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O QUE NÃO PODE SER PEQUENA É A ALMA:
O HOMEM SUSPENSO NUMA PEREGRINAÇÃO DE (RE)CONHECIMENTO
DA IDENTIDADE PORTUGUESA
Por
Rosemary Gonçalo Afonso (Departamento de Letras Vernáculas)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas, na subárea de Literatura Portuguesa. Orientadora: Professora Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria.
Rio de Janeiro, 2006
2
Encontrarás terras distintas de tua terra. Mas tua alma é uma só.
E não encontrarás outra.
Simbad, o marujo. “As mil e uma noites”.
3
Ao Eduardo, meu filho tão querido. Meu amor, minha vida, “minha casquinha de ferida”. Sentimento, Sentido. Motivação, Motivo. Desafio maior.
Aos meus pais, em especial à minha mãe, meu porto seguro.
Aos meus irmãos: Lina, Luis e Zeca (in memoriam). Aos meus sobrinhos: Débora, Rosana, Gonçalo, Aline,
Alan, Mariana, Luis Antônio e Antonio.
À mestra, carinhos
para a Cinda
Mais do que o privilégio de ouvir-te
Quero o prazer de acompanhar-te Deixar-me envolver pelo teu brilho
Que apesar de intenso Não ofusca os teus discípulos Antes, Retira-os da obscuridade
4
AGRADEÇO À minha querida orientadora, Ângela Beatriz de Carvalho Faria, pelo carinho e atenção que permearam suas observações interessantes e esclarecedoras. Às colegas que foram orientadas pela professora Ângela Beatriz no mesmo período, pela salutar troca de idéias estabelecida em nossos encontros: Flávia Belo, Mônica Fares, Rosângela Nogueira e Verônica Prudente Costa. Aos amigos e familiares que, de Portugal, colaboraram na aquisição de livros e textos: Cláudia Correia, Maria de Fátima e Mariângela Gonçalo Costa, Paulo Vilhena, Rosalina e Rosana Ribeiro. Às minhas grandes amigas, meus exemplos de determinação e ternura, pela paciência e pelo incondicional apoio: Ana Cristina Ramos, Ana Maria de Azambuja Pacheco, Iracema Vitória, Isabela Bottino, Luiza Viana, Mônica Fernandes e Teresa Cristina Moura.
5
SINOPSE
Questões individuais como reflexo de um sentimento coletivo. Contextualização histórica do (re)ingresso de Portugal na Europa. A identidade portuguesa em causa diante da nova realidade européia e conseqüente convívio com culturas hegemônicas. Vozes em consonância: uma proposta de releitura de discursos e defesa do diálogo com o exterior.
6
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .......................................................................... 7
2. OLHAR O ROMANCE E NELE “O OLHAR” ......................................... 15
2.1. O olhar autônomo que perscruta a cidade ......................................... 20
3. PEREGRINAÇÃO PELOS ESPAÇOS REFERENCIAIS PERDIDOS..... 27
4. FRONTEIRAS CULTURAIS FLUTUANTES........................................... 42
5. VOZES EM CONSONÂNCIA ............................................................... 55
5.1. Retalhos literários construindo as intenções do texto ..................... 57
5.2. A Peregrinação de Mendes Pinto em O Homem Suspenso ............ 63
5.2.1. Diferentes interpretações da Peregrinação de Mendes Pinto .......... 74
6. CONCLUSÃO ..................................................................................... 82
7. BIBLIOGRAFIA ................................................................................... 87
8. ANEXOS .............................................................................................................. 94
7
1 - INTRODUÇÃO
Viajar, Perder países.
Fernando Pessoa
Num texto publicado em 1988 com o instigante título “Cismas Portuguesas”, o
ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger dá voz a um monsenhor que, durante uma
entrevista, faz a seguinte observação: “Em Portugal, pode-se fazer de graça uma viagem no
tempo”1.
Através da fala do referido clérigo, o país é descrito como uma ilha, em termos
espaciais e cronológicos: espaciais, porque a Espanha é apontada como um “mar de
diferenças” que o separa do continente e, em termos cronológicos, por estar estacionado no
tempo, um lugar onde tudo é “como antes”. No decorrer da reflexão, o monsenhor acrescenta:
“As idéias também pararam no tempo (...) Aqueles que se impacientaram com a lentidão do
país já se foram há muito tempo. (...) O êxodo já dura cinco séculos. Um em cada três
portugueses vive no exterior. Aos que ficam a ilha deve seu charme e sua desgraça”2.
Discorrendo sobre aspectos característicos da cultura, política e história do país, tais
como: sebastianismo, fado, saudade, arquitetura, salazarismo; ou questionando causas e
conseqüências da Revolução dos Cravos, Enzensberger traça suas impressões sobre esse país
recém incorporado à Comunidade Econômica Européia que, embora tenha recebido com
entusiasmo a adesão à mesma, resiste à racionalidade capitalista3, defendendo os seus desejos
mais do que qualquer patrimônio.
1ENZENSBERGER, Hans Magnus. “Cismas Portuguesas”. In: A Outra Europa, impressões de sete países europeus com um epílogo de 2003. São Paulo: Companhia das Letras, s/d. p.130. 2 Idem, p.130-1. 3 Ibidem, p.162.
8
Uma década depois dessa adesão, quando as mudanças exigidas por esse novo
contexto europeu já fazem parte do cotidiano da população, que se deixou seduzir pelo
consumismo inerente à nova realidade, o escritor João de Melo lança o romance O Homem
Suspenso, no qual demonstra sua preocupação com o ritmo acelerado que condiciona as
alterações sofridas no país; visto que estas implicam a mera substituição ou convivência de
valores, a princípio, inconciliáveis, e não a sua transformação real e espontânea. Em síntese: o
romance alerta para a ameaça de assimilação cultural representada pela hegemônica Europa,
uma vez que, para atender às exigências da Comunidade Européia, o país se descaracteriza;
mas ao mesmo tempo, sugere que esse seja o momento oportuno para iniciar o seu salto
qualitativo.
A resistência mencionada por Enzensberger refere-se à receptibilidade irrefletida dos
portugueses a tudo o que lhes é conveniente, sem que isso implique, necessariamente, uma
mudança de mentalidade, necessária inclusive para a manutenção dessas novidades; ou seja,
as mudanças se limitam à aparência. Essa facilidade de adaptação do povo português, zeloso,
ainda que inconscientemente, de uma “hiperidentidade” que ao mesmo tempo o condena e o
salva, não significa que esteja disposto a trocar sua identidade pela dos outros, como pode
parecer a princípio. O termo traduz a seguinte constatação de Eduardo Lourenço: “Todos os
portugueses são, ou se sentem, por assim dizer ‘hiperportugueses’” 4. Sendo assim, o risco de
uma assimilação cultural definitiva estaria neutralizado, mas a possibilidade de absorção dos
aspectos favoráveis de outras estariam igualmente comprometida. Essa dualidade arraigada,
tal e qual os opostos eqüipolentes de um caudaloso rio, dificulta a chegada a uma “terceira
margem”, a um espaço de troca onde seria possível mais do que uma inconsistente harmonia.
Em 1996, ano da primeira publicação do romance, Portugal pode se dizer “moderno”,
empenhado em se tornar mais próximo dos seus pares, dos seus contemporâneos, para assim
4 LOURENÇO, Eduardo. “Portugal – identidade e imagem”. In: ______. Nós e a Europa ou as duas razões. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da moeda. [s.d.]. p19.
9
ultrapassar a insularidade sugerida por Enzensberger no referido ensaio. Porém, um olhar
atento ainda identifica “ilhas” estanques, ou desconfortáveis com a pressa que caracteriza o
novo momento; pois não se mudam mentalidades (sobretudo a portuguesa) com a mesma
rapidez com que se modificam paisagens. Lembramos um comentário feito pela romancista
Lídia Jorge num tom de voz que sugeria um afetuoso lamento: “Portugal é um país
pequenino, que parece estar a correr para compensar o atraso que o separa da Europa”5. A
questão é: como Portugal pode deixar de ser “ilha” sem afundar no envolvente oceano
representado pela Comunidade Econômica Européia? Como manter sua particularidade, sua
identidade, e sua soberania – defendida no 1º capítulo de sua Constituição-, sem voltar a se
fechar para o restante do mundo?
Entendemos que João de Melo reconhece a importância de o país estabelecer um
diálogo com o exterior, o que se confirma pela partida do narrador-personagem, no final do
romance, para uma cidade francesa. O movimento deste em direção ao outro, sua disposição
para o conhecimento desse outro, é também uma forma dele tomar conhecimento de si
mesmo, uma vez que contribui para destacar o que lhe é próprio. Dessa forma o autor alerta
que, para que o diálogo seja realmente proveitoso, é necessário que o país olhe também para
dentro, tenha consciência de si, respeite os seus mitos e reconheça suas limitações e seus
enganos; ou seja, que empreenda uma releitura dos discursos que condicionam sua história e
sua identidade, como observa num comentário acerca de Lisboa, no qual destaca uma das
particularidades de Portugal: a necessidade de se sentir grande:
É uma cidade de cidadãos desnaturados no país do contínuo movimento para fora – país esse que ainda não iniciou o movimento inverso, para dentro de si. O mundo vive em tempo de regresso, só nós continuamos em movimento de saída, sem regressarmos ao mito, à sombra, à consciência, à nossa propriedade da pequena casa portuguesa.6
5 Comentário feito durante um debate que se seguiu a uma palestra proferida no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro, no dia 12 de julho de 2004. 6 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 80.
10
Desde a aventura dos Descobrimentos, quando significativas conquistas fazem do país
um império, este não consegue se reconhecer pequeno, muito menos “pequenino”, como Lídia
Jorge carinhosamente declarou.
Em 25 de abril de 1974 um movimento liderado por capitães das forças armadas, que
contou com uma grande aceitação e apoio popular, pôs fim ao governo do primeiro ministro
Marcelo Caetano, continuador da ditadura instaurada por António de Oliveira Salazar, que
para disfarçá-la empregou o eufemismo “Estado Novo”. Mais conhecido como “Revolução
dos Cravos”, esse momento sintetiza o processo de oposição a um regime que insistia, entre
outras coisas, na preservação das colônias africanas, apesar do alto custo financeiro e humano
envolvidos na empreitada, e culminou com a independência das mesmas, em 1975. Depois de
ter acreditado ser, durante séculos, uma nação “pluricontinental” e “multirracial” o país se vê
reduzido à sua real dimensão geográfica, o que faz com que, mesmo sendo conseqüência de
um processo revolucionário tão bem recebido pela população, a perda dessas últimas colônias
desperte sentimentos contraditórios, uma vez que interfere na imagem que os portugueses têm
de si mesmos como nação.
A adesão à Comunidade Européia responde ao apelo do imaginário expansionista que
se desenvolveu no país, pois dá ao mesmo, mais uma vez, a ilusão de ser grande. Esse aspecto
é sintetizado pela professora Margarida Alves Ferreira, no ensaio “Fero mar, dura memória”,
no qual comenta:
Por artes dos deuses ou pelo fogo das armas, hoje, findo esse mar, gloriosa e sangrentamente expansionista, Portugal tem que caber no berço onde nasceu; mas no seu imaginário, o mar não seca: embebe de sal e maresia a memória do passado que não consegue submergir na agora esperançosa orla terrestre da Europa.7
Habituado a uma existência para além do espaço delimitado por suas imprecisas
fronteiras, o país aceita a nova realidade e suas promessas de desenvolvimento, ainda que
7 FEREIRA, Margarida Alves. “Fero Mar, Dura Memória”. In.: Cleonice, clara em sua geração. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. p. 406.
11
aconteçam principalmente no âmbito econômico. O espectro do capitalismo neoliberal que
assombra um mundo que se quer globalizado não teria porque poupar Portugal à sua fúria pela
aquisição de novos consumidores; sendo assim, uma vez mais, é o comércio que determina os
rumos do país.
A esperança depositada nessa nova relação estabelecida com a Europa, através da
entrada de Portugal na Comunidade Européia, é uma temática (ou problemática) admitida
também pela pesquisadora Teresa Martins Marques que, acerca do mesmo romance, faz o
seguinte comentário:
Muito mais do que um ‘retrato de geração’ João de Melo traz-nos neste livro um magnífico retrato de um país suspenso de uma desesperada esperança de encontrar numa européia rosa-dos-mares – o seu porto de ancoragem conhecendo os riscos, os escolhos de tal navegação. Sair da sua ilha interior é sair de um mito de passado – memória de giz que se apaga – escrevendo uma nova página de um (in)certo discurso europeu. 8
Embora seja verdade que a cooperação e integração econômica tendem a se tornar uma
exigência para alguns países, mais do que uma estratégia voluntária, é preciso observar o
modo como se desenvolvem nos diferentes sistemas econômicos. Em si mesmas, elas não
devem ser consideradas como benéficas e progressistas; é o que explica Luís Sá, em
Soberania e Integração na CEE, onde discorre sobre a impossibilidade dessas ações positivas
se realizarem através do capitalismo:
O capitalismo, em particular, revela-se incapaz de desenvolver tais tendências, sobretudo na sua fase ‘mundial’, numa base saudável, conseqüente e isenta de graves contradições. A tendência para a integração e ‘mundialização’ do modo de produção capitalista obedece à lei do desenvolvimento desigual; a divisão internacional do trabalho e da tecnologia é injusta e prejudicial para os povos dos países ‘periféricos’ e ‘semiperiféricos’, assenta na exploração e pilhagem dos recursos naturais, da mão-de-obra barata, na amputação das soberanias dos Estados e na ação incontrolada ou quase das firmas transnacionais, em cujo interior se desenvolve hoje grande parte do que antes era o comércio entre nações. Nesse sentido, a integração capitalista, longe de aproximar os povos e as nações à escala internacional, gera contradições e lutas antagônicas, aumenta as desigualdades em vez de gerar a aproximação dos níveis de
8 MARQUES, Teresa Martins. Leituras poliédricas. Lisboa: Universitária, 2002. p.301
12
desenvolvimento, aprofunda a dependência de grande número de Estados no plano econômico e político, a ponto de lhes deixar por vezes uma margem de decisão autônoma muito diminuta.9
Para que se perceba a dimensão da diversidade cultural que envolve um projeto com a
amplitude da Comunidade Européia, passamos a brevíssimos comentários acerca da sua
implementação, de forma a situar a presença portuguesa: os debates entre os países europeus,
tendo por objetivo encontrar novas formas de cooperação na Europa, têm início em maio de
1948 devido à traumática experiência de mais uma grande guerra. Trata-se de uma
cooperação sobretudo econômica, embora, conseqüentemente, interfira em todos os âmbitos
das sociedades. Em nove de maio de 1951, o discurso proferido pelo Ministro dos Negócios
Estrangeiros francês faz com que esse seja considerado o dia do nascimento da União
Européia. Nesse mesmo ano, o Tratado de Paris, que institui a Comunidade Européia do
Carvão e do Ferro (CECA), é assinado por seis países: Alemanha, Bélgica, França, Itália,
Luxemburgo e Países Baixos. Em 1973, Dinamarca, Irlanda e Reino Unido são incorporados
ao grupo, e a Grécia em 1981. A adesão de Portugal acontece no dia 1º de janeiro de 1986,
juntamente com a Espanha; quando passam a ser doze os países reunidos.
A introdução de medidas inerentes ao processo de integração, necessárias para o
funcionamento do grupo como uma unidade, acontece gradativamente; o que não impede
algumas manifestações contra a idéia de tentar aproximar países tão díspares, cultural e
economicamente. Porém, apesar da polêmica, não faltam candidatos dispostos a ampliar esse
grupo, e o projeto de uma Europa “forte”, capaz de concorrer até mesmo com os Estados
Unidos na aquisição de novos parceiros comerciais, não é interrompido. São 15 os países que
integram o grupo até a data da primeira publicação do romance que elegemos para análise, e
atualmente a União Européia conta com 25 Estados-Membros: além dos já mencionados,
pertencem ao grupo a Áustria, a Finlândia e a Suécia, incorporados em 1995, e ainda Chipre,
9 SÁ, Luís. Soberania e integração na CEE. Lisboa: Caminho, 1987. p.14-15.
13
Malta, República Checa, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Eslováquia e Eslovênia,
anexados em 200410. Em defesa do princípio de respeito à soberania dos diferentes Estados,
20 línguas oficiais foram adotadas. Trata-se de uma salada cultural, onde eufóricas ervilhas se
misturam familiarmente às pretensiosas alcaparras, afinal, mesmo que possam diferir nos
tons, todas são verdes.
A variedade proporcionada por esse cenário favorece a proliferação de questões
relativas ao processo de construção de identidades; e não poderia ser diferente em Portugal,
país que, até 1974, vive “ilhado”, fechado em si mesmo, estagnado sob o peso de uma
ditadura que o afasta deliberadamente do contato com o exterior, inclusive com os demais
países da própria Europa, da qual se tornou tão distante, embora Camões não sentisse assim
quando o descreveu como a cabeça do continente europeu, ainda no século XVI, no Canto
Terceiro d’Os Lusíadas, em versos que denotam autonomia ou mesmo liderança, mas nunca
exclusão:
Eis aqui, quase cume da cabeça Da Europa toda, o Reino Lusitano, Onde a terra se acaba e o mar começa E onde Phebo repousa no Oceano.11
O momento apresentado no romance é de reflexão, de revisão ou, como já dissemos,
de releitura dos discursos da história do país, observando aspectos que influenciaram na
construção de sua identidade. Esse momento ainda não foi ultrapassado, o que garante
atualidade à nossa análise, e o objetivo do trabalho é mostrar de que maneira se coloca a
proposta defendida pelo autor.
Segue-se a esta introdução um capítulo no qual mostramos alguns aspectos estruturais
do romance em questão e destacamos a importância reservada ao “olhar” no mesmo, um olhar
autônomo que direciona a atenção ao que é preciso observar na cidade.
10 Cf. www.europa.eu.int. 11 CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988. p. 65.
14
Num outro capítulo, nossa atenção recai sobre elementos que caracterizam o estado de
“suspensão” vivido pelo narrador-personagem, através da análise da perda dos seus
referenciais identitários.
O quarto capítulo concentra as questões relativas ao processo de construção de
identidades e à importância da preservação do patrimônio cultural.
No quinto destacamos a pluridiscursividade que se verifica no romance, sobretudo o
diálogo que se estabelece com a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, obra eleita pelo
narrador-personagem para acompanhá-lo em sua própria peregrinação pela cidade e pelos
seus espaços referenciais, o que não é gratuito.
As considerações expostas são permeadas pelas vozes de pesquisadores que refletem
aspectos da cultura portuguesa e de sua literatura, como Eduardo Lourenço e António José
Saraiva; de teóricos que definem o conceito de cultura e descrevem o processo de construção
de identidades, como Stuart Hall e Silvano Peloso; dos autores de trabalhos que analisam O
Homem Suspenso e a Peregrinação, entre eles Ângela Beatriz Faria e Teresa Martins
Marques (no primeiro caso), e Rebeca Catz e Francisco Lima (no segundo). Mas essas são
apenas algumas de muitas outras vozes citadas no trabalho, às quais se juntam as dos autores
lembrados pelo narrador-personagem; pois esta dissertação é tão polifônica quanto a obra que
analisa e, dessa forma, pretende ser coerente com a defesa que faz do respeito a diferentes
pontos de vista antes da reprodução de qualquer discurso unilateral.
15
2 – OLHAR O ROMANCE E NELE “O OLHAR”
Vivemos num mundo
que ainda não aprendemos a olhar. Marc Augé
Em O Homem Suspenso, o questionamento sobre os rumos do país se coloca a partir
da crise de identidade vivida por um professor de Literatura, desencadeada pela iminência de
seu divórcio: Carminho, sua mulher há 11 anos, sugere que façam uma interrupção no
casamento, “uma paragem apenas”, como ela mesma diz. Surpreendido pela proposta da
esposa, ainda sem planos, sem rumo, “suspenso”, esse professor deixa a casa onde vivem,
abandona a Universidade onde leciona, e “perde-se” em Lisboa. Também visita sua aldeia
natal, (quando presencia a morte do pai) e, ao regressar à cidade, desliga-se do partido político
e do sindicato, despede-se de Mariana, sua amante açoriana, de Frei Bernardo, um velho
amigo do seminário que freqüentara, e parte para Poitiers, na França, onde deverá pronunciar
uma conferência sobre Identidade. Em sua peregrinação pelos espaços mencionados, os fatos
em si não são relevantes, mas suas possíveis conseqüências, e os gestos que, simbolicamente,
apontam para as mesmas.
O período de escrita vai de dezembro de 1991 a setembro de 1995, como esclarece o
autor, entre parênteses, no final do romance, que conta 218 pequenas páginas. Dividido em 21
capítulos, a narração reflete um monólogo interior, apresentado em 1ª ou 3ª pessoa, consoante
o foco em que se coloque o narrador-personagem, que oscila entre um e outro, muitas vezes,
num mesmo parágrafo. Como acontece no seguinte exemplo:
Carminho já não era sua porque também ele já não era dela: Carminho perdera a sua identidade de minha mulher, tanto quanto eu perdera a minha identidade de marido de Carminho.12
12 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.16.
16
Essa instabilidade do foco narrativo lembra o paradoxo identificado por Theodor W.
Adorno no ensaio “Posição do narrador no romance contemporâneo”, onde discorre sobre
esse elemento do texto. Segundo o teórico: “não se pode mais narrar, embora a forma do
romance exija a narração”13. De fato, apesar da forma, em O Homem Suspenso o narrador-
personagem não narra qualquer história ou fato, não conta nada a ninguém, e sim divaga,
lembra, pondera, dando voz às suas impressões ou inquietações subitamente delineadas. “A
narrativa é gnosiológica, ou seja, de auto-conhecimento e não de acontecimento”14, como
tantas vezes é possível detectar:
Por isso, pensa, viver sozinho e em perdição, longe dos cuidados, dos suspiros, dos fingimentos e das mãos de Carminho – como será? De que forma decifrarei eu o enigma, o lado oculto, a passagem secreta para o homem suspenso ou subentendido que haverá em mim?15
Para efeito de designação da figura central do romance: um professor de Literatura não
nomeado, que assume a posição de narrador-personagem, continuaremos a usar essas duas
designações indiferentemente – professor ou narrador-personagem, rejeitando o termo
protagonista, que remete a uma idéia de heroicidade que não se aplica a uma personagem tão
hesitante. Como herói, ele reúne características épicas e românticas, ou seja, ele representa
toda uma geração, assim como os heróis épicos representam os seus respectivos povos ou
nações, mas, ao contrário destes, o professor questiona os valores da sociedade, que não são
fechados como no mundo cristalizado mostrado nas epopéias, e cria uma organicidade própria
dos heróis de romances, onde o perfil dos mesmos é construído no decorrer da narrativa.
