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Pensar não dói e é Grátis Vivendo Filosoficamente Eugênio C. Ribeiro

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Pensarnãodóieé

Grátis

Vivendo Filosoficamente

Eugênio C. Ribeiro

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Pensarnãodóieé

Grátis

Eugênio C. Ribeiro

Julho/2005

Vivendo Filosoficamente

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Autor:Eugênio C. Ribeiroe-mail: [email protected]

Todos os direitos reservados ao autor, sendo expressamente proibidaa reprodução desta obra sem seu consentimento por escrito.

Editoração e Impressão:Nova Letra Gráfica e Editora Ltda.Av. Brasil, 742 - Ponta Aguda - Fone/Fax (47) 326-0600Cep 89050-000 - Blumenau - SC

Conselho Editorial da Nova Letra:- Lígia Najdzion- Osmar de Souza- Suzana Sedrez- Tadeu C. Mikowski- Vera Lúcia de Souza e Silva

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Pública Dr. Fritz Müller

100R484p Ribeiro, Eugênio C.

Pensar não dói e é grátis : vivendofilosoficamente / Euênio C. Ribeiro.— Blumenau : Nova Letra, 2005.

192p.

ISBN: 85-7682-027-7

1. Pensar – Filosofia 2. Pensamento- Formação I. Título.

Impresso no Brasil

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A Todos aqueles que compartilhamComigo a grande dádiva do

PENSAMENTO

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O universo começa a se parecermais com uma grande mente,

do que com uma grande máquina.Sir James Jeans

É mais fácil cair no ritual do queatingir o conhecimento.

Mais fácil inventar deuses doque compreender técnicos.

Jacques Bergier

Todos os homens sãosuficientemente loucos para

se acreditarem racionais.Erasmo de Roterdan

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------- 11

CAPÍTULO1SAINDODAMATRIX ----------------------------------------------- 17O Poder das Crenças ------------------------------------------------ 17A Matrix -------------------------------------------------------------- 19Saindo da Matrix ---------------------------------------------------- 21O Papel da Filosofia ------------------------------------------------- 22A Importância da Crítica Racional -------------------------------- 28Mudança de Paradigmas ------------------------------------------- 32

CAPÍTULO2AAVENTURADOPENSAMENTOI ------------------------------ 39Pensamento: prerrogativa de todos ------------------------------ 39Uma Brecha para se sair da Matrix ------------------------------- 42Usando a Brecha corretamente ----------------------------------- 46

CAPÍTULO3AAVENTURADOPENSAMENTOII ----------------------------- 63Em Busca do Conhecer --------------------------------------------- 63A Prestimosa Herança Grega -------------------------------------- 66O Método do Racionalismo---------------------------------------- 72A Maneira do Empirismo ------------------------------------------ 74A maneira de Kant -------------------------------------------------- 80O poder do Iluminismo -------------------------------------------- 83A influência do Positivismo --------------------------------------- 86

CAPÍTULO4AMETAFÍSICAVIRTUAL ------------------------------------------ 89Quem é esta Metafísica? ------------------------------------------- 89Em busca do Elemento Primordial ------------------------------- 94Tudo passa ou tudo permanece ----------------------------------- 97Os Princípios Racionais -------------------------------------------112A Questão dos Universais -----------------------------------------113

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CAPÍTULO5OANTROPOÉTICO ----------------------------------------------- 117ÉTICAXMORAL ---------------------------------------------------118De onde nascem as teorias éticas? ------------------------------119A Idéia do Bem -----------------------------------------------------120A Regra de Ouro ----------------------------------------------------125A Prática da Vida Moral -------------------------------------------126Os componentes da ação Ética -----------------------------------126A Ética de Sócrates: Conhece-te a ti mesmo -------------------128Platão: uma moral emancipatória -------------------------------130Aristóteles: Ética na busca da felicidade -----------------------132Teste sua eticidade -------------------------------------------------133

CAPÍTULO6OSANIMAISPOLÍTICOS ---------------------------------------- 135Introdução -----------------------------------------------------------135Origens da Vida Política -------------------------------------------136O ideal político de Platão -----------------------------------------137O ideal político de Aristóteles -----------------------------------139JUSNATURALISMO-------------------------------------------------140Algumas Teorias Políticas -----------------------------------------145O ideal político de Hegel ------------------------------------------147O Ideal Político do Marxismo ------------------------------------151

CAPÍTULO7AModernidade Racional ---------------------------------------- 155O Ideal de Francis Bacon ------------------------------------------156A Análise de Max Weber ------------------------------------------158A Crítica da Escola de Frankfurt ---------------------------------161JÜRGENHABERMAS -----------------------------------------------166John Rawls ----------------------------------------------------------173

CAPÍTULO 8ASDINAMITESDENIETZSCHE ------------------------------- 177

CAPÍTULO9ANÁUSEADAEXISTÊNCIA ------------------------------------ 181

REFERÊNCIAS ----------------------------------------------------- 185

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INTRODUÇÃO

“Pensar não dói e é grátis” é um livro de educação para opensar, um livro sobre a aventura do pensamento humano.

É lugar comum reconhecer a necessidade de aprendiza-gem em quase tudo o que fazemos na vida: comer, caminhar,andar de bicicleta, e tutti quanti.

Contudo, você já ouviu alguém dizendo que precisa fazerum curso para aprender a pensar?

É como se pensar fosse algo tão banal e corriqueiro quenão carecesse de nossos maiores cuidados. Ou então como se jánascêssemos com a capacidade de pensar sempre de forma cor-reta.

Ambas posições não conferem com a realidade. Pensar nãoé algo assim tão corriqueiro, visto que todo o nosso relaciona-mento com o universo implica primeiro na ação do pensamento,e justamente por isto mesmo, quando erramos na ação, é porquejá erramos muito antes no pensar. E sendo que não nascemoscom a capacidade de pensar sempre de forma correta, mister sefaz uma correção no nosso modo de pensar, uma aprendizagemno campo do pensamento.

No entanto, em que consiste uma Educação para o Pensar?Consiste basicamente em treinar o uso de todas as ferra-

mentas disponíveis para tal empresa, que foram sendo identifi-cadas ao longo da história humana. Uma tarefa hercúlea, tendoem vista o rol dos pensadores ilustres que trataram do assunto.

Assim sendo, para este livro escolhi apenas algumas ferra-mentas que considero as mais importantes. Dentre estas ferra-

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mentas, estão os métodos usados por diversos pensadores (a iro-nia, a maiêutica, a dialética, a lógica, etc.) e também algumas cons-truções de pensamento já prontas (principalmente as correntesfilosóficas), que podem auxiliar na aprendizagem do bom pen-sar. Estudando cautelosamente como os outros pensaram, pode-mos tirar muito proveito ao nos depararmos com seus erros eseus acertos.

Tudo isto vai nos levar a trabalharmos com nossos padrõesde pensamento. Sim, nós temos um padrão de pensamento, ouvários. São como “programas mentais” sobre como deve ser con-duzido o pensamento para se obter um resultado. Por exemplo,quem aprende a fazer malabarismo com bolas de tênis, tem um“programa” mental de controle das bolas que pode ser aplicado abolinhas de papel, laranjas e outros objetos. Ocorre o mesmo nocampo do conhecimento intelectual. Temos um “programa men-tal” que aplicamos aos mais variados tipos de problemas filosófi-cos.

Uma habilidade de pensamento bem treinada é executa-da corretamente de forma inconsciente ou semiconsciente, ouseja, não pensamos “estou fazendo um raciocínio” ou “estou de-duzindo isto”, embora possamos descrever dessa forma quandoperguntados sobre o que estamos fazendo.

Quando você se vê diante de uma situação para a qual temuma estrutura de pensamento apropriada, natural e tranqüila-mente você lida com a situação. Caso contrário você “empaca”.Isso é o que ocorre geralmente quando estamos diante de umasituação para a qual não temos uma habilidade de pensamentoapropriada ou que está além dos limites das habilidades atuais:simplesmente não sabemos o que fazer. Em algumas situações,temos a habilidade bem instalada, mas é preciso certos ajustes,como quando lidamos com um aparelho eletrônico diferente: te-mos que nos ajustar à sensibilidade dos botões e à posição doscomandos.

Isto em relação a algo tão instrumental como é o trato comum aparelho eletrônico. Agora imagine você quantos ajustes de-

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vemos fazer nas questões vitais de nosso ser.É o que pretendo com este livro. Formar em você um pa-

drão de pensamento tal, que natural e de forma inconsciente elefuncione nas diversas situações de sua vida. Este livro deve serum livro de cabeceira, de estudo e de reflexão. Aplique-o e vocêverá os resultados em sua vida. Se não der certo devolveremos oseu dinheiro em trinta dias. É ruim, hein? Mas é claro que dácerto.

Mas para formarmos um novo padrão de pensamento, pri-meiro temos que entender o velho padrão que está arraigado emnossa mente e que há muito já devia ter ido embora. É por istoque este livro também trata da saga “saindo da Matrix”. Mas estaMatrix não é aquela digital e que contém um mocinho metido aMessias dando golpes de karatê. É a Matrix formada pelos pa-drões mentais da humanidade e de toda a produção cultural vi-gente. E o Messias aqui tem que ser você mesmo, e ao invés deartes marciais, o que você tem que aprender a usar é o poder dopensamento.

Há muito o homem vive preso. Muitos tutores, depois deterem embrutecido a imensa maioria da humanidade como sefosse um gado doméstico, para que não ouse dar nenhum passofora de suas diretrizes, mostram a ela o quão perigoso é tentarandar sozinha. É isto o que quer ensinar Kant ao dizer que existeuma menoridade racional, uma situação onde um indivíduo qual-quer deixa de fazer uso de seu próprio entendimento para unica-mente seguir a direção dos outros. A não ser que venha apresen-tar alguma debilidade mental ou qualquer outra disfunção cere-bral, o homem é o próprio culpado dessa menoridade, principal-mente devido à falta de coragem de servir-se de si mesmo sem adireção da astúcia alheia. A preguiça e a covardia são as causaspelas quais uma tão grande parte dos homens permanece menordurante toda a vida, esperando que tutores deles tomem conta,ora levando-os até as margens tranqüilas de uma pseudo-segu-rança, ora levando-os em direção ao matadouro cruel da autodes-truição.

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Assim sendo, prego com Kant a necessidade do sapereaude, isto é, a necessidade de termos a coragem de fazer uso denosso próprio entendimento, de tomarmos as rédeas de nossoaperfeiçoamento, assumindo nossa parcela de responsabilidadena saga da evolução. Que a Luz se faça na mente de todos oshomens. Porém, nunca sem nenhum esforço. E talvez o maioresforço que possamos fazer em direção à Luz é deixarmos de tra-var luta contra Ela.

Não obstante, sabemos que a maioria das pessoas aindapor um bom tempo será vítima do medo e da preguiça, deixando-nos diante de uma escolha difícil: ou nos esforçamos por esclare-cê-la nem que seja à força, tornando-nos antidemocráticos e acrí-ticos, ou a abandonamos à deriva, correndo o risco de que um diaela se volte contra nós e nos esmague, pois hoje mais do quenunca a turba é perigosa, visto que o número de seus integrantesaumentou prodigiosamente.

Elevar-se, sair do marasmo da vida, atingir o reino dos gê-nios e dos homens fortes, eis o grande desafio. A distância queexiste entre um Platão, um Newton, um Einstein e o homemcomum parece ser bem maior do que a distância entre o homemcomum e o gorila. A maioria dos homens não passa de uma mis-tura de orangotango com astúcia. Aqueles que conseguem ir umpouco além desta mistura vulgar a massa ignara os considera comosantos, gênios ou simplesmente demônios. Crucifica-o! Queime-o vivo! Enforque-o! Apedreja-o! Demita-o! São os ecos de desespe-ro dos que ficaram para trás.

Mas aqui cabe uma pergunta crucial: por que tão poucosconseguem se elevar alguns pontos além do que a maioria pres-creve?

É que existem dois grandes entraves que se colocam comoguardiões das regiões superiores: a preguiça e o medo. Estes sãoos mais próximos companheiros de jornada do homem comum.

Cada um pode mudar a sua vida a qualquer momento seassim o desejar. Basta coragem, pensamento correto e um poucodaquilo que os iluminados chamam de ideal e os sacerdotes cha-

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mam de Fé. Sem Fé nada de bom é feito nesta terra. Mas atentembem: eu disse fé (confiança/fidelidade ao pensamento unívoco) enão simplesmente crença ou hábito supersticioso.

Já que pensar é grátis, e ainda por cima não dói, vamosfazer bom uso desta capacidade que o Criador dos Mundos nosconcedeu.

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CAPÍTULO1

SAINDODAMATRIX

O Poder das Crenças

Você algum dia já parou pra pensar que a sua vida, desde oseu nascimento até hoje, é toda fundamentada em crenças? Eque estas crenças, em sua grande maioria, foram herdadas dosoutros, sofrendo quase nada de influência sua? Sim, um mundoreal já existia aí quando você veio a este mundo, e já existia tam-bém toda uma gama de conceitos que as pessoas usavam parainterpretá-lo.

Que bom que tenha sido assim, não é? Imagine o serhumano se tivesse que aprender por conta própria tudo aqui-lo que é necessário para a sua sobrevivência, sem o recebi-mento dos conhecimentos adquiridos dos outros. Não sobrevive-ria muito tempo.

Contudo, aquilo que era pra ser uma dádiva acabou viran-do também uma espécie de maldição.

Sim, no que concerne às nossas atitudes mentais em rela-ção às coisas, parece que elas tornam-se óculos coloridos pelosquais olhamos o mundo. Mais ainda. Quando as atitudes men-tais se enraízam assemelham-se a muros invisíveis que nos apri-sionam no reino dos preconceitos. Ficamos presos na prisão semmuros. Não há nada a nossa volta a nos prender, mas não conse-

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guimos sair de nossa própria hipnose. Acabamos por imitar o sapoda anedota indiana que incessantemente queria compreender aextensão do Oceano com os critérios de um poço.

Certa vez havia um sapo num poço, e quando um amigoinformou-lhe da existência do Oceano, ele perguntou-lhe:

“O que é o Oceano?”“Ele é um vasto poço de água”, replicou o amigo.“Mas qual o seu tamanho? É duas vezes o tamanho deste

poço?”“Não. Muito maior.”“Quantas vezes maior?”, insistiu.E assim prosseguiu o sapo com seus cálculos, mesmo sem

ter adquirido as mínimas condições de entender a vastidão doOceano.

Alguém que nunca saiu de sua tribo corre o risco de pen-sar que sua tribo é o mundo todo. As civilizações americanas dosIncas, Maias e Astecas parecem ter sofrido dessa patologia quan-do consideraram, por meio de suas lunetas mentais, os espanhóisinvasores como deuses salvadores montados em carruagens.Não atentaram para a possibilidade de haver uma outra cultu-ra, com avanços tecnológicos diferentes, porém, bárbaros aindaem muitos aspectos.

Uma das razões da ocorrência desta patologia é que a es-trutura do pensamento humano parece ser determinada, da in-fância à juventude, por idéias e sentimentos que tivemos ou re-cebemos durante o processo de formação, principalmente pelainfluência de personalidades fortes que nos rodeiam. É possívelque estejamos fazendo muito mal a nossos filhos na intenção delhes fazer o bem! Sem dúvida, tudo isto vai se constituindo na“luneta mental” pela qual a pessoa observa as coisas.

Einstein já dizia:

“Bom senso é o conjunto de todos os preconceitos que adquiri-mos durante nossos primeiros dezoito anos de vida”

Então, o mundo de crenças que recebemos de nossos an-

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cestrais não deixa de se constituir numa MATRIZ por meio daqual entendemos a realidade.

AMatrix

No final do século XX um filme roubou o cenário do cine-ma mundial. A partir de sua performance no cinema, ele passoua ser assunto de reflexão também nos círculos filosóficos. Neo, opersonagem principal, sai da Matrix e é considerado o Escolhidoque vai libertar os homens de uma tirania virtual.

O que muita gente não sabe é que os idealizadores destefilme se fundamentaram em idéias filosóficas antigas. Buscaramem Platão, nos gnósticos antigos, na sabedoria do budismo e nafilosofia de Descartes a idéia de que o que chamamos de mundoreal pode não passar de uma mera ilusão, criada por alguém afim de nos enganar.

Aliás, é conhecida dos filósofos a hipótese do Cérebro numaCuba, uma idéia muito usada nos filmes de ficção científica dosanos cinqüenta. É uma atualização do gênio maligno cartesiano,que segundo Descartes, mantêm os homens na ilusão de que omundo é real, e assim ficam mantidos fora da esfera da divinda-de. O cenário do cérebro numa cuba é uma experiência mentalconcebida para mostrar a plausibilidade do cepticismo radical (queduvida da existência de tudo). Um cientista teria em seu labora-tório um cérebro numa cuba, e introduziria neste cérebro toda aexperiência do mundo real. É uma forma de Matrix, só que maisprimitiva, com certeza coisa de terceiro mundo.

Platão há mais ou menos 2.500 anos atrás falava de algomuito parecido, quando elaborou o Mito da Caverna, metáforado mundo sensível (material) e do corpo humano ao mesmo tempo.

A alegoria descreve homens vivendo numa caverna sub-terrânea que se abre para a luz por meio de uma galeria. Os mora-dores desta caverna vivem presos desde a infância, e só conse-guem enxergar as sombras dos objetos que passam fora dela, pro-jetadas no fundo cavernoso como se fosse numa tela de tv. Esta

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projeção se dá devido à luz do Sol fora da caverna e dos clarões deuma fogueira dentro dela, fazendo com que os prisioneiros to-mem as sombras por realidade. Aliás, para estes prisioneiros, es-tas sombras são a única realidade que conhecem. Elas são a suaverdade. Não é difícil imaginar esta cena da Caverna; é muitoparecida com aquelas encenações teatrais em que se usa a proje-ção de sombras por meio de um tecido branco.

A partir disto Platão descreve a libertação de um dos prisi-oneiros: este reconhece o engano em que permanecera até en-tão, descobrindo a encenação a que estava encerrado e, saindo daprisão, começa a contemplar a verdadeira realidade existente láfora. Aos poucos, aquele que fora habituado à sombra, vai poden-do olhar o mundo real. Primeiramente olha para as coisas querefletem a Luz (a fim de não prejudicar os olhos) para em seguidaolhar diretamente para o Sol, fonte de toda Luz e realidade. Esteliberto, levado pelo desejo de retribuir ao Cosmos a dádiva quelhe foi proporcionada por esta libertação, volta ao mundo dassombras para instruir seus companheiros. Alguns entenderão suaatitude, mas irão preferir continuar (por preguiça ou por medo) aviver na caverna escura; poucos o seguirão até o mundo real everdadeiro; muitos irão querer matá-lo: “como ousas, homemdestemido, perturbar nossa paz e nosso sossego?”

Que triste destino o destes prisioneiros, como vítimas quenão têm consciência, pois vivem na ilusão: eles não têm outroreferencial senão as sombras que divisam no fundo de seu covil!Isto equivale a dizer que os seres humanos comuns (que não pen-sam e vivem só pelas crenças) mal chegam a ser superiores aosmortos. Segundo Platão, ao subordinar sua vida à satisfação deseus apetites, o ser humano não pode sair do reino das trevas e,longe de emancipá-lo, a vida em comunidade o encerra cada vezmais nele. Para se libertar, só existe uma saída: sair da caverna, oque implica dar as costas à multidão, dar às costas ao pensamen-to massificado.

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Saindo da Matrix

Bom, em primeiro lugar, para se sair da Matrix é precisoter consciência de que se está nela. É preciso pelo menos descon-fiar de que existe uma outra realidade além daquela que se ob-serva e experimenta. Após o diagnóstico, é preciso aceitar a pato-logia a fim de que o médico possa ministrar o tratamento ade-quado. É o que ocorre muitas vezes com o alcoolismo: a pessoaque sofre o problema geralmente precisa aceitar a realidade dele,caso contrário nenhum tratamento se mostra eficaz.

Para aqueles que estudam, as instituições de ensino deve-riam ser aqueles luminares que mostrariam quão espessas são astrevas da ignorância do homem comum. Contudo, na maioria dasvezes o que elas fazem é promover a continuidade da projeçãodas sombras, a continuidade da Matrix. Por que? Porque noBrasil ainda não se descobriu a real importância de uma edu-cação para o bom pensar. O regime militar nos levou a ficaranos sem este tipo de educação e hoje está difícil encontrarmos ocaminho de volta. Pensar, para a maioria das pessoas parece seruma coisa que dói.

Que pelo menos o aluno do Ensino Superior encontre nomundo acadêmico uma atmosfera propícia para o pensamentolivre e autônomo. Mas devido às influências das leis de mercadoe da política de rápidos resultados, muitos alunos querem o di-ploma, querem no máximo o conhecimento técnico profissional,mas não querem uma educação para o pensamento. E é esta edu-cação a que está cada vez mais fazendo a diferença entre o bomprofissional e o medíocre. Aqueles que estão entrando no merca-do de trabalho hoje já estão percebendo isto e sentindo-se pordemais despreparados, o que os fazem buscar cursos complemen-tares e formação contínua: o que muitas vezes custa caro e exigedispêndio enorme de tempo e esforço.

Mas então como implementar esta cultura de formaçãodo pensamento lógico e robusto, que nos auxiliará a deixarmos aMatrix?

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Para tanto vamos estudar nas páginas seguintes estes trêstemas: o papel da filosofia, a importância da crítica racional e amudança de paradigmas.

O Papel da Filosofia

Pensando em desenvolver o pensamento livre e autôno-mo é que nós devemos cada vez mais incentivar a presença dedisciplinas filosóficas nos cursos acadêmicos. Estas disciplinasauxiliam na formação de um pensar robusto, lógico e consistente.

Esta formação para o pensamento começou a ser muitoincentivada na Grécia há mais de 2.500 anos. No século de Péri-cles, em época de pleno desenvolvimento econômico grego, hou-ve a atmosfera propícia para o surgimento de um novo tipo desaber: a filosofia.

De repente, embora reais esforços sejam feitos, jamais va-mos abarcar por completo o que veio a favorecer o surgimento dosaber filosófico naquela civilização. Mas vejamos alguns motivos.

A localização geográfica da Grécia permitia uma ampla ati-vidade comercial; a atividade comercial favorece o intercâmbiode pensamento entre as culturas diversas. Desta forma os gregosconseguiram absorver muito do saber de outros povos.

O povo grego não possuía um governo teocrático, comomuitos povos da antiguidade possuíam; no governo teocrático osaber fica nas mãos dos sacerdotes, não podendo por isto ser cri-ticado, pois sendo sagrado, qualquer crítica seria considerada uminsulto à divindade – isto ocorria entre os egípcios, entre os hin-dus e os povos da mesopotâmia. Mas entre os gregos havia a nas-cente democracia, que permitia certos debates políticos em praçapública, favorecendo o surgimento da dialética (método dialógi-co) no campo do conhecimento.

Com o desenvolvimento e prosperidade das cidades gre-gas, houve o surgimento do ócio (vida folgada e tranqüila), quefavorecia tempo livre para ser dedicado às artes e ao conheci-

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mento. Algumas pessoas tiveram condições de dedicação ao pen-samento, enquanto outras se dedicavam à produção dos bens ne-cessários à sobrevivência imediata deles próprios e daqueles quepensavam. Você acha isto injusto? Mas cuidado! De repente onosso sistema seja mais injusto que o deles.

Tudo isto, aliado ao espírito e caráter do povo grego, favo-receu o amor à sabedoria (Filo+Sophia), como vemos retratadoneste texto de Epicuro:

“Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem,nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém ja-mais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar asaúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filo-sofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesseque ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz. Des-se modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: paraquem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através da gra-ta recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poderenvelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é ne-cessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, jáque, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo faze-mos para alcançá-la. (…) medita, pois, todas estas coisas e mui-tas outras a elas congêneres, dia e noite, contigo mesmo e comteus semelhantes, e nunca mais te sentirás perturbado, queracordado, quer dormindo, mas viverás como um deus entre oshomens. Porque não se assemelha absolutamente a um mortalo homem que vive entre bens imortais.” Foi com essas palavrasque Epicuro, filósofo nascido em 341 a.C. na ilha grega de Sa-mos, nos convidou a filosofar em sua “Carta sobre a felicidade”.

Este texto retrata uma verdadeira paixão pelo conhecimen-to, pelo pensar, pela reflexão livre e autônoma.

Não sei bem o que você imagina ser a filosofia, mas queroapresentá-la como uma grande amiga que trazemos dentro de nós.Filosofar não é coisa do outro mundo, é coisa desse mundo. Nãoé uma viagem nas nuvens. A idéia de que só os grandes filósofostiveram o direito e poder de filosofar é errônea, pois todos nóspodemos nos dedicar à filosofia. Talvez filosofar devesse ser algo

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assim como dançar, brincar, cantar, enfim, como viver. Podemosfilosofar quando estamos sozinhos, absortos em nossos pensa-mentos, lendo um livro ou admirando um quadro, mas tambémpodemos filosofar em companhia de alguém, o que é, na maioriadas vezes, muito mais conveniente.

A filosofia, no que tem de melhor, é mais uma atividadedo que um corpo de conhecimentos. Em um sentido antigo, cor-retamente aplicado, é uma arte terapêutica (no sentido de se en-tender a si mesmo e a vida). É autodefesa intelectual. É uma for-ma de terapia. Mas também é muito mais. A filosofia é traçarmapas para a alma, cartografia para a jornada humana. É umaimportante ferramenta navegacional para a vida, embora despre-zada pelo homem moderno.

Filosofia quer dizer “amor à sabedoria”: philos = amigo eSophia = sabedoria. Acredita-se que o termo foi cunhado por Pi-tágoras (569? a.C. - 470? a.C.).

Segundo ele, nenhum homem poderia obter a sabedoriacompleta e se tornar um sábio (sophos). Somente os deuses po-deriam ter essa posse certa e total do verdadeiro, mas não oshomens. O que é possível aos homens é a busca amiga do saber,que, no entanto, nunca será saciada por completo. Aos ho-mens é somente possível uma filosofia.

E o que pretende a filosofia?A filosofia pretende explicar a totalidade das coisas, sem

excluir nenhuma parte da realidade. Mas, não é isso que preten-de também a ciência?

Sim, cada ciência (Química, Física, Biologia, Astronomia,etc) procura explicar a realidade, mas escolhe apenas uma partedela. A Química, por exemplo, quer entender as transformaçõesda matéria, mas não se preocupa com os fenômenos relativos aomovimento dos corpos, o que são da conta da Física. A filosofia,diferentemente, quer saber a causa do conjunto de todos os fe-nômenos. Não quer apenas constatar que as coisas estão aí. Quersaber por que as coisas apareceram no mundo.

É importante saber ainda que a arte e a religião também

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tentam responder porque as coisas estão no mundo. A grandearte explica o mundo, apelando para os mitos e a fantasia imagi-nativa. Isto dá certo, mas dentro do terreno da arte. As grandesreligiões explicam o mundo, convidando à crença subjetiva e aconfiança (fé) na revelação. Isto dá certo, mas dentro do terrenoda religião.

E qual a maneira que a filosofia tem de explicar o mundo?A maneira de a filosofia responder a essa pergunta se apre-

senta como uma novidade para a época: é uma tentativa de solu-cionar a questão da origem do mundo e de todas as coisas neleexistentes, sem recorrer a outro caminho (método) que não sejao racional. Assim, as afirmações seriam aceitas por serem auto-evidentes e não porque foram reveladas para alguém, por algumadivindade. Os argumentos convenceriam por estarem bem mon-tados, por serem válidos, e não por serem impostos pela força deuma autoridade.

