho, relaxando um pouco.

- Pode ser que você ache cruel o que eu vou lhe dizer agora, mas precisamos focar no objetivo e no nosso caso o objetivo, como já frisei, é arrecadar o dinheiro que você precisa. Portanto, para usar uma força de expressão, “pouco me importa” a sua cidade, a sua ponte, o seu governo. E da mesma forma que pouco me importa, também pouco importa para as pessoas que irão lhe ajudar. As pessoas estão distantes do seu drama e irão continuar distantes dele por toda a vida. O que elas querem é vivenciar uma experiência de ajudar, de participar, o que elas querem é ver você num palco na cidade delas para que depois possam dizer para os amigos: “eu vi o Neminho, eu estava lá”; elas jamais falarão com você, pois serão atraídas para lá aos milhares, mas não por outra causa que não seja apenas ver você, já que estão cientes que não conseguirão tocar no pop star “da vez”, como nunca tocaram em nenhum dos outros astros que viram nos outros concertos; mas foram lá vê-los, fielmente. Assim, basta que você esteja lá; e é isso que é meu trabalho: providenciar para que você esteja lá, para que esse “lá” se constitua num evento, numa realização, para que os que pagarem por ele se sintam recompensados pelo gasto e os que souberem do evento fiquem aguardando pelo próximo.

Assim, daqui por diante há muita coisa que você terá que repensar, seja no que diz, no que faz, enfim, precisamos garantir que você tenha uma imagem impecável, de forma que nenhum jornalista possa vir a descobrir qualquer podre da sua pessoa e com isso “melar” todo o nosso projeto. Você tem a sua ficha limpa? Já prejudicou alguém? Usa algum tipo de droga?

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Tais perguntas pegaram Neminho de surpresa: - Não. Por que você me perguntou isso? - Suponha que você usasse e fosse fotografado com

um baseado na boca num fim de tarde numa praia da sua cidade. Você acha que um jornalista mal intencionado não iria de imediato ligar a sua droga ao dinheiro que você estaria arrecadando com o nosso jornal?

- Credo! É assim o nível de maldade? - Indagou Neminho.

- Maldade? Não se trata disso, mas de concorrência. Bem-vindo ao mundo da mídia. Acho que agora você conseguiu dimensionar o problema que estou lhe colocando. É por isso que precisamos falar abertamente, jogar limpo, e se você tiver algum podre é hora de conversarmos sobre ele; um bom produto não tem defeitos... e se os tiver têm que ser eliminados... ou muito, muito bem maquilados. Agora quero dar uma pausa, tomar um café, ou um drink, deixar você pensar um pouco. Mas, para que você fique desde já mais tranquilo, deixe-me dizer, de antemão, que à primeira vista considero você um bom produto, e acredito que você tem o talento necessário para tocarmos esse seu projeto.

Aquele comentário foi decisivo para Neminho aceitar os termos da ajuda.

Após a pausa, retornaram para a sala, e o Editor-Chefe, antes de receber o “sim” de Neminho, apresentou em forma de minuta os detalhes do projeto, que compreenderia uma série de cinquenta megaconcertos, em cidades cuja lista – embora incompleta - ele agora lhe mostrava, obedecendo a um determinado cronograma que previa dois megaconcertos por semana, iniciando por San Francisco e Nova Iorque, com a participação de diversos artistas, cujos nomes, também numa lista prévia, Neminho reconhecia, maravilhado, e – o principal – o retorno aos palcos da banda do velho roqueiro,

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que resolveu voltar a tocar somente pela causa. Neminho surpreendeu-se com a quantidade de detalhes do projeto, a enormidade de compromissos, e principalmente a enormidade dos valores envolvidos, mas no fim das contas ficou feliz de saber que estava nas mãos de alguém completamente profissional, que superava todas as suas expectativas. E pela primeira vez teve a sensação de que estava saindo da esfera do sonho para a da realidade.

Após o “sim” de Neminho, o Editor-Chefe lhe apresentou um contrato de compromisso pro-forma, que Neminho assinou, após esclarecer mais algumas dúvidas que ainda tinha, e por fim cuidaram de mais alguns detalhes para dar início ao projeto; coisas pendentes seriam resolvidas no andamento dos eventos. Encerrada a reunião, ele foi convidado para um almoço.

No almoço, Neminho ficou sabendo que a equipe do NT lhe preparara uma surpresa: no jornal da noite, no canal de notícias do grupo, de grande audiência, uma matéria que fora gravada na sua visita à redação do jornal naquela manhã anunciaria à população de Nova Iorque que seu ilustre visitante estava na cidade.

- Já que estamos juntos, não vamos perder tempo – explicou o Editor-Chefe – Portanto, é hora da fama! – disse sorrindo.

E, por causa dessa celebridade repentina, Neminho Silva ficou mais dois dias na cidade cumprindo seus primeiros compromissos da nova agenda, que iam desde sessões de fotos até uma entrevista coletiva.

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Capítulo 15 - PREPARANDO OS MEGAEVENTOS

As reuniões com os editores-chefes e com o roqueiro – Como o Editor-Chefe articulou o projeto – O roqueiro

declara que a banda vai se reunir pela causa – Começam os preparativos para os Megaeventos

Era bem do estilo do Editor-Chefe do NT não perder

tempo, seja como jornalista, seja como produtor de eventos. Ele era famoso no seu meio pela objetividade de suas ações. Todos sabiam que para trabalhar com ele era necessário muito profissionalismo. E como profissional atrai profissional, ele possuía à disposição uma excelente equipe que, em poucos dias, já havia organizado o cronograma das reuniões com todas as equipes dos jornais participantes, para elaborar o calendário dos eventos.

Havia muita coisa a organizar: fechar a lista de cidades participantes, fechar o calendário geral dos eventos, fazer os contratos com os artistas fixos e elaborar a lista (e contratos) dos artistas convidados, já que muitos queriam participar (cada cidade poderia sugerir um grande artista de sua preferência), aprovar e definir as logomarcas da campanha para uso padronizado em todos os tipos de impressos, bem como em camisetas, bottons, acessórios de moda, DVDs e uma infinidade de outros produtos para venda nos megaeventos, sem contar outra infinidade de contratações de profissionais que já constavam das listas de fornecedores da equipe e que atendiam prontamente ao serem chamados pela produção do evento para prestar serviços de apoio; afinal, trabalhar com aquela equipe, como dissemos, dava prestígio.

E graças a todo esse profissionalismo, em menos de trinta dias todo o cronograma já estava completo, as

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contratações já estavam em fase final, o grupo de artistas já estava definido (alguns apenas dependendo de ajustes nas suas agendas) e o jornal pode finalmente fazer o lançamento da campanha em favor de Neminho Silva – O Quixote de Floripa, nome que o Editor-Chefe escolheu para tornar famoso o nosso mané.

A reportagem de duas páginas era anunciada na primeira página com a chamada de capa O velho e bom rock and roll retorna para salvar uma ponte. Destacando a volta do velho roqueiro aos palcos, trazia todas as notícias da campanha, com a lista das cidades, dos artistas, preços de ingresso, formas de colaborar, sites de apoio, enfim, todo o chamado “serviço” para a informação dos leitores e, é claro, uma entrevista com o astro do rock, na qual ele comunicava que se sentira emocionado com a história do Quixote e resolvera reunir a banda, mas frisando: apenas pela causa. A oportunidade única de rever o grande astro no palco criava uma expectativa ainda maior quanto ao sucesso da campanha, o que não tardou a acontecer: assim que foi anunciado que os cem mil ingressos de San Francisco e os cento e trinta mil de Nova Iorque estavam à venda, os sites de compra tiveram grandes problemas de tráfego pelo excesso simultâneo de acessos dos compradores interessados. Começavam também a chegar pedidos e mais pedidos de lojistas interessados em adquirir os produtos promocionais da campanha.

O Editor-Produtor acertara mais uma vez.

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Capítulo 16 - NEM TUDO SÃO FLORES NA VIDA DE UM HERÓI

Neminho torna-se o centro das atenções da mídia – O estrago causado pelo jornalista ao usar a expressão “cafetões da ponte” – A surpresa e a irritação das

autoridades – Neminho conhece sua primeira dificuldade

Com a publicação da matéria no famoso jornal, Neminho Silva tornou-se o centro das atenções da mídia internacional, nacional e, principalmente, da sua cidade. A entrevista publicada no New Times repetiu-se em diversas revistas e jornais do Brasil e de Santa Catarina; ele era convidado para todo tipo de programas na televisão (até aqueles de culinária) para contar a sua história, a sua luta. Entrevistas sucediam-se e ele podia explicitar claramente suas intenções a um público ávido de conhecer todos os detalhes. O assunto virou notícia e dominava todas as conversas. O lançamento da campanha aumentara ainda mais sua fama.

A fama de Neminho Silva cresceu, então, de forma meteórica, para sua surpresa, para a surpresa da população de Florianópolis e principalmente para a surpresa dos governantes da cidade, que não gostaram nada de serem pegos “de surpresa”, ainda mais que a reportagem os colocava numa situação contra a parede, já que expunha o seu descaso e incompetência para com a cidade ao protelar por anos e anos a restauração; e não havia nada que se pudesse fazer para reparar esse fato: a ponte estava lá, abandonada, doente, vítima de anos e anos do descaso dos governantes - e não havia como negar o que era óbvio.

E, para piorar a situação, durante a entrevista Neminho desavisadamente comentara com o jornalista da sucursal que o ouvia (e acreditando que estava falando em “off”, ou seja, quando o microfone está desligado) que o fato

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dos turistas ficarem frustrados ao chegarem na ponte, atraídos por ela, e descobrirem que não podem atravessá-la, “usá-la”, faz lembrar aquelas histórias de cafetões que anunciam suas moças para os clientes e estes, ao chegarem no quarto, descobrem que a tal moça “não funciona”, não é tudo aquilo que foi propagandeado. E completou:

- Sob todos os pontos de vista, é uma burrice - dizia Neminho - vender uma imagem de que a ponte funciona, pois logo, logo, o turista descobre que foi vítima de uma propaganda enganosa; e irá com toda certeza avisar a outros para não cair mais no “golpe da foto”. Deixando a ponte chegar ao que chegou, o governo está matando a sua galinha dos ovos de ouro!

O que ele não imaginava é que o jornalista iria valer-se da expressão cafetões e explorá-la com destaque na reportagem. Assim, aquilo que Neminho jamais ousaria fazer publicamente, ou seja, atacar o governo de maneira chula, deselegante (pois ele sempre valorizara o tratamento educado a todos, mesmo os adversários), acabou sendo feito justamente em seu nome e, pior, no New Times. Seu susto foi grande, principalmente ao imaginar a situação desconfortável das autoridades do governo perante o ridículo a que a expressão os expunha.

E não foi diferente do que ele imaginava. Entre os homens do governo, a reportagem caiu

como uma bomba, e o corre-corre de assessores e autoridades no Palácio naquela manhã dava bem uma dimensão do estrago.

- E todo esse ridículo causado por um sujeito? E sozinho? Quem é este fulano que se acha no direito de tomar uma decisão que deveria ser de competência exclusiva nossa? - indagava irritado o todo poderoso e temido Assessor do governo.

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O Estado18

estava ali para representar o cidadão (essa era a lei) e este cidadão estava querendo passar por cima da representação do Estado: isso era inadmissível para os membros do governo local.

- Quem ele pensa que é para nos colocar numa situação de ridículo perante todo o mundo? Isso é inadmissível! – declarou irado o Assessor. E completou:

- Temos que trazer esse sujeito aqui para uma reunião o mais depressa, para que ele saiba o estrago que causou e responda por isso.

O Assessor não via com bons olhos aquela situação, pois, mais do que ser embaraçosa, ela colocava em pauta uma série de problemas pendentes e ele sabia que essas pendências poderiam ser exploradas pelos adversários (e com toda a certeza seriam, apostava). Assim, enquanto alguns no governo ainda estavam apenas surpresos pelos recentes acontecimentos, sem medir a dimensão dos perigos ao projeto político de seu partido, o Assessor colocava, dali por diante, no topo da sua lista de prioridades o problema criado pelo herói mané.

Naquele momento, só ele sabia o quanto de perigo aquele acontecimento representava para a continuidade no poder da sua ala política. Precisava então agir o mais rapidamente possível e sua estratégia seria mudar o governo da condição de adversário para a condição de aliado do novo herói local; era preciso então trazê-lo para seu lado, cooptá-lo urgentemente.

Trataram de contatar Neminho, mas este, devido a uma semana de compromissos no exterior, só retornaria à cidade duas semanas depois; e a espera pelo cidadão foi um período árduo para o Assessor, uma vez que a reportagem municiara a oposição, que fazia gato e sapato do governo,

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cuja incompetência – diziam os oposicionistas - era tamanha que já virara assunto até em Nova Iorque.

E foi desta forma que Neminho Silva conheceu a primeira dificuldade na sua trajetória heroica para salvar a sua donzela.

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Capítulo 17 - A CONVERSA COM O ASSESSOR DO GOVERNO

Neminho fica sabendo que o governo está incomodado com sua ação – A teoria da livre iniciativa do cidadão frente à

teoria da representação do Estado

Passados vinte dias, a conversa com o Assessor do governo foi marcada para uma tarde da semana seguinte ao retorno de Neminho, no seu Gabinete; Neminho chegou lá meia hora antes. Estava apreensivo; afinal, aquele convite poderia significar duas coisas: uma solução para o seu problema ou alguma reclamação pela imagem do governo apresentada na matéria. Mas, fosse o que fosse, estava preparado. Sabia que aquele momento chegaria; sonhara sempre com isso, com uma oportunidade de estar cara-a-cara com o governo e cobrar diretamente uma atitude, uma solução que livrasse sua donzela daquela maldição de morte; por isso, sentia-se feliz ao ver que a roda do destino estava girando. Aquela reunião teria que resultar em algo.

Nosso herói adentrou à sala do Assessor após ser anunciado e o primeiro olhar que recebeu do funcionário foi um típico olhar “burocrático”, que não estampava nem alegria nem raiva pela sua presença.

- Muito prazer... Os cinco primeiros minutos foram de formalidades: o

funcionário se apresentando, dizendo que estava ali em nome do governo, que este, por um lado, estava feliz com a repercussão e a notoriedade do gesto do cidadão, mas, por outro lado, estava surpreso e não tinha gostado nada de ser colocado numa situação de ridículo etc. etc. etc. E que essa reunião havia sido convocada com o único propósito de saber de Neminho quais eram suas verdadeiras intenções com aquela atitude: era um protesto, era uma ação efetiva, era

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um projeto político, era uma jogada de marketing para algum produto, era um movimento popular, político, enfim... O que desejava o cidadão? E aonde aquilo tudo iria chegar, agora que o caso ganhara destaque até internacional? Afinal, embora talvez o cidadão não tivesse percebido, havia mexido com algo muito delicado, que envolvia uma série de interesses e agora o governo encontrava-se numa situação constrangedora:

- O governo entende sua atitude romântica, embora não deixe de reconhecer que ela foi extremada. E então meu caro senhor, o que tem a dizer?

Neminho olhou calmamente o funcionário e falou: - Não há muito que dizer, pois toda a história já foi

dita; o que importava ser colocado a público já foi feito pelos jornais. Minhas intenções estão bastante claras para quem leu as diversas reportagens que a imprensa fez sobre o assunto: salvar a ponte, já que o governo demonstrou claramente sua incompetência durante anos e anos para solucionar essa questão; e se o Estado falhou, se é incompetente para tal, resolvi eu mesmo tomar as rédeas do destino dessa interminável novela, que até aqui só tem um saldo negativo. Se o Estado falhou ao não dar a devida atenção ao problema, isso é um problema de imagem para o governo resolver, não é mesmo?

- Mas o senhor há de convir que a forma como o problema está sendo colocado na mídia fere frontalmente diversos princípios. Afinal de contas, a ponte é uma coisa pública, não pertence a uma só pessoa, ou seja, não é de interesse individual, mas patrimônio coletivo, e compete ao governo gerenciar qualquer assunto relativo a ela. Assim considerando, qualquer atitude que envolva a coisa pública precisa de representação coletiva e não individual, concorda?

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- Concordo em parte – respondeu Neminho. Admito que o governo é quem cuida das coisas coletivas, mas, se ele vier a falhar na gerência dessas coisas, nada deve impedir o cidadão de se manifestar ou mesmo tomar uma atitude para buscar uma solução se este cidadão tiver argumentos ou ideias que sejam comprovadamente muito mais efetivas que a do Governo. Afinal de contas, a lei nos permite a livre iniciativa neste país, não é mesmo?

- Concordo em parte... – Retrucou o Assessor. Existe a livre iniciativa, mas antes dela existe uma lei que garante a competência do Estado para representar cada cidadão, individualmente. Assim, acho que o senhor não percebeu que sua atitude fere frontalmente esse princípio da representação legal do Estado, não acha?

- Concordo que o Estado deva representar o cidadão, mas discordo totalmente dessa representação, se o Estado se mostrar menos competente para gerir um problema do que um cidadão comum. Aqui em nosso caso, acho que minha atitude é simples: coloquei em prática um projeto que com toda a certeza conseguirá em torno de cinco meses um valor de cento e cinquenta milhões de dólares, coisa que o governo em anos e anos diz que não conseguiu. O que isso tem de errado, se o objetivo é cuidar do patrimônio coletivo? Onde há crime nisso? O Estado foi menos competente que um só cidadão. É isso que está incomodando? Há algum crime nisso?

- Não estamos caracterizando sua atitude como um crime; não é esse o caso, ainda – disse o Assessor.

- Ainda? – indagou surpreso Neminho. - A questão é que estamos em terreno delicado a

partir de sua atitude. Um grande estrago já foi feito e estamos aqui conversando para ver como se poderá resolver essa questão de forma benéfica para todos. Não vim criticar

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seu comportamento; aliás, no governo há pessoas que admiram a sua atitude e torcem mesmo para uma solução, mas é claro que o senhor irá compreender que daqui para frente é melhor deixar que alguém dos nossos lhe dê uma assessoria para conduzir seu movimento... De forma discreta, bem entendido; afinal, não queremos que daqui a pouco venha alguém da oposição dizer que isso é uma “armação do governo e da imprensa que o apoia para conseguir dinheiro”... Por isso o chamamos aqui: para chegarmos a um acordo.

Ao ouvir aquilo, Neminho percebeu claramente que estava ali para ser cooptado, e isso o deixou furioso, no entanto controlou-se para parecer calmo:

- Acordo? Eu ouvi bem? Vamos recomeçar. Agora sou eu quem pergunta: quais são as suas intenções com essa conversa?

- Minhas intenções são claras: consertar um estrago imenso na imagem do governo causada pelo senhor com sua – para usar um termo que o senhor mesmo usou – “livre iniciativa”. Mesmo sendo livre, toda iniciativa tem um limite, não concorda?

- Em parte meu senhor, em parte – respondeu Neminho. Sou um cidadão que respeita a lei, pois a considero fundamental para qualquer projeto coletivo, mas sou nascido e criado num país que optou pelo capitalismo e se o senhor

sabe bem o que isso significa, basta lembrar Adam Smith19, basta lembrar sua tese da livre iniciativa. Se eu não defender esse princípio, como viver aqui? Estou errado em defender tal princípio?

- Mas quando o senhor fala de livre iniciativa, esquece que o Sr. Smith estava falando de uma empresa, não da pessoa – lembrou o Assessor.

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- Mas se a questão é conceitual, o que o senhor acha que eu sou, além de pessoa? O que acha que significa a minha empreitada? Não sou também uma espécie de organização, com uma missão, um objetivo? Não sou também uma espécie de produto, que irá gerar um valor significativo de dinheiro? Sou ou não sou também uma empresa, senhor Assessor?

- Não posso afirmar categoricamente... Teoricamente, o senhor tem toda a liberdade para agir por conta própria, por livre iniciativa, mas há situações em que somente o Estado pode representar o cidadão, como essa agora que estamos discutindo.

- O senhor então está me dizendo que estou impossibilitado de levar minha luta adiante somente porque o governo não concorda? Não há algo ditatorial aqui?

- Não estou afirmando que o senhor está impossibilitado – disse o Assessor. Apenas estamos querendo dar um tratamento mais “profissional” à questão. Afinal de contas, é um projeto ousado, que envolve muito dinheiro, muitos interesses comerciais...

- Profissional? O senhor não me faça rir. A única coisa que faltou nesses anos todos de descaso foi exatamente isso: profissionalismo, competência da máquina, inteirinha, do governo. E agora o senhor vai querer me falar de profissionalismo? Não me faça rir...

- O senhor está sendo apressado em seu julgamento... Não vamos entrar em terrenos que não interessam aqui... Estou falando de interesses, meu senhor. E aqui há muitos em jogo para tudo ficar na mão de uma só pessoa. É até uma questão de segurança, se é que o senhor consegue perceber. Sua ação é bonita, louvável, mas o senhor foi mexer com algo grandioso e é importante que daqui para frente o governo assuma o comando. O próprio mandatário-mor fez questão

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de me pedir para lhe dizer que ele próprio deseja trabalhar em conjunto com o senhor nessa empreitada...

- Pergunte então a ele duas coisas: a primeira é se ele realmente professa os ideais da livre iniciativa, e a segunda é se ele já leu Dom Quixote, se sabe o que é um herói, se sabe que o herói dos romances representa a figura de um homem que luta sozinho, agindo por livre iniciativa, contra a incompetência dos que o governam, buscando melhoras para todos etc. etc. etc. Não sou burguês e nem defendo a burguesia, mas ela “inventou” – e mantém cada vez mais vivo - o romance para ter a figura do herói com a clara intenção de manter viva a principal bandeira de sua luta: a livre iniciativa. É também para isso que existe o herói: para que toda criança que cresça lendo um romance saiba que é possível, sim, lutar sozinha, dizer “basta”, ter livre iniciativa: quem sabe faz a hora, não espera acontecer (que ironia, pensou Neminho, usar essa frase justamente numa situação

oposta: - me perdoe, Geraldo Vandré20

). O herói existe para isso, para manter vivo esse mito de que é possível, sim, um cidadão, sozinho, desmascarar o poder, o Estado, se este Estado se mostrar menos competente do que ele, cidadão. Não vim aqui dizer que sou um herói e tampouco defender a burguesia, mas com certeza vim aqui lhe dizer claramente que tenho todo direito, pela constituição, de agir por livre iniciativa. E por isso coloco minha defesa da teoria da livre iniciativa frente à sua teoria da representação do Estado.

- Bem, se o senhor quiser ir por esse caminho... – Disse o Assessor.

- A questão não é que eu queira ir... A questão é que esse é o caminho. Estamos ou não estamos no Ocidente? Somos ou não somos republicanos? Há algo mais burguês hoje em dia do que o conceito de República? Acredito que não. E por isso lhe digo que tudo aqui tem que se resolver

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dentro do terreno exclusivo da liberdade. Não estou num estado comunista, mas numa terra de pessoas de livre iniciativa. Por isso só há um caminho, só há um vetor aqui a ser discutido: tenho ou não tenho liberdade para me julgar competente, como venho demonstrando, e resolver um problema que considero o Estado incompetente para fazê-lo? É isso que está “pegando”? É isso que vocês não querem aceitar?