A influência do gênero épico, que caracteriza um processo de contaminação ou
hibridismo de gêneros, uma desconsideração pelas fronteiras formais, se faz sentir, também,
na abertura do romance, que começa in medias res, quando o narrador-personagem está
13 ADORNO, Theodor W. Notas de Literatura I. São Paulo: Editora 34. 2003. 14 A definição, lembrada pela mestranda e poeta Luiza Viana num seminário sobre a forma de narração de Grande sertão: veredas, é adequada ao que se verifica no romance O Homem Suspenso, em relação a esse mesmo aspecto. 15 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 44.
17
entregue a uma deambulação pela cidade, logo depois de sua saída da casa onde vivia com
Carminho e antes de iniciar uma verdadeira peregrinação pelos seus espaços referenciais.
No que se refere ao tempo da narrativa, apesar de algumas analepses a que o próprio
início épico obriga, este se mantém linear e cronológico. Os poucos diálogos que se
estabelecem no texto acontecem no tempo real da história e, embora não especificado, esse
tempo não ultrapassa o período de uma estação do ano: o inverno. Essa estação do ano, que
por si só é mais uma das causas da depressão que caracteriza os portugueses, não desagrada o
professor, que nos confidencia: “Para mim, nunca foram trágicos nem doentios os invernos de
Lisboa”16. Ele volta ao tema em outro momento, quando completa: “As pessoas de Lisboa
inventaram essa relação dramática com o tempo benigno e piedoso da cidade, mas eu não as
compreendo”17.
Como companhia, durante todo o trajeto, o professor leva um cão que encontra
revirando o lixo na mesma noite em que sai de casa. Apresentado ao leitor no quinto capítulo
do romance, esse cão desperta no “homem suspenso” uma identificação tão profunda que a
adoção mútua é espontânea e imediata. O cão exerce um fascínio sobre o homem, que tenta
explicar essa atração: “Este é cão em duplo. A parte corporal do bicho a ele pertence, é a sua
anatomia. Mas a metafísica do cão sai da sua inconsciência canina e é como se me
possuísse”18.
O animal exerce uma forte atração sobre o homem, que o sente como o seu duplo,
igualmente só, vagando na noite lisboeta. Sua presença é reconfortante ao professor, que com
ele não se sente um homem sozinho, sem mundo. A professora Ângela Beatriz Faria, no
ensaio “A perda da iluminada casa portuguesa no firmamento neo-europeu”, ao analisar O
Homem Suspenso, lembra o simbolismo dual do cão, ao mesmo tempo espírito protetor e
16 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 19. 17 Idem, p. 114. 18 Ibidem, p.47.
18
suporte da maldição divina, imagem do “anjo caído”, elemento intermediário entre dois
mundos diferenciados:
O cão possui, portanto, uma face nocturna – associada à morte e aos infernos, ao mundo subterrâneo – e uma face diurna – guia de alma; guardião da casa; companheiro fiel do homem na noite da morte e no dia da vida; intermédio entre dois mundos; representante da iniciação e da renovação.19
O trabalho referido, ainda aponta que, como intercessor entre o mundo material e o mundo
espiritual, o cão reflete também a situação intermédia de Portugal no contexto europeu,
situado entre os países centrais e os países periféricos20. A essa interpretação acrescentamos
que, qual Cérbero - o cão mitológico que às portas do mundo subterrâneo impede a entrada
dos vivos ou a saída dos mortos -, o cão do romance parece lembrar a impossibilidade de
circular entre aqueles dois mundos. Essa indefinição sobre o espaço a ocupar, sugerida pelo
cão, faz do mesmo uma metáfora, reflexo especular do próprio homem em estado de
suspensão.
A questão da dualidade, ou duplicidade, é uma outra característica a ser observada no
romance: ela é sintomática. Acontece, também, em relação à identidade portuguesa, ao
escritor Fernão Mendes Pinto, ou mesmo às casas de Lisboa, cidade que reflete o país, como
constata o professor: ”as casas de Lisboa possuem uma concretude partida ao meio, entre o
real e o onírico”21. Enfatizar a dualidade é reconhecer o caráter benéfico e maléfico que
envolve diferentes situações e, no caso específico do momento vivido pelo país, o conflito
resultante da convivência de aspectos culturais que ainda não conseguiram estabelecer uma
harmonia.
19 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. apud FARIA, Ângela Beatriz. “A perda da iluminada casa portuguesa no firmamento neo-europeu”. In: SILVEIRA, Jorge Fernandes da (Org.). Escrever a casa portuguesa. Belo Horizonte: UFMG,1999. p.412. 20 FARIA, Ângela Beatriz. “A perda da iluminada casa portuguesa no firmamento neo-europeu”. In: SILVEIRA, Jorge Fernandes da (Org.). Escrever a casa portuguesa. Belo Horizonte: UFMG,1999, p. 412. 21 MELO, João de. O homem suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.12.
19
Com O Homem Suspenso, João de Melo, autor de obras emblemáticas que apresentam
temáticas recorrentes na Literatura Portuguesa Contemporânea – como a guerra colonial, em
Autópsia de um mar de ruínas, ou a emigração, em Gente feliz com lágrimas -, se pronuncia
em relação a mais uma delas: a entrada de Portugal na Comunidade Européia. E o faz numa
linguagem poética que ajuda a compreender o estado de alma do narrador-personagem, apesar
da forma em prosa.
Mesmo sem a pretensão de desenvolver este aspecto, ousamos sugerir que o romance é
uma prosa poética, pois disfarça versos plenos de sentido e camufla poemas inteiros, como
acontece na abertura de um longo parágrafo, reescrito abaixo com as “quebras” necessárias
para exemplificar essa afirmação:
Como suspira o tempo, E no dia que se abre o princípio desta luz ainda secreta. Como é volúvel a laranja fria da manhã, e nas asas da minha angústia se distende o frêmito de toda uma vida.22
22 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 59.
20
2.1 – O “olhar” autônomo que perscruta a cidade
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Jose Saramago.
A linearidade que caracteriza o romance não se verifica desde o seu início; num
primeiro momento é a memória do professor que conduz a narrativa. Através dela ele
incorpora ao seu discurso uma série de vozes, configurando uma pluridiscursividade
harmoniosa e significativa, como será explicitado num capítulo específico. Agora, o que nos
interessa destacar é a opção inicial do professor pelas ruas, num momento em que precisa
reestruturar toda a sua vida. Tendo deixado a casa, ainda sem “pouso”, as ruas de Lisboa o
abrigam; nelas o professor empreende uma errância, destacando algumas imagens enquanto
reflete sobre a sua relação com essa cidade aonde veio a “perder-se”, e permitindo-se uma
divagação que o leva a constatar uma metamorfose que se havia já anunciado, como uma
vertigem o faz recordar:
Foi-me em tempos anunciado que devia ficar atento, escutar, preparar-me para a mudança. Viriam outras vozes, outros poderes, outros mitos para me adormecerem. Assim que acordasse, veria mudados o tempo, as coisas e o nome das coisas; também a minha pele seria outra, e toda a gente sentiria dentro de si a presença de uma pessoa outra, diferente de si mesma, mais numerosa do que antes mas também muito mais solitária do que antigamente fora, em Portugal.23
Como lembra Walter Benjamim, ao discorrer sobre flânerie em “Charles Baudelaire,
um lírico no auge do capitalismo”: “as ruas são a morada do coletivo”24. Transposta para as
ruas, a reflexão sobre sua experiência pessoal ultrapassa o âmbito do microcosmo doméstico e
revela preocupações que dizem respeito à coletividade; ou seja, refletir o seu próprio rumo
implica refletir os rumos do país.
23 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 23. 24 BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.194.
21
O conceito de flâner (ou flanar) sugere uma deambulação sem pressa, sem destino pré-
determinado, num abandono às impressões e ao espetáculo do momento. Essa atitude é a que
se percebe na errância do narrador-personagem pela cidade.
Segundo Benjamim, para o “flâneur” a cidade se transforma em paisagem25, e o
professor, embriagado pela cidade-paisagem, descreve Lisboa emoldurada por um arco,
estabelecendo limites para o único espaço verdadeiramente cosmopolita do país, aquele que
abriga uma multidão de cores, de sons e de cheiros.
O arco é o início de tudo. A primeira sentença do romance se resume à seguinte
afirmação: “o arco”. Simbolicamente, a imagem do arco remete à tensão que antecede ao
arremesso26, sugere um movimento brusco, impulsionando um corpo na direção de um alvo
que nem sempre é atingido. A imagem do arco descrita pelo professor resulta da perspectiva
determinada pelo seu ângulo de visão, mas a ênfase dada a esse “olhar” autônomo, que
perscruta a cidade, não é gratuita. Num único parágrafo, que é também o primeiro do
romance, as diferentes formas de ver uma Lisboa maleável sugerem que se faz urgente
observar com mais cuidado o que acontece nela e, conseqüentemente, no país.
O jogo de luz e sombra revela e esconde a realidade, valorizando o conhecimento do
espaço interior, incentivando um olhar para dentro de si mesmo e para a verdadeira cidade;
autônoma, a visão tenta alertar para o que deve ser visto e não para o que se quer visto,
destaca a necessidade de se olhar para além da (de)limitadora moldura.
O sentido da visão como veículo desencadeador da emoção revela o desencontro entre
o momento objetivo e subjetivo do narrador-personagem. Só um tempo vinculado à
racionalidade cronológica pode ser objetivo; porém, no que se refere ao tempo interior do
indivíduo, a ordem seqüencial dos acontecimentos deixa de ser prioritária.
25 BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.186. 26 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 19ed. RJ: José Olympio, 2005. p.74.
22
Valorizar esse tempo interior permite ao indivíduo adequar-se a um entretempo, ou
seja, a um tempo em que ele já não é o que foi, mas ainda não é outra coisa, quando ele é o
mesmo e outro, assim como a cidade que observa é ainda a mesma e já outra.
Para não interromper a musicalidade desse primeiro parágrafo, e também destacar
outros aspectos que podem ser observados a partir dele, passamos a reproduzi-lo na íntegra,
embora nos permitindo alguns grifos:
O arco. A minha visão de Lisboa distende-se agora, em arco, sobre o corpo da cidade: contempla o dorso, depois a paisagem em abstracto, finalmente a vida que sobre ela passa, sendo apenas o tempo da alba, a estrela da manhã, o dia que se anuncia após a noite de Lisboa. Em arco se alarga a toda a extensão deste anfiteatro de ruas, casas, muros e espaços em declive. A minha visão percorre, de uma ponta à outra, a parte que suavemente ondula, que por vezes se eleva um pouco mais no azul do firmamento, prolongando-se depois para além dos limites da cidade. É uma visão de luz e sombra, um jogo, um modo de observar como a multidão das cores de Lisboa transita da sombra para a luz, e também uma forma de ver como as coisas (todas as coisas) por dentro se iluminam; de ver como afinal se produz toda a mudança. A claridade é um movimento, uma passagem do tempo – não o desta gente que desde sempre mora em Lisboa e nunca pensa em nada disso, mas antes aquele tempo que a nós unicamente pertence, sendo ele a medida, a dor, a natureza e a separação do que somos daquilo que vivemos.27
A redundância que se percebe no fragmento acima não é exclusiva desse, outros
momentos vão explicitar essa aproximação do “ver” ao “cuidar”. E a etimologia de cuidar, do
latim “cogitare”, indica “meditar”, “julgar”, além de “tratar de”, “dar atenção a”28, o que
mostra a necessidade de estar atento ao que se passa na cidade, questionar as modificações
que a desfiguram, como acontece no trecho reproduzido abaixo, onde mais uma vez, nos
demos a liberdade de grifar:
Vejo Lisboa deslizar à minha ilharga, as trémulas luzes ondulantes de uma cidade a um tempo nítida e virtual. Amo-a em novidade e em despedida. Vejo Lisboa de frente, erguendo-se no imenso anfiteatro que vem contornando o estuário, desde o Cais das Colunas e o Terreiro do Paço até ao mar, num arco que se distende sobre casas, ruas, colinas, e penso: Lisboa. Afinal Lisboa não existe. Tenho-a diante de mim, mas não existe tal como a
27 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.13-4. 28 CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa. RJ: Nova Fronteira, 1986. p232.
23
vejo agora, única para mim e diferente para todas as outras pessoas. O que nela se passa sou eu que passo, para deixar de existir. 29
O narrador-personagem não é natural de Lisboa, sendo assim, consegue lançar sobre a
cidade um olhar de estrangeiro, capaz de ser atraído pelo que se torna imperceptível a quem já
conhece algo em demasia, pois como lembra Nelson Brissac Peixoto, num texto sobre esse
tema: “aquele que não é do lugar, que acabou de chegar, é capaz de ver aquilo que os que lá
estão não podem mais perceber. Ele resgata o significado que tinha aquela mitologia. Ele é
capaz de olhar as coisas como se fosse pela primeira vez e de viver histórias originais”30.
Talvez por isso o professor consiga perceber tão nitidamente o que já se modificou, o que em
algum momento despertou sua atenção e que agora se perde:
Conheço Lisboa, mas de uma forma distraída, utilitária, visual. Como todos os que não nasceram aqui. Amo a paisagem a luz a geometria. Falta-me o conhecimento minucioso, o modo de olhar pondo nele a poesia da infância, o saber, a atenção sentimental. Vejo-a, nítida e revelada, entre a surpresa e o aviso de vir a perdê-la.31
A esse olhar o professor consegue acrescentar um outro, mais pessoal, uma vez que,
como antigo morador, já desenvolveu a sua própria memória da cidade, e não nos esqueçamos
de que a memória é uma forma de resistência:
A memória rodeia, roça e penetra os materiais de cultura, neles se apoiando, neles se agarrando e se arraigando, compondo o campo de uma economia, de uma geografia e de uma arquitetura intrinsecamente existenciais: aí onde a paisagem humana convida não ao olhar insolente, desdenhoso, dos vínculos consumistas, em que as coisas todas, intercambiáveis, reduzidas ao espectro de uma mercadoria, perderam sua intimidade, sua atmosfera; mas aí onde a paisagem humana convida à fruição de um olhar semiológico, comovido e distanciado, que toma as coisas em seu valor distintivo.32
29 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p.32-33. 30 PEIXOTO, Nelson Brissac. “O olhar do estrangeiro”. In.: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.363. 31 MELO, João de. Op.cit., p.24. 32 GONÇALVES FILHO, José Moura. “Olhar e Memória”. In.: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p.107.
24
Munido desses dois olhares, livre da unilateralidade que os poderia nublar, ele vê e
repara, descobrindo uma nova antiga cidade: “Afinal Lisboa não existe. Tenho-a diante de
mim, mas não existe tal como a vejo agora, única para mim e diferente para todas as outras
pessoas”33. Para o professor, agora um observador atento, a cidade se revela, e a consciência
de sua habitual indiferença faz com que o professor, ao passar por um hospital que atende
pacientes com problemas psicológicos (o Júlio de Matos), se identifique com os loucos que
pedem cigarros e dinheiro nos semáforos, com seus olhos “vagos ausentes inconcretos e
apenas físicos. (...) Ninguém sabe se pensam, o que pensam, se dizem, o que dizem”34, porque
eles, os loucos, não são os únicos a não saber de nada ou de ninguém. Os que se julgam
“normais” podem ser igualmente indiferentes aos problemas que não os atingem mais direta
ou imediatamente.
Lisboa surge como uma cidade paradoxal, os adjetivos que lhe são atribuídos
contradizem o pseudo-distanciamento do narrador-personagem, que alerta para a perda do
verdadeiro sentido dos seus monumentos:
Céus! Como Lisboa é tudo isso, simultaneamente feérica, abstracta, concreta, intangível e corporal, como Lisboa me é ao mesmo tempo interior e distante, presente e antiga, continental e provinciana. Mas esta cidade já não voga nem no orgulho nem na posse da minha alma. Os monumentos deixaram de ser estritamente nacionais. Dissipou-se neles o sentido histórico da minha individualidade portuguesa. Tudo agora me parece uma superstição patriótica.35
Esse retrato tão diverso da cidade resulta de elementos que ultrapassam o âmbito da
visão. Como habitualmente acontece com o flâneur, o olhar do professor rebate nas fachadas e
o atinge em seu próprio sentimento, que o torna ao mesmo tempo íntimo e alheio do objeto ou
da situação observados. Segundo Benjamim:
Aquela embriaguez anamnéstica em que vagueia o flâneur pela cidade não se nutre apenas daquilo que, sensorialmente, lhe atinge o olhar; com freqüência
33 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p.33. 34 Idem, p.50. 35 Ibidem, p.26.
25
também se apossa do simples saber, ou seja, de dados mortos, como de algo experimentado e vivido.36
O olhar do nosso “flâneur” recai também sobre a atitude igualmente suspensa da
população, dividida entre os diferentes posicionamentos permitidos pelo novo contexto.
Resistentes às inovações, no caso dos mais velhos; ávidos de mudanças, no que se refere às
gerações mais novas:
Estamos todos a partir, a deixar de ser, a despatriar-nos. Já fomos a geração dos divórcios, agora somos a geração suspensa, a dos passos perdidos, a daquela nostalgia que as gerações seguintes censuram em nós como uma doença uma luxúria uma idéia muito e muito antiga uma perda de razão. Por enquanto, ainda estamos todos vivos e deste lado – felizes e desesperados. Amanhã já estaremos mortos, e não teremos sido amados ou ouvidos ou chorados por ninguém. 37
Sem se deixar enganar pela euforia dominante do fim do século XX, que acreditou
numa metamorfose que levaria o mundo para um tempo verdadeiramente humano, o
sentimento do narrador-personagem lembra aquele que atingiu a “intelligentzia” européia no
século anterior e que forjou a expressão fin de siécle, desde então muito mais do que uma
simples constatação cronológica: “um sentimento de cansaço, de frustração, de decadência e,
sobretudo, de desilusão”38, desencadeado pela confirmação de que o avanço tecnológico
alcançado pelo homem durante o século XIX beneficiava apenas uma minoria da população.
A nova condição de membro da Comunidade Européia tampouco garante benefícios a todos.
Afinal, a metamorfose esperada pelo novo modelo europeu é utópica, pois esse modelo é
simplesmente uma continuação do que já existe, de um capitalismo galopante pouco
preocupado com realizações sociais. Como esclarece Eduardo Lourenço: “este utopismo foi
concretamente, até hoje, um processo de recuperação e de mimetismo dos progressos, ou
modelos de progresso econômico e tecnológico do mundo chamado capitalista, mais do que
36 BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas III – Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.186. 37 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p.22. 38 LOURENÇO, Eduardo. “Dois fins de século”. XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa. RJ: UFRJ, 1992. p. 32.
26
invenção de outro modelo original”39. E o modelo capitalista, como foi visto, não se realiza
através da prática da igualdade.
“Olhar” pressupõe a necessidade de “ver”, e para conseguir fazê-lo o narrador-
personagem prefere se afastar do país, e assim melhor observá-lo, como explica numa carta
destinada à sua mãe, na qual o que se percebe é a revelação da perda do orgulho de ser
português:
Visto a essa distância, Portugal parece-me uma pequena idéia perdida. Não por ser pequena, mas porque deixou de ser idéia. País ocupado, país do ocupante. Onde ninguém mais circula. Onde ninguém acolhe ninguém à porta de casa. Onde toda a gente diz mal de toda a gente. Onde choram hoje os que riram ontem, e vice-versa. Onde o riso se move contra a dor, a insensibilidade contra a inocência, o cálculo contra a utopia, a matéria contra a criação, o triunfo inapelável do ocupante contra a pública humilhação do homem ocupado. Portugal já foi um país onde toda a gente teve pai e mãe. Hoje, ninguém é filho de ninguém em Portugal. Mas eu continuo a sê-lo de pai e mãe. Será perigoso pensá-lo, pior há-de parecer senti-lo, e pior ainda dize-lo, mãe. Foi em parte por isso que me decidi por Poitiers. Daqui, ainda posso vê-la e amá-la, mais do que nunca, por obrigação e necessidade. Amo-a minha mãe, com uma saudade insuportável, com a dor de toda a alma, com a razão e o fundamento da minha vida.40
39 LOURENÇO, Eduardo. “Dois fins de século”. XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa. RJ: UFRJ, 1992, p.36. 40 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.217.
27
3 – PEREGRINAÇÃO PELOS REFERENCIAIS IDENTITÁRIOS PERD IDOS
A busca de um futuro termina sempre com a conquista de um passado. E este passado não é menos novo do que o futuro. É um passado reinventado.
Octávio Paz.
A perda de Carminho desencadeia, num primeiro momento, uma deambulação pela
cidade durante a qual o narrador-personagem olha a cidade sem a certeza do que mais teria
perdido: “ainda não sabe de que outras coisas mais se perdeu. Talvez de tudo. Talvez de si
mesmo. Por enquanto, sente ser apenas aquele que deste lado olha o vento as grandes nuvens
azuis o sol a chuva o tempo e a paisagem portuguesa”41. A seqüência de perdas por ele
sofridas no decorrer da narrativa indica o estado de “suspensão” em que se encontra, como se
depreende do próprio título do romance, O Homem Suspenso. A perda do amor, do lar, do
trabalho, da família, da fé (em Deus e nas instituições), enfim, dos seus referenciais
identitários, deixa esse homem suspenso, “sem teto, entre ruínas” - como diria Augusto
Abelaira, refém de um sentimento que é compartilhado por parte da população portuguesa,
uma vez que reflete a perda do Portugal que se conhece, em decorrência das aceleradas
alterações que o descaracterizam.
Ainda que as transformações se limitem à aparência, a herança cultural do país não
deixa de estar ameaçada. E porque não resultam de uma releitura do passado heróico que se
mantém presente no imaginário português, elas dificultam a constatação da realidade revelada
pela Revolução dos Cravos: a do império naufragado. Volto a Margarida Alves Ferreira,
agora com uma afirmação que consta no seu ensaio “Portugal e o Naufrágio do Império”, para
explicar a idéia das implicações das perdas sofridas pelo narrador-personagem:
A luz implacável do 25 de Abril de 1974 revelou o império naufragado. Durante séculos, os portugueses, inconformados com a estreiteza do seu chão europeu, alargaram-no, espalhando-se pelas sete partidas do mundo, chamando Portugal a diferentes latitudes e longitudes. A partir de 1974,
41 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.17.