Hoje, quando tentamos responder porque alguma coisaacontece do jeito que acontece, é muito presente em nós a preo-cupação com uma explicação Iógica. Não podemos deixar de sa-ber que essa maneira foi inaugurada pelos gregos.

Aristóteles afirma que os homens “buscaram o conhecera fim de saber e não para conseguir alguma utilidade prática”.Mas isso só foi possível a partir do momento em que os proble-mas de subsistência estavam resolvidos. É preciso, portanto, es-tabelecer uma diferença entre o que é urgente e o que é impor-tante.

Não são sinônimos totais, mas significam, ou seja, apon-tam para coisas semelhantes. É urgente resolver questões refe-rentes à alimentação, à saúde, à habitação e ao vestuário. Tendo-as resolvido, podemos então nos preocupar com outras coisasque também são importantes, além das coisas urgentes.

Podemos afirmar ser verdade que “Todas as coisas urgen-tes são coisas importantes”, mas não ser verdade que “Todas ascoisas importantes são coisas urgentes”.

A filosofia surge, então, para tratar das questões impor-

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tantes da existência humana. Já as ciências surgem para resolverquestões de urgência, como conhecer os processos do plantio eda criação de animais para matar a fome, conhecer a resistênciados materiais e o equilíbrio das coisas para construir habitações,conhecer o processo de proliferação de vírus e bactérias para evi-tar ou curar as doenças, etc.

O homem livre é aquele que não está submetido a outros,mas é um fim em si mesmo. Da mesma forma, podemos pergun-tar: qual é o conhecimento que não está submetido a outros, masé um fim em si mesmo? Entre todos, somente a filosofia podedizer isso de si mesma. Podemos dizer, então, com Aristóteles,que “Todas as outras ciências podem ser mais necessárias queesta, mas nenhuma será superior”.

A filosofia pode ser uma aventura da mente. Exploraçãode cavernas intelectuais, alpinismo mental, expedição e reconhe-cimento cognitivo. Às vezes, pode parecer uma versão conceitualdos esportes radicais.

Pelos paradigmas humanos, podemos dizer que os animaisnão filosofam porque não raciocinam e, se existirem os deuses,estes não filosofam porque já sabem. Assim, filósofo parece sersomente o Homem. Entre os deuses e os animais, somos um meio,um canal de passagem. Talvez uma corda esticada entre duas na-turezas. Essa parece ser a nossa condição. Para o filósofo JeanPaul Sartre, isso poderia ser o sinal da nossa solidão e angústia nomundo; para outros, ao contrário, significa que estamos diantedo desafio de evoluirmos em direção ao que julgamos mais nobree divino.

Nas ocasiões em que forçamos a pesquisa filosófica até oslimites de nossas visões de mundo, vemo-nos temporariamenteabandonar as premissas costumeiras, esperando que o pára-que-das em queda livre intelectual abra quando precisarmos. O obje-tivo é experimentar as fronteiras externas de nossas crenças co-muns, vir a entender o status de nossos pressupostos mais im-portantes, aquelas convicções básicas que respaldam as perspec-tivas e decisões que governam nossas ações do dia-a-dia e quenormalmente aceitamos acriticamente.

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A mente é uma arma poderosa, cujo projétil é o nosso pensa-mento. Só que ocorre um detalhe no processo: o primeiro resul-tado do disparo se dá naquele que o emitiu. (Eugênio).

Portanto, para sairmos da Caverna de Platão, da Matrix, énecessário estudarmos um pouco de filosofia.

O primeiro homem a escapar da caverna da ilusão em quevivemos, segundo Platão, é o filósofo; é aquele dentre nós queconsegue perceber que vivemos, de certa forma, vidas de ilusão,aprisionados por sombras e correntes que não foram criadas pornós. Ao voltar à caverna com seu estranho relato de outras reali-dades, ele será aclamado por alguns e vaiado por outros. Tende-mos a nos acomodar às nossas ilusões, e qualquer idéia que ve-nha colocar nossa pseudo-segurança em perigo tende a ser recha-çada sem reflexão. Assim, somos facilmente ameaçados por quais-quer relatos estranhos de realidades maiores. Mas o verdadeirofilósofo tenta libertar o máximo de companheiros cativos, paraque vivam nas realidades mais amplas e brilhantes que residemalém dos estreitos limites de suas percepções costumeiras.

Esta é uma imagem viva da derradeira tarefa da filosofia.Sua meta é libertar-nos da ilusão e ajudar-nos a captar as realida-des mais fundamentais.

Sob que ilusões você está vivendo agora? Que coisas vocêvaloriza sem realmente terem a importância que você Ihes atri-bui? Que coisas realmente valiosas você pode estar ignorando?Que suposições você faz sobre sua vida que podem se basear emaparências, em vez de realidades? A maioria das pessoas está acor-rentada por todo tipo de ilusão. A filosofia, quando bem pratica-da, pretende nos ajudar a romper esses grilhões.

Na verdade, não temos opção quanto a termos ou não umafilosofia, quanto a sermos ou não filósofos. Inevitavelmente, agi-mos a partir de certa visão de mundo filosófica, por mais bemformada ou incompleta que seja. Nossa opção é entre a má filoso-fia, irrefletidamente absorvida da cultura à nossa volta e dos pre-conceitos de nossa época, ou a boa filosofia, baseada no ques-tionamento crítico e no pensamento sustentado.

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Podemos ser maus pensadores ou bons filósofos. Mas aqualidade advém apenas mediante muito exercício de pensamen-to e extremo cuidado. Assim, o pensamento cuidadoso favorecea melhor filosofia. Sua filosofia de vida o aprisiona ou o liberta?Neste curso, procuro contestar alguns dos mitos e lugares-co-muns de nossa própria época e sair da caverna de nossasfalsas suposições. Busquemos o esclarecimento filosófico, a li-bertação filosófica.

O primeiro dia do resto de sua vida não precisa começar eacabar na Caverna de Platão.

AImportância da Crítica Racional

No que concerne ao tratar as coisas de forma racional, de-vemos mais uma vez dar o mérito aos gregos.

Segundo Alfred North Whitehead, em seu magistral livroA Função da Razão, a antítese entre a razão prática e a razão espe-culativa não é tão aguda quanto parece à primeira vista. A razãoespeculativa produz o acúmulo de compreensão teórica que, emmomentos críticos, possibilita o surgimento de novas metodolo-gias. Por sua vez, as descobertas de conhecimentos práticos for-necem a matéria-prima necessária ao sucesso da razão especula-tiva.

A moderna fase da razão especulativa é atribuída apenasaos gregos, com uma certa dose de exagero. Ora, as grandes civi-lizações asiáticas indiana e chinesa também produziram excelen-tes obras variantes do mesmo método. Entretanto, nenhuma ci-vilização igualou os gregos na perfeição técnica do método. Osgregos tiveram sucesso em produzir o instrumento final para odisciplinamento da especulação. Tiveram a audácia em desven-dar para a humanidade o inacreditável segredo de que a razãoespeculativa estava, ela própria, sujeita à ordem e método1 .

1 Cf. Whitehead. A Função da razão, p.32.

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O segredo grego é ter descoberto como a especulação podeser direcionada por um método, mesmo em sua transcendência.A civilização ocidental por um longo período de tempo, em favorda função prática da razão, relegou sua função especulativa e osesquemas abstratos. Tudo tinha que estar apenas relacionado aolado prático da vida. Quando conseguiu unir as duas funções darazão o progresso da ciência se deu. Muitos haviam visto objetoscaírem, mas Newton tinha em sua mente um esquema matemá-tico para explicar o processo; muitos haviam visto os animais seentredevorando, seres vivos passando fome e sede, mas Darwintinha em sua mente o esquema malthusiano. Foi esta a posturaque os gregos nos legaram e podemos delineá-la em quatro carac-terísticas.

Primeiramente, os gregos eram insaciavelmente curiosos;investigavam e questionavam todas as coisas, ou seja, foram es-peculativos no mais elevado grau.

Segundamente, foram rigidamente sistemáticos em seusobjetivos, pois trabalhavam com consistência lógica.

Em terceiro lugar, os gregos foram onívoros em seus inte-resses: dedicavam-se ecleticamente a várias disciplinas, sem frag-mentação, sem separação rígida entre elas. Finalmente, foramhomens imbuídos de verdadeiros interesses práticos. Platão nãosomente elaborou sua teoria política, como viajou à Sicília a fimde dar assistência política àquele reino e colocar em prática suateoria. Aristóteles, por exemplo, nos deixa admirados de comoele conseguia dispor de tempo para pensar, visto que se dedicavaa enumeráveis atividades práticas: dissecava animais para estu-dos, analisou e escreveu sobre as constituições das principais ci-dades-estado gregas. Sim. Engana-se aquele que pensar ser a filo-sofia grega uma “viagem”.

Posso dizer que desde o início a preparação filosófica deveassumir um caráter essencialmente crítico, permitindo debatesdos problemas básicos de tal modo que não sejam cerradas asportas da pesquisa às discussões ulteriores. Com a presença deatitude dogmática não se inicia pesquisa de cunho reflexivo.

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Muitos, ao lerem os diálogos Platônicos, percebem a atitude críti-ca ali presente, como um canto alternado do pró e do contra, nãotrazendo respostas conclusivas, mas incitando os interlocutores(inclusive o próprio leitor) a novas buscas.

Esta atitude filosófica que vem sendo retomada por algunspensadores após tanto tempo de esquecimento, foi criada na Gré-cia, no século VI a.C., contrastando ao sistema de outras métodosiniciáticos antigos, nos quais a Tradição era inquestionável, trans-mitida do Mestre que sabia ao discípulo que não sabia, que porfinal, ao adquirir a mestria, continuava a ensinar o que foi verda-de aos seus predecessores. Para os gregos, principalmente depoisde Tales de Mileto, o mestre parece se apresentar simplesmentecomo aquele que pesquisou por mais tempo do que o discípulo enão aquele que sabe mais; tendo ele mais subsídios e conhecen-do a amplitude de nossa ignorância, é o que mais tem condiçõesde perguntar e de estimular a crítica. Penso ser por este motivoque a filosofia esteja fora da educação de muitos países antide-mocráticos ou em vias de democratização (como é o caso do Bra-sil que saiu da ditadura): a pedagogia antiquada não permite adiscussão crítica.

No sistema grego acontecia o seguinte: o discípulo, alémde poder questionar e criticar o Mestre podia chegar a tecer umanova teoria, divergindo da tradição transmitida. Neste caminhotodos nada mais são do que seu próprio Mestre e Discípulo.

Crítica aqui jamais significa malhar o pau em pessoas ouidéias. Antes de qualquer coisa vem a ser uma análise criteriosa,ou seja, que estabelece critérios permitindo levar qualquer temaà sua profundidade. Para que surta efeitos em riquezas de novasidéias, esta atitude deve estar presente tanto em quem faz a críti-ca quanto em quem a recebe. Digamos que a atitude crítica limpaas escórias dos terrenos discursivos para que sejam feitas as no-vas conexões no campo do conhecimento.

“Os que questionam são sempre os mais perigosos. Respondernão é perigoso. Uma única pergunta pode ser mais explosiva doque mil respostas” (Jostein Gardner).

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Na primeira etapa do processo iniciático, o aprendiz deveusar a atitude crítica em sua coleta de dados; e por dados enten-do problemas levantados e trabalhados por pensadores ao longoda história.

Ao ler os filósofos e pensadores, ele se deve precaver dedois erros comuns ao neófito apressado, distintos por uma sutilseparação: a) o primeiro erro consiste em manter-se passivo, acei-tando tudo como se fossem dogmas (literalmente doutrinas fi-xas), imitando o ganso que engole tudo o que vê; b) o segundo,extremo do primeiro, consiste em criticar demasiado cedo os tex-tos antes mesmo de chegar à sua compreensão. Diante da obscu-ridade de um texto, antes de se aviltar em dizer que o autor er-rou, deve verificar os véus que ofuscam sua percepção.

Aprendi a ver estas armadilhas em mim mesmo: aos de-zesseis anos, julgando-os sem interesse, doei livros que aos trin-ta procurei avidamente por readquiri-los. Ora, os livros não mu-daram, eu é que amadureci em visão.

Já na Segunda etapa do processo iniciático, o caráter críti-co deve aparecer em todo o pensamento do filósofo; caso contrá-rio possivelmente tornar-se-á guru de um sistema fechado comqualquer nome seguido de “ismo” (dogmatismo, autoritarismo,etc.). Deve colocar suas teses para serem discutidas criticamentepor outros e ter consciência de que seu pensamento nada mais édo que um processo.

Mas em todo o processo o pesquisador deve buscar, alémda segurança, estar cingido de bastante humildade para aprender.

Preconceitos todos nós temos. Eles são pressupostos ante-riores que se enraízam em nossa mentalidade. É uma bagagemque temos que carregar inevitavelmente. Agora, o que podemosfazer é trabalhar com eles para que se tornem menos ofensivos.Ou seja, devemos transparecê-los aos outros a fim de que pos-sam ser criticados por eles. Mediante esta crítica eles poderão setornar menos ofensivos ou até serem destruídos de vez. Mas nãotodos de uma vez. Isto eu duvido. Aquele que diz que não tempreconceito já está tendo um preconceito em relação ao preconceito.

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Uma certa filosofia de vida todos nós seguimos, mesmosem o saber. O problema não está em ter ou não ter uma filoso-fia. O problema está em escolher entre uma boa e uma má filoso-fia. Geralmente não queremos pensar porque nossa péssima filo-sofia que seguimos não resistirá às críticas da racionalidade.

Mudança de Paradigmas

Já expus antes que nosso sistema de crenças é herdado denossos antepassados ou de nossos contemporâneos. Ou seja, elevem da realidade de nossa convivência social.

É famosa a citação do filósofo Aristóteles de que “o ho-mem é um animal social”, exposta em seu livro A Política, reite-rando ainda que para se viver sozinho é preciso ser ou um animal(uma besta) ou um deus. Realmente, ninguém é muita coisa sozi-nho. Até mesmo no sentido material nada se consegue sem aajuda dos outros. Imaginem só se para poder comer meu pão demanhã eu tivesse que plantar o trigo, moê-lo, preparar a farinhae mexer a massa sozinho; comeria pão uma vez por ano?

Na dimensão psicológica também percebemos a necessi-dade dos outros. É conhecido dos cientistas o caso dos “meninos-lobos”, crianças que foram criadas na selva, tendo alguns animaiscomo referências psicobiofísicas; elas apresentavam maneiras deser peculiares aos animais, inclusive certos grunhidos para co-municação entre si. Como a programação cerebral se dá em suamaior parte durante os primeiros anos de vida, ficou difícil tor-ná-las sociáveis entre os homens. Este caso serviu como provaaos cientistas de que o ser humano precisa do referencial de ou-tros de sua mesma espécie para que estruture sua própria perso-nalidade.

Conheço também o caso de um fazendeiro que por moti-vos de sobrevivência teve que acostumar uma ovelhinha a tomarleite de vaca e a conviver com o gado bovino. Encontrando-sesaudável e já maior, a ovelha foi colocada novamente no meio de

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sua espécie e, para espanto geral, manifestou crise de identidade.Assim, igualmente nos identificamos com as idéias que

fundamentam a vida mental do grupo. Esta identificação podetrazer segurança ao grupo e qualquer idéia que venha colocar estasegurança em perigo é considerada herética. É por isto que apoioentão o dizer de Bernard Shaw:

“Todas as grandes idéias começam por ser heresias”

A necessidade que temos dos outros é a principal causa daformação dos diversos grupos sociais. Mas aí surge a seguintequestão: se esta necessidade de viver em sociedade é a causa dosgrupos sociais, por que encontramos as sociedades divididas emclasses diferentes?

No caso individual, a “luneta da mente” muitas vezes levao pesquisador ao fechamento, ao dogmatismo, ou ainda, acabaunindo-se a um grupo de pessoas afins, que continuarão a perpe-tuar e defender a “verdade” doutrinal como se fosse um catecis-mo. Muitos autores pregam, seguindo o pensamento de Popper,que as nossas teorias devem ser postas à refutação, para que se-jam testadas e confirmadas. Mister se faz tomar cuidado paraque o método dialógico tão caro à pesquisa filosófica, não acabepor se tornar uma técnica retórica dos novos sofistas.

O termo paradigma hoje é muito conhecido do público de-vido a sua divulgação pelos autores e conferencistas do mundoda “autoajuda”. É explicado como padrões mentais do indivíduo,pelos quais ele interpreta a realidade. Mas para os discípulos daciência e da filosofia a compreensão do termo se dá um poucodiferente, após ser introduzido pelo cientista e historiador da ci-ência Thomas Kuhn. Embora cheio de ambigüidade, pois Kuhnutilizou-o em sua obra, Estrutura das revoluções científicas, devinte e duas maneiras diferentes, o termo geralmente é empre-gado para designar todo o conjunto de compromissos de pesqui-sas de uma comunidade científica: seus valores, suas crenças,técnicas, etc.

Ele expõe que após um período de ciência normal, de tran-

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qüilidade no qual um grupo de cientistas adere a um determina-do paradigma, ocorre uma crise e este paradigma não serve maispara resolver antigos problemas. Daí então acontece o que se cha-ma de revolução científica, quando um cientista, geralmente novona academia ou mais jovem, consegue romper com o antigo para-digma e apresentar novidades em sua área de pesquisa.

Num primeiro momento, a comunidade científica tal qualum concílio episcopal não aceita a nova revolução. Somente quan-do novos cientistas crescem acostumados com a nova luneta men-tal é que muita coisa se esclarece e acaba sendo aceita.

Posso citar como exemplo o que aconteceu na física. Quan-do Einstein se defrontou, face à experiência de Michelson-Mor-ley, com a ineficácia da mecânica de Newton para resolver o pro-blema da Luz, teve que introduzir uma nova suposição teóricaque se reconciliasse com os fatos experimentais. Fato semelhan-te acontece hoje com as novas descobertas da mecânica quântica,que vieram explicar outros aspectos da realidade dantes não ex-plicados nem pela teoria newtoniana nem pela teoria da relativi-dade. No campo científico denominaram este processo de mu-dança de paradigmas.

Todavia, os paradigmas são feitos a partir de pressupos-tos. Temos que falar também da questão dos pressupostos filosó-ficos.

Muitas vezes as revoluções científicas passam, mudam-seos paradigmas, mas certos pressupostos filosóficos permanecem.É preciso aprender a identificá-los.

Estes pressupostos fundamentam a vida do senso comum,a literatura, a organização social, a evolução tecnológica e nãoraro, de maneira sutil, até a ciência. Na literatura, por exemplo,temos a lista de “ismos” influenciados por correntes filosóficas,como o romantismo, o naturalismo, etc. Na economia tivemos oliberalismo econômico preparado pelas idéias de Locke (com seuEstado Natural), Adam Smith (com o princípio da mão invisível)e outros; o pragmatismo de nossa evolução tecnológica é outroexemplo. Outrossim, como a ciência hoje goza de status elevado

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junto ao público, é por meio dela que muitos pressupostos che-gam a influenciar a sociedade.

Um caso bem claro disso é a chamada “partição cartesia-na”. Ou seja, aquela idéia que nos veio de Descartes a respeito dadivisão entre alma e corpo.

Descartes estabelece a relação entre o “Eu” e o mundo atra-vés da polaridade entre “res cogitans” (coisa pensante) e “res ex-tensa” (coisa extensa/material), favorecendo a separação dos trêsconceitos fundamentais para a sua época, ou seja, Deus, mundoe o Eu. Deus ficou então separado tanto do Eu quanto do Mundo,alçado bem alto, acima do mundo e dos homens. Ocorreu tam-bém a separação entre matéria e espírito, entre alma e corpo,perdendo-se de vista o ideal dos antigos gregos que tentaram acharuma ordem, na infinita variedade de coisas e fenômenos, procu-rando algum princípio fundamental de unificação, ao contráriodo que fez Descartes procurando estabelecer a ordem por meiode uma divisão fundamental.

Não convém atribuir-lhe a culpa de dar uma nova direçãoao modo de encarar o mundo. Na verdade ele apenas formuloude maneira sólida os pressupostos subjacentes no pensamentohumano, que já eram sentidos na Renascença Italiana e na Refor-ma, após terem sido lançados pela filosofia de Platão na Grécia.O Platonismo, aproveitado por algumas religiões, acabou disse-minando a dicotomia existente entre matéria e espírito no pen-samento ocidental. Se esta dicotomia fundamentou diversos ali-cerces de nossa vida, por que razão nosso espírito científico esca-paria de seu campo de ação?

Lendo as obras de Descartes encontramos ali muitas ve-zes a presença de um conjunto coeso, e a fragmentação comouma forma didática, apenas para apresentação do conteúdo; osdiscípulos que se intitularam cartesianos exageraram por demaisesta divisão. Os animais, por conseguinte, foram consideradoscomo máquinas e não foi difícil pensar o mesmo a respeito doshomens.

Esse pressuposto filosófico, digo, esta “luneta mental”, teve

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grande receptividade nos meios da ciência natural. A mecânicade Newton, juntamente com as partes da física clássica construí-das segundo seu modelo, sofreram influência sutil deste pressu-posto, quando pretenderam descrever o mundo sem fazer men-ção ao espírito e às realidades humanas. A nossa medicina, du-rante muito tempo, considerava o corpo humano como uma sim-ples máquina que podia ser quebrada, independente do psiquis-mo humano. Só há pouco tempo é que a ciência médica começoua aceitar a influência da esfera psíquica no estado saudável oudoentio do corpo.

Um outro exemplo de pressuposto mental que ultrapas-sou gerações e ainda emite sombras veio com a teoria de Darwim:tanto o darwinisno como o neodarwinismo rezam que os orga-nismos, sob pressão da seleção natural, gradualmente se adap-tam ao seu meio ambiente até atingir o ajuste suficiente para asobrevivência e reprodução; mais, levou ao senso comum a idéiade evolução por meio da competição existente na natureza – a leido mais forte. Hoje, esse pressuposto dá lugar à idéia de coopera-ção no processo evolutivo – a vida evolui por meio de redes.

Ainda do pensamento darwiniano nos veio o pressupostodo “princípio oculto”. Darwin, para escapar (penso eu) de tocarno assunto criação ou transcendência e ao mesmo tempo nãoprecisar responder a pergunta “qual é a causa?”, fala em muitaspáginas de seu Origem das espécies: “a natureza fez, seleciona,etc...” Mas então a natureza tem vontade, objetivos? Por que en-tão não dar logo o nome de Deus? Alguns preferem atribuir acausa aos genes, tipo “o gene egoísta”, mas aposto que o gene nãoconcordaria com isto. Outros, embora abertos ao pensamento sis-têmico, nem percebem que professam o princípio oculto, comoFritjof Capra:

“Na nova visão sistêmica, ao contrário, a mudança evolutiva évista como resultado da tendência inerente da vida para criarnovidade, a qual pode ou não ser acompanhada de adaptação àscondições ambientais em mudança” 2 .

2 CAPRA, F. Teia da vida, p.182.

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Neste caso o princípio oculto foi atribuído à vida.Paradigmas foram mudando e alguns pressupostos perma-

necendo.Todavia, com o advento da teoria quântica, percebemos

que a ciência não se restringe simplesmente a descrever ou ex-plicar a natureza, mas que ela própria é resultado de nossa inte-ração com a natureza. Durante toda a história da ciência, a ma-neira como pensamos o funcionamento da natureza foi influen-ciada pelas ferramentas utilizadas para investigá-la. Assim tive-mos o relógio, o máximo da tecnologia na época de Isaac Newtone Descartes, que acabou estimulando conexões mecanicistas dosistema solar, influenciando igualmente a filosofia e mesmo idéiasteológicas. Tivemos ainda a máquina a vapor, que foi emblemada primeira revolução industrial; dela advieram modelos termo-dinâmicos que ressaltam o trabalho, eficiência e perda de calor,morte final do universo em expansão. Temos agora os computa-dores, capazes de processamento de dados e manipulação de in-formações. Como os cientistas utilizam estas máquinas numavariedade de aplicações, desde a criação de modelos de tempes-tades e estrelas binárias até sistemas humanos, pergunta-se mui-tas vezes – embora para alguns isto já seja verdade indiscutível –se os sistemas naturais não são, num certo sentido, sistemas deprocessamento de informação.

A nossa descrição do mundo é revelada pelo nosso méto-do de questionar. E nosso método de questionar está imerso numcontexto de conexões.

Vamos supor a existência de uma raça fora de nossa galá-xia e totalmente diversa da nossa. Embora inteligente, essa raçamanteria um firme preconceito contra o inobservável. Acredita-ria somente em coisas observáveis, tocáveis, etc., consistir-se-ianuma raça de positivistas lógicos. Não acreditaria em deuses oucoisas do gênero. Quanto ao observável, seria tão científica e atémais “racional” do que a humana, não sendo guiada erroneamentepor “preconceitos metafísicos”. Tal raça, poderia até desenvolveruma geometria para além do nível prático dos egípcios (nas me-

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dições de terras, por exemplo); consideraria sem sentido a noçãode uma linha reta sem espessura alguma, ou a noção de um pon-to sem quaisquer dimensões. Sequer especularia sobre átomos afervilhar no vazio, sobre a origem da vida ou coisa assim. E, o queé ainda mais estupendo, não desenvolveria a física e a matemáti-ca como são por nós conhecidas3 . A teoria de que nossa descriçãodo mundo é revelada pelo nosso método de questionar está rom-pendo com o antigo modo de pensar, porém, para que um novopressuposto venha suplantar o obsoleto, será necessária a elabo-ração de novos estudos filosóficos.

3 Para esta metáfora, fiz uma adaptação de Hilary Putnam, em Realismo de rostohumano, p.233-34.

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CAPÍTULO2

AAVENTURADOPENSAMENTOI

Pensamento: prerrogativa de todos

Talvez seja mais fácil pensar do que definir o que seja opensamento em si.

A filósofa Hannah Arendt enfrenta o desafio de dizer oque é pensar em seu livro A vida do espírito.

Em suas palavras:

“O pensamento acompanha a vida e é ele mesmo a quintessên-cia desmaterializada do estar vivo. E uma vez que a vida é umprocesso, sua quintessência só pode residir no processo real dopensamento, e não em quaisquer resultados sólidos ou pensa-mentos específicos. Uma vida sem pensamento é totalmentepossível, mas ela fracassa em fazer desabrochar sua própria es-sência - ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmenteviva. Homens que não pensam são como sonâmbulos”. (Aren-dt, 1995, p. 143).

Pensar é uma prerrogativa de todos. Esta é a grande con-quista do século das luzes: todos os homens são racionais e po-dem, portanto, pensar de forma correta.

Mas infelizmente nem sempre foi assim.Na ofegante história da evolução humana, por um longo

tempo somente alguns homens foram considerados providos de

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racionalidade. Vamos dar uma volta ao Egito. Lá, a classe sacerdo-tal era a única detentora dos conhecimentos e, portanto, consi-derada racionalmente superior a todas às outras abaixo dela napirâmide social. Para os egípcios, havia um clima de sagrado emrelação à sabedoria e somente aqueles que realmente poderiamproduzir algo em contribuição a ela é que eram admitidos nasescolas de mistérios; para isto estabeleciam duras provas e umlongo noviciado para testar as têmporas do candidato aos estu-dos; ficava longe da família por longos anos, viajava longa distân-cia sem saber ainda se seria realmente admitido pelos seus mes-tres.

