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e outras aventuras Malcolm Gladwell O que se passa na cabeça dos cachorros

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e outras aventuras

Malcolm Gl adwell

O que se passa na cabeça

dos cachorros

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p r e f á c i o

1.

Quando eu era criança, costumava entrar escondido no escritório

do meu pai e folhear os papéis que encontrava sobre a escriva-

ninha. Ele é matemático. Escrevia em papel milimetrado, a lápis

– longas linhas de números e símbolos compostas com capricho.

Eu me sentava na beirada da cadeira e olhava cada página com

espanto e admiração. Em primeiro lugar, parecia um milagre que

ele fosse pago por aquilo que não fazia o menor sentido para mim.

O mais importante, porém, era que eu não me conformava com o

fato de que alguém que eu amava tanto fi zesse diariamente, den-

tro da própria cabeça, algo que eu não conseguia entender.

Isso foi, na verdade, uma versão do que mais tarde eu soube

que os psicólogos chamam de “problema das outras mentes”. Os

bebês de 1 ano acreditam que, se gostam de suco de maçã, papai e

mamãe também gostam de suco de maçã. Eles ainda não captaram

a ideia de que o que está dentro de suas cabeças é diferente do que

está dentro da cabeça das outras pessoas. Mais cedo ou mais tarde,

porém, as crianças passam a entender que mamãe e papai não ne-

cessariamente gostam de suco de maçã também, e esse momento

é um dos grandes marcos cognitivos do desenvolvimento humano.

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Por que uma criança de 2 anos é tão travessa? Porque está testando

a noção fascinante e, para ela, totalmente nova de que algo que lhe

dá prazer pode não dar prazer a outra pessoa – e a verdade é que,

mesmo adultos, nunca perdemos esse fascínio. Qual é a primeira

coisa que queremos saber quando conhecemos um médico numa

ocasião social? Não é o que ele faz. Até certo ponto, sabemos o

que um médico faz. Em vez disso, queremos saber como é con-

viver com doentes o dia todo. Queremos saber qual é a sensação

de ser médico, porque temos certeza de que não é a mesma de fi -

car sentado diante de um computador o dia todo, de dar aulas em

uma escola ou de vender carros. Tais perguntas não são tolas nem

óbvias. A curiosidade sobre o cotidiano do trabalho alheio é um

dos impulsos humanos mais fundamentais, e foi esse impulso que

me levou a escrever o livro que você tem nas mãos.

2.

Todos os textos de O que se passa na cabeça dos cachorros vêm das

páginas da revista Th e New Yorker, de que sou colunista desde

1996. Meus artigos favoritos, dos inúmeros que escrevi nesse pe-

ríodo, estão reunidos aqui. Agrupei-os em três categorias. A pri-

meira seção é sobre obsessivos e o que gosto de chamar de gênios

menores – não Einstein, Winston Churchill ou Nelson Mandela

e outros artífi ces monumentais do mundo em que vivemos, mas

pessoas como Ron Popeil, que vendia o miniprocessador Chop-

-O-Matic, e a publicitária Shirley Polykoff , que se notabilizou

pela pergunta: “Ela tinge os cabelos ou não? Só seu cabeleireiro

sabe.” A segunda seção é dedicada a teorias, a formas de organi-

zar a experiência. O que devemos pensar sobre os sem-teto, os

escândalos fi nanceiros ou um desastre como a explosão do ônibus

espacial Challenger? A terceira seção aborda os julgamentos que

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fazemos das pessoas. Como sabemos se alguém é mau, inteligen-

te ou capaz de fazer algo muito bem? Como você verá, sou cético

quanto à precisão desse tipo de parecer.

Nos melhores destes artigos, o que pensamos não importa.

Estou mais interessado em descrever o que pessoas que pensam

sobre os sem-teto, o ketchup ou os escândalos fi nanceiros pen-

sam sobre os sem-teto, o ketchup ou os escândalos fi nanceiros.

Não sei a que conclusão chegar sobre a explosão do Challenger.

Linhas de números e símbolos indecifráveis caprichosamente es-

critas em papel milimetrado não fazem sentido para mim. Mas

e se olharmos o problema pelos olhos de outra pessoa, de dentro

da cabeça de outra pessoa?

Você irá deparar, por exemplo, com um artigo em que pro-

curo entender a diferença entre o colapso e o pânico. O texto foi

inspirado pelo acidente fatal de avião que John F. Kennedy Jr., ou

John-John, sofreu em julho de 1999. Ele era um piloto novato

e voava sob mau tempo quando “perdeu o horizonte” (como os

pilotos costumam dizer) e entrou num mergulho em espiral. Para

entender o que ele experimentou, pedi a um piloto que me con-

duzisse no mesmo tipo de avião que Kennedy pilotou, no mesmo

tipo de mau tempo, e fi z com que nos levasse num mergulho em

espiral. Eu não estava querendo me autopromover. Era uma ne-

cessidade. Eu queria entender a sensação de cair de um avião da-

quela maneira, porque se você quer compreender aquele acidente,

não basta simplesmente saber o que Kennedy fez.