28
Portugal volta aos limites ibéricos. Mas a nostalgia do Império é muito forte, e ei-lo nos fins do nosso século a embalar-se num novo sonho de prosperidade, integrando-se num novo Império que tenta firmar-se – o da Comunidade Européia -, colocando o seu sebastianismo em Bruxelas. Só que, agora, Portugal não comanda.42
Ao se afastar dos seus referenciais, seja por imposição externa ou pela necessidade
pessoal de levar o processo de perda ao extremo, o professor instaura a possibilidade de
avaliar a real importância dos mesmos, para si e para a sociedade, e configura sua apreensão
em relação aos novos rumos do país.
Observamos esses referenciais identitários perdidos respeitando a ordem em que se
apresentam no romance:
Educado num momento de grande exaltação patriótica, a união desse professor com
Carminho é mais do que sentimental. Ao perdê-la, o professor passa a ter consciência de que
o vazio em que se encontra ultrapassa os limites da relação afetiva. A cumplicidade que
existia entre ambos era o resultado, também, de uma educação condicionada pelo
“paternalismo” da política salazarista, pois como lembra António José Saraiva, no texto
“Filhos de Saturno, escritos sobre o tempo que passa”, publicado em 1980: “Todos os
portugueses hoje vivos, excepto os que têm mais de setenta anos, foram educados sob a sua
tutela (do Salazarismo)”43. Embora, no romance, as idades não sejam especificadas, tampouco
seja mencionada uma data qualquer, as circunstâncias relatadas levam a crer que Carminho e
o professor teriam sofrido essa influência. O condicionamento imposto pela ditadura
salazarista esclarece o seguinte comentário do narrador-personagem acerca do seu
relacionamento com a recém ex-mulher, Carminho:
Como nascera no mesmo país da infância dos longos mitos portugueses, fazia parte do meu tempo absoluto, o do verbo e o da carne, e do resumo de tudo o que se constituía na minha educação sentimental. Essa educação levara-me ao extremo de a tornar cúmplice do mesmo desejo de futuro para
42 FERREIRA, Margarida Alves. “Portugal e o Naufrágio do Império”. In.: ______. et alli. América: ficção e utopia. Coord. Maria Lucia Paggi de Aragão, José Carlos Sebe Bom Meihy. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1994. p.27-43. 43 SARAIVA, António Jose. Filhos de Saturno; escritos sobre o tempo que passa. Lisboa: Bertrand, 1980. p.101.
29
uma união que ambos sentíamos ser ao mesmo tempo patriótica e matrimonial...44
A correspondência entre a vida privada e a vida pública torna-se ainda mais explícita
no decorrer dessa mesma reflexão, onde ambas se mesclam, quando ele declara: “a minha
mulher é a minha pátria. / A minha vida também”45. Portanto, a separação proposta por
Carminho implica muito mais do que a perda de um amor – o que não seria pouco -, mas a
perda da sua ilusão de estabilidade emocional e identitária.
Na lembrança do momento em que Carminho teria sugerido a separação, o professor
nos dá a conhecer a distração que se instalara no seu relacionamento com ela. Numa
passagem em que ela pede sua opinião sobre o que deveria usar num determinado programa,
ele confessa que “olhava mas não via. Não via porque, já nesse tempo quotidiano e distraído,
ver a mulher passara a ser mais ou menos como olhar a rua num dia de chuva e simplesmente
dizer que chovia”46. A aproximação feita entre a mulher e o país e a sugestão de que o olhar
deve instigar o cuidar, como mencionamos, alertam para a importância de que o que acontece
no país deve ser observado com cuidado, sob o risco de, caso contrário, também ele vir a ser
perdido. Essa necessidade é reforçada pelo tom imperativo de Carminho que, desconfortável
com o silêncio do marido, exige que ele se pronuncie sobre a situação: “Mas fale, homem,
diga qualquer coisa!”47.
À perda do amor segue-se a perda da casa. A casa é o primeiro universo do ser
humano. Antes de pertencer à rua, ao bairro, à cidade ou ao país, o indivíduo conhece as
regras estabelecidas no seu próprio lar, pela sua própria família, sem perceber, inicialmente, a
sua relação com outras instituições ou com a conjuntura vigente no país. Sua perda é bastante
44 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.17. 45 Idem, p.17. 46 Ibidem, p. 40. 47 Ibidem, p. 57.
30
emblemática, uma vez que, como explica Gaston Bachelard, a casa é uma referência
primordial do indivíduo:
A casa é uma das maiores (forças) de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. (...) Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida, É corpo e é alma. É o primeiro mundo do ser humano.48
No romance, a importância simbólica atribuída à casa é lembrada pelo narrador-
personagem, que ressalta a dimensão ontológica que o afastamento da mesma implica; casa
que, mais do que o corpo, abriga a possibilidade de uma história:
Pior do que o sonho ou a evidência da sua casa, um homem pode sentir-se expulso de si mesmo, da sua vida, da certeza de na casa ter vivido uma história verdadeira, o seu caso de amor. Com ele, porém, acontece muito mais do que isso. Um acto de pura e definitiva exclusão; um apagamento dos seus passos, a perda da própria sombra, uma quase solvência do corpo da arte do ser e da sua condição de homem.49
O simbolismo da casa e as implicações contidas na sua perda são ainda mais
significativos na sociedade em questão, onde o apego à mesma é tão intenso que a literatura
do país não fica imune à sua importância. Como resultado de uma pesquisa que resultou no
livro de ensaios Escrever a Casa Portuguesa, o professor Jorge Fernandes da Silveira resume
essa relação entre a casa (em literatura) e a cultura (portuguesa), num parágrafo onde também
menciona o dilema português evidenciado em O Homem Suspenso:
Em síntese: por se relacionar com um objeto visível na realidade, a imagem da casa em literatura tem de ser entendida como uma das formas pelas quais a linguagem mantém, pela preservação ou pela transformação, as suas relações com a cultura. Na Literatura Portuguesa de oitocentos e na atual, depois de séculos de apropriação do que, n’Os Lusíadas, é matéria específica de um problema épico, lê-se a vontade de pôr em novos termos a expressão de um vazio que, já em Camões, é a sintomatização do que se reconhece como o dilema histórico português: uma sociedade dividida entre a expansão marítima colonial e a fixação no território europeu.50
48 BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. SP: Martins Fontes, 2003. p.23. 49 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.53. 50 SILVEIRA, Jorge Fernandes da (org). Escrever a casa portuguesa. BH: UFMG, 1999. p.16.
31
Sendo um recurso pleno de significação, a casa surge de forma sintomática nos
diferentes gêneros e movimentos literários do país, o que se constata pela observação da
diversidade dos ensaios do referido livro, que contemplam obras portuguesas do romantismo,
realismo, modernismo, etc., tanto em prosa como em poesia. Num desses ensaios, intitulado
“A perda da iluminada casa portuguesa no firmamento neo-europeu” (e já mencionado neste
trabalho), a professora Ângela Beatriz Faria reitera a importância das diferentes casas que
surgem no romance. Segundo ela, em O Homem Suspenso: “A ‘casa’ torna-se múltipla e
plural, metonímica e metafórica, signo arbitrário, significante vazio a ser preenchido de
diferentes formas”51. Em cada uma dessas casas, nas quais o professor oscila entre anfitrião e
visitante, é observado um referencial identitário e, dessa forma, se estabelece uma
correspondência com o próprio país. Deixar a casa que dividiu com Carminho é ainda mais
significativo em função de ser nela que o professor tem o seu canto sagrado, sua biblioteca,
espaço dos livros e de uma viagem que só é possível no campo do simbólico:
Há muito que trago comigo esta saudade do mar, talvez desde que nasci. Acompanham-me também as saudades do tempo e da infância, e das cidades de província e dos campos de milho, tabaco e beterraba. Sobram-me as saudades da minha biblioteca, do seu firmamento nocturno, dos livros que falam e são o espírito e a letra do meu país. Não sinto saudades da casa nem da vida: apenas da minha biblioteca52.
O exemplo revela uma saudade atávica e através dele o autor estabelece uma reflexão
em espiral. O mar aparece sempre na literatura portuguesa como “estrada” do passado
império, o fim da viagem. Mas um outro aspecto se apresenta: um Portugal pequenino e
pobre, campesino. A este universo asfixiante do Portugal campesino se opõe o esplendor das
palavras, dos livros, da biblioteca, do seu firmamento noturno.
A imagem da casa não é usada inocentemente pelos escritores portugueses, e revela a
dicotomia que se estabelece na necessidade de optar entre continuar na mesma ou deixá-la e,
51FARIA, Ângela Beatriz. “A perda da iluminada casa portuguesa no firmamento europeu”. In: SILVEIRA, Jorge Fernandes da (Org.). Escrever a casa portuguesa. BH: Ed. UFMG, 1999. p.401. 52 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.27.
32
conseqüentemente, permanecer no país ou abandoná-lo, e ainda, defender o isolamento de
Portugal ou incentivar sua adaptação à nova realidade européia.
Em O Homem Suspenso é usada, também, a imagem da casa destruída, remetendo à
perda das utopias revolucionárias e revelando a desconfiança com que são vistas as decisões
de um partido político não especificado (mas seguramente de esquerda), que decepciona os
seus próprios integrantes. Num flagrante diálogo com outros textos de escritores portugueses,
sendo um deles o conto “Cadeira”, de José Saramago, o autor utiliza a imagem do cupim,
responsável, naquela narrativa, pela queda do ditador Salazar, para denunciar um governo
corroído, representado no romance pelo “Homem do Aparelho”, reprodutor de uma política
por ele mesmo condenada num passado recente, quando inicia sua carreira. A casa-ideologia,
construída por aqueles que lutaram contra a ditadura instaurada por Salazar, não resistiu à
influência do poder. Sobre o partido e seu representante, saudoso de um tempo em que a
resistência ao sistema vinha da possibilidade de acreditar na construção de uma estrutura
social diferente, o narrador-personagem faz a seguinte observação:
As formas foram sendo corroídas por dentro: o bicho da madeira comeu o miolo das coisas, levou para longe de nós a realidade concreta e material, deixou-nos a pele a pátina a aparência enganadora das coisas. A casa ruiu sem estrondo. A casa ficou irrecuperavelmente destruída. A casa é apenas a nossa recordação da casa. Ainda assim, você voltou a erguer a voz e entre as ruínas e a clamar por nós, para que voltássemos a acreditar na obra e na reconstrução da casa. Não pode ser. É outro o tempo, um tempo em tudo distinto do nosso que se foi.53
Privado desse referencial, dessas casas, familiar e ideológica, a busca de um lugar com
o qual se identifique leva o professor a uma peregrinação sem destino pré-determinado, plena
de escalas frustrantes, onde a identificação desejada não acontece, mas durante a qual decorre
o processo de avaliação responsável pela sua transformação: o indivíduo indiferente torna-se
um cidadão atento.
53 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.156.
33
A reavaliação de suas “verdades” desperta um forte ceticismo em relação ao seu
próprio conhecimento e ele decide se desligar do trabalho. Tendo vagado sem rumo durante a
primeira noite fora de casa, o professor adormece no carro, de madrugada, em frente à
faculdade onde deve lecionar na manhã seguinte. Quando acorda, os estudantes já estão
entrando no prédio. Desiste, então, das aulas e acelera o carro sem destino certo, escapando de
uma realidade que não consegue enfrentar naquele momento. Enquanto guia, reconhece tratar-
se de uma fuga, talvez definitiva, ao afirmar: “Fujo (...), talvez para fora de todas as aulas que
nunca mais darei, para fora dos outros e de mim – e para o mais longe possível de tudo o que
trouxe a vida a paixão a mágoa e a morte para dentro da minha alma”54.
Durante o processo, “suspenso”, prefere abandonar a faculdade, pois confessa uma
“inequívoca sensação” de se saber “sem conhecimentos novos, sem nada mais que pudesse
ensinar aos futuros, desencantados, desventurados professores dos liceus portugueses”55.
Sua perplexidade diante dos acontecimentos não é amenizada pelo título acadêmico
que detêm, daí a inutilidade da tese de doutorado que escrevera e que, materializada num
livro, ele joga no “portuguesíssimo” Tejo: “Num impulso atiro-o ao rio. Arrependo-me logo,
apetece-me mergulhar ao encontro do escuro e salvar das inevitáveis águas negras o livro da
minha vida, mas já é tarde de mais. Tudo é tarde de mais para mim”56.
Houve um tempo em que narrar fazia sentido, mais ainda: era o próprio sentido. Num
naufrágio, salvar o manuscrito onde estariam sendo registrados os grandes feitos portugueses
justificou que Camões pusesse em risco a própria vida; ele assim o fez para livrar das águas o
poema épico Os Lusíadas. No presente, narrar já não importa, e a tese do professor não é
recuperada; ele a vê desmanchar-se nas águas desse rio de importância ímpar para o povo
54 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.72. 55 Idem, p.35-6. 56 Ibidem, p.30.
34
português, porta para o mar que ainda os seduz, cujo sentido não se pode perder sob pena de
também as pessoas se perderem:
Contemplo. Assim se vão as águas deste rio, penso, olhando o formoso Tejo meu, (...) Parece impossível que este mesmo rio tenha sido cantado por Camões, Bocage, Fernando Pessoa, tantos outros poetas. Vão-se as águas, e com elas a literatura, o sentimento, a verdade inteira e eterna dos sentidos portugueses. 57
Esse é um dos gestos mais simbólicos de toda a narrativa, onde o autor sugere que o
país não pode insistir em viver no ou do passado, mas também não pode ignorá-lo, precisa
desenvolver uma nova relação com ele, empreender uma nova leitura do mesmo.
Preocupado, finalmente, com questões práticas, o professor aponta algumas
prioridades e decide se desligar oficialmente do sindicato e do partido, dos quais já havia se
afastado informalmente. Afinal, segundo ele: “Quem fica sem mulher casa pátria vida deus e
família não precisa de um país nem de sindicato, e menos ainda dos princípios doutrinários de
um partido (...) Deixar o partido é mudar de pele” 58. Há muito se sente traído por essas
instituições, como já demonstramos ao nos referirmos à casa destruída. No partido, o antigo
ativista é agora parte de um mecanismo obsoleto, um mero burocrata, ocupado em questões
que não são do interesse coletivo, mas individual. E o professor aponta a hipocrisia dos
defensores idealistas que não buscam a verdadeira transformação da sociedade, querem
apenas ocupar o lugar de que detém algum poder ou conseguir um cargo qualquer:
Ele, o Homem do Aparelho, é um ruivo plácido e impostor. Em tempos, viera da província para fomentar uma idéia, uma reserva moral, uma mágoa ardentemente portuguesa. Aceitou-a como boa e como sua, subiu na pirâmide partidária até ficar sentado àquela secretária, fazer dela um trono e um altar, ocupar-se dos “quadros técnicos” e da “massa cinzenta” do partido.59
Num desabafo pleno de anáforas, o ceticismo do professor é reiterado; nele também se
detecta a perda de sua fé em Deus ou em qualquer projeto religioso ou social:
57 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.29. 58 Idem. p.148. 59 Ibidem. p.151.
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Não há nada em que acreditar. Nem na evidência invisível das coisas. Nem no futuro da humanidade. Nem no segredo de Fátima. Nem na voz do homem e da mulher. Nem na total inocência da criança. Nem na comprida e silenciosa experiência do velho. Nem na sagrada reminiscência do sábio. Nem na bondade do bom, nem na justiça do justo, nem na cultura do culto, nem na humildade do humilde. Nem na evidência, repito, invisível das coisas.60
Ter sido seminarista num país com uma forte influência religiosa torna ainda mais
intenso o vazio originado pela perda da fé, pela destruição dos dogmas, que resultam do
rompimento com tudo o que, em algum momento, foi sentido como verdade incontestável. A
substituição da crença pelo ceticismo acentua o estado de “suspensão” do narrador-
personagem, que confessa o seu desamparo: “O Senhor abandonou-me, o Senhor quis que eu
d’Ele me perdesse. Creio ter-se há muito cumprido em mim a Sua vontade”61. Essa afirmação,
se pensarmos na relação entre indivíduo e pátria defendida no romance, nos remete, pelo
avesso, ao célebre verso de Fernando Pessoa: “falta cumprir-se Portugal”, ou à seguinte
constatação de António Sérgio: “Portugal foi uma promessa não cumprida”.
Melancolicamente, o professor sugere que as realizações excepcionais que cabiam ao país
fossem apenas pontuais, que o seu destino no cenário mundial fosse mesmo o de mero
coadjuvante. Ao fazer uma comparação entre a perda do ideal revolucionário e o percurso
interrompido do profeta São João Batista, ele mostra sua decepção: “Todos estivemos também
para mudar a História. Todos fomos profetas de uma idéia para a revolução. Mas (...). A nossa
revolução foi decapitada”. 62
Igualmente simbólica, a perda do pai reflete o desaparecimento do antigo Portugal,
baseado numa economia agrária e em determinados valores éticos. Esse pai é pater, é pátria, é
a segurança de um mundo conhecido e aceitado:
60 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.156. 61 Idem, p.128. 62 Ibidem, p.129.
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Não é apenas um pai. Foi sempre o enigma e o paradigma, a sombra e o relógio solar por detrás do qual as coisas estavam certas e o tempo existia. Nunca amei ninguém tanto como este velho agricultor, herói e mártir das últimas de todas as causas portuguesas. 63
O professor declara que o pai está morrendo com a terra portuguesa, e depois de sua
morte, lamenta “Com ele haviam morrido a terra, a casa, o tempo, a família, e todos os
homens da aldeia”.64
País essencialmente agrícola, como defendeu o governo salazarista, onde a cultura de
subsistência garantiu a alimentação de tantos camponeses, esses, que acreditaram na máxima
pregada pelo ditador, mesmo tendo sido abandonados por ele, sentem-se profundamente
inúteis diante da desvalorização da sua atividade. A agricultura foi uma grande causa
portuguesa e essa inversão de valores torna o fim da vida do velho camponês muito triste:
“Dói-lhe a terra traída e abandonada, indigna-o que durante toda a vida lhe tivessem dito que
o trabalho e a lida dos campos dignificavam a vida dos mesmos mas que, agora, trabalhar a
terra seja indigno dos mesmos que um dia creram na terra e na agricultura”65. Agora, em
Portugal, é mais rentável deixar que cresçam os eucaliptos para alimentar a crescente indústria
do papel ou importar gêneros alimentícios tradicionalmente produzidos no país. A agricultura,
pelo menos nas pequenas aldeias, deixou de ser necessária e tornou-se um mero passatempo,
como explica o professor:
Esta é uma agricultura apenas terapêutica, não chega sequer a ser de subsistência, os velhos vivem da pensão, das pequenas médias economias e do sonho deste horto que ainda significa a explicação, a prova de que ambos partilham a condição dos seres que estão vivos apenas por viverem à beira da vida e da morte. 66
Cada vez mais destituídas de motivos para permanecer no interior, as novas gerações
continuam a partir em busca de melhores opções; nas aldeias, como constata o professor, “não
63 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 161. 64 Idem, p. 175. 65 Ibidem, p.163. 66 Ibidem, p.162.
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há crianças”67. A interferência da política econômica européia na produção dos países-
membro é criticada, no romance, quando o professor lembra de uma antiga passagem por
Poitiers. Nessa cidade francesa, onde, na ocasião, ele considera a possibilidade de vir a morar,
os campos estão igualmente abandonados. Como lhe explicam, isso acontece “porque a
Europa unida pagava para que da terra ninguém colhesse frutos oleaginosas e cereais, por
causa dos seus excedentes agrícolas, da sua política de preços, da sua inteira centralizada
insultuosa desumanidade”.68
As situações que surgem durante a visita do professor à aldeia, mais do que todas as
outras, reforçam a afirmação de que as identidades não se transmitem geneticamente. O
sentimento cívico de valorização da identidade pátria deveria ser transmitido através de
gerações. Como lembra Stuart Hall: “as identidades são construídas dentro do discurso”69, ou
seja, elas não nascem conosco. Uma vez que os discursos que interferem na identidade
portuguesa oscilam entre a velha realidade, ainda não transformada, e a nova realidade, ainda
não absorvida, o professor se pergunta qual desses discursos, genuinamente português ou
pretensamente europeu, prevalecerá a partir do momento atual:
Sento-me na terra, ao lado do meu cão, fico uns instantes a ver a estagnação e a decrepitude e a desordem das coisas na paisagem. Tenho agora Portugal inteiro na minha frente. Começaram a nascer os filhos da Europa. E estão morrendo os velhos portugueses – tanto os crentes como os incrédulos. Se aos filhos não pudermos falar da vida e da nossa terra, que coisas iremos nós ensinar aos filhos da Europa, que não seja uma qualquer teoria, ou a arte e a manha, ou a artimanha de todos nos considerarmos fingidamente europeus?70
A morte do pai revela, ainda, a expectativa do povo em relação às gerações que, diante
da desvalorização do trabalho rural, mantêm uma prolongada diáspora, e voltam à aldeia natal
apenas de passagem. A lucidez do professor contribui para o seu desconforto em relação a
mudanças sociais irreversíveis: ele não será a continuação de uma idéia que já não existe. Até
67 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.168. 68 Idem. p.146. 69 HALL, Stuart. “Quem precisa da Identidade”. In: Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Cuturais. 4 ed. Org. Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis-RJ: Vozes, 2005. p.109. 70 MELO, João de. Op.cit. p.165.
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porque, ele representa aqueles que podem estabelecer o diálogo necessário para alcançar a
“terceira margem”. Assim como tantos outros, que encontram o seu caminho no exterior ou
nas capitais de distrito do país, ele não volta definitivamente à terra natal, mesmo porque esse
regresso é impossível. A idéia contida no anseio do regresso sugere um encontro com algo
que já não existe, porque nem o local nem o indivíduo são mais os mesmos, afinal, “ninguém
volta ao que já deixou”.