Duas considerações podem ser feitas sobre esta estrutura.Por um lado, ela realmente favorece que somente aqueles

que poderão produzir algo de valor terão condições de dispor detempo e recursos para dedicação aos estudos. Para que o conjun-to social possa evoluir, alguns que não têm exercido a capacidadepara a produção de conhecimento devem trabalhar para o sus-tento daqueles que têm condições de alguma produção neste sen-tido. Os organismos menos lúcidos e mais simples devem proveros organismos mais lúcidos e mais complexos. E utilizar destaestrutura era o máximo que os egípcios podiam fazer com a cons-ciência possível para a época.

Mas a classe sacerdotal é constituída de homens e homenssão corruptíveis; ela fez alianças com os poderosos da época quelogo viram nesse sistema uma forma de elitização social e de do-mínio dos “ignorantes”. Aumentaram cada vez mais a distânciaentre aqueles que sabiam e aqueles que não sabiam. E o pior:procuraram a todo o custo manter as massas na ignorância.

A nossa sociedade também tem sua forma de estabelecera elitização na busca do conhecimento. Ela se baseia principal-mente no aspecto econômico, que divide os que podem estudaros cursos caros dos que só podem estudar os cursos baratos. Enem sabemos direito como sair desta situação.

Não é à toa que todo reino da antiguidade possuía umséqüito de sacerdotes que eram os detentores do conhecimento:

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para eles era bom que os explorados não soubessem de sua ver-dadeira situação. Na Índia, por exemplo, encontramos a casta dosBrâmanes, uma espécie de classe sacerdotal e que também man-tinha o controle do conhecimento só para si. E na Índia a distân-cia entre as castas foi fundamentada na teoria da reencarnação.Sim, somente aqueles que reencarnam na casta dos Brâmanestêm o direito de conhecer mais, visto que suas obras realizadasem encarnações precedentes favoreceram tal privilégio.

Por outro lado, esta estrutura pode retardar o avanço doconhecimento, visto que haverá pouca discussão, pouca movi-mentação crítica em relação ao que foi estabelecido como verda-deiro; sem falar ainda que as guerras podem dizimar o pequenogrupo de sábios e lá se vai todo o conhecimento adquirido.

Nossa civilização ocidental pensa ter achado uma soluçãomelhor do que a estrutura antiga usada pela classe sacerdotal:expõe o maior número de conhecimentos para o maior númerode pessoas (mesmo àqueles que não querem conhecimento) eassim ocorrem mais discussões, desenvolvimento mais rápido.Não quero dizer com isto que quantidade deva significar qualida-de, contudo hoje temos consciência de que o saber se desenvolvepor discussão crítica e quanto mais pesquisadores estiveremenvolvidos no processo maior seleção de teorias poderá haver.Basta observarmos que 85% dos cientistas da história humanaviveram no século XX, no qual ocorreram os maiores avanços deque dispomos.

Já na Grécia dos filósofos não havia a classe sacerdotal e areligião não se portava como diretora dos assuntos do Estado.Mesmo assim nem todos eram considerados racionais. Havia naGrécia uma hierarquia ontológica bem específica: primeiro vinhamos deuses, depois os homens livres, seguidos por mulheres e cri-anças, depois vinham os homens estrangeiros residentes (libe-rais ou comerciantes) e por final vinha o segmento dos escravos.Os únicos considerados cidadãos eram os homens livres, porqueeram os únicos considerados racionais e aptos para as discussõespolíticas nas praças públicas. Esta situação foi sendo amenizadadurante a época do helenismo, mas mesmo assim alguns foram

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considerados mais racionais do que outros.Na Idade Média os nobres e o clero se consideravam mais

racionais do que os servos. Ou ainda, houve uma tentativa derecuperação do sistema sacerdotal como detentor dos conheci-mentos. As instituições religiosas quiseram imitar de forma gro-tesca o sistema iniciático antigo. Isto tanto pegou, que durantemuito tempo as massas incultas consideravam os padres comoos únicos que “tinham conhecimento”.

Mas a situação mudou com a vinda da modernidade. E oprimeiro arauto destes novos tempos foi René Descartes. Ele rom-peu com os mundos antigo e medieval ao afirmar que todos osseres humanos são providos de racionalidade. Talvez esta postu-ra de Descartes passe desapercebida para nós, que consideramosóbvio que todos os homens sejam racionais. Mas é um fato: até àIdade Moderna nem todos eram assim considerados. Isto não eratão óbvio assim. A partir desta base cartesiana, ficou estabelecidoque a causa dos erros não se encontra na ausência da razão, masna falta de um bom método adequado para sua aplicação.

Uma Brecha para se sair da Matrix

Contudo, já faz um bom tempo que foi dito aos homensque a razão é a coisa mais bem distribuída do mundo e, mesmocom o surgimento de vários métodos, os erros continuaram a fa-zer parte de suas buscas. Ou seja, mesmo com a razão estandoexercitada por um bom método, os homens viram uma certa insufici-ência permanecer na sofrida busca do conhecimento verdadeiro.

Tudo isto porque infelizmente ainda nem todos preferemusar a racionalidade, a faculdade de pensar que o Criador lhesconferiu. É uma insuficiência que nos persegue há bastante tem-po. Vejamos a crítica que Kant fez aos membros da sociedade desua época na obra Resposta à pergunta: o que é o Esclarecimen-to?, escrita em 1783. Na verdade, o texto da obra consiste numartigo que Kant escreveu para a revista Berlinische Monatsschrift,

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em resposta ao artigo do jovem teólogo Johann Friedrich Zöllner(1753-1804) que se manifestou com irritação, na mesma revista,contra uma proposta anônima para abolição do casamento religi-oso. Kant havia ficado indignado com a irritação do referido pas-tor que desejava para si ovelhas destituídas da capacidade depensar. Se o artigo de Kant fosse editado hoje, com certeza nãoperderia sua atualidade. Nele Kant faz uma análise das razõesque mantêm o homem na menoridade racional.

“Esclarecimento (Aufklärung) é a saída do homem de sua me-noridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a inca-pacidade de fazer uso de seu entendimento sem direção de outroindivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade sea causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas nafalta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a dire-ção de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de fazer uso de teupróprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento” 4.

Podemos salientar no trecho acima dois aspectos: a) Kantatribui ao próprio ser humano, desde que não venha a apresen-tar alguma debilidade mental, a responsabilidade pela própriaignorância (o não querer saber), proporcionando-lhe a situaçãode mediocridade em que se encontra. Ele acentua ainda o carátermoral presente nessa opção que o homem faz pela menoridadeou pela maioridade, fazendo desse tema objeto de estudo da éti-ca. Outro aspecto, b) é que Kant deixa transparecer nesta citaçãoacima um conceito de razão, ou seja, ele a vê como uma capacida-de (do alemão Vermögen), e como tal, pode ser desenvolvida. Amenoridade, então, é posta como a incapacidade (Unvermögen)de se fazer uso da razão; usá-la implica o desenvolvimento deuma capacidade que todo ser humano apresenta, embora nemtodos necessariamente desenvolvem-na de modo pleno, pois, “porpreguiça ou covardia”, pode optar em se acomodar e transferirpara tutores a direção de sua vida.

4 KANT, I. Resposta à pergunta o que é o Esclarecimento? in Textos Seletos. 2.ed.Petrópolis: Vozes, 1985, p.100.

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“A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão gran-de parte dos homens, depois que a natureza de há muito oslibertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), con-tinuem de bom grado menores durante toda a vida. São tam-bém as causas que explicam por que é tão fácil que os outros seconstituam em tutores deles. É tão cômodo ser menor”5 .

As pessoas que recusam a fazer uso de seu pensamentolivre pagam um alto preço por tal vida. Qual é este preço? Sócra-tes já o identificou no seu tempo, ao afirmar que uma vida nãoexaminada não vale a pena ser vivida. O preço que se paga é estemesmo: a vida inteira. Não devíamos considerar este preço altodemais?

A razão assim entendida como instrumento de emancipa-ção deve se estabelecer numa dimensão de liberdade e ela pró-pria deve assegurar a continuidade desta dimensão; com ela so-mos livres para construirmos nossa vida ou não; livres para ausarmos ou abdicarmos de seu uso. No entanto, Kant constataque é mais fácil para a maioria das pessoas permanecer na abs-tenção do uso desta liberdade.

“A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belosexo 6 ) considera a passagem à maioridade difícil e além domais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram aseu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeiramenteembrutecido seu gado doméstico, e preservado cuidadosamen-te estas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar um passofora do carrinho para aprender a andar, no qual as encerraram,mostram-lhe em seguida o perigo que as ameaça se tentaremandar sozinhas” 7.

A imagem que Kant tinha de seus contemporâneos era dehomens e mulheres, presos a postura de eternos discípulos deseus mentores, e que deixariam ao encargo de especialistas con-

5 Ibidem.

6 Lamento, mas a época de Kant era bem mais machista do que a nossa.

7 Idem, p.102.

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tratados as tomadas de decisão que lhes eram exigidas. Seja porpreguiça ou pelo temor inculcado pelos próprios educadores, amaior parte da humanidade considerava e, talvez ainda conside-re, difícil pensar por si mesma, a fim de encontrar a passagempara a maioridade.

“Se tenho um livro que faz as vezes de meu pensamento, umdiretor espiritual que por mim tem consciência, um médico quepor mim decide a respeito de minha dieta etc., então não preci-so esforçar-me. Não tenho necessidade de pensar, quando pos-so simplesmente pagar; outros encarregarão em meu lugar dosnegócios desagradáveis” 8

Viver sob a tutela de outras pessoas tornou-se quase comouma segunda natureza da qual muitos temem se afastar. A maio-ria dos homens prefere deixar que os sacerdotes e pastores pen-sem por eles os assuntos religiosos; que os políticos decidam poreles as decisões a serem tomadas nas assembléias públicas; ouseja, lavam as mãos no que concerne à direção de suas vidas indi-vidual e coletivamente. Sempre que uma posição lhes é cobrada,preferem se manifestar por meio de fórmulas pré-estabelecidase preconceitos que os mantêm em condição inferior, como cor-rentes que os impedem de caminhar firmemente.

A saída da menoridade racional está indicada já no iníciodo artigo kantiano: “Esclarecimento (Aufklärung) é a saída dohomem de sua menoridade...”. Sendo menoridade racional a in-capacidade de se fazer uso do entendimento sem a direção deoutro indivíduo, o Esclarecimento é apontado como o bálsamopara tal situação.

Mas, enfim, qual é a essência do Esclarecimento?A essência do Esclarecimento está contida na sentença sa-

pere aude (ousai saber; ousai fazer uso da razão), identificada porKant. Pensar por si mesmo, tomar as rédeas do destino em suaspróprias mãos, passar pelo crivo da crítica filosófica todos os dog-mas estabelecidos e lutar pela libertação plena do pensamento,

8 Idem, p.100.

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eis a essência do Esclarecimento.Kant irá apostar numa direção: irá exortar a utilização de

algo de que fomos naturalmente dotados: a Razão. Assim, é o usoda razão que permitirá a ascensão da menoridade para a maiori-dade racional, a saída da Matrix. Porém, não obstante esta insufi-ciência na busca do saber que ainda existe, aproveitemos a chan-ce que a história nos concedeu de sermos todos consideradosracionais e dotados de pensamento.

Façamos uso do pensamento!

Usando a Brecha corretamente

Segundo Marilena Chauí, pensar e pensamento sempreindicam atividades que exigem atenção: pesar, avaliar, equilibrar,colocar diante de si para considerar, reunir e escolher, colher erecolher. O pensamento é a consciência ou a inteligência saindode si (“passeando”) para ir colhendo, reunindo, recolhendo osdados oferecidos pela percepção, pela imaginação, pela memó-ria, pela linguagem, e voltando a si, para considerá-los atenta-mente9 .

Mas como devo usar o pensamento de forma correta?Sócrates já ensinava em sua época um excelente método

para tal empresa. Ele elaborou um método muito peculiar de in-terpelar seus ouvintes, o que veio a ser adotado mais tarde poroutros filósofos. Este método consistia em duas etapas:

A) A Ironia> consistia em perguntas ao interlocutor, deforma a mostrar-lhe a sua ignorância em relação ao as-sunto que achava de muito sabedor.

B) A Maiêutica> consistia em perguntas ao interlocutor,de forma a chegar, juntamente com ele, à verdade sobreo assunto tratado.

9 Chauí, M. Convite à filosofia. 1994, p. 153.

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A maioria dos interlocutores de Sócrates não tinha paciên-cia para suportar o desvelo de sua ignorância por meio da ironia,não chegando à segunda etapa que era a maiêutica. Desta formaele foi angariando muitos inimigos, o que acabou causando a suamorte.

No primeiro momento ele ia perguntando, perguntando,até que o interlocutor demonstrasse sua total ignorância sobre oassunto que achava saber. Tratava-se de interrogar o interlocutor,fazendo com que ele mesmo caísse em contradição, percebendodesta forma a sua ignorância.

No segundo momento ele ia perguntando, perguntando,para chegar junto ao interlocutor a algumas respostas. Confron-tando-se com sua ignorância – só sei que nada sei -, o interlocu-tor, pela via do pensamento, daria a luz às próprias idéias sobre oassunto em debate. Como o exemplo vivo do herói da Caverna dePlatão que tenta libertar seus companheiros, Sócrates enfrentoua fúria de muitos de seus concidadãos. Foi acusado de ter preve-nido seus discípulos contra os perigos dos discursos demagógi-cos, ter colocado as leis públicas sob suspeita e ter desobedecidoaos deuses. Sentença: foi obrigado a tomar o veneno chamadoCicuta.

Já o método de Platão, o discípulo mais fiel de Sócrates, seconstituiu num aprimoramento da ironia e maiêutica socráticas,ou seja, na dialética, no diálogo filosófico. Segundo Platão, so-mente através da dialética pode o espírito elevar-se e contemplara verdadeira essência das coisas. Para ele a dialética deixa de seruma mera disputa entre argumentos, como era praticada pelossofistas, visto que desta forma venceria apenas o argumento maisforte, mais persuasivo, e não necessariamente o mais verdadei-ro. Assim se inaugura uma nova etapa na filosofia: a busca dosconceitos verdadeiros. Desta forma o dialético deixa de ser o ora-dor mais hábil e competente na persuasão, e fica sendo aqueleque apresenta argumentos que, embora consistentes, fogem dassimples impressões dos sentidos e elimina qualquer contradição.

Aristóteles pode ser considerado o filósofo que mais nos

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auxiliou no que concerne à disciplina da razão. Ele ocupou-se dasleis gerais do pensamento, criando desta forma uma disciplinafilosófica importantíssima: a lógica. Esta disciplina se dedica aoprocesso do raciocínio e a forma pela qual são apresentados osargumentos, independente do conteúdo. Quando vamos fazeruma viagem, elaboramos uma rota, um itinerário a seguir; assimtambém devemos ordenar nossos pensamentos para se chegarao conhecimento verdadeiro.

A lógica trabalha com as três operações do espírito: conce-ber, julgar e raciocinar. Quando nós exercemos nossa capacidadede pensar, inevitavelmente passamos por uma destas três opera-ções ou por todas elas.

Vamos à primeira operação do espírito.Conceber é a arte de formar conceitos. Todas as coisas po-

dem estar em nossa mente mediante a forma de conceitos. Mas oque vem a ser conceito? Conceito é a representação das coisas emnós. Vejo a cadeira e posso colocar a cadeira em minha menterepresentada por meio do conceito “cadeira”. O incrível é que ouniverso todo pode ser assim representado em mim. Ah! Cuida-do! O conceito não é algo tão banal assim. Guerras já acontece-ram por causa de confusão quanto aos conceitos envolvidos (Deus,terra, posses, honra). O conceito de liberdade política da era Bus-ch é diferente do conceito de liberdade política do Islã. Daí surgea guerra. Devemos procurar a clarificação de nossos conceitos.

Em qualquer atividade do espírito mister se faz a busca deuma maior unidade possível entre pensamento/linguagem/con-teúdo. Tem muitas vezes que a gente pensa uma coisa, fala outracoisa e o ouvinte ainda acaba entendendo uma outra. Em nossasatividades acadêmicas isto não pode ocorrer. Devemos evitar asprecipitações e generalizações apressadas. Por exemplo, “o que éo homem?” e “o que é um homem?” não são questões idênticas.

A Filosofia, em sua criticidade e clareza teórica, apresenta-se como uma atividade do espírito que nos faz suspender as opi-niões imediatas e nos mantém afastados de discussões espontâ-neas cheias de preconceitos e crenças irrefletidas. As coisas nemsempre são tão simples como parecem.

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Vamos à segunda operação do espírito.Julgar é a arte de formar juízos, ou seja, estabelecer distin-

ção entre conceitos. Quando digo “isto é uma caneta”, estou dis-tinguindo este objeto de outros como lápis, borracha, etc. Possoser ainda mais específico neste julgamento: “isto é uma canetaesferográfica”, o que a distingue de outros tipos de caneta, comoa caneta tinteiro, por exemplo. O cuidado com os juízos nos auxi-lia por demais nas definições que fazemos das coisas, além denos auxiliar na formulação de bons raciocínios. Ser capaz de pro-duzir bons juízos é ser capaz de produzir afirmações bem susten-tadas por boas razões. Um bom caminho para a produção de bonsjuízos/boas afirmações, é o da realização de boas investigações arespeito do mundo real.

Vamos à terceira operação do espírito.Raciocinar é a arte de formar raciocínios, fazendo relações

entre juízos, tirando deles uma conclusão.Raciocínio pode ser considerado também um processo de

pensar, pelo qual nós conseguimos obter novas informações apartir de certas informações que já temos. Ou é o processo dopensar através do qual nós conseguimos obter novos conheci-mentos, a partir de conhecimentos anteriores que já temos e apartir de certas relações que estabelecemos entre tais conheci-mentos. Este processo de pensar muitas vezes é chamado de in-ferência. Nós “tiramos” ou inferimos conclusões (que são as no-vas informações), a partir de algo já posto como sabido anterior-mente e a partir de relações que estabelecemos entre elementosdeste algo já sabido. O que está posto, como sabido anteriormen-te, é chamado de premissa (pre-missa significa pré-posto, isto é,afirmações já postas antes, porque já sabidas).

Uma criança de três anos já pode fazer inferências. Veja oque um menino de quatro anos falou numa festa. Ao saber queum de seus tios tinha parado de tomar cerveja, escutaram eledizer para os primos que o tio “fulano de tal” havia deixado deser homem. É fácil averiguar, neste caso, como a criança foi capazde “tirar” (inferir) uma conclusão a partir do que ela ouviu. Bom,

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todos os homens que eu conheço tomam cerveja (e ainda dizemem bom tom que homem que é homem toma cerveja), se meu tioparou de tomar cerveja, então deixou de ser homem. E saber quetem homens que mesmo por motivos de saúde não param debeber para “não deixarem de ser homens”.

No processo do pensamento existem duas formas de infe-rência: a indução e a dedução. Pelos processos racionais da dedu-ção e da indução parte-se do já conhecido ao que ainda não o é,ou seja, adquire-se novos conhecimentos a partir dos conheci-mentos já adquiridos.

1) Pela indução

Você verifica que o ferro conduz eletricidade, que o cobreo faz da mesma forma, o ouro, igualmente, a partir disto vocêinduz que os metais (gênero a que pertencem os compostos cita-dos) conduzem eletricidade.

O que ocorreu neste processo de pensamento?Ocorreu a Indução. A Indução é o modo pelo qual conse-

guimos uma conclusão a partir da observação de casos particula-res. Explicando melhor, parte-se de casos particulares iguais parase chegar à teoria geral que explica todos esses casos particula-res. O esquema pode ser exposto pela seguinte figura:

Geral

Particular

Por meio deste processo, o homem tem em suas mãos asferramentas necessárias para antecipar conhecimentos sobre a

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realidade sem ter a necessidade de experimentá-las. Depois detestemunharmos os efeitos das bombas atômicas menos poten-tes, não precisamos ativar as mais potentes para sabermos deseu potencial destrutivo.

2) Pela dedução

Você quer eletrocutar uma cerca de proteção caseira (veri-ficando, é claro, se isto está nos rigores da lei). Você escolhe parao material desta cerca o ferro. Por que? Porque o ferro é condutorde eletricidade e assim sendo transmitirá a energia elétrica que ofio ligado a ele fornece. O processo envolvido se deu da seguinteforma: Você conhece a lei da física que estabelece que todo metalconduz eletricidade. O ferro é metal, então você conclui que eleconduz eletricidade.

Pelo processo da dedução parte-se do que já está estabele-cido como verdade ou como princípio geral para que se submetaa ele todos os casos demonstrados em seguida. Ou seja, parte-sedo geral para que ele se aplique a todos os casos particulares iguais.Neste caso o geral (conceito universal) desemboca no particular(determinada parte da realidade, objeto particular de estudo). Oesquema pode ser demonstrado assim:

Geral

Particular

Vejamos um outro exemplo: temos as leis da física newto-niana e um caso particular a ser estudado, como o tempo e avelocidade de um astro para efetuar o movimento de rotação ao

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redor de seu eixo; aplica-se as leis gerais da física newtoniana aeste ou outros casos particulares iguais, obtendo resultado verda-deiro ou não. Isto pode ser expresso também de uma forma lógi-ca simples:

Todos os X são Y (Teoria geral)A é X (caso particular)Logo, Aé Y (dedução)

Mas isto é uma coisa por demais óbvia, não?Não vou discutir aqui a obviedade ou não do processo de

pensamento envolvido. A questão é que erramos na maioria dasvezes em nossos julgamentos racionais por falharmos na execu-ção destes dois processos. A indução, por exemplo, se realizadade forma errada pode tornar-se a mãe de muitas crenças e su-perstições e ser a mantenedora de muitos preconceitos. A dedu-ção, por sua vez, se realizada de forma errada, pode levar à distor-ção das idéias ou teorias que aplicamos a nossa vida.

O que nos resta então é nos imbuirmos deste conhecimen-to aqui transmitido e começar desde já o exercício de correção denosso pensamento.

Para entendermos melhor o raciocínio mister se faz estu-darmos como fazemos a padronização lógica das coisas. Para apadronização lógica usamos os seguintes quantificadores:

- Na apresentação de Nenhum ......... tem-se 0%- Na apresentação de Alguns ............ tem-se de 1% a 99%- Na apresentação de Todos .............. tem-se 100%

Erramos muitas vezes quando padronizamos como ne-nhum ou como todos na presença de 1% a 99%. Um soldado trai obatalhão e vaticinamos: todos os soldados são traidores. Quinzealunos numa turma de trinta são relapsos nos estudos e dizemos“os alunos de hoje são relapsos nos estudos”. E assim vai.

É necessário também notar que a abrangência dos termosinflui em nossos raciocínios.

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Tenho o Ka, tenho o automóvel e tenho a marca Ford. Qualo mais abrangente? Quando trabalhava com filosofia para crian-ças no estilo do Professor Mathew Lippman, aprendi a usar oseguinte esquema para este estudo:

Veja bem o que posso dizer a partir do círculo menos abran-gente para o mais abrangente: “Todos os Ka são Ford e todos osFord são automóveis”.

Fazendo uso do verbo existir já não posso dizer o mesmo apartir do círculo mais abrangente para o menos abrangente.

Comece a verificar se está usando a padronização lógicade forma correta, se está fazendo uso da compreensão da abran-gência dos termos ou conceitos em suas conversas, em suas pes-quisas ou em sua profissão.

Agora podemos continuar nossos estudos sobre o raciocínio.O modo de raciocínio mais comum é conhecido por Silo-

gismo.Silogismo é um raciocínio que tira uma conclusão de duas

proposições dadas. Vejamos o exemplo:

Todas as tainhas são peixes (1ª premissa)Os peixes são seres vivos (2ª premissa)Logo, as tainhas são seres vivos (conclusão)

A primeira premissa também é chamada de premissa mai-or, devido à sua abrangência ser maior. A segunda premissa tam-bém pode ser chamada de premissa menor, porque sua abran-gência é menor.

AUTOMÓVELFORDKA

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Você pode perceber que nas duas premissas há um termoque repete. Este é chamado de “termo médio”, aquele que esta-belece uma ligação entre as premissas. No exemplo acima é oconceito “peixes”.

Descobri um jeito de saber se a forma do raciocínio silo-gístico está correta, e vai favorecer uma conclusão correta. Vamostransformar os termos do silogismo em símbolos, fazendo ele setornar parecido a uma conta matemática:

T PTodas as tainhas são peixes (1ª premissa)

P VOs peixes são seres vivos (2ª premissa)

T VLogo, as tainhas são seres vivos (conclusão)

Substituindo os termos pelas letras simbólicas (podia serqualquer letra), vamos ter:

T PP V

Logo T V

Você corta os termos repetidos P e vai sobrar T e V comoconclusão.

Agora veja bem a descoberta: com raras exceções, o termomédio tem que estar na diagonal, caso contrário não haverá umaligação entre as premissas de forma satisfatória para uma boaconclusão. Vejamos o exemplo abaixo:

Todos os brusquenses são sulistasOs brusquenses são catarinensesLogo, os sulistas são catarinenses

Veja com os símbolos:

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B SB C

Logo S C

O termo médio ficou um embaixo do outro, sem estar nadiagonal e a conclusão se deu errada.

Pode acontecer também que nem sempre num silogismoa premissa maior fica explícita. Como no exemplo:

Uma mãe chega para a vizinha e diz: Não sei mais o quefazer com meu filho, ele é muito peralta.

A vizinha diz: não se preocupe minha amiga, ele é umacriança.

Observe que a premissa geral “todas as crianças são peral-tas” ficou implícita no dizer da vizinha.

Tentando ainda pensar de forma correta para sairmos daMatrix, não podemos deixar de nos depararmos com o problemadas falácias.

Ninguém gosta de ser enganado. Ninguém gosta de servítima da mentira. Mentira é uma informação falsa. Falácia, porsua vez, é um argumento falso, mal direcionado, mal conduzido.

Falácias (ou sofismas como muitas vezes são chamados)são raciocínios enganosos. Raciocínios, que ao serem propostos,levam ao engano. Qualquer pessoa bem treinada pode se livrardas armadilhas das falácias. Mas há um problema com este ensi-no. Ao mesmo tempo em que a pessoa aprende a fazer uso desteconhecimento para se livrar das falácias, ela aprende também afazer uso delas para enganar as pessoas. Cabe a cada um ter obom senso e a ética para usar este conhecimento de forma cons-trutiva. Mas não podemos deixar de ensinar às pessoas este co-nhecimento, visto que é por meio das falácias que na maioria dasvezes o povo é enganado pelos meios de comunicação e pelosdirigentes políticos.

Falácias muitas vezes são apresentadas em discursos, natentativa de persuadir um ouvinte ou um leitor, mediante a pro-moção de um engano ou desvio, porque suas estruturas de apre-

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sentação de informação não respeitam uma lógica correta ou ho-nesta, pois foram manipuladas certas evidências ou há insufici-ência de prova concreta e convincente. Uma afirmação falaciosapode ser composta de fatos verdadeiros, mas sua forma de apre-sentação conduz a conclusões erradas.

Brincando um pouco de Casseta & Planeta, se você estásendo enganado por discursos falaciosos, fique tranqüilo: “seusproblemas se acabaram!” Chegou agora este kit para você se pro-teger de políticos capciosos, vendedores oportunistas e de vizi-nhos intimidadores, desejosos de manipular o pensamento dosseus ouvintes, enganando-os com argumentos falsos.

Vamos verificar na prática os problemas que se advêmquando não sabemos trabalhar bem com a padronização lógica,com o silogismo, com os processos de indução e de dedução.