“O problema da imagem” é sobre a interpretação de imagens

de satélites, como as fotos que o governo Bush achou que tinha

das armas de destruição em massa de Saddam Hussein. Comecei

a pensar nesse assunto porque passei uma tarde com um radiolo-

gista examinando mamografi as e, de repente, de forma espontâ-

nea, ele mencionou que imaginava que os problemas que pessoas

como ele tinham ao interpretar radiografi as das mamas eram pa-

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recidos com os que os agentes da CIA tinham ao interpretar fotos

de satélite. Eu queria saber o que acontecia dentro da sua cabeça,

e ele queria saber o que acontecia dentro da cabeça do pessoal da

CIA. Lembro que, naquele momento, me senti eufórico.

Temos também o artigo que deu nome a este livro. É um

perfi l de Cesar Millan, o encantador de cães. Millan consegue

acalmar o mais raivoso e agitado animal com um toque das mãos.

O que se passa na cabeça de Millan ao fazer isso? Daí veio minha

inspiração para escrever o artigo. No meio do processo, porém,

percebi que havia uma pergunta ainda melhor: quando Millan

opera sua magia, o que se passa dentro da cabeça do cachorro? É

isso o que realmente queremos saber.

3.

A pergunta que mais me fazem é: de onde você tira suas ideias?

Nunca dou uma boa resposta. Costumo dizer algo vago a respeito

de que as pessoas me contam coisas, ou que meu editor, Henry,

me dá um livro que me faz refl etir, ou simplesmente digo que não

me lembro. Quando estava organizando esta coletânea, achei que

deveria tentar descobrir a resposta de uma vez por todas. Existe,

por exemplo, uma matéria longa e um tanto excêntrica neste livro

sobre por que ninguém inventou um ketchup que concorresse

com o Heinz nos Estados Unidos. (Qual é a nossa sensação ao sa-

borearmos o ketchup?) Essa ideia veio do meu amigo Dave, que

tem uma mercearia. Almoçamos juntos de vez em quando, e ele é

o tipo de pessoa que pensa em coisas assim. (Dave também tem

algumas teorias fascinantes sobre melões, mas estou guardando

isso para outra ocasião.) Outro artigo, intitulado “Cores verda-

deiras”, é sobre as mulheres pioneiras na publicidade de tinturas

para cabelo. Entrei nesse assunto porque meti na cabeça que seria

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divertido escrever sobre xampu. (Acho que eu estava desesperado

por uma história.) Muitas entrevistas depois, um tipo exaltado da

Madison Avenue, o reduto publicitário de Nova York, me per-

guntou: “Por que diabos você está escrevendo sobre xampu? Tin-

turas para cabelo são bem mais interessantes.” E assim foi.

O truque para encontrar ideias é se convencer de que todo

mundo e todas as coisas têm uma história para contar. Quando

digo truque quero dizer desafi o, pois se trata de algo muito difícil

de fazer. Nosso instinto como seres humanos é supor que a maio-

ria das coisas não é interessante. Zapeamos pelos canais de TV

e rejeitamos 10 antes de nos fi xarmos em um deles. Entramos

numa livraria e folheamos 20 romances antes de escolher o que

queremos. Filtramos, classifi camos, julgamos. Precisamos fazê-lo.

Existem opções demais. Mas se você quer ser um escritor, deve

lutar contra esse instinto todos os dias. Xampu não parece in-

teressante? Ora, vai ter de ser, e, se não for, devo acreditar que

acabará levando a algo que é. (Deixarei que você julgue se tenho

razão nesse caso.)

Outro truque para obter ideias é descobrir a diferença entre

poder e conhecimento. De todas as pessoas que você encontrará

nestas páginas, pouquíssimas são poderosas, ou mesmo famo-

sas. Quando mencionei que estou mais interessado nos gênios

menores, foi isso que quis dizer. Você não começa de cima se

quer encontrar uma história. Começa do meio, porque são as pes-

soas do meio que metem a mão na massa. Meu amigo Dave, que

me ensinou sobre ketchup, é um sujeito do meio. Ele trabalhou

com ketchup, por isso domina o assunto. As pessoas do topo se

preocupam com o que dizem (e com toda a razão) porque têm

uma posição e privilégios a proteger – e a preocupação não deixa

escapar o que é interessante. Em “O vendedor” você conhecerá

Arnold Morris, que anunciou para mim as vantagens do fatia-

dor Dial-O-Matic num dia de verão em sua cozinha em Jersey

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Shore: “Venha, pessoal! Vou mostrar a vocês o mais incrível fa-

tiador que já viram”, começou ele. Depois, apanhou um saquinho

de temperos para churrasco, usando-o como um objeto cênico.

“Deem uma olhada nisto!” Disse isso erguendo-o no ar, como se

estivesse exibindo um vaso Tiff any.

Erguendo-o no ar, como se estivesse exibindo um vaso Tiff any. É

aí que você encontra histórias: na cozinha de alguém em Jersey

Shore.

4.