- Nossa conversa está tomando um rumo muito teórico, meu senhor – lembrou o Assessor.

- De forma alguma. Estamos falando de princípios, de fundamentos. E não há nada que eu goste mais de respeitar – ipsis litteris – do que os princípios estabelecidos, e estou convicto de que estou até agora agindo completamente dentro dos princípios da sociedade em que vivo.

- Se o senhor vê as coisas por esse prisma, devo lembrar-lhe que é também a lei que garante ao Estado o ato de representar. Assim, acredito que nossa conversa chegou a um ponto em que talvez seja melhor consultar uma assessoria jurídica para nos esclarecer melhor quem está infringindo leis aqui... E pode não ser o governo.

- Isso parece ameaça... – Atalhou Neminho. - Não estou aqui ameaçando o senhor. Acredito que

não chegaremos a um nível desses, uma vez que o governo espera a sua colaboração; e essa é uma conversa cordial...

- Mas eu prefiro terminá-la aqui. – Neminho sentia-se desconfortável com o rumo da conversa e achou que toda aquela pressão exigia dele um melhor preparo.

Assim, decidiu encerrar o assunto e ficou de dar uma resposta em breve. Nesse tempo, conversaria com algumas pessoas amigas para orientar-se, pois sentia que as coisas poderiam complicar-se no futuro, já que, intimamente, sabia

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desde já que sua resposta seria um claríssimo “não” a qualquer tentativa de cooptação do governo.

- Eu tomei sozinho a iniciativa... E acho que sozinho eu vou até o fim – pensou enquanto levantava-se e despedia-se do Assessor.

Na saída do Gabinete, invocou: - Que me protejam todos os heróis de todos os

romances! E o Adam Smith também! Hehehe... Na solidão da sala, ao observar Neminho saindo, de

modo quase arrogante, o Assessor já sabia exatamente qual era a resposta que aquele lhe daria.

E estava coberto de razão, porque, como veremos, não tardou muito a saber que não haveria qualquer parceria possível entre ele e Neminho Silva.

E essa certeza lhe confirmava que agira certo ao não ficar parado esperando pela resposta...

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Capítulo 18 - QUEBRA DE SIGILO

A secretária indiscreta – O telefonema do Editor-Chefe da Gazeta de Notícias – Neminho desmente que haja pressões

do governo para que ele desista - O segredo faz o herói!

Dar uma resposta negativa às pretensões do governo não tinha sido a única das preocupações de Neminho naquele momento. Afinal, sua vida havia mudado bastante nas últimas semanas e ele já sentia o peso de uma agenda carregada de compromissos e da falta de tempo, cada vez mais escasso, para dar conta deles.

As viagens já eram muitas, para fazer a promoção da campanha, e logo começariam os concertos, nos quais ele deveria marcar presença. Em consequência, sua caixa de e-mails vivia abarrotada e ele se via na obrigação de responder a cada um deles, obrigação que, pela impossibilidade de ser cumprida, foi transferida para uma jovem estudante que estava atrás de algum dinheiro extra e aceitou trabalhar para ele, auxiliando-o em sua correspondência.

Infeliz escolha foi aquela! A moça, a princípio parecendo ser discreta e atenciosa, permanecia em sua volta grande parte do tempo e Neminho sequer apercebeu-se de que ela era boa ouvinte e, portanto, não imaginaria que ela falava demais, o que só foi constatar mais tarde, quando recebeu um telefonema confidencial do Editor-Chefe da Gazeta de Notícias, lhe perguntando se era verdade que pessoas do governo não gostaram nada do que saíra na reportagem e mandaram chamá-lo ao Gabinete para tirar satisfações, e que estavam querendo proibir a campanha, pela humilhação sofrida com a matéria do New Times etc. etc. etc. Neminho precisou apenas de um tempo em silêncio para concluir que a notícia só poderia ter vazado graças à

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estudante, já que ele bem lembrava que ela ouvia constantemente as conversas dele ao telefone, principalmente com seu amigo mais próximo, um jornalista amigo de infância, testemunha fiel de toda a trajetória vivida pelo herói até aqui; ele com toda certeza não teria cometido essa indiscrição! Quanto a ela, bastou ser pressionada para confessar ter contado para um cunhado jornalista da Gazeta de Notícias diversos fatos que ela ouvira ali sobre o que estava passando entre Neminho e as autoridades.

Nas suas perguntas o jornalista deixava claro que já sabia da entrevista de Neminho com o Assessor e sabia também que ele andava atrás de assessoria jurídica.

- Por que você está procurando assessoria jurídica? Você sofreu alguma acusação? O governo está lhe pressionando? Porque se isso estiver acontecendo você pode fazer uma declaração; nós abrimos o espaço que você precisar. Você bem sabe que nosso jornal não goza da simpatia desse governo, mas também não temos simpatia por eles; aliás, nem mesmo temos qualquer conta do governo aqui. E portanto nos consideramos isentos e prontos para lhe dar apoio se precisar.

Neminho tremeu. Um fato dessa natureza significava claramente que as coisas poderiam sair do controle se ele não pusesse um freio nas especulações. E assim tratou de ser cordial com o jornalista, agradeceu o apoio, negou qualquer conversa daquele tipo entre ele e o governo e disse que não desejava fazer, portanto, qualquer declaração sobre o fato, terminando ali a conversa. O jornalista ainda tentou fazer mais algumas perguntas, porém Neminho desconversou rapidamente e despediu-se.

Na manhã seguinte, assim que a jovem estudante chegou para o trabalho foi respeitosa e rapidamente despedida.

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Neminho não perdoava quebra de sigilo; fosse o que fosse, segredo era segredo. E para ele o segredo é a arma do herói, algo que é ensinado deste a Antiguidade: foi o segredo que permitiu a Ulisses montar secretamente seu ardil para destruir seus inimigos e recuperar seu reino.

- Se o segredo tivesse sido quebrado e alguém tivesse avisado aos pretendentes da Penélope, que viviam como parasitas em Ítaca, sobre o massacre que Ulisses preparava, a Odisseia teria o fim que teve? – Indagava ele em pensamento enquanto preparava-se para mais um compromisso, dessa vez um prazeroso encontro com seu amigo do Jornal da Cidade.

Decidiu que precisava ter mais cuidado com o que diria dali para frente na presença de estranhos, fossem quem fossem.

- O segredo faz o herói! Foi essa a máxima que ele criou e passou a respeitar.

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Capítulo 19 - NEMINHO PASSA A SER OBSERVADO

O jornalista não se convence e segue Neminho – A importância da rede de amigos para um jornalista - O

informante conta sobre o ríspido encontro no Gabinete – A manchete e o editorial a favor de Neminho

O Editor-Chefe da Gazeta, que indagara a Neminho

sobre suas tensões com o governo, evidentemente, como bom jornalista de faro afinado, não se sentiu satisfeito com as respostas e supôs que ali naquela fumaça com certeza deveria haver também fogo, o que bastou para que designasse alguém para seguir os passos do nosso herói e lhe trazer diariamente um relato contando onde Neminho havia ido, com quem tinha conversado, enfim, qualquer informação relevante:

- E até não relevante, se estiver fora da ordem! E foi assim que já no dia seguinte o jornalista ficou

sabendo que Neminho saiu de casa às quatro da tarde, dirigiu-se à redação do Jornal da Cidade e lá ficou por quase duas horas, saindo com o Editor-Chefe até sua casa, com quem jantou e conversou até quase onze da noite.

- Filho da puta, vai entregar o ouro só pro pessoal do Jornal da Cidade! - Exclamou irado ao saber do encontro.

Então havia alguma coisa acontecendo, com toda certeza e ele iria descobrir o que era:

- Tem alguma armação nisso aí, mas eu vou descobrir. No mundo da imprensa, ai daquele jornalista que não

tem uma boa rede de informantes; dificilmente saberá das coisas com a mesma rapidez que seus concorrentes. O Editor-Chefe da Gazeta de Notícias respeitava essa máxima acima de tudo na sua profissão e em todos esses anos construíra uma considerável rede de amigos, grandes auxiliares nas horas

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mais importantes em que ele precisava das informações valiosas, dos furos jornalísticos que fizeram a sua fama e o colocaram na chefia do jornal.

E, por julgar que essa era uma hora importante, ligou para um desses amigos, informante fiel de tudo que se passava nos corredores do palácio, e logo ficou sabendo que o encontro entre Neminho e o Assessor não tinha sido dos melhores, que o cidadão estava sendo pressionado para concordar que dali para frente o governo assumisse junto com ele a condução da campanha etc. etc. etc., o que a princípio não concordou, criando um impasse de tal modo que pelo visto a coisa só se resolveria na esfera jurídica. Mas uma coisa já era certa: Neminho iria bater de frente com o governo e pelo visto não iria aceitar a parceria.

E foram essas informações que os leitores da Gazeta de Notícias compartilharam na edição da manhã seguinte, pegando de surpresa tanto Neminho quanto o Assessor do governo, que praguejou irado:

- Quem foi o filho da puta que deixou vazar a conversa?

Aquele, com toda a certeza, não seria um bom dia no Gabinete.

Para piorar, ao lado de uma manchete em letras grandes – Governo quer que Neminho desista de salvar a ponte – havia um editorial que expressava repúdio total do jornal a qualquer tipo de pressão que o governo tivesse feito ou viesse a fazer sobre o ilustre cidadão Neminho Silva para que desista de sua romântica empreitada, já que “não há autoridade moral da parte do poder público para condenar a sua livre atitude”.

E completava: o que o governo não quer aceitar é o fato de um cidadão sozinho ter posto a nu toda a incompetência de um Estado inteiro para gerenciar um

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problema, a princípio, tão fácil de ter sido resolvido já há muitos anos. É isso que parece estar incomodando nossas autoridades.

Foi desse modo que Neminho Silva se viu no centro de um debate, porque no dia seguinte a manchete do Jornal da Cidade – Entre Neminho Silva e o governo, a ponte é um assunto público ou um assunto privado? - estampava no seu duplo sentido uma crítica à indiscrição da Gazeta, por colocar na rua um assunto até então reservado apenas ao cidadão e ao governo, ao mesmo tempo em que questionava se a salvação da ponte poderia ser mesmo uma ação de natureza privada, se aí não estaria havendo uma ingerência do cidadão Neminho Silva num campo que era reservado ao Estado, portanto, público.

Utilizando um texto claramente a favor da posição do governo, o Jornal da Cidade levantava uma série de questionamentos que iam desde o fato de, sozinho, Neminho Silva ter dificuldades em participar dos eventos, até receber e gerenciar as verbas, viajar seguidamente para cidades após cidades, sem sequer ter tempo para si, quanto mais para tratar de um assunto público de tamanha ordem, o qual “este jornal, embora claramente um jornal liberal, entendia ser de competência apenas do Estado” etc. etc. etc.

E perguntava ainda o Jornal da Cidade: “quando a verba chegar, quem contratará os serviços, quem pagará pelos serviços, quem garantirá a qualidade desses serviços? Como se escolherá a empresa de engenharia para fazer a obra? E quem garantirá a segurança da obra? Chamar um arquiteto para fazer sua casa é fácil para qualquer pai de família, mas aqui estamos falando de uma ponte, de uma obra gigantesca, que precisa no mínimo de uma organização para administrá-la. Isso não pode ficar na mão de uma só pessoa. E no caso do romântico cidadão, como agravante, ele

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é formado numa área completamente alheia aos números, o que, convenhamos, se constitui numa incerteza quanto aos destinos financeiros do que for arrecadado”.

As perguntas se sucediam nessa direção para afinal o jornal apontar que, no fim das contas, Neminho teria que ceder ao governo a gerência da recuperação da obra; e se no fim das contas iria ter que ceder, por que já não o fazia desde já e deixava o governo assumir o comando das ações?

Desnecessário dizer que, no dia seguinte, a Gazeta de Notícias novamente voltou à questão da incompetência do Estado, que o cidadão tinha todo direito de ir sozinho até o final, “pelo menos para lavar a alma da população pobre, vítima direta do descaso de nossas autoridades, e que vê na ponte degradada e abandonada a imagem perfeita de como vem sendo tratada a coisa pública na cidade e no Estado” etc. etc. etc.

E finalizava declarando que esperava que o exemplar cidadão “siga solitário, tal qual um Quixote, como já é conhecido no mundo, e salve sua amada das mãos malvadas dos seus “cafetões”, como bem intitulou o Times. Viva Neminho Silva. Viva o Quixote de Floripa!” – brado “de guerra” que o jornal estava publicando pela primeira vez e que iria se repetir numa série de vezes dali por diante.

E foi isso que um estarrecido Neminho leu na primeira página da Gazeta. Seu maior temor – e isso já era quase uma certeza – é que ele acabasse numa desconfortável situação de joguete entre duas ideologias que brigavam por anos e anos na cidade, e que acabariam por desvirtuar o foco da questão principal - salvar a ponte – e transformar o fato em luta política.

Nosso herói estava coberto de razões ao ficar preocupado: briga ideológica sempre era briga inflamada, e, como veremos adiante, Florianópolis já havia provado o sabor

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amargo dessas horas difíceis. Mas antes vamos acompanhar Neminho num encontro com seu amigo, que, este sim, vivia uma situação incômoda, já que, por ser o Editor-Chefe do Jornal da Cidade, tinha que privilegiar o discurso de seu grande cliente, o governo local, e publicar a posição deste nas páginas de seu jornal, posição que ia contra o romantismo que toda aquela inesperada história inspirava e que punha em cheque toda uma relação de amizade que ele tinha com Neminho Silva.

Mas, como dito, a amizade entre ambos era forte, um detalhe muito importante nesse momento.

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Capítulo 20 - O AMIGO JORNALISTA

O amigo de infância vê surgir em Neminho a obsessão pela ponte e o prepara para “enfrentar as feras” – Neminho cria

o hábito de dizer frases curtas

Vimos que o Editor-Chefe da Gazeta de Notícias ficou bastante irritado ao ver Neminho Silva conversando reservadamente com seu concorrente do Jornal da Cidade, mas o que ele ainda não sabia é que ambos eram amigos desde os tempos do colégio e tinham constituído uma sólida relação de confiança, a tal ponto de Neminho ter confidenciado apenas para ele as suas intenções.

Na primeira vez que o amigo confidente ouviu o projeto de Neminho, considerou aquilo apenas conversa de bar, que logo seria esquecida, mas com o passar do tempo percebeu que nosso herói falava sério, que dia a dia o assunto voltava à tona e já era uma coisa meio obsessiva, “demente”, como dizia brincando. Aos poucos ele foi se tornando o ouvinte fiel de Neminho e convenceu-se de que o amigo estava realmente decidido a ir adiante. E como amigo é essa coisa de estar junto, pegar junto, caminhar junto, concluiu que era melhor assessorá-lo, já que ao menos daquele universo chamado mídia ele entendia um pouco e assim tornava-se de grande valor o seu conhecimento para auxiliar nosso Quixote na caminhada.

Era com ele que Neminho se preparava cada vez que tinha que ser “atirado às feras”, que era como gostava de dizer quando ia dar uma entrevista, participar de um programa de TV ou de um evento público.

Esses momentos se constituíam num verdadeiro “estado de alerta”, pois os jornalistas normalmente iniciavam suas entrevistas com perguntas acerca da sua atitude

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quixotesca, da reportagem no famoso jornal americano e sua repentina celebridade, sobre como seria a campanha para arrecadar os fundos, em que cidades ocorreriam realmente os concertos que a mídia já anunciava, enfim, perguntas triviais, normais para aquele momento, mas logo a seguir insistiam em lhe fazer perguntas geralmente querendo provar que estava ocorrendo algum embate entre ele e o governo... e manter esse segredo não era fácil.

Por isso o jornalista sentia que seu apoio devia ser mais do que mera amizade, precisava ser profissional, voltado a transformar o amigo numa pessoa preparada para “enfrentar as feras”, que não eram poucas e cujos interesses – saber o máximo de tudo – lhe obrigavam a manter-se constantemente em alerta, medindo as palavras para não dar margens a interpretações distorcidas.

E foi com esse amigo que Neminho aos poucos acabou perdendo o medo das câmeras, dos microfones, das perguntas incisivas dos repórteres. Seu discurso amador, demorado, cheio de particularidades (técnicas, históricas, sociais etc.) foi se tornando ágil, com frases objetivas, diretas, pois passara a compreender a noção de tempo e o quanto este vale no universo da mídia. E compreendeu tanto, que criou o hábito de dizer frases curtas, de forma direta, com o mínimo de elementos possível, e com isso conseguir falar tudo que precisava no menor tempo. Assim, ele resolvia dois problemas: se o tempo da entrevista fosse curto ele não deixaria de dizer o que precisava ser dito e, caso o jornalista resolvesse editar a matéria, ficava difícil tirar qualquer frase, já que todas eram muito objetivas e, portanto, necessárias para esclarecer o leitor, ou ouvinte, além de evitar, ou pelo menos minimizar, os mal-entendidos – o que convenhamos era muito importante num debate, ainda mais acirrado, como estava ficando aquele, insuflado pela imprensa.

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Por diversas vezes Neminho visitara seu amigo na redação do Jornal da Cidade, fosse para um café, para irem almoçar ou mesmo para uma simples visita, mas, com o desenrolar dos acontecimentos, os encontros entre eles passaram a ser bastante discretos. Os almoços, por exemplo, raramente ocorriam e atualmente seus encontros se davam mais em jantares em sua casa, quando ele recebia o amigo para as suas “aulas”.

Na “aula” daquela noite eles tratariam de um assunto mais sério: a entrevista que Neminho teria que dar brevemente, quando declararia publicamente seu “não” à parceria do governo.

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Capítulo 21 - BASTIDORES DO PODER

O sonho de poder do Assessor – O mandatário-mor é sua criação maior e ele não admite que algo possa sair errado

Assessores são a personificação da “última barreira”

para se chegar ao poder. Quando intentamos falar com o presidente de uma organização, de um país, ou com uma autoridade investida de alto poder de decisão, geralmente teremos que vencer essa última barreira, o que pode ser um ato vitorioso ou não, dependendo aí de fatores que vão desde as simpatias que o Assessor possa ter para conosco até as antipatias.

É claro que, em certas esferas de poder, basta termos chegado nessa última barreira para não sermos mais impedidos, haja vista que o Assessor esta lá apenas e somente como um facilitador das decisões da autoridade; nesse caso, essa barreira cai naturalmente, porque se chegamos até ali é porque algo de importante precisa ser discutido nas esferas mais altas.

Já em outras esferas, muitas vezes é tamanho o poder do Assessor para decidir sobre o que deve ou não ser do conhecimento da autoridade, que ele acaba acumulando mais conhecimento que a própria autoridade acerca do que se está decidindo; e situações assim haviam permitido a certos assessores estabelecerem redes de poder paralelo que os tornavam praticamente mais influentes no jogo político do que muitas das autoridades às quais assessoravam.

O Assessor do mandatário-mor era um desses casos, exemplar bem acabado de um poder paralelo que há muito vinha dominando o governo local, de tal forma que não era segredo para ninguém que quem mandava era ele. Assim, todos aqueles que precisavam de algum favor nos altos

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escalões ou mesmo aqueles que tinham relações econômicas com o governo, geralmente negociavam direto com ele ou alguém de sua confiança. Até mesmo chefes de outros partidos assumiam à boca pequena que discutiam muitas das decisões políticas diretamente com ele.

A fama do Assessor fez dele uma figura extremamente forte na política local. Os seus adversários e inimigos políticos costumavam dizer que o mandatário-mor era uma mera figura protocolar, e que vinha ao Gabinete praticamente para assinar os documentos, pois quem mandava de fato era o Assessor. Colaborava para aumentar essa fama um fato notório nas cerimônias, quando ele era visto acompanhando o mandatário-mor, mas com comportamentos tão maternais que lembravam mesmo uma mãe austera, daquelas que ficam o tempo inteiro arrumando o filho, que tem que agir conforme suas ordens e sobre o qual elas têm poder absoluto.

Os discursos lidos pelo mandatário-mor – de uma forma pretensamente inflamada, vibrante, como convém a um líder - não combinavam com seu estilo, sua oratória – pois ele era visivelmente tímido e de pouco vocabulário - e ficava evidente que falava um texto alheio, deixando a clara impressão de que era outra das imposições do Assessor.

Este sabia de sua fama na capital, mas dissimulava seu poder e em público costumava alegar, ao ser indagado se não pensava em candidatar-se, que nascera para servir e, portanto, seu trabalho era como uma missão, que ele tinha de cumprir e da qual não podia desfazer-se.

Afirmações desse tipo não convenciam muita gente e eram lenha na fogueira da oposição e do jornal a Gazeta, que costumavam afirmar que, espertamente, o Assessor queria exercer o poder de decidir, mas jamais assumir responsabilidades; deter o poder mas não dar a cara para

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bater. No comentário jocoso de um articulista, ele era a verdadeira cara da “lojinha número 1 da cidade”, numa alusão maliciosa às conexões maçônicas do assessor, que, tipicamente como um bom “membro da loja”, só agia “na surdina”, dando as ordens sempre “por trás”. Desnecessário dizer que ele não nutria muitas simpatias pelo citado jornal.

De fato, na calada do seu quarto, o Assessor gastava todas as noites um bom tempo para refletir sobre as decisões do dia seguinte, que determinaria ao mandatário-mor. Ele encontrava-se no centro de uma negociação e havia pressões do bloco de apoio ao governo, o que lhe custara três dias seguidos de reuniões, mas ele já sabia como articular o resultado a seu favor.

Tomou um banho, bebeu um conhaque e enquanto fazia isso lembrou mais uma vez, como vinha fazendo nesses últimos dias, do encontro com o cidadão que chamavam Quixote. Riu:

- Quixote! Porra, não tinha um nome melhor? Dom Quixote era um magrelo e até que combina com aquele sujeito, mas... O que será que ele está pretendendo...? Sim, porque tem algo por trás disso tudo... Um sujeito que não quer nenhum tipo de acordo com nossa ala. Se ele fosse qualquer um, não teria uma cobertura tamanha da imprensa. Além do mais, se é verdade o que estão dizendo, o dinheiro arrecadado será de cento e cinquenta milhões de dólares. Cento e cinquenta milhões... Só para recuperar uma ponte que nem mesmo vale tudo isso! É um bom dinheiro, e tanto dinheiro não surge assim do nada. Tem gente grande por trás disso, tem um projeto maior nisso tudo, ah, tem sim; e eu preciso descobrir para não ser pego de surpresa. Só me falta vir um sujeitinho embolar meu meio de campo justamente quando a cidade começa a ficar famosa, quando toda a mídia começa a prestar atenção em nós; isso eu não vou permitir!

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Preciso me inteirar totalmente do que está acontecendo! Tem algo maior aí, que pode melar todo o nosso projeto, e já é hora de saber o que é! – considerou.