1) Falácia da Autoridade

É a falácia em que se convence pelo peso psicológico daautoridade de alguém. Por isto mesmo às vezes ela é conhecidapela expressão latina Argumento ad vericundiam. O modo maisconhecido desta falácia é muito usado pelos meios de comunica-ção, principalmente em propagandas, quando se usa a autorida-de de uma pessoa em um determinado campo para corroborar aeficácia de algo fora daquele campo. Como exemplo, podemoscitar o Pelé fazendo propaganda do Vitasay. O Pelé é uma sumida-de nos esportes, mas não é competente no que tange à área far-macêutica para corroborar eficazmente o poder de tal vitamina.

Há uma outra vertente desta falácia, também muito co-nhecida. Vem um brasileiro proferir palestra em nossa Universi-dade sobre Bioética. É feito o anúncio sobre o evento, apresen-tando o currículo do palestrante, que só fez suas pesquisas noBrasil. Agora imagine a situação em que nossa Universidade con-vida um doutor de Harvard para proferir palestra sobre o mesmoassunto, apresentando com antecedência o currículo do mesmo.

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Segundo minhas experiências em eventos deste tipo, é quase deapostar que a palestra do doutor que vem de Harvard terá umquorum bem maior. Por que? Ora, nós tendemos a idolatrar apessoa considerada autoridade no assunto e menosprezar aqueleque, em nosso ponto de vista, não o é.

Uma outra vertente ainda desta falácia é conhecida comoargumentum ad antiquitam. É o erro de afirmar que algo está“correto” ou “bom” apenas porque é tradicional, antigo ou foiratificado por alguém num cargo de mando. Exemplo: “Marado-na é um jogador melhor que Pelé. Acredito nisso porque o chefedo meu pai disse que é”. Só assim mesmo para alguém acreditarnuma coisa dessa. Ou então: “Nós sempre fizemos assim...”.

2) Falácia do círculo vicioso

Nesta falácia ocorre a tentativa de provar uma conclusãocom base num ponto de partida não demonstrado. É o erro detentar usar repetição ou reiteração como evidência ou prova numadiscussão. Ocorre a argumentação em círculo (circularidade), deforma tendenciosa. Muitas vezes aparece com o nome de tauto-logia ou apresentada pela expressão latina petitio principii (peti-ção de princípio).

Vamos ver um exemplo usando a proposta de um deter-minado ministro da Fazenda.

“A inflação diminui o poder dos salários; temos que aumentaros salários, mas fazendo-o, teremos que aumentar os preços parapagá-los, o que aumentará a inflação”. Logo, ele não aumenta ossalários.

Agora um outro exemplo, talvez mais compreensível.

“O seu trabalho acadêmico é inferior porque é simplesmenteordinário. Porque é ordinário é simplesmente inaceitável. E, umavez que seu trabalho não presta, nós não devíamos aceitá-lo”.

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Veja que o argumento já começa estabelecendo o trabalhodo aluno como inferior, e por isto não deve ser aceito, mas nãoapresenta os motivos para ser tratado como inferior.

“Você jamais será feliz. Felicidade não existe”.

Este tipo de falácia também é muito usado no campo reli-gioso para corroborar crenças que de outra forma não se manteri-am.

A: “Moisés foi divinamente inspirado”.B: “Como você sabe?”A: “Porque a Bíblia disse que foi”.B: “Mas como vou saber se a Bíblia é fidedigna?”A: “Porque foi escrita por Moisés, que foi divinamente ins-

pirado”.

3) Falácia da causa comum

Nesta falácia afirma-se que um fato é a causa de outro,sem considerar que há um terceiro fato que causa os dois primei-ros. Eis um exemplo bem claro: “A qualidade de ensino é ruimporque os professores são despreparados”. Ora, aqui estão sendoignoradas outras causas para a péssima qualidade do ensino.

4) Generalização apressada

Nesta falácia se conclui uma lei geral de um único casoparticular. Ocorre o erro de afirmar que o que é verdade em algu-mas instâncias deve ser verdade em todas ou em quase todas asinstâncias, ou de tentar estabelecer uma regra geral após acharalgumas poucas evidências. É tentar caracterizar uma grande po-pulação a partir de evidência de poucos dos seus membros. Mui-tas vezes chamada em latim de secundum quid. Dá-lhe exemplo:

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“A medicina é inútil. Meu pai gastou um rio de dinheiro commédicos e morreu doente”. (Sem comentários).

“Entrevistei cem pessoas em duas favelas de São Paulo sobreseus hábitos alimentares. Acredito que as minhas conclusõesdão um retrato fiel da situação alimentar da população faveladana cidade”. (Numa cidade com tantos focos de pobreza não épossível que haja mais variedade de respostas e assim outrasconclusões?).

5) Falácia do Equívoco

Nesta falácia se utiliza palavra equívoca, com vários senti-dos. Ou seja, ocorre uma mudança ou modificação no sentido deuma palavra; o que é verdade na primeira definição não é neces-sariamente verdade na segunda.

Ex.: “Esse prisioneiro não agiu contra a lei. Afinal, prisioneironão tem liberdade, e sem liberdade não se pode agir...”

Percebemos aqui que a palavra liberdade foi usada em doissentidos muito diferentes.

6) Dicto simpliciter

Esta falácia é baseada na generalização não qualificada. Ouseja, faz-se afirmações sem apresentar evidências convincentes.

“O exercício é bom, portanto, todos devem se exercitar”.

Será verdadeiro isto? Tem pessoas que têm recomendaçãomédica de não se exercitarem por motivos de saúde delicada.

“Todo mundo sabe que todos os brasileiros são apaixonadospor café, carnaval, praia e futebol”.

Sabemos que no Brasil há pessoas de diferentes gostos e

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costumes, cujo caráter individual excluem café, carnaval, praia efutebol. Portanto, isto não procede totalmente.

7) Post Hoc ou falsa causa

Esta falácia às vezes é chamada de depois do fato. Nela,considera-se como causa de um acontecimento um fato que ape-nas o antecedeu. É um costume de nossa mente acreditar queporque um evento precede outro, o primeiro deve causar o se-gundo.

“O passeio de Maria não deu certo, pois ao sair de casa ela pas-sou embaixo da escada”.

“Estávamos perdendo dinheiro na firma há muitos anos. E aí,eu virei gerente. Agora estamos lucrando. A razão é óbvia”.

8) Envenenar o poço

Nesta falácia costuma-se atacar a pessoa ao invés do argu-mento. Procura-se desacreditar o oponente, transferindo a aten-ção da idéia em discussão para a pessoa associada a ela. Tambémchamada Ad hominem, significando atacar o homem.

Vejamos este exemplo: um congressista de um partido po-lítico da esquerda diz: “é importante limitarmos a destinação derecursos para pesquisas em armamentos, visto que há outras pri-oridades no país”; um outro congressista, já de um partido dedireita contrapõe: “não podemos levar em conta a proposta denosso colega, visto que ele é da ‘esquerda’ e os políticos da ‘es-querda’ foram os primeiros a apoiarem o início de projetos arma-mentistas”.

É notório que o segundo orador não procurou provar afalsidade do argumento do primeiro, mas sim procurou desacre-ditar o oponente trazendo à tona uma sua atitude do passado.

Agora vejam esta:

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“o que ele afirmou está totalmente errado; este cara é um fra-casso nos estudos”

9) Falácia da pergunta complexa

Esta falácia consiste em se fazer uma pergunta complexae incisiva para o interlocutor, de tal forma que se veja impelido aaceitar a nossa sugestão de fala.

“Você está arrependido?” “Bem, estou” “Então você confessaque roubou”

10) Recurso à força

Esta falácia também às vezes é chamada pela expressãolatina Argumento ad baculum. Recorre-se à força do poder hierár-quico de quem fala ao invés da força do argumento em si.

Talvez um exemplo bem real:Um patrão aos funcionários: “bem, a proposta de aumen-

to salarial pode ser justa, mas há muitas pessoas desempregadasque trabalhariam pelo que vocês ganham”.

11) Da cooptação

Nesta falácia, faz-se um elogio, visando a sedução da pes-soa para concordar com o argumento proposto.

“Todos vocês já sabem que.../ O Sr., Que é uma autoridade noassunto, vai concordar comigo que...

12) Ad Misericordiam

Nesta falácia o argumento é dirigido às emoções da pes-

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soa, ao sentimento de pena. Procura-se convencer o ouvinte aacreditar numa afirmação baseada no seu sentimento de comise-ração.

Eis alguns exemplos:

“Membros do júri, o réu nunca poderia ter cometido esse cri-me. Afinal de contas, ele tem esposa e seis filhos.”

“Este Presidente não pode estar envolvido em corrupção, quan-do criança e jovem passou por muita penúria na vida”.

Algumas vezes a pessoa usa mais de uma falácia num úni-co conjunto de pensamentos. No caso que cito abaixo, foram usa-das as falácias da autoridade e a da petição de principii.

“Advogados são honestos. Sua integridade é comprovada pelolivro Homens e a Lei, obra elogiada sem reservas por sua fide-dignidade pelo Professor Ortiz, inquestionavelmente digno deconfiança, uma vez que ele mesmo é um jurista proeminente”.

Bom, chega de falarmos em falácias. Há muitas outras fa-lácias que vamos ter que deixar para outra oportunidade. Dá paraescrever um livro somente sobre elas. Aqui, tive que me ater ape-nas àquelas consideradas pela Tradição Filosófica como as maisimportantes. Com o que foi apresentado neste capítulo, você játem um ótimo instrumental para trabalhar em sua saída daMatrix.

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CAPÍTULO3

AAVENTURADOPENSAMENTOII

Tudo o que é compreendido está certo (Oscar Wilde).

Em Busca do Conhecer

A principal aventura do pensamento é a forma como ele setraduz em conhecimento. É por demais necessário entender a na-tureza, o objetivo e a finalidade do conhecimento, pois ele vem aser uma das formas mais profícuas que o homem possui para serelacionar com o mundo da realidade. E para conhecer bem, misterse faz aprender as leis do pensamento.

Os atributos do mundo me assombram; o fato de eu poderconhecê-los também me assombra. Porém, o que me assombra maisainda é a possibilidade de eu chegar a conhecer o processo pormeio do qual eu conheço e os mecanismos que uso para tal proce-dimento. Para entender este processo de conhecimento e seusmecanismos eu acabo usando o próprio processo de conhecer eseus mecanismos. Não é inquietante?

Conhecemos as coisas e na maioria das vezes de uma formabem capenga. O nosso conhecimento tem muitas falhas. Ao bus-carmos conhecer o processo de conhecimento estas falhas não dei-xam de aparecer. É um ciclo vicioso, com certeza.

Não obstante a presença deste ciclo vicioso o estudo do pro-

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cesso cognitivo deve permanecer. Já aprendemos a duras penasque no palco da vida é melhor saber pouco do que não saber nada;todavia, aprendemos também que é melhor não saber nada es-tando disposto a aprender do que saber alguma coisa de formaerrada e viciosa. O conhecimento é a grande ferramenta para quepossamos nos relacionar com o mundo de forma satisfatória;enfim, para que possamos viver em plenitude. O conhecimentotraz segurança a quem o possui.

Mister se faz demonstrar o que entendo por conhecimen-to. Há muito tempo vem se percebendo certa confusão entre co-nhecimento e informação, entre conhecimento e sabedoria. Mui-tas vezes até os dicionários auxiliam para aumentar esta confu-são. Informação eu tomo como sendo dados esclarecedores sobrealgo e que são transmitidos de um sistema a outro. Você podepassar uma informação adiante e não saber fazer mais nada com ela.

Isto faz me lembrar de uma estorinha que li quando crian-ça num livro didático de minha irmã, aliás, se não me engano, foia primeira vez que li alguma coisa por volta dos três anos e meio.A estória contava que um agricultor havia enviado um índio comum cesta de maçãs e no meio das frutas uma carta. O indiozinhoinocentemente comeu uma das frutas. Ao chegar à cidade com acesta, o comerciante destinatário leu a carta e perguntou ao índioo que ele havia feito com a maçã que faltava. O indiozinho ficouestupefato, sem saber como o senhor descobrira seu deslize. Oindiozinho carregava uma informação que ia de um sistema aoutro, sem que ele precisasse saber o que fazer com ela.

Conhecimento já é um profundo entendimento de váriasconexões entre dados esclarecedores; ou entendimento das co-nexões existentes entre várias informações. Ele depende de umagama de informações e será muito mais profundo e eficaz namedida em que há muitos elos entre estas informações que ocompõem.

Sabedoria, por sua vez, vem a ser um conhecimento per-passado de muita reflexão, um saber conscientemente conecta-do à vivência.

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Alguém pode ter menos informação do que outro, podeter menos conhecimento do que outro, mas pode ter sabedoria,pois o pouco que sabe está muito bem conectado à sua vivência.Penso que o melhor é buscar possuir os três de forma concomi-tante. Porque sabedoria sem muita informação também não aju-da em muitas situações.

A informação nos vem pelo contato com suas fontes; oconhecimento já depende também de minha mente subjeti-va para estabelecer relações entre várias informações; a sa-bedoria, além da mente subjetiva, depende também de mui-ta reflexão e prática. Não é à toa que o Livro do Eclesiástico, umdos textos mais belos do Antigo Testamento traz o “Temor doSenhor” como princípio da Sabedoria. Podemos apostar uma ex-plicação psicológica para este preceito. Sim, o “Temor do Senhor”,ou seja, o respeito que o fiel apresenta pelos preceitos dados porquem ele acredita ser o Senhor da sua vida, leva-o à reflexão, àponderação em relação ao modo de conduzir sua existência; leva-o, enfim, à Sabedoria.

Desde quando o homem começou a refletir sobre o po-der do conhecimento, surgiram duas tendências opostaspara explicação da sua origem. Para uns o conhecimento jávem com o indivíduo ao nascer (tendência idealista); paraoutros o conhecimento vem somente através dos sentidos e amente do indivíduo se encontra vazia na época do nascimento(tendência empirista). Porém, a teoria mais comumente aceitabusca fazer uma média entre as duas tendências e tem origemcom Immanuel Kant. Segundo ela, o conhecimento realmentevem pelos sentidos, mas é catalogado por categorias da menteque já existem a priori, trazidas pelo indivíduo ao nascer. Duasdessas categorias (que são em número de doze) são bem conheci-das de todos nós: o tempo e o espaço. Já parou para notar quetudo que colocamos na mente sempre está relacionado a umasucessão temporal e a uma sucessão espacial? Vamos voltar a es-tes pontos nos capítulos seguintes.

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Vamos verificar agora os três modos de conhecer.Tipos de Conhecimento

Saber-fazer Conhecimento por contato Saber-que

Conhecimento de Conhecimento de Conhecimento deAtividades. pessoas ou locais proposições.

Por exemplo: Por exemplo: Por exemplo:� Saber tocar piano. �Conhecer Paris. � Saber que Paris é uma� Saber andar de � Conhecer João Luís. cidade.

bicicleta. � Saber que Aristótelesfoi um filósofo.

Praticamente tudo aquilo que aprendemos na escola é dotipo saber-que. Aprendemos que qualquer número multiplicadopor zero dá zero, que D. Afonso Henriques foi o primeiro rei dePortugal, que o Sol é uma estrela, que o Brasil fica no continentelatino-americano, etc. Praticamente todo o nosso conhecimentocientífico, histórico, matemático, literário, etc. é deste tipo. Nãoé de se estranhar que os filósofos tenham centrado a sua atençãonesta noção de conhecimento.

A Prestimosa Herança Grega

Temos a capacidade de conhecer, isto é, a posse ad essevalet illatio: se conheço, logo sou capaz de conhecer. Ocorre maisou menos como a criança que ao caminhar, demonstra que é ca-paz de tal empresa.

No mundo daquilo que chamamos o primórdio do pensa-mento racional no Ocidente, entre os gregos do século IV a.C., oprimeiro a se preocupar de forma sistemática com a questão decomo se chega ao conhecimento foi Platão. Ele nasceu em Atenasem 428-7 a.C., um ano após a morte de Péricles, período áureopara o florescimento da cultura grega. A vida deste filósofo trans-correu durante a fase áurea da democracia ateniense, no qual opensamento era alimentado pelo clima de liberdade e exposição

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a críticas. No entanto, o grande momento da vida de Platão foiseu encontro com Sócrates, que o adotou como discípulo. Eleadmirava muito seu mestre, a ponto de considerá-lo “o mais sá-bio e o mais justo dos homens”, como escreverá mais tarde emseu diálogo chamado Fédon.

Se é difícil não admirarmos o mundo grego, é muito maisdifícil deixarmos de admirar a figura de Platão neste mundo. Mui-tos pensadores, aliás, consideram-no como o pensador originalde todos os problemas filosóficos posteriores. Entre os temas tra-tados por ele encontra-se o problema do conhecimento humano.Sua epistemologia está no fundamento da paidéia que preconizaao seu Estado Ideal, exposto magistralmente na República. Paracompreendermos os problemas políticos devemos buscar seu fun-damento que está na natureza do homem, pois, como nos dizPlatão, “tal homem, tal Estado”.

Há uma necessidade de reorientarmos as forças da alma,resumidas, segundo Will Durant em: desejo, emoção e conheci-mento. Estas forças e qualidades estão em cada indivíduo, masem graus variados. Existem homens que não passam da personi-ficação do desejo; outros que são templos de sentimento e cora-gem; e por último há os que se deleitam com a meditação e acompreensão. Ora, o povo, a turba, deve ser guiado pelo conheci-mento, e não pelas outras forças10 . Por isto Platão vai preconizarque aqueles que têm a posse do conhecimento devem instruir egovernar os demais.

Desde o seu início, a filosofia grega se apresenta como umsaber que se afasta da opinião (doxa) e se aproxima do conheci-mento (episteme). O pensamento mitológico está permeado deopiniões. Mas a epistemologia platônica vai além disto. Não éapenas um sair da doxa, mas também um processo de purifica-ção (Katarsis), uma libertação da tirania do desejo, da emoçãodesregulada e ainda dos vícios e paixões. Para Platão este era umprocesso não confinado no tempo breve de uma vida, visto que a

10 DURANT, W. A História da Filosofia, 1996.

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alma se reencarna várias vezes até a última libertação, quandoatinge o Sumo Bem.

Esta característica de orientação das faculdades da almaem sua teoria do conhecimento, pode ser exposta com as pala-vras de Platão:

“Não se cogita de lhe dar a faculdade de enxergar que ela tem;somente seu órgão não está bem orientado, não se volta paraonde deve voltar e isto é o que cumpre corrigir” 11 .

Esta epistemologia encontra seu fundamento na Teoriadas Idéias de Platão, que pode ser resumida da seguinte forma:

Para ele, existe o Mundo Inteligível, perfeito, original, noqual existe o Bem; e existe o Mundo Sensível, imperfeito e que éa cópia do Mundo Inteligível. No entanto, a imperfeição do Mun-do Sensível não tem a conotação negativa de maldade; sua im-perfeição se apresenta como ausência de perfeição apenas. Nãoobstante este triste quadro da miséria humana, onde muitas ve-zes há constatação de acomodação, na teoria de Platão a almaencarnada no mundo sensível da matéria e da imperfeição podese elevar mediante “grande esforço” para o mundo perfeito.

Para aqueles que se interrogam sobre a possibilidade detal empresa, Platão responde de forma clara com o seu Mito daCaverna, ou Alegoria da Caverna, como alguns preferem chamareste texto, que já expus no capítulo primeiro.

Podemos ver nesta alegoria uma representação da ascese(do esforço para subida) dialética do conhecimento humano rumoà perfeição. Este processo do conhecimento está representado naprogressiva passagem das sombras e imagens obscuras ao lumi-noso universo das Idéias.

No primeiro plano temos nada mais que opinião (doxa) oucrença (pistis). No segundo plano já nos deparamos com a pri-meira etapa do conhecimento inteligível que é o conhecimentodiscursivo (diánoia) que faz as ligações racionais, típicas das ma-

11 Rep. cap. VII

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temáticas; na alegoria da caverna esta etapa se dá quando os pri-sioneiros passam ao diálogo entre si.

Deve-se chegar à evidência puramente intelectual (noesis)das idéias, quando o prisioneiro, agora liberto, contempla a reali-dade das coisas e os reflexos; enfim, chega-se ao cume do mundodas idéias, a superessência do Bem que dá sustentação a todo oedifício das formas puras e incorpóreas.

Segundo Platão, quem alcança tal conhecimento é o Filó-sofo, o único capaz de tal empresa hercúlea. Não obstante sermelhor manter-se nas ilhas paradisíacas do Mundo Inteligível, ofilósofo se encontra chamado a atuar no mundo dos homens,como forma de retribuição à comunidade pela Paidéia recebida12 .Platão recebeu muitas críticas por ter dito que o filósofo é o únicoque pode atingir a meta do conhecimento supremo. Penso que setorna muito necessário interpretarmos ou reinterpretarmos osentido que tinha a filosofia no contexto grego da época: ela erauma busca de sabedoria, uma postura de sabedoria diante dascoisas e não O saber acima de todos os outros; a filosofia não erauma disciplina acadêmica entre outras burocratizadas como estáhoje, era a postura sábia que reunia todos os saberes em coesão.

Vejo neste mito uma alusão a todos os grandes pensado-res da humanidade que morreram em nome da verdade que bus-cavam. O próprio Platão faz alusão a Sócrates, condenado por ten-tar levar os homens à verdade.

Afirmo que a epistemologia platônica expressa no Mitoda Caverna encontra-se como uma Paidéia (como educação, pla-no de formação), pois traça um caminho de conhecimento, umprocesso racional, sendo que é a razão que conduz o homem parafora do mundo das sombras (caverna), longe das impressões dossentidos que o enganam. Aquele que abraça a dialética como ver-dadeira via do conhecimento se esforça por atingi-lo pelo própriopensamento, sem contaminação com os dados sensíveis. Platãoconsiderava sua epistemologia tão importante como uma Paidéia

12 cf. JAEGER, Paidéia: 1986, p.614.

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que estabeleceu-a como a base da educação dos governantes doEstado Ideal de sua República, a educação dos Reis-Filósofos. Maspor quê? O que há nela de especial?

Segundo esse filósofo, a dialética faz com que o homemcompreenda a essência de cada coisa e saiba dar conta dela; comela o homem discerne a idéia do Bem dentre tudo o mais, rom-pendo caminho através de todas as refutações.

Esta dialética também encontramo-la presente quando Pla-tão faz com que Sócrates (seu personagem principal na maioriade seus diálogos) estabeleça sua maiêutica13 com seus interlocu-tores.

Ademais, acrescento a isto as palavras de Jaeger:

“A verdadeira força desta Paidéia que ensina a perguntar e aresponder cientificamente é o perfeito estado de vigilância queinstala na consciência” 14

Sim, ela instala um estado de vigilância na mente do indi-víduo, fazendo com que ele se desvencilhe cada vez mais daspeias da Matrix que o escravizam à ilusão.

A partir do Mito da Caverna, Platão estabelece a doutrinada “anamnesis”, segundo a qual todo o conhecimento humanonão passa de recordação do que há no mundo das idéias, mundoda perfeição.

Para aceitarmos o núcleo da teoria platônica devemos acei-tar o pressuposto das idéias inatas. É a doutrina segundo a qualas idéias já vêm com as pessoas ao nascerem. É uma doutrinainteressante. Quem de nós já não tem pensado sobre isto ao terobservado uma criança prodígio, como Mozart, por exemplo, queaos seis anos, idade em que muitas crianças ainda mal sabem lerou escrever, já compunha melodias. Neste terreno, com todas as

13 Método socrático, consistindo em fazer com que as pessoas cheguem a verdadepor si próprias, após serem submetidas a perguntas complexas.

14 JAEGER, op. Cit., p.625).

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nossas pesquisas, ainda não temos uma resposta definitiva.Por causa da doutrina do inatismo, que fundamentou a

filosofia por muitos anos após os gregos, Platão foi duramentecriticado. Mas hoje, como veremos, pode-se dizer que ele não er-rou por completo. Platão parece ter intuído o que chamo de tota-lidade das conexões, ou seja, a consciência total cósmica, quandoele diz que se pode atingir o Mundo das Idéias. E também, medi-ante algumas descobertas da biologia do conhecimento, ficamossabendo que o ser humano traz conhecimentos deste o tempo daevolução dos seres unicelulares até hoje. E estas informações seencontram registradas em nosso sistema límbico. A questão é:como resgatá-las de forma consciente, ou como estas informa-ções são resgatadas de forma iconsciente?

Uma outra reflexão ainda pode ser considerada: a caver-na, o estágio inicial das sombras, permite ver sob a forma vagadas sombras, o que lá fora ofuscaria a visão dos prisioneiros numrepente; ela pode ser vista como uma forma de proteção paraaqueles olhos que devem acostumar-se aos poucos com a luz. Emse tratando de conhecimento, os estágios primitivos de percep-ção protegem o ser racional para que não se aniquile o equilíbriodo seu espírito ao perceber mais sem a devida compreensão.Muitos perceberam o “mais” e ao traduzirem esta percepção numalinguagem compreensível ao nível racional se envolveram emfantasias e causaram muita confusão ao mundo. Temos exem-plos disso principalmente no campo religioso e místico. Tomocomo principais os casos de Paulo e Gautama (o Buda), homensque viram e viveram realidades elevadas (ao nível de percepção),e que procuraram auxiliar os seres humanos com o seu senso demoral elevado. Arrebatados pelo fulgor místico pareceram nãomais controlar o que os unia ao humano, e tudo que é humanopareceu-lhes maligno. Paulo foi levado pela grandiosidade e gló-ria do novo estado a subestimar o que ele chama de “carne”, semperceber que foram as experiências travadas com e na “carne” oque lhe propiciou a nova percepção. O mesmo podemos dizer deGautama quando desdenha o mundo de Maya (ilusão). Muitos

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homens que os seguiram deixaram de lado a escada que os leva-ria ao cume: ao negar sua “carne”, as forças da natureza e as rea-lidades do mundo. A escada é apenas um instrumento, mas sópode ser abandonada depois de atingida a altura almejada. Se-gundo o médico Dr. Richard M. Bucke, os males que provieramda doutrina de que uma parte do homem é boa e deve ser cultiva-da, enquanto uma outra é má e se possível deve ser extirpada,são incalculáveis e às vezes nos faz esquecer mesmo os benefíci-os (maiores por sinal) que estes seres supracitados outorgaram àespécie humana. Não foram os únicos responsáveis por esta situ-ação, mas sua influência em seus seguidores foi grande15 .

As pessoas não devem ser mantidas na caverna, na Ma-trix, mas também não devem ser tiradas deste estado num re-pente, sem o devido cuidado, caso contrário se rompe o equilí-brio do seu espírito e uma profunda angústia poderá levá-las aoestado de esquizofrenia ou loucura.

O Método do Racionalismo

O maior arauto do racionalismo foi René Descartes. Seunome em latim ficava Renatus Cartesius. Isto lembra a você algu-ma coisa? Algo como as coordenadas cartesianas? Pois é bem istomesmo: ele foi o criador das coordenadas cartesianas que tantoauxiliou o avanço da matemática na modernidade.

Descartes (lê-se decart) possuía uma herança avantajada.Não tendo muito em que gastá-la resolveu viajar acompanhandoo exército francês em suas campanhas. Em 1618 alistou-se noexército de Maurício de Nassau, nos Países Baixos, e um ano de-pois no de Maximiliano da Baviera. Foi nessa época16 que, segun-do suas próprias palavras, “brilhou a luz de uma revelação admi-

15 cf. Bucke, Consciência Cósmica, p.267.