Quando eu era jovem, não queria ser escritor. Meu sonho era

ser advogado, mas, no último ano da faculdade, decidi trabalhar

com publicidade. Deixei meu currículo em 18 agências na cidade

de Toronto e recebi 18 cartas de rejeição. Pensei em fazer pós-

-graduação, mas minhas notas não eram boas o sufi ciente. Candi-

datei-me a uma bolsa para estudar em um lugar exótico durante

um ano e fui reprovado. Escrever foi o que acabei fazendo no fi m

por falta de opção e pela simples razão de que custei a perceber

que isso poderia ser um trabalho. Trabalhos eram coisas sérias e

que intimidavam. Escrever era divertido.

Após a faculdade, trabalhei durante seis meses numa peque-

na revista em Indiana chamada American Spectator. Mudei-me

para Washington, fui freelance por alguns anos, acabei conse-

guindo um emprego no Th e Washington Post e de lá fui para a

Th e New Yorker. Ao longo dos anos, escrever nunca deixou de ser

divertido, e espero que esse espírito alegre esteja evidente nestes

artigos. Nada me frustra mais do que alguém que lê um texto

meu ou de outra pessoa e diz, zangado: “Não acredito nisso.”

Por que fi cam zangados? O sucesso ou o fracasso de um bom

texto não está em sua capacidade de persuadir. Não o tipo de

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texto que você encontrará neste livro. Seu sucesso ou fracasso

depende da capacidade de envolver você, de fazê-lo pensar, de

dar um vislumbre da cabeça de outra pessoa – ainda que ao fi nal

você conclua que a cabeça da outra pessoa não é um lugar onde

gostaria de estar. Chamei estes artigos de aventuras porque é isso

que pretendem ser. Divirta-se.

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p a r t e i

obsessivos, pioneiros e outras variedades de gênios menores

“ para um verme dentro de um

rabanete, o mundo inteiro

é um rabanete.”

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o v e n d e d o r

Ron Popeil e a conquista da cozinha americana

1.

A história extraordinária da Ronco Showtime Rotisserie & BBQ

começa com Nathan Morris, o fi lho do sapateiro e cantor de sina-

goga Kidders Morris, que chegou do Velho Mundo na década de

1880 e se fi xou em Asbury Park, Nova Jersey. Nathan Morris era

um vendedor. Percorria os calçadões, as lojas de artigos populares

e as feiras agropecuárias para cima e para baixo na Costa Leste,

vendendo utensílios de cozinha produzidos pela Acme Metal. No

início da década de 1940, Nathan fundou a N.K. Morris Manufac-

turing – produzindo a sanduicheira de fogão KwiKi-Pi e o fatiador

Morris Metric Slicer – e, talvez porque estivessem atravessando a

Depressão e as perspectivas de emprego fossem fracas, ou talvez

porque Nathan Morris fosse tão convincente ao defender sua nova

profi ssão, cada um dos membros de sua família foi ingressando

no negócio. Os fi lhos Lester Morris e Arnold (A Faca) Morris

tornaram-se seus vendedores. Ele iniciou no negócio o cunhado

Irving Rosenbloom, que viria a ganhar uma fortuna com produtos

plásticos em Long Island. Nathan associou-se ao irmão Al, cujos

fi lhos trabalhavam no calçadão, juntamente com um irlandês alto,

magro e desengonçado chamado Ed McMahon.

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Num verão pouco antes da guerra, Nathan aceitou como

aprendiz o sobrinho Samuel Jacob Popeil. S.J., como era conhe-

cido, foi tão inspirado pelo tio Nathan que resolveu criar a Popeil

Brothers, sediada em Chicago, pela qual trouxe ao mundo o fa-

tiador Dial-O-Matic e os miniprocessadores Chop-O-Matic e

Veg-O-Matic. S.J. Popeil teve dois fi lhos. O mais velho era Jerry,

que morreu jovem. O mais novo é familiar a qualquer ameri-

cano que já tenha assistido a um daqueles comerciais longos que

passam de madrugada na televisão. Seu nome é Ron Popeil.

Nos anos do pós-guerra, muitas pessoas fi zeram da cozinha

seu meio de vida. Havia os Klinghoff er, de Nova York. Eles fabri-

cavam, na década de 1950, a Roto-Broil 400, uma churrasqueira

pioneira com espeto giratório que era vendida por Lester Morris.

Havia Lewis Salton, que escapou dos nazistas com a venda de

um selo inglês da coleção do seu pai e aplicou o dinheiro numa

fábrica de utensílios domésticos no Bronx. Ele trouxe ao mundo

o Salton Hotray – uma espécie de precursor do micro-ondas – e

hoje a Salton, Inc. vende o George Foreman Grill.

No entanto nenhum rival foi páreo para o clã Morris-

-Popeil. Eles foram a família presidencial da cozinha americana.