O Assessor decidiu marcar uma reunião com os profissionais da imprensa que considerava de confiança para analisar os fatos, conhecer suas opiniões e formar uma estratégia de ação a partir das perspectivas que aqueles profissionais apresentassem. Ele sempre teve em mente que a melhor informação vem dos profissionais da imprensa, da mídia, e em todos esses anos tratou de estabelecer uma rede confiável de amigos nesse campo. Era notório que o Assessor tratava com todas as gentilezas aqueles que gozavam de sua confiança, e com todo o desprezo e aspereza os que o criticavam, ou a sua criatura, o mandatário-mor, e mesmo o partido, fosse pelo que fosse. Ele acreditava que agindo assim expunha publicamente os próprios jornalistas que o apoiavam, para os demais colegas, e desse modo os atrelava ao seu círculo de poder; mas essa exposição incomodava muitos jornalistas, que não gostavam de manifestar publicamente suas posições políticas - e alguns deles só concordaram em apoiá-lo se ele os tratasse em público com uma “certa indiferença”, o que ele estrategicamente concordou e cumpriu. E assim surgiu a brincadeira maliciosa de chamar de Reuniões da Távola Redonda a todos esses encontros bastante discretos entre o Assessor e seus homens de confiança, encontros que eram comunicados diretamente a todos por ele. A reunião da manhã seguinte seria uma dessas e ele tratou de avisar a cada um antes de ir dormir.

- E depois eu vou cuidar daqueles filhos da puta da Gazeta. Mas dessa vez eu preciso ir com cautela, pois há um fato novo no ar, que há tempos eu não via: a cidade está dividida não entre esquerda e direita, mas entre dois pensamentos de direita, entre a burocracia e a livre iniciativa:

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se é o Estado liberal quem manda ou se é o cidadão liberal quem decide; e isso é o perigo, pois a direita não deve ficar dividida... é prejudicial para o meu projeto... Que a esquerda viva dividida é um problema dela... Mas aqui precisamos de uma direita forte, que não rache, não se divida, ao contrário, se alie nas horas decisivas, como sempre foi. Isso só aumenta o cacife da oposição e dá mais dinheiro para esses “esquerdas de merda” da Gazeta.

E com essa certeza de que no fim de tudo sua ala política acabaria sempre unida e mais forte, ele deitou-se, confiante de que no dia seguinte iniciaria mais um de seus vitoriosos embates. Afinal, era ele o principal homem naquele governo, havia conquistado essa posição e nada iria mudar tal condição. Essa era a sua única ideologia. Sorriu e dormiu.

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Capítulo 22 - A REUNIÃO DA TÁVOLA QUADRADA

A sabatina com os jornalistas – A discussão entre o Assessor e o Editor-Chefe da Gazeta de Notícias

Se os encontros reservados entre o Assessor e os

homens de mídia de confiança eram chamadas de Reuniões da Távola Redonda, os encontros coletivos dos quais participavam todos os demais jornalistas, inclusive os opositores, passaram a ser jocosamente chamados de Reuniões da Távola Quadrada; e assim bastava saber que o Assessor estava numa reunião dessas para deduzir que o encontro não lhe era nada agradável, uma vez que isso sempre significava passar por sabatinas carregadas de perguntas ardilosas, para as quais precisava ter respostas rápidas sem comprometer-se, enfim, negociar com o inimigo, algo que ele não engolia desde jovem, mas que aprendera a suportar e, com o tempo, dominar, tudo em nome de sua estratégia de poder - e embora lhe causassem certo asco, ele até que encarava bem esses momentos, pois, afinal de contas, era um negociador por excelência.

Ao chegar na sala de imprensa, já era aguardado por um expressivo número de jornalistas, em sua maioria opositores de seu governo, alguns que vinham de jornais e tvs de menor importância e com os quais bastava uma conversa com a promessa de um bom patrocínio para convencê-los a apoiar qualquer causa, além de alguns jornalistas correspondentes de jornais nacionais, que também passaram a se interessar pelo que estava ocorrendo em Florianópolis. Num relance, o Assessor viu quem estava na sala e na mesma hora fez uma avaliação de como iria agir para debater o assunto do encontro. Ele sabia que precisava convencer o maior número de jornalistas para torná-los favoráveis à

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postura do governo no caso; e já nas primeiras perguntas sobre como o governo estava encarando a situação vexatória a que tinha sido exposto, passou a insistir na incapacidade do cidadão Neminho Silva para, sozinho, gerenciar uma ação de tamanha monta, e daí entender que o melhor seria o cidadão aceitar a consultoria de um profissional do governo para administrar a campanha em favor da ponte. E antes que novas perguntas surgissem para saber o que faria o governo, tema sobre o qual o Assessor não gostaria de continuar a dar explicações, decidiu que a melhor estratégia seria desviar o foco de interesse da conversa. E assim lembrou de imediato que devia ser levado em consideração o aspecto legal da empreitada do cidadão chamado Quixote, que, no seu entender, estava se constituindo num caso de insubordinação civil, uma vez que ele negava que o governo assumisse os compromissos de gerenciamento da campanha para salvar um patrimônio público, que estava sendo levada pelo mundo afora, mas “à revelia”, sem qualquer participação do Estado que cuida desse patrimônio, colocando em cheque uma série de instituições e passando dos limites que a lei garante a um cidadão.

Devido à importância do assunto daquela entrevista, o próprio Editor-Chefe da Gazeta de Notícias resolvera comparecer. Fizera bem ao decidir estar ali, e sua intervenção demonstrava bem isso:

- Ora – atalhou – mas é justamente esse o sentido da campanha do Quixote: provar a inoperância do Estado e dessas instituições nesses anos e anos, e provar que um cidadão sozinho pode muito mais do que o Estado. Nada mais liberal que isso! É o fato de colocar a nu a incapacidade estatal para a gerência pública, que está incomodando o governo? – perguntou com um ar irônico e cravou os olhos nos olhos do Assessor, que não teve como desviá-los.

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- Não se trata de capacidade ou não. Trata-se de legalidade, de representação. Um cidadão sozinho não pode simplesmente apossar-se de um problema de natureza pública e achar-se dono da solução, tomar as rédeas da decisão. Se fosse assim com tudo o que é público, seria um caos – disse o Assessor.

- Mas temos que admitir que Neminho Silva está dando um baile no governo e isso deve incomodar, não é mesmo? E quanto à legalidade ou não, antes de tudo é preciso considerar que a atitude do cidadão não tem nada de irregular, bem pelo contrário, é um ato em favor de toda uma cidade. Não tem ele todo o direito de julgar o governo incompetente e, por isso mesmo, decidir agir sozinho para solucionar o problema? – insistiu o jornalista.

- Ora, mas temos lei, temos representação, há um Estado para representar o cidadão e este não tem o direito legal de decidir em paralelo, de tomar para si aquilo que é público, mesmo que isso seja um problema e ele tenha a solução.

- Mas se ele tem a solução, não é isso que importa? - Convenhamos que sim - disse o Assessor -, mas eu

insisto: há regras de legalidade, regras de representação, regras essas que foram quebradas pelo cidadão. É isso que estamos tentando evitar, porque amanhã a população vai perguntar sobre quem vai receber a verba da campanha, quem vai administrar essa verba, quem vai pagar pelos serviços, e isso tem de ser feito na legalidade. É por isso que insisto que é hora do Sr. Neminho Silva aceitar o serviço profissional de um assessor do governo para que tudo seja feito dentro da mais completa legalidade.

- Mas pelo visto essa não é a intenção do Neminho... No que já se pode antever, ele irá receber sozinho o dinheiro de toda a campanha, para provar que sozinho ele pode fazer

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muito mais – e em menos tempo - do que todo o Estado, e só depois passar a verba ao governo – insistiu maliciosamente o Editor-Chefe da Gazeta.

O Assessor parecia querer fuzilá-lo com os olhos. De todos os que estavam ali presentes, aquele era sem dúvida o seu mais ferrenho opositor. Já tinha praticamente feito acordos tácitos (como ele gostava de chamar) em diversas situações com vários dos jornalistas naquela sala, mas o Editor-Chefe da Gazeta de Notícias não se dobrava e parecia a cada dia demonstrar uma antipatia maior por ele.

- Bem, o governo ainda não considera como definitiva a negativa de parceria do famoso cidadão, mas espera que ele seja guiado pelo bom senso e entenda que há limites para os sonhos; e que esse limite chama-se lei.

- Correção, senhor Assessor. A frase correta é: não há limites para os sonhos – atalhou o jornalista.

- Se o senhor entende assim, devo relembrar: existem as leis para ordenar nossas ações – contrapôs o Assessor.

- Mas lembre-se também de que o objetivo do herói é fazer a justiça. E nesse caso, o abandono do Estado em relação à ponte nesses anos todos bem merecia uma condenação; acho que Neminho Silva é o justiceiro, é a justiça popular que veio condenar o Estado, chamá-lo de incompetente, de incapaz de gerenciar um problema que nem mesmo é tão grande. Neminho veio cobrar a ação que não houve. E veio cobrar da forma mais humilhante: pagando para isso. Acho que é hora do Estado entender a metáfora que há por trás dessa atitude: que há anos todos vêm pagando ao Estado para agir, mas este nada vem fazendo. Neminho Silva veio cobrar em nosso nome, veio nos redimir, liberar essa amarra que é a burocracia estatal, esse labirinto onde nos jogam para que nunca achemos a saída, o caminho

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mais rápido para as soluções – e assim ficarmos para sempre nas mãos dos burocratas, dos assessores.

As palavras do Editor-Chefe da Gazeta de Notícias feriram direto o Assessor, e esse ferimento era pior para ele porque sabia que todos ali concordavam com a verdade do discurso do jornalista; o governo realmente falhara em não dar uma solução há muito para o problema da ponte e agora se encontrava nessa situação vexatória.

Sentindo que não iria sair vitorioso naquele momento, o Assessor resolveu que era hora de dar a entrevista por encerrada, e para evitar novas perguntas comprometeu-se a um novo encontro em breve.

Antes de sair, ainda lançou mais um olhar de ódio para o Editor-Chefe da Gazeta de Notícias e encontrou o rosto deste voltado para ele, os olhos a observá-lo e na boca do jornalista aquele sorriso irônico que ele odiava mais que tudo, porque sabia bem o que significava. Afinal, desde a primeira vez que o jornalista pronunciara aquela frase, na primeira discussão que tiveram em todos esses anos de tensa relação, ela nunca mais deixara de ecoar a cada vez que se encontravam:

- Eu sei muito bem qual é o seu jogo! Eu sei muito bem qual é o seu jogo! Eu sei muito bem...

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Capítulo 23 - OS DEBATES ESQUENTAM

Começam os megaeventos - Neminho precisa viajar e demora a dar uma resposta ao governo – Com a demora, os

debates esquentam – A homenagem dos cariocas

A demora de Neminho em aceitar a parceria com gente do governo só fez acirrar os debates, cada dia mais acalorados, em torno do assunto, o que fazia a alegria dos proprietários dos jornais, que aumentavam o número de páginas e a tiragem de acordo com a manchete que estampavam em cada edição e a importância do entrevistado naquele dia.

Um fato novo veio deixar os donos dos jornais ainda mais alegres. É que os primeiros megaeventos começavam a acontecer e Neminho precisou ausentar-se mais duas semanas da cidade. Enquanto viajava, assuntos envolvendo o seu nome não faltavam, bem como continuava a surgir em cena todo tipo de especialistas para discutir sua atitude: juristas das mais diversas correntes e interpretações ocupavam páginas e páginas de política para darem razão ora ao Estado, ora ao cidadão; engenheiros, arquitetos, ambientalistas urbanistas e técnicos de áreas afins ocupavam também páginas e páginas para discutir as (im)possibilidades estruturais para a recuperação, as alternativas da engenharia, os perigos do impacto ambiental da obra, as diversas soluções etc. etc. etc.; psicólogos e sociólogos não ficavam de fora do debate e discutiam desde o perfil psicológico do quixotesco cidadão até as questões sociais que levam um simples cidadão a uma atitude “rebelde”, como dissera um desses especialistas; colunistas e fofoqueiros de plantão tratavam de pôr os admiradores de Neminho a par de seus sucesso no exterior, acompanhando suas viagens para participar dos

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megaconcertos, onde era presença obrigatória, aplaudido como um verdadeiro pop star; e até as páginas esportivas não ficavam imunes ao assunto, pois muitos ídolos esportivos locais faziam questão de manifestar apoio ao ilustre Quixote mané.

Na outra ponta, pessoas que normalmente não tinham o hábito de ler – quando muito, liam um pequeno livro ou uma ou outra notícia num jornal – passaram a comprar diariamente não só o exemplar do jornal que mais se aproximava de sua opção ideológica, mas também o exemplar do jornal adversário, para saber “o que um respondeu ao outro”. E curiosamente, de uma hora para outra, os leitores da cidade ascenderam a um status nunca visto na quase totalidade das cidades brasileiras: ler dois jornais diários.

Os proprietários dos jornais estavam exultantes e bastavam palavras mágicas como Neminho, Megaeventos e Ponte para concordarem imediatamente com o aumento das tiragens.

E o fenômeno não atingia somente os dois diários envolvidos na disputa: nos programas de rádio multiplicavam-se as enquetes diárias do tipo “você acha que Neminho Silva está certo em não permitir que o governo represente a cidade nos megaeventos?”, ou ainda “o que você faria para tornar-se um herói?”; e nas estações de TV especialistas repetiam as entrevistas que davam para os jornais, aumentando em muito o trabalho das equipes de produção local, que viviam correndo atrás das figuras mais em evidência na semana para aumentar a audiência de seus programas.

Quando Neminho retornou da viagem, foi recebido por uma enxurrada de repórteres que o perseguiam desde o aeroporto até sua casa, na busca da melhor informação. Aliás,

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com o desenrolar dos megaeventos, os dois dias após cada viagem, acabaram se tornando dias terríveis para sua tranquilidade e ele já tentara as mais diversas artimanhas para ficar sozinho ao menos para recuperar-se da viagem, o jet lag, mas não tinha jeito. Assim, a conselho de seu amigo, resolveu que a cada retorno faria sempre uma entrevista coletiva e, se não precisasse viajar para algum compromisso dentro do país (pois era sempre notícia na mídia nacional e convidado para diversos eventos), aceitaria dar uma ou outra entrevista exclusiva; e não eram poucos os pedidos.

O que mais exigia dele era estar sempre atento ao tipo de público para o qual estava se dirigindo nessas ocasiões. Afinal, haviam se multiplicado os grupos de admiradores de sua causa e era preciso ter um discurso para cada situação, falar especificamente para cada público, tarefa delicada.

Além disso, muitos desses grupos lançavam-se de maneira autônoma em ações de apoio a Neminho e, quando ele menos esperava, recebia convites de um grupo de jovens lá de Natal ou de Cuiabá para participar de shows voltados a arrecadar dinheiro para a sua causa, o que ele não queria que acontecesse, porque as verbas viriam do exterior e ele não queria que os brasileiros, já vivendo em tanta dificuldade, sacrificassem o pouco que ganham para a sua causa. Essa era uma decisão que ele havia tomado desde o início: pedir socorro lá fora, não aqui.

- Quero pedir somente para quem tem bastante, e não a quem tem pouco ou quase nada! – era seu compromisso diversas vezes declarado nas entrevistas.

Mas era difícil conter tantas ações solidárias e ele acabou cedendo a algumas colaborações, como foi o caso da campanha que os cariocas fizeram e que foi notícia em toda a mídia mundial: cada carro que atravessasse a ponte Rio-

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Niterói num dia de sábado previamente marcado, iria doar a quantia simbólica de R$ 1,00 para ajudar na campanha. Os organizadores achavam que aproximadamente cem mil automóveis iriam cruzar a ponte naquele dia, o que seria normal, mas inexplicavelmente lá pelas dez horas da manhã todo o sistema de acesso à ponte estava paralisado pelo maior congestionamento que a cidade já vira desde a sua inauguração e quase um milhão de motoristas queriam a todo custo atravessar a ponte e “marcar presença”. Era uma cena espetacular: um engarrafamento em que todos faziam questão de entrar e pouco ligavam quanto à hora que iriam sair. Foi o dia em que o Rio de Janeiro fez questão de dizer para todo mundo (literalmente) que amava e orgulhava-se também de sua bela ponte, tal qual o Cristo, o Pão de Açúcar e o Maracanã.

E então Neminho, pela primeira vez em toda essa jornada, não se conteve e, emocionado, chorou. Aproveitando uma escala no Rio de Janeiro algumas semanas depois, fez questão de ir até a ponte e chegando lá, ajoelhou-se respeitoso e deu um beijo no asfalto – a foto deste beijo correu mundo afora.

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Capítulo 24 - NEMINHO VAI À MONTANHA

A situação ameaça sair do controle - Neminho teme uma divisão da cidade – O episódio da revolta da Ponte do

Vinagre

A enxurrada de debates em torno de seu nome, das suas intenções e das suas atitudes, até mesmo levantando dúvidas quanto a sua honestidade, causava desconforto em Neminho, pois ele achava que deveria haver um limite entre o que é produto e o que é pessoa.

Uma questão que também preocupava muito nosso Quixote era não ter o controle total sobre a situação na cidade, o principal lugar de toda aquela contenda, portanto, o único terreno que ele não gostaria que estivesse minado, para (pelo menos ali) poder pisar, andar, com tranquilidade naqueles dias tão tensos, tão cheios de assuntos para cuidar. Esse sim era o maior e mais imediato problema: aquela sua luta romântica crescera além da conta, invadira territórios que não eram seu objetivo, e agora corria o risco de transformar-se numa peleja ideológica entre duas correntes, peleja antiga, já desde os tempos do império.

E como Neminho sabia que os fatos envolvendo seu nome fizeram nascer um sentimento de comoção muito forte na população, ele temia que a Gazeta de Notícias e o Jornal da Cidade, na defesa radical de suas ideologias, acabassem colocando uma parte da população contra outra, dividindo a cidade em dois lados – como era visível pelo discurso inflamado de cada editorial e das matérias e comentários que os dois jornais publicavam dia após dia sobre a campanha - e com isso acabassem revivendo os ingratos dias da “Revolta do Vinagre”, a primeira vez em que a cidade esteve realmente dividida. Aquele falatório da imprensa parecia uma volta às

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antigas querelas que colocaram as duas correntes do poder local em lados antagônicos: os maçons, que aderiram ao Partido Liberal, e os comerciantes, que apoiaram o Partido Conservador. No meio, como massa de manobra, a “plebe”,21 acusada por um lado e defendida por outro, mas sem qualquer poder decisório na briga... Como ainda é, hoje, infelizmente...

Convém falar um pouco desse episódio. O Mercado Público tem sua origem em barracas e

quitandas construídas pelo governo da Capitania de Santa Catarina, nos fins do século XVIII, que eram alugadas por pequenos comerciantes. O aluguel era recebido primeiramente pelo governo da capitania, e após a Independência do Brasil, pelo governo da Província.

As pessoas que vendiam seus produtos nas barracas eram em sua maioria escravos de ganho, forros e brancos pobres. Os principais frequentadores das lojas eram escravos, forros, marinheiros, militares, viajantes e a população local, em geral.

Em 1838, o governo da província autorizou a construção de uma Praça de Mercado, que deveria ficar entre

as ruas Livramento e Ouvidor22, em um local de terreno de marinha, fora do Largo da Matriz.

Dois grupos políticos locais entraram em disputa pela escolha do local que o Mercado Público deveria ser construído: os grandes comerciantes locais queriam que as barracas continuassem no Largo da Matriz, o que atraía clientes para suas lojas, que ficavam na rua do Comércio, atual Conselheiro Mafra. A maioria destes grandes comerciantes tinha familiares em todas as irmandades religiosas encontradas na Ilha de Santa Catarina.

O outro grupo político era formado por pessoas que moravam em outros lugares da Ilha, de outras províncias, ou

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mesmo de outros países. Muitos pertenciam à loja maçônica Concórdia, e à Sociedade Patriótica, ambas fundadas por Jeronymo Coelho em Desterro. Estes desejavam instalar as barracas e quitandas fora do perímetro urbano, para lá ou próximo da Ponte do Vinagre.

Em 1845, a visita de Dom Pedro II e do Bispo do Rio de Janeiro levou a Câmara de Desterro a aprovar a mudança de lugar das barracas e quitandas. O centro urbano foi higienizado, e as barraquinhas foram removidas para as proximidades do Largo Santa Bárbara, junto à Ponte do Vinagre, fora do perímetro urbano.

Os grandes comerciantes desejavam que as barracas e quitandas voltassem para o Largo da Matriz, enquanto os maçônicos e a Sociedade Patriótica desejavam que continuassem na região da Ponte do Vinagre, alegando principalmente questões sanitárias.

Por fim, o primeiro prédio do Mercado Público foi construído em 1851, situava-se ao sul do Largo da Matriz, junto ao mar. Em 5 de fevereiro de 1899, o prédio foi transferido para a localização atual, na época também à beira-mar, possuindo apenas uma ala. A segunda ala só veio a ser entregue trinta e dois anos depois.

Isso conta a história oficial, mas, evidentemente, pode-se imaginar que os fatos não devem ter acontecido de forma tão pacífica. Afinal, quem morava pra lá da Ponte do Vinagre, ou seja, em direção ao Hospital de Caridade, eram os menos prestigiados, que aos poucos estavam sendo empurrados para aquela região, por causa das políticas higienizadoras do governo imperial, que, ao mesmo tempo em que garantia um emprego público para os recém-formados doutores de Coimbra, filhos de famílias ilustres que lá iam estudar e voltavam ao Brasil requisitando um bom emprego, colocava na ilegalidade toda sorte de benzedeiras,

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médiuns, parteiras, curandeiras, enfim, todos aqueles que não tivessem um diploma, que não professassem a chamada medicina “legal”. É assim que a região da Prainha, nos baixos do hospital de Caridade, na época conhecida como bairro da Tronqueira, ou, como se dizia, pra lá da Ponte do Vinagre, foi se tornando, a partir da metade do Século XIX, uma região desprestigiada, habitada e frequentada por toda a sorte de “ilegais” e discriminados, os primeiros “bruxólicos” que tanta fama deram (e dão) à ilha. Nos anos seguintes a Prainha cresceu, o Morro do Mocotó foi totalmente ocupado por invasões e ali nasceu e cresceu um amontoado de gente pobre que por muitos e muitos anos sobreviveu à margem dos assistencialismos e fez a fama de diversos políticos locais, como ainda ocorre.