16 Mais precisamente 1619.

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rável” e Descartes encontrou o caminho para elaborar sua filoso-fia. Ele havia se desencantado em relação aos ensinamentos filo-sóficos que recebera até então. Convencido de que a realidadeinteira respondia a uma ordem racional, pretendia criar um mé-todo que possibilitasse alcançar, em todo o âmbito do conheci-mento, a mesma certeza que a aritmética e a geometria proporci-onavam em seus campos.

Um certo dia, recolhido em sua cabana que usava nas cam-panhas do exército, devido a ação do inverno, postado diante dofogareiro que o aquecia, começou a colocar em dúvida todos osconhecimentos que havia recebido de sua educação clássica comos jesuítas. A partir daí começou também a colocar em dúvida atéa existência do mundo material. Segundo ele, tudo pode não pas-sar de um artifício de um gênio maligno que nos faz aceitar ailusão como mundo real, a fim de nos manter presos na matériae longe da divindade17. Esta é a Matrix cartesiana. Para se sairdela ele propõe o processo conhecido por Dúvida Metódica. Ouseja, deve-se iniciar a pesquisa duvidando .

Ora, em toda dúvida existe algo de que não podemos du-vidar: a própria dúvida, isto é, eu não posso duvidar de que estouduvidando. Mas a dúvida, prossegue Descartes, é um pensamen-to, meu pensamento, e eu não posso pensar sem existir. Portan-to, há algo de que posso ter uma firme certeza: penso, logo exis-to, ou je pense, donc je suis (em latim, cogito, ergo sum). Eu sou,em última análise, uma substância pensante, espiritual, e a úni-ca certeza de que eu existo é o fato do meu pensamento. A razãoestá em todos de igual maneira e é capaz de conhecer a verda-de evidente: os erros provêm dos métodos que se usa para talempresa.

Descartes estabelece as regras de seu método para come-çar a “passar em revista” todos os conhecimentos que pusera delado no início de sua busca.

Regras do método cartesiano

17 Descartes sai numa boa desta situação. Ele afirma que Deus é muito bondoso enão permitiria que fôssemos enganados desta forma.

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1) Aceitar com minha inteligência somente as idéiasclaras e distintas que excluam qualquer possibilidadede dúvida

2) Dividir o problema a ser estudado em tantas partes me-nores quantas forem possíveis e necessárias

3) Colocar meus pensamentos em ordem, partindo dosmais simples para os mais complexos.

4) Fazer enumerações tão completas e revisões tão geraispara se ter segurança de nada ter sido omitido

“Passando em revista” todos os conhecimentos, Descartesdá-se conta de que as representações são de três classes: idéias“inatas”, como as de verdade, justiça, substância; idéias “adven-tícias”, originadas pelas coisas exteriores; e idéias “fictícias” ou“feitas por mim mesmo”, as que são tidas como criações de nossafantasia, como os monstros fabulosos etc.

Assim sendo, vamos colocar em prática o que aprende-mos com Descartes, ou seja, a duvidar metodicamente em nossaspesquisas e no processo de nosso próprio pensamento.

A Maneira do Empirismo

Vimos, no capítulo anterior, como o racionalismo fundou-se sobre a crença na capacidade do intelecto humano para com-preender a realidade. Incorreu, todavia, em excessos metafísicosque fizeram dele um sistema filosófico fechado. Diante disso,surgiu na Inglaterra o empirismo, segundo o qual nenhuma cer-teza é possível, nenhuma verdade é absoluta, já que não existemidéias inatas e o pensamento só existe como fruto da experiênciasensível.

Empirismo é a doutrina filosófica segundo a qual todo oconhecimento provém de nossos sentidos. Ela reconhece a expe-riência como única fonte válida de conhecimento, em oposição àcrença racionalista, que se baseia, em grande medida, na razão. O

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empirismo deu início a uma nova e transcendental etapa na his-tória da filosofia, tornando possível o surgimento da modernametodologia científica.

Do ponto de vista psicológico, identifica-se com o “sensu-alismo” ou o “sensismo”, pelo menos em seus representantes maisradicais. Na perspectiva metafísica, identifica-se o empirismo coma doutrina que nega qualquer outra espécie de realidade além daque se atinge pelos sentidos.

Comecemos com um dos expoentes do empirismo, JohnLocke. Segundo ele todo o conhecimento que temos nos vem pelossentidos; desta forma lança as bases do empirismo parafrasean-do a sentença aristotélica: “Nada há no intelecto que antes já nãotenha estado nos sentidos”. A mente do recém-nascido nada maisseria do que uma tábua vazia (tabula rasa), no que concerne aoconhecimento.

O próximo grande empirista foi David Hume. Hume forta-lece os argumentos de Locke, de que nosso conhecimento pro-vém dos dados recebidos pelos sentidos.

Assim como os astrônomos provaram, com base nos fenô-menos, os verdadeiros movimentos dos corpos celestes; assimcomo Newton determinou as leis e as forças que governam e diri-gem a revolução dos planetas, Hume pretende delinear as leisque governam a mente, ou ainda, na opinião de alguns comenta-dores, pretende ser o Newton da filosofia moral.

Hume, na Seção I da Investigação sobre o entendimentohumano, segue o projeto filosófico de desbancar os raciocíniosmetafísicos porque eles se apresentam confusos, por serem cul-tivados sem fundamentação, além de revelarem admissão cegade princípios, deduções de conseqüências insatisfatórias, faltade coerência e acima de tudo, falta de evidência. No meio dissotudo, Hume acusa que a eloquência, o palavreado, ganha maisterreno do que a razão. Esse quadro gera um preconceito geralcontra os raciocínios metafísicos. Devemos buscar pelo caminhodo esforço, visto que mesmo os gênios falharam apesar de extre-mos esforços.

Uma vez que as ciências estão sob o domínio do conheci-

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mento humano, nada mais certo do que examinar a força e aextensão do entendimento humano, explicando a natureza dasnossas idéias e das operações realizadas pela mente. Ele quer des-crever o funcionamento da mente e chegar até os princípios pormeio dos quais ela opera. Segundo ele, todo conhecimento vemdas impressões recebidas pelos sentidos. Mas ele distingue doistipos de impressões. As impressões fortes são as percepções e asimpressões fracas são as idéias.

Vamos vivificar isto com um experimento mental.Estou diante de um copo. Enquanto estou diante dele, es-

tou recebendo dele impressões por meio dos meus sentidos, ouseja, estou tendo a percepção do copo, que é constituída de im-pressões fortes. Mas logo em seguida saiu do ambiente onde meencontrava e fico distante do copo, tendo dele apenas uma idéia,que é constituída de impressões fracas, visto que não estou maisdiante do copo.

Desta forma, apenas as impressões são originárias; as idéiassão somente “cópias das nossas impressões”, reflexos atenuadosdas nossas sensações no espelho dos nossos pensamentos. Asimpressões são percepções fortes e nítidas, por exemplo, a sen-sação de calor; já as idéias são percepções fracas e apagadas, porexemplo, a idéia de calor.

Hume apresenta dois argumentos para sustentar esta pro-posição geral. O primeiro se fundamenta no fato de que quandoanalisamos nossos pensamentos ou idéias (mesmo que comple-xos), descobrimos que se traduzem em idéias simples, e que es-tas, por sua vez, nada mais são do que cópias de uma sensaçãoanterior. O segundo argumento ele usa para provar que a únicamaneira pela qual as idéias são introduzidas em nós, dá-se atra-vés da sensação presente: se há um defeito em qualquer órgãoreceptor dos sentidos, ocorre a incapacidade de se formar idéiascorrespondentes, como no caso do cego que não pode fazer idéiadas cores e do surdo que não o faz dos sons.

Hume divide então as percepções em simples e comple-xas. As simples são aquelas que não se dividem (a cor, por exem-

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plo), ao passo que as complexas são distinguíveis em partes (amaçã, pois tem as qualidades de cor, gosto, cheiro, etc.).

A teoria de Hume tem implicações em nossa compreen-são da relação entre causa e efeito. Diante de um objeto novo,ninguém está em condições de descobrir as suas causas e os seusefeitos abstraindo-se da experiência e apenas raciocinando sobreele.

Por exemplo, mesmo que se admita que as faculdades deAdão fossem perfeitas, ele não poderia deduzir da fluidez e datransparência da água que ela poderia sufocá-lo, ou da luz e docalor do fogo, que ele poderia queimá-lo. Logo, segundo Hume,podemos dizer que a relação da causalidade nasce da experiên-cia. Caso não tenha havido uma revelação divina, Adão só saberiaque o fogo queima após uma experiência pessoal ou de alguémpróximo a ele a respeito deste fato.

Mas então, qual é a natureza desta experiência da qualnasce o nexo causal que aplicamos aos acontecimentos? SegundoHume, o nexo causal não nasce de uma experiência cognitiva,mas instintiva, ou seja, nasce do Hábito: o hábito de ver dois ob-jetos sucedendo-se sempre do mesmo modo faz surgir em nós aexpectativa para crer que, aparecendo o primeiro, aparecerá tam-bém o segundo. Mas você já reparou que o animal também faz omesmo?

Pode-se concluir disto que ao colocar Hume o hábito comoo grande guia da atividade humana, no que concerne ao conheci-mento e uso do princípio de causalidade, homens e animais seencontram no mesmo plano.

Sabendo pelo pensamento de Hume que a única realidadeda qual temos certeza é aquela constituída pelas percepções, po-demos afirmar que uma realidade que seja diferente das percep-ções e exterior a elas não pode ser afirmada nem com base nasimpressões dos sentidos, nem com base na relação causal.

A questão pode ser colocada da seguinte forma: por queatribuímos uma existência contínua aos objetos quando não es-tão mais presentes aos nossos sentidos e por que supomos que

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eles têm uma existência distinta da mente e percepções? Em ou-tras palavras: estando longe de casa, por que atribuo a ela exis-tência mesmo sem minha presença?

Hume então passa a analisar se a origem destas atribui-ções encontra-se nos sentidos, na razão ou na imaginação.

Esta origem não pode ser creditada aos sentidos, pois es-tes não nos oferecem nada além das impressões: “o espírito, ex-cetuando-se as percepções, jamais tem algo que lhe é presente, eele não pode, indubitavelmente, vislumbrar qualquer experiên-cia de sua conexão com os objetos” 18; também não pode ser cre-ditada à razão, visto que as crianças e os camponeses e a maiorparte da humanidade manifestam-na sem perder-se em elucu-brações filosóficas ou exercícios da razão; enfim, cabe à imagina-ção, auxiliada pelo hábito e pelo costume, nos dar a idéia decontinuidade e de existência das coisas.

Podemos fazer uma crítica ao pensamento de Hume: a lei-tura de Hume às vezes nos leva ao desespero quando nos mostraa situação humana em relação ao conhecimento. A filosofia deHume parece deixar muito poder somente ao mundo exteriorquando o assunto é conhecer. Seu ceticismo desemboca entãonuma confiança irracional na natureza, como divindade laicizada.

Ao falar do empirismo, a crítica do físico Heisenberg es-barra em Hume:

“Essa linha de argumentação foi então estendida a um ceticis-mo extremo por Hume, ao negar os processos de indução e cau-sação, o que levou a conclusões que, se aceitas, conduziriam àdestruição das bases de toda ciência empírica” 19.

No entanto, ao meu ver, o objetivo de Hume jamais foi ode destruir pura e simplesmente o trabalho dos cientistas, masendereçar sua análise e sua crítica sobre os fundamentos do co-

18 HUME, D. Investigação sobre o entendimento humano, 1980, p.139.

19 HEISENBERG, W. Física e Filosofia, 1987, p.66

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nhecimento humano às concepções metafísicas enraizadas na tra-dição filosófica.

Resumindo, o objetivo de Hume foi alcançado: esclareceuo que vem a ser conhecimento (i); estudou sua origem (ii); deter-minou os limites da razão humana no que concerne ao conheci-mento (iii). Respectivamente, conhecimento é crença justificada(i), tendo sua origem na experiência, fundamentada pelo hábitoe pelo costume (ii) e nada mais podemos afirmar com certezaalém das impressões sensíveis (iii).

E arremato o dito acima com as palavras de Hume:

“Quando persuadidos destes princípios, passamos em revistaas bibliotecas, que devastação não faremos? Se tomamos nasmãos um volume qualquer de Teologia e Metafísica escolástica,por exemplo, perguntemos: este livro contém algum raciocí-nio abstrato sobre quantidade ou número? Não. Contém al-gum raciocínio experimental sobre questões de fato ou deexistência? Não. Para o fogo com ele, pois outra coisa não podeencerrar senão sofismas e ilusões.” 20

Sinto comoção quando leio esta citação de Hume, dura, éverdade, mas propícia para a época, pois Hume também fez partedo tempo no qual buscava-se a separação entre o conhecimento ea Igreja; buscava-se a depuração da metafísica que chegava ao ri-dículo de discutir o sexo dos anjos. Contudo, os discípulos deHume não deviam exagerar tanto seu seguimento ao mestre, poisnem toda reflexão metafísica é pura ilusão.

A verdadeira postura filosófica, após ter refletido sobre ateoria de Hume, não descartará o conhecimento metafísico, maso depurará dos excessos de fantasia. Ela saberá reconhecer o pa-pel do hábito, do costume e, principalmente, da imaginação nabusca da verdade.

Não fará como “essas pessoas que, ao falarem do mar, sófalam do enjôo” (Chesterton).

20 HUME, op. Cit., p.204 .

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Amaneira de Kant

Se existiu alguém neste mundo para quem a aventura dopensamento era algo levado a sério, este era Immanuel Kant. Suavida era toda disciplinada e regrada pela razão. Nunca saiu deKönisberg, sua cidade natal; passeava todos os dias às quatro ho-ras da tarde, com andar sereno e compenetrado, com tal regulari-dade que alguns concidadãos acertavam seu relógio por este pas-seio. Um dia aconteceu algo inusitado: Kant não saiu para passe-ar; temendo algo ter acontecido ao filósofo, alguns vizinhos fo-ram até sua casa e encontraram-no absorto na leitura da obra deDavid Hume.

Em sua aventura do pensamento, Kant busca demarcar oslimites dentro dos quais ocorre a possibilidade do conhecimentohumano. Para ele, o conhecimento é sempre conhecimento atra-vés de conceitos, correspondendo estes necessariamente a umaintuição sensível e a uma referência advinda da experiência. Anoção kantiana de filosofia difere daquela tomada pelos filóso-fos clássicos. Para a tradição, a filosofia preocupa-se com as cau-sas primeiras e com o conhecimento dos elementos universaisque dão unidade à multiplicidade dos conhecimentos adquiridospelo senso comum. Para Kant, antes de se aventurar a conhecerqualquer coisa, a razão deve verificar as condições que tornampossível o conhecimento, sendo este o verdadeiro papel dafilosofia.

Kant afirma ter sido despertado de seu sono hipnótico (queo fazia preso na Matrix da época) pela leitura de Hume. A partirdas conclusões tiradas desta leitura, ele questiona a afirmaçãoveemente dos empiristas de que todo conhecimento provém so-mente dos sentidos. Por que? Porque houve um Newton, cuja fí-sica tem alguns princípios (como a força, por exemplo) que nãopodem ter sido derivados simplesmente da experiência. Kantprocurou sintetizar esses dois caminhos (o idealismo/racionalis-mo e o empirismo) num só, considerando as dimensões teóricase empíricas do conhecimento. Segundo ele, o conhecimento pro-

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cede das impressões sensíveis, como queriam os empiristas, maspara que seu conteúdo seja conhecido, precisa ser ordenado eorganizado na consciência, isto é, a forma que o conteúdo assu-me é fornecida pela subjetividade de quem conhece, assim comoo conteúdo do líquido se acomoda ao formato da vasilha.

Para que o conhecimento seja efetuado, mister se faz osdados vindos dos sentidos por meio da experiência, mas tam-bém uma estruturação lógica, que ordene o conteúdo livre e in-dependente da experimentação.

Para demonstrar o processo cognitivo Kantiano exemplifi-carei fornecendo os passos para o conhecimento de uma mesa.

Inicialmente recebo o bombardeio de milhares de impres-sões sensíveis. Meus olhos e meu sistema nervoso entrarão emação de acordo com os mecanismos fisiológicos necessários. Re-cebo impressões formadas por pequenos pontos instantâneos ecaóticos, quer dizer, sem transmitir nenhuma ordem ou seqüên-cia lógica. A partir daí as impressões são catalogadas segundo asformas “a priori” da sensibilidade que são o espaço e o tempo,que para Kant não são propriedades objetivas das coisas, masestruturas subjetivas a priori, ou seja, anteriores e independen-tes da experiência sensível.

Não importa o que possamos observar na natureza, nãoimporta os conceitos que construímos em nossa mente, sempreserão catalogados sobretudo como fenômenos no tempo e no es-paço. Kant chamava o tempo e o espaço de “formas da sensibili-dade”. E ele sublinhava que essas duas formas já existem emnossa consciência antes de qualquer experiência, ou seja, a prio-ri. Isto significa que podemos saber, antes de experimentar algu-ma coisa, que vamos experimentá-la como fenômeno no tempo eno espaço. Tudo o que colocamos em nossa mente, sempre estarárelacionado ao tempo e ao espaço. Procure fazer diferente e vocêdescobrirá esta impossibilidade por si mesmo.

A consciência humana não é, portanto, uma tabula rasaque só registra passivamente as impressões sensoriais vindas defora. Ela também é criativa; é uma instância formadora; ela colo-ca sua marca no modo como percebemos o mundo.

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Neste particular, temos a citação de Thomas Hanna, nolivro Corpus em Revolta, onde compara o papel de Kant na filoso-fia ao de Copérnico na física:

“O primeiro Copérnico eliminou a crença humana de que ele ea sua terra eram o centro de toda a criação, deixando o homembem reduzido no meio da ciranda dos astros; o segundo Copér-nico (no caso Kant) libertou o homem da opressiva tirania deum cosmos cego e deu-lhe um novo centro: ele mesmo. As aven-turas do coração humano já não seriam brincadeira de deusessoberanos para além do cosmos, ou o joguete das leis dessemesmo cosmos; a nova aventura do homem era o homem”.

Nada mais justa esta comparação, pois Kant considera desuma importância para a teoria do conhecimento a chamada Re-volução Copernicana: a partir de Copérnico, o cientista não ob-serva a natureza para descobrir seus segredos; ele vai em direçãoa ela para forçar uma resposta desejada com todo o aparato deseu conhecimento.

Kant nos ensina ainda que nunca podemos chegar ao co-nhecimento da essência das coisas (ao Númenon, a “coisa em si”)e sim ao conhecimento dos dados que nos vêm dos sentidos(fainúmenon, a “coisa para mim”, o fenômeno). Nunca seremoscapazes de saber com toda a certeza como as coisas são “em si”.Só podemos saber como elas “se mostram” a nós.

Vimos que segundo Kant, para qualquer conhecimento,deve corresponder uma experiência, ou seja, só posso conheceraquilo que provém de uma intuição sensível. Neste sentido, nopensamento kantiano, Deus, liberdade e imortalidade da alma,por exemplo, não atendendo a condição de serem conceitos (pro-vindos de uma experiência sensível correspondente) não podemser objeto de conhecimento. Deus, liberdade e imortalidade daalma são postulados que possibilitam o conhecimento humano,mas não podem ser provados em si. Neste ponto Kant segueHume, considerando que para cada conhecimento deve dar-seuma impressão correspondente. Assim sendo, não posso ter co-

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nhecimento de Deus, liberdade e imortalidade da alma, visto nãoter deles uma intuição sensível.

Mas eu arremato dizendo: concordo com Kant que nãoposso ter conhecimento como intuição sensível de Deus, mas voualém dele dizendo que posso ter conhecimento como intuiçãointerior de Deus, mediante experiência íntima.

O poder do Iluminismo

Quem quer que esteja envolvido com a educação do pen-samento, não pode deixar de estudar o movimento que mais con-tribuiu para a emancipação do homem. No século XVIII, tambémchamado século das Luzes, surgiu na Europa um movimento cul-tural conhecido por Iluminismo, Ilustração ou Aufklärung (Escla-recimento, em alemão). Como as designações sugerem, trata-sedo otimismo acentuado no poder das luzes da razão para reorga-nizar e administrar o mundo.

Houve uma explicitação de algumas tendências já senti-das na Renascença, como luta contra o princípio da autoridade eacentuação do papel do homem como capaz de trilhar o seu ca-minho. O racionalismo e o empirismo do século anterior (Descar-tes, Locke e Hume) dão os subsídios filosóficos para esta reflexão.

A filosofia do Iluminismo sofre também a influência darevolução científica a partir de Galileu, Francis Bacon e Newton.O método experimental descoberto recentemente vai se aliar àtécnica para fazer surgir novas ciências, as quais, por sua vez,aperfeiçoam ainda mais a tecnologia.

Os filósofos iluministas diziam que somente quando a ra-zão e o conhecimento se tivessem difundido entre todos é que ahumanidade faria grandes progressos. Era apenas uma questãode tempo para que desaparecessem a irracionalidade e a ignorân-cia e surgisse uma humanidade iluminada, esclarecida.

Mas é evidente que todo este movimento cultural não dei-xou de ser também fruto de movimentos econômicos. A exalta-

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ção do poder humano decorre da emergência da burguesia, quetem em sua inteligência e em seu espírito de iniciativa e de previ-dência, as ferramentas para a emancipação do homem das amar-ras da antiguidade e do medievo. Este movimento, embora es-tendido por toda a Europa, vai ter seu lugar principalmente naInglaterra e França. É devido a este movimento que nós hoje po-demos usufruir a liberdade de pensamento e de expressão.

Na Inglaterra, os iluministas foram conhecidos como li-vres pensadores, que desenvolveram uma crítica à Igreja oficial epregaram a tolerância religiosa. Foram os iniciadores do deísmo,uma busca de se viver uma religião natural, livre da revelação.John Toland e Antony Collins foram os grandes expoentes ingle-ses deste movimento.

Na França, tivemos os maiores vultos do Iluminismo: Mon-tesquieu, Voltaire e Rousseau. O sucesso do movimento nessepaís se deu principalmente pelo processo de divulgação do pen-samento filosófico a todas as pessoas, mediante a publicação daEnciclopédia em 28 volumes, contendo o supra sumo de todo oconhecimento da época, desde novidades culinárias até a mecâ-nica celeste. Os organizadores desta obra volumosa foramD’Alembert e Diderot, mas nela escreveram vários filósofos fran-ceses da época, como os supracitados, por exemplo.

O filósofo iluminista Condorcet, já em 1787, publica umartigo sobre os direitos da mulher, garantindo às mulheres osmesmos direitos naturais dos homens. Ele ficaria horrorizado, sepudesse voltar a viver entre nós, ao ver que em muitos locais doplaneta a mulher ainda não alcançou os seus direitos.

Penso que algumas sentenças de Voltaire traduzem bem aimportância deste iluminismo francês. Este pensador é conheci-do pelas suas frases bombásticas e pelo volume de correspon-dências que mantinha com pessoas de vários lugares. Sua rivali-dade com Rousseau era muito conhecida pela população da Fran-ça. Certa vez, quando Rousseau havia sido preso na Bastilha (pri-são política do país), Voltaire discursou defendendo o acusado.Alguns compatriotas lhe perguntaram como podia defender

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aquele que era considerado seu inimigo. Voltaire então respon-deu uma frase que traduz com excelência a idéia de liberdade depensamento:

“Posso não concordar com nenhuma das palavras que você diz,mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las”.

Este era o espírito que permeava o Iluminismo.Por causa daqueles que enganam os outros com artifícios

religiosos Voltaire vaticina:

“O primeiro divino foi o primeiro esperto que encontrou o pri-meiro grupo de bobos”.

Ele não era ateu, como muitos o acusam sem saber. Elepreconizava era o deísmo, a vivência de uma religião natural. Etambém criticava muito os abusos do clero francês. Ele pode tersido um ferrenho anticlerical, mas não um ateu. Os filósofos ilu-ministas queriam libertar o cristianismo dos muitos dogmas eprincípios religiosos irracionais que, ao longo da história da Igre-ja, tinham sido amalgamados à simplicidade dos ensinamentosde Jesus, o Cristo.

O Iluminismo recebeu muitas críticas. Inclusive o papaJoão Paulo II atribuiu a este movimento as misérias que advieramao mundo após a modernidade. Penso que o problema não seencontra no Iluminismo, mas sim no uso que dele fizeram osburgueses para conseguirem seus intentos no campo da econo-mia. Ao invés de usarem a razão para libertar o homem, comohavia sido prescrito pelos princípios do movimento, usaram-napara escravizar a natureza e o próprio homem.

Contudo, hoje ainda esperamos por um novo iluminismopara tirarmos a vida de nosso pensamento do marasmo em quese encontra. Mas para tal sucesso mister se faz que mais pessoasaprendam a pensar de forma correta. E é este o intuito de meulivro.

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A influência do Positivismo

No século XIX, quando as descobertas científicas e os avan-ços técnicos faziam crer que o homem podia dominar a natureza,surgiu o positivismo, opondo-se às abstrações da teologia e dametafísica ao incentivar o método experimental e objetivoda ciência.

Como ideologia e movimento filosófico fundado por Au-gusto Comte, o positivismo tem como base teórica os três pontosseguintes: (1) todo conhecimento do mundo material decorre dosdados “positivos” da experiência, e é somente a eles que o inves-tigador deve ater-se (ou seja, é uma radicalização do empirismo);(2) existe um âmbito puramente formal, no qual se relacionam asidéias, que é o da lógica pura e da matemática; e (3) todo conheci-mento dito “transcendente” - metafísica, teologia e especulaçãoinfundada - que se situa além de qualquer possibilidade de veri-ficação prática, deve ser descartado.

A evolução posterior do positivismo passou por diversasetapas e reelaborações, entre as quais cabe destacar o positivis-mo crítico e o neopositivismo ou positivismo lógico, e exerceuinfluência notável no desenvolvimento da filosofia analítica emmeados do século XX.

Para o positivismo, o pensamento deve estar voltado paraas ciências físicas como modelos de certeza e exatidão. Isto equi-vale a dizer que os modelos de conhecimento ficam sendo o cien-tífico e o matemático. Mas isto não significa um paradigma desu-mano de conhecimento, mas uma reafirmação do humanismo,no sentido de que tem uma preocupação humanística: libertar ohomem das opressões ideológicas e políticas.

A ciência é o único tipo de conhecimento válido, pois foradela, o espírito humano mergulha em crenças, tradições e fanta-sias, afastando-se do conhecimento verdadeiro. Ela é um conhe-cimento objetivo, especialmente pelo uso da matemática, tantona formulação quanto na comunicação das teorias científicas. Elaé um conhecimento metódico e preciso, segue procedimentos

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pré-estabelecidos pela comunidade científica; sua linguagemdeve ser clara e unívoca, utilizada por toda a comunidade de pes-quisa. Ela deve estar neutra em relação às ideologias políticas, àsreligiões, etc.

Para este movimento filosófico a matéria fica sendo o prin-cípio supremo. Todas as coisas emergem do mundo material, in-clusive a consciência.

Para mostrar a você que o Positivismo não deixa de ser umhumanismo, veja esta sentença elaborada pelos seus arautos, queficou como lema do movimento: “Amor por princípio, Ordem porbase e Progresso por fim”. Isto faz você lembrar alguma coisa?Sim, da bandeira nacional do Brasil, só que nela o amor ficou delado e só deixaram a ordem e o progresso. Isto aconteceu porqueo Positivismo ganhou muitos adeptos por aqui, principalmenteentre os intelectuais ligados ao campo jurídico. O Positivismoinfluenciou muito a ciência jurídica, no sentido de que a lei deveser aplicada em si sem se valer de muita interpretação (dura Lex,sed Lex, ou seja, a Lei é dura, mas é a Lei).