Vêem-me, espiam-me o modo de andar, os meus olhos solitários, a minha estranha condição de homem em duplo, um vindo de dentro do mesmo burgo, outro chegado de fora do mundo grande que fica como que na distância escura e infinita da morte. Devem dizer de si para si que julgam lembrar-se de mim. Mas precisam de coçar o couro cabeludo e de puxar muito pela cabeça para se recordarem do meu nome. De qualquer forma, também eu tenho a ilusão de reconhecer os rostos, de os reconstituir no tempo passado mas de os desconhecer no tempo presente.71
A certeza de não corresponder à expectativa referida o incomoda: “O povo captou a
angústia do meu olhar, tornou-se mais concreto o ruído dos passos, soube logo que todos
tinham vindo por mim e apenas por mim, que tinham vindo exigir-me a continuação do meu
pai e da sua idéia”.72
A exigência silenciosa dos mais velhos faz com que o professor deixe a aldeia no
mesmo dia do enterro do pai. E como se tornou imperativo reafirmar todos os rompimentos, e
assim destruir todos os referentes de uma ordem estabelecida ou de uma tradição, o seu
próximo destino é a casa de Mariana, sua amante açoriana; “casa-ilha” segundo o professor. A
naturalidade de Mariana confirma uma característica da obra de João de Melo que não nos
cabe desenvolver neste trabalho, mas que não podemos deixar de mencionar, visto que ele a
mantém no romance observado: sua relação indissociável com o arquipélago dos Açores,
“laboratório do acervo experimental e reflexivo que a vida lhe concedera”, no entender de
Adelaide Baptista que, sobre esse tema, acrescenta: “a insularidade é a característica mais
71 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996.Idem. p.166-7. 72 Idem, p.180.
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comum das utopias desde sempre contempladas e ainda hoje desejadas”73. Mariana é o espaço
de felicidade adiado. O rompimento com a amante destrói o refúgio proporcionado por essa
“mulher-ilha” e impele à análise objetiva da sua atual realidade, por mais angustiante que
seja.
Sua relação com o arquipélago dos Açores também se manifesta, mais sutilmente, na
sua relação saudável com o inverno de Lisboa, o que ele demonstra repetidas vezes, e que se
explica muito mais por uma experiência do autor do que do narrador-personagem (que diz
nunca ter estado numa ilha), uma vez que a descrição que faz de invernos passados é mais
adequada ao rigor do tempo nas ilhas do arquipélago açoriano do que em alguma aldeia
portuguesa: “Passou horas da sua vida sob o assobio dos ventos, com o ouvido atento às
grandes bagas de chuva que açoitavam os vidros da janela. Ao contrário do comum das
pessoas, gosta de estar vivo no furor e no desconforto do Inverno”74. Mariana é uma
representação do próprio Açores, sempre à sua espera, sempre acolhedora, paciente e
compreensiva, atração constante embora não arrebatadora, espaço a visitar e não onde
permanecer, pois a felicidade permanente é uma utopia: “Em nenhuma ilha dos Açores eu
lograria fugir a esta espécie de decomposição anímica e moral. Não creio no mar, não creio na
terra. Não creio na superior evidência do mar, da terra e de tudo quanto exista sobretudo para
olhar, para viver”75
O seminário que freqüentou na juventude é o último espaço por onde o professor passa
antes de deixar o país. Ao se aproximar, ele faz uma crítica ao comércio religioso que se
desenvolve no local, cujas referências nos asseguram ser as imediações do Santuário de
Fátima, um dos mais importantes espaços de concentração de peregrinos do mundo cristão:
“Passou a ser a cidadezinha do comércio e da alegria: lojas com portas muito abertas, janelas
73 BATISTA, Adelaide Monteiro. João de Melo e a Literatura Açoriana. Lisboa: Dom Quixote, 1993. p.111. 74 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.96. 75 Idem, p.188.
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transbordantes de tudo o que se possa vender e comprar, toldos amarelos e azuis, esplanadas,
hotéis e pensões com nomes de papas e santos”76.
O equilíbrio que almeja encontrar no convento revela o quanto o desestabiliza o seu
ceticismo religioso. Ele que confessa ter saudades de quem foi no tempo em que se
confessava, se arrependia dos pecados, rezava, lia salmos e cumpria as suas penitências. Isso
se percebe quando confessa o que pensa ali encontrar:
A caminho de Poitiers, sei muito bem ao que venho. A cura, o esquecimento. O repouso do silêncio que nunca mais existiu além dos muros, dos claustros e da cerca do convento. Desde que me despedi de Deus e entrei nas perdições do ‘mundo’, a vida foi-se-me enchendo de ruído, das suas doenças e angústias, ulcerada como uma lesão da pele ou uma dor escondida no fundo da alma.77
Livre da sensação de pertencimento a uma pátria, uma vez que tantos referenciais se
perderam, a busca de novas identificações pode ir além das cada vez mais tênues fronteiras
que delimitam o país. Decidido a deixar Portugal, o professor decide partir para Poitiers, onde
deve pronunciar uma conferência sobre identidade à qual deu o título de “Solitude identitaire
et sentiment européen chez les portugais” (Solidão identitária e sentimento europeu entre os
portugueses), num simpósio cujo tema é “L’être et lê néant d’une identité européenne”78 (O
ser e nada de uma identidade européia).
Ao saber do desafio que aguarda o amigo, Frei Bernardo exclama: “Identidade num
tempo destes, menino?! Portugalidade! Sentimento europeu! Ah, tem dó, não ofendas a Santa
Igreja, não renegues a Deus Nosso Senhor!”79. O riso em comum provocado pela expressão
do simpático religioso sugere o absurdo dessa tarefa, inegavelmente árdua.
O que dizer sobre uma identidade nacional que está sendo reconstruída ou, até mesmo,
destituída de sua origem ou raiz, num ritmo tão acelerado? E o professor reitera o seu
76 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.198. 77 Idem, p.198. 78 Ibidem, p. 144 e 145. 79 Ibidem, p.207.
41
desconforto, numa reflexão onde mostra que acreditar nas promessas de solidariedade
vinculadas pelo projeto de uma Europa unida requer, no mínimo, alguma ingenuidade:
Apenas recordo a minha angústia de ontem e de agora, só de pensar no meu compromisso de escrever uma conferência sobre a identidade e de ter que ir depois lê-la a Poitiers, lá no coração de uma nova Europa profunda agnóstica abismada com a sua própria existência ontológica. Falar de identidade à Europa de agora é tão absurdo e incompreensível como crer nos escritos apócrifos nos mapas que predizem uma única nação européia nos deuses famintos de hoje que anunciam um futuro de abundância concórdia e felicidade a todos os povos da terra. 80
80 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.60.
42
4 – FRONTEIRAS FLUTUANTES
Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, como os gregos reconheceram,
a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.
Martin Heidegger, “Building, Dwelling, Thinking”
Num mundo globalizado, as fronteiras são flutuantes, ou seja, a circulação de estilos,
idéias e produtos acontecem de forma tão acelerada que logo as novidades se integram ao
cotidiano e à paisagem, tornando certas cidades muito parecidas umas com as outras em
alguns aspectos; as diferenças não são identificadas, necessariamente, a partir de pontos
específicos apontados pelos mapas.
Durante a peregrinação que o leva a refletir sobre Lisboa e, conseqüentemente, sobre
Portugal, o narrador-personagem não poderia deixar de lançar o seu olhar sobre o rio Tejo –
porta que se abre para o aliciante Atlântico - e seguir até Belém, onde a Europa da qual o país
se excluiu ou foi excluído, se faz concretamente presente, instalada num grande edifício
destinado a ser o seu quartel-general: o Centro Cultural de Belém81, junto aos monumentos
mais representativos das navegações marítimas portuguesas e seus descobrimentos: A Torre
de Belém, o Monumento dos Descobridores e o Mosteiro dos Jerônimos. Nesse local
específico, o que se pergunta é se será mais adequado interpretar essa Europa como uma
conquista ou como uma invasora?
A Europa amada, desencadeadora de “ressentimento e fascínio”, como identificou
Eduardo Lourenço82 num clássico ensaio que tem exatamente esse subtítulo, é distante, e não
esta que invade a cidade como se fosse sua, disputando a atenção dos turistas que visitam os
81 Foto no anexo D. 82 LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as duas razões. 3 ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. [s.d.]. p.25-37.
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monumentos destinados a exaltar a aventura épica dos portugueses, e retratada no romance
em questão:
Em Belém, atravesso a linha do comboio e viro à direita: aí estão as marinas, os restaurantes à beira-rio, o padrão dos Descobrimentos, a torre manuelina ao fundo, no enfiamento do Mosteiro dos Jerónimos e do novo Centro Cultural – em cujos mastros flutuam agora, perdidas na névoa e na noite amarela, as bandeiras dos doze países da Comunidade. A Europa chegou aqui, entrou, perdeu-se da vista e do coração de quem já antes a amava; correu a fechar-se e a trair-nos, trancada a sete chaves no aquário rosado do Centro Cultural de Belém. Ela dar-nos-á uma nova bússola, o sextante, as naus e o silêncio da renúncia, da traição, do consentimento. Não é esta a Europa que me ensinaram a amar. A outra possui uma geografia distinta, uma cor diferentemente pintada no mapa de cada país, com seus rios e castelos, com nomes impressos na língua de origem, com a visibilidade histórica do ser e da sua vizinhança. A Europa que eu amo é feita de uma soberania culta, consciente de si e do outro que mora ao lado. Sou um homem da periferia, um cidadão da margem e do mar. Desconheço outro qualquer sentimento europeu. Não imagino sequer a Europa que entrou já nas minhas fronteiras – se é esta que sempre me foi vizinha e ressentida, se a outra que vem agora na nova cúpula de um artifício que se estendeu sobre mim como uma abóbada, uma sombra imensa, invadindo-me, ocupando-me no escuro, da noite para o dia, e subtraindo-me aos mitos portugueses da terra e do mar. Os meus mitos são: a árvore da minha floresta, a agricultura do vinho e dos pomares, a cidadania da paisagem e do dia, e esse infinito mar que nos habita imanente, sábio e necessário ao olhar. 83
As considerações do presente capítulo estão diretamente relacionadas à longa citação
acima.
Como foi mencionado em nossa introdução, é uma proposta do romance alertar para o
risco de assimilação cultural proveniente do convívio dos portugueses com culturas
hegemônicas, mesmo sem ignorar que exercem uma resistência silenciosa àqueles que,
aparentemente, cultuam ou admiram. Sendo assim, serão apontadas situações que nos
permitem manter essa afirmação e apresentadas questões que permeiam os estudos referentes
ao universo cultural e ao processo de construção de identidades.
Uma afirmação do ensaísta Silvano Peloso sintetiza a inquietação sugerida pelo
romance; segundo ele: preservar uma diversificação cultural e, ao mesmo tempo, defender as
83 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.25-6.
44
várias identidades nacionais e culturais é o verdadeiro desafio da sociedade multicultural84.
Isto porque, como lembra Boaventura de Sousa Santos, “as identidades culturais não são
rígidas nem, muito menos, imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de
processos de identificação. (...) Identidades são identificações em curso”85.
Conseqüentemente, o contato e as relações freqüentes entre culturas e povos muito diferentes
acarretam transformações que tendem a aproximá-las, no decorrer do tempo. Essa
contrapartida aos benefícios que resultam da entrada do país na Comunidade Européia é
condenada por Helder Macedo, como se verifica no ensaio “Sociedade pós-moderna,
globalização e europeização do mundo português”:
a entrada de Portugal na actual União Européia fez tanto sentido que agora parece ter sido inevitável. Fez sentido por razões econômicas, por razões políticas e até por razões psicológicas, dados os traumas causados pelo isolamento de que o país padeceu durante quase cinqüenta anos de ditadura, pelas guerras coloniais, e pelo período conturbado de expectativas irrealizadas que depois viveu. Os benefícios políticos e econômicos são tangíveis e evidentes: Portugal nunca mais poderá ser dominado por uma oligarquia paroquial e a maioria dos portugueses vive melhor do que vivia mesmo no auge do império. Os perigos culturais talvez sejam menos evidentes, mas nem por isso menos reais. Porque a abolição de fronteiras políticas e econômicas também pode levar a uma dissolução de fronteiras culturais. E creio que essa é uma fronteira que merece ser mantida. Não para a fechar mas, pelo contrário, para que possa ser aberta e transitável.86
A adaptação de um indivíduo a uma outra realidade não implica sua transformação
total ou imediata; é um processo que não “apaga” completa ou imediatamente identificações
outras, o que pode gerar algum desconforto ao “ainda estrangeiro” num novo grupo cultural,
ou “agora estrangeiro” no grupo a que pertenceu. A segunda circunstância pode ser
exemplificada pelo encontro do narrador-personagem com os pais, quando ele reconhece o
quanto se distanciou do ambiente em que nasceu:
84 PELOSO, Silvano. “Identidade nacional e sociedade multicultural”. Texto apresentado na mesa-redonda “Globalização, Identidades Nacionais e Culturas”, no “Encontro de Cultura Brasileira”, realizado em Brasília de 5 a 11 de novembro de 1995. p. 167. 85 SANTOS, Boaventura de Sousa. “Modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteira”. p. 11. 86 MACEDO, Helder. “Sociedade pós-moderna, globalização e europeização do mundo português”. Letras nº 23. Julho/Dezembro de 2001. p. 12.
45
Quando reentro em casa, a mesma estranheza nos olhos dos meus pais. Deixei de ser daqui, já não pertenço à aldeia à casa à família, também deixei de ser filho de gente, não descendo de nenhum homem e de nenhuma mulher, perdi a cédula o sal o santo óleo o nome de baptismo o conhecimento da rua, a minha identidade dela.87
A possibilidade de transformação de diferentes grupos culturais pode ser positiva,
quando acontece espontaneamente, sendo o resultado de afinidades que se descobrem ou se
desenvolvem em um novo grupo, formado a partir do relacionamento entre dois ou mais. No
entanto, temos nos referido aqui às identidades nacionais, e como afirma Benedict Anderson:
“a identidade nacional é uma ‘comunidade imaginada’”88; ou seja, é o resultado de discursos
incorporados, consciente ou inconscientemente, por indivíduos de uma mesma nação: é o
nosso próprio imaginário de nação.
Devemos entender essa identidade como uma construção e lembrar que, como tal,
pode ser condicionada por discursos elaborados a partir de interesses políticos e econômicos,
entre outros, que exaltando alguns aspectos reais podem concretizar uma artificialidade, ou
que destacando uma realidade parcial dos fatos manipula os sentidos dos mesmos. Um
fragmento do ensaio “Caravelas do Imaginário”, do professor Ronaldo Lima Lins, ajuda a
compreender tal afirmação:
Na verdade, um país se compreende a partir de idéias, ainda que essas idéias se distanciem do universo dos fatos. Sempre foi e sempre será assim. Uma grande nação e uma pequena distinguem-se por uma concepção de grandeza, além do que os dados objetivos provam ou deixam de provar.89
A História e a Literatura são dois exemplos de como os discursos podem construir
“verdades” que condicionam a construção da identidade nacional, com a diferença de que a
segunda se reconhece como ficção, embora nem por isso seja menos verdadeira do que a
primeira.
87 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 169. 88 HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. (7.ed). Trad.Tomas Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A editora. 2002. p.51 89 LINS, Ronaldo Lima. “As caravelas do imaginário” In: O felino predador. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. p.164.
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Quando os vários discursos se aplicam a culturas diferentes em permanente contato,
como acontece cada vez mais em função do processo de globalização que tende a
“aproximar” os diferentes países, um outro aspecto merece ser considerado e, para demonstrá-
lo, voltamos a Stuart Hall, que explica: “as modalidades de poder que permeiam a construção
das identidades fazem delas mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o
signo de uma unidade idêntica, naturalmente construída”90. Nesse sentido é que a
aproximação apresenta um risco para a identidade portuguesa, uma vez que alguns aspectos
do país, por estarem ultrapassados, podem ser considerados “diferentes”, uma vez que a
posição de Portugal no cenário dessa nova Europa não lhe confere força suficiente para
determinar o estilo a ser valorizado; consequentemente seriam os seus os valores excluídos, o
que afetaria a sua soberania.
Luís Sá, num trabalho dedicado ao esclarecimento de questões de soberania e
integração na CEE, pronuncia-se em relação à posição de Portugal no cenário econômico
internacional:
Portugal é normalmente enquadrado nos estudos de economistas e nas publicações de organismos internacionais, com destaque para a OCDE, como um país subdesenvolvido ou em vias de desenvolvimento de um tipo especial: seria um dos NICs (New Industrial Countries) ou NPIs (Novos Países Industrializados) ou semi-industrializados. Numa classificação dos países capitalistas em ‘centrais’ ou ‘periféricos’, situar-se-ia como um dos países ‘semiperiféricos’.91
Embora tenhamos destacado os riscos inerentes do convívio de diferentes culturas, o
choque que pode advir do encontro de culturas muito diferentes não é necessariamente
devastador para uma delas, ou para ambas; muito pelo contrário: pode até proporcionar a
reafirmação de alguns aspectos. Como lembra, mais uma vez, Silvano Peloso, ao citar uma
reflexão otimista de Umberto Eco, “os diversos povos do mundo, por estarem mais próximos,
90 HALL,Stuart. “Quem precisa da Identidade”. In: Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Cuturais. 4ed. Org. Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis-RJ: Vozes, 2005. p.109. 91 SÁ, Luís. Soberania e integração na CEE. Lisboa: Caminho, 1987. p.15.
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estão verdadeiramente em estágio de compreender a própria diversidade recíproca”92. O
confronto favorece a percepção do que é próprio a cada cultura. Mas, não se pode ignorar que
apontar no outro a diferença e designá-la como inferior é uma maneira de garantir
superioridade. A diferença pode ser constatada, mas nunca deve ser avaliada.
Uma relação de igualdade só existe quando é possível negociar essas diferenças, sem
estabelecer critérios de valor ou impor um empobrecedor nivelamento; e nem sempre aos
mais fracos é permitido interferir nessas negociações. Se o fosse, não ficaria caracterizada a
hegemonia, no sentido atribuído por Gramsci, e lembrado por Edward Said em Orientalism,
como se percebe no seguinte trecho, que nos permitimos traduzir: “Em qualquer sociedade
não totalitária, algumas formas de cultura predominam sobre outras, assim como algumas
idéias são mais influentes do que outras; a forma dessa liderança cultural é o que Gramsci
identificou como hegemonia”.93
A hegemonia que se reconhece em determinados países europeus reduz a cultura
portuguesa a um patamar bastante inferior em relação a algumas outras; o que não inviabiliza
a convivência, mas incentiva a modificação pouco criteriosa de alguns dos seus aspectos mais
marcantes. Isso foi o que tentamos mostrar ao enumerar, num capítulo específico, as perdas
sofridas pelo narrador-personagem: o impacto de perdas sucessivas gera uma dificuldade de
auto-reconhecimento.
Um outro fator interfere na adaptação dos portugueses à nova realidade: antigo
colonizador, no cenário europeu Portugal ocupa o lugar do colonizado. Como observa
Boaventura de Sousa Santos, no texto “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-
colonialismo e inter-identidade”:
92 ECO, Umberto apud PELOSO, Silvano. “Identidade nacional e sociedade multicultural”. Texto apresentado na mesa-redonda “Globalização, Identidades Nacionais e Culturas”, no “Encontro de Cultura Brasileira”, realizado em Brasília de 5 a 11 de novembro de 1995. p.167. 93 SAID, Edward W. orientalism. London and Henley: Routledge & Kegan Paul, 1978. p.7. “In any society not totalitarium, then, certain cultural forms predominate over others, just as certain ideas are more influential than others; the form of this cultural leadership is what Gramsci has identified as hegemony”.
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Os Portugueses nunca puderam instalar-se comodamente no espaço-tempo originário do Próspero europeu. Viveram nesse espaço-tempo como que internamente deslocados em regiões simbólicas que lhes não pertenciam e onde não se sentiam à vontade. Foram objecto de humilhação e de celebração, de estigmatização e de complacência, mas sempre com a distância de quem não é plenamente contemporâneo do espaço-tempo que ocupa. Forçados a jogar o jogo dos binarismos modernos, tiveram dificuldades em saber de que lado estavam. Nem Prospero nem Caliban, restou-lhes a liminaridade e a fronteira, a inter-identidade como identidade originária.94
Um fragmento de Luís Sá esclarece a reflexão contida na citação anterior:
À laia de consolação, tem-se dito que Portugal é um país subdesenvolvido mas com a particularidade de se tratar de um ‘subdesenvolvimento carregado de história’. Procura-se assim referir a particularidade de Portugal ter sido um país colonialista. A verdade porém é que o discurso nacionalista e a exaltação do império colonial ocultaram uma situação de real dependência do País. Portugal esteve quase sempre submetido a situações a que impressivamente um autor italiano chamou colonialismo informal, no caso para designar as relações anglo-portuguesas nos séculos XVIII e XIX. Na verdade, é hoje praticamente pacífico o facto de a dominação colonial portuguesa não ter favorecido a acumulação capitalista necessária ao desenvolvimento e de ter sido pelo contrário um factor de atraso do nosso país.95
Com O Homem Suspenso, João de Melo reflete a entrada de Portugal na Comunidade
Européia, assim como o fazem outros romances, que também polemizam essa adesão. N’ A
Jangada de Pedra, por exemplo, José Saramago alerta para a total falta de identificação entre
os países pobres da Europa e as potências que estereotipam esse velho e autoritário
continente. O abismo que separa Portugal e, no caso d’A Jangada, também a Espanha, do
restante da Europa é tido como tão profundo, tão concreto, que faz a alegoria criada pelo
escritor parecer possível: a Península Ibérica afastada do continente europeu devido a uma
fenda que se inicia nos Pirineus quando uma personagem risca o chão com uma vara de
negrilho. À deriva, essa “jangada” tenta encontrar o lugar mais adequado a ocupar no
Atlântico, ou seja, no cenário internacional:
94 SANTOS, Boaventura de Sousa. “Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade”. In: RAMALHO, Maria Irene & RIBEIRO, António de Sousa (Orgs.). Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos de identidade. Porto: Afrontamento, 2001. p. 53-54. 95 SÁ, Luís. Soberania e integração na CEE. Lisboa: Caminho, 1987. p.16.