Essa população pobre que habitava do outro lado da Ponte do Vinagre, ao ser desprestigiada pela população que habitava a Figueira (como era chamada a região central), o Mato Grosso (região da Chácara do Espanha e da Praça Getúlio Vargas) e a Praia de Fora (atual avenida Beira-mar), sentiu-se magoada e resolveu fazer uma espécie de “greve branca”, dificultando as relações fornecedores/clientes com o pessoal da cidade - suas mercadorias, por exemplo, só vinham até a ponte e dali eles se recusavam a prosseguir até o centro, complicando o abastecimento de gêneros necessários, como temperos e pequenos animais, e complicando, por consequência, a vida das donas de casa da cidade. Já que eles, pobres, não tinham o direito de literalmente vender seu peixe no centro da cidade; também os boêmios, os jovens da elite, os pequenos comerciantes e toda a sorte de homens à procura de algumas horas de alegria com as “meninas da Tronqueira” teriam a partir daquele dia tratamento igual ao que o povo simples recebera da elite na cidade, ou seja, a Tronqueira virava uma espécie de zona proibida para os de

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fora. E assim, para desespero da macharada local e também das elegantes senhoras da cidade que adoravam procurar as curandeiras, as benzedeiras e as sortistas, que moravam para aqueles lados, a “fronteira foi fechada” por vários dias. Era o “troco” dos pobres à arrogância das elites, a revolta da “ralé”:

a revolta do Vinagre23. Para finalizar, basta dizer que o tempo esquentou, os

debates em torno da volta ou não do povo ao centro da cidade acirraram-se e a disputa, por fim, provocou marcas tão profundas que dali para frente, a cidade dividiu-se entre o Partido Conservador, dos grandes comerciantes locais, e o Partido Liberal, que pertencia principalmente aos maçônicos e aos grupos ligados à Sociedade Patriótica. E foi mais ou menos desse modo que Florianópolis viveu a sua pequena “guerra civil”.

Agora podemos entender a preocupação de nosso herói com o rumo que as coisas estavam tomando. Afinal de contas, não era nenhum inocente e sabia muito bem que naquela altura dos acontecimentos ele tornara-se uma simples peça no jogo que travavam os dois grupos políticos, que tinham nos dois principais jornais da cidade, cada qual posicionado de um lado, os porta-vozes de seus interesses.

Diferentemente daquela época da revolta do Vinagre, agora não havia apoio explícito dos comerciantes locais a nenhum movimento popular; era alguém do povo que se insurgia e cobrava do governo mais cuidado no trato da coisa pública. Comerciantes e burocratas estavam “oficialmente” lado a lado, embora no discurso cada uma das partes costumava culpar a outra; e nenhuma delas assumia nada.

A discussão entre eles era de fundo: a intenção de cada grupo se sobrepor ao outro. Havia sido sempre assim: a eterna luta de poder se travava entre comerciantes e burocratas. O povo raramente ameaçava o poder; e Neminho

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sabia que era isso que incomodava o Assessor, pois para este a grande ameaça ao seu poder não vinha do povo, das esquerdas, mas poderia vir da condenação da “outra parte” da direita, dos comerciantes, motivados pela ação do Quixote. E, o que era pior, estes tinham condições de chegar facilmente ao poder... e derrubá-lo.

Para os populares, o que Neminho fizera estava correto e, se o governo não demonstrara competência maior do que a de um único cidadão, quem devia pedir as contas era ele, governo. Foi sob esse veredito que a Gazeta de Notícias estampou em letras grandes uma série contínua de manchetes manifestando total apoio à ação anarquista do quixotesco cidadão.

E era esse adjetivo, anarquista, um dos motivos da preocupação de Neminho. Afinal de contas, quem conhece um pouco da história dos movimentos sociais, sabe muito bem que o adjetivo anarquista tem um sentido altamente positivo no âmbito da arte, ética, heroísmo, livre iniciativa, mas, visto pela ótica de uma sociedade assentada no Estado e na política partidária, o sentido pode ser o contrário. E o que Neminho menos desejava, era que sua atitude fosse vista como política, ainda mais partidária. Era um anarquista sim, mas um anarquista romântico ou anarquista na hora de defender o único conceito que o fazia lutar nas fileiras do Ocidente: o da liberdade, mesmo que não fosse aquela liberdade sonhada, idealizada, mas que ele sabia ser muito melhor do que a segurança de um estado totalitário comunista, onde sua ação seria considerada no mínimo como inadmissível, motivo para uma prisão perpétua. A vida era dura em qualquer lugar, mas pelo menos no lado capitalista ele tinha a liberdade de agir; e para um cara simples, sem dinheiro, mas disposto a um heroísmo, isso significava muito. Por isso ele se sentia bem, sem culpas, sendo um misto de

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anarquista ao rejeitar pertencer a qualquer partido; e capitalista por defender acima de tudo a sua liberdade, o seu direito de contestar abertamente. Mas seu medo era que os jornais distorcessem completamente essa sua liberdade e vissem nela um ato anarquista meramente político; aí sim ele sabia que poderia perder o apoio de muita gente, principalmente do povo, que maciçamente agora estava do seu lado e engordava diariamente a conta da Gazeta, cuja tiragem subia a cada nova manchete explorando a saga do Quixote de Floripa.

Se a conta da Gazeta de Notícias engordava, também engordava a conta do Jornal da Cidade, cujas manchetes eram claramente a favor da posição do governo e atacavam a ação do nosso herói, não raras vezes usando o adjetivo anarquista. Embora ambos os jornais focassem suas manchetes inicialmente em Neminho e na questão central da disputa – podia ou não um cidadão ser mais competente que um Estado inteiro e ter direito a fazer aquilo que o Estado não conseguira – com o passar do tempo essas manchetes mais pareciam respostas de cada jornal à manchete da edição anterior do concorrente. E foi isso que fez Neminho perceber que ele estava se transformando numa mera peça do jogo entre dois grupos, em nome do povo e do Estado. E não fora para isso que ele chegara até aqui.

Seu ideal sempre fora um ideal romântico e foi em nome desse romantismo que ele decidiu que já era hora de tomar uma posição pública, de fazer a cidade saber que sua luta era somente dele. Era preciso dar um basta naquela disputa de interesses que não eram os seus; ele não tinha nada com os Liberais nem tampouco com os Conservadores; não tinha nada com a direita nem com a esquerda; não tinha nada com os burocratas nem com os comerciantes; e também não tinha nada com o povo, pois, afinal de contas, por que

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este povo nunca cobrara radicalmente do governo a cura daquela doença de que padecia sua musa, o fim daquela situação deplorável?

E foi com a decisão tomada - e apertando em sua mão o mimo da donzela que ele guardara - que Neminho ligou para o seu amigo Editor-Chefe do Jornal da Cidade e avisou que desejava falar, mas que iria falar na presença de toda a imprensa e na presença, se possível, das autoridades.

A entrevista coletiva foi marcada para dali a dois dias. Nas horas seguintes, Neminho recolheu-se e recusou-

se a atender a maioria das ligações que recebeu. Oficialmente sumiu. Precisava ficar só. Precisava meditar, pensar, ordenar tudo calmamente:

- Todo homem precisa de quarenta dias na montanha! – Tantas vezes dissera essa frase para outros e agora era a sua vez de valer-se dessa verdade.

Então, Neminho subiu a montanha e meditou profundamente sobre o que iria dizer.

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Capítulo 25 - O NOVO ENCONTRO COM O ASSESSOR

O Assessor reúne-se novamente com Neminho - A última cartada

Assim que soube, naquele mesmo dia, que Neminho

marcara uma entrevista coletiva, e já antevendo o que ele iria dizer, o Assessor o convidou para se reunirem uma segunda vez a portas fechadas antes da entrevista coletiva, devido à delicadeza do assunto que gostaria de tratar.

Neminho pensou em negar o pedido, mas considerou que seria a chance ideal de dizer um não definitivo na cara do governo e poder gozar dessa vitória olhando nos olhos daquele homem que já há anos ignorava cinicamente o sofrimento de sua donzela sem nada fazer por ela. Agora era a vez dele, Neminho: não mais pedir, mas mandá-lo fazer – e dessa vez tendo que fazer porque simplesmente milhões e milhões de olhos atentos somados a uma mídia poderosa estarão a observar tudo e ele não terá como ludibriar mais a ninguém, como vem fazendo nesses anos com a população local. Foi mais ou menos isso que se passava na cabeça de nosso herói enquanto ele dizia “sim”, atendendo ao pedido do Assessor.

No dia seguinte, uma sala reservada no Gabinete, com uma grande mesa de reuniões e cadeiras bastante confortáveis, serviu de cenário para o encontro de Neminho com o Assessor.

Os cumprimentos foram protocolares, mas o Assessor forçava uma simpatia visivelmente ensaiada e tinha na boca um sorriso quase insistente que não combinava em nada com seu estilo. Neminho percebeu nessa simpatia forçada um indício da estratégia do Assessor, voltada a cooptá-lo para algo que seria do interesse do burocrata.

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As suspeitas foram se confirmando com o desenrolar do diálogo e não demorou muito para o Assessor ir direto ao ponto que realmente desejava: conversar com Neminho sobre o volume de dinheiro que estava em jogo e insistir numa associação entre ambos.

- Afinal, de que adianta você lutar sozinho e depois entregar para o governo toda a verba? Você será logo esquecido, as pessoas em breve não se lembrarão mais do que você fez pela cidade. Mas se você aceitar agora a nossa parceria poderá seguir junto, conosco, até a conclusão da reforma. Tenho inclusive a ideia de criarmos uma Fundação para que você dirija e que tenha como finalidade a restauração...

- Calma lá! – atalhou Neminho. - Criar mais uma Fundação? E para eu dirigir? Não me faça rir. Acha que eu concordaria em dirigir uma Fundação depois de toda essa luta? Acha que eu estou fazendo disso degrau para alcançar um cargo público? Acredito que o senhor sempre fez uma ideia muito errada de mim.

Neminho ameaçou levantar-se, mas o Assessor insistiu para que ele permanecesse mais um pouco e voltou a falar:

- O que eu quero dizer é que, em agradecimento pelos seus serviços, o governo poderia lhe convidar para dirigir as obras da restauração da ponte e assim o senhor ter certeza da aplicação das verbas.

- Mas isso vai contra diversos princípios que defendo. Primeiro, eu não sou o mais indicado nem o melhor preparado para um cargo desses e, como há pessoas muito mais preparadas, são elas que devem ocupar os cargos dessa natureza e não os “amiguinhos do governo”, como seus amigos médicos que dirigem companhias de águas, engenheiros que se tornam secretários de agricultura,

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advogados que dirigem hidrelétricas etc. etc. etc., fato comum no seu governo; segundo, que não estou procurando emprego; e terceiro, que prefiro ficar do lado dos que pagam para cobrar, pois assim têm todo o direito de cobrar. O horrível da burocracia é que ela desaparece com nosso dinheiro e serve tão somente para alimentar um exército de gente que só consegue sobreviver em seu meio; e a partir daí, quando tentamos cobrar, saber o que fizeram com nosso dinheiro, vamos descobrir a força que tem esse exército para nos confundir, confundir, confundir até que desistamos de saber onde foi parar nosso dinheiro. E é isso que o exército dos burocratas quer: que desistamos de procurar saber onde puseram o dinheiro do coletivo, pois o dia em que conseguirmos saber onde ele está poderemos requisitar sua devolução ou sua aplicação em algo útil. E é isso que eu quero evitar que aconteça: que esse dinheiro entre na burocracia e lá desapareça. Por isso não aceito o Estado, pois, para que ele atue, vai precisar criar uma série de portarias, vai precisar aprovar sabe lá quantos projetos de lei e para isso vai negociar, negociar e negociar e acatar todo tipo de interesses que existem nessas negociações. E quando aprovar algo vai ter que estabelecer convênios e convênios e para isso vai novamente negociar, negociar e negociar e acatar mais uma leva de interesses e aí o tempo vai passar e a verba vai se diluir e quando se perceber terá tudo novamente sido em vão... Não, meu senhor, a minha intenção é outra: quero mais do que denunciar a incompetência desse Estado; quero publicamente comprometer esse Estado, quero que pela primeira vez ele não consiga se esconder, quero que pela primeira vez ele tenha de agir com correção e sob total vigilância da população, impossibilitado de sumir com a verba pública; quero que minha atitude provoque reflexões de que algo de muito, mas muito ruim, ocorre nesse governo e que

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precisa ser discutido. É isso, senhor Assessor, que deve ficar bem claro aqui em nossa conversa, a qual acho que deve terminar por aqui.

- Eu lamento muito que você tenha essa opinião. Afinal, poderíamos aproveitar esse momento em que toda a mídia olha para nossa cidade e ganhar muito mais prestígio se nos uníssemos, passando uma imagem de que o herói da causa é também um amigo do governo, que acredita nele e conta com ele para acabar – agora que há verbas suficientes – com o drama que padece a ponte. Acho que merecemos uma chance também, não concorda? – Indagou o Assessor.

- Compreendo bem seu interesse na minha associação com o governo: de um lado, o que o senhor quer é que eu assuma a responsabilidade que deve ser do governo para tocar a obra e assim, se algo der errado, este ter com quem dividir a culpa; e de outro, com nossa parceria eu absolveria vocês das culpas passadas e o elevaria também a condição de “herói”. Nada disso! Sem parcerias. A partir do momento em que a verba for conseguida, saiba que ela irá ser oficialmente entregue para o governo. A partir daí, serão cinquenta cidades gigantescas da terra que ficarão de olho, dia após dia, hora após hora, no cumprimento do compromisso de tornar a ponte novamente àquilo para o qual ela foi construída: uma ponte útil, que embeleze a cidade, mas que sirva ao tráfego, pois foi para isso que ela foi criada, e não para simples passeios de pedestres saudosos; uma estrutura tão linda e gigantesca não foi criada para passeios de charretes e pedestres. O que eu quero é devolver a ela o seu verdadeiro elemento: o fluxo, o seu sangue, do qual ela precisa para justificar-se como ponte. E isso não é sonho. É tecnologia. Recuperam-se pontes no mundo todo, todos os dias; basta ter vontade e dinheiro. O Estado teve sempre dinheiro, mas nunca teve vontade e por isso nada fez;

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eu tive sempre vontade, mas nunca tive dinheiro, o que me impossibilitou de fazer algo por ela. Mas agora eu estou lutando pela parte que falta, o dinheiro, e tão logo consiga a verba farei prevalecer a minha vontade: vontade de fazer, senhor Assessor, que é o que faz as coisas acontecerem. É isso que este Estado não teve até aqui: vontade de fazer. Eu lamento se os episódios acabaram colocando às claras essa falta de vontade, mas com certeza não tive qualquer parcela de culpa; bastava o governo ter feito para não ter que passar pelo vexame público de ser chamado de incompetente. Por isso vou seguir só.

Por fim, completou: - E sinto muito se eu acabei invertendo a lógica da

equação, ou seja, antes era só o Estado paternalista, dono do dinheiro, e portanto o único com poder de mando, frente ao povo, sem dinheiro e agora surge alguém do povo, sem espírito paternalista, com dinheiro, e portanto também com poder de mando, frente ao Estado, aparentemente sem dinheiro. É engraçado, não é mesmo senhor Assessor? O Estado sempre a mandar e, de repente, sendo mandado... E policiado pelo povo! Irônico, não é mesmo? Antes eram só os comerciantes que mandavam no governo e agora é alguém do povo que chega e diz: faça! Irônico, não? É isso que lhe incomoda? Saber que agora alguém do povo também tem dinheiro, também tem “argumentos” para mandar?

E ditas essas palavras, Neminho comunicou que considerava a reunião encerrada e encaminhou-se para a porta. Já ia saindo quando o Assessor ainda tentou contemporizar:

- Gostaria que o senhor pensasse ainda um pouco mais antes de comunicar publicamente a sua decisão. E também de lembrar que muitas vezes nossas atitudes têm consequências por demais desastrosas.

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Embora já saindo, Neminho prestou bastante atenção nas palavras e achou melhor precaver-se dali por diante, pois algo lhe dizia que o Assessor tentaria atrapalhar o sucesso de sua empreitada.

Já em casa, considerou mais uma vez as palavras do Assessor e tratou de enviar um e-mail ao Editor-Chefe do NT reportando os fatos ocorridos nos últimos dias e que punham sob tensão o projeto de ambos. Leu e respondeu mais alguns e-mails e foi pesquisar na internet sobre a história da Ponte Charles, de Praga, já que o próximo megaconcerto estava marcado para a capital Tcheca, e ele adquirira o hábito de conhecer sempre a história da ponte de cada cidade que era convidado a visitar.

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Capítulo 26 - NEMINHO VOLTA DA MONTANHA

A negativa pública ao governo

Ao descer da montanha Neminho já estava mais tranquilo, pois havia enfim tomado uma decisão: iria caminhar sozinho. Afinal, contava com o apoio de um grande e famoso jornal, sua atitude havia, portanto, sido aprovada pelas maiores cabeças da mídia mundial, cidades e cidades inteiras, como os primeiros megaconcertos já tinham demonstrado, mostravam-se dispostas a ajudá-lo e eram avalistas irrecusáveis para o sucesso de sua empreitada, além do que sua imagem pública gozava de prestígio no mundo todo. Tudo isso só podia justificar que ele estava certo na sua decisão, e, portanto, não iria deixar-se abater por picuinhas locais, muito inferiores à grandeza de sua empreitada.

Neminho então se dirigiu ao local da entrevista para comunicar aos jornalistas e à população que ele já tinha uma resposta. A sua fala era esperada com expectativa, pois os ânimos tinham ficado exaltados com os fatos publicados pela Gazeta de Notícias e deixaram mais da metade da população irritada com o governo.

A entrevista estava marcada para as treze horas e as redes de TV locais decidiram transmitir ao vivo o acontecimento.

Desnecessário dizer, mas após o almoço a cidade praticamente esvaziou; e só houve retorno de trabalhadores para aqueles escritórios e lojas que possuíam aparelhos de TV, porque, na grande maioria, as pessoas preferiram assistir à transmissão nos restaurantes onde estavam almoçando, e estes ficaram cheios até mais tarde.

A entrevista começou pontualmente. De imediato, vários jornalistas queriam fazer as mesmas perguntas: se era

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verdade que havia pressões do governo para ele desistir da campanha, se era verdade que o governo não iria aceitar a oferta do dinheiro arrecadado e estaria tentando inclusive impedir junto aos organizadores a realização dos eventos só porque Neminho não queria fazer uma parceria com as autoridades; e outras perguntas desse teor.

Neminho já esperava pelas perguntas, aliás, era para respondê-las que ele resolvera marcar esse encontro com a imprensa.

Era um momento decisivo e ele precisava avançar; e, para avançar, sabia que as barreiras teriam que ser derrubadas, única possibilidade para ir em frente. Assim, embora tivesse prometido manter sigilo de suas conversas com o Assessor, a conversa vazara e acabara por trazer ao público aquilo que deveria ter ficado reservado, nos bastidores, condição, aliás, imposta não por ele, mas pelo Assessor; e, portanto, estranhava que assuntos nas altas esferas vazassem tão facilmente.

- O Assessor deve ter uma secretária que nem aquela minha – pensou e riu ao imaginar o Assessor descobrindo que sua secretária comenta, de maneira indiscreta com os amigos e parentes, tudo o que acontece diariamente no Gabinete.

Neminho não estava muito longe da verdade, pois a coisa vazara mais ou menos como no seu caso: um Assessor de menor escalão ouvira por acaso as conversas entre o Assessor e Neminho e passara as informações ao seu amigo jornalista na Gazeta, que acabou colocando a notícia na rua.

Assim, Neminho Silva respondeu à pergunta para a qual todos de certa forma já tinham a resposta: que havia sim pressões do governo, mas que ele seguiria sozinho na sua empreitada e nada tinha a declarar sobre as posições do governo; e que deste só esperava que não se negasse, ao final da campanha, a receber o dinheiro e tratasse logo em seguida

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de fazer o correto uso dele, recuperando a ponte; seu objetivo era apenas este: conseguir recuperar a ponte.

O recado estava, portanto, publicamente dado à imprensa, ao Estado e ao povo: a campanha iria seguir do jeito que ele inicialmente planejara.

O povo e a imprensa concordaram com a negativa de Neminho. Já o governo...

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Capítulo 27 - AS PONTES

Neminho adquire o hábito de estudar a história das pontes que visita - Um kit de colecionador com miniaturas das

cinquenta pontes é vendido aos milhares em todo o planeta Como já foi dito, Neminho adquirira o hábito de

estudar a história de cada ponte das cidades do roteiro dos shows, para evitar passar por algum constrangimento quando um jornalista lhe perguntasse acerca da ponte da cidade em questão.

Ele tomou essa decisão já no primeiro megaconcerto, realizado em San Francisco, para o qual foi convidado. Na cidade, em uma entrevista coletiva um repórter lhe perguntou se ele conhecia a história da sua ponte do coração, a Golden Gate, prima famosa da musa de Neminho. Por um desses raros lances de sorte, na semana em que ele preparava-se para a viagem, resolvera dar uma olhada na Internet e conhecera mais alguns dados além dos que já sabia sobre a ponte da Califórnia, o que lhe foi de grande valia e o evitou passar por um constrangimento. O fato de ele conhecer a história da ponte demonstrou seu interesse por ela e repercutiu favoravelmente na imprensa local.

E daquele dia em diante, a cada viagem ele tratava de inteirar-se da história da ponte do local aonde iria. Depois da Golden Gate, que imperou como a maior ponte pênsil do mundo até 1964, ele acabou conhecendo a história da Verrazano Narrows, de Nova York, a nova rainha, que depois acabou superada em 1997 pela Ponte Tsung Ma, de Hong Kong, e esta logo no ano seguinte, pela Ponte Akashi-Kaikyo, no Japão.

E foi assim também que ele ficou conhecendo outro rol de nomes estranhos que designavam maravilhas da

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engenharia humana e serviam de orgulho para as populações das cidades onde sucessivamente eram realizados os concertos: a ponte Estaiada de Sevilha; a Ponte Vasco da Gama, de Lisboa; a Tower Bridge, de Londres; a Ponte Vecchio, de Florença e a Ponte dos Suspiros, de Veneza (estas duas, embora tendo pontes famosas, mas para pedestres, mesmo assim insistiram em participar da campanha, como São Paulo, que ficou dividida entre o Viaduto do Chá, sua “ponte” mais famosa, e a ponte Estaiada, novo orgulho da cidade); a Ponte Oresund Bridge, que liga Copenhaguen a Malmo, na Suécia; a Ponte Erasmusbrug, de Rotterdam, apelidada de O Cisne, a Ponte do Bósforo, em Istambul, que liga a Europa a Ásia; as Pontes Neuf e Alexandre III, em Paris; a Ponte de Niejmegen, na Holanda; a Ponte de Colônia, na Alemanha; as três pontes de Porto (D. Luis I, do Infante e D. Maria); a Ponte Magdeburg Water Bridge, na Alemanha, que inverte toda a lógica, pois nela a água é quem passa por cima da ponte; as pontes de Roma, como a Sant’Angelo, a Flaminio e a Della Magliana; a ponte Tsing Ma, de Hong Kong; a Ponte Akashi-Kaikyo, no Japão, ou ainda as 1.539 pontes de Amsterdam, na Holanda, e até mesmo viadutos famosos, como o Viaduto Austerlitz, o novo orgulho francês.

Conforme o Editor-Chefe havia sugerido, foi lançado um kit de colecionador contendo as miniaturas das pontes das cinquenta cidades onde ocorriam os concertos, que era vendido aos milhares em todo o planeta, até mesmo em cidades que não estavam no roteiro dos megaeventos. Por ser um produto considerado kitsch, foi uma surpresa a quantidade de interessados em sua compra, fato que se explicava pela vontade de todos em contribuir de alguma forma para a campanha. É certo que versões piratas apareceram, mas isso não atrapalhou as vendas dos produtos originais, que passaram a valer também muito dinheiro,

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principalmente no mercado de colecionadores dos países em que não ocorreram os concertos.