O criador do Positivismo foi Augusto Comte. Sua doutri-na, exposta no Curso de filosofia positiva, baseou-se na chamadalei dos três estados ou estágios do desenvolvimento intelectualda humanidade. O primeiro estágio é o teológico (ou religioso),no qual o homem explica os fenômenos da natureza mediante orecurso a entes sobrenaturais ou divindades, e cuja fase superioré o monoteísmo. No segundo estágio, o metafísico (ou filosófico),não se interpreta o mundo sensível em função de seres exterio-res a ele, mas apela-se para forças ou conceitos imanentes e abs-tratos (formas, idéias, potências, princípios); procura-se dar ex-plicações racionais, porém, ainda não demonstráveis empirica-mente. Por último, no estágio positivo (ou científico), o homemse limita a descrever os fenômenos e a estabelecer “as relaçõesconstantes de semelhança e sucessão entre eles”. Nesse estágio,que é o da filosofia positiva, não se pretende achar as causas ou aessência das coisas, mas descobrir as leis que as regem, já que afilosofia está “destinada por sua natureza não a descobrir, mas aorganizar”.

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No que concerne à religião, para Comte a humanidade é oúnico Deus que merece nosso culto. Por incrível que pareça,Comte, no Catecismo Positivista, tentou estabelecer os fundamen-tos de uma religião cívica, usando a força dos símbolos para aevolução moral do homem. Qualquer semelhança com o sistemada Maçonaria é mera coincidência.

Podemos fazer uma crítica ao Positivismo. Na busca de ci-entificidade e rigor metodológico, os positivistas – principalmen-te os positivistas lógicos - alienaram-se num jogo abstruso de pa-lavras tornando-se bem mais abstratos que os filósofos tradicio-nais que eles condenaram. Auxiliaram na seriedade da lingua-gem científica, não resta dúvida, mas tornaram-se o grupo maisdesligado dos problemas do homem e da sociedade e tentaramlevar esterelidade ao conhecimento científico. Sua influência nafilosofia seguiu o mesmo rumo: análise das proposições e nada aver com os problemas humanos. Enfim, o fim da filosofia no queela significa no verdadeiro sentido da palavra.

Veja só este desabafo de Stephen Hawking e sua crítica aomaior expoente do positivismo lógico, Wittgenstein:

“Os filósofos reduziram tanto o escopo de suas indagações, queWittgenstein, o mais famoso pensador deste século, declarou:‘a única tarefa que sobrou para a filosofia foi a análise da lin-guagem’. Que decadência da grande tradição de filosofia de Aris-tóteles e Kant.”.

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CAPÍTULO4

AMETAFÍSICAVIRTUAL

O Mapa não é o território (Korzybski)A matéria é o absorvente da iniqüidade (Orígenes)

Quem é esta Metafísica?

Buscando dar mais alguns passos rumo à educação do pen-samento, o leitor se deparará comigo com o esplêndido mundoda metafísica. Esplêndido, porém, vilipendiado, criticado e aindapor cima mal compreendido.

Quando comecei a elaborar os primeiros esboços da Teo-ria das Conexões21 um colega pesquisador me disse:

- Incrível, Eugênio, enquanto todo mundo está fugindo dametafísica você está indo em direção a ela?

Na época respondi que eu não tinha nenhum trauma emrelação à metafísica. E continuo não tendo. O nome metafísicavem do grego �������������� (metá tá físicá), significando literal-mente “o que está além do físico, isto é, ela é o estudo da essên-cia das coisas”, daquilo que não vemos mas de que as coisas sãoconstituídas.

Há um fato curioso em torno da origem do termo metafísi-

21 Que será lançada em livro brevemente.

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ca. Andrônico de Rodes, intelectual que organizou as obras deAristóteles no século I a.C., verificou ao fazer a classificação dasobras que havia o livro Física e logo após um livro sem nome quefalava sobre a filosofia primeira. Resolveu chamar este livro deMetafísica (porque vinha logo após o livro de física). Mas coinci-dentemente o assunto deste livro tratava realmente das coisasque estão além do físico, ou seja, da essência, da substância dascoisas, das causas primeiras das coisas. O “depois” da definiçãopôde ser usado porque o livro tratava de assuntos que transcen-dem a física e que ultrapassam as questões relativas ao conheci-mento do mundo sensível.

Em sua fase mais recente, a metafísica recebe também onome de ontologia, significando estudo do ser (de ontos: ser).Daí que você já deve ter ouvido algo como “relação ontológica”,“hierarquia ontológica”, etc.

A birra que o mundo acadêmico criou em relação a estadisciplina filosófica não é pra menos. Houve exagero da parte demuitos autores antigos, principalmente medievais, em apresen-tar teses sobre temas metafísicos como se fossem verdades abso-lutas, chegando ao cúmulo de discussões absurdas como a dosexo dos anjos.

Sobre este assunto, dou a palavra ao Sr. Voltaire:

“Nada sabemos de primeiros princípios. É realmente extrava-gante definir Deus, anjos e mentes, e saber exatamente o moti-vo pelo qual Deus criou o mundo, quando não sabemos por quemexemos os braços quando queremos. A dúvida não é um esta-do muito agradável, mas a certeza é um estado ridículo”.

Realmente, a razão humana parece não ter competênciasuficiente para tratar de forma profunda assuntos como Deus,anjos, vida além da morte etc. etc. Para estes assuntos a razãoparece ser apenas o elemento de partida e não o de chegada. Arazão deve estar unida a muitas outras faculdades do espíritopara fornecer dados seguros sobre temas tão elevados. Eu nãoposso descrever via razão o que Deus é realmente; o que possofazer apenas é falar racionalmente da idéia que tenho de Deus.

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No mais, muitos princípios metafísicos foram usados paracorroborar crenças religiosas, o que mais ainda acentuou a dis-tância dos acadêmicos em relação à metafísica. Assim como a Igrejano passado usou muitos princípios metafísicos para corroborarseus dogmas, hoje muitos outros segmentos fazem o mesmo,como doutrinas esotéricas, espíritas, místicas, xamânicas, etc.

Malgrado o nome que se possa dar a este estudo, o que sepesquisa é o fundamento da realidade, seja ela humana, da natu-reza ou do social. Ora, a física também não busca o fundamentoda realidade? Estudamos a força. Alguém algum dia viu a força?Vemos o seu efeito, mas não a força. No entanto, Newton estabe-leceu uma fórmula para que ela fosse medida e assim trabalhada.Mas existe muito mais no real que ainda não pode ser medido emanipulado. Todavia existe.

A realidade está perdendo a necessidade de ser caracteris-ticamente tão palpável, tão concreta, a fim de continuar sendoconsiderada realidade.

Estamos vendo o declínio da consideração do ferro, metal,carvão, gás, óleo e outros materiais como forças primárias de pros-peridade; ocorre também o declínio do preço, do valor e da influ-ência da física e do materialismo. O engenho com mistura analí-tica e digital chamado computador foi drasticamente reduzido aolongo dos últimos cinqüenta anos, dos mainframes antigos aolaptop que pode ser carregado numa mão.

Artigos não físicos como informação, fibras óticas, softwa-res, o mundo da Web, todos estes artigos quase sem “corpo físi-co” estão rapidamente se tornando fontes primárias de prosperi-dade. Podemos ver que o computador experimentou ainda umcrescimento exponencial em poder e capacidade. Quanto menoro microchip, mais informações armazenadas, mais poderoso setorna o computador. Quanto menos físico, mais poder. A Webtranscende a questão de espaço. Onde está a Web? Com certezanão está em nenhum lugar, embora dependa de provedores ins-talados em pequenas salas. A Web é muito mais energia em for-ma de informação.

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No terceiro milênio veremos cada vez mais o refinamentoda matéria. Cada vez mais matéria é transformada em energia emuitas vezes em informação. O poder da mente está ascendendoe sobrepujando a força bruta. A espada cada vez mais está sendosubstituída pelas palavras. Estamos começando a vislumbrar opoder das palavras, dos sons, das vibrações e de sua influênciana transformação da realidade.

Cabos de arame carregando energia bruta estão sendo subs-tituídos por feixes de elétrons que transmitem informações comodados e imagens. Cabos de cobre estão sendo trocados por linhasde luz. O primeiro cabo de telefone transatlântico, conhecido comoTAT-1, foi construído em 1956, pela AT&T. Ele ia da Nova Escócianos EUA à Escócia. Era capaz de transmitir mais de 32 telefone-mas de uma única vez. Pensava-se de forma lógica que se o cabofosse expandido, ficando mais espesso, poderia carregar maischamadas telefônicas através do mar. Certo? Errado! Em 1996,foi construído o finíssimo cabo de fibra ótica TPC-5; podia emitirum facho de luz tão fino quanto o fio de uma navalha e podiatransmitir 320.000 chamadas telefônicas ao mesmo tempo.

A tecnologia está diminuindo em tamanho e aumentandosua potencialidade criativa.

Isto tudo leva as pessoas a aceitarem e a entenderem me-lhor quando se fala em metafísica. Estes pontos funcionam comometáforas que auxiliam o homem a entender sua realidade. Mui-tos físicos estão chegando à conclusão de que os conceitos queutilizamos para descrever a realidade não passam de metáforas,categorias que usamos para organizar as informações como elé-trons, comprimento de onda, consciência, tempo, freqüência, vi-bração. As próprias teorias podem ser consideradas como apenasmetáforas.

Durante toda a história da ciência, a maneira como pensa-mos o funcionamento da natureza foi influenciada pelas ferra-mentas utilizadas para investigá-la. Assim tivemos o relógio, omáximo da tecnologia na época de Isaac Newton e Descartes, queacabou estimulando conexões mecanicistas do sistema solar, in-

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fluenciando igualmente a filosofia e mesmo idéias teológicas. Ti-vemos ainda a máquina a vapor, que foi emblema da primeirarevolução industrial; dela advieram modelos termodinâmicos queressaltam o trabalho, eficiência e perda de calor, morte final douniverso em expansão. Temos agora os computadores, capazesde processamento de dados e manipulação de informações. Comoos cientistas utilizam estas máquinas numa variedade de aplica-ções, desde a criação de modelos de tempestades e estrelas biná-rias até sistemas humanos, pergunta-se muitas vezes se os siste-mas naturais não são, num certo sentido, sistemas de processa-mento de informação. Mas temos hoje o mundo da Web, o mun-do virtual, que funciona como uma metáfora para entendermosrealidades que são virtuais, porém muito reais.

A nossa descrição do mundo é revelada pelo nosso méto-do de questionar. E nosso método de questionar está imerso numcontexto de conexões.

Analisemos o seguinte experimento mental.Vamos supor a existência de uma raça fora de nossa galá-

xia e totalmente diversa da nossa. Embora sendo inteligente essaraça manteria um firme preconceito contra o inobservável. Acre-ditaria somente em coisas observáveis, tocáveis, etc., consistir-se-ia numa raça de positivistas lógicos. Não acreditaria em deu-ses ou coisas do gênero. Quanto ao observável, seria tão científi-ca e até mais “racional” do que a humana, não sendo guiada erro-neamente por “preconceitos metafísicos”. Tal raça poderia atédesenvolver uma geometria para além do nível prático dos egíp-cios (nas medições de terras, por exemplo); consideraria sem sen-tido a noção de uma linha reta sem espessura alguma, ou a noçãode um ponto sem quaisquer dimensões. Sequer especularia so-bre átomos a fervilhar no vazio, sobre a origem da vida ou coisaassim. E, o que é ainda mais estupendo, não desenvolveria a físi-ca e a matemática como são por nós conhecidas22 . Que ironia! As

22 Para esta metáfora, fiz uma adaptação de Hilary Putnam, em Realismo de rostohumano, p.233-34.

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grandes conquistas da racionalidade científica só foram mesmopossíveis devido a influência de pressupostos metafísicos!

É a metafísica que fornece a todas as outras ciências o fun-damento comum e os princípios dos quais elas dependem. Asciências se referem continuamente ao ser e a diversos aspectosligados a ele, como identidade, gênero, espécie, todo, parte, etc.Portanto, nenhum estudo é tão necessário ao pensamento huma-no quanto à metafísica.

Em busca do Elemento Primordial

Podemos dizer que o estudo da metafísica pode ocorrer apartir da busca de respostas a algumas destas questões: por queuma coisa pode mudar, conservando sua identidade individual?O Paulo de hoje, adulto, é o mesmo que quando criança? Por quesomos diferentes? De onde vem tantas diferenças? O que é umacoisa? Um objeto? O que constitui a minha subjetividade? O queé a alma? O que é a consciência?

Quando perguntamos o “que é?” este “é” possui pelo me-nos dois sentidos:

1) Significa existe, referindo-se à existência da realidade.Na verdade está se perguntando “o que existe?”;

2) Significa a natureza própria de alguma coisa, referindo-se à essência da realidade. Está-se perguntando “qual aessência disto?”.

Existem dois tipos de realidades fora do alcance dos senti-dos:

A)As que não compõem matéria alguma: o que faz delasserem objeto de estudo de metafísicas especiais.

B) As que são apartadas de qualquer matéria; tomadas nomais alto grau de generalidade, convindo tanto aos se-res materiais quanto imateriais.

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Podemos apresentar as visões filosóficas gerais sobre o queexiste no mundo real.

Vamos ter o Monismo. Segundo esta visão a realidade éconstituída de uma única substância. O Monismo, por sua vez sesubdivide em Materialismo (considerando esta única realidadecomo sendo a matéria) e o Idealismo (considerando esta únicarealidade como sendo o espírito ou o mundo da consciência).

Vamos ter também o Dualismo. Segundo esta visão a reali-dade é constituída de duas substâncias: espírito e matéria, almae corpo, etc.

Foi com perguntas sobre o que existe na realidade que osfilósofos da natureza (os chamados pré-socráticos) começaram oestudo da metafísica.

Essas perguntas – ou esse espanto ou admiração diante domundo - levaram estes primeiros pensadores a buscar uma expli-cação racional para a origem de um mundo ordenado, o cosmos.Por esse motivo, a Filosofia nasce como cosmologia. A busca doprincípio que causa e ordena tudo quanto existe na Natureza (mi-nerais, vegetais, animais, humanos, astros, qualidades como úmi-do, seco, quente, frio) e tudo quanto nela acontece (dia e noite,estações do ano, nascimento, transformação e morte, crescimen-to e diminuição, saúde e doença, bem e mal, belo e feio, etc.) foia busca de uma força natural perene e imortal, subjacente às mu-danças, denominada pelos primeiros filósofos com o nome dephysis23 . A cosmologia era uma explicação racional sobre a phy-sis do Universo e, portanto, uma física.

Ora, considerando a metafísica como aquilo que é condi-ção e fundamento de tudo o que existe e de tudo o que pode serconhecido, podemos afirmar que estes filósofos da natureza aca-baram fazendo também uma metafísica, pois buscaram respon-der qual é o elemento primordial de todas as coisas.

Devido a herança judaico-cristã que fundamentou nossopensamento ocidental, temos fácil a aceitação do pressuposto de

23 Cf. Marilena Chauí, Convite, p.209.

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que o mundo surgiu do nada a partir de um ato criador. Muitasvezes nem sequer pensamos em outras possibilidades quanto aisto. Mas para os gregos a coisa não se deu desta forma assim tãosimples. Eles consideravam que o mundo sempre existiu, quesempre existiu alguma coisa, nem que seja em forma de caos.

A principal questão, portanto, não era saber como tudosurgiu do nada, mas saber como uma coisa se transforma em outra:como a água podia se transformar em peixes vivos, ou como aterra sem vida podia se transformar em vegetação. Ou como umbebê podia sair do corpo de sua mãe!

Eles partiam do pressuposto que determinada substânciabásica (arqué) estava por detrás de todas essas transformações.

O primeiro filósofo da natureza que temos notícia é Tales,da cidade de Mileto na Ásia Menor. Ele viajou muito. Certa vezfoi ao Egito e dizem que ele calculou a altura de uma pirâmidepela medida da sua sombra. Usou para isto o fato de que naqueleexato momento sua própria sombra tinha a mesma medida desua altura. Genial este Tales, hein? Consta também que em 585a.C. ele previu um eclipse solar.

Tales considerava a água a origem de todas as coisas, oelemento primordial de tudo. Talvez porque ele tenha percebidoque tudo contém água e que da água surgem os seres e a ela retor-nam quando se desfazem.

Anaximandro também era de Mileto, como Tales. Com-partilhava com Tales a idéia de que havia um componente básicoque mantinha o universo unido, mas não concordava que fossealgo tão comum quanto à água. Ele preconizava que nosso mun-do era apenas um dos muitos mundos, que surgem de algumacoisa por ele chamada de infinito (ápeiron) - algo além do univer-so físico, mas se constituindo como a fonte de tudo. Ele pensavaque o mundo tinha a forma de um tambor e era cercado dessasubstância infinita.

Chegamos a Anaxímenes, também de Mileto, provavelmen-te aluno de Anaximandro. Observou o mundo natural e discor-dou de seu mestre. Anaxímenes tomou o ar (pneuma) como com-

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ponente básico, que mantinha todas as coisas juntas, uma vezque o ar é incorpóreo e se encontra em toda parte. Conforme o arse adensava, se transformava em vento, depois em nuvem, de-pois em água, depois em lama e pedras. O fogo seria apenas o arrarefeito.

Talvez hoje alguém possa achar ridículas as conclusões aque chegaram estes pensadores. Mas se levarmos em conta queeles não tinham os instrumentos de observação de que dispo-mos hoje, sentimos um enorme respeito pelas suas teorias. Nomais, para eles, até mesmo os elementos de nossa moderna tabe-la periódica estariam fundamentados em um ou em todos estesquatro elementos. Aliás, como fruto de minhas árduas pesquisase levando em consideração as viagens que alguns destes filósofosfizeram ao Egito, tenho para mim que esta doutrina dos quatroelementos é importação da terra dos Faraós. Esta doutrina já eraconhecida no Egito, sendo usada para explicar a realidade mate-rial do universo e a realidade espiritual do homem. Segundoos sacerdotes egípcios, havia inclusive o quinto elemento,harmonizador de todos os outros.

Tudo passa ou tudo permanece

Estes filósofos pré-socráticos deram respostas a respeitoda substância primordial (o arqué, o princípio) de todas as coisas,mas não a respeito de como uma substância era capaz de se mo-dificar e se transformar em algo completamente diferente. Istoconstitui o que podemos chamar de problema da permanência eda mudança das coisas.

Temos um pé de abacateiro. Dele saem sementes de aba-cateiro. Estas sementes de abacateiro darão origem a um novo péde abacateiro.

Neste processo todo houve permanência ou mudança?Alguns filósofos gregos tentaram responder a esta per-

gunta.

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A Resposta de Heráclito

Heráclito, de Éfeso, na Ásia Menor, procurou compreen-der a multiplicidade do real como os outros filósofos da nature-za. No entanto, para ele, as constantes transformações eram jus-tamente a característica mais fundamental da natureza. Todas ascoisas mudam sem cessar: o que temos diante de nós em dadomomento é diferente do que foi há bem pouco e do que serádepois. Isto está bem compreendido por sua conhecida frase:“Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”, visto que o riomuda e nós também mudamos. Bem, se isto acontece com ascoisas materiais, porque então não aceitamos que isto acontecetambém com a gente? Porque insistimos em pensar que aquelapessoa com quem nos casamos deva continuar sendo sempre domesmo jeito de que quando a conhecemos? Neste sentido, nocaso do pé de abacateiro, ocorre somente a mudança de um esta-do para outro.

Heráclito fala também da multiplicidade do ser. “O ser émúltiplo”. Não apenas no sentido da multiplicidade das coisas,mas também pelo ser estar constituído de oposições internas. Aluta dos contrários é que mantém o fluxo do movimento das coi-sas: é da luta que nasce a harmonia como síntese dos contrários.Isto me faz lembrar de uma música do Lulu Santos, Certas Coi-sas, na qual ele diz: “não existiria som se não houvesse o silên-cio; não haveria Luz se não fosse a escuridão”. Só enxergamosmesmo a luz pelo contraste da escuridão que está lá fora.

A Resposta de Parmênides

Parmênides, de Eléia, ocupa-se em criticar a filosofia deHeráclito de que “tudo flui”. Para ele o Ser é imóvel. Tudo perma-nece; o Ser permanece. Ele pensava que tudo o que existe sem-pre existiu. Seguia o pensamento muito corrente entre os gregos,para quem era praticamente evidente que tudo o que existe nomundo sempre existiu. Nada pode surgir do nada, dizia Parmêni-

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des. E nada que existe pode se transformar em nada. Ele conside-rava absurdo que uma coisa pode ser e não ser ao mesmo tempo.O Ser é e o não-Ser não é. Ele conclui a partir disto que o ser éúnico, imutável, infinito e imóvel.

Entretanto, Parmênides sabia da absurdidade de negar aexistência do movimento, visto que as coisas nascem e morrem ese expõem a uma infinita multiplicidade. Mas ele respondia queo movimento existe apenas no mundo sensível, mundo ilusório.No mundo inteligível e verdadeiro tudo permanece. O pé de aba-cateiro muda aqui em nosso mundo de ilusão, mas permaneceinalterado no mundo inteligível.

Uma das conseqüências desta filosofia é a identidade en-tre o Ser e o Pensar. É o mesmo que dizer que as coisas que exis-tem fora de mim são idênticas ao meu pensamento, e o que eunão conseguir pensar não pode ser real.

Já refleti muito sobre isto. Não chego a endossar a idéia deque o que eu não conseguir pensar não pode ser real, porquemuitas coisas que existem no real não cheguei a pensar nelas, e,no entanto elas existem. Mas teimo em insistir que tudo o queeu pensar é real e pode um dia ser atualizado ou não no reino damanifestação.

Quem tinha razão?

Para Parmênides, considerando a razão, ficava claro quenada pode mudar. Mas para Heráclito, considerando as experiên-cias sensoriais ficava igualmente claro que a natureza está emconstante transformação. Qual dos dois tinha razão? Será quedevemos confiar no que nos diz a razão, ou será que devemosconfiar no que nos diz os sentidos?

Empédocles

Empédocles começa a esboçar um caminho que tiraria a

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filosofia deste impasse, até que chegasse a vez de Platão e Aristó-teles darem suas respostas. Segundo ele, a noção de um únicoelemento primordial tinha que ser refutada. Seus ensinamentostambém dizem respeito à causa última das coisas, a qual é coloca-da na existência dos quatro elementos: água, terra, ar e fogo. Odevir, a mudança, é possível não pela transformação dos elemen-tos, mas pela formação de seres diferentes mediante a diversacombinação dos elementos. Quando vários elementos se combi-nam em certa proporção, dá-se a geração de um indivíduo; quan-do a proporção se rompe, segue-se nele a corrupção. Tudo consis-te em terra, ar, fogo e água, só que em diferentes proporções demistura. Quando uma flor ou um animal morrem, esses quatroelementos voltam a se separar.

Empédocles afirmava que na natureza atuavam duas for-ças, por ele chamadas de amor e de disputa (ou ódio). O que uneas coisas é o amor; o que as separa é a disputa. Isto se assemelhaum pouco ao que sabemos pela física atual, que as partículas so-frem as forças de atração e repulsão. Alguns cientistas chegam afalar de algo parecido como amor e ódio entre os elétrons.

A duração dos seres físicos é determinada pelo alternar-sedo predomínio do Amor ou do Ódio em luta no organismo. Seráque é por este motivo que as pessoas que chegam a uma idademuito avançada com saúde e vigor são aquelas que mais demons-traram equilíbrio em suas vidas?

Anaxágoras

Anaxágoras não aceitava a idéia de que terra, ar, fogo ouágua pudessem se transformar em ossos, flores e pedras.

Ele achava que a natureza era composta por uma infinida-de de partículas minúsculas, invisíveis a olho nu. Mas ao contrá-rio de Demócrito, ele achava que estas partículas não eram cor-púsculos qualitativamente iguais, porque se assim fosse não seexplicaria a diversidade dos seres. Tudo pode ser dividido em

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partes ainda menores, mas mesmo na menor das partes existeum pouco de tudo. Tudo está em tudo. Cada corpo reproduz decerto modo a variedade do universo. Isto fica fácil de ser compre-endido se levarmos em conta um holograma.

Nos tempos atuais, com a tecnologia do laser, podemosproduzir os chamados hologramas. Se tomarmos um hologramaque representa um automóvel, por exemplo, e se este hologramafor depois fragmentado, ainda assim continuaremos a ver a ima-gem do automóvel por inteiro, mesmo que tenhamos na mãoapenas a parte do holograma que antes mostrava o pára-choques.Isto porque todo o carro está presente em cada uma das minús-culas partes.

De certa forma, nosso corpo também é construído dessamaneira. Se retiro uma célula da minha pele, o núcleo desta célu-la contém não apenas a descrição da minha pele, mas do corpointeiro.

O holograma é um tipo de registro óptico em que todas aspartes da imagem contêm a imagem completa sob forma conden-sada. Se numa placa holográfica que projeta a imagem de um ho-mem cortarmos a parte da placa referente à cabeça, esta parte daplaca continuará refletindo a imagem do homem inteiro e nãosomente a cabeça. Se continuarmos a dividir esta imagem, o mes-mo fenômeno continuará ocorrendo sucessivamente, demons-trando que num sistema holográfico a parte está no todo e o todoestá em cada parte. Autores como David Bohm, Bentov e outrospartidários do universo holográfico, aventam a possibilidade deque a natureza usa a forma holográfica de estocagem de informa-ções. Cada célula de nosso corpo possui em seu núcleo informa-tivo toda a informação genética sobre todo o corpo. O interessan-te é que a parte pode ter acesso ao todo e que o todo está presen-te em todas as partes do conjunto.

Para Empédocles a harmonia e a ordem das coisas depen-dem da Mente Suprema (nous). Esta foi a sua grande descoberta.A mente é uma realidade de ordem superior, independente doscorpos e infinita, embora ele a considerasse formada de matériasutilíssima.

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Esta descoberta do Nous só podia mesmo ser feita por al-guém que considerava a íntima relação entre o todo e as partes.Assim como em nossos dias muitas explicações do funcionamen-to da mente são feitas a partir das pesquisas sobre o universoholográfico.

Quando pensamos, nossos cérebros emitem ondas elétri-cas que com seus componentes magnéticos disseminam-se peloespaço à alta velocidade. Os sons e as ondas elétricas produzidaspor nossas células e órgãos apresentam o mesmo comportamen-to. Ora, as ondas de todos os seres vivos misturam-se formandoum grande padrão de interferência que se espalha por todos oslados do universo. A interferência de todos estes padrões de on-das gera um imenso holograma universal que podemos perfeita-mente denominar mente universal ou consciência universal, con-tendo todas as informações existentes na estrutura inteira e emtodas as focalizações no espaço-tempo. A informação completaestá distribuída em todas as partes desta grande mente univer-sal. Este fator permite a qualquer consciência focalizada o acessoao conhecimento completo estocado neste holograma universal.

A resposta de Platão

Platão pertencia a uma das mais nobres famílias de Ate-nas, nascendo em 427 a.C. Seu nome verdadeiro era Arístocles,mas devido a sua forte constituição física recebeu o apelido dePlatão, que vem do grego plato (ombros largos). Foi o discípulomais querido de Sócrates. Mas tarde veio a fundar sua própriaescola, a Academia, sediada nos jardins de seu amigo Academus.

Ele dá uma solução magistral ao problema da permanên-cia e da mudança do mundo real. Para ele, tudo o que podemostocar e sentir na natureza “flui”, se transforma, passa. Não exis-te, portanto, um elemento básico que não se desintegre. De for-ma absoluta tudo o que pertence ao “mundo dos sentidos” é fei-to de um material sujeito à corrosão do tempo. Ao mesmo tem-

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po, tudo é formado a partir de uma forma eterna e imutável, quenão se encontra no mundo dos sentidos.