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Ainda que não seja lisonjeiro confessá-lo, para certos europeus, verem-se livres dos incompreensíveis povos ocidentais, agora em navegação desmastreada pelo mar oceano, donde nunca deveriam ter vindo, foi, só por si, uma benfeitoria, promessa de dias ainda mais confortáveis, cada qual com seu igual, começamos finalmente a saber o que a Europa é, se não restam nela,ainda, parcelas espúrias que, mais tarde ou mais cedo, por qualquer modo se desligarão também. Apostamos que em nosso final futuro estaremos limitados a um só país, quinta-essência do espírito europeu, sublimado perfeito simples, a Europa, isto é, a Suíça. 96
Sem defender a continuidade do isolamento defendido pela ditadura salazarista, mas
sugerindo a abertura para outros parceiros, A Jangada alerta para os custos que possam advir
do caminho que o país optou por trilhar, aliando-se a países que priorizam as questões
econômicas, mas para os quais a paridade é vista com estranhamento, mesmo em outros
aspectos. Outras vozes defendem o afastamento da restante Europa abertamente, propondo o
distanciamento, inclusive, da Espanha, vizinha com tantas semelhanças, como lembrou
Saramago, mas com a qual a relação nunca foi amistosa, muito pelo contrário. Nesse grupo se
inclui Joaquim Barradas de Carvalho, que opina assim em Rumo de Portugal. A Europa ou o
Atlântico?: “Perante a encruzilhada, a Europa ou o Atlântico, pronunciamo-nos pelo
Atlântico, como única condição para que Portugal reencontre a sua individualidade, a sua
especificidade, a sua genuinidade, medieva e renascentista”97.
Em O Homem Suspenso, o narrador-personagem também aponta para uma
identificação com o sul do país, mais próximo da África e do Brasil:
Amo o clima e a terra e os livros e as mulheres e o firmamento azul do meu país. Amo o mar e as serras que sobem desde o litoral até ao centro, e as árvores antigas e as ermidas e os barcos nocturnos e a faina marítima e as aldeias brancas como a minha e todas as aldeias que atravessam a grande planície da verdade que progride para o sul. É certo que também o meu amor por isto leva o rumo do sul, o das searas e das amendoeiras em flor, o sul mediterrânico, peninsular, berbere e africano, o sul brasileiro que vai de porto em porto e de porta em porta. 98
96 SARAMAGO, José. A Jangada de Pedra. 4ªed. Lisboa: Caminho, 1988. p.78. 97 CARVALHO, Joaquim Barradas de. Rumo de Portugal. A Europa ou o Atlântico? Lisboa: Livros Horizonte. 1974. p. 78. 98 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 165.
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Uma Espanha que nunca foi ponte, mas sempre parede, é também lembrada pelo
professor, que ressalta a incompatibilidade lingüística entre os dois países, devido à
dificuldade de compreensão do português por parte dos espanhóis:
Não há coisa pior do que ser desprezado numa ‘calle’ de Madrid, à vista de toda gente, nem pior humilhação para um homem como eu do que estar no perfeito entendimento da língua que se fala em Madrid, e nunca obter a aceitação o respeito a atenção o esforço de um ‘entendimento’ pelos espanhóis dessa outra língua ibérica, o português. Penso sempre que se trata de um equívoco, de um acto lingüístico unilateral; de uma tirania; de uma arrogância; de uma rigidez de ouvido que se confunde com um desleixo ou mesmo com uma prepotência. 99
Esse aspecto é recuperado por João de Melo num romance que publica em 2006, ano
da escrita do nosso trabalho, mostrando que algumas questões permanecem. Através dos
questionamentos do narrador-personagem do recém-publicado O Mar de Madrid, um poeta
que se dispõe a tentar conhecer a vizinha Espanha, a persistente animosidade entre os dois
países é observada:
Onde acabava Portugal e principiava Espanha? Que linha estabelecia o limite, a passagem de um país para o outro – e a quem pertenciam as distâncias que se perdiam ao longo dessa linha meramente imaginária que toda a gente designava por ‘fronteira’? Perguntas e mais perguntas que o poeta a si mesmo se formulava, estrada fora, numa ânsia de entrar em Espanha, e num tal arrebatamento curioso da vontade, que era coisa digna de ver-se. 100
O ensaísta Eduardo Lourenço entende que a dificuldade dos europeus em aceitar os
portugueses como pares é bastante maior do que o contrário, reforçando a colocação de José
Saramago. Segundo ele: “É para a Europa, talvez, que nós constituímos, se não um desafio,
pelo menos um problema, embora haja nela problemas de mais aguda urgência e fundura”101.
Ele entende que os riscos para a cultura portuguesa não sejam tão assustadores e,
posicionando-se com lucidez e praticidade, considera a adesão à Comunidade Européia como
a única opção viável para o país, como se percebe na afirmação:
99 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.215-6. 100 MELO, João de. O Mar de Madrid. Lisboa: Dom Quixote, 2006. p.18. 101 LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as duas razões. 3 ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. [s.d.]. p.23.
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Um futuro nosso, no sentido demagógico – sebástico (mas sobretudo irreal) do termo, é um futuro de ninguém. Já não podemos aspirar a ser, mesmo a título hiperbólico, “a nação orgulhosamente só”, que, por necessidade ou desafio, um dia nos supusemos. Ainda menos podemos aspirar a ser “a nação orgulhosamente única”, que até somos de algum modo, como cada povo da velha memória é. Só por pânico diante do confronto com um mundo que nos ultrapassa e nos condiciona, ou por ancestral complexo de inferioridade virado do avesso, os nossos abencerragens do nacionalismo por conta própria propõem esse ideário mesquinho à candura do povo português, que não precisa desses senhores para aprender a ser patriota e a gostar naturalmente do seu país. 102
O mesmo ensaísta, em “A Europa ou o diálogo que nos falta”, defende uma
aproximação da Europa, sobretudo, no âmbito cultural, lembrando que foi essa a tentativa de
gerações anteriores, entre elas a geração da “Seara Nova” e a do movimento presencista, que
tentaram tirar Portugal do ostracismo que o limitava:
Temos sobretudo de realizar o confronto com uma cultura que nos ultrapassa em profundidade e riqueza, confronto sincero e livre para avaliar o que temos e o que nos faz falta. Não se trata de trocar a nossa própria alma, mas de ter consciência dela confrontando-a com a dos outros103.
No mesmo texto, ele finaliza afirmando: “Se quisermos ascender ao nível daquilo que
a consciência histórica pede hoje a cada homem desperto, é na Europa que temos de
permanecer. É do seu diálogo que temos de comunicar”104. Essa proposta sugere que, na
verdade, não há escolha possível. Retardar a aproximação é prorrogar um incontestável atraso
que nunca deveria ter se tornado tão grande. Infelizmente, essa aproximação implica na
submissão do país às regras dessa Europa que dita as normas, aniquilando as utopias
revolucionárias de um povo ansioso por se livrar de qualquer tipo de ditadura depois de viver
40 anos sob o regime imposto por Salazar. A consciência de que há um preço a pagar pelo
acelerado progresso promovido por esse contato e o esvaziamento da sensação de liberdade
estão presentes em vários momentos no romance, como vemos na reflexão do professor
acerca da cidade que ele observa quando deixa sua casa:
102 LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p.81/2. 103 LOURENÇO, Eduardo. “A Europa ou o Diálogo que nos falta”. In: ______. Heterodoxia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1987. p. 16. 104 Idem, p.17.
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Ninguém sabe o que se passa nesta Lisboa mítica e quotidiana, capital de um país que a si mesmo se colonizou e descolonizou, que para si inventou a última e a mais portuguesa das revoluções mas que afinal trocou o passo: planta eucaliptos, vira costas ao seu mar de sempre, pede dinheiro para estradas que vão dar ao centro, ao sonho dos outros países, e parece até orgulhar-se de pedir que o deixem viver de cócoras, em sentido.105
O incômodo causado pela adesão à CEE resulta da apreensão de que “integrar” possa
significar “entregar”. O professor teme as vozes, os poderes e os mitos que viriam para
adormecê-lo, como lhe foi em tempos anunciado106, e esse receio lembra que é preciso estar
atento às mudanças, acompanhá-las, sob o risco de acordar e não reconhecer o país. A
conseqüência da indiferença é lembrada na atitude displicente que mostramos ser a dele em
relação à Carminho, de quem se perdeu107.
Luís Sá fala de vozes que alertam para o “servilismo europeu”, lançando dúvidas sobre
as inúmeras vantagens proporcionadas pela adesão à CEE:
Aparentemente só poderiam resultar vantagens da atual inserção internacional do nosso país. Vão, entretanto, surgindo vozes de vários quadrantes questionando que assim seja. Um conhecido adepto da adesão já coloca em causa, por exemplo, o ‘servilismo europeu’ que alastrou em Portugal, a que se pode acrescentar um acentuado ‘servilismo americano’. Muitos levantam o problema da manutenção da identidade nacional, da coerência e autonomia do sistema produtivo português, da soberania e independência do Estado português. 108
É sempre difícil escolher que rumo tomar. O professor deixa Portugal, mas não planeja
ignorar sua cultura, como confirma o apelo que faz à sua mãe (=mater), também ela uma
representação da pátria: “Por favor, mãe, não morra nunca. Que será de mim sem pai nem
mãe nem casa nem família nem pátria em fim de século, sem esta idéia de continuidade, sem
o amor de quem amei, sem fé nem trabalho nem amigos nem ideologia?”109.
105 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 84. 106 Idem, p.23. 107 Ibidem, p.40. 108 SÁ, Luís. Soberania e integração na CEE. Lisboa: Caminho, 1987. p.12. 109 MELO, João de. Op.cit. p.218.
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Segundo Maria Manuel Baptista: “a cultura é vida imaginária partilhada, caminho
construído em comum, que parte da vontade dos homens, que encontram razões válidas para
fazer determinadas opções e não outras”110. Uma vez que busca novos referenciais, o
professor permite que o compromisso em proferir a mencionada conferência determine o seu
destino e opta por viver em Poitiers, a partir de onde, mantendo algum distanciamento, poderá
melhor avaliar o resultado das transformações que ocorrem no país. Enquanto reflete acerca
do que pode dizer sobre uma identidade portuguesa em crise, esse “homem suspenso” tenta
resgatar a sua própria identidade, certo de que, para consegui-lo, é indiferente a sua fixação no
próprio país ou num outro.
A partida é previsível, uma vez que a separação da esposa se concretiza; pois
Carminho é um reflexo da pátria, como já foi demonstrado.
Tão fechados em si mesmos, reféns de uma ditadura que sempre dificultou o
intercâmbio e a troca de informações com o exterior, e autocentrados em sua
“hiperidentidade”, os portugueses já não se lembravam que pertencer à Europa, pelo menos
geograficamente, mais do que uma escolha, é um fato. Mas embora o destino do narrador-
personagem seja uma cidade européia, isto não significa que o romance proponha um diálogo
apenas com esse continente: o diálogo proposto é com o exterior, o que se verifica quando o
ele admite uma atração pelo sul e menciona a África e o Brasil, países com os quais defende
que é preciso estabelecer uma nova relação - ou negociação -, lembrando que os equívocos do
passado não eliminaram alguma identificação com eles.
O percurso do narrador-personagem mostra que algo diferente do que se entendia
como ser português começa a se fazer presente, invadindo fronteiras culturais e lembrando
que estas podem ser flutuantes; pois as “diferenças” não são detectadas sempre nos mesmos
lugares, tampouco circunscritas por acidentes geográficos.
110 BAPTISTA, Maria Manuel. “Da cultura européia à Lusofonia: pensar o impensado com Eduardo Lourenço”. Revista Metamorfoses 4. p.51.
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Ciente dos mecanismos que permeiam a construção das identidades, determinadas
muito mais pelo discurso do que pelo percurso, Jorge de Sena declara num verso: “Eu sou eu
mesmo a minha pátria”. Verso que João de Melo utiliza como epígrafe de O Homem Suspenso
e que comporta um axioma que pode ser adotado adequadamente pelo narrador-personagem,
que busca, a partir da tentativa de entendimento do país, o auto-conhecimento.
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5 – VOZES EM CONSONÂNCIA
Uma obra literária já não pode ser considerada original; se o fosse, não poderia ter sentido para seu leitor. É apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e importância.
Linda Hutchen
O Homem Suspenso possui a autonomia inerente a qualquer obra de arte de qualidade,
mas o conhecimento prévio de alguns autores de literatura portuguesa, e também de alguns
aspectos da história e da cultura de Portugal, permite compreender melhor as inquietações
apresentadas pelo narrador-personagem.
A narrativa incorpora diversos fragmentos de discursos; são muitas as citações e
referências usadas pelo narrador-personagem, cuja profissão, professor de literatura, justifica
o seu à-vontade em tornar o seu próprio discurso polifônico através das mesmas. A esse
aspecto que se verifica no romance decidimos chamar de pluridiscursividade, termo que
implica a prática intertextual, como esclarecem Carlos Reis e Ana Cristina Lopes no
Dicionário de Narratologia por eles organizado:
Dependendo estreitamente de contextos específicos, a narrativa incorpora contributos discursivos autônomos e de proveniência diversa, nos quais mediatamente se projetam os componentes sociais, políticos e ideológicos que caracterizam esses contextos. (...) e porque redunda na articulação de discursos variados (político, jurídico, religioso, etc.) que no literário se harmonizam, a pluridiscursividade implica uma prática de intertextualidade, traduzida nesse cruzamento dialógico de múltiplos veios discursivos”. 111
Esse conceito está diretamente relacionado com o de dialogismo, e como defendem os
autores do dicionário, o discurso não é uma prática monológica, pois interage com o discurso
alheio. Essa concepção tende a valorizar o contexto, visto que esse componente é afetado por
uma pluridiscursividade ideológico-social. O dialogismo não se limita à ocorrência do
diálogo, ele implica “a confrontação por vezes tácita (e por isso insusceptível de ser
apreendida de forma linear) de pontos de vista, ideologias e valorações de cuja articulação se
111 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 1987. p.329.
56
deduz a organicidade do universo ficcional representado”112. Confiantes na inquietação
ideológica do autor que cita, sem qualquer constrangimento, fragmentos de discursos alheios,
passamos à observação desse aspecto.
No romance são incorporados ao discurso do narrador-personagem autores, sobretudo,
do cânone português, entre eles: Luis de Camões, Fernando Pessoa, Cesário Verde, Manuel da
Fonseca, Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, José Saramago, Gil
Vicente, Almada Negreiros, Eça de Queiroz, Pero Vaz de Caminha; e ainda lembrados alguns
estrangeiros, como Virginia Woolf e Walt Whitman, poeta muito admirado por Fernando
Pessoa, e que o narrador-personagem admite ser o “poeta da [sua] paixão”113, revelando sua
identificação com o mesmo. A considerar, ainda, a dimensão existencial colocada pela
questão shakesperiana “to be or not to be” (“ser ou não ser”), e pela reminiscência sartriana,
apresentada no título da conferência a ser realizada pelo professor: “L’être et lê néant d’une
identité européene”. O título contempla “a deriva do ser e da cidadania, perda e perdição” da
sua identidade, e revela sua dúvida: “Ir ou não ir a Poitiers, eis a minha única questão.
Prescindo da docência e da universidade. Da saudade de Carminho. Da vida em volta. De toda
a condição. Como sair de mim para fora de mim. Como deixar de ser, de existir”.114
O texto é uma composição de retalhos literários que revelam as impressões do autor
sobre si mesmo e sobre os novos rumos que condicionam o país, uma vez que os fragmentos e
autores citados pelo professor podem direcionar a análise, assumindo uma posição ideológica
a partir da coerência identificada entre os autores e, consequentemente, a proposta de reler os
discursos da história, privilegiando a Literatura.
112 REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. Dicionário de Narratologia. Coimbra: Almedina, 1987, p.102 113 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.125. 114 Idem, p.147.
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O que se apresenta como um monólogo interior, desenvolvido pelo narrador-
personagem, comporta uma pluralidade absorvente, com pareceres diversos, porém não
contraditórios, e permite repensar a atuação portuguesa no mundo em função da presença ou
ausência das vozes selecionadas. É um diálogo com valor de memória e que, nesse sentido,
estabelece uma resistência ao discurso que se impõe à população.
Não sendo lacônico, mas, tampouco loquaz, é através da literatura que o narrador-
personagem melhor transmite “o que lhe vai na alma” durante o estado de suspensão em que
se encontra. Alguns fragmentos literários, para serem identificados, talvez exijam do leitor um
conhecimento prévio dos textos a que pertencem, outros, porém, são apontados pelo próprio
emissor do discurso, como passamos a demonstrar.
5.1 – Retalhos literários construindo as intenções do texto
A construção de um texto é a previsão de um leitor que o há de ler.
Umberto Eco
No capítulo “Olhar o romance e nele o ‘olhar’”, mais precisamente no subitem “o
olhar autônomo que perscruta a cidade”, mostramos que o professor se entrega a uma
deambulação durante a qual divaga e avalia sua situação logo que se separa de Carminho.
Nesse contexto, ele se permite guiar por um olhar que descortina livremente a cidade, quando
as casas de Lisboa despertam singular atenção e, como já vimos, revelam sua dualidade. Um
olhar que concentra em si a inteligência e as paixões:
Sim, as casas de Lisboa possuem uma espécie de concretude partida ao meio, entre o real e onírico. Metade da sua realidade consiste naquilo que nos é quotidiano, feito da nossa razão e à nossa medida: a idade, as coisas que nos afrontam ou nos dão prazer – os trabalhos e os dias, a estranheza e a familiaridade de tudo o que se pode tanger, tocar, possuir. A outra metade tem a dimensão do sonho. 115
115 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.12
58
Para transmitir a idéia de cotidiano sugerida pelo lado real da casa, em contraposição
ao seu lado onírico, o protagonista utiliza a expressão “os trabalhos e os dias”, título de um
poema clássico de Jorge de Sena, inspirado no ainda mais clássico poema homônimo de
Hesíodo, em que o processo da escrita surge como exercício de apreensão ou recriação da
realidade, como se percebe nos seguintes versos: “Uma corrente me prende à mesa em que os
homens comem. / E os convivas que chegam intencionalmente sorriem / e só eu sei porque
principiei a escrever no princípio do mundo / e desenhei uma rena para a caçar melhor
(...)”116. É o que faz o autor do nosso romance: leva-nos a observar “desenhos” literários que
estampam uma realidade específica para que consigamos melhor absorvê-la, repete vozes que
falam de Portugal, mesmo que não sejam as que correspondem ao discurso oficial, insistindo
numa pluridiscursividade que se apresenta com incomum intensidade desde o primeiro
capítulo do romance, reforçando a dimensão atribuída à literatura no mesmo.
Uma dessas vozes refere-se a um dos principais símbolos das navegações marítimas
portuguesas – o rio Tejo, ao qual se atribui a dimensão de porta para o mundo. Para o
professor: “o Tejo não é um rio (...) o Tejo não é senão um mar em pequeno”117. Como
patrimônio de muitos, deixou de pertencer exclusivamente àqueles que estão fisicamente
próximos à sua margem e, como declara o “mestre” Alberto Caeiro através dos seus versos,
valorizando aquilo que lhe pertence ou, melhor ainda, o lugar à que pertence: “o Tejo não é
mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / Porque o Tejo não é o rio que corre pela
minha aldeia”118. Evocá-lo nesse sentido é lembrar que as novidades vindas de fora não são
necessariamente mais importantes do que a autenticidade que resiste no interior do país, para
onde o autor entende que os portugueses devem dirigir o olhar e, consequentemente, cuidar.
116 SENA, Jorge de apud MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. Cf. poema Os trabalhos e os dias, no anexo A. 117 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.13. 118 Cf. poema de Alberto Caeiro, O guardador de rebanhos, no anexo B.
59
No que se refere, ainda, às navegações, os barcos parados nas docas compõem uma
miragem coletiva que povoa o imaginário dos portugueses; o que torna o verso de Eugénio de
Andrade, lembrado pelo professor, tão adequado para ilustrá-la: “os navios existem e existe o
teu rosto encostado ao rosto dos navios”119. Nesse momento do romance, mais uma vez, à
saudade atávica do passado marítimo português se opõe à pequenez do país, quando o
professor se refere aos diferentes barcos: “Porque há os barcos que ondulam nas águas da
minha memória. E os que vogam continuamente entre duas margens: de Lisboa para Cacilhas,
Porto Brandão, Trafaria, Barreiro ou Montijo – e volta”120. No poema “As palavras
interditas”, ao qual pertence esse verso, a imagem da criança que “passa de costas para o mar”
incita à observação da terra, sugerindo um retorno ao país abandonado em conseqüência de
uma diáspora nem sempre desejada: “Na areia branca, onde o tempo começa, / uma criança
passa de costas para o mar. / Anoitece. Não há dúvida, anoitece. / É preciso partir, é preciso
ficar”121.
A proposta de um olhar desvinculado do fascínio exercido pelo mar já havia sido feita
por outro poeta português, com o qual o diálogo estabelecido é particularmente importante:
Cesário Verde. Esse “claro poeta metafísico de Lisboa”122 é lembrado no romance quando o
narrador-persoangem, depois de ter conferido a “soturnidade e melancolia das ruas ao
anoitecer” descritas em “O Sentimento dum Ocidental” 123, e tendo dormido muito mal no
próprio carro, se mostra esperançoso com a luz de um novo dia: “Mas vai nascer uma manhã
lavada e augusta, dessas que fazem lembrar o mármore ou o alabastro. Por enquanto, vibra
uma imensa claridade crua, como no verso de Cesário Verde”.
119 ANDRADE, Eugénio apud MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.14. 120 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.14. 121 Cf. poema de Eugénio de Andrade, As palavras interditas, no anexo A. 122 MELO, João de. Op.cit. p.51. 123 Cf. poema de Cesário Verde, O Sentimento dum Ocidental, no anexo C.
60
Em suas escolhas, João de Melo insiste na defesa de um olhar para o interior do país,
como observa num outro comentário acerca de Lisboa: “É uma cidade de cidadãos
desnaturados no país do contínuo movimento para fora – país esse que ainda não iniciou o
movimento inverso, para dentro de si”124 . É preciso lembrar que é na periferia de todas as
cidades do mundo que reside a essência das mesmas, como mostra o narrador-personagem:
Há qualquer coisa de íntegro nas ruas que sobem até esta metade do céu - esta metade de céu que lhes dá cor, beleza e altura, mas da qual, todavia, logo descem as ruas para o lado de lá, um pouco mais longe do mar e já bem dentro da terra. É onde moram a pobreza o esquecimento a ignorância, por vezes também a ignomínia das gentes de província, o que há de secreto na periferia de todas as cidades do mundo, e que não convém ser visto nem mostrado aos que vêm de fora.125
Longe do mar, no seu lado oculto, Portugal se revela, visto que o país não se resume ao
cosmopolitismo da capital. As ilhas, espácio-temporais que se verificam em Lisboa, são uma
realidade permanente na periferia, e devem ser respeitadas, pois são elas que melhor
apresentam o que efetivamente é o país.