Nessas viagens, os jornalistas queriam sempre saber histórias e detalhes da sua musa, a Ponte Hercílio Luz, e era tamanha a frequência dessa pergunta que Neminho já tinha respostas praticamente decoradas, embora falar de sua ponte sempre lhe causava uma nova emoção, como também lhe causava uma forte impressão esse grande interesse das pessoas pelo assunto.

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Capítulo 28 - AS RAZÕES DO ASSESSOR

No caso do Assessor, o que ele jamais aceitou, é que alguém pudesse lhe dizer: “eu sempre achei que uma hora você iria

perder” – Entre os comerciantes, havia muitos que o culpavam

Um mero detalhe – às vezes, um mero detalhe - faz as

pessoas tomarem decisões políticas que nos surpreendem. Veja o caso de ministros que bebem e perdem a cabeça em público; candidatos que matam adversários em plena campanha, quando o crime se torna óbvio, já que todos os focos da mídia estão sobre eles; homens de moral inatacável flagrados em esquemas de drogas e corrupção; ou desviando dinheiro etc. Ficamos surpresos, pois até então apostávamos tudo nessas pessoas.

No caso do Assessor, o que ele jamais aceitou, em hipótese alguma, é que alguém pudesse vir a ter motivos para lhe dizer: “eu sempre achei que uma hora você iria perder”, ou ainda, “chegou a sua hora de conhecer o gosto da derrota”. Frases desse tipo sempre lhe causaram arrepio e para evitá-las a todo custo, o Assessor cuidara sempre de manter uma imagem de homem forte, rígido, para evitar que qualquer adversário tentasse atacá-lo, principalmente nas horas em que precisasse fazer valer seu poder e influência. Ele sabia – e temia – que nada é mais prejudicial para um homem de poder do que demonstrar fraqueza; e esse temor moldou todas as suas atitudes na carreira e nos seus relacionamentos: a imagem de homem forte e astuto negociador espalhou-se no meio político e fez dele um adversário a ser respeitado. Era essa imagem de homem respeitado, inatacável, sem máculas, que o Assessor, custasse o que custasse, tratou sempre de conservar - e com toda

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certeza faria qualquer coisa para manter essa fama, porque – até mesmo por timidez - não suportaria sofrer qualquer execração pública, ter seu nome envolvido em escândalos públicos; isso era coisa para amadores, para gatos pequenos.

Afinal de contas, ele havia investido muitos anos de sua vida em sua carreira – o seu principal investimento na vida - e sentia-se coroado de êxitos, já que se encontrava numa posição de poder – e, o que era melhor, sem necessariamente ter que prestar contas ao público desse poder. Esse havia sido seu projeto, pois, como se disse, sempre fora um sujeito tímido, meio avesso à exposição, e decidira que, já que amava a política, em vez de se expor diretamente ao público, melhor seria ficar nos bastidores do poder, onde poderia usufruir de todas as benesses sem necessariamente ter que sofrer as amarguras da exposição pública. Assim, em vez de ser também um mandatário-mor, tratou de criar e preparar políticos para as situações de poder, poder que na verdade ficava em sua mão, vindo daí sua fama de ser o principal manipulador do jogo político local, algo que ele sempre dissimulara, respondendo com sua já folclórica frase: Minha função aqui é só servir!

Visto assim, pode-se compreender as razões do Assessor para estar indignado com a situação. Nesses anos todos, havia realizado um jogo político efetivo, cujos resultados tinham mantido seu grupo político seguidamente no poder, o que lhe permitiu manter-se como principal articulador por um grande tempo (cargo que sempre preferira nas partições de poder), tornando-se presidente do partido.

O Assessor gozava, portanto, do respeito (ou temor) de toda a classe política, principalmente daquela que lhe interessava: a dos grupos mais próximos do poder. E essa condição ele creditava tão somente ao seu esforço na vida; por isso ele lutaria com todas as armas para defender aquilo

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que conseguira. E era isso que estava em jogo agora, pela situação criada com a atitude anarquista do mané continental.

O que incomodava o Assessor é que ele sabia que entre os comerciantes havia muitos que o culpavam por não ter feito a restauração quando deveria ser feita; e isso agora era motivo para o projeto turístico da cidade (idealizado pelos comerciantes e com a promessa de ser realizado pelo governo) ser atacado pela oposição.

- Merda! E isso lá era hora de me aparecer um mané desses e com um problema desse tamanho? - Indagou a si, irritado.

Porém, como sempre fizera nas muitas horas difíceis que já enfrentara na carreira política, tratou de pensar numa estratégia para contra-atacar o adversário, algo que já era tempo de fazer. Decidiu procurar primeiramente aquele que parecia ser o mentor intelectual de toda aquela história, o jornalista norte-americano, que, com certeza, deveria saber as razões que levaram o cidadão Noêmio da Silva a bancar o herói, algo que ele desejava a todo custo saber, pois em sua opinião havia “algo maior” naquilo tudo; era muito estranho um simples desejo romântico de um anônimo cidadão ter tanta cobertura da imprensa, ainda mais dos maiores jornais do planeta.

Será que eram os comerciantes que estavam tramando toda essa situação para puni-lo por não ter feito a obra de restauro? – pensou.

O que estava acontecendo não era algo tão simplório assim, havia algo maior, com certeza, e o Editor-Chefe do New Times é quem lhe esclareceria o que estava realmente sendo arquitetado. Decidiu que viajaria até Nova Iorque para encontrar o jornalista e ter com ele uma conversa franca, “de profissional para profissional”, como gostava de dizer.

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Capítulo 29 - O ASSESOR PRESSIONA O EDITOR-CHEFE DO NT

O Assessor vai à Nova Iorque conversar com o Editor-Chefe do NT e apresenta suas razões – E pede que imponha limites

a Neminho

Uma secretária que repetiu insistentemente a chamada finalmente conseguiu marcar uma reunião entre o Assessor e o Editor-Chefe do NT.

A chegada do Assessor a Nova Iorque foi na manhã do dia da reunião, que ocorreria após o almoço no edifício do jornal. A reunião tinha caráter de urgência, como ele pedira à secretária para ressaltar. Foi recebido próximo ao meio-dia e ao entrar na sala lá estava o Editor-Chefe e o Diretor-Presidente do jornal, que fora convidado a permanecer, mas alegara compromissos anteriores e logo após a recepção ao visitante deixou a sala.

O Assessor, como bom profissional, sabia que estava diante de outro e, portanto, tratou de aproveitar ao máximo o tempo do encontro - afinal, viera de muito longe – e foi direto ao assunto:

- Acredito que o senhor deve saber as razões da minha visita, mas de qualquer modo eu quero lhe esclarecer que estou aqui pela impossibilidade de um acordo com o cidadão que o senhor tornou uma celebridade, o que colocou o governo do meu Estado numa situação constrangedora, e agora estou tratando de evitar um mal maior.

- Vamos partir do início. Gostaria de saber as razões de sua visita.

- Pois bem. A atitude do cidadão Noêmio da Silva, embora eu compreenda que possa ser revestida de todo o heroísmo que a imprensa tem destacado, até como um fato romântico, acabou por colocar meu governo numa situação

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vexatória e constrangedora. Ao resolver colocar a restauração da ponte em destaque, o cidadão acabou criando um problema para o governo, que não tinha esta restauração entre suas prioridades mais imediatas. O senhor compreende. Venho de um país em desenvolvimento, onde a verba pública tem destinações mais urgentes, e, portanto, nosso orçamento havia previsto no máximo a restauração para a passagem de pessoas, mas nada com a magnitude de uma restauração que permitisse o retorno do tráfego de automóveis. É impossível agora... E de repente somos pegos de surpresa por essa história de um herói que resolveu por conta própria “salvar” a cidade (se é que é por conta própria, o que certas horas chego a duvidar). Só que resolveu isso sem consultar sequer a sua própria cidade, saber se ela estava disposta a encarar um problema de tal magnitude. E resolveu salvar a ponte de uma maneira aventureira, pois quem garante que ao final desses eventos ele conseguirá a verba suficiente para uma obra dessa natureza? E agora, o que estamos perguntando é: e se não conseguir? E se conseguir apenas uma parte do dinheiro? Aí como é que iremos “bancar” o término dessa aventura impensada? Compreende o senhor a situação em que o governo se encontra?

E antes que o Editor-Chefe pudesse lhe dizer algo, o Assessor continuou:

- Tentamos fazer o senhor Noêmio ver que uma aventura dessas poderia ter um final feliz, mas também poderia não ter, colocando tanto a cidade numa situação constrangedora perante o mundo quanto o governo numa situação constrangedora perante o povo. E diante desse fato propusemos a ele que deveria haver alguém do governo ao seu lado, assessorando-o nas questões, bem como deveria ele sair de sua postura individualista e assumir junto com o governo a campanha de arrecadação, porque em nível local a

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imprensa tem explorado demais o fato de o cidadão ter agido solitariamente e por isso têm dado voz a toda uma série de opositores que apostam na anarquia para ver o projeto governamental fracassar, o que me fez inclusive supor que essa história possa mesmo ser um lance político da oposição para desmoralizar meu grupo.

E continuou o Assessor relatando que Neminho havia sido “adocicado” pela imprensa da oposição, que o tornara um herói de forma irresponsável, pois, ao torná-lo herói por sua atitude anárquica, individualista, punha em xeque todo um pensamento liberal de representação estatal do qual ele era defensor; portanto, era muito perigoso esse sucesso individual do cidadão e, na qualidade de representante do governo, ele tinha vindo solicitar ao Editor-Chefe que reconsiderasse a imagem que estava sendo passada, ou seja, a de Neminho como um herói e a do governo como um vilão. Ademais, o jornalista já deveria saber o estrago que o adjetivo “cafetinagem” havia feito no governo e na sociedade local e, portanto, poderia fazer uma ideia da situação em que o governo se encontrava.

O Editor-Chefe deixou passar um intervalo de tempo após as últimas palavras do Assessor para depois perguntar:

- E de que forma isso deveria ser feito? Respondeu o Assessor: - Veja, senhor, que a questão é mero marketing. O

que está ocorrendo? Ao fazer uma campanha solitária, conseguir sozinho as verbas necessárias e entregá-las sozinho ao governo, Neminho apenas estará sendo um elo de passagem entre um dinheiro que vem de outros para um destinatário que não é ele, mas um Estado, porém sua posição solitária estará revestida de uma aura que poderá ser interpretada como a supremacia do cidadão sobre o Estado, como a capacidade de um sobre a capacidade do todo, do

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coletivo, que é o que o Estado representa. E no caso de uma sociedade pobre como a nossa, o senhor sabe que o Estado, como organização, ainda é quem tem peso maior; por isso gestos de livre iniciativa como os do cidadão Noêmio, embora até louváveis do ponto de vista ideológico, passam a ter um valor anárquico e, utilizados por grupos que detém a informação, acabam se tornando até mesmo uma ameaça ao nosso grupo no poder.

- Ora, ora, ora, senhor Assessor. Pelo visto agora temos aqui um problema ideológico, de ocupação de espaço, de posições... E também pelo visto começamos a conversar dentro do meu terreno favorito, o mercado – disse o Editor-Chefe.

- Ótimo, pois assim irei mais diretamente ao assunto. Temos que considerar tanto ideologia quanto mercado, sim. No caso da ideologia, temos um projeto de governo a manter. Faz algumas décadas que dominamos a política local, já que a oposição é completamente incompetente para administrar, pois não tem quadros. Assim, durante esses anos todos ela se valeu da única prática que sabe bem dominar: falar mal do governo, torcer para quanto pior, melhor, buscar inutilmente denegrir a imagem das autoridades, enfim, encontrar qualquer coisa que ponha em xeque nosso projeto de poder. Nesse tempo todo sempre soubemos como lidar com ela. Mas, repentinamente, surge em cena o conhecido Quixote e aí passamos a ter realmente um problema sério.

- Qual seja...? - interrompeu curioso o Editor-Chefe. - A relação de forças de poder aqui sempre oscilou

entre os burocratas e os comerciantes. Nunca fomos colocados em xeque por alguém que disponha de efetivo poder, seja político ou econômico fora dessas duas forças. As pressões, portanto, sempre foram no sentido das prioridades e interesses, mas nunca ideológicas, já que os dois grupos,

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mesmo discordando das prioridades, nunca deixaram de apoiar-se na manutenção do poder local. E, se as coisas correrem como estão projetadas, logo estaremos diante de uma situação completamente nova: um cidadão chegará com uma verba e nos obrigará a executar uma obra, execução esta que não nos trará qualquer dividendo político, já que atenderemos a uma obrigação, a uma imposição de fora dos dois grupos.

E é esse o fato que tem causado o maior estrago ao nosso projeto, uma vez que a oposição tem usado Neminho como figura central para seu marketing político contra o governo, a quem acusa de incompetente por nunca ter realizado a restauração nesses anos todos.

E – o que menos eu poderia esperar – uma forte ala dos comerciantes, que culpa o governo por não ter cumprido sua parte no acordo, atrapalhando o projeto turístico deles, viu em Neminho uma oportunidade para punir o governo, e com isso colocar nosso poder em cheque; eles sabem que a verba de Neminho irá forçar o governo a colocar a ponte entre as prioridades; e é isso que eles querem que aconteça. Como o senhor vê, estamos numa verdadeira sinuca, pois se para incluirmos a ponte nas prioridades temos que tirar outras obras da lista – e isso incomoda a minha ala, que sabe que será prejudicada em seus interesses, coisa que não querem aceitar. Eu apostei na possibilidade de fazer um acordo com o senhor Neminho, para trabalharmos em conjunto como forma de estabelecer um cronograma mais para frente, mas sua intransigência em não aceitar estender o prazo do restauro mais para frente é que tem causado toda essa crise, da qual estou tentando sair, pois pedem a minha cabeça tanto de um lado quanto de outro, sem contar o povo, que já a pede há anos.

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Como pode ver, tenho problemas mais do que mercadológicos; e o que eu vim aqui fazer foi conversar com o senhor para que encontremos uma saída que permita que todos esses anos dedicados a um projeto não sejam agora destruídos por um simples cidadão. Para isso eu vim aqui, não para barrá-lo em seu projeto, mas, ao contrário, para conseguir transformar Neminho de adversário em parceiro, se é que me faço entender.

O Editor-Chefe começou a perceber onde o Assessor estava querendo chegar com seu discurso, mas precisava ter certeza, e perguntou:

- O que você propõe? – O que proponho é que você consiga convencer

Neminho a aceitar a presença do governo na sua campanha, ao invés de seguir sozinho e vir apenas repassar um dinheiro. Pense bem, senhor: a entrega dessa verba nos obrigará imediatamente a parar todas as obras que estamos fazendo para nos dedicarmos ao cumprimento de uma meta não prevista, tudo para atender a pressão de uma mídia que estará forçosamente cobrando a execução imediata da obra; e não temos estrutura para isso, não temos condições de bancar uma obra dessa magnitude nesse momento, sem falar que perderemos importantes apoios políticos. Assim, se Neminho consentisse, poderia aceitar que o governo participasse e assim poderíamos ganhar algum tempo, seja criando uma fundação para administrar a verba, seja o convidando para ocupá-la, constituir sua equipe, enfim... Precisamos ganhar ao menos um ano... Coisa que o nosso cidadão não quer aceitar... Muito menos participar de uma equipe... E o que quer ele? Simples. Arrumar a verba e passar toda e qualquer responsabilidade para o Estado. Assim, por decisão única dele, sem fazer qualquer consulta seja ao povo, aos partidos, ao parlamento, ele simplesmente decide pela

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restauração de uma ponte, uma obra gigantesca, e quer que a executemos de imediato. Fica complicado aceitar tudo isso assim passivamente, meu caro senhor. Como vê, temos um problema sério. Nosso governo não tem uma estrutura que permita obras dessa natureza sem um planejamento feito com bastante antecedência.

A conversa durou mais alguns minutos, com o mesmo teor, e ao final, o Editor-Chefe indagou mais alguns pormenores sobre a repercussão da campanha junto à população, e por fim tentou fazer o Assessor compreender que não era sua intenção opinar sobre questões que ele não entendia completamente por viver distante da realidade da cidade, do governo e de Neminho.

- O que o senhor precisa compreender, disse o jornalista, é que eu estou apoiando uma causa, e, mais ainda, num terreno chamado mídia. Para mim, o que interessa aqui é um fato que, de tão inusitado, de uma hora para outra se tornou assunto de interesse de muitas pessoas; e pessoas que pensam de maneira igual ao Senhor Neminho, com certeza, pois estão dispostas a pagar para possibilitar a realização do quixotesco sonho dele. Essas pessoas vivem espalhadas pelo mundo, em muitos países, distantes umas das outras, mas cada uma delas tem uma opinião acerca das coisas e precisa externar essa opinião, algo praticamente impossível num mundo em que se fazer ouvir sozinho é cada vez mais difícil. É por isso então que surgem campanhas como essas em favor do senhor Neminho: para que essas pessoas sinalizem umas para as outras que estão aí, que também ainda são solidárias, que também têm sentimentos, que querem o bem, que amam os sonhos e a paz, e que tudo aquilo que possam fazer será feito por cada uma delas; e é dessa certeza que cada uma delas vive. E é por isso que precisam existir histórias

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como a do Quixote de Floripa: para que existam campanhas assim. É essa a minha parte nessa história, senhor Assessor.

Sob o olhar atento do visitante, prosseguiu: - O que o senhor também precisa compreender é que

não estou aqui apoiando a luta de um cidadão que se insurge contra um governo, mas algo bem diferente: estou lutando para valorizar o cidadão que luta, que acredita em seu heroísmo, que se vale da livre iniciativa para fazer girar o mundo. Este cidadão é o cidadão livre, é o cidadão que se encaixa na ideologia que defendo e sempre defenderei; os Estados Unidos cultivam o mito do herói, o senhor bem sabe; é um país feito de heróis, e eu não poderia jamais lutar contra um mito, ainda mais quando esse mito é a personificação dos ideais da livre iniciativa.

E continuou: - Espero, portanto, que o senhor compreenda que se

há um problema entre o seu governo e o cidadão Neminho Silva, esse é um problema que só pode ser resolvido na esfera do local, pois é lá que o senhor está verificando que há um perigo para sua imagem, e não aqui em Nova Iorque. Aqui, sua imagem é desconhecida; aqui estamos preocupados com um excelente produto de mídia chamado Neminho Silva, que deverá movimentar um volume de dinheiro, nos próximos oito meses, em torno de quinhentos milhões a um ou até dois bilhões de dólares, valores que são grandiosos em qualquer mercado.

O Assessor continuava em silêncio, ouvindo. O Editor-Chefe tomou um gole de água e disse:

- Aqui em Nova Iorque, senhor Assessor, não interessa às pessoas que seu governo tenha sido arranhado pela atitude do cidadão em defesa do patrimônio; essa crise entre Estado que nada faz e cidadão que cobra o serviço pelo imposto pago é antiga, vem desde os tempos de Robin Hood,

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e não interessa a mais ninguém. O que interessa às pessoas é que ainda existem figuras quixotescas como o cidadão Neminho, capazes de se expor aos maiores ridículos, desacreditadas, mas ferrenhamente presas a uma ideia, por mais absurda que essa possa parecer; e neste caso, é essa ideia, o amor de um homem por uma ponte e sua luta para salvá-la, o que está chamando a atenção das pessoas; é isso que elas querem saber no que vai dar; é isso que elas estão pagando para ver realizar-se: esse amor, amor que refaz, que reergue, que reconstrói, que é capaz de materializar-se; neste caso a devolução da ponte à vida é a materialização desse amor. Essas pessoas precisam de histórias desse tipo e precisamos volta e meia dar a elas o que pedem.

E continuou o Editor-Chefe: - Sou um produtor de sonhos! Espero que agora o

senhor compreenda que o meu papel como homem de mídia é tão somente viabilizar, tornar factível essa história romântica; alguém tem que organizar tudo isso, canalizar tudo isso de maneira profissional para que todos os esforços, toda a organização, todo o dinheiro, cumpram com o planejado e atinjam o objetivo esperado. Assim, meu compromisso com o senhor Neminho Silva encerra-se no momento em que for atingido o objetivo da campanha e eu entregar-lhe os cento e cinquenta milhões de dólares que ele diz serem suficientes para restaurar a ponte. Minha função só vai até aí. Quanto ao que está ocorrendo entre o seu governo e o cidadão Neminho, e se isto está repercutindo negativamente para o senhor frente à sua população, eu espero que compreenda que nada posso fazer e portanto depende de seu governo fazer uma autocrítica, ver onde errou e realizar junto à mídia local um bom trabalho de recuperação de sua imagem. Já com relação a parar a campanha com o senhor Neminho, isso nem se coloca em

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discussão; como bem lhe disse, Neminho tem potencial para levantar grandes volumes em poucos meses... E esse é um produto do qual não abrirei mão de forma alguma.

Após um breve silêncio, o Assessor ainda pensou em contemporizar, mas achou melhor não se estender muito, disse que iria mais uma vez tentar junto de Neminho Silva um acordo que permitisse uma saída para melhorar a imagem do seu governo, o que o Editor-Chefe disse torcer para dar certo, e partiu para os agradecimentos pela acolhida do jornalista, falou mais uma meia dúzia de frases de cortesia, deixando logo a seguir apressadamente a sala, o edifício, a rua, o aeroporto, a cidade. Estava ansioso para retornar, pois já decidira como agir.

O Editor-Chefe, ainda surpreso com a ousadia do Assessor em procurá-lo, vindo de tão longe, com a proposta de cancelar seu projeto, com o passar do restante das horas naquele dia foi ficando indignado, pensando em quantas pessoas pelo mundo viviam sob pressão de governantes ao tentarem fazer qualquer coisa para melhorar a vida do coletivo e com isso ferir interesses e egos dos grupos dominantes. Tal indignação resultou na ideia de escrever um belo editorial acerca da luta ingrata dessas pessoas; e, evidentemente, usou como exemplo a história de Neminho Silva e as pressões que ele vinha sofrendo, denunciando inclusive a tentativa do Assessor do governo local de cooptar o jornal para que este parasse com a campanha em favor da recuperação da ponte.

Era tudo que o Assessor não gostaria que ocorresse, e seu ódio explodiu ao saber da publicação. A ala dos comerciantes iria trucidá-lo por tanto primarismo; era humilhação demais para ele.

- Mas nem pense, senhor Quixote, que você venceu este jogo... Nem pense!

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Capítulo 30 – O PLACAR: MILHÕES A FAVOR DE NEMINHO

A negativa do Editor-Chefe do NT revela que houve novas pressões do governo – A Gazeta de Notícias lança nova

campanha em favor de Neminho – O placar A matéria divulgada no New Times foi uma resposta

de seu Editor-Chefe às pressões do representante do governo.