É por causa desta forma eterna que temos a percepção deque todos os cavalos são iguais. Embora os cavalos individuaisaparecem a nós como sendo diferentes uns dos outros, existealgo que é comum a todos os cavalos; algo que garante que nósjamais teremos problemas para reconhecer um cavalo quando oencontrarmos. Naturalmente, o “exemplar” isolado do cavalo, estesim “flui”, “passa”; ele envelhece, adoece e morre. Mas a verda-deira “forma do cavalo” é eterna e imutável para além deste mundoilusório.

O abacateiro (olha ele aí de novo) muda no mundo sensí-vel, mas a forma do abacateiro continua imutável no mundo in-teligível.

Platão acreditava na existência de uma realidade autôno-ma por detrás do “mundo dos sentidos”. A esta realidade ele deuo nome de mundo das idéias. Neste mundo estão as “imagenspadrão”, as imagens primordiais, eternas e imutáveis, que encon-tramos na natureza. Esta notável concepção é chamada por nósde a teoria das idéias de Platão.

Para Platão existe o Mundo Inteligível, perfeito, original,no qual existe o Bem, juntamente com as formas eternas (que elechamou de idéias); e existe o Mundo Sensível, imperfeito e que éa cópia do Mundo Inteligível. No entanto, a imperfeição do Mun-do Sensível não tem a conotação negativa de maldade; sua im-perfeição se apresenta como ausência de perfeição. A mudançase realiza no mundo sensível e a permanência fica por conta domundo da idéias.

Talvez esta teoria das idéias de Platão tenha auxiliado ohomem a encarnar com mais fervor a idéia de um paraíso perfei-to, um Éden original, encarando este mundo como pecaminoso eilusório. Aqui também encontramos uma certa semelhança coma Matrix, não é? Ora, o mundo inteligível funciona como umamatriz para o mundo sensível e material.

O engraçado é que tudo isto se passa também com nossa

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mente. Todas as coisas que criamos de bom ou de ruim, todas,sem exceção, estiveram antes em nossas mentes em forma deprojeto. Casas, carros, roupas, moda, guerras e armamentos, to-dos eles foram projetos de nossas mentes. Que tal usarmos estenosso poder para melhorarmos nossas vidas? A educação para opensar pode servir também como manual de auto-ajuda, por quenão? Pense corretamente, forme projetos de forma correta e consis-tente, e você verá no mundo sensível a realização destes proje-tos. Se não der certo devolveremos seu dinheiro em trinta dias.

Veja agora como Platão via a alma humana. Segundo ele, aalma pode ser comparada a uma carruagem puxada por dois ca-valos alados. Um cavalo é branco e o outro é preto. Esta idéia seencontra em seu livrinho chamado Fedro, vamos ler?

O cavalo branco, de constituição suave, delicada e dócil,representa a inteligência. O cavalo preto, de constituição impaci-ente e irrequieta representa as paixões.

A carruagem, portanto, a alma, é dirigida por um cocheiroque representa a razão. Ela transita pelo mundo das idéias, lugarsupraceleste onde residem os deuses. Deuses aqui não signifi-cam ídolos de madeira ou de barro dos povos pagãos, mas simseres celestiais, seres mais perfeitos que o homem, o equivalenteaos nossos anjos.

A dificuldade para se guiar os dois cavalos faz com queeles percam as asas e a carruagem desça de suas alturas. Destaforma a alma desce da região celeste e se encarna num corpo. Sea alma chegou a vislumbrar com detalhes algumas idéias, a ver-dadeira luz, encarnará num corpo humano, caso contrário encar-nará num corpo de animal. Depois de encarnada num corpo, aalma passa a não se lembrar do mundo celestial, mas a visão dascoisas materiais lhe causa uma vaga recordação das idéias con-templadas antes da encarnação, o que significa aquisição de co-nhecimento. Para Platão conhecer é recordar. Esta concepção le-vou muitos a considerarem o corpo como algo negativo, uma pri-são para a alma, esquecendo de que o corpo não deixa de ser umaescada para que a alma possa evoluir até o reino da inteligibilidade.

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A alma, assim como o Demiurgo24 , desempenha papel demediador entre as idéias e a matéria, à qual comunica o movi-mento e a vida, a ordem e a harmonia, em dependência de umaação do Demiurgo sobre a alma. Assim deveria ser, tanto no ho-mem como nos outros seres, porquanto Platão é um pampsiquis-ta, quer dizer, anima toda a realidade. Ele, todavia, dá à almahumana um lugar e um tratamento à parte, de superioridade, emvista dos seus impelentes interesses morais e ascéticos, religio-sos e místicos. Assim é que considera ele a alma humana comoum ser eterno (coeterno às idéias, ao Demiurgo e à matéria), denatureza espiritual, inteligível, caído no mundo material comoque por uma espécie de queda original, de um mal radical. A almahumana deve libertar-se do corpo como de um cárcere; esta liber-tação, durante a vida terrena, começa e progride mediante a filo-sofia, que é separação espiritual da alma do corpo, e se realizacom a morte, separando-se, então, na realidade, a alma do corpo.

A faculdade principal, essencial da alma é a de conhecer omundo ideal, transcendental: contemplação em que se realiza anatureza humana, e da qual depende totalmente a ação moral.Entretanto, sendo que a alma racional é, de fato, unida a um cor-po, dotado de atividade sensitiva e vegetativa, deve existir umprincípio de uma e outra. Segundo Platão, tais funções seriamdesempenhadas por outras duas almas - ou partes da alma: a iras-cível (ímpeto), que residiria no peito, e a concupiscível (apetite),que residiria no abdome - assim como a alma racional residiria nacabeça. Naturalmente a alma sensitiva e a vegetativa são subordi-nadas à alma racional.

O processo do conhecimento se dá para Platão da seguinteforma: O homem é a união de corpo e alma. Esta, por ser eter-na, já contemplou o mundo das idéias, entre uma vida e outra.Por isso, pode recordar-se de todas as idéias, quando encontrar

24 Demiurgo é o ser que, segundo Platão, ordenou o universo, uma espécie deempregado de Deus. O qual, embora superior à matéria, é inferior às idéias, de cujomodelo se serve para ordenar a matéria e transformar o caos em cosmos.

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uma cópia delas nesse mundo. Assim, para Platão, conhecer éum recordar.

Segundo Platão, só podemos conhecer aquilo que pode serclassificado por nós, ou seja, aquilo que entra numa das nossasclasses mentais. Isso significa dizer que pode existir muita coisaque nunca iremos desconfiar que existe, porque não temos clas-sificações mentais para elas.

O papel da reflexão filosófica é justamente o de estimulara recordação, fazendo com que o homem atinja o Mundo das Idéi-as, que é a origem de todas as coisas.

A resposta de Aristóteles

Um quadro pintado por Rafael, A Escola de Atenas, retratadois filósofos ao centro, cada um segurando um livro; um apontapara o céu e o outro aponta para a terra. Rafael quis demonstrarcom esta atitude que o pensador que aponta para o céu simbolizaPlatão, para o qual o mais importante era o Mundo Inteligível; opensador que aponta para a terra simboliza Aristóteles, para oqual o mais importante era o Mundo Sensível.

Aristóteles nasceu em Estagira, na Macedônia. Ainda jo-vem foi para Atenas e lá ingressou na Academia de Platão, tor-nando-se seu aluno mais brilhante. No entanto, não era bem vis-to pelos demais alunos por ser de origem estrangeira. Tanto quedepois da morte do mestre ele não pode conduzir a Academia;acabou fundando sua própria escola, o Liceu, assim denominadaem homenagem ao deus Apolo Lício.

Antes da fundação da escola, porém, Aristóteles foi convi-dado por Felipe II, rei da Macedônia, para ser o preceptor de seufilho Alexandre. Esta função rendeu a Aristóteles boas conseqü-ências, como por exemplo, proteção enquanto Alexandre Magnoviveu, além de receber vários espécimes de animais que o exérci-to de Alexandre empalhava e mandava para que o filósofo os es-tudasse e catalogasse. Esta índole mais científica de Aristóteles

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pode ter vindo de sua educação, seu pai era médico de renome eestimulou em seu filho o estudo pela natureza. Tanto que Aristó-teles pode ser considerado o primeiro biólogo da Europa.

Aristóteles concordava com Platão em que o exemplar iso-lado do cavalo “flui”, passa, e que nenhum cavalo vive para sem-pre. Ele também concordava que, em si, a forma do cavalo eraeterna e imutável. Mas a “idéia” cavalo não passava para ele deum conceito criado pelos homens e para os homens, depois deeles terem visto um certo número de cavalos. A “idéia” ou a “for-ma” cavalo não existia, portanto, antes da experiência vivida. ParaAristóteles, a “forma” cavalo consiste nas características do cava-lo, ou seja, naquilo que se constitui a espécie.

Ele entendia por “forma” aquilo que todos os cavalos têmem comum. Só que não acreditava que houvesse na natureza umdepósito, por assim dizer, com formas para todas as coisas. Paraele, as “formas” estavam dentro das próprias coisas; as “formas”das coisas são suas características próprias. A forma “vaca” estáem todas as vacas, e são as características que distinguem as va-cas de outros animais. Por exemplo, o fato de elas nos darem oleite. Assim, a vaca em si e a “forma” vaca são duas coisas tãoinseparáveis quanto o corpo e a alma. Tudo o que é existenteassim o é em matéria (hilé) e forma (morfé), daí o nome destateoria ser hilemorfismo.

Aristóteles afirma que a natureza progride paulatinamen-te das coisas inanimadas para as criaturas vivas. Ao reino dascoisas inanimadas segue-se primeiramente o reino das plantas,que, “em relação ao reino das coisas inanimadas, parece quaseanimado, e em relação ao reino dos animais parece quase inani-mado”. Finalmente, Aristóteles divide o reino das criaturas vivasem dois subgrupos, o dos animais e o do homem.

As plantas, os animais e as pessoas têm em comum a ca-pacidade de se alimentar, crescer e se multiplicar. Os animais eos homens têm em comum, além disso, a capacidade de percebero mundo que os cerca e de se locomover na natureza. E somenteos homens têm, somada a tudo isto, a capacidade de pensar – ou

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melhor, a capacidade de ordenar suas impressões sensoriais emdiferentes grupos e classes. No topo da escada da evolução, ohomem vive a vida da natureza em plenitude.

Estritamente falando sobre o problema da permanência eda mudança, podemos dizer que Aristóteles resolve este proble-ma esclarecendo que as mudanças ocorrem por meio dos princí-pios chamados ato e potência; A matéria é constituída pelo ato ea forma pela potência.

Potência vem a ser a aptidão do Ser a tornar-se algumacoisa.

Ato vem a ser o estado do ser que adquiriu ou recebeu aperfeição para a qual estava em potência.

Assim sendo, podemos dizer que a criança é o adulto empotência. O adulto, é o adulto em ato e idoso em potência.

O ato é, para a potência, aquilo que o edifício é para osaber edificar.

A semente de abacateiro é ato como semente de abacatei-ro e pé de abacateiro em potência; o pé de abacateiro é ato comopé de abacateiro e produtor de sementes de abacateiro em potên-cia. E assim segue o esquema ad infinitum. Em todas as coisasestes princípios – ato e potência – estão presentes concomitante-mente25 .

A metafísica de Aristóteles surgiu de sua biologia. Tudo,no mundo, é levado por um impulso íntimo a se tornar algo mai-or do que é. Tudo é a forma ou realidade que nasceu de algo queera a sua matéria ou a matéria-prima; e poderá ser, por sua vez, amatéria da qual nascerão formas ainda mais elevadas. Assim, ohomem é a forma da qual a criança foi a matéria; a criança é aforma, e seu embrião, a matéria. Matéria, em seu sentido maisamplo, (A) é a possibilidade de forma; (B) forma é a realida-de, a realidade acabada, da matéria. A matéria obstrui, a for-ma constrói. A forma não é apenas formato, mas a força que dá o

25 Quer saber o que significa concomitantemente? Procura no dicionário e você selembrará do significado para o resto da vida.

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formato, uma necessidade e um impulso interno que modela amatéria visando a uma figura e um propósito específicos. É a re-alização de uma capacidade potencial da matéria. A natureza é aconquista da matéria pela forma, a progressão constante e a vitó-ria da vida26 .

Alguns autores têm o costume de relacionar ato à matériae potência à forma.

Só pelo exposto acima já se depreende a dificuldade emrelacionar Ato/ Potência e matéria/forma. A potência, sendo a ca-pacidade de vir a ser algo, nos leva a considerá-la como se fosse omesmo que forma, mas este não é o caso, como vimos em (B). Amatéria pode ser entendida como princípio de individuação ea forma a maneira como, em cada indivíduo, a matéria seorganiza. Isto poderia nos levar a pensar a matéria comopotência, o que não é o caso, como vimos em (A). Para Aris-tóteles, todos os indivíduos de uma mesma espécie teriama mesma forma, mas difeririam do ponto de vista da maté-ria, já que se tratam de indivíduos diferentes, ao menosnumericamente. É como se, de certo modo, Aristóteles jogasse odualismo platônico para dentro do indivíduo, da substância in-dividual. Matéria e forma são indissociáveis, constituindouma unidade: a matéria só existe na medida em que possuiuma determinada forma, a forma, por sua vez é sempre for-ma de um objeto material concreto. É o intelecto que, pelaabstração, separa matéria de forma no processo de conhe-cimento da realidade. Assim, o cavalo não existe, o que exis-tem são este cavalo, aquele cavalo. O cavalo, enquanto tipogeral, é apenas resultado deste processo de abstração que identi-fica e separa a forma do cavalo em cada cavalo individual.

Características da substância individual:A)essência>>> é aquilo que faz com que a coisa seja o

que é, a unidade que serve de suporte aos acidentes;

26 Cf. DURANT, W. A história da filosofia. Rio de Janeiro: Nova Cultural, 1996. p.86.

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B) acidentes>>> são características mutáveis e variáveisda coisa, que explicam a mudança sem afetar a nature-za.

C)Necessidade>>> as características da essência que nãopodem deixar de ser.

D)Contingência>>> características variáveis.

A partir destas características veja só o que podemos afir-mar: um ser humano é racional por essência, mas é gordo, ma-gro, alto, baixo, por acidente. É fácil entender assim não é? Aessência é o que não muda, e os acidentes são as característicasque mudam.

Aristóteles apresenta também os “gêneros supremos doser”, as “divisões do ser”, que ele denomina de categorias. Ascategorias designam modos diferentes de ser: em si mesmo ouem outro. Ele distingue dez categorias: substância ou essência,quantidade (quanto), qualidade (como), relação, lugar (onde), tem-po (quando), posição, ter (provido de que coisa), atividade (ação)e passividade (paixão/sofrer).

AAlma

Os seres animados possuem um princípio que Ihes dá vida.Esse princípio é a alma. A alma, para Aristóteles, é todo o princí-pio vital de qualquer organismo, a soma de seus poderes e pro-cessos. Assim, não se pode entender a alma independente docorpo, como em Platão. Existem três tipos de alma: a vegetativa,a sensitiva e a intelectiva.

1. A alma vegetativa é a que leva um ser a se reproduzir, se nutrire a crescer. É o princípio mais elementar de vida, o princípioque governa e regula as atividades. As plantas possuem a almavegetativa.

2. A alma sensitiva é a que leva um ser a ter sensações e motrici-

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dade. Essa alma se agrega a anterior. Os animais possuem aalma vegetativa e a sensitiva.

3. A alma intelectiva é a que leva um ser a ter conhecimento,decisão e escolha. Essa alma se agrega às duas anteriores. Oshomens possuem a alma vegetativa, a sensitiva e a racional.

As causas

As causas explicam a origem e o motivo da existência deuma essência. Ou seja, elas explicam o que é, como é, por que é epara que é. Um homem que pensa deve saber refletir sobre ascausas das coisas, visto que ele próprio já é efeito de causas e aomesmo tempo é causa de outros efeitos.

É bom saber identificar a diferença entre causa, condiçãoe ocasião.

- causa> aquilo de que uma coisa depende quanto à exis-tência.

- condição> é o que permite a causa produzir seu efeito.- ocasião> é uma circunstância acidental.

Existem quatro tipos de causas:

1) Causa eficiente- aquela que, por sua ação, produz o efeito (o escultor é a causa

eficiente da estátua).

2) Causa material- matéria de que uma coisa é feita (por exemplo, água, terra,

fogo, ar).

3) Causa formal- é o que dá a constituição (forma) ao composto. Alma + corpo

= ser humano; isto quer dizer que a alma é a forma do corpo.Mesa é a forma assumida pela matéria madeira pela ação docarpinteiro.

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4) Causa final- o fim, em geral, é aquilo por que o efeito é produzido (é cha-

mada de a “causa das causas”): Paulo quer ser advogado... Acausa final de ele estudar Direito é o querer ser advogado.

Os Princípios Racionais

Os princípios racionais constituem as leis básicas do pen-samento racional. Sem eles não pode haver qualquer pensamen-to correto.

Mas espera aí? Isto não era para ter sido tratado no capítu-lo 3 no qual falei sobre lógica? Era. Mas acontece que, emborasendo princípios lógicos, são também princípios ontológicos, ouseja, também possuem relação com o Ser. Estes princípios de-monstram como há profunda relação entre o Ser e o Pensamento.Por isto resolvi expô-los aqui em ontologia.

A) Princípio de Identidade· Traduzindo em palavras ao neófito, podemos dizer o seguinte

sobre este princípio: “Dado um enunciado, ele é sempre iguala si mesmo”. Toda coisa é igual a si mesma, não podendo serconfundida com outras. Desta forma, quando dizemos “folha”,este princípio nos assegura comunicar a mesma coisa a todosos ouvintes, sem o que seria impensável qualquer comunica-ção. “A é A” ou “O que é, é” ou “p=p”.

· Este princípio é a condição do pensamento, pois sem ele nãopodemos pensar.

B) Princípio da não contradição· Poderemos entender melhor este princípio se meditarmos nas

seguintes palavras de Aristóteles: “É impossível que o mesmoatributo pertença e não pertença, ao mesmo tempo e sob amesma relação, ao mesmo sujeito” (Aristóteles, “Metafísica”,livro 620): ~(p. ~P). Ou seja, uma coisa não pode ser e não-ser

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ao mesmo tempo. Uma proposição não pode ser verdadeira efalsa ao mesmo tempo e sob as mesmas condições.

· Seu enunciado é: “X é X e é impossível que seja, ao mesmotempo e na mesma relação, não-X”.

· Exemplo: é impossível que minha caneta seja e não seja cane-ta ao mesmo tempo.

· Este princípio lógico é fundamental para a coerência do racio-cínio. Um pensador será derrotado se cair em contradição, ouseja, se fizer alguma afirmação e logo em seguida uma negaçãoa respeito da mesma.

C) Princípio do terceiro excluído· Dado um enunciado ou ele é verdadeiro ou ele é falso. Não

existe terceira hipótese. (pv~p). Ou este homem é Paulo ounão é Paulo.

· Diante de duas proposições contraditórias, se uma é verdadei-ra, a outra necessariamente é falsa.

· Exemplo: se é verdadeiro que todos as crianças aprendem, en-tão é falso que algumas não aprendem.

· Seu enunciado é: “Ou L é X ou é Y e não há terceira hipótese”.

D) Princípio da razão suficiente· Segundo este princípio podemos dizer que “tudo o que existe

e tudo o que acontece tem uma razão (causa ou motivo) paraexistir ou acontecer, possível de ser racionalmente conheci-do”.

· Se ocorrer A necessariamente ocorrerá B e se tenho B necessa-riamente houve A. p� q

· Ex.: se se fizer a água atingir cem graus em CNTP, ela ferverá.

A Questão dos Universais

Após traduzir a Lógica de Aristóteles, Boécio teceu comen-tários a respeito da existência real ou não dos universais. Pronto!

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A partir daí estava lançada uma polêmica que iria ultrapassar asfronteiras da época medieval. Tanto que você está lendo sobreeste tema agora.

Quanto ao termo “universais”, refere-se a uma designaçãogenérica que discute, em filosofia, a origem e a natureza das idéi-as. Sobre a questão firmaram-se três posições fundamentais: no-minalismo, realismo e conceitualismo.

Entrar em detalhes sobre o problema dos universais pode-ria exigir uma obra específica só sobre este assunto. Vou tentarcolocar a questão de uma forma a mais sintética possível.

Você olha para uma flor e a identifica como rosa.Olha para outra flor e também a identifica como sendo

uma rosa.Olha ainda para uma outra flor e chega à conclusão de que

ela não é uma rosa.O que aconteceu? O que foi que levou você a identificar ou

não essas coisas como sendo uma rosa? Por que não foram iden-tificadas como uma tulipa, ou um cavalo, ou um livro, ou umapedra? Por que no último caso você não identificou a coisa comouma rosa?

Isso deve parecer muito abstrato de longe, mas teve enor-mes conseqüências para o pensamento ocidental, com repercus-sões tanto éticas e políticas quanto cientificas. Toda a civilizaçãoocidental tem alguma coisa a ver com esse problema aparente-mente banal.

A problemática dos universais vem da relação entre lin-guagem e realidade. Eles são conceitos que podem ser aplicadosa todos os indivíduos de uma mesma espécie. Exemplo: o concei-to “rosa” engloba todas as rosas existentes.

A partir daí podemos colocar algumas perguntas. Eles sãoseparados das coisas? São essências que residem somente nosindivíduos concretos? Ou só existem mesmo na mente de quemos concebe?

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A Resposta do Realismo

Para os realistas, como Santo Anselmo e Guilherme deChampeaux, à esteira de Platão, os universais são coisas existen-tes (entidades metafísicas), separadas num mundo à parte. Cons-tituem a essência em cada um dos indivíduos, sendo que a varie-dade ocorre somente pelos acidentes.

A Resposta do Nominalismo

Para os nominalistas, como Roscelino, os universais sãoapenas nomes e só existem em nossa mente. Ou seja, os univer-sais são apenas palavras, sem nenhuma realidade corresponden-te. A palavra rosa, por exemplo, como universal, indica apenasum conceito. Só o particular seria o real e a essência equivaleria àexistência. O homem só conhece as rosas individuais; o que seconhece de uma rosa não pode ser aplicado a outra.

A Resposta do Realismo Moderado

Para o Realismo Moderado, seguido por Santo Tomás deAquino, tudo é individual. Através do pensamento, a razão tem opoder de distinguir e separar os diversos elementos que estão narealidade. O universal é uma construção mental, mas tendo seufundamento nas coisas.

A Resposta do Conceitualismo

É a solução dada por Pedro Abelardo, uma espécie de meio-termo entre o nominalismo e o realismo.

Ele refuta o Nominalismo, afirmando que, embora os

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universais só existem em nossa mente, eles são uma realidademental.

Ele refuta também o Realismo, afirmando que se o univer-sal é um atributo, ele não pode ser uma realidade, uma vez queuma realidade não pode ser predicada por outra realidade: “ne-nhuma realidade pode ser dita acerca de muitas coisas, mas so-mente um nome”.

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CAPÍTULO5

OANTROPOÉTICO

Quais são as perguntas mais necessárias nos dias de hoje?Quem somos nós? O que devemos fazer? O que é bom e o

que é mau?Se temos dificuldade em formular perguntas, mais ainda

o temos em respondê-las.Contudo, se temos dificuldade em formular perguntas ade-

quadas quer dizer que não sabemos bem para onde estamos indo,qual os nossos objetivos enquanto humanidade. Isto é, estamosperdidos.

A sociedade moderna assiste a um progresso tecnológicojamais imaginado, que ultrapassa as previsões dos mais perspica-zes futurólogos. O extraordinário progresso técnico-científico,principalmente na área médico-biológica, e o avanço econômico-social, não são suficientes para deter no homem contemporâneocerta angústia, que o afasta de si, do outro e da auto-realização.

Deve-se isto à massificação da informação, através dos mei-os de comunicação e da informática, que por sua vez traz comocorolário, uma “desagregação de certos valores que de algumaforma vinham conduzindo a maioria das pessoas e grupos huma-nos nos seus posicionamentos morais básicos”.

Esta crise, em fins do século XX e início do século XXI, é oreflexo da conturbação moral, em que o homem adota uma posi-ção relativista em torno da vida; os juízos de valores e as normas

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éticas são considerados meramente uma questão de preferênciade cada um, sem qualquer validade objetiva.

A Ética é um dos ramos da filosofia que busca discutir asações que orientam a conduta humana, refletindo sobre elas. Apalavra Ética vem do grego ethos, que significa “caráter” ou “modode ser”. A ética se ocupa em analisar a conduta humana nas suasrelações objetivas. A moral, por sua vez, vem do latim mores esignifica “costume”, e diz respeito a regras e a normas de ação ede conduta vinculadas a questões pessoais subjetivas, relaciona-das a uma determinada sociedade, comunidade ou grupo de pes-soas, referindo-se a situações particulares. Enfim, Ética é o estu-do do uso que o homem deve fazer de sua liberdade para alcan-çar o seu fim último, por meio da ação.

Propõe-se, portanto, a desvendar não aquilo que o homemde fato é, mas aquilo que ele “deve fazer” de sua vida. Seu campoé o do juízo de valor e não o do juízo de realidade, ou da existên-cia. Estuda as normas e regras de conduta estabelecidas pelo ho-mem em sociedade, procurando identificar sua natureza, origem,fundamentação racional. Em alguns casos, conclui por formularum conjunto de normas a serem seguidas; em outros, limita-se arefletir sobre os problemas implícitos nas normas que de fatoforam estabelecidas.

ÉTICAXMORAL

O senso comum, a mídia e inclusive alguns historiadoresde filosofia ultimamente estão adotando o termo ética como si-nônimo de moral. Neste livro não há espaço para ficarmos discu-tindo o porquê de alguns usarem estes termos como sinônimos eoutros não. Apenas aviso que eu sou um daqueles filósofos queadotam estes dois termos como não sendo sinônimos. Penso queassim a compreensão do assunto fica melhor e se torna mais fáciltrabalharmos com ele de forma profissional.

MORAL: diz respeito a regras ou a normas de conduta

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conforme os costumes, tradições ou leis de uma determinadasociedade; conjunto de regras de conduta de uma determina-da coletividade.

ÉTICA: reflexões em torno das questões morais; reflexãosobre as regras de conduta, sobre a moral; é a filosofia moral.

De onde nascem as teorias éticas?

As teorias éticas nascem e se desenvolvem em diferentesépocas e em diferentes sociedades, como respostas aos proble-mas básicos apresentados pelas relações entre os homens e, emparticular, pelo comportamento muitas vezes conflitante com osvalores de determinado grupo.

O desrespeito a alguma das regras morais pode provocaruma tácita ou manifesta atitude de desaprovação. Apesar de ha-ver em cada indivíduo uma reação instintiva contra regras e obe-diências a qualquer autoridade, até hoje nenhum grupo ou co-munidade pôde existir sem normas constrangedoras da moral.

Se, por uma parte, elas molestam o indivíduo, por outra,preservam e salvam a sociedade em que ele vive. Agem como ummecanismo de autodefesa e preservação do grupo. Como os indi-víduos só podem viver em função da comunidade, ficam assimcompensados do sacrifício pessoal que fazem.