A lírica camoniana resume as impressões do professor diante da resolução de Carminho,
quando avalia suas perdas, que sabe irrecuperáveis. A dor da morte do seu amor pode ser
expressa por versos desse emblemático poeta: “E se vires que pode merecer-te / Algua cousa a
dor que me ficou / Da mágoa, sem remédio, de perder-te”126, uma vez que ele chama
Carminho de alma gentil, e esta o abandona; seu relacionamento aparentemente seguro se
dissolve, a mulher rejeita a desatenção do companheiro indiferente que a “olhava mas não via.
(...) Não via porque, já nesse tempo cotidiano e distraído, ver a mulher passara a ser mais ou
menos como olhar a rua num dia de chuva e simplesmente dizer que chovia”127. Uma vez que
existe em Carminho uma correspondência com a pátria, o autor sugere que também esta pode
se tornar irreconhecível se for negligenciada. Assim como alertou através do “olhar
124 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p. 80. 125 Idem, p.12. 126 Cf. poema de Luís de Camões, Alma minha gentil, que te partiste, em anexo. 127 MELO, João de. Op.cit., p.40.
61
autônomo” sobre a cidade de Lisboa, a necessidade de ter atenção às alterações do país, de
olhar atentamente ao que acontece nele, volta a ser defendida. Olhar e cuidar, ou seja, agir,
pois um simples voyeurismo à Jose Matias, personagem central do conto homônimo de Eça
de Queirós, também lembrado, implica igualmente uma perda.
É também um verso de Camões que revela ao leitor a disposição de Carminho,
“ formosa mas ainda não segura” 128, ao diminuir a tensão diante de uma resposta do marido
“no qual ecoam o riso trocista de Gil Vicente, o disfarce manhoso de Fernão Mendes Pinto e a
veemência final do Poeta”:
‘Não me comove muito’, diz-lhe, ‘sair à rua, desaparecer deste bairro, deixar para trás, na boca e nos olhos dos vizinhos, mais uma lenda sobre o marido ausente que se foi às suas longínquas e desconhecidas partes da Índia, disposto a enriquecer ou a perder-se por lá contra os perros danados da veniaga e dos mares’.129
Lembrar o heroísmo de antigos navegadores torna-se cômico, ou porque nenhum feito
moderno se aproxima da grandeza dos tempos passados, ou porque, como é sabido, as
motivações da maioria dos bravos homens que se aventuravam no mar nem sempre foram as
mais nobres, terão sido mesmo o resultado de diferentes imposições: fome, fuga ou
condenação ao desterro.
A angústia evocada pelo heterônimo pessoano Álvaro de Campos no verso “Se te
queres matar, por que não te queres matar?”130, quando confessa o seu desespero europeu e
Frei Bernardo lembra que esse sentimento não é exclusivamente dele, ajuda o leitor a perceber
como essa angústia condiciona as decisões do professor. Angústia projetada, também, pelo
universo ficcional, e mesmo biográfico, de Virginia Woolf, lembrado quando as
reconciliações com Carminho ainda eram possíveis, embora se limitassem ao plano físico.
128 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 138. 129 Idem, p.137. 130 Ibidem, p. 210. Cf. poema de Álvaro de Campos, Se te queres, no anexo B.
62
Outra voz lembrada no texto é a de Manuel da Fonseca, através da menção a um conto
de sua autoria: “O Largo”, no qual uma localidade se sente dividida diante da transformação
do largo da vila, antes o centro do universo e agora um pequeno espaço que já não desperta
qualquer interesse especial. Porque o mundo é outro, e se traz com ele a possibilidade de
participarmos dos acontecimentos, identificarmos mentiras e verdades, traz também a
destruição daquilo que se conhece, gerando insegurança e instabilidade naqueles que não
compreendem as mudanças bruscas que invadem o seu cotidiano:
Hoje, as notícias chegam no mesmo dia, vindas de todas a partes do mundo. Ouvem-se em todas as vendas e nos numerosos cafés que abriram na Vila. As telefonias gritam tudo o que acontece à superfície da terra e das águas, no ar, no fundo das minas e dos oceanos. O mundo está em toda a parte, tornou-se pequeno e íntimo para todos. Alguma coisa que aconteça em qualquer região todos a sabem imediatamente, e pensam sobre ela e tomam partido. Ninguém já desconhece o que vai pelo mundo. E alguma coisa está acontecendo na terra, alguma coisa terrível e desejada está acontecendo em toda a parte. Ninguém fica de fora, todos estão interessados. (...) Este vasto mundo onde qualquer coisa, terrível e desejada está acontecendo. 131
Ao despedir-se de Carminho, o professor tenta evitar discussões que inviabilizem um
relacionamento amigável entre eles, ou seja, ele defende uma reconciliação com a pátria.
Zeloso pelo seu bem-estar, pergunta se ela lembra do poema “O jardim e a casa”, de Sophia
de Mello Breyner, no qual diz ver uma profecia: “a profecia de um verso sábio e sagrado
como a palavra dos deuses”132, que traz consigo a promessa de recuperação da unidade e, no
caso específico, da resposta para suas dúvidas referentes à própria identidade, sua busca de
harmonia com presenças várias.
As vozes percebidas no espaço romanesco não se resumem a esses exemplos; outros
podem ser acrescentados, acentuando o caráter ideológico implícito no conceito de
pluridiscursividade, pois os autores nacionais eleitos pelo professor têm em comum uma
acentuada “portugalidade” mesmo sem exaltar o país; alguns são célebres, sobretudo, por
131 FONSECA, Manuel da. “O Largo”. In.: MELO, João de (org.). Antologia do conto português. Lisboa: Dom Quixote, 2003. p. 253 e 255. 132 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.139.
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criticá-lo, outros o deixaram definitivamente, mas ainda que lamentem sua nacionalidade, eles
não a negam.
É a Literatura que melhor retrata o país, e também ela tem versões diferentes dos fatos
e momentos históricos. Para confirmar essa afirmação destacamos uma outra voz presente no
romance, que é sem dúvida a principal delas: a de Fernão Mendes Pinto, inserida através das
citações retiradas de sua Peregrinação. Pela importância que lhe é atribuída pelo narrador-
personagem dedicamos também a ela um espaço próprio neste capítulo.
5.1 - A Peregrinação de Mendes Pinto em O homem suspenso
A intertextualidade se apresenta como uma maneira de abrir o texto, se não ao mundo, pelo menos aos livros, à biblioteca. Com ela, passa-se do texto fechado ao texto aberto.
A. Compagnon. In: O Trabalho da citação.
Em O Homem Suspenso, quando a formação acadêmica do narrador-personagem é
explicitada, o leitor descobre sua preferência pela leitura e estudo da ficção historiográfica, a
que se dedicou obsessivamente. A mesma literatura que construiu todo um imaginário de
nação, visto ser este pautado, sobretudo, naquilo que foi narrado pelos escritores portugueses,
e cujos objetivos ele questiona:
A vida que escolhera sempre girou em torno das teorias da literatura. (...) foi sina sua dar-se à leitura e ao estudo da ficção histórica. Fez disso a sua própria sombra. Lidou com o excesso de zelo dos lentos e minuciosos cronistas, com a pena plebéia e cortesã de Pero Vaz de Caminha, com os náufragos da ‘História Trágico-Marítima’, com o livro grande de ‘Peregrinação’. Com os romancistas históricos de todos os séculos, estudou e viu como se perpetuou o espírito que está sempre de passagem sobre o tempo das gerações. Em movimento de fuga, a bordo do tempo e do vento que voga e que preside ao rumo e à quilha dos navios, leu ele toda essa vasta literatura do mundo, escutando os escritores, ouvindo os países, atravessando assim os mares e os continentes. Mas só agora crê que leu tudo para nada. Sem qualquer benefício para ninguém. Leu para se perder, para inventar e construir a sua perdição. 133
133 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.100-1.
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O diálogo que se estabelece no romance com a narrativa de Fernão Mendes Pinto é o
que nos interessa, agora, mais especificamente. Tendo deixado a casa com pouco mais do que
a roupa do corpo, o narrador-personagem leva em sua pasta, além da tese de Doutorado que
atira no rio Tejo, dois tomos da Peregrinação, e os trechos por ele lidos são reproduzidos no
romance em itálico, o que garante a sua identificação mesmo pelos leitores que nunca
ouviram falar do texto a que pertencem.
O primeiro fragmento de Peregrinação é inserido no romance durante essa situação
que envolve o abandono da tese de Doutorado, remetendo à importância do texto de Camões,
salvo das águas pelo seu criador ao contrário do seu, que se desmancha no rio. Ao mostrar a
renovação de um pacto de paz, conveniente às partes envolvidas no relato de Mendes Pinto, o
professor aponta para a reconciliação com os textos que narram os grandes feitos da nação,
mas sua opção propõe a leitura de outros discursos e, consequentemente, a observação dos
fatos a partir de outros ângulos:
Dizer-te, senhor capitão, quão agastada e triste está a rainha pela morte de teu filho e dos mais portugueses que na peleja de ontem morreram, será coisa impossível, porque afirmadamente te juro por vida sua e por esta linha de Brâmane que professei de pequeno, que tão afrontada ficou quando soube de teu desastre e desventurado sucesso, como se no dia de hoje lhe fizessem comer carne de vaca na porta principal do pagode onde seu pai jaz enterrado. E por aqui, senhor, julgarás quanta parte toma do teu livro. Mas já que no feito não pode haver o remédio que ela deseja, te pede e roga que de novo lhe confirme as pazes que os governantes passados lhe concederam, pois trazes poder do senhor Vice-rei para isso, e que ela te afirma e te dá a sua palavra de mandar logo queimar a galé e ordenar aos turcos que se vão fora da sua terra, porque para mais, como tu sabes, não tem ela poder; e isto logo no fim de só quatro dias, que para isso te pede de prazo. O capitão-mor, entendendo quão importante coisa esta era, lhe aceitava promessa e lhe concedeu de novo as pazes, as quais logo ali foram juradas e confirmada de ambas as partes com as cerimônias costumadas entre aqueles gentios.134
A escolha do professor desperta o interesse em (re)visitar essa obra emblemática do
séc. XVI que tem tanto a dizer sobre a expansão marítima portuguesa e sobre os portugueses.
Sobretudo, porque a obra não estava na pasta do professor por acaso, nem foi retirada da
134 PINTO, Fernão Mendes apud MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.31.
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estante de sua biblioteca aleatoriamente, mas escolhida com cuidado, sendo um texto que ele
diz conhecer muito bem e que considera a “história secreta da vida portuguesa”, além de
confessar uma identificação com o respectivo autor que ultrapassa o âmbito da coerência
ideológica que permeia a sua escolha: faz deles um mesmo homem (no caso, o mesmo
personagem), pois a alma é concebida, pelas religiões tradicionais, como um duplo do homem
vivo135 e o professor sente Fernão Mendes Pinto como um duplo da sua alma:
Limita-se, por isso, a retirar da estante os dois grossos tomos de “Peregrinação”. Por agora, basta-lhe o desejo de partir em busca das tuas loucas viagens, dos teus passos perdidos, da tua linguagem marítima fluvial por vezes excessiva, das tuas indistintas verdades manhas mentiras, ó meu capitão de todos os mares, ó marujo Fernão Mendes Pinto, ó desde sempre duplo da minha alma.136
Escrito por Fernão Mendes Pinto como um relato contínuo, a Peregrinação foi
dividida pelo cronista oficial Francisco de Andrade, a posteriori, em 226 capítulos, dos quais
apenas o primeiro e o último não se referem à viagem empreendida pelo narrador-
personagem; ou seja, ao antes da partida e ao depois do regresso. A viagem é o que
verdadeiramente importa; o que confere à obra um caráter utópico, uma vez que “a viagem é
também o caminho para a utopia”137, como explica Luis de Sousa Rebello, ela configura a
busca de um lugar ideal.
Num ensaio já mencionado, onde discorre sobre o romance O Homem Suspenso, a
professora Ângela Beatriz Faria comenta o recurso utilizado pelo autor. Segundo ela: “a
ressonância cultural e intertextual permite a análise da identidade portuguesa num tempo em
crise. O sujeito do discurso, ao abrir o livro amado, ‘abre-se’ para nós, revela-se e à
135 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 19ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005. p.353. 136 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.104. 137 REBELLO, Luís de Sousa. “Viagem e utopia em Fernão Mendes Pinto”. XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992. p.129.
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identidade pátria”138. Essa abertura não se resume àquela proporcionada por esse diálogo
estabelecido com a narrativa de Mendes Pinto, ela se estende ao movimento empreendido
pelo próprio professor, à peregrinação que este empreende após sua separação de Carminho,
quando revisita seus espaços referenciais – casa paterna, trabalho, partido político, sindicato,
casa da amante e seminário. A Peregrinação dialoga com o texto de João de Melo em duas
instâncias: literária e pessoal, ou seja, em relação ao discurso e ao percurso, convidando o
leitor a participar não apenas do romance que tem em mãos, mas também do que tem em
mente, resultado de suas leituras e experiências, que é evocado pelas citações incorporadas ao
discurso do narrador-personagem e pelos espaços referenciais por onde ele passa.
Lembramos que o diálogo é uma prática intertextual e, sendo assim, permite ao leitor
interagir com o texto mais do que com o autor desse mesmo texto. De acordo com Linda
Hutcheon:
A intertextualidade substitui o relacionamento autor-texto, que foi contestado, por um relacionamento entre o leitor e o texto, que situa o locus do sentido textual dentro da história do próprio discurso. Na verdade, uma obra literária já não pode ser considerada original; se o fosse, não poderia ter sentido para seu leitor. É apenas como parte de discursos anteriores que qualquer texto obtém sentido e importância. 139
A escolha da Peregrinação reforça a proposta de releitura do passado português
sugerida pelo romance de João de Melo, mais especificamente do período glorioso das
grandes navegações, momento histórico que inspirou personagens e discursos que
permanecem, e que tanto influenciou na construção da identidade portuguesa. Esse aspecto
tem sido destacado neste mesmo trabalho e insistimos nele, pois como diz Joaquim Barradas
de Carvalho, no texto “Rumo de Portugal. A Europa ou o Atlântico?”, onde defende que o
138 FARIA, Ângela Beatriz de Carvalho. “A perda da iluminada casa portuguesa no firmamento europeu”. In: SILVEIRA, Jorge Fernandes da (Org.). Escrever a casa portuguesa, Belo Horizonte: UFMG, 1999. p.404. 139 HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago. 1991, p.166.
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rumo de Portugal, definitivamente, não seria a Europa: “Toda a história de Portugal gira em
torno dos descobrimentos marítimos e da expansão dos séculos XV e XVI”140.
O romance reitera essa afirmação, uma vez que durante a errância pelas ruas de
Lisboa, num momento em que avalia o ingresso de Portugal na União Européia, o professor
reflete sobre a história desse país de marinheiros.
A cidade se mostra impregnada pelo passado marítimo português. Através da
afirmação: “Para mim Lisboa são os barcos e os adjectivos”141, o nosso “homem suspenso”
lembra que Portugal é um país marcado pelo signo das navegações ou, pelo menos, do que se
fala delas: aquilo que a história e sobretudo a literatura consagraram no decorrer do tempo.
Ele continua assim sua reflexão, transportando o sentido das navegações marítimas para o
âmbito existencial, uma vez que os discursos condicionam a atribuição de valor dispensada
aos diferentes aspectos relativos ao processo de construção de identidades: “Navegar
indistintamente, entre a mentira e a realidade, entre a visão e a invisibilidade, sem conhecer a
nitidez nem a consciência de nada; dizer que a cidade só existe pela imaginação e por escrito,
apenas como invento, desejo e expressão de literatura”.142
Literatura e história já foram consideradas como ramos da mesma árvore do saber,
pois embora não seja uma narrativa, a história (ou o passado) só nos é acessível em forma
textual, seja esse texto oral ou escrito. Voltamos a Linda Hutcheon para esclarecer essa
afirmação. Segundo ela: “O passado realmente existiu, mas hoje só podemos ‘conhecer’ esse
passado por meio de seus textos, e aí se situa seu vínculo com o literário”143.
140 CARVALHO, Joaquim Barradas de. Rumo de Portugal. A Europa ou o Atlântico?. Lisboa: Livros Horizonte, 1974. p. 43. 141 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.13 142 Idem, p.13 143 HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Trad.Ricardo Cruz. RJ: Imago. 1991. p.168.
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A aproximação entre esses dois diferentes, mas também próximos, ramos do saber
resulta do fato de um texto histórico (que por assim se designar pretende ser o relato de algo
que aconteceu deveras), sempre ser apenas uma versão, uma pseudo-verdade, mas nunca a
totalidade de um momento, fato ou situação qualquer. Algumas verdades sobre determinados
momentos históricos poderão nunca ser conhecidas ou simplesmente preteridas, uma vez que
a escolha, ou mesmo a escrita dos textos que irão imortalizá-la deverá atender aos interesses
dos vencedores de um momento específico da história.
Tanto a história, com a sua versão condicionada pelo poder, quanto a literatura,
preenchendo lacunas igualmente prováveis a partir de outros pontos de vista, podem
contribuir com os discursos que irão interferir no processo de construção de identidades.
Afinal, “as identidades são construídas dentro do discurso”144, como lembra Stuart Hall no
ensaio “Quem precisa de Identidade?”. Ao concordarmos com essa afirmação e com a
interpenetração da história e da literatura, concordamos também que refletir sobre a
identidade portuguesa implica um olhar sobre o período das grandes navegações e uma
releitura das obras que o retratam.
Segundo Hall, uma narrativa contada e recontada nas histórias e literaturas nacionais é
um dos elementos que contribuem para construir o imaginário de uma nação145. Devido ao seu
impacto no imaginário português, visto ser uma obra literária que se confunde com um texto
histórico, a sua própria narrativa de nação, o poema épico Os Lusíadas, de Luís de Camões,
seria naturalmente eleito para permear essa reflexão; no entanto, em O Homem Suspenso, isso
não acontece, embora Camões seja uma voz presente no romance através da sua lírica.
João de Melo abdica até mesmo da veracidade admitida nas descrições de Pero Vaz
Caminha ou nos relatos de náufragos portugueses compilados por Bernardo Gomes de Brito –
144 HALL, Stuart. “Quem precisa da Identidade?”. In: Identidade e diferença. A perspectiva dos Estudos Cuturais. 4ed. Org. Tomaz Tadeu da Silva. Petrópolis-RJ: Vozes, 2005. p.109. 145 HALL Stuart. A identidade cultural na Pós-modernidade. 7 ed. Trad.Tomas Tadeu da Silva; Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A editora. 2002. p.52.
69
textos que são do conhecimento do narrador-personagem como se percebe na primeira citação
deste capítulo-, e privilegia a leitura de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, cujas
peripécias exageradamente descritas no livro valeram ao autor o trocadilho: “Fernão Mendes?
Minto!”. Excessos que transformaram a pretensa autobiografia desse escritor numa
envolvente narrativa de viagem cujo valor é, sobretudo, literário; mas nem por isso ela se
torna menos verdadeira, pois o poder da linguagem ultrapassa os limites da mera descrição e
transmite uma posição ideológica.
Num trabalho intitulado “A figuração do espaço estranho n’Os Lusíadas e na
Peregrinação”, a partir da análise desse elemento do texto, Raquel Trentin Oliveira
demonstra a diferença dos objetivos dessas duas narrativas, que retratam esse mesmo
momento histórico, o das grandes navegações portuguesas. Segundo ela:
A construção do espaço do outro na Peregrinação mostra-se um tanto diferente d’Os Lusíadas, mesmo que o trajeto das viagens seja semelhante, uma vez que a forma e o objetivo das narrativas são diversos. O poema camoniano é governado pela convenção épica que, sobretudo, deve exaltar os ideais de sua terra em contraste com as estranhas que, na maioria, são encaradas como inimigas; traço intensificado ali pela necessidade de elevar a fé católica e, por conseguinte, rebaixar as ‘terras viciosas’. De qualquer maneira, o espaço serve principalmente para situar as ações dos ‘barões assinalados’, as quais, por si só, sustentam o interesse pela narrativa. Por seu lado, a Peregrinação concentra o interesse exatamente sobre a descoberta do exótico, da flora, da fauna, das edificações estranhas, dignas de admiração.146
Essa oposição entre as duas obras não se limita à descrição do espaço físico, estende-
se ao caráter dos heróis, às condições em que acontecem as viagens, aos objetivos, etc. Tais
objetivos levam Camões a ressaltar a diferença do outro, conferindo aos portugueses uma
superioridade que de outra maneira não se confirmaria.
146 OLIVEIRA, Raquel Trentin. “A Figuração do espaço estranho n’Os Lusíadas e na Peregrinação”. Anais do XX Encontro da ABRAPLIP, realizado no Instituto de Letras da UFF de 23 a 26 de agosto de 2005.
70
Quanto a Mendes Pinto, a descrição do que lhe parece diferente no outro muitas vezes
é uma reprodução de si mesmo, de sua cultura, e resulta muito mais numa crítica à sociedade
a que pertence do que numa exaltação dos valores da mesma. A igreja é um dos seus
principais alvos e, como se percebe no trecho a seguir, a descrição de costumes e crenças que
lhe causariam tanta surpresa mostra, entre outros, a prática católica de culto à imagens e
venda de indulgências. Disfarçadamente, o narrador-personagem assume uma posição
favorável à Reforma da Igreja Católica, proposta por Lutero, o que na época não implicaria
um risco menor do que se aventurar no aliciante e enigmático mar:
Entre algumas coisas notáveis que aqui vimos, foi uma rua de mais de cem embarcações carregadas de ídolos de pau, dourados de muitas sortes, que se vendiam para se oferecerem nos pagodes, e fora isto, pés, e pernas, e cabeças, que homens doentes compravam para oferecerem por sua devoção. Há também outras embarcações toldadas de seda, em que se fazem muitas farsas e muitos jogos de diversas maneiras, a que muita gente concorre para seu passatempo. Há outras em que se vendem letras de câmbio para se passar dinheiro da terra para o céu, de que estes sacerdotes de Satanás lhes prometem muitos ganhos e interesses, e lhes afirmam que sem estes câmbios se não podem salvar por nenhuma via, visto ser Deus mortal inimigo dos que não dão esmola aos pagodes, e disto lhe dizem tantas mentiras e lhes pregam tantas patranhas, que os coitados deixam muitas vezes de comer para lho darem.” 147
A incursão da literatura na história nunca é inocente. Como nenhuma escolha é
gratuita e a própria ausência está impregnada de intencionalidade, entendemos que a opção do
professor, num momento em que vive uma significativa crise de identidade, configura a
proposta do autor de revisitar o passado, como temos defendido, e assim repensar os discursos
que construíram a identidade portuguesa ou deveriam contribuir nessa construção. Segundo
Linda Hutcheon, a pluralização discursiva revela que o centro da narrativa histórica e fictícia
é disperso. Sendo múltiplos os discursos, “as margens e as extremidades adquirem um novo
valor”148. Ou seja, o “ex-cêntrico” passa a receber atenção e, nesse sentido, a Peregrinação é
147 PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Versão para português atual de Maria Alberta Menéres. Lisboa: Edições Afrodite, 1979. p. 348-9. 148 HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Trad.Ricardo Cruz. RJ: Imago. 1991. p.170.