Casaram-se com mulheres bonitas, fi zeram fortunas, roubaram

ideias uns dos outros e passaram noites em claro pensando numa

maneira de cortar uma cebola de modo que as únicas lágrimas

derramadas fossem de felicidade. Acreditavam ser um erro sepa-

rar do marketing o desenvolvimento de produtos, como fazia a

maioria de seus contemporâneos, porque para eles as duas coi-

sas eram indistinguíveis: o item que mais vendia era aquele que

se vendia sozinho. Eram homens entusiasmados, brilhantes. E

Ron Popeil foi o mais entusiasmado e brilhante de todos. Ele

era o José da família, exilado pelo pai para uma terra inóspita

para depois retornar e ganhar mais dinheiro do que todos os

outros membros da família juntos. Foi um pioneiro em levar

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os macetes do vendedor de calçadão para as telas da TV. E de

todos os utensílios de cozinha do panteão dos Morris-Popeil,

nenhum teve um design tão criativo, um apelo tão abrangente

nem representou tão bem a crença dos Morris-Popeil na inter-

-relação entre a abordagem de vendas e o objeto vendido quanto

a Ronco Showtime Rotisserie & BBQ, a pequena churrasqueira

de espeto giratório que pode ser comprada em quatro parcelas de

US$39,95 e talvez seja, dólar por dólar, o melhor utensílio de co-

zinha já fabricado.

2.

Ron Popeil é um homem bem-apessoado, de ombros largos e fei-

ções marcantes. Tem 65 anos e mora em Beverly Hills, no meio

da subida para o Coldwater Canyon, num bangalô espaçoso com

abacateiros e, nos fundos, uma horta. Pelos padrões de Beverly

Hills, os hábitos de Popeil são característicos da velha guarda. Ele

carrega suas próprias sacolas, costuma comer no Denny’s e veste

camisetas e calças de moletom. Pode ser visto até duas vezes por

dia comprando aves, peixes ou carne num dos mercados locais –

em particular, o Costco, a que ele dá preferência, pois os frangos

ali custam menos que nos supermercados. Tudo o que compra

leva para sua cozinha, um espaço enorme com vista para o cânion,

uma série de utensílios industriais, uma coleção de 1.500 vidros

de azeite e, no canto, uma pintura a óleo dele com sua quarta es-

posa, Robin (ex-modelo de uma grife de lingerie), e a fi lhinha de-

les, Contessa. Ofi cialmente, Popeil possui uma empresa chamada

Ronco Inventions, com 200 funcionários e alguns depósitos em

Chatsworth, na Califórnia. Porém o núcleo da Ronco se resume

a Ron trabalhando em sua casa, e muitos dos destaques do time

são amigos de Ron que também trabalham em suas casas e que se

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reúnem na cozinha de Ron quando, vez por outra, ele prepara uma

sopa e quer colocar a conversa em dia.

Nos últimos 30 anos, Ron inventou uma série de utensílios

de cozinha, entre eles o Ronco Electric Food Dehydrator (desi-

dratador elétrico de alimentos) e o Popeil Automatic Pasta and

Sausage Maker (preparador automático de macarrão e salsicha).

Ele trabalha incansavelmente, guiado por lampejos de inspira-

ção. Em agosto de 2000, por exemplo, percebeu de repente qual

produto sucederia a churrasqueira. Ele e seu braço direito, Alan

Backus, vinham trabalhando numa máquina de empanar que pe-

garia 4,5kg de asas ou escalopes de frango, camarões ou fi lés de

peixe e faria todo o trabalho – misturar os ovos, a farinha de trigo,

a farinha de rosca – em poucos minutos, sem sujar a mão do co-

zinheiro nem a máquina.

“Alan estava na Coreia, para onde enviamos grandes enco-

mendas”, explicou Ron há pouco tempo, durante um almoço –

um hambúrguer ao ponto com fritas – no espaço VIP do restau-

rante Polo Lounge, no Hotel Beverly Hills. “Telefonei para Alan,

acordando-o. Eram 2h da madrugada lá. E estas foram minhas

palavras exatas: ‘Pare. Esqueça a máquina de empanar. Este outro

projeto precisa ter prioridade.’”

O outro projeto, sua inspiração, era um dispositivo capaz de

defumar carnes dentro de casa sem espalhar odores pelo ar ou

pelos móveis. Ron tinha uma versão do defumador caseiro em

sua varanda, em que havia trabalhado no ano anterior, e, num

impulso, resolveu preparar um frango. “O frango fi cou tão gosto-

so que eu disse para mim mesmo” – e, com a mão esquerda, Ron

começou a bater na mesa – “que era o melhor sanduíche de fran-

go que já tinha comido na vida.” Ele se dirigiu a mim: “Quantas

vezes você já comeu um sanduíche de peru defumado? Talvez

você coma peru ou frango defumado uma vez a cada seis meses.

Uma vez! Quantas vezes você já comeu salmão defumado? Cos-

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o v e n d e d o r | 25

telas defumadas? Salsicha defumada? Você até pode pedir algo

defumado num restaurante de vez em quando” – ele se inclinou

e cutucou meu braço para enfatizar –, “mas de uma coisa eu sei,

Malcolm: você não tem um aparelho defumador.”

A ideia da churrasqueira Showtime surgiu da mesma ma-

neira. Ron estava no mercado Cotsco quando, de repente, perce-

beu que havia uma longa fi la de clientes esperando para comprar

frangos das churrasqueiras giratórias. Eles comiam frango assado

no espeto de vez em quando, mas de uma coisa Ron sabia: eles

não possuíam uma churrasqueira com espeto giratório. Ron foi

para casa e ligou para Backus. Juntos, compraram um aquário

de vidro, um motor, um elemento aquecedor, um espeto e um

punhado de outras peças, e começaram a fazer experiências. Ron

imaginava algo grande o sufi ciente para um peru de 7kg, mas pe-

queno o bastante para caber no espaço entre a base de um armá-

rio de parede comum e a bancada da pia. Ele não queria um ter-

mostato, porque os termostatos quebram, e a variação constante

da temperatura impede o douramento uniforme e a consistência

crocante que julgava essenciais. Além disso, o espeto deveria girar

sobre o eixo horizontal, não sobre o eixo vertical, porque, se você

assasse um frango ou um pedaço de carne no eixo vertical, a parte

superior ressecaria e o sumo escoaria para a base.