A Ética, como a Moralidade, não se situa no campo pura-mente apreciativo dos valores. A sociedade cria determinados va-lores e as ações humanas começam desde logo a se cristalizar emregras que se orientam pela obtenção e realização dos mesmos.Hodiernamente, a Ética se detém, sobretudo, na pesquisa e noestudo dos valores morais. Estes determinam o impulso moral eimpelem à ação dos indivíduos. Somente aquelas atitudes e coi-sas que levam ao próprio aperfeiçoamento e ao bem comum dogrupo é que possuem valor moral.

Mas por que não cada um tentar viver sem regras morais,livre, inocentemente como os animais?

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O homem já foi definido como um animal racional. Fugin-do um pouco de uma definição tão estreita, podemos dizer que ohomem é um SER que tem em si aspectos de animalidade e as-pectos de racionalidade e muitos outros aspectos que ainda nãovislumbramos.

Pela vida racional o homem percebe em seu interior umaVIDA MORAL. A Ética consiste em criação de força. Força interi-or. Força moral. E força interpessoal. A vida ética produz pessoasmais fortes, famílias mais fortes, comunidades e organizaçõesmais fortes. A moralidade não consiste apenas em restrição e co-erção. A moralidade consiste no florescimento humano. Em vi-ver o melhor tipo de vida.

Parece que sempre estamos diante do dilema Ordem XLiberdade.

Mas veja bem: talvez a moralidade ofereça uma estrutura,ou forma de ordem, que facilite o mais importante e satisfatóriotipo de liberdade.

A Idéia do Bem

De onde obtemos a idéia do que é bom para a vida humana?Esta pergunta nos leva ao cerne de um problema: a funda-

mentação moral. Em que podemos fundamentar a nossa morali-dade? Na razão, nos sentimentos, nos costumes, na religião?

Ela deve ser fundamentada na razão, na vontade, na emo-ção, ou no útil?

Penso que se fundamentarmos a ética apenas na vontade,sem reflexão racional, teremos um homem vítima do jogo dosapetites egoístas. Se fundamentarmos apenas no que é útil, tere-mos a projeção ao coletivo dos interesses egoístas dos indivíduosisolados. É necessária uma reflexão racional para o agir ético.

Ao longo da história foram apresentadas várias respos-tas para este problema, respostas que foram dadas em forma deteorias.

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1 Teoria da ordem divina

Muitos filósofos religiosos afirmaram que a ética origina-se das ordens de um Deus criador. Estas ordens, ou mandamen-tos, podem ser conhecidos pelos seres humanos tanto por meiodas operações da faculdade da razão que Ele nos dotou, quantopor meio da revelação divina.

Mas aqui nós temos um grave problema: hoje temos mui-tas religiões e cada uma delas reclama estar falando com Deus;temos ainda o problema de que o homem acaba interpretando arevelação divina conforme sua cultura, seus caprichos, seuspressupostos mentais etc. Temos ainda a questão dos abusosque os poderes religiosos exerceram nos séculos passadosem nome da divindade, chegando ao ponto de exercerem a tortu-ra e o assassinato.

2 Teoria do contrato social

Alguns filósofos sustentaram que os seres humanos hámuito tempo se reuniram em grupos sociais e, implícita ou ex-plicitamente, decidiram quais regras de conduta governariam seucomportamento pessoal, bem como suas interações mútuas. Asregras eram vistas como necessárias para evitar o conflito e o caostotal. Dessa forma, celebraram um contrato social, ou acordo, paraagirem conforme essas regras.

Mas há um grave problema: em algumas sociedades, osindivíduos mais éticos foram aqueles que explicitamente toma-ram uma posição contra as normas de conduta predominantenelas, estabelecidas mediante este tal contrato social. Como sehouvesse uma moral superior ao da sociedade em que viviam.Assim sendo, o contrato social não pode ser a fonte derradeira damoral.

3 Utilitarismo

No século XIX, vários filósofos na Inglaterra começaram aassociar a bondade à utilidade na produção de prazer, felicidade,

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conveniência ou outras vantagens humanas desejáveis. Em qual-quer situação moral, a ação correta escolhida é aquela que possuia maior utilidade ou produz a maior quantidade de estados posi-tivos para as pessoas.

“O maior bem para o maior número de pessoas”. Este é olema do utilitarismo.

Alguns teóricos criticam o utilitarismo, como é o caso deJohn Rawls, afirmando que não há imparcialidade quando al-gumas pessoas escolhem o maior bem para o maior número depessoas.

4 Teoria deontológica

Os deontologistas acreditam que o certo e o bom consis-tem na obediência a deveres morais objetivos. Kant foi o maisfamoso influente desta teoria. Ele acreditava que a moralidadeconsiste em agir com base apenas no dever. Este dever é por Kantapresentado na forma de dois Imperativos Morais.

Ele disse que a maioria das pessoas se pauta pelo Impera-tivo Hipotético, segundo o qual se age esperando uma recompen-sa promissora. “Você vai caprichar no estudo para receber umaboa nota e isto lhe fará bem quisto entre os colegas”.

Ele formulou então o Imperativo Categórico: aja de tal for-ma que tua ação possa se tornar lei universal. Ele afirma que cadaum de nós somente poderá escolher como regra de ação para suavida aquilo que seja válido para todos, ou seja, universalmenteválido.

Recordemos do caso do índio Galdino, da tribo Pataxó, quefoi queimado vivo por quatro jovens da classe média e médiaalta. Este ato não passa pelo teste do Imperativo categórico: “umasociedade em que queimar as pessoas por brincadeira se tornas-se regra, não sobreviveria, com certeza”.

Assim sendo, as ações serão considerados um bem ou ummal conforme estejam ou não de acordo com um mundo susten-tável de se viver.

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Kant coloca muito poder na razão. Às vezes tenho a im-pressão que ele elaborou uma filosofia para um planeta só dekantinhos, todos racionalmente iguais a ele. Ora, temos aqueles“menores racionais” que ainda não conseguem agir como se suaação se tornasse lei universal.

5 Teoria sociobiológica

Alguns biólogos e sociólogos sustentaram que o valor desobrevivência evolucionária dos comportamentos para as socie-dades gerou nossos códigos morais conhecidos.

Condutas que facilitassem a coesão e sobrevivência foramencorajadas, e comportamentos julgados prejudiciais a esses finsforam proibidos.

“O fracasso ou o sucesso na luta pela existência é o únicopadrão moral. Bom é o que sobrevive”.(W. Somerset Maugham).

Qualquer pessoa pode antever o perigo para nossa socie-dade se esta teoria for a única verdadeira.

6 Teoria da virtude

Esta teoria vem do mundo antigo. A sua mais próxima for-mulação nos vem do povo grego. Existe uma natureza humana.As pessoas bem no fundo são semelhantes de certas maneirasfundamentais. Lembra-se da metafísica? Semelhantes na essên-cia, diferentes pelos acidentes.

A moralidade é o domínio do empenho humano preocu-pado em identificar, cultivar e encorajar as qualidades, ou virtu-des, que facilitam o supremo florescimento humano.

A teoria da virtude leva em consideração as quatro dimen-sões humanas já identificadas implicitamente por Aristóteles emseus escritos. Elas são definidoras do que consiste viver uma vidaboa.

Estas dimensões são:

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A dimensão Intelectual

Todos temos uma dimensão intelectual em nossa experi-ência do mundo, e essa dimensão mira no alvo da verdade. Averdade é fundamento da confiança, e sem confiança nenhumrelacionamento humano consegue florescer. Sem relacionamen-tos maduros nenhum ser humano consegue crescer e experimen-tar uma sensação de profunda realização pessoal.

Conhecimento é poder.

A dimensão Estética

Precisamos da beleza em nossas vidas tanto quanto preci-samos da verdade. Sem uma experiência regular da beleza, aspessoas não conseguem sentir ou ser o que têm de melhor, emnenhuma atividade, em nenhum relacionamento.

A beleza só se realiza se observada, sentida e apreciada.Então, a beleza está realmente no olho do observador?Até certo ponto, sim. Uma experiência de beleza envolve

uma realidade objetiva com as qualidades certas, mas envolvetambém uma receptividade subjetiva.

O Bom é o Belo. (Platão).A beleza é uma forma de gênio – é superior, de fato, ao

gênio, pois não precisa de explicação. (Oscar Wilde).

A dimensão Moral

É o domínio da percepção e julgamento que está associa-do ao bom, ao certo e ao nobre. É o domínio da gentileza, justeza,sensibilidade, justiça e altruísmo.

Somos constituídos para atingir a suprema realização e flo-rescimento humanos somente em conexão com uma experiên-cia de bondade moral.

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A dimensão Espiritual

Seu alvo é a conexão, ou unidade – unidade interior, uni-dade entre eu e os outros, entre todos os seres humanos e o âm-bito da natureza e, em última instância, entre a natureza e suaFonte Maior. Sentir-se em comunhão; sentir-se útil, sentir-se es-pecial.

Dizer que os seres humanos possuem uma dimensão es-piritual em sua experiência do mundo, não significa que todosdevam ser religiosos.

Todos precisam de uma sensação de união com algomaior do que o eu. Quer seja tão elevado como a sensaçãomística de união com Deus, uma sensação naturalista de conti-nuidade com todo o mundo, ou integração com a natureza,com a família, etc.

A pessoa boa ama as pessoas e usa as coisas, enquanto a pessoamá ama as coisas e usa as pessoas. (Sydney J. Harris).

A Regra de Ouro

A promulgação de regras morais tem feito parte de to-das as grandes culturas. Mas a universalidade da moralida-de vai muito mais longe. Existe uma regra que foi promulga-da em todas as grandes culturas, com poucas variantes na formu-lação. É a ordem moral amplamente conhecida como Regra deOuro:

Faze aos outros como gostaria que fizessem a ti. Trata os outroscomo gostaria de ser tratado se estivesses em lugar deles.

Mas há um problema: a maioria das pessoas tende a enca-rar esta regra como a regra da reciprocidade: ou seja, elas tratamos outros como são tratadas.

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A Prática da Vida Moral

A essência da moralidade não se restringe apenas às re-gras. Por exemplo, não adianta nada muitas regras e pouca vonta-de para executá-las. Para tanto, é preciso caráter, sabedoria e vir-tude.

- Caráter>>> é o conjunto arraigado de disposições ouhábitos de pensamento, sentimento e ação que o tor-nam quem você é.

- Sabedoria>>> é uma forma de compreensão, uma com-preensão de como deveríamos viver.

- Virtude>>> é o hábito ou disposição de agir de acordocom a sabedoria.

Assim sendo, eu posso dizer que a bondade moral podeser ensinada?

Acreditamos que sim, mas a moralidade é mais freqüente-mente assimilada do que ensinada.

A imaginação mobiliza as emoções, e as emoções impelema vontade. Daí a responsabilidade moral da arte, da educação, docinema e da TV. Estes são meios poderosos por meio do qual muitacoisa é assimilada pelo ser humano.

Os componentes da ação Ética

Quando trabalho ética com meus alunos, não deixo deapontar-lhes o que se chama de componentes da ação ética: cons-ciência, vontade, responsabilidade e liberdade.

Explico-me melhor: para qualquer ação ser considerada éti-ca deve estar alicerçada sobre estes quatro componentes básicos,caso contrário, ela não pode ser passiva de julgamento ético.

Para que uma ação seja considerada Ética deve haver umagente consciente, ou seja, o indivíduo agente deve estar lúcido,em plena consciência. Por isto que muitos criminosos, instruídos

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por seus advogados, procuram alegar insanidade mental, vistoque desta forma não lhes pode ser imputada a capacidade de agirconsciente, ficando assim o ato sem efeito moral. Alguns alegamo efeito de drogas ou bebidas, mas aí eles não escapam da culpa,pois que tomaram a droga de forma consciente.

Para uma ação Ética também deve haver um ser dotado devontade, ou seja, dotado de capacidade para controlar e orientardesejos e impulsos. Algumas pessoas, em determinadas circuns-tâncias de extrema pressão, perdem esta capacidade, cometendoatos que em situações normais não realizariam. Em Curitiba umhomem chegou em casa e pegou sua mulher fornecendo a “mar-mita” para o amante; ele, no excesso de raiva, colou os dois comcola superbonder. Sua pena foi atenuada devido ao extremo dasituação. Aqui entra também a questão da maioridade ou meno-ridade civil. Alguns alegam que o jovem de dezesseis anos aindanão possui desenvolvida plenamente esta capacidade de orien-tar desejos e impulsos. Mas o engraçado é que a ele é permitidoconduzir veículos e votar.

Responsabilidade. Deve haver de forma igual um agenteresponsável, que se reconheça autor da ação, tendo condições deavaliar seus efeitos. Lembra-se do caso do índio Galdino? Em queuma juíza permitiu aos jovens acusados responderem o processoem liberdade? Foi alegado que os jovens só queriam brincar, quei-mar só um pouquinho, sem imaginar que ocorreria o óbito. Aliás,eles alegaram ainda que pensavam ser um indigente, se soubes-sem que era um índio não tinham realizado a execução.

E por fim, para que uma ação seja considerada Ética, devehaver liberdade na ação, o indivíduo deve atuar sem coação dire-ta. Durante um assalto, um funcionário de uma empresa finan-ceira ao ficar sob coação de um bandido armado, abriu o cofre.Sua ação não pode estar sujeita a julgamento ético, visto que suavida estava em perigo. Tudo isto desde que ele também não façaparte da quadrilha, é claro.

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A Ética de Sócrates: Conhece-te a ti mesmo

Sócrates nasceu em Atenas em 470 a.C. Seu pai era escul-tor e sua mãe, parteira. Sem ter fundado nenhuma escola, comoos outros filósofos gregos, fazia seus ensinamentos em ginásios epraças públicas, como um pregador leigo. Eram muitos os que sesentiam fascinados ao ouvir suas reflexões. Dialogar com Sócra-tes levava a um exame da alma, a uma prestação de contas daprópria vida. Ao “prestar contas a si mesmo”, os que com ele dis-cutiam eram forçados a admitir maneiras indignas de se viver.Isso, para alguns, era duro, a ponto de fazer surgir entre seusinimigos a intenção de matá-lo. lsso, para não ter que desnudar aprópria alma. Para ele, o homem é a sua alma, esta, entendidacomo a consciência, a personalidade intelectual e moral. Conhe-cer a si mesmo significa reconhecer esta verdade.

Ele primava sua filosofia em cima da seguinte máxima:“Conhece-te a ti mesmo”. Pois segundo ele, uma vida sem refle-xão não vale a pena ser vivida.

Qual a essência do homem?

Os filósofos que viveram antes de Sócrates (pre-socraticosnaturalistas) procuraram responder a questão sobre a natureza erealidade última das coisas, ou seja, qual o elemento presente nafórmula de qualquer coisa. Seria a água, a terra, o fogo ou ar?

Sócrates, porém, procurou responder a pergunta sobre anatureza última do homem, ou seja, “oqueé a essência do homem?”.

É comum encontrarmos entre nós, por via religiosa, a idéiade que é a alma a essência do homem, ou seja, aquilo que já exis-tia antes dele e que continuará existindo depois. Antes de serassumida pelo Cristianismo, é em Sócrates que essa idéia é pri-meiramente encontrada. Ele diz que a alma é de natureza divinae é dada por Deus aos homens. Portanto, a vida não depende docorpo, mas sim da alma.

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Para ele, a alma é o nosso eu consciente e a nossa persona-lidade intelectual e moral que, dentro nós, deve ter o comandoda nossa vida. Assim, foi esse ateniense quem criou a tradiçãoque formou o pensamento europeu e, conseqüentemente, o nos-so pensamento latino-americano.

O argumento de Sócrates para convencer-nos de que a almaé a essência do homem pode ser resumido da seguinte forma:

Nós nos referimos ao nosso corpo e aos seus membrosdizendo: “Este é o meu braço”, ou “Este é o meu corpo”. Isto de-monstra a posse de algo. Em todos os casos de posse, sempreexiste uma coisa possuída e alguém que a possui. Este “alguémque possui” é a alma.

Liberdade e autodomínio

As pessoas, geralmente, pensam em liberdade como estarlivre de toda coerção, não ter obrigações ou agir impunemente.Esse é um conceito negativo de liberdade. A filosofia de Sócratesescolhe uma interpretação positiva: a liberdade de fazer o que sequer.

O autodomínio, para Sócrates, é a base da virtude. É nodomínio de si mesmo quando se está nos estados de prazer, dedor e de cansaço que a alma se torna senhora do corpo e dosinstintos ligados ao corpo. É no domínio de si mesmo quandosurgem as paixões e os impulsos que a racionalidade trans-forma a animalidade.

Se as pessoas estivessem totalmente a mercê de sua ani-malidade, elas não seriam livres. Mas, como elas podem moldaras forças que atuam sobres elas e usá-las para atingir seus objeti-vos, elas podem ser livres. Tal como o marinheiro que deve saberutilizar-se dos ventos fortes e fugir das grades ondas.

Desta forma, tornar-se livre passa a ser uma questão deeducação, de utilizar as forças que agem sobre nós para poder-mos alcançar nossos objetivos.

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Sobre o erro moral: o pecado

Sócrates afirma que quem peca, o faz por ignorância dobem. Ninguém peca voluntariamente. O homem, por sua nature-za, procura sempre o seu próprio bem e, quando faz o mal, narealidade não o faz porque pensa se tratar do mal, mas porquedaí espera extrair um bem.

O mal não está na vontade do ser humano. Ou seja, o malnão pertence a sua natureza. Se ocorre, é por um engano, par umdesconhecimento do que seja o bem.

Mas, a virtude, no ser humano, é uma força que necessitade um elemento diretor, algo que a conduza. O elemento queconduz a virtude ao bem é o conhecimento. É o conhecimentoque faz com que a alma do homem seja boa e perfeita como a suanatureza determina.

Platão: uma moral emancipatória

Para Platão, assim como o cosmos é ordenado pelas for-mas do mundo inelegível, a alma humana também deve ordenara vida do homem. Como humanos, devemos ignorar nossos sen-tidos e desejos, deixando a mais alta função da alma (a razão) darsua contribuição.

O objetivo geral da vida é a felicidade, levando em consi-deração uma hierarquia, na qual prevalecem as partes superioresda alma. Situam-se por via ascendente os prazeres inferiores, pró-prios à manutenção da vida e da espécie; os prazeres do coração,já menos fugazes e os prazeres buscados pela inteligência.

É em torno do objetivo de emancipação do homem do mun-do dos sentidos que Platão preconiza sua ascese. A raiz da palavraascese vem do grego askésis, que significa praticar ginástica. Re-almente, não deixa de ser uma ginástica fortalecer o organismocomo um todo e ao mesmo tempo fortalecer a vontade. A práticaascética pode ser realizada de uma forma positiva: servindo para

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o aguçamento dos sentidos, para adquirir gratidão, diligência, aten-ção e concentração. Mas também pode ser realizada de formanegativa, ou seja, seu uso pode ser baseado simplesmente no “abs-ter-se” disso ou daquilo, e isto significa afrontar a natureza.

O jejum, por exemplo, auxilia para o aguçamento dos sen-tidos, para aquisição de gratidão, diligência, atenção e concentra-ção. Você está tão acostumado com o gosto dos alimentos quemuitas vezes já nem sente mais seu paladar de forma satisfató-ria. Não sente a importância dos alimentos porque eles estão àsua frente constantemente. Não presta atenção a eles. Come deforma rápida e frenética. Experimente dar uma parada. Coisasinteressantes perceberá em você mesmo. Faça isto. Se não dercerto devolveremos seu dinheiro em trinta dias (de novo isto?).

A ética platônica está profundamente ligada à sua metafí-sica. A idéia do Bem, o Sumo Bem, se projeta para além daquiloque existe no mundo ilusório dos sentidos. O Sumo Bem, simbo-lizado pelo Sol na alegoria da Caverna, é a meta da alma. Para talobjetivo, ela deverá se exercitar para sua purificação.

Enquanto visível à inteligência, ao pensamento, o Bem seidentifica com o Belo (a justa medida, a harmonia). “O Bom é oBelo”, diz Platão. Para os gregos virtude e bondade formam umamesma coisa, ou seja, a kalokagathia (beleza/bondade, no senti-do de uma bela ação, enquanto o vício é feio, vergonhoso). Parase chegar ao conhecimento da idéia do Bem, a pysiché (a alma)deve ultrapassar as aparências, fazer uma experiência de morte.A filosofia fica sendo, pois, um exercício de morte, de morte doego, que antecipa a liberação progressiva da alma das cadeias quea aprisionam ao corpo.

Platão apresenta duas vias de purificação.Uma é o amor (éros) que, atraído pela Beleza, supera as

tendências instintivas da alma que a impelem para “baixo”. Ohomem deve elevar-se até a Beleza que existe em si mesma e porsi mesma. O ponto alto desta ascensão seria o êxtase místico di-ante da beleza divina, pois o “Amor” também se apresenta comosaudade do Absoluto.

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A outra via é a metafísica. Não sendo experiência místicanem êxtase, procura, através de um discurso racional (a dialéti-ca), aquilo que o éros faz contemplar diretamente.

Aristóteles: Ética na busca da felicidade

Para Aristóteles, a Ética não deve se ocupar com aquiloque no homem é essencial e imutável, mas daquilo que pode serobtido por ações repetidas, disposições adquiridas ou de hábitosque constituem as virtudes e os vícios. Seu objetivo último é ga-rantir ou possibilitar a conquista da felicidade.

Partindo das disposições naturais do homem (disposiçõesparticulares a cada um e que constituem o caráter), a moral mos-tra como essas disposições devem ser modificadas para que seajustem à razão. Estas disposições costumam estar afastadas domeio-termo, estado que Aristóteles considera o ideal. Assim, al-gumas pessoas são muito tímidas, outras muito audaciosas. Avirtude é o meio-termo e o vício se dá ou na falta ou no excesso.Por exemplo: coragem é uma virtude e seus contrários são a te-meridade (excesso de coragem) e a covardia (ausência de cora-gem). Comer de menos é perigoso para nossa sobrevivência, mascomer demais também o é.

Veja o quadro das virtudes em Aristóteles:

Coragem Amizade Espiritualidade TemperançaHonestidade Orgulho Afabilidade MagnificênciaLiberalidade Vergonha Justiça Honra

Estas qualidades foram vistas por Aristóteles como médi-as entre extremos. Como já foi dito acima, a virtude da coragem éuma qualidade humana relacionada a como reagimos ao risco ouao perigo. A deficiência a esse respeito seria a timidez ou medo.O excesso correspondente seria a temeridade ou imprudência.

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Covardia .................... Coragem ....................... Temeridade

As virtudes se realizam sempre no âmbito humano e nãotêm mais sentido quando as relações humanas desaparecem,como, por exemplo, em relação a Deus. Totalmente diferente é avirtude especulativa ou intelectual, que pertence apenas a alguns(geralmente os filósofos) que, fora da vida moral, buscam o co-nhecimento pelo conhecimento. É assim que a contemplaçãoaproxima o homem de Deus.

Aristóteles vai perguntar: como o homem deve viver? Doque o homem precisa para viver uma vida boa?

O homem só é feliz se puder desenvolver e utilizar todasas suas capacidades e possibilidades, vai responder ele.

Teste sua eticidade

Você quer saber qual o seu grau de eticidade hoje? Ou seja,até que ponto você está propenso a agir de forma ética?

Ao longo da história da filosofia alguns testes foram sen-do elaborados. Aplique estes testes a você e verifique em queponto está sua vivência ética.

O Anel de GigesPlatão apresenta Sócrates contando a história deste anelmágico, que faz ficar invisível a quem o usa. Eis o teste: sepudesse ficar invisível, ou se de alguma outra forma suasações pudessem permanecer absolutamente secretas, o quevocê faria? Entraria no banheiro público para observar aspessoas nuas? Furtaria pertences dos outros?

Teste da Publicidade: como eu me sentiria se minhas açõesfossem informadas nos jornais ou na TV?

Teste do Mentor: como eu me sentiria se minhas ações

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fossem vistas por meu venerado mentor (ex-professor/pais/líder espiritual)?

Teste do Ídolo: o que meu maior ídolo espiritual faria nestaocasião? O que Jesus faria? O que Maomé faria? O que Budafaria?

Teste do Espelho: se eu fizer isto, poderei me olhar noespelho e ter uma sensação de orgulho e dignidade?

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CAPÍTULO6

OSANIMAISPOLÍTICOS

Introdução

O homem é um ser sociável. Ele só se torna realmenteindivíduo enquanto se relaciona com os outros. Na arte supremaque o ser humano realiza em sua essência, que é a arte do pensa-mento, ele se liga intimamente aos outros, estando condiciona-do pela ética e pela sua vivência política.

Ao ouvirem a palavra “política”, muitas pessoas se contor-cem de pavor ou de náusea. Mas em sua maior parte, estas mani-festações se dão por ignorância do verdadeiro significado do ter-mo. É que o senso comum usa o mesmo termo para significarcoisas que se distanciam por demais do sentido verdadeiro. Ásvezes se sugere a alguém muito intransigente que seja mais “po-lítico”, no sentido de ser mais maleável em suas opiniões oumaneira de agir. Há também o sentido pejorativo da palavra, usa-da geralmente para denotar corrupção no âmbito do poder: a po-liticagem. Ou ainda, muitas vezes se associa a palavra à políticapartidária somente.

A palavra política vem do grego polis (cidade), ou seja, étudo o que se realiza em prol da cidade. Você não precisa neces-sariamente estar ligado a um partido para que seja uma pessoapolítica. Se você participa das reuniões no seu bairro, na escola

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dos seus filhos, de associações ou ongs diversas, a fim de quesejam tomadas decisões em prol do coletivo, então você é umapessoa política.

Saindo um pouco deste nível, podemos verificar mais in-terpretações dadas para este termo.

Verifiquemos as 5 acepções mais básicas de política:

a) Uso comum (trivial): a política é considerada como ma-nobras para o poder.

b) Erudita: considerada como arte de conquistar, manter eexercer o poder (esta acepção vem de Maquiavel)

c) A orientação ou atitude de um governo em relação a cer-tos assuntos de interesse público.

d)Ciência moral normativa do governo da sociedade civil(AlceuA. Lima/Política).

e) Estudo das relações entre os fatos das lutas em torno dopoder do Estado.

Origens da Vida Política

Sobre a origem da vida política entre os homens, vamosencontrar pelo menos três explicações principais:

1. Explicação inspirada no mito da Idade de Ouro. Este mito apa-receu não somente entre os gregos, como também entre ou-tras diversas culturas, como sendo uma era em que os homensviviam em harmonia entre si e com a divindade. Ele foi inclu-sive adicionado ao Antigo Testamento na forma simbólica doParaíso, tendo sido importado pelos hebreus após o cativeiroda Babilônia. Nesta Idade de Ouro os seres humanos viviamem companhia dos deuses. Houve, porém, uma queda doshumanos, que após se rebelarem contra os deuses se torna-ram mortais, vivendo isoladamente e em dificuldades. A últi-ma idade foi a Idade do Ferro, era em que os homens foram

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organizados em grupos e forjaram para si utensílios domésti-cos e armas. Para cessar as guerras os deuses fizeram nascer ohomem eminente (de destaque entre os outros), que redigiuas primeiras leis e criou o governo. Daí vem a idéia entre osgregos de que os antigos legisladores eram divinos (como Só-lon e Licurgo). Isto acabou se tornando numa garantia da ori-gem racional da vida política: obra de ordem, harmonia, etc.Neste sentido, podemos dizer que A Razão funda a política.

2. Explicação inspirada pela obra de Hesíodo (O trabalho e os dias).Prometeu rouba o fogo dos deuses e o doa aos homens. A vidaem comunidade se fortificou com a divisão das tarefas e oshomens colocaram-se sob a proteção dos deuses. Com o tem-po perceberam que os deuses não resolvem tudo, que há pro