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valorizada pelas verdades camufladas na sua improvável, mas literariamente possível,
aventura.
A construção de um novo conceito de “nação”, pautado no respeito a diferentes vozes,
como defende João de Melo através da proposta de releitura de discursos, é um processo
identificado por Isabel Allegro de Magalhães no ensaio “Capelas imperfeitas: Configurações
literárias da identidade portuguesa”. Segundo ela:
Podemos antever o interesse de uma reformulação do velho conceito de ‘nação’ num conceito novo que, por um lado, retenha e mantenha vivos os traços fundamentais de uma cultura que atravessou oito séculos de coesão, para alem de todos os acidentes de percurso que possamos nomear. E, por outro lado, um conceito que não se enuncie a uma só voz, centralizada por um qualquer poder político ou cultural interessado em manter uma certa imagem da História a seu próprio gosto, mas antes um conceito que passe a ser formulado em múltiplos lugares de enunciação, tanto do centro como das margens da nação.149
O valor atribuído ao espaço da periferia é reiterado em O Homem Suspenso através da
insistência do narrador-personagem em observar o que está à margem, em estender o olhar
para além do que se pode ver na cidade de Lisboa, questionando as intenções da classe
dirigente, nem sempre atenta ao país que efetivamente tem nas mãos, ou ao que realmente faz
falta à população. Sendo também Mendes Pinto um indivíduo que observa as margens, o
professor se aproxima daquele de quem se sente como seu duplo, ou seja, com quem se
identifica ideologicamente. Aproximação que se verifica, também, na sua opção de deixar o
país e se permitir conhecer o Outro, como o fez Fernão Mendes Pinto. Em O Homem
Suspenso, o professor muda-se para Poitiers, onde deverá apresentar uma comunicação sobre
identidade, numa língua estrangeira; ele vai de encontro ao Outro, se abre ao diálogo.
149 MAGALHÃES, ISABEL Allegro de. “Capelas imperfeitas: configurações literárias da identidade portuguesa”. In: RAMALHO, Maria Irene; RIBEIRO, António Sousa (Orgs). Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos da identidade. Coimbra: Afrontamento, 2001. p. 310.
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A partida definitiva do professor, que se confirma no final do romance, não desperta
uma grande surpresa, pois fora prenunciada num episódio relatado no nono capítulo, quando
ele tenta conseguir um quarto na “Residencial Alexandria” no qual possa permanecer com o
cão que decide adotar. No prédio, que pode ser comparado a um “galeão naufragado, sem
tempo e sem lugar no [seu] imaginário de Lisboa”150, o professor especula sobre a
nacionalidade do atendente, fazendo lembrar a própria curiosidade de Mendes Pinto sobre o
Outro, seu empenho em ultrapassar o estranhamento inicial. Um trecho do referido capítulo
esclarece a situação mencionada, e também exemplifica a forma como acontece a introdução
dos fragmentos da Peregrinação no romance de João de Melo, sempre em itálico e entre
aspas:
“Um indiano nascido numa antiga colônia portuguesa”, acrescento, pensando que tudo deve ser inato e consuetudinário num homem como este, que não aprendeu a disfarçar o estigma nem o temperamento histórico que caracteriza o meu modo de falar o português. “Não tem idade para tanto”, penso. “Nem retornado nem português. Um merdas, um imigrante qualquer”. Assim, estou perante um inimigo, um estrangeiro, um terrorista ou um infiel, não duvido. “Tendo-lhes eu perguntado se acreditava que o mundo era governado por um único Deus, respondeu-me que não senhor, tal não era sua fé, pois que assim como homens nascem para se constituírem em família, também os deuses amaram suas deusas, e delas nasceram os divinos filhos dos deuses.”151
A passagem pela residencial configura um episódio surreal, sugerindo uma inesperada
entrada na ante-sala de um tribunal do juízo final, quando a descrição do “patrão”, o senhor
Deus Dei, feita num tom confidencial pelo atendente, remete ao próprio Deus católico:
onisciente, onipresente e onipotente; na concepção autoritária que se verifica no velho
testamento:
Ele não aceita que por tudo e por nada o vão lá acima perturbar. É um noturno, um temperamental. (...) Está sempre a impor silêncio e respeito a toda a gente. Com aquele apurado e insuportável ouvido de tísico, próprio de quem traz o mistério do tempo consigo, nada lhe escapa, sempre a par de tudo o que se passa nesta maldita residencial. Ele não sabe só o que acontece
150 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996, p.81. 151 Idem, p. 85.
73
cá dentro, não senhor. Topa também os pensamentos, as tentações, os pecados do mundo. (...) O senhor pode perguntar-lhe o que bem quiser, terá resposta para tudo.152
Antes que o funcionário volte com uma resposta à sua solicitação, o professor
abandona o local, deixando para trás esse resquício de passado histórico anacronicamente
instalado na cidade. Nesse momento um outro fragmento da Peregrinação é introduzido no
romance, onde se verifica uma importância excessiva atribuída ao capitão português António
de Faria, também ele retratado como um Deus, assim como o foi o senhor Deus Dei:
Nesta lantea se embarcou Antônio de Faria, e chegando ao cais com grande estrondo de trombetas, charamelas, atabales, pífaros e outros muitos tangeres de chins, malaios, champás, siameses, bornéus, léquios, e outras nações que ali no porto estava, às sombras dos portugueses, por medo dos corsários de que o mar andava cheio, o desembarcaram dela em uma rica cadeira de estado, como se fosse chaém do governo dos vinte e quatro supremos que há neste império. Depois de ser desembarcado em terra e lhe serem dados os parabéns de sua chegada, o vieram ali visitar os mais nobres e ricos, os quais por cortesia se prostavam por terra, no que houve alguma detença, e feito isto se chegaram a ele dois homens fidalgos e velhos residentes da mesma terra, um chamado de Tristão de Gá e o outro Jerônimo do Rego, e lhe fizeram uma fala em nome de todos, de muitos louvores seus com termos assaz eloqüentes e elegantes, em que na liberdade o punham acima de Alexandre, e o provavam com razões muito vivas e verdadeiras, e no esforço o avantajavam a Capitão, Aníbal, Pompeu e Júlio César, e outras muitas coisas a este modo.153
A questão religiosa, a reflexão sobre a “justiça divina”, que o professor interpreta
tantas vezes como injusta, é constantemente apresentada no romance de João de Melo, como
foi observado pela passagem do professor pelo seminário, no capítulo que trata da perda dos
referenciais identitários.
Instigados pela proposta do autor, enveredamos pela Peregrinação de Mendes Pinto, e
pela leitura de trabalhos inspirados nessa narrativa para embarcar na transgressão de O
Homem Suspenso, configurada na eleição de um texto “mentiroso”, como o primeiro teria
sido entendido, para dialogar abertamente. Texto que desmistifica a notoriedade de alguns
152 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.87. 153 PINTO, Fernão Mendes apud MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 89.
74
reis, lembrando que esta é o resultado de uma literatura que os enaltece e não de um poder
maior do que detinham os reis dos locais que encontraram. Aliás, o pioneirismo dos
descobrimentos só foi atribuído aos portugueses pela particularidade de terem conseguido
voltar ao seu país de origem e divulgar os seus feitos. Quando chegaram a Moçambique, por
exemplo, os árabes já estavam lá instalados. Uma observação de Fernão Mendes Pinto lembra
que terem contado os seus feitos foi o seu maior mérito, pois sua grandeza foi alcançada pelo
discurso:
- É certo que muito grandes reis há no mundo de que os nossos antigos escritores não tiveram nenhuma notícia para fazerem menção deles nas suas escrituras, e um destes reis de que mais caso se deveria fazer, parece que deve ser o destes homens [os chins], porque segundo o que dele temos ouvido é mais rico e mais poderoso e senhor de muito maior terra que o Tártaro e o Cauchim, e quase que se pudera dizer se não fora pecado, que emparelhava com o filho do Sol leão coroado no trono do mundo.154
5.2.1 – Diferentes interpretações da Peregrinação de Mendes Pinto
Dentre os trabalhos que observamos sobre essa obra renascentista, destacamos três
análises tão distintas quanto pertinentes, apresentadas pelos pesquisadores António José
Saraiva, Rebecca Catz e Francisco Pereira de Lima.
Num texto crítico que é utilizado como prefácio da edição pertencente à coleção
Clássicos Sá da Costa, Saraiva situa a Peregrinação dentro da grande tradição do gênero
picaresco. Contrariando o que se espera de um romance autobiográfico, o herói principal da
obra apresenta todas as suas fraquezas e não oculta os momentos em que foi escravo, mendigo
ou bobo. Seu caráter impressiona o leitor. Na verdade, ele é um anti-herói, sem qualquer
compromisso com a noção de “honra”, e que chama a si mesmo de “o pobre de mim”. Como
154 PNTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Versão para português atual de Maria Alberta Menéres. Lisboa: Edições Afrodite, 1979. p. 232.
75
diz Saraiva: “Fernão Mendes Pinto quis apresentar o contraste, o avesso dos heróis
empertigados de Camões e de João de Barros”155.
A abertura da narrativa, onde o próprio Mendes Pinto – autor, narrador e personagem -
explica a razão porquê escreve, exemplifica o perfil traçado por Saraiva:
Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte da minha vida, acho que com muita razão posso queixar da ventura que parece que tornou por particular tenção e empresa perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória; porque vejo que, não contente de me pôr na minha Pátria logo no começo da minha mocidade, em tal estado que nela vivi sempre em misérias e em pobreza, e não sem alguns sobressaltos e perigos da vida, me quis também levar às partes da Índia, onde em lugar do remédio que eu ia buscar a elas, me foram crescendo com a idade os trabalhos e os perigos. Mas por outro lado, quando vejo que do meio de todos estes perigos e trabalhos me quis Deus tirar sempre a salvo e pôr-me em segurança, acho que não tenho tanta razão de me queixar dos meus males passados, quanta tenho de dar graças por este só bem presente, pois me quis conservar a vida para que eu pudesse fazer esta rude e tosca escritura que por herança deixo a meus filhos (porque só para eles é minha intenção escreve-la) para que eles vejam nela estes meus trabalhos e perigos da vida que passei no decurso de vinte e um anos, em que fui treze vezes cativo e dezassete vendido, nas partes da Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macacar, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental arquipélago dos confins da Ásia.156
O papel de herói, na obra, é destinado à personagem António de Faria, apesar do seu
caráter duvidoso, e ao comparar ambos os tipos de “herói”, Saraiva assim se pronuncia: “Um
[Fernão Mendes Pinto] é feito de fraca carne humana e mostra que misérias compõem um
homem. O outro [António de Faria] é triunfador, mas à sua volta semeia a morte e a
desolação. A única coisa que ele sabe fazer é destruir”157. Saraiva acredita que Mendes Pinto
quis lembrar, através dessa personagem, os bárbaros que comprometiam a reputação dos
portugueses em certas regiões do Oriente, sobretudo na China.
155 SARAIVA. (prefácio). In: PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação e outras obras. v.1. Col. Clássicos Sá da Costa. Lisboa: Sá da costa. 1961. 156 PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Versão para português atual de Maria Alberta Menéres. Lisboa: Edições Afrodite, 1979. p. 1. 157 SARAIVA. (prefácio). In: PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação e outras obras. v.1. Col. Clássicos Sá da Costa. Lisboa: Sá da costa. 1961.
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Na Peregrinação, nenhum momento será tão revelador da pirataria exercida pelos
portugueses quanto aquele em que, tendo Antonio de Faria e seus homens saqueado uma
ermida desconsiderando os protestos do ermitão que a vigiava, este rebate, num tom profético
que se assemelha ao do “velho do Restelo” camoniano, a hipocrisia do português Nuno
Coelho, que defende ser aquela a vontade de Deus:
- É certo que agora vejo o que nunca cuidei que visse nem ouvisse, maldade por natureza e virtude fingida, que é furtar e pregar. Grande deve ser a tua cegueira, pois confiado em boas palavras, gastas a vida em tão más obras, não sei se gracejará Deus contigo no dia da conta.158
Os problemas verificados por Saraiva na obra, no que se refere à sua classificação, não
permitem que ela seja resumida nem a uma biografia, nem a um seco relatório de viagem. Ele
entende que: “sendo uma obra literária, de categoria artística, é como tal que a Peregrinação
deve ser encarada, isto é, como documento humano, e não como documento geográfico”159. É
nesse caráter humanístico que insistimos, lembrando que o grande mérito de Mendes Pinto é a
sua curiosidade e sua capacidade de adaptação e, sobretudo, o seu respeito pelo Outro. Sem
jamais negar sua nacionalidade ou mesmo sua religiosidade, a aceitação de outras verdades
lhe permite um diálogo que valoriza o conhecimento e exclui a imposição arbitrária dos seus
próprios valores, diferentes, mas não necessariamente superiores. No fragmente seguinte, por
exemplo, ele condena a imposição da religião pela força. Colocando-se no lugar do mais
fraco, ele consegue expressar sua opinião sobre o fanatismo religioso e o uso da violência
como meio para aumentar o rebanho cristão:
perguntando nós aos Chins pela significação daquelas figuras, nos responderam que o macho era o que soprava com aquelas bochechas tão inchadas o fogo do Inferno para atormentar as almas daqueles que nesta vida lhe não davam esmola, e a fêmea era a porteira do Inferno, e que os que nesta vida lhe davam esmola, os deixava fugir para um rio de água muito fria, de nome Ochileuday, onde os tinha escondidos sem os diabos lhe fazerem mal nenhum. Um dos da nossa companhia não se pode ter que se não risse de tamanha parvoíce e diabólica cegueira, de que uns três bonzos
158 PINTO, Fernão Mendes. Op.cit., p.265. 159 SARAIVA, António José. Fernão Mendes Pinto. 2 ed. Lisboa: Europa-América, 1971, p.19.
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que ali estavam (que são os seus sacerdotes) se escandalizaram tanto que meteram em cabeça ao chifu que nos levava que, se nos não castigasse e maneira que aqueles deuses se fizessem satisfeitos daquela zombaria que fizéramos deles, sem dúvida a sua alma seria muito atormentada deles ambos, sem nunca a deixarem sair do inferno, a qual ameaça assombrou tanto o perro do chifu que, sem esperar mais, nos mandou a todos nove atar de pés e mãos, e com umas cordas dobradas nos deram a cada um mais de cem açoites, de que todos ficamos assaz sangrados, e dali por diante nunca mais zombamos de coisa que víssemos. 160
Rebecca Catz, em sua análise crítica da Peregrinação intitulada “A sátira social de
Fernão Mendes Pinto”, defende tratar-se a mesma de uma obra-prima do gênero satírico; um
aviso que o autor dirigiu à nação portuguesa do seu tempo para que se corrigisse
relativamente aos caminhos pelos quais enveredaria, sob pena de, a prosseguir neles, a si
própria se condenar ao ostracismo universal, que foi, no fim das contas, o que veio a
acontecer161. Em sua singular narrativa, Fernão Mendes Pinto critica as conquistas
portuguesas no Ultramar e levanta a questão da moralidade das mesmas. Isso acontece, por
exemplo, quando o rei dos tártaros fica espantado com a distância de quase três anos de
caminho entre Portugal e Pequim, e comenta com um velho que estava junto dele, mais uma
vez, ao estilo do “velho do Restelo”:
- Conquistar essa gente terra tão alongada da sua pátria, dá claramente a entender que deve haver entre eles muita cobiça e pouca justiça - a que o velho, que se chamava Raja Benão, respondeu: -‘Assim parece que deve ser, porque homens que por indústria e engenho voam por cima das águas todas, para adquirirem o que Deus lhes não deu, ou a pobreza neles é tanta que de todo lhes faz esquecer a sua pátria, ou a vaidade e a cegueira que lhes causa a sua cobiça é tamanha que por ela negam a Deus e a seus país’. 162
A crítica de Mendes Pinto é também a de João de Melo, que utiliza um fragmento da
Peregrinação para denunciar a hipocrisia do “Homem do Aparelho”, um integrante do partido
como outro qualquer ao qual se atribuiu uma importância despropositada:
160 PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Versão para português atual de Maria Alberta Menéres. Lisboa: Edições Afrodite, 1979. p. 313-4. 161 CATZ, Rebecca. A sátira social de Fernão Mendes Pinto (análise crítica da Peregrinação). Lisboa: Prelo Editora, 1978. p.105-184. 162 PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Op.cit., p.451.
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“com o que os mercadores chins ficaram pasmados, e perguntaram se aquele homem, a quem se fazia tamanho recebimento, era irmão ou parente do nosso rei, ou que razão tinha com ele, ao que alguns cortesãos responderam que não, mas que seu pai ferrava os cavalos em que el-rei andava, e que por isso era tão honrado que todos os que ali estavam podiam muito bem ser seus criados e servi-lo como escravos”.163
Para conseguir questionar as conquistas dos portugueses, sem ser molestado pela
censura da época, Mendes Pinto apresenta uma obra revestida da mesma hipocrisia que
condena: as autoridades se contentam com uma homenagem superficial e com os aspectos
externos da piedade, que o próprio autor insinua serem a que se resumia a prática religiosa.
Reconhecer o caráter satírico da obra implica admitir a dimensão ideológica do texto
observado, cuja ironia conduz a um retrato nem sempre digno de admiração dos argonautas
portugueses. Isso acontece, por exemplo, num momento em que Mendes Pinto e outros
marinheiros estariam sendo ajudados numa tentativa de embarque de volta à Malaca, quando
provocam entre si uma grande discussão. No fragmento é apresentada de forma satírica a
intransigência e a arrogância de quem não se dispõe a aceitar o outro, sendo esse outro
apresentado de forma muito mais nobre:
(...) E como a natureza desta nossa nação Portuguesa é sermos muito afeiçoados a nossos pareceres, houve aqui entre nós oito tanta diferença e desconformidade de opiniões sobre uma coisa em que o que mais nós valia era termos muita paz e concórdia, que quase nos houvéramos de vir a matar uns aos outros, de maneira que por ser assaz vergonhoso contar o que se passou, não direi mais senão que o necodá da lorcha que ali nos trouxe de Uzangué, espantado deste nosso barbarismo, se partiu muito enfadado, sem querer levar carta nem recado nosso que nenhum de nós lhe desse, dizendo que antes queria que el-rei por isso lhe mandasse cortar a cabeça, que ofender a Deus em levar coisa nossa onde ele fosse.164
Francisco Pereira de Lima, em sua tese de Doutorado publicada com o título “O outro
Livro das Maravilhas – A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”, defende que a
Peregrinação, assim como a narrativa de Marco Pólo, é também um livro das maravilhas.
163 PINTO, Fernão Mendes apud MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.153. 164PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Versão para português atual de Maria Alberta Menéres. Lisboa: Edições Afrodite, 1979. p. 488.
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Segundo ele: “há ali um eu que se deslumbra com o que vê, extasiado ante um real que excede
todos os limites. A essa relação deslumbrada do eu com a realidade inerente ao outro o
pesquisador chamou de alteridade”165. Sua interpretação vai de encontro à de Eduardo
Lourenço, que afirma, no ensaio “O livro das maravilhas”: “O que ele [Fernão Mendes Pinto]
homem comum do Extremo Ocidente, deportado pela necessidade para os mares da China,
tem diante de si é simplesmente o Outro”166.
O deslumbramento é inegável se lembrarmos do excesso que caracteriza a descrição
de cenários, animais, povos, crenças, enfim, de novas culturas e civilizações. Mais do que
descrever, Mendes Pinto julga e compara o que vê, submetendo o outro e também o mesmo a
um processo de valorização/desvalorização, conforme a circunstância observada. Essa forma
de apresentação pode ser exemplificada pela situação descrita no capítulo 64 da
Peregrinação, quando o mandarim de Nouday, ao receber uma carta de António de Faria na
qual este dizia, amistosamente, ser o rei de Portugal irmão do rei da China, ficou tão furioso
que mandou açoitar os portadores da missiva, e cortar as orelhas dos mesmos antes de os
mandar de volta com a seguinte resposta escrita num pedaço de papel roto:
- Bareja triste, nascida de mosca encharcada no mais sujo monturo que pode haver em masmorras de presos que nunca se limparam, quem deu atrevimento a tua baixeza para parafusar nas coisas do céu? porque mandando eu ler a tua petição, em que, como a Senhor me pedias que houvesse piedade de ti que eras miserável e pobre, à qual eu, por ser grandioso, já me tinha inclinado e estava quase satisfeito do pouco que davas, tocou no ouvido de minhas orelhas a blasfêmia de tua soberba, dizendo que o teu rei era irmão do filho do Sol, leão coroado por poderio incrível no trono do mundo.167
Fernão Mendes Pinto, personagem-autor, vivencia intensamente o momento histórico
do país: deixa Portugal e embarca na aventura dos descobrimentos, motivado pela
165 LIMA, Francisco Ferreira. O outro Livro das Maravilhas –A peregrinação de Fernão Mendes Pinto. RJ: Relume Dumará. 1998. p.20. 166 LOURENÇO, Eduardo. “O livro das maravilhas...”. In: Lisboa ultramarina 1415-1580: a invenção do mundo pelos navegadores portugueses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. p.237. 167 PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Versão para português atual de Maria Alberta Menéres. Lisboa: Edições Afrodite, 1979. p. 219.
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necessidade, pela curiosidade e, por que não reconhecê-lo, pela ambição. Assim como ele,
embora sem o mesmo entusiasmo, o nosso “homem suspenso” parte em busca de si nessa
Europa a que os portugueses, agora, oficialmente pertencem.