Uma posição contrária do jornal norte-americano às pressões do Assessor revelava um fato: que o governo tinha realmente feito pressões até em Nova Iorque para barrar a campanha de Neminho – e isso era tudo o que a imprensa local queria para desencadear com toda a virulência uma nova série de acusações ao governo de estar tentando maldosamente e a todo custo atrapalhar a campanha solitária do cidadão para arrecadar fundos.

A negativa do Editor-Chefe do NT pegou tão mal que no Legislativo a própria ala governista, que até então tinha se mantido unida na defesa do Assessor, não conseguiu mais evitar as dissidências: os políticos que eram apoiados pelos comerciantes criticavam claramente as “burrices” do Assessor e, para temor deste, pediam a sua cabeça a todo instante.

Como se não bastassem as matérias que incitavam a população a favor de Neminho e contra o governo, a Gazeta de Notícias alardeou uma nova campanha publicitária em favor do Quixote de Floripa, com a instituição de um placar, que estamparia a cada semana na primeira página, dados e informações sobre cada concerto realizado até ali e o quanto de verba Neminho já havia arrecadado, placar que se constituiu em motivo de mais irritação para o Assessor, que toda semana via o cavaleiro em ação na primeira página da Gazeta, com novos números da arrecadação crescendo

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substancialmente a cada megaconcerto realizado. E manchetes ao lado do placar reforçavam as informações nele constantes:

- Neminho arrecada mais três milhões! Neminho chega aos quinze milhões! Mais uma vitória de Neminho: arrecadação atinge vinte e quatro milhões!

Evidentemente que não só a Gazeta de Notícias beneficiava-se das boas notícias geradas pela campanha de Neminho; o Jornal da Cidade também fazia a sua parte para manter seu público informado, mas nas páginas internas continuavam a ocupar muito espaço os que estavam a favor do governo e atacavam Neminho, questionando ainda a legalidade ou não de sua campanha; outros acreditavam que ele não conseguiria seu intento, em matérias que levantavam dúvidas e deixavam clara a posição pró-governista do jornal.

Alheio a tudo isso, Neminho agora concentrava todos os seus esforços em cumprir a extensa agenda determinada pela produção dos megaeventos, que o obrigava a viajar constantemente, passando muito pouco tempo na ilha. Isso em parte era bom, pois o mantinha afastado das discussões, mas não o livrava de certas irritações quando ainda via seu nome descaradamente utilizado pelos dois grupos que se batiam com interesses políticos, como foi o caso do placar eletrônico, a gota d’água para o Assessor do governo e, na opinião de muita gente na cidade, o motivo que fez com que ele cometesse a insanidade que cometeu... Embora oficialmente diga que não a tenha cometido.

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Capítulo 31 - A GOTA D’ÁGUA

O editorial da Gazeta de Notícias - O placar eletrônico – A “gota d’água”

O editorial da Gazeta de Notícias para comemorar o

vigésimo concerto, que havia sido realizado em Budapeste, anunciava que na próxima semana o jornal iria colocar na fachada do seu edifício um placar eletrônico para transmitir notícias e dados, além de imagens diretas de alguns dos concertos que iriam acontecer nos próximos meses, com um relógio com contagem regressiva para marcar quantos minutos faltavam para o grande megaevento em Florianópolis, que encerraria a campanha.

O que a princípio parecia um simples jogo de marketing do jornal na verdade era mais uma cartada do grupo da oposição, que vira no lançamento do placar mais um lance para abalar as estruturas dos governistas; e assim, o grupo convidou o diretor da Gazeta de Notícias para uma reunião fechada e lá ficou acertada a utilização daquela mídia.

A surpresa de Neminho quando viu o placar que ocupava grande parte da fachada do edifício da Gazeta de Notícias, com quase duzentos metros quadrados, foi inevitável. No meio do painel, em destaque, foram colocados três telões: o primeiro informava o valor total arrecadado, o segundo o valor do último megaevento e o terceiro informava os eventos que faltavam.

Encimando os três telões, uma foto ampliada de Neminho foi o que mais lhe causou espanto, pois, além de não ter sido autorizada, a foto tinha uma legenda que dava a impressão de que era Neminho quem dizia a frase: ESTÁ CHEGANDO A HORA DE O GOVERNO TER QUE FAZER!

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NEMINHO ESTÁ CHEGANDO! E mais uma pequena frase em letras bem pequenas informava sobre o Grande Megaevento na cidade no dia 13 de maio, data de aniversário da ponte, e mostrava as logomarcas do jornal Gazeta de Notícias e dos patrocinadores.

E abaixo dos três telões, um painel numérico digital informava minuto a minuto, de forma regressiva, o tempo que faltava para o dia do megaevento na cidade, ladeado por outros dois telões que eram utilizados nas transmissões de alguns dos shows.

Neminho tremeu ao ver aquela imagem “justiceira” que o jornal estava fazendo dele, e tratou de protestar, declarando em entrevista ao Jornal da Cidade que não concordava com aquele painel colocado na sede da Gazeta de Notícias; mas foi em vão.

O mais irritante naquele episódio é que a publicidade fora idealizada e colocada naquele local com intenções claramente políticas, uma vez que o prédio central da Gazeta de Notícias ficava próximo ao Gabinete do Assessor do governo, e de lá ele podia ver claramente o painel, o que lhe causaria com certeza muita irritação. E para chamar a sua atenção, os idealizadores ainda tiveram a malvada ideia de instalar um efeito sonoro no painel, uma espécie de clarim de cavalaria, mas em toque digital, que era acionado a cada hora, o que lhe obrigava automaticamente a olhar para o painel. Com o passar dos dias, das semanas, aquela repetição, ritmada, como o barulho de uma gota d’água que cai incessantemente numa poça, começou a lhe irritar mais ainda, levando-o quase a um desequilíbrio emocional: ele estava angustiado, como se sentisse cobaia de uma experiência de condicionamento animal do famoso doutor Pavlov.

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E para piorar, a cada dia que passava aumentava - no legislativo, nas repartições do governo e nas ruas -, o número de comentários maldosos e anedotas que envolviam a figura do Assessor. Ele, que tanto lutara para parecer um homem de respeito, bem-sucedido, sem qualquer arranhão na sua imagem, repentinamente via-se colocado numa vala comum, tratado como um daqueles reles políticos do interior que acabam famosos por terem seus nomes atrelados a um extenso anedotário, motivo de piadas, como foi o Odorico

Paraguaçu24. Era humilhação demais! E foi assim, fera ferida, que o Assessor teve aquela

ideia que não deveria ter tido, que lhe causou um sorriso meio maligno, mas lhe trouxe à boca um gosto de vitória, algo que já fazia uns bons meses que ele não sentia. Isso o revigorou. Voltou a pensar na sua ideia e seu sorriso alargou-se, ao pensar nos resultados. E ficou mais revigorado ainda. Ele sabia que no final venceria. Do seu jeito, mas venceria.

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Capítulo 32 - O PESADELO: O GIGANTE DEITADO SE LEVANTA

Se na realidade do dia a paisagem é bonita, na irrealidade do sonho ela pode tornar-se terrível - O que aquele sonho

queria dizer?

Certa noite Neminho teve um pesadelo que lhe marcou muito e foi motivo de uma sensação muito estranha que o perseguiu pelos dias seguintes. Para compreender melhor o que se passou, é preciso falar primeiro do Gigante Deitado.

Quem é nativo da ilha ou mora em locais onde se avista o Morro do Cambirela, sabe que as montanhas que ficam ao seu lado e que se estendem para o sul até a praia da Gamboa, em Garopaba, constituem uma forma cuja imagem lembra um gigante deitado; assim, qualquer criança que tenha pai ou avô mané, geralmente, saberá reconhecer o gigante, que faz do Cambirela seu “travesseiro”.

Olhando a paisagem, ela impressiona pela sua beleza, ainda mais se avistada pela manhã, quando os raios do sol batem de frente nos paredões do Tabuleiro e deixam à mostra um relevo com um desenho que só faz aumentar a imponência do lugar. É quando se avista melhor o gigante, que parece ainda dormir naquela hora, aumentando o realismo da cena.

Se na realidade do dia a paisagem é bonita assim como se descreve, na irrealidade do sonho ela pode tornar-se terrível, virar cenário de um pesadelo.

Foi o que Neminho acabou descobrindo e lhe provocou um susto tão grande que acordou completamente molhado de tanto suar. No seu pesadelo, o gigante levantava-se e passava a caminhar pela baía sul em direção ao canal do Estreito. A cada passo que dava, seus pés afundavam

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fortemente na água e provocavam ondas gigantes, como um imenso maremoto, que inundavam todos os bairros que se localizam nas margens da baía, causando destruição e morte.

O gigante andava como se ainda estivesse sonolento e não atinava onde pisava. Caminhando quase às cegas, não percebeu as pontes de concreto em seu caminho, mas, felizmente, nenhum dos seus pés acabou pisando sobre elas, que permaneceram intactas. Neminho casualmente estava próximo da sua ponte observando aterrorizado que o gigante dela se aproximava; e ao perceber a tragédia anunciada, começou a gritar na tentativa de se fazer ouvido pelo gigante, alertá-lo, mas sua voz era inaudível. Ao perceber a inutilidade de seu gesto ele se desesperava, e tentava gritar mais e mais, inutilmente. Nessa agonia, ele vê o gigante pisar com um dos pés exatamente sobre a pista do vão central... E a ponte não resiste, desabando.

A agonia e o desespero aumentam e ele desperta apavorado.

O resto da noite passou em claro, fortemente impressionado.

O que aquele sonho queria lhe dizer?

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Capítulo 33 - O MEGAEVENTO FINAL

Chega o grande dia – Neminho é ovacionado no show

E assim passaram-se as semanas... Finalmente chegou o grande dia. O último

megaevento, marcado para o dia 13 de maio, aniversário da ponte, embora acontecendo numa cidade relativamente pequena, reuniu, como era de se esperar, o maior de todos os públicos, uma vez que ficara decidido pelos produtores que na cidade da donzela de ferro – a grande homenageada - não haveria cobrança de ingresso; e assim quase quatrocentas mil pessoas começaram a chegar desde cedo e concentraram-se no trecho entre a rodoviária e a ponte. Com o acúmulo cada vez maior de pessoas, o trânsito teve que ser fechado em toda a área, que, com o passar das horas, foi se tornando o principal local de atenção de todos os habitantes - quem não fosse até lá, certamente estaria assistindo pela televisão. Às quatro horas da tarde começou o show porque os organizadores queriam que o pôr do sol, que ali naquele local é o mais bonito na cidade, fizesse parte do show.

O velho roqueiro estava exultante e maravilhado. Era o último concerto de toda a temporada e ele sentia-se meio melancólico por um lado, mas por outro, era impossível não sentir toda aquela vibração das pessoas ali presentes. Era outra energia, afinal estava no Brasil, e ele sabia que aqui seria diferente, seja pela importância que aquele show tinha para todos na cidade, seja pela própria energia de estar tocando no Brasil, que ele já ouvira falar ser completamente diferente dos demais lugares, mas que nunca experimentara em todos os anos de carreira. E maravilhava-se ainda mais com a paisagem e com aquela luz espetacular do outono,

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que, soube depois, era a luz da estação em que Florianópolis ficava ainda mais bonita.

- O verão é demais, mas nada é mais lindo do que visitar a cidade nos meses de maio e junho, por causa dessa luz que só tem aqui! – lhe dissera mais de uma pessoa. E agora o astro entendia in loco o sentido do comentário.

Muita gente importante veio para o show: artistas, políticos, o pessoal da ação afirmativa, todos os alternativos e todos os normais, sem contar os milhares de emergentes que disputavam seus cinco minutos de fama, mas ninguém do governo estava lá. O mandatário-mor, alegando compromissos anteriores, viajara para uma feira na Alemanha. Neminho dissera durante a semana que não se importaria com a presença de autoridades lá, mas como também não fizera um convite público, o governo adotou a política do distanciamento, o que todos na cidade já esperavam – afinal, estava claro para todo mundo que Neminho Silva e o Assessor encontravam-se em lados opostos e assim não havia porque este comparecer a um evento que até aqui só lhe trouxera dor de cabeça. Se o senhor Neminho quisesse entregar dinheiro para o governo, que fosse ao Palácio, pois ele não se arrastaria até o local do megaevento para fazer a figura do bufão da festa:

- Isso é que não – pensara ele. Mas Neminho não queria pensar nisso agora. Estava

feliz. Antes de o show começar, ele subiu discretamente no palco, olhou todo aquele mar de gente e ficou maravilhado de ver tantas pessoas ali reunidas, alegres, bonitas, pela sua causa. Lembrou-se das primeiras vezes em que pensara em fazer algo pela ponte e fora desacreditado pelos amigos ao comentar o assunto. Agora, passados esses anos de tanta angústia e luta, e principalmente passados esses últimos meses, nos quais a sua vida havia mudado completamente,

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emocionou-se com sua vitória, uma vitória em que ele sempre acreditara e pela qual lutara. Ele sabia que um dia assim teria de chegar depois de tanta luta e dedicação. Ouvira a vida inteira pessoas dizerem que “quem luta consegue”, “que o importante é lutar por um sonho” e foi acreditando nessas máximas que chegara aonde chegou. Esse mar de gente era a sua certeza, e ele emocionou-se.

A chegada do Editor-Chefe do NT ao local do megaevento, vindo num helicóptero, causou certo furor, pois sinalizou a todos que era o momento de começar o show; chegava finalmente o homem com o dinheiro para ser entregue a Neminho. Uma grande salva de palmas e gritos alegres ecoaram pelo local, ofuscando o som que saía das pick-ups do DJ convidado para fazer o aquecimento. Foi o primeiro desses momentos, que iriam ocorrer várias vezes durante o show, marcados por muita emoção. Diversos artistas se revezaram no palco, mas foi o show do roqueiro que causou um furor geral nos fãs, que não acreditavam que um dia iriam ver um show que já era considerado impossível de acontecer; e ainda mais no Brasil; e ainda mais em Florianópolis; e ainda mais sendo de graça; era demais!

E foi mesmo um tremendo show, marcado por muitos momentos de emoção. O velho astro tocou uma primeira parte e deixou a plateia em delírio durante uma hora. Essa primeira parte estava prevista para acabar um pouco antes do pôr do sol, quando então seria feita a cerimônia de entrega oficial, pelo Editor-Chefe do NT, dos cento e cinquenta milhões de dólares para as obras da restauração. Essa cerimônia se daria justamente na hora do poente, como se marcasse definitivamente o fim de um longo e interminável dia de luta, de espera pela vitória, como um adeus à desesperança. A segunda parte do show começaria com a chegada da noite, ali pelas seis ou sete horas, quando a

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ponte despontasse, totalmente iluminada, na paisagem noturna, embelezando o cenário da festa. E assim foi: felizmente, graças ao profissionalismo da equipe, tudo ocorreu na mais perfeita sincronia e a natureza e as luzes da ponte deram um verdadeiro show.

Mas nada se comparou em emoção ao momento da entrega do dinheiro arrecadado. Os primeiros sinais disso já se fizeram notar quando o jornalista norte-americano foi chamado ao palco e foi ovacionado pelo público durante quase três minutos (para quem tem ideia do tempo, algo considerável em se tratando de aplausos em lugares abertos), além de gritarem várias vezes, em coro, seu nome.

Ele agradeceu a todos, falou em espanhol e se disse feliz e realizado por propiciar a realização de um sonho, motivo maior de sua ajuda a Neminho, e que agora, olhando para aquela ponte ali a sua frente, podia compreender porque o nosso herói se enchera de amor por ela.

- Palavra de nova-iorquino! – Metáfora que todo mundo demonstrou entender porque mais uma vez ele foi longamente aplaudido.

O roqueiro, que estava no palco para a cerimônia, fez questão de dizer num espanhol arrastado, mas que todo mundo compreendeu, que agora Neminho teria que tomar muito cuidado porque a sua ponte ganhara um novo namorado e admirador: ele; e todo mundo riu e foi outra ovação.

Ele brincou mais um pouco com o público e chamou Neminho ao palco para receber simbolicamente o dinheiro arrecado. A plateia vibrou e o coração de Neminho sentiu um aperto, como uma sensação de medo, mas tratou de recuperar a calma e subiu as escadas. Sua entrada no palco foi triunfal, iluminada por um potente canhão, enquanto o

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barulho da maior ovação até aquele momento invadia a noite.

Os dois nova-iorquinos colocaram-se lado a lado de Neminho e ficaram olhando, silenciosos e maravilhados, a multidão que parecia não ter nenhuma pressa em parar de aplaudir os três. Foi uma emoção até para o velho roqueiro, que começou a chorar. O Editor-Chefe também não escapou de sentir uma emoção forte, e como estava longe de Nova Iorque, distante de seus críticos, relaxou e sentiu o gostinho salgado de uma lágrima de felicidade que rolou pela face abaixo e deslizou pelo meio dos seus lábios.

Aos poucos os aplausos foram cessando e um silêncio foi imperando sobre a multidão, já alertada pelo locutor do evento que Neminho Silva gostaria de dizer algumas palavras a todos.

E Noêmio da Silva, popular Neminho Silva, nestes últimos meses conhecido como o Quixote de Floripa, finalmente pôde falar de uma única vez para a cidade e para o mundo – sem intermediários.

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Capítulo 34 - NEMINHO FALA URBI ET ORBI25

Neminho fala ao povo (sem intermediários)

Após o silêncio que se fez, Neminho falou:, “- Cidade amada: estou aqui somente para agradecer;

acho até que nem deveria dizer mais nada, somente obrigado, obrigado, obrigado infinitamente, mas algo em mim é mais forte e preciso responder a cada uma das pessoas que aqui e lá fora me ajudaram. Por isso preciso aproveitar essa oportunidade e me explicar, responder a todos por que tomei as atitudes que tomei e da forma como as tomei, bem como explicar o que me motivou a agir assim. Tudo que eu fiz teve um sentido. E esse sentido quero partilhar com todos, aqui, nesta noite. Portanto, é deste sentido que quero falar.

Imaginem como era este lugar quando foi avistado pela primeira vez. Imaginem de um lado a ilha e do outro o continente, separados por um canal de mar limpo e de águas tranquilas. Imaginem agora a vastidão de verde que se estendia até às praias e cobria todos esses pequenos morros que se avizinham do mar e que dão este contorno fantástico à paisagem, seja de que lado estejamos observando-a. Imaginaram? Imaginem agora que o mar daquela época era totalmente limpo, e assim a ilha permitia uma qualidade a mais: em vez de possuir apenas suas vinte, trinta, praias de mar grosso, ou seja, daquele mar de Oceano que banha a parte da ilha voltada para o Atlântico, o local ainda nos oferecia, somando o lado de dentro da ilha e a costa continental voltada para ela, formando as baías norte e sul, quase cem pequenas praias, que iam, uma após outra, desde a Praia do Antenor, na Costeira da Armação de Governador Celso Ramos, ponta norte do continente, até o Pontal, na Palhoça, ponta sul do continente, e na ilha, desde a praia da

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Daniela, no norte, até a Praia da Caieira da Barra do Sul, na ponta sul. Mais de cem praias! Imaginaram? Agora imaginem que, pelo fato de nesta região ser comum ventar muito pouco antes do meio-dia, todas essas cem praias são verdadeiras piscinas, que permitiriam a cada morador que habita uma dessas praias acordar de manhã e usufruir daquele mar sem ondas, calmo, para tomar um banho relaxante, ou nadar, ou remar numa canoazinha, pescar uma tainhota, até mesmo ganhar a subsistência, enfim, usufruir daqueles quase cem pedaços de paraíso como convém a qualquer um que tenha a felicidade de morar num lugar assim.

Enquanto a parte continental e a parte da ilha não se comunicavam, por não haver a ponte, a região ainda conseguiu suportar o impacto da poluição, mas após a construção da ponte, o acesso fácil às praias oceânicas fez com que todo mundo passasse a desdenhar do mar das baías, do mar interior, que é o mar da cidade, pois é frente a este mar calmo que se encontram os centros de Florianópolis, São José, Biguaçu e Palhoça, sem contar as Freguesias de Santo Antônio e Ribeirão; é este mar que está à nossa frente agora.

Quando a ponte chegou, as pessoas encontraram um jeito literal de passar por cima desse mar e, abandonado, fora de moda, ele virou o que virou: uma imensa lata de lixo, uma imensa patente; um crime ambiental que, no Brasil, acredito esteja entre os cinco maiores. Dezenas de praias destruídas, dezenas de praias “do cagão”, como jocosamente são chamadas. E as populações que habitam nas baías e que fizeram a fama e a fortuna dessa região toda, hoje, vivendo frente a esta linda paisagem, a todo este mar, sequer podem pisar nele, não usufruem dele para nada e não têm sequer a capacidade de fazer uma autocrítica, ver a vergonhosa situação ambiental que provocaram, e assim fazer algo para frear esse crime, exigir uma solução, uma limpeza, um

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retorno aos tempos em que o ar e o mar eram limpos. Xô Cocô! Xô Cocô! É isso que precisam gritar, tirar toda essa merda do mar e impedir que mais merda entre nele. De que adianta dizer que a cidade é linda se está na borda de um grande sopão de fezes? Dói ouvir isso? Pois tenho algo ainda mais doído para dizer.

A ponte nasceu da necessidade de as pessoas do continente se comunicarem com as da ilha, e vice-versa, e permitiu aos continentais conhecerem a ilha e descobrirem suas belezas. A sua estratégica localização propiciou a concentração de pessoas no seu entorno e fez do centro a região importante que é hoje. Só que a partir do momento em que novas necessidades surgiram e ela não deu conta, como suportar o grande tráfego que havia entre o continente e a ilha, e a cidade construiu a ponte de concreto, que deu mais fluidez, a velha ponte passou de caminho útil a cartão-postal, pois trafegando pela ponte de concreto as pessoas começaram a ver de novos ângulos a maravilhosa arquitetura que é uma ponte pênsil.

Porém, um fato novo veio fazer com que ela precisasse ser fechada e foi por esse detalhe, ficar fechada, tornar-se inútil, tornar-se desnecessária, que ela aos poucos foi deixando de ser vista como ponte e passou a ser cada vez mais vista como figura de cartão postal. E assim, do mesmo modo que as pessoas fascinadas pelo mar grosso esqueceram do mar calmo das baías, deixando que a poluição tomasse conta dele, os fascinados pela modernidade esqueceram da velha ponte; e em vez de sua restauração, em vez de torná-la novamente útil, a cidade optou por mais uma ponte de concreto. E se com essa opção ficava claro que nada se faria de imediato para recuperar a ponte, um fato agravante entrou em cena; o tempo implacável de espera não evitara o

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crescimento da pior das doenças para uma ponte desse tipo: a ferrugem.