Roderick Dorman, o advogado de patentes de Ron, diz que,

quando ia até Coldwater Canyon, costumava ver cinco ou seis

protótipos enfi leirados no balcão da cozinha. Ron preparava um

frango em cada um deles, para poder comparar a consistência da

carne e o douramento da pele e descobrir se, digamos, existia um

meio de girar um espetinho de carne à medida que se aproximava

do elemento aquecedor, de modo que a parte de dentro da car-

ne fi casse tão assada quanto a de fora. Quando Ron terminou, a

churrasqueira Showtime originou nada menos que 12 pedidos de

patente. Estava equipada com o motor mais poderoso de sua ca-

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tegoria. Tinha uma bandeja de gotejamento revestida de cerâmica

antiaderente, fácil de limpar, e o forno não quebrava mesmo que

caísse numa superfície de concreto ou de pedra 10 vezes seguidas,

de uma altura de 1 metro. Ron não tinha dúvida de que a Showti-

me preparava o melhor frango que já havia comido na vida.

Foi aí que Ron gravou um comercial na televisão para a Show-

time com 28 minutos e 30 segundos de duração. Foi fi lmado num

estúdio diante de uma plateia e transmitido pela primeira vez em

8 de agosto de 1998, ao vivo. Vem sendo mostrado desde então,

muitas vezes de madrugada ou em emissoras de TV a cabo de

pouca expressão. A reação ao comercial foi tão boa que nos três

anos seguintes as vendas da Showtime ultrapassaram 1 bilhão de

dólares. Ron Popeil não usou nenhum grupo de discussão. Não

contou com pesquisadores de mercado, equipes de pesquisa e de-

senvolvimento, assessores de relações públicas, escritórios de pu-

blicidade da Madison Avenue nem consultores empresariais. Ele

fez o que os Morris e Popeil vinham fazendo durante boa parte

do século passado e que todos os experts diziam ser impossível

na economia moderna. Ron sonhou com uma novidade em sua

cozinha e saiu para vender pessoalmente seu produto.

3.

Nathan Morris, o tio-avô de Ron Popeil, se parecia muito com

Cary Grant. Usava um chapéu de palha, tocava uquelele, dirigia

um conversível e compunha melodias para piano. Administrava

seu negócio em um prédio baixo e caiado na Ridge Avenue, perto

de Asbury Park, com um pequeno anexo nos fundos onde fazia

pesquisas pioneiras com Tefl on. Tinha lá suas excentricidades,

como a fobia que desenvolveu de não sair de Asbury Park sem

a companhia de um médico. Brigou com o irmão Al, que logo

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após partiu às pressas para Atlantic City, e depois com seu sobri-

nho S.J. Popeil, que Nathan não considerava grato a ele por tê-lo

iniciado no ramo dos utensílios de cozinha. Essa segunda briga

culminou em uma disputa legal em torno do Chop-O-Matic de

S.J. Popeil, um miniprocessador de alimentos com uma lâmina

pregueada em forma de W, girada por um mecanismo de enga-

te especial. O Chop-O-Matic era ideal para preparar salada de

repolho e patê de fígado, e quando Morris lançou um produto

extremamente similar, chamado Roto-Chop, S.J. Popeil proces-

sou o tio por violação de patente. (O Chop-O-Matic, por sua

vez, parecia ter sido inspirado no Blitzhacker, da Suíça, e S.J. mais

tarde foi processado por violação de patente pelos suíços.)

Os dois se enfrentaram em Trenton, em maio de 1958, numa

sala de tribunal repleta de integrantes dos clãs Morris e Popeil.

Quando o julgamento começou, Nathan Morris estava no ban-

co das testemunhas, sendo interrogado pelos advogados de seu

sobrinho, que estavam dispostos a provar que ele não passava

de um mascate e um plagiador. Jack Dominik, há muito tempo

advogado de patentes de Popeil, recorda que, a certa altura do

interrogatório, o juiz se manifestou: “Ele apontou o indicador da

mão direita para Morris e enquanto eu viver nunca esquecerei o

que ele disse. ‘Eu conheço você! Você é um vendedor! Vi você no

calçadão!’ E Morris apontou seu indicador para o juiz e gritou:

‘Não! Sou um fabricante. Sou um fabricante honrado e trabalho

com os advogados mais eminentes!’” (Segundo Dominik, Nathan

Morris era o tipo de homem que se referia a todos com quem tra-

balhava como “eminentes”.) Ele prossegue a narrativa: “Naquele

momento, o rosto do tio Nat foi fi cando vermelho e o do juiz,

mais vermelho ainda, e a sessão foi suspensa.” O que aconteceu

mais tarde é mais bem descrito no manuscrito inédito de Domi-

nik, “As invenções de Samuel Joseph Popeil por Jack E. Dominik

– Seu advogado de patentes”. Nathan Morris sofreu um ataque

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cardíaco súbito e S.J. sentiu-se culpado. “Soluços se seguiram”,

escreve Dominik. “O remorso tomou conta de todos. No dia se-

guinte, chegou-se a um acordo. Depois daquilo, a recuperação de

tio Nat do ataque cardíaco foi um verdadeiro milagre.”