As três interpretações contribuem para a reflexão sugerida por João de Melo, visto que
todas permitem reavaliar o imaginário coletivo da nação portuguesa. A observação da história
por ângulos diferentes, a valorização dos sentimentos que dominam as pessoas envolvidas
num determinado acontecimento, enfim, a liberdade de apresentação possível apenas na
literatura é um recurso para que se consiga captar o clima, o ambiente, a atmosfera moral que
teriam permeado certos episódios históricos. Sendo assim, o diálogo entre as duas narrativas –
O Homem Suspenso e Peregrinação – permite um olhar mais consciente sobre a efetiva
participação do povo português em momentos decisivos da história do país e do mundo.
Na Peregrinação, apesar da religiosidade inquestionável de Mendes Pinto, difundir a
fé cristã não é a motivação que leva tantos homens a se aventurarem no mar, o ideal é
puramente mercantilista. Em vários momentos, a narrativa revela portugueses muito mais
parecidos com piratas do que com colonizadores. Não há nada de heróico nas ações que
praticam, buscam apenas a fortuna ou a superação dos infortúnios que os acometem
freqüentemente, como se percebe no seguinte trecho:
(...) vinha [Antonio de Faria de Sousa] a fazer aly certo negocio com el Rey, & assentar com elle de nouo as pazes antiguas que tinha com Malaca, & agradecerlhe o bom tratamento que no seu reyno fazia aos Portugueses, & outras cousas a este modo de boa amizade, importantes ao tempo, & ao interesse da mercancia, que na verdade era o que mais se pretendia que tudo,... 168
Mesmo o questionamento que se coloca acerca do tratamento dado aos “infiéis” é uma
novidade, como se vê no seguinte exemplo, onde Mendes Pinto demonstra uma inesperada
piedade pelos mesmos:
168 PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Transcrição de Adolfo Casais Monteiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa do Moeda. s/d. p. 99.
81
Mais abaixo do vale (...) estava uma teracena ou casa grande que parecia ser templo daquela aldeia, a qual estava toda cheia de doentes e feridos que Coja Acém ali tinha em cura, entre os quais havia alguns mouros parentes seus, e outros também honrados que ele trazia a soldo, que eram, por todos, noventa e seis; estes em vendo Antonio de Faria, deram uma grande grita como que a pedir-lhe misericórdia, a qual ele então não quis usar com eles, dando por razão que se não podia dar vida a quem tantos cristãos tinha morto, e mandando-lhes pôr fogo por seis ou sete partes, como a casa era de madeira breada e coberta de folha de palmeira seca, ardeu de maneira, que foi uma espantosa coisa de ver, e em parte piedosa, pela horribilidade dos gritos que os miseráveis davam dentro quando a labareda começou a se atear por todas as partes: alguns deles se quiseram lançar pelas frestas que a casa tinha por cima, porém os nossos como magoados os receberam de maneira que no ar eram espetados em muitas chuças e lanças.169
Aceitar o interesse mercantil como o mais representativo da atuação de Portugal no
episódio dos descobrimentos, desconfiar do perfil heróico espelhado pelo metonímico Vasco
da Gama descrito por Camões, não implica uma desvalorização do país ou do povo. Os ideais
cavaleirescos e o sentimento religioso que permeavam o imaginário do europeu da Idade
Média são inegáveis; porém, ao satirizar o herói e dar voz aos verdadeiros protagonistas da
história Mendes Pinto mostra seu caráter humano e, portanto, falível, o que torna esses feitos
ainda mais surpreendentes. A maior realização desses homens consiste na preservação de sua
autenticidade apesar de toda a diversidade que sempre os rodeou, e é esse o maior feito que se
espera dos portugueses agora. Reconhecer as verdadeiras motivações dos seus inegáveis
“grandes” feitos torna a aproximação aos demais povos europeus menos traumática, pois, de
fato, eles sempre foram econômica e politicamente superiores, e quase sempre também o
foram tecnologicamente. Qualquer incômodo em assumir uma posição periférica só se
justifica pela insistência de discursos que sustentam a imagem de um país “grande”, quando o
que precisa ser grande é a alma.
169 PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Versão para português atual de Maria Alberta Menéres. Lisboa: Edições Afrodite, 1979.p. 204.
82
No que se refere a perdas, o povo português não perdeu qualquer patrimônio, pois
nunca ganhou com os momentos de glória do país. Mesmo no auge do império, apenas uma
elite foi beneficiada. O que se perdeu foi o rumo, a ousadia, a coragem de arriscar, como
lamenta o professor ao ser empurrado para uma nova realidade que, num primeiro momento,
não sabe como enfrentar:
Meu Deus, quanto do meu amor me dói, este desconcerto, esta mágoa em duplo do homem perdido de tudo: de sua casa e da sua gente, da sua biblioteca e de seus lentos e longos dias. De si. Como o hábito de fazer anos e assistir ao advento da idade, eis-me agora perante a estranheza de me ver do lado de cá da sua porta, fora de todo o tempo do mundo, na rua, ao frio do mês de Janeiro, assistindo ao passar dos anos e dos meses, sendo essa a tão clara certidão do meu desamparo... E faltam-me os mares e os rios, a cábula de navegar, o astrolábio e a bússola, o porto e o desejo de aventura, a preclara ousadia de peregrinar em torno do mundo, ó coitado, manhoso, fingido e suspeitado Fernão Mendes Pinto da minha alma...170
170 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p.116.
83
6 - CONCLUSÃO
Tudo vale a pena se a alma não é pequena.
Fernando Pessoa
O romance O Homem Suspenso, de João de Melo, tem como pano de fundo a entrada
de Portugal na Comunidade Econômica Européia. Em nossa introdução, mostramos que o
texto revela uma preocupação com o risco de assimilação cultural proveniente do convívio
com culturas hegemônicas, mas também defende a importância de o país estabelecer um
diálogo com o exterior e assim conseguir ultrapassar o atraso que o separa dos demais
membros do grupo. Preservar sua cultura nacional e, ao mesmo tempo, aceitar as alterações
impostas pela nova realidade européia são tarefas difíceis de conciliar; e a proposta do autor é
que o processo envolva um olhar atento para o próprio país e uma releitura dos discursos que
contribuem para a construção de sua identidade. Ele sugere que esse seja o momento oportuno
para que a nação inicie o seu salto qualitativo.
Embora a perda do império tenha sido assumida com uma mistura de inconsciência e
realismo singulares, ao contrário da vaga de pessimismo que atingiu o país depois do ultimato
inglês do séc. XIX171, parece-nos que a redução do país à sua real dimensão geográfica,
quando as últimas colônias africanas se tornam independentes, constituiu mais um trauma
para o povo português, e que a adesão à Comunidade Européia responde ao seu imaginário
expansionista. Mas se a cooperação mútua é uma das justificativas para aproximação de
países tão díspares, o modelo capitalista em que se baseia afeta diretamente a soberania
daqueles que não detêm um grande poder econômico; e Portugal, outrora um “colonizador”,
171 LOURENÇO, Eduardo. “Portugal – identidade e imagem. In: ______. Nós e a Europa ou as duas razões. 3ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. [s.d.]. p.22.
84
surge no novo cenário como um país “colonizado”172, sujeito às determinações da cúpula da
Comunidade.
Abertas as fronteiras geográficas, para manter a autenticidade portuguesa é preciso
fortalecer outras fronteiras, sobretudo culturais; e estabelecer limites que protejam aspectos
com os quais a população se identifique, até que se tornem espontaneamente ultrapassados.
Afinal, apesar de sua “hiperidentidade”, os portugueses não deixam de ser profundamente
afetados pelas aceleradas alterações que se verificam no país, ainda que essas se iniciem pelo
espaço físico.
Numa peregrinação por Lisboa e pelos seus espaços referenciais perdidos, a ameaça de
assimilação cultural se confirma e o narrador-personagem do romance de João de Melo insiste
na necessidade de cuidar do país, através da importância reservada ao “olhar” durante sua
deambulação pela cidade. Com um olhar autônomo, ele tem sua atenção desviada dos
elementos mais óbvios da paisagem e consegue observar o que deve ser visto. É um olhar que
“repara”, dotado de consciência crítica e passível de superar a alienação. Tal perspectiva
desencadeia uma análise das transformações verificadas nessa cidade que reflete um país
sendo arremessado para um novo e imprevisível destino, pois “uma flecha não volta mais ao
arco depois de disparada”, como simbolicamente representa o arco que “abre” o romance: “O
arco. A minha ‘visão’ de Lisboa distende-se agora, em ‘arco’, sobre o corpo da cidade”.173
O narrador-personagem é um ser “suspenso” e apresenta uma característica dualidade.
Um ser em duplo pode ser entendido como o que se sente uma coisa e outra, ou uma coisa ou
outra; ou seja, a duplicidade pode significar acréscimo ou divisão, ou ainda, exclusão. O
“homem suspenso” reconhece a impossibilidade de optar por uma coisa ou outra, mas ainda
não se habituou à convivência com múltiplas presenças. Ele não é o representante de um
172 Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. “Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade”. In: RAMALHO, Maria Irene & RIBEIRO, António de Sousa (Orgs.). Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos de identidade. Porto: Afrontamento, 2001. p.23-85. 173 MELO, João de. O Homem Suspenso. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996. p. 11.
85
Portugal antigo (como o seu pai que morre, na sua presença, durante sua visita à aldeia e à
casa da família, que representavam uma antiga ordem cultural), mas também não deixa de o
ser; o que necessariamente não acarretará uma negação.
Apesar da ambigüidade, característica de dualidade, esse homem consegue estabelecer
um rumo no final do romance, partindo em direção ao Outro. Sua saída confirma a proposta
de diálogo com o exterior, pois não implica a rejeição de sua própria cultura, como demonstra
através da carta que envia à sua mãe (também um reflexo da pátria), pedindo a ela que não
morra nunca. Diálogo, que, para ser efetivamente proveitoso, implica num olhar do país para
dentro de si mesmo, que tenha consciência de si e reconheça suas limitações, seus enganos, e
respeite os seus mitos; ou seja, que empreenda uma releitura dos discursos que condicionam
sua história e sua identidade.
A proposta de releitura se verifica pela pluridiscursividade da narrativa, sobretudo pelo
enfático diálogo que se estabelece com a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. A utilização
explícita de fragmentos dessa emblemática narrativa configura uma atribuição de valor
incomum a um texto que traça um perfil da participação dos portugueses na aventura dos
descobrimentos bastante diferente daquele que se observa no canônico texto de Camões, Os
Lusíadas. Fernão Mendes Pinto não foi um herói, mas sobreviveu aos perigos que enfrentou e
desvencilhou-se das peripécias nas quais se envolveu; e conseguiu fazê-lo com respeito às
diferenças, convivendo com diversas outras culturas, sem pôr em causa sua identidade ou
negar sua nacionalidade portuguesa. Tampouco quis ser o representante de uma nação
heróica, foi apenas um homem que viveu o seu tempo, e é exatamente nisso que reside o seu
mérito.
Em O Homem Suspenso há uma apologia da literatura, sem a defesa da “arte pela
arte”, uma vez que a escolha dos escritores e dos textos traça um perfil também político do
autor. A literatura pretende mais. Deseja, além de mostrar fatos, descrever os sentimentos que
86
permearam esses fatos, relatados agora por diferentes ângulos. Nela, o estético e o histórico se
completam, permitindo uma aproximação com o leitor onde são evocadas a memória e a
sensibilidade. Ouvir os autores propostos é reler e sentir o país.
É sempre uma grande dificuldade ter de concluir quando ainda há tanto a dizer.
Qualquer consideração parece repetitiva ou insuficiente. Nesta última oportunidade de
acrescentar uma outra voz a este polifônico trabalho a que se impõe é a de Eduardo Prado
Coelho, que diz: “Todo ensaio é autobiográfico”. Por que não o seria uma Dissertação?
Entendemos que o caráter utópico da “viagem” empreendida tanto pelo narrador-
personagem da Peregrinação como pelo de O Homem Suspenso nos permite dizer que o
romance que escolhemos para análise aponta para a esperança de que o país dê o seu grande
salto qualitativo, mas reconhecemos que talvez essa seja apenas uma esperança nossa, pois
como já o disse a professora Margarida Alves Ferreira, ao proferir uma comunicação: “Não se
tem impunemente sangue herdado de Portugal”.
Preciso abandonar temporariamente o “plural majestático” que tenho utilizado até
agora, para conseguir explicar essa proposição, relatando uma situação muito pessoal: depois
de ter iniciado este trabalho, e ciente da atualidade das questões colocadas no romance, como
foi demonstrado no decorrer do mesmo, a inquietação de uma sobrinha, durante um
telefonema, me deixou ao mesmo tempo triste e contente. Ela me disse: - “Tia, imagina, estão
a construir um “shopping” no Cais do Sodré, mais um, aquilo vai perder toda a graça, e se
resolvem acabar com a Rua do Bacalhau, o que vai ser de Lisboa sem ela?”. Fiquei
imaginando como conciliar as lojas de bacalhau com a salubridade inodora das grandes
superfícies e me entristeci. Mas a angústia demonstrada por uma jovem de 15 anos, que
nasceu em Lisboa, foi educada nesse novo contexto europeu, e que ao contrário da geração
imediatamente anterior, reconhece a importância de estabelecer limites para a interferência de
outras culturas naquilo que nos caracteriza, me deixou satisfeita.
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Queremos acreditar que os filhos da Europa saberão encontrar o equilíbrio necessário
para que o país avance sem se perder, que entenderão que o diálogo entre culturas implica no
respeito às mesmas.
A preocupação do país em ser grande também deve ser ultrapassada, pois o que não
pode ser pequena é a alma: Portugal precisa conseguir aceitar sua reduzida dimensão
geográfica e priorizar o crescimento humanitário, não o territorial. Buscar o benefício da
população como um todo, e não a modernização dos seus principais centros urbanos.
Riscos de assimilação à parte, o “fechamento” do país, nos moldes defendidos pela
ditadura salazarista, é sempre rejeitado. Europa, África ou Brasil, as diferentes presenças não
devem impedir a composição de uma unidade. Aliás, a multiplicidade sempre caracterizou a
nação, e essas considerações podem ser sintetizadas por um poema de Sophia de Mello
Breyner, citado pelo narrador-personagem quando se separa de Carminho que,
intencionalmente, não reproduzimos no capítulo “vozes em consonância”, para com ele fechar
este trabalho:
Não se perdeu nenhuma coisa em mim. Continuam as noites e os poentes Que escorreram na casa e no jardim, Continuam as vozes diferentes Que intactas no meu ser estão suspensas. Trago o terror e trago a claridade, E através de todas as presenças Caminho para a única unidade. 174
174 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. apud MELO, João de. p. 139.
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RESUMO
O trabalho busca analisar o romance português contemporâneo O Homem Suspenso, de autoria de João de Melo, publicado em 1996, que suscita uma reflexão sobre a integração de Portugal à Comunidade Econômica Européia. O estado de “suspensão” do narrador-personagem, indicado pela perda dos seus referenciais identitários, desperta um questionamento sobre o risco de assimilação da cultura portuguesa pelo convívio com culturas hegemônicas, sem ignorar a característica de “hiperidentidade” inerente ao povo português, na ótica de Eduardo Lourenço. Seu estado de alma enfatiza um “olhar” que se traduz em necessidade de “cuidar”. Também é focalizada a pluridiscursividade presente no texto, sobretudo o diálogo estabelecido com a narrativa de Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, que fundamentam a proposta de releitura dos discursos que contribuíram para a construção da identidade portuguesa.
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ABSTRACT
Analysis of the contemporary Portuguese Fiction, O Homem Suspenso, by João de Melo, published in 1996, which reflects about Portugal integration to the European Economic Community. The narrator-character “suspension” state, indicated by the loss of his referential of identity, raises a questioning about the risk of assimilation of the Portuguese culture living together with hegemonic cultures, taking into account the hyper - identity characteristic inherent to the Portuguese people according to Eduardo Lourenço. The narrator state of spirit emphasizes a “glance” that is translated into a necessity of “taking care”. This work also focus on the “pluridiscursividade” presented in the text and its dialogue with Peregrinação, by Fernão Mendes Pinto, proposing a rereading of the discourses that contributed to the Portuguese identity formation.
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ANEXOS
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ANEXO A CAMÕES - ALMA MINHA GENTIL, QUE TE PARTISTE
Luís de Camões Alma minha gentil, que te partiste Tão cedo desta vida, descontente, Repousa lá no Céu eternamente E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que pode merecer-te Algua cousa a dor que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te, Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou.
AS PALAVRAS INTERDITAS Eugénio de Andrade
Os navios existem e existe o teu rosto encostado ao rosto dos navios. Sem nenhum destino flutuam nas cidades, partem no vento, regressam nos rios. Na areia branca, onde o tempo começa, uma criança passa de costas para o mar. Anoitece. Não há dúvida, anoitece. É preciso partir, é preciso ficar. Os hospitais cobrem-se de cinza. Ondas de sombra quebram nas esquinas. Amo-te... E abrem-se janelas mostrando a brancura das cortinas. As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas minhas curvas claras. Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, e estas mãos noturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura. E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens vivas, desenhadas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas.
OS TRABALHOS E OS DIAS
Jorge de Sena Sento-me à mesa como se a mesa fosse o mundo inteiro e principio a escrever como se escrever fosse respirar o amor que não se esvai enquanto os corpos sabem de um caminho sem nada para o regresso da vida.
À medida que escrevo, vou ficando espantado Com a convicção que a mínima coisa põe em não ser nada. Na mínima coisa que sou, pôde a poesia ser hábito. Vem, teimosa, com a alegria de eu ficar alegre, quando fico triste por serem palavras já ditas estas que vêm, lembradas, doutos poemas velhos. Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem. E os convivas que chegam intencionalmente sorriem e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo e desenhei uma rena para a caçar melhor e falo da verdade, essa iguaria rara: este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.
ANEXO B O GUARDADOR DE REBANHOS, poema XX:
Alberto Caeiro O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. (...) O Tejo desce de Espanha E o Tejo entra no mar em Portugal. Toda a gente sabe disso. Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia E para onde ele vai E donde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente, É mais livre e maior o rio de minha aldeia. Pelo Tejo vai-se ao Mundo. Para além do Tejo há a América E a fortuna daqueles que a encontram. Ninguém nunca pensou no que há para além Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada Quem está ao pé dele está só ao pé dele. SE TE QUERES
Álvaro de Campos
Se te queres matar, por que não te queres matar? Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida, Se ousasse matar-me, também me mataria... Ah, se ousares, ousa! De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas A que chamamos o mundo? A cinematografia das horas representadas Por atores de convenções e poses determinadas, O circo policromo do nosso dinamismo sem fím? De que te serve o teu mundo interior que desconheces? Talvez, matando-te, o conheças finalmente... Talvez, acabando, comeces... E, de qualquer forma, se te cansa seres, Ah, cansa-te nobremente, E não cantes, como eu, a vida por bebedeira, Não saúdes como eu a morte em literatura! Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente! Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... Sem ti correrá tudo sem ti. Talvez seja pior para outros existires que matares-te... Talvez peses mais durando, que deixando de durar... A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado De que te chorem? Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, Quando não são de coisas nossas, Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros... Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda Do mistério e da falta da tua vida falada... Depois o horror do caixão visível e material, E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali. Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas, Lamentando a pena de teres morrido, E tu mera causa ocasional daquela carpidação, Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas... Muito mais morto aqui que calculas, Mesmo que estejas muito mais vivo além... Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova, E depois o princípio da morte da tua memória. Há primeiro em todos um alívio Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido... Depois a conversa aligeira-se quotidianamente, E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
(...)
ANEXO C SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL Cesário Verde A Guerra Junqueiro I AVE-MARIAS Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia, Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. O céu parece baixo e de neblina, O gás extravasado enjoa-me, perturba-me; E os edifícios, com as chaminés, e a turba Toldam-se duma cor monótona e londrina. Batem os carros de aluguer, ao fundo, Levando à via-férrea os que se vão. Felizes! Ocorrem-me em revista, exposições, países: Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo! Semelham-se a gaiolas, com viveiros, As edificações somente emadeiradas: Como morcegos, ao cair das badaladas, Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros. Voltam os calafates, aos magotes, De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos, Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos, Ou erro pelos cais a que se atracam botes. E evoco, então, as crónicas navais: Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! Singram soberbas naus que eu não verei jamais! E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! De um couraçado inglês vogam os escaleres; E em terra num tinido de louças e talheres Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda. Num trem de praça arengam dois dentistas; Um trôpego arlequim braceja numas andas; Os querubins do lar flutuam nas varandas; Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas! Vazam-se os arsenais e as oficinas; Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras; E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas. Vêm sacudindo as ancas opulentas! Seus troncos varonis recordam-me pilastras; E algumas, à cabeça, embalam nas canastras Os filhos que depois naufragam nas tormentas. Descalças! Nas descargas de carvão, Desde manhã à noite, a bordo das fragatas; E apinham-se num bairro aonde miam gatas, E o peixe podre gera os focos de infecção!
II NOITE FECHADA Toca-se às grades, nas cadeias. Som Que mortifica e deixa umas loucuras mansas! O Aljube, em que hoje estão velhinhas e criancas, Bem raramente encerra uma mulher de "dom"! E eu desconfio, até, de um aneurisma Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes; À vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes, Chora-me o coração que se enche e que se abisma. A espaços, iluminam-se os andares, E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos Alastram em lençol os seus reflexos brancos; E a Lua lembra o circo e os jogos malabares. Duas igrejas, num saudoso largo, Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero: Nelas esfumo um ermo inquisidor severo, Assim que pela História eu me aventuro e alargo. Na parte que abateu no terremoto, Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas; Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas, E os sinos dum tanger monástico e devoto. Mas, num recinto público e vulgar, Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras, Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, Um épico doutrora ascende, num pilar! E eu sonho o Cólera, imagino a Febre, Nesta acumulação de corpos enfezados; Sombrios e espectrais recolhem os soldados; Inflama-se um palácio em face de um casebre. Partem patrulhas de cavalaria Dos arcos dos quartéis que foram já conventos; Idade Média! A pé, outras, a passos lentos, Derramam-se por toda a capital, que esfria. Triste cidade! Eu temo que me avives Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes, Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes, Curvadas a sorrir às montras dos ourives. E mais: as costureiras, as floristas Descem dos magasins, causam-me sobressaltos; Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos E muitas delas são comparsas ou coristas. E eu, de luneta de uma lente só, Eu acho sempre assunto a quadros revoltados: Entro na brasserie; às mesas de emigrados, Ao riso e à crua luz joga-se o dominó. (...)
ANEXO D