A ferrugem e o cocô! Duas poluições que espelham bem o descaso da população pela paisagem. Alardeamos que somos uma ilha de beleza, de saúde, de bem viver, de qualidade de vida, de água limpa, de comida natural, mas insistimos em não discutir o que é obvio: que nosso mar principal está podre, assim como nosso cartão postal está podre. Se eu posso usar uma metáfora, a ferrugem nada mais é do que o cocô que subiu do mar “do cagão” e contaminou a ponte. Ambos são vítimas da mesma e cruel poluição. Se a ponte está abandonada é porque o povo a abandonou, assim como abandonou o mar que poderia ser o maior motivo de orgulho da cidade. Imaginem as pessoas chegando aqui e descobrindo que podem usufruir das águas limpas das duas baías? Mar no centro de uma cidade? Isso é pedir demais? Por que só as pessoas que habitam a face oceânica da ilha podem ter praia, se a grande parte da população vive no outro lado, onde só tem cocô? Por que um absurdo desses? Por que toda essa gente não faz algo para acabar com esse absurdo?

Eu sozinho não poderia limpar todo esse mar, nem sozinho eu poderia limpar a ponte, tirar a sujeira dos dois, e por isso eu quis chamar a atenção de todos para que refletissem, para que olhassem com os olhos da racionalidade, para ver aquilo que é evidente, que está aí, que precisa ser encarado. Não adianta dizer que temos orgulho dessa beleza se não cuidamos dela, como não adianta dizer que a ponte é nosso orgulho se não cuidamos dela. Ou temos orgulho e demonstramos isso ou devemos imediatamente parar com essa falácia. É preciso haver rigidez, é preciso, como eu gosto de dizer, haver uma ética protestante nesse capitalismo de exploração. Não adianta

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mentirmos, principalmente para nós. Se o turista cai no golpe da ilha das cem praias, não podemos ser estúpidos e cair também no golpe; isso é conversa de político, pois ao alardear que a ilha tem cem praias o sentido é também iludir o morador daqui de que essas cem praias existem. E elas não existem mais, pois grande parte delas virou mar de cocô, praia “do cagão”.

Então, o que temos que fazer? Deixar de nos comportamos como turistas, como gente de fora, que não tem nada a ver com essa tragédia, e encarar esses dois grandes problemas, chamar todo mundo, quem polui e quem quer despoluir, colocar o problema à mesa. Se quisermos ter orgulho de verdade da nossa cidade, então é melhor começarmos a falar a verdade; e se dizemos lá fora que temos cem praias limpas, é chegada a hora de mostrar isso, sem propaganda enganosa, é chegada a hora de ter de volta as praias limpas, que estão faltando para fechar o total alardeado nos folhetos de turismo. Chega de propaganda enganosa! Xô Ferrugem... Xô Cocô!

Os aplausos ecoaram com toda a força por mais de um minuto, e em seguida Neminho continuou a falar:

- Foi para desmascarar essa hipocrisia que eu me lancei numa empreitada para salvar a ponte, ou ao menos para chamar a atenção sobre o problema da poluição, da ferrugem, mas inicialmente eu sequer imaginava que tal gesto iria ter a repercussão que teve. Eu confesso que não estava preparado para isso e muito menos imaginei que acabaria criando um problema como o que estão me acusando de causar. O que me moveu foi o fato de achar o governo – que nunca tem verba, mas vive gastando - incompetente para solucionar o problema, que já se arrasta por décadas, mas o que eu busquei sempre foi uma solução, e não importando de que forma ela poderia vir, desde que

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viesse. E aconteceu de ela vir dessa forma que todos vocês têm acompanhado. Eu tive a sorte de contar com grandes apoios e é por causa deles que tudo está dando certo, é por causa deles que ao menos o primeiro problema vai ter solução. Ocorre que certas pessoas, principalmente do governo, não aceitam esse meu “golpe de sorte”, se assim posso chamar, e insistem que eu estou colocando-os numa situação vexatória ao vir entregar uma verba, como se estivesse chegando com a arrogância de quem tem dinheiro, por isso podendo pagar, e dizendo “faça”, colocando o governo numa situação de serviçal. A imagem que estão tentando fazer de meu gesto é essa, mas quero deixar bem claro que não tenho nenhuma arrogância em minha atitude, embora evidentemente não serei hipócrita em negar que, ao entregar a verba para o governo, estou fazendo isso não mais em meu nome, mas em nome de muita gente nesse mundo e portanto espero que a velha alegação de falta de verbas não seja mais o empecilho para a negação de soluções urgentes, como é esse caso. Assim, não serei eu quem vai cobrar do governo, mas populações de grandes cidades em todo mundo, a imprensa de todo o mundo e principalmente aquela que esteve envolvida na arrecadação dos fundos. É isso que eu acho que está incomodando o governo: o fato de ser cobrado, o fato de que ao receber essa verba não terá como diluí-la na sua burocracia, pois terá que prestar contas, o que é pior, não só para a pequena cidade a qual sempre soube como manipular, mas dessa vez para muita gente em todo o mundo, e com um grande poder de fogo. Dessa vez, toda a ação terá que ser transparente. Eu acho que é isso que anda incomodando o governo: ter que ser transparente.

Eu pensei bastante antes de falar tudo isso para a população, mas precisava dizer, principalmente em respeito a todas as pessoas de boa índole por esse mundo afora que de

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coração aberto resolveram ajudar sem sequer nos conhecer; essas sim são as pessoas bonitas do mundo, pessoas que querem o bem e acreditam num sonho possível chamado humanidade, que no fim das contas é o que importa.

Minha luta é a luta de todos aqueles que sonham mudar algo e seguem adiante, sem medo, sabendo que estão sozinhos, mas acreditando na sua própria força! Como já disse Santo Agostinho, a esperança tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem. A indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las. Se alguém tiver que tirar alguma lição do que aconteceu aqui, que seja esta: acredite na sua luta e vá em frente!

Não tenho nada de heroico em ser assim; o que tive sempre foi fé no meu sonho, fé na minha certeza, fé na minha vitória... E força de vontade pra levar a luta adiante! E muito obrigado a todos os que tiveram fé no que eu fiz. Obrigado, obrigado, obrigado.”

Os aplausos ecoaram e duraram quase cinco minutos. O roqueiro aproveitou toda aquela vibração e gritou: - A banda só é banda se tocar; a ponte só é ponte se

pontear. O público vibrou. E a banda voltou a tocar para delírio geral, enquanto

um monte de gente famosa chegava ao palco para abraçar Neminho, num grand finale para deixar saudades. Foi um showzaço, como disse alguém na hora de ir embora.

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Capítulo 35 - A ENTREGA DA VERBA

A frieza do governo ao receber a verba – Neminho vê nisso um mau sinal

O evento, como era de se esperar, repercutiu em

toda a imprensa mundial. A vitoriosa campanha do Quixote de Floripa – mais um espetacular lance de mídia do Editor-Chefe do NT – foi a capa da edição dominical do jornal nova-iorquino e Neminho Silva foi mais uma vez homenageado pela sua vitoriosa empreitada.

Já em Florianópolis, a grande preocupação da imprensa era cobrir a cerimônia em que Neminho Silva entregaria ao governo a verba arrecadada, marcada para dali a três dias.

Embora toda a imprensa lá estivesse para registrar o fato, o governo não disfarçou sua indiferença com a solenidade e designou um funcionário de segundo escalão para receber a verba, fato condenado por todos os jornais no dia seguinte.

O funcionário encarregado, colocado numa verdadeira “saia justa”, tentava dar uma explicação convincente para a ausência do principal escalão do governo, lembrando que “compromissos anteriormente assumidos impediram a presença deles ali”, mas suas explicações eram em vão, e a imprensa, ao comentar o fato no dia seguinte, não poupou severas críticas.

De qualquer modo, o funcionário prometeu que, tão logo voltasse, o governo receberia o senhor Neminho Silva para agradecer-lhe pessoalmente e fazer uma declaração sobre o processo da restauração, e deu por encerrado o encontro.

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Neminho Silva viu nessa indiferença do governo um mau sinal, mas mantinha as esperanças de ser recebido brevemente pelas autoridades, se não para receber delas um agradecimento, pelo menos para dar encaminhamento ao projeto de restauração.

E ficou esperando dias e dias e mais dias...

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Capítulo 36 - A TEIA DE ARACNE26

: A BUROCRACIA

O Assessor tenta ganhar tempo – Ele espera que as luzes sobre Neminho esfriem para poder agir - A teia de relações

Ao ver a cidade da janela do avião, uns vinte

quilômetros à frente e abaixo, uma sensação de mal estar invadiu o Assessor. Retornar a cidade implicava ter que enfrentar uma imprensa curiosa para saber qual seria a posição do governo agora que Neminho Silva havia entregado o dinheiro, quando as obras começariam, qual seria a solução adotada, como é que seriam os critérios de contratação da obra, enfim, era preciso responder à população uma série de questões; e essa obrigação é que causava a azia no Assessor.

Ele sabia que ganhar tempo era o melhor a fazer e logo que chegou na cidade, comunicou que precisaria retornar a Brasília no dia seguinte e que, por causa do compromisso, faria qualquer declaração somente quando retornasse, dali a quatro ou cinco dias depois, tempo que ele achava suficiente para que o assunto esfriasse mais um pouco na mídia.

O Assessor, como bom homem de mídia, sabia que sua melhor estratégia nesse momento era esperar que as luzes que estiveram todo esse tempo focando Neminho, recém-apagadas, portanto ainda quentes, fossem aos poucos esfriando; e isso só se daria com o passar dos dias. Ele sabia que era assim no mundo da mídia. Veja o caso das novelas: passados dez, quinze dias, pouca gente fala do último capítulo da novela que dominou os assuntos nos últimos oito meses de suas vidas. Era com esse esquecimento que ele contava para ter êxito em sua estratégia:

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- Se aquele americano filho da puta pensa que entende de mídia, eu vou mostrar pra ele porque fiquei todos esses anos mandando no jogo...

Ele estava realmente magoado, humilhado, ferido, mas o fato de sentir-se ainda ameaçado em seu poder é que o incomodava mais que tudo. Mágoa, humilhação, eram sentimentos que, mesmo deixando marcas, ele saberia suportar, dar à volta por cima; eram assuntos pessoais, de foro íntimo, como se diz no jargão político-jurídico, e ele os superaria com certeza. O perigo iminente estava naquilo que não era assunto exclusivo dele, mas de foro público, pois envolvia a permanência de todo o seu grupo político no poder. Não iria ser fácil negociar com a ala rebelde dos comerciantes, que agora estavam claramente do lado de Neminho Silva, exigindo que a obra fosse realizada de imediato, porque, afinal, a ponte era a cara da cidade – e a indústria do turismo precisava dela em todo o seu esplendor para chamar mais e mais fregueses e nunca mais praticar propaganda enganosa. O que colocava a obra – agora que não havia mais o álibi da falta de verba – como prioridade.

Ao pensar nas prioridades que ele já tinha elegido para atender aos interesses de seu grupo, e que diante dos fatos teriam que ter seu calendário modificado, ele estremeceu, porque sabia que iria contrariar muita gente próxima do poder, e via nisso uma potencial ameaça à sua permanência no topo da situação. Inverter a ordem de prioridades mexia com questões de logística, de contratos, jurídicas, mas, principalmente, mexia com os bolsos de muitos daqueles que sempre o apoiaram e que veriam nisso uma traição. E ele não aceitaria jamais conviver com essa pecha, pois nunca traíra aqueles que o apoiaram; isso todos respeitavam nele: sua fidelidade canina aos amigos políticos, demonstrada em diversos episódios quando ele chegara até a

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superar a timidez e colocara a cara para bater, enfrentando toda a opinião pública para apoiar um amigo político colocado numa dada situação de dificuldade. Traidor: disso nunca ele seria chamado!

Foi tamanha a insistência – de Neminho, dos comerciantes, da oposição, da imprensa... - Em falar de prioridade, prioridade, prioridade, que a pressão do discurso acabou dando nos nervos do Assessor, de tal modo que ele teve aquela ideia que, como já dissemos, ele nunca deveria ter tido:

- Pois bem, eu vou mostrar pra vocês o que é prioridade!

Ele sabia que somente mudando o foco do problema poderia criar uma nova situação e dessa forma modificar novamente as prioridades de acordo com seus interesses, para poder manter-se e manter seu grupo por mais um bom tempo no poder. O discurso da falta de verba tinha funcionado durante todos esses anos como justificativa para o não cumprimento de sua parte no acordo com os comerciantes, e estes - impossibilitados de cobrar dele o compromisso – nunca constituíram uma ameaça real ao seu poder - até agora! Assim, ele teve aquele raciocínio que brotou lá do fundo da fera ferida que ele era naquele exato-instante-já-da-coisa e que precisava a todo custo sobreviver. E para sobreviver, ele sabia que precisava mais uma vez reviver o mesmo discurso que fora efetivo como desculpa até a entrega pelo Quixote daqueles malditos cento e cinquenta milhões:

- Pois bem senhor Quixote. Você insistiu que bastavam cento e cinquenta milhões para priorizar e curar o mal da sua donzela amada? Então vou lhe mostrar que o mal da sua donzela precisa de muito, mas de muito mais dinheiro para ser priorizado e curado...

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E foi assim: tal qual a um aracnídeo, que domina a ciência da construção da teia e por isso sabe qual a força exata de cada um dos pontos que a compõem, o Assessor procurou na sua agenda o nome de um desses pontos, cuja força e influência ele esperava contar para tornar realidade aquela sua ideia que ele passou dias e dias dizendo para todos que não teve, até todos pararem de perguntar.

Encontrado o número do telefone, ele de imediato fez uma ligação. Passava das oito da noite, mas quando o telefone celular tocou numa das salas do setor de administração do Porto de Itajaí algumas pessoas ainda lá estavam. O dono do celular prontamente atendeu ao chamado e reconheceu a voz do outro lado. Fazia um bom tempo que ambos não se falavam e aquela ligação era tão surpreendente quanto o pedido que o funcionário ouviu...

Agora tudo dependia da habilidade do Assessor em ganhar tempo, protelando encontrar o cidadão Neminho e com isso protelando também uma resposta oficial ao projeto de restauro da ponte – e protelar era uma arte que ele dominava com esmero.

Com essa certeza, ele deu o dia de trabalho por encerrado e foi para casa. Agora que tudo estava resolvido, ele podia finalmente descansar.

Entre uma viagem e outra, somadas a “compromissos de última hora que impediram o Assessor de estar aqui hoje” (como dizia mecanicamente a secretária), quase um mês se passou, e as luzes sobre Neminho, como prevera o Assessor, já estavam bastante frias... Porém, como a imprensa ainda fazia cobranças o Assessor, “para não fazer feio”, finalmente marcou um encontro com o cidadão, mas, somente para dali a uma semana... Semana que ele ansiosamente aguardara...

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Capítulo 37 - O NAVIO

Um fato surpreendente, que não acontecia desde 1920 – As pessoas pareciam duvidar do que estavam presenciando

Dona Lurdes, lá da praia da Daniela, não viu; seo

Haroldo também não. Nem tampouco seo Hipólito, seo Nico e dona Maria, lá do Sambaqui, seo Belarmino, lá de São Miguel, seo Aderbal e seo Arnoldo, lá da Serraria, seo Aurino, lá de Barreiros, sempre tão atento a olhar o mar, ou seo Nôca, lá do Cacupé. Ninguém viu.

Ninguém viu é maneira de falar, mas o certo é que o ocorrido era tão espantoso, tão inesperado, tão espetacular do ponto de vista de sua grandeza, que se alguém viu, depois teve medo de falar.

- Em assunto de peixe grande, é melhor não se meter – reza a sabedoria mané.

Aquele era um fato completamente surpreendente, que não acontecia desde 1920, e justamente logo depois de todos aqueles recentes acontecimentos envolvendo a ponte que haviam marcado a cidade nos dois últimos meses.

- Credo! Parece “coisa feita!” – era o consenso geral. A partir do instante em que as pessoas começavam a

saber do ocorrido, de imediato voltavam sua atenção para o Estreito e tratavam de para lá se dirigir; era assim com todo mundo e, aos poucos, os bairros foram ficando vazios, e os moradores, como se fossem sugados por um grande imã, convergiam todos para aquele mesmo ponto. E ao chegarem lá, o que viam era inacreditável.

O que sucedera? Ocorrera algo completamente impensável, sob todos

os pontos de vista, mas principalmente num momento em

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que as atenções da mídia ainda estavam voltadas para a cidade.

Próximo das onze horas da noite, um grande navio cargueiro, vindo da direção de Itajaí, errou a rota – conforme declarou depois seu comandante - e costeou a ponta norte da ilha, entrando na baía norte. Passou em frente às praias do Forte, da Daniela, do Toló, do Sambaqui, de Santo Antônio e do Cacupé, do lado da ilha, e de Tijuquinhas, São Miguel, Biguaçu, Barreiros e Ponta do Leal, no continente, sem que ninguém conseguisse avistá-lo e avisar a Capitania dos Portos de tão estranha e inusitada presença. Houve até um grupo de pescadores que depois declararam ter avistado o navio, mas não puderam avisar a Capitania porque nenhum deles tinha um telefone.

O fato é que o cargueiro, carregado de geladeiras para o Uruguai, “desconhecendo” a existência da ponte no centro do canal, continuou avançando em sua rota na direção sul, na esperança de sair para o mar aberto após atravessar a extensão longitudinal da ilha.

E por um desses acasos que ninguém explica, o cargueiro foi avançando na noite, avançando, e foi grande o susto da tripulação, já preparada para dormir, quando soou o alarme de colisão, mas já era tarde demais.

A proa do navio era bastante alta, mas mesmo assim passou sob o vão central da ponte. Porém no convés do navio havia pilhas de seis contêineres sobrepostos, de considerável altura, e após estas ficava o edifício da cabine de comando do cargueiro, que possuía altura idêntica a das pilhas. É preciso colocar as coisas nesta ordem para se ter uma dimensão da colisão e da imagem que resultou dela.

O que se via nitidamente é que a proa passara sob o vão, mas a pilha de cima dos contêineres esbarrou violentamente nas pistas, bem na área do vão central, bem

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no meio do semicírculo que começa (e acaba) nas torres e sustenta a pista no ar, o chamado “meio da ponte”, bem onde ela parece mais vulnerável. O estrondo da pancada foi ouvido longe e começou sobre o convés um desmoronamento sequencial das pilhas de contêineres, muitos deles caindo no mar, outros amassando ruidosamente pela força da colisão, e outros perigosamente lançando-se na direção da casa de comando. Como esta é uma estrutura muito bem fixada no convés do navio, resistiu à pressão dos contêineres, e estes, impedidos de derrubar a cabine, por efeito da inércia, acabaram por pressionar ainda mais a estrutura do vão central, que não resistiu e desabou, deixando cair sobre o canal quase cento e cinquenta metros de pista.

Foi uma cena dantesca e as pessoas pareciam duvidar do que estavam presenciando: entalado sob a pista destruída da ponte, um navio cargueiro com um convés cheio de caixas retorcidas, desordenadamente empilhadas, e muitas delas boiando no canal enquanto afundavam lentamente. Ao olharem para a ponte, as pessoas viam estarrecidas, as vigas metálicas (aquelas que saem do semicírculo e sustentam no ar o vão central) pendendo no ar, balançando ruidosamente sob efeito do forte vento que batia (afunilado ali, por efeito da geografia). Algumas das vigas ameaçavam despencar e comprometiam ainda mais a segurança no local, porém, mesmo com os riscos, seguidamente surgiam pessoas que, embora surpresas, ofereciam ajuda. Mas tirando o trabalho de salvar vidas, que já havia sido assumido pelas brigadas militares de socorro, o que mais se poderia fazer naquele momento a não ser lamentar?

E assim naquela noite, quem morava ali próximo do canal não conseguiu dormir, seja pelo próprio espanto causado pelo fato, seja pelo barulho das centenas de sirenes,

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que vinham da terra, do ar e do mar, seja pelo trânsito infernal provocado pela curiosidade dos habitantes, que fez muita gente na madrugada se dirigir para lá, ou seja pela própria curiosidade que não deixava ninguém sair dali e ir para a cama dormir; afinal, era um acidente espetacular.

À medida que as horas passavam e a claridade aumentava, também aumentava o número de pessoas que chegavam ao local da tragédia, alertadas pelos noticiários das rádios e TVs, todos praticamente transmitidos direto dali. Quando clareou de vez o dia é que as pessoas puderam ter uma noção exata do tamanho do acidente: era uma cena triste, digna da palavra desastre.

Ao chegar lá e dar de cara com aquele terrível espetáculo, Neminho Silva pôde então compreender o quão premonitório havia sido aquele pesadelo terrível que tivera com o gigante deitado.

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Capítulo 38 - RECONSTRUIR

O Assessor estava certo em sua estratégia – Neminho ouviu tudo sentindo um misto de espanto e torpor O Assessor estava certo em sua estratégia: a comoção

mundial com o que ocorrera na cidade foi tamanha que o governo decidiu eleger como prioridade, numero um, a obra de reconstrução da ponte. Assim, a sua bancada no Legislativo estaria apresentando na semana seguinte um projeto do Executivo solicitando autorização para a contratação de empréstimos junto a bancos e instituições de crédito no país e no exterior para execução da obra. Na mensagem o governo lamentava que - justamente agora que, graças a campanha do cidadão Neminho Silva, a cidade tinha conseguido a verba para poder realizar a restauração – um destino tão trágico viesse entristecer a população. Porém, se aquela magnífica campanha visara a restauração da ponte, agora a missão era maior, pois era hora da reconstrução da magnífica donzela, para que o sonho do seu cavaleiro se realizasse; e portanto todos deveriam envidar o máximo de esforços para isso ocorrer.

Diante dessa tragédia, o governo torcia para ver o projeto ser brevemente aprovado, permitindo assim que, tão logo fosse possível, as obras tivessem início; portanto pedia inclusive à oposição que entendesse as razões do governo e não colocasse entraves à aprovação do projeto – estratégia adotada pelo Assessor considerando que toda a mídia naquele momento manifestava-se a favor da reconstrução.

Reconstrução. O Assessor deixou vazar um sorriso silencioso ao ler o termo na redação do projeto, antes de encaminhá-lo para votação.

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Enquanto o projeto era encaminhado e iniciava sua tramitação, ele finalmente recebeu Neminho Silva no Gabinete. A imprensa estava toda lá e o Assessor fez questão de que os primeiros dez minutos fossem reservados para as fotografias e as declarações oficiais. No seu pronunciamento público, o Assessor ficou o tempo todo ao lado de Neminho e disse lamentar que o destino tivesse pregado uma peça tão trágica, ceifando todo o esforço que o heroico cidadão tivera nos últimos dez meses, mas ao mesmo tempo informava que a verba conseguida pelo cidadão e repassada ao governo não estava perdida; ela faria parte do Fundo para a Reconstrução da Ponte, criado para administrar as verbas que viriam dos novos contratos de empréstimos que o governo em breve estaria assinando.

Neminho ouviu tudo sentindo um misto de espanto e torpor; não podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Tanto tempo lutara contra a burocracia, para livrar-se definitivamente das suas amarras e levar adiante o seu projeto, e agora via todo o seu esforço sendo engolido por ela: - Fundo para a reconstrução. Meu Deus! Tremeu só de pensar em todo o dinheiro levantado na sua campanha sendo desviado por labirintos intermináveis até não poder mais ser rastreado, desaparecendo... E a sensação de que nunca veria sua donzela metálica recuperada foi virando certeza e apossou-se dele um sentimento terrível, misto de dor, tristeza e raiva.