Nathan Morris era um ator, como tantos de seus parentes, e

vender era, antes de mais nada, atuar. Conta-se que seu sobrinho

Archie Morris (conhecido como o Vendedor dos Vendedores)

certa vez vendeu, durante uma longa tarde, uma engenhoca após

outra a um homem bem-vestido. No fi m do dia, Archie observou

o homem se afastar, parar e espiar dentro de sua sacola, e depois

jogar todos os produtos numa lata de lixo. Os Morris eram ca-

pazes disso. “Meus sobrinhos conseguiriam vender a você uma

caixa vazia”, diz Ron.

O último Morris a atuar no ramo das vendas foi Arnold Mor-

ris, apelidado de A Faca por sua habilidade extraordinária com

a Sharpcut, precursora da faca Ginsu. Com 70 e poucos anos, é

um homem alegre e brincalhão, de rosto redondo, com algumas

mechas de cabelos grisalhos e o hábito característico de cortar

um tomate em fatias regulares e depois alinhá-las em uma fi leira

uniforme. Atualmente mora em Ocean Township, a poucos qui-

lômetros de Asbury Park, com Phyllis, sua esposa de 29 anos, a

quem se refere como “a moça mais bonita de Asbury Park”. Certa

manhã, há pouco tempo, sentado em seu escritório, pôs-se a alar-

dear as vantagens do Dial-O-Matic, um fatiador produzido por

S.J. Popeil cerca de 40 anos atrás.

“Venha, pessoal! Vou mostrar a vocês o mais incrível fatiador

que já viram”, começou ele. Phyllis, sentada ao lado, estava ra-

diante de orgulho. Ele apanhou um saquinho de temperos para

churrasco, que Ron Popeil vende com sua Showtime Rotisserie,

usando-o como um objeto cênico. “Deem uma olhada nisto!” Dis-

se isso erguendo-o no ar, como se estivesse exibindo um vaso

Tiff any. Falou sobre a habilidade daquela máquina de cortar bata-

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tas, depois cebolas, depois tomates. Sua voz, um instrumento ma-

ravilhoso modulado com os ritmos do litoral de Nova Jersey, as-

sumiu uma qualidade cantante: “Quantas pessoas cortam tomates

assim? Vocês os apunhalam. Vocês os esmurram. O caldo escorre

pelos cotovelos. Com o Dial-O-Matic, tudo fi ca diferente. Você

põe o tomate na máquina e faz pequenos movimentos” – ele imita

o ato de fi xar o tomate na base da máquina. “O tomate! Senhora!

O tomate! Quanto mais movimentos, mais fatias você obtém. O

tomate! Senhora! Cada fatia sai perfeita, nenhuma semente fora

do lugar. Mas adoro meu Dial-O-Matic principalmente para fa-

zer salada de repolho. Minha sogra costumava pegar seu repolho

e fazer isto.” Ele dá uma série de punhaladas num repolho ima-

ginário. “Eu achava que ela ia se suicidar. Oh, como eu rezava...

para ela não fazer um movimento em falso! Não me levem a mal.

Adoro minha sogra. É sua fi lha que não consigo entender. Você

pega o repolho. Corta-o pela metade. Salada de repolho, repolho

refogado, chucrute. Ele sai da máquina prontinho.”

Foi um monólogo de vaudeville, com a diferença de que Ar-

nold não estava meramente entretendo; ele estava vendendo.

“Você pode pegar um vendedor e transformá-lo num grande ator,

mas nem sempre pode fazer o contrário”, diz ele. O vendedor pre-

cisa fazer você aplaudir e depois tirar seu dinheiro. Ele tem de ser

capaz de executar o que, no jargão dos vendedores, se denomina

“a virada” – o momento perigoso e crucial em que se transforma

de ator em homem de negócios. Se, de um grupo de 50 pessoas,

25 resolvem comprar, o verdadeiro vendedor vende para apenas

20 delas. Às cinco restantes, ele diz: “Esperem! Tenho outra coisa

para lhes mostrar!” Então ele recomeça sua abordagem de vendas,

com ligeiras variações, e essas quatro ou cinco pessoas restantes

se tornam o núcleo do próximo grupo, cercadas pelo público em

volta e tão ávidas por pagar e ir embora que iniciam o frenesi de

vendas outra vez. A virada requer a administração de expectati-

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vas. É por isso que Arnold sempre mantém um abacaxi tentador

em seu balcão. “Há 40 anos prometo mostrar às pessoas como

cortar o abacaxi, mas nunca cortei”, confessa ele.

