o que me dói não é

8
O que me dói não é... O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão... São as formas sem forma Que passam sem que a dor As possa conhecer Ou as sonhar o amor. São como se a tristeza Fosse árvore e, uma a uma, Caíssem suas folhas Entre o vestígio e a bruma. Fernando Pessoa, in "Cancioneiro" "Poema tardio de Fernando Pessoa, escrito em nome próprio e datado de 1933, "O que me dói não é..." é um poema típico da fase tardia da produção poética ortónima de Fernando Pessoa. A poesia ortónima de Fernando Pessoa segue um ritmo próprio e diferenciado do ritmo das obras paralelas dos seus heterónimos. De certo modo é, como Pessoa disse, ainda Fernando Pessoa mas

Upload: pippo-diogo

Post on 03-Feb-2016

21 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

fernando

TRANSCRIPT

Page 1: O Que Me Dói Não é

O que me dói não é...

O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas

Que nunca existirão...

São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza

Fosse árvore e, uma a uma,

Caíssem suas folhas

Entre o vestígio e a bruma.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

"Poema tardio de Fernando Pessoa, escrito em nome próprio e datado de 1933, "O que me dói não é..." é um poema típico da fase tardia da produção poética ortónima de Fernando Pessoa.

A poesia ortónima de Fernando Pessoa segue um ritmo próprio e diferenciado do ritmo das obras paralelas dos seus heterónimos. De certo modo é, como Pessoa disse, ainda Fernando Pessoa mas estripado de todas as dimensões que eram usadas para escrever em nome dos heterónimos.

Page 2: O Que Me Dói Não é

Resta Fernando Pessoa ele mesmo, pouco mas ainda muito. Mais racional e frio, algo intelectual e pensativo, sem chegar a assumir a sua tristeza num desespero real e destrutivo. Cabisbaixo mas quase indefinido nas suas palavras bem medidas.

Este poema em análise é suma perfeita de todos estes vectores complementares. Pessoa fala da sua tristeza, mas de forma intelectual, sem assumir um sentimento seja ele qual for. Como se conseguisse colocar a sua tristeza debaixo de um microscópio e a analisasse a frio, à maneira de uma autópsia, para melhor compreender o que sentia.

Como análise post-mortem que é, vê-se logo que se torna infrutífera. Querer compreender o que é depois de esse ser estar morto não traz vantagem qualquer a nenhum ser que está vivo. Matar para compreender não é, em rigor, razão suficiente para querer saber mais, apenas menos.

Pessoa queixa-se da ausência, do que não tem. E essa queixa é dirigida às "formas sem forma que passam", sem que a dor as conhecesse ou o amor as faça suas.

Queixa-se não do que "há no coração", mas das "coisas lindas que nunca existirão".

Queixa-se afinal de um futuro que tema nunca vai chegar. Estamos em 1933 e Fernando Pessoa tem 2 anos de vida restante. Estaria já certo do seu destino? Que acabaria sozinho e sem ambições concretas, sem estar feliz? Talvez. Talvez a sua poesia sempre reflectisse este medo e esta certeza negra - de que os seus sonhos teriam sido sempre demasiado altos para alguma vez se realizarem e que, na verdade, a sua felicidade andava na tal bruma que ele refere, mas numa bruma rasteira, baixa demais para os seus olhos sempre em busca das estrelas.

A sua busca pelas formas indefinidas, do sonho ou da realidade, marca o seu percurso terreno. Sejam estas formas as pessoas que passavam ou as ideias e as verdades, nem interessa. São formas porque são confirmações da sua incapacidade de as capturar e de as fazer deixar de ser apenas formas. Toda a forma é uma indefinição, uma falta de humanidade, de calor. Tem forma apenas aquilo que não tem conteúdo, que é vazio, linhas, sem dentro, só fora.

A tristeza que ele sente, equipara-a a estas formas a caírem em forma de folhas à sua volta, num ambiente frio e desolado. A sua vida é vivida no meio deste desespero racional em que se encontra preso e para o qual nunca achará uma saída racional. Porventura porque nenhuma

Page 3: O Que Me Dói Não é

saída racional poderá alguma vez existir para um homem desesperado com a realidade. Mas a saída emocional era-lhe já impossível - ele estava demasiado esvaziado, era afinal também já uma forma, como as formas que desejava possuir e compreender, era já só fora, linhas, sem dentro, sem conteúdo, frio e distante.