O Assessor deu por terminada a primeira parte do encontro e convidou Neminho para se reunirem a portas fechadas, passando os dois a uma sala reservada que ficava ao lado.

Neminho estava trêmulo com o que acabara de ouvir e foi direto à pergunta que gostaria de fazer:

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- Foi o senhor que tramou aquele acidente, não é mesmo?

- Por que o senhor me acusa de algo que deve ser creditado exclusivamente ao acaso? O que eu ganharia com aquele acidente? – indagou o Assessor.

- O senhor nunca admitiu que eu prosseguisse com a minha campanha sozinho e causou a destruição da ponte para que o dinheiro que eu arrecadei não fosse mais suficiente para o restauro da ponte. E agora, vai deixá-la como está, destruída, balançando ao vento sul?

- Ora meu caro senhor. Enquanto necessitava de restauração, a ponte não se constituía em prioridade para o governo. Bastava deixá-la pintada, bem iluminada, para que ela cumprisse as funções de cartão-postal; isso já era suficiente para a propaganda turística, como vinha sendo feito há muitos anos, daí não se impondo a necessidade de restaurá-la; foi sua paixão exacerbada pelo monumento, e com ela os seus interesses individualistas, que provocou toda essa confusão, invertendo prioridades e ameaçando uma série de outros interesses, colocando em risco toda uma estrutura de poder. E o senhor, cego de paixão, sequer conseguiu perceber o que acabou provocando.

Por isso que eu lhe procurei, lhe propondo uma parceria. O que eu tentava lhe fazer ver é que havia um caminho, sim, como o senhor bem o disse, só que esse caminho era um caminho chamado legalidade; e a legalidade é o Estado; é ele quem tem o direito de representar. Mas o senhor preferiu ir sozinho, preferiu a livre-iniciativa de quem não aceita que há um coletivo que se impõe legalmente. Legalmente, Senhor Neminho. Por isso que nunca dei um passo no terreno do sonho, preferindo sempre o terreno do real, do legal.

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Veja o próprio caso do senhor e do seu patrono americano. Veja quanto tempo vocês lutaram pela restauração; acho que oito meses, dez, quase um ano entre articular, criar, desenvolver e concluir. E veja quantas pessoas tiveram que envolver. Mil profissionais e artistas e cinco milhões de pessoas pagando para ver tudo. E arrecadaram quanto? Cento e cinquenta milhões? Cento e cinquenta merrequinhas? Só? Tiveram tanto trabalho e gastaram tanto tempo em sensibilizar todo o mundo com a suave doença da donzela para arrecadar só cento e cinquenta milhões de merrequinhas? – indagou jocosamente o Assessor.

Agora veja o meu caso, veja só que ideia eu tive para o meu plano de arrecadação e conclua se eu não fui mais efetivo: eu apresento a donzela ainda mais doente, precisando até regenerar pedaços inteiros de seu corpo, o que pede muito, mas muito mais dinheiro. E uma cidade comovida por um desastre desses é capaz de fazer qualquer coisa para voltar à situação anterior o mais depressa possível, inclusive pressionar os políticos da oposição a votarem favoravelmente à captação de todo o dinheiro necessário. Pronto, senhor Neminho: eis como consigo, sem grandes esforços e sem grande dispêndio de tempo, os milhões de que preciso para movimentar a máquina. Portanto, não será o senhor e nem tampouco seu patrono americano que me ensinarão como se consegue recursos; isso eu sei muito bem fazer. E o faço pela via burocrática, pois sempre considerei esta a melhor, mais eficiente e mais rápida forma de arrecadar dinheiro, mesmo que todos digam o contrário. Para mim o seu erro foi negar esse caminho como o melhor dos caminhos.

Fique sabendo o senhor que quando eu for cobrado pelos administradores dos recursos injetados pela sua campanha no meu caixa, farei questão de responder

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burocraticamente dentro da mais completa legalidade, como convém a um Estado organizado, e eles serão devidamente informados da utilização de sua verba, que estará contabilizada entre as demais que servirão para custear as obras de reconstrução. E reconstruir uma ponte não é assim né? O que isso quer dizer? Simples. Quer dizer que agora surge uma nova era, um novo momento que se inicia, chamado não mais de restauração, mas de reconstrução, do qual a sua ajuda valiosa tornou-se parte... E agradecemos muito por isso. Portanto, não cobre mais do governo a sua restauração; a história do Quixote de Floripa extinguiu-se com o imprevisível desastre que destruiu parte da ponte, surgindo uma nova prioridade: sua reconstrução; e essa é outra história.

Neminho compreendeu então que fora enganado pelas artimanhas do Assessor e diante de si surgiu a imagem de um gigantesco ralo pelo qual escoavam notas e notas de dinheiro até atingir a cifra de cento e cinquenta milhões: era o seu sonho indo pelo ralo abaixo. Foi muito triste para ele, e uma sensação nauseante tomou conta de seu corpo fazendo com que ele desejasse sair dali correndo. E foi o que ele fez, para espanto do Assessor e dos jornalistas que aguardavam o desfecho do encontro na sala ao lado. Como Neminho não ficou para responder a nenhuma pergunta e também o Assessor saiu pela porta de trás, só restou à imprensa especular no dia seguinte que alguma desavença entre ambos estava ainda ocorrendo.

E diante do silêncio do governo e do sumiço repentino de Neminho, só restou à imprensa continuar especulando, especulando, até que o assunto esfriou. Afinal, o governo era o foco das atenções com o lançamento do projeto de reconstrução, para o qual a parcela inicial de quinhentos milhões já havia sido aprovada, para a alegria dos

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empresários locais, que iriam fornecer pessoas, tecnologia e material para as obras. Para não ficar esquecido, Neminho tentou se fazer notar e procurou a imprensa para denunciar a forma meramente contábil, burocrática que o governo havia dado ao seu suado dinheiro, mas os jornalistas lhe disseram que a essa altura dos fatos a reconstrução era mais importante e as pessoas em sua maioria iriam concordar com o que o governo fizesse.

Neminho enviou e-mails por diversas vezes para o Editor-Chefe do NT, relatando os fatos e pedindo que este cobrasse mais ação do governo, porém as respostas raramente vinham, e ficaram cada vez mais escassas, principalmente após ele ser comunicado que o jornalista estava às voltas com mais uma campanha, dessa vez envolvendo um grupo de cegos de Ruanda, que insistiam no sagrado direito de aprender a ler em kinyarwanda, a língua tribal oficial do país, enquanto o governo, apoiado por europeus, lhes proibia o acesso a impressos em braile neste idioma, apenas permitindo publicações em inglês e francês, que ignoravam a cultura local – e atualmente ele ficava pouco em Nova Iorque, mas iria ver o que poderia fazer etc. etc. etc. Com o passar dos dias, Neminho começou a perceber que o Editor-Chefe estava cada vez mais econômico nos e-mails e concluiu que o produto Quixote de Floripa já não tinha lá tanto peso para seu criador. E compreendeu finalmente – e de modo cruel - o que era ter se tornado um produto, bem como percebeu que a sua campanha de vendas havia terminado.

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EPÍLOGO

No canal do Estreito, onde se localiza a ponte, costuma bater um forte vento sul, afunilado pela geografia, que nas noites frias de inverno chega a doer na alma. Isso faz com que ali raramente alguém circule à noite, ainda mais recentemente, porque grande parte da calçada foi fechada pelos riscos de alguma peça da ponte desabar causando algum acidente fatal. As partes que ficaram suspensas no ar devido à colisão e ainda não retiradas, nessas noites de vento frio balançam perigosamente e este balançar provoca rangidos que são ouvidos de longe, dando um ar sinistro ao cenário da tragédia que, passados já alguns anos, ainda parece o mesmo daquele fatal dia.

O local, antes um cenário de encantamento e paisagem para fotos de milhares de turistas, agora é fantasmagórico, triste. O navio já foi retirado, mas a ferida deixada pela proa na pista da ponte ainda está lá. Aquela visão tétrica da pista central que acaba no ar, ladeada e encimada por quase uma centena de vigas metálicas que continuam balançando penduradas no ar enquanto as companhias seguradoras não terminam seus laudos periciais, causa tristeza em qualquer pessoa que se depare com a cena. É uma visão completamente oposta àquela que todos se habituaram a ter do belo local. À noite, então, é pior ainda. E nos embates entre as seguradoras e seus laudos, os engenheiros e seus laudos, os advogados e seus laudos, e mais laudos e laudos e laudos, os anos vão se arrastando e todos começam a duvidar quando a reconstrução será reiniciada, fazendo surgir mais uma leva de políticos com novas promessas de soluções mirabolantes (e convém ir ao

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dicionário para ter uma dimensão do que significa essa palavra), na busca do voto dos incautos.

E mesmo com tantos anos já passados, nessas noites de frio, ainda percebe-se um vulto às vezes que circula por ali. A maioria das pessoas que passam apressadas nos carros pela avenida sequer imagina de quem se trata, mas os raros noctívagos que ali transitam sabem que se trata de Neminho Silva, que continua a aparecer , para admirar sua musa, fazer-lhe uma visita, como quem visita um doente.

Neminho agora é um sujeito muito triste. Pensando bem, voltou a ser triste, porque já vivia triste quando sua vida sofreu toda aquela reviravolta. Mas ele não se incomoda mais de estar triste. Tornou-se melancólico e essa melancolia, em vez de diminuir, aumenta dia a dia o azedume do fígado, aquele fel, que corrói sua alegria e lhe causa ainda mais dor na alma.

Desencantado com tudo o que lhe aconteceu, com o uso que fizeram dele, anda infeliz e pensando até mesmo em se matar, embora se matar diz que não vai, porque como bom cristão que é não vai fazer tal besteira; só que a ideia não lhe sai da cabeça.

Talvez vá viajar um pouco, ou mesmo resolva deixar a cidade. Ainda não sabe. Pensando bem, desapontado, não sabe nada.

Ele só consegue vagar na calada da noite e quando menos espera está lá, diante da sua donzela, lamentando noites e noites seguidas sua dor, sua feia aparência que espera ansiosa o cirurgião que virá restaurar sua beleza. Mas o cirurgião parece demorar cada vez mais, e às vezes ele se desespera e aperta na mão o parafuso-mimo com tanta força, rezando por um milagre, que seus dedos chegam a ficar marcados.

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É de dar dó ver aquela cena, saber que aquele espectro que vagueia por ali é ele, justo ele, que sonhara um sonho romântico de um dia salvar a ponte e com isso devolver o orgulho de uma cidade inteira...

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Notas:

1 Cf. Aurélio Agostinho, Bispo de Hipona (354-430 d.C.). Filósofo e Teólogo

cristão nascido em Tagaste, no Norte da África. Sua morte, em 430 d.C.,

marca o início da idade das trevas na Europa. É considerado santo pelos

católicos. Disponível em

http://www.superviadigital.com.br/obldv/principal.htm. Acesso em abr.

2009. 2 Cf. COELHO, Mário César. Imagens em perspectiva da ponte pênsil de

Florianópolis/SC, p. 2. Disponível em

<http: //departamentos.unican.es/digteg/ingegraf/cd/ponencias/153.pdf> Acessado em 26 fev.2009. As duas pontes gêmeas construídas depois da Ponte Hercílio Luz, nos Estados Unidos foram a Silver Bridge em 1928, que desabou em 1967, e a St. Mary’s Bridge de 1929, que foi desmontada, em seguida ao desastre. Apesar de serem menores, eram estruturas muito semelhantes quanto ao sistema de sustentação. Ver também informações com diversos números sobre a ponte no sitio <http://WWW.ihgsc.org.br/destaque3.htm> A foto das pontes sobre o canal é do fotógrafo Pedro Rocha e encontra-se também neste sítio. Acessado em mar.2009. 3 No município de Florianópolis, morar “no continente” significa,

principalmente, morar no bairro continental do Estreito e seus arredores.

Da mesma forma, os açorianos chamam os portugueses que habitam o

território do país de moradores do “continente”. Na metáfora da

personagem, há um secreto orgulho, uma certa superioridade em ser

português “continental” com relação a ser português insular (açorianos). 4 No jargão mané, um sujeito caco designa alguém de vida errada, de má

índole. 5 A ponte Hercílio Luz.

6 Cf. SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos. Ensaios sobre

dependência cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. Ver o Capítulo 1: O

entre-lugar do discurso latino-americano. 7 Dom Quixote é a obra do espanhol Miguel de Cervantes, publicada pela

primeira vez em duas partes: 1605 e 1615. 8 Cf. ECO, Humberto. O Pêndulo de Foucault. São Paulo: Record, 1989. O

livro tem como pano de fundo o meio editorial e o universo dos cavaleiros

templários. 9 Cf. BORGES, Jorge Luis. Em O Quixote de Pierre Menard, o escritor

argentino Jorge Luis Borges faz, entre outras, uma reflexão sobre a autoria

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e a originalidade de um texto. Pierre Menard, a personagem central, certo

dia começa a (re)escrever o mesmo livro que Cervantes originalmente

escrevera. Ele quer chegar ao Dom Quixote não como Cervantes, mas como

ele mesmo, Pierre Menard, autor do Quixote. BORGES, Jorge Luis. Ficções.

(Tradução Carlos Nejar). São Paulo: Ed. Globo, 2001. 10

Cf. PESSOA, Fernando. Poemas Escolhidos. São Paulo: Ed. O Estado de S.

Paulo/Klick Editora, 1997. p. 155. No livro Mensagem, no poema O Quinto

Império, Fernando Pessoa cita Grécia, Roma, a Cristandade e a Europa

como os primeiros quatro impérios e Portugal como o quinto: o sonho de

D. Sebastião, que justifica a expressão “homem continental”, uma metáfora

para a expansão (e domínio) da língua portuguesa sobre todo o continente

europeu. Este mito surgiu na batalha de Alcácer-Quibir, onde os

portugueses sofreram uma derrota humilhante do sultão Ahmed

Mohammed de Fez, perdendo boa parte do seu exército. O rei Sebastião,

provavelmente morreu na batalha ou foi morto depois desta. Este desastre

teria as piores consequências para o país (financeiras, inclusive), colocando

em perigo a sua independência. Mas para o povo português, o rei havia

apenas desaparecido, dúvida que persiste até hoje e gerou a lenda do "rei

dormente" (ou um Messias) que vai regressar para ajudar Portugal nas suas

horas mais sombrias, tal qual o Rei Artur,da InInglaterra. O sonho de

Sebastião era dominar a Espanha, unindo toda a península ibérica. A

metáfora deste sonho pode ser entendida como a vitória de um rei cristão

sobre os tiranos mouros que ainda tinham, à epoca, poder na península.

Talvez por isso Fernando Pessoa, no citado poema, compare D. Sebastião a

Galaaz, cavaleiro Cristão associado ao mito da Espada Excalibur e do Santo

Graal. No Brasil, em fins do século XIX, o mito de D. Sebastião vai ser

resgatado por Antônio Conselheiro e culminar no episódio da Guerra de

Canudos, que envolveu tropas do governo contra os lavradores

sebastianistas no sertão da Bahia, os quais acreditavam que o rei iria

regressar para ajudá-los na luta contra a “república (ateia) brasileira”.

Disponivel em < http://www.insite.com.br/art/pessoa/mensage3.html>.

Consultar também os sítios

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_de_Alc%C3%A1cer-Quibir> e

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_de_Portugal> Acessado em

20 fev.2009. 11

Na metáfora criada por Fernando Pessoa, em vez de Portugal vencer

pelas armas (algo difícil na realidade do século XX) poderia restaurar a sua

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grandeza sobre toda a Europa (e além-mar) pela língua. A pátria portuguesa

estaria então onde estivesse sua língua (“a língua é minha pátria”, como

nos lembra o verso da música Língua, de Caetano Veloso); e assim, quanto

mais difundida, maior a grandeza do “5º Império”. Os soldados desse novo

império seriam os poetas e os gramáticos. 12

Cf. ONDJAKI. Bom dia camaradas. Rio de Janeiro: Agir, 2006. p. 79 13

Ver o artigo “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política (vol.

1). 7 ed. 10ª reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1996. 14

Cf. COELHO, Mário César. Imagens em perspectiva da ponte pênsil de

Florianópolis/SC, p. 2. Disponível em

<http: //departamentos.unican.es/digteg/ingegraf/cd/ponencias/153.pdf> Acessado em 26 fev.2009. Diz o autor: “Falar da cidade de Florianópolis sem a ponte é como um ato incompleto, sem o personagem principal. As imagens do monumento identificam a cidade. Ela é uma referência visual, simbólica e afetiva assimilada pela população. Isto fica evidente pela quantidade de reproduções gráficas. A fonte documental sobre a Ponte Hercílio Luz em forma de imagens é muito ampla, formando uma espécie de caleidoscópio, onde a cada momento se acrescenta nova informação visual” (p. 3). 15

Ibid. A ponte foi interditada em 1982 por um problema estrutural na barra de olhal. De lá para cá, passou-se a discutir constantemente as formas de sua recuperação. 16

Grafia “livre”, inspirada no famoso Jornal da cidade de Nova Iorque, EUA. 17

Aqui faço minha homenagem saudosa ao Roda Bar, localizado por muitos

anos na Rua Trajano, um excelente bar que existiu no centro da cidade

(embora, para outros, foi o Meu Cantinho, na rua Jerônimo Coelho, já

fechado, e a Quibelândia, o único que restou), que tinha o espírito do bar

narrado na estória. O Roda fechou suas portas na década de 1980.

Coincidentemente, numa viagem a Amsterdam fiquei hospedado num

apartamento ao lado de um boteco que tem este mesmo nome; e essa

coincidência parece ter sido o “sinal” para republicar esta estória. Não

precisava dizer isso aqui (da viagem), mas o faço para homenagear o citado

boteco holandês – que homenageia, por sua vez, o bar da minha estória. 18

O termo Estado aqui tem o uso livre, com o significado de governo. É que

a ponte pode ser vista como um assunto municipal, estadual ou federal, o

que justifica a opção pelo termo mandatário-mor para designar o chefe do

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governo, como se verá adiante, sem vinculação direta a qualquer das três

esferas. 19

Adam Smith, acreditava que a iniciativa privada deveria ser deixada agir

livremente, com pouca ou nenhuma intervenção governamental. [...] e

advogava o que ele descreveu como liberdade natural, cuja principal

característica é a liberdade individual de cada um de competir com outro,

com a mínima intervenção do Estado, que apenas deve garantir um sistema

de justiça. Segundo Smith, todo o homem, desde que não viole as leis da

justiça, tem direito de lutar pelos seus interesses como melhor entender e

entrar em concorrência. [...] Para ele, cada indivíduo ao tentar satisfazer o

seu próprio interesse, promove, de um modo mais eficaz, o interesse da

sociedade, do que quando realmente o pretende fazer. Apesar de cada

indivíduo ter na mente o seu próprio interesse e não o interesse da

sociedade, o juízo da sua própria vantagem leva-o, naturalmente, ao

melhor para sociedade. [...] Smith, como pai do liberalismo que é, confia no

individualismo, nas virtudes do sistema de liberdade natural. [...] O egoísmo

surge aqui como um elemento positivo, desde que a perseguição do

interesse de cada um não impeça outro de perseguir igualmente o seu

interesse. A. Smith considera que existe um sistema de liberdade individual

que passa por o governo não interferir com as atividades produtivas da

população. Disponível em

http://www.administradores.com.br/artigos/adam_smith_karl_marx_e_ke

ynes_estao_se_revirando_nos_tumulos/25719/> Acesso em 27 jan.2009.

Ver também BRAGANÇA, Wilson. Disponível em

http://desenvolvimentostp.blogspot.com/2008/02/anlise-da-teoria-do-

Estado-de-adam.html Acesso em 27 jan.2009. 20

Cf. VANDRE, Geraldo. Música: Pra não dizer que não falei de flores. In A

Era dos festivais. São Paulo: Universal, 2003 (Versão em CD – Compact

Disc). 21

Para que não paire dúvidas, o uso dos termos “plebe”, e mais adiante

“ralé”, aqui nesta obra tem o sentido brincalhão de fazer uma referência ao

“povo, galera, massa, plebe, ralé” – é nesse sentido que deve, portanto, ser

lido. 22

Denominação antiga das ruas do centro da cidade, atuais ruas Trajano e

Deodoro. O Largo Santa Bárbara era próximo à Ponte do Vinagre,

possivelmente o atual Centro Cívico.

173

23

É também nessa leva higienista que o Hospital Militar - que ficava no

centro da cidade, num grande terreno, onde hoje se localiza a Faculdade de

Educação, a antiga Academia de Comércio e parte do Instituto Estadual de

Educação - acabou sendo “expulso” para o local onde se encontra. Na

Guerra do Paraguai, era tamanho o número de soldados para cá enviados

que a população, assustada com tanta gente doente no centro da cidade,

exigiu a transferência do Hospital, visto como pestilento, para uma área

mais afastada. Para saber mais detalhes sobre os episódios narrados neste

capítulo, recomenda-se a leitura de dois trabalhos: MORAES, Laura do

Nascimento Rótolo de. Cães, vento sul e urubus: higienização e cura em

Desterro/ Florianópolis. Porto Alegre, 1999. 333 f. Tese (Doutorado em

História) - PUCRS, Inst. de Filosofia e Ciências Humanas; e LANER, Carla.

Emanações Perniciosas Moralidade Corrosiva: Os desdobramentos do

discurso científico no centro urbano de Nossa Senhora do Desterro. (1831-

1864). Florianópolis; Dissertação (UFSC), 2006. Como trabalhei fazendo

serviços de revisão e preparação de originais para o trabalho da

pesquisadora Laura Rótolo,quero aqui lhe fazer uma homenagem, in

memoriam, por ter me levado a refletir sobre muitos fatos da história

cidade em nossas conversas de trabalho, permitindo que eu vislumbrasse

um cotidiano que a história oficial não retratou da Florianópolis do século

XIX. A história aqui narrada - diga-se: de forma literária - é, em parte, fruto

desse vislumbre. Obrigado, mestra! 24

Criação do escritor e novelista Dias Gomes, o personagem central da

novela O Bem Amado, é um prefeito cujo estilo corrupto de (falar e de)

fazer política o atrelou a um extenso anedotário que fez sua fama. Por

extensão, muitos prefeitos no Brasil foram apelidados de Odorico

Paraguaçu (ou comparados a ele). No livro A história das telenovelas, ele é

apresentado como prefeito da fictícia cidade de Sucupira, político

desonesto, mau caráter, anti-herói tragicômico. (REDE GLOBO. A história

das telenovelas. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1980).

25 Expressão latina: à cidade e ao mundo.

26 Palavra que remonta ao mito da tecelã lídia Aracne, que, ao desafiar

Atena para uma competição de tecelagem, reproduziu em sua tela os

amores dos deuses. A sua presunção e escolha do tema irritaram a Deusa,

que rasgou a tela e a espancou. Desesperada, Aracne enforcou-se, mas

Atena transformou-a numa aranha (Arakne, em grego). HARVEY, P.

174

Dicionário Oxford de Literatura Clássica e Latina. Trad. De Mário da Gama

Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 50.