Arnold conta que, certa vez, contratou uns homens para ven-

der um cortador de legumes para ele numa feira em Danbury, em

Connecticut, e fi cou tão aborrecido com a apatia deles que resol-

veu fazer ele próprio uma demonstração. Esperavam que ele se

desse mal: Arnold nunca havia lidado com aquele cortador antes

e, com certeza, estava massacrando os legumes. Mesmo assim,

numa única rodada de vendas arrecadou US$200. “Eles fi caram

de olhos arregalados”, recorda. “Disseram: ‘Não é possível. Você

nem sabe como operar essa porcaria de máquina.’ Eu respondi:

‘Mas uma coisa eu faço melhor do que vocês. Sei como pedir o

dinheiro.’ E este é o segredo dessa porcaria de negócio.”

4.

Ron Popeil começou a vender os utensílios de cozinha do pai no

mercado de pulgas da Maxwell Street, em Chicago, em meados

da década de 1950. Tinha 13 anos. Toda manhã, chegava ao mer-

cado às 5h e comprava uns 20 e poucos quilos de cebola, repolho

e cenoura e uns 45 quilos de batata. Vendia das 6h às 16h, arre-

cadando até US$500 por dia. No fi m da adolescência, começou a

percorrer o circuito das feiras estaduais e municipais, até encontrar

o cliente ideal no supermercado Woolworth’s, na esquina da State

Street com a Washington Street, no centro histórico de Chicago,

que na época era a fi lial do Woolworth’s com a maior receita do

país. Vendendo o Chop-O-Matic e o Dial-O-Matic, ele ganhava

mais do que o gerente da loja. Jantava no Pump Room, ostentava

um Rolex e alugava suítes de hotel a US$150 por noite. Nas fotos

da época, ele parece bonito, com cabelos pretos e olhos azuis es-

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verdeados, e, muitos anos depois, ao transferir seu escritório para

a 919 Michigan Avenue, foi apelidado de Paul Newman do edi-

fício da Playboy. Mel Korey, um amigo de Ron da faculdade e

seu primeiro sócio, lembra-se da vez em que foi vê-lo vender o

Chop-O-Matic no Woolworth’s da State Street. “Ele era hipnoti-

zante”, conta Korey. “As secretárias passavam a hora do almoço no

Woolworth’s observando-o só porque ele era boa-pinta. Quando

ele fazia sua virada, as pessoas iam correndo.”

Ron era o melhor de todos? A única tentativa de esclarecer

defi nitivamente essa questão foi feita uns 40 anos atrás, quando

Ron e Arnold estavam vendendo um faqueiro na Exposição dos

Estados do Leste, em West Springfi eld, Massachusetts. Frosty

Wishon, um terceiro homem que também se tornou uma lenda

por mérito próprio, estava lá. “Frosty era um indivíduo bem-ves-

tido e desembaraçado, e um bom vendedor”, diz Ron. “Mas ele

se achava o máximo. Então eu disse: ‘Bem, temos uma exposição

de 10 dias, com 11 ou até 12 horas de trabalho diários. Vamos

nos revezar e depois comparar quanto vendemos.” Ninguém es-

queceu o resultado. Ron derrotou Arnold, mas por uma pequena

margem – não mais do que umas centenas de dólares. Quanto a

Frosty Wishon, vendeu apenas metade de cada um de seus rivais.

“Você não faz ideia da pressão sofrida por Frosty”, continua Ron.

“No fi nal da exposição ele veio falar comigo: ‘Ron, enquanto eu

viver não trabalharei mais com vocês.’”

Sem dúvida, Frosty Wishon era uma pessoa encantadora e

persuasiva, mas ele achava que só isso bastava – que as regras

das vendas eram as mesmas que as regras do endosso de uma

celebridade. Quando Michael Jordan vende hambúrgueres do

McDonald’s, Michael Jordan é o astro. Mas quando Ron Popeil

ou Arnold Morris vendiam, digamos, o Chop-O-Matic, seu dom

era fazer do Chop-O-Matic o astro. Tratava-se, afi nal de contas,

de uma inovação. Representava uma forma diferente de cortar ce-

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bolas em cubos ou de picar fígado: exigia que os consumidores

repensassem a maneira como agiam na cozinha. Como a maioria

das grandes inovações, aquilo era perturbador. E como você per-

suade as pessoas a perturbar suas vidas? Não apenas com agrados

ou sinceridade, nem por ser famoso ou bonito. Você precisa expli-

car a invenção aos clientes – não uma nem duas vezes, mas três ou

quatro, com um toque diferente a cada vez. Tem de mostrar exata-

mente como aquilo funciona e por que funciona, fazer com que os

clientes acompanhem as suas mãos enquanto você pica o fígado,

explicar com precisão como aquilo se enquadra na rotina deles e,

por fi m, vender-lhes com base no fato paradoxal de que, por mais

revolucionária que seja a engenhoca, ela é muito fácil de usar.

Trinta anos atrás, o videocassete surgiu no mercado, e foi um

produto perturbador também: a intenção era permitir que pro-

gramas de TV fossem gravados para que ninguém continuasse

escravo da programação do horário nobre. No entanto, por mais

comum que o videocassete houvesse se tornado, raramente foi

usado com esse propósito. Isso porque o aparelho nunca foi ven-

dido da maneira correta: ninguém o explicou aos consumidores

americanos – não uma ou duas vezes, mas três ou quatro – e

ninguém mostrou exatamente como funcionava ou como se en-

quadraria nas suas rotinas, e nenhum par de mãos guiou-os por

cada etapa do processo. Tudo o que os fabricantes do videocassete

fi zeram foi entregar a caixa com um sorriso e um tapinha nas

costas, acrescentando um manual como um bônus.