No vestígio e na bruma vivia os seus dias inconsequentes. Mesmo a sua obra talvez o desanimasse e apenas um pequeno, indistinto timbre de imortalidade o fizesse ainda respirar e trabalhar pelas noites frias da cidade, do alto da sua janela para a rua cheia de Universo. Ainda assim insistia em ficar vivo enquanto pudesse. Vivo enquanto todas as folhas não caíssem da sua árvore da tristeza e deixassem sequer de existir razões para ser apenas forma e, que pouco pedem as formas, só para existir.

Apresenta, de forma bem estruturada, as tuas respostas ao questionário que se segue.

1. Identifica os acontecimentos que motivam a reflexão poética.

A reflexão do poeta tem origem na dor que sente: “O que me dói não é/ O que há no

coração”, que, para ele, não parece ter origem naquilo que efetivamente sente, isto é, naquilo

que “há no coração”. É este aparente enigma que o leva a reflectir sobre aquilo que sente.

2. Aponta o estado de espírito do poeta ao longo do poema.

Ao longo do poema, o poeta manifesta-se triste e desencantado: “o que me dói”. Esta tristeza

deve-se essencialmente à indefinição que o caracteriza, uma vez que aquilo que lhe causa dor

são “essas coisas lindas/ Que nunca existirão”, “São as formas sem forma/ Que passam sem

que a dor/ As possa conhecer”. O jogo de palavras – “formas sem forma” – é o modo pelo qual

o poeta apresenta a indefinição do sentimento que o domina. Este é perspectivado como

objecto de análise e a mágoa do poeta projecta-se sob a forma de uma imagem, da tristeza

como árvore cujas folhas se perdem lentamente e de forma também imprecisa, (“São como se

a tristeza/ Fosse árvore e, uma a uma,/ Caíssem suas folhas/ Entre o vestígio e a bruma”).

Português – 12º ano – Turma A

PÁGINA - 2

3. Comenta, tendo em conta as características da poesia pessoana, a primeira estrofe do poema,

relacionando-a com a ideia transmitida na última estrofe.

Page 4: O Que Me Dói Não é

A primeira e última estrofe do poema relacionam-se entre si e surgem como paradigmas de

uma determinada tendência da poesia de Fernando Pessoa ortónimo: a dor de pensar. Ambas

as estrofes aludem à dor e à tristeza, sendo que, em ambas, este sentimento de mágoa surge

indefinido e fruto de uma incapacidade de experimentar sentimentos genuínos. Na primeira

estrofe, a dor não é aquilo que existe, é aquilo que nunca existirá: “O que me dói não é/ O que

há no coração/ Mas essas coisas lindas/ Que nunca existirão”. Interpretar estes versos no

âmbito da poesia de Pessoa ortónimo leva a entender o sofrimento do poeta como radicado na

incapacidade de experimentar emoções verdadeiras, i. e., aquilo que “há no coração” e a

consciência lúcida da manutenção desse estado no futuro. Nesta medida, a última estrofe

apresenta referências à tristeza como algo alheio ao poeta, mais precisamente pela imagem de

uma árvore-tristeza que deixa cair as folhas lentamente (“São como se a tristeza/ Fosse árvore

e, uma a uma,/ Caíssem suas folhas/ Entre o vestígio e a bruma”) sendo a perda associada ao

“vestígio e a bruma”. Estes dois termos remetem para a indefinição de uma dor inicial, que se

perdeu, ficando apenas o vestígio que é cada vez mais impreciso, tal como a bruma que inibe a

possibilidade de ver o real com precisão. Assim, no quadro da poesia do ortónimo, esta estrofe

remete, tal como acontecia na primeira, para a ideia de uma emoção inicial que se perdeu,

ficando apenas um vestígio dela, não tendo, por conseguinte, o poeta acesso à emoção.

4. Analisa formalmente o poema e refere um recurso expressivo que te pareça significativo,

justificando a tua opção.