Certa vez, quando eu estava na casa de Ron em Coldwater

Canyon, sentado numa das banquetas de sua cozinha, ele me

mostrou em que consiste uma verdadeira venda. Contou que

acabara de jantar com o ator Ron Silver, que estava interpre-

tando seu amigo Robert Shapiro num fi lme novo sobre o julga-

mento de O.J. Simpson. “Eles raspam a parte de trás da cabeça

de Ron Silver para que fi que calvo, porque, como você sabe, Bob

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Shapiro tinha uma falha atrás também”, explicou Ron. “Então

eu disse para ele: ‘Você precisa adquirir o GLH.’” O GLH, um

dos primeiros produtos de Ron, é um spray que faz com que o

cabelo fi que mais cheio e cubra a calva. “Continuei: ‘Vai me-

lhorar seu visual. Quando tiver de rodar uma cena, você remove

com xampu.’”

Àquela altura, um vendedor comum teria parado. Era um

comentário, nada mais. Estávamos falando sobre a Showtime

Rotisserie, e no balcão atrás de nós uma Showtime assava um

frango, ao lado outra Showtime assava costelinhas de porco, na

mesa em frente de Ron sua máquina de fazer macarrão estava

funcionando e ele fritava alho para o nosso almoço. Mas agora

que me contara sobre o GLH, seria impensável que Ron não

me mostrasse também as maravilhas desse produto. Ele foi de-

pressa até uma mesa do outro lado da cozinha, conversando no

percurso: “As pessoas sempre me perguntam: ‘Ron, de onde você

tirou este nome, GLH?’ Eu inventei. Great-Looking-Hair (cabelo

com ótima aparência).” Ele apanhou uma lata. “Produzimos em

nove tonalidades diferentes. Este é preto e prateado.” Pegou um

espelho de mão e inclinou-o sobre sua cabeça para que pudesse

ver a própria calva. “A primeira coisa que faço é borrifar onde não

preciso.” Ele sacudiu a lata e começou a borrifar o alto da cabeça,

falando ao mesmo tempo. “Depois vou para a parte calva.” Apon-

tou para ela. “Bem aqui. O.k. Agora deixo secar. A escovação é

responsável por 50% do efeito.” Ele começou a escovar vigorosa-

mente e, de repente, a cabeça de Ron Popeil estava toda coberta

de cabelos. “Uau!”, exclamei. Ron fi cou radiante. “Se sairmos à

luz do sol, você nem perceberá que tenho uma falha enorme na

parte de trás da cabeça. Parece mesmo cabelo, mas não é cabelo.

É um produto e tanto. Qualquer xampu remove isto. Sabe quem

faria um bom uso do GLH? Al Gore. Quer sentir como é?” Ron

inclinou a cabeça em minha direção. Eu tinha dito “Uau” e olhara

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seu cabelo de todos os ângulos, mas o vendedor em Ron Popeil

não estava satisfeito. Eu tinha que tocar na parte de trás de sua

cabeça. E assim fi z. Parecia cabelo de verdade.

5.

Ron Popeil herdou mais do que a tradição de vendas de Na-

than Morris. Ele era fi lho de S.J. Popeil, fato que também ajuda

a explicar o sucesso da churrasqueira Showtime. S.J. tinha um

apartamento de 10 quartos no alto das Torres Drake, perto do

sofi sticado Magnifi cent Mile de Chicago. Possuía uma limusi-

ne Cadillac com chofer e telefone, uma raridade naquela épo-

ca. Trajava ternos de três peças e adorava tocar piano. Fumava

charutos, franzia o cenho com frequência e fazia uns grunhidos

engraçados enquanto falava. Aplicava seu dinheiro em títulos do

Tesouro americano. Sua fi losofi a era expressada numa série de

epigramas. Ao seu advogado: “Se forçarem a barra, processe”; ao

fi lho: “Não é quanto você gasta que importa, é quanto você ga-

nha.” E a um projetista que expressou dúvidas sobre a utilidade

de um de seus maiores sucessos, o Pocket Fisherman (equipa-

mento portátil que substitui a vara de pescar): “Não é para usar, é

para dar de presente.” Em 1974, Eloise, a segunda esposa de S.J.,

decidiu mandar matá-lo e contratou dois pistoleiros. Na épo-

ca, ela estava morando na propriedade de Popeil em Newport

Beach com as duas fi lhas e o amante, um operário de 37 anos.

Quando, no julgamento de Eloise, S.J. foi questionado sobre o

amante, respondeu: “Fiquei até contente por ele me livrar dela.”

Aquilo era típico de S.J. Onze meses depois, quando Eloise dei-

xou a prisão, S.J. casou-se de novo com ela. Aquilo também era

típico de S.J. Nas palavras de um ex-colega: “Ele era um sujeito

estranho.”

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