O poema é constituído por três quadras isométricas, em verso hexassilábico, com o

esquema rimático abcb/defe/ghih, o que significa que o poema tem rima cruzada em b, e, e h, e

verso solto nos restantes. Significativa é a imagem da tristeza como árvore, que percorre a

última estrofe, (“São como se a tristeza/ Fosse árvore e, uma a uma,/ Caíssem suas folhas/

Entre o vestígio e a bruma”) uma vez que é através dela que o poeta reitera a indefinição e o

afastamento que experimenta em relação às emoções que sente e sobre as quais se debruça,

transformando-as em meros vestígios impreciso daquilo que forma inicialmente.

Page 5: O Que Me Dói Não é

1. A reflexão do poeta tem origem na dor que sente: “O que me dói não é/ O que há no coração”, que, para ele, não parece ter origem naquilo que efectivamente sente, isto é, naquilo que “há no coração”. É este aparente enigma que o leva a reflectir sobre aquilo que sente.

2. Ao longo do poema, o poeta manifesta-se triste e desencantado: “o que me dói”. Esta tristeza deve-se essencialmente à indefinição que o caracteriza, uma vez que aquilo que lhe causa dor são “essas coisas lindas/ Que nunca existirão”, “São as formas sem forma/ Que passam sem que a dor/ As possa conhecer”. O jogo de palavras – “formas sem forma” – é o modo pelo qual o poeta apresenta a indefinição do sentimento que o domina. Este é perspectivado como objecto de análise e a mágoa do poeta projecta-se sob a forma de uma imagem, da tristeza como árvore cujas folhas se perdem lentamente e de forma também imprecisa, (“São como se a tristeza/ Fosse árvore e, uma a uma,/ Caíssem suas folhas/ Entre o vestígio e a bruma”).

3. A primeira e última estrofe do poema relacionam-se entre si e surgem como paradigmas de uma determinada tendência da poesia de Fernando Pessoa ortónimo: a dor de pensar. Ambas as estrofes aludem à dor e à tristeza, sendo que, em ambas, este sentimento de mágoa surge indefinido e fruto de uma capacidade de experimentar sentimentos genuínos. Na primeira estrofe, a dor não é aquilo que existe, é aquilo que nunca existirá: “O que me dói não é/ O que há no coração/ Mas essas coisas lindas/ Que nunca existirão”. Interpretar estes versos no âmbito da poesia de Pessoa ortónimo leva a entender o sofrimento do poeta como radicado na incapacidade de experimentar emoções verdadeiras, i. e., aquilo que “há no coração” e a consciência lúcida da manutenção desse estado no futuro. Nesta medida, a última estrofe apresenta referências à tristeza como algo alheio ao poeta, mais precisamente pela imagem de uma árvore-tristeza que deixa cair as folhas lentamente (“São como se a tristeza/ Fosse árvore e, uma a uma,/ Caíssem suas folhas/ Entre o vestígio e a bruma”) sendo a perda associada ao “vestígio e a bruma”. Estes dois termos remetem para a indefinição de uma dor inicial, que se perdeu, ficando apenas o vestígio que é cada vez mais impreciso, tal como a bruma que inibe a possibilidade de ver o real com precisão. Assim, no quadro da poesia do ortónimo, esta estrofe remete, tal como acontecia na primeira, para a ideia de uma emoção inicial que se perdeu, ficando apenas um vestígio dela, não tendo, por conseguinte, o poeta acesso à emoção.

4. . O poema é constituído por três quadras isométricas, em verso hexassilábico, com o esquema rimático abcb/defe/ghih, o que significa que o poema tem rima cruzada em b, e, e h, e verso solto nos restantes. Significativa é a imagem da tristeza como árvore, que percorre a última estrofe, (“São como se a tristeza/ Fosse árvore e, uma a uma,/ Caíssem suas folhas/ Entre o vestígio e a bruma”) uma vez que é através dela que o poeta reitera a indefinição e o afastamento que experimenta em relação às emoções que sente e sobre as quais se debruça, transformando-as em meros vestígios impreciso daquilo que forma inicialmente.

http://pt.slideshare.net/RicardoTexAmaral/fernando-pessoa-ortnimo-e-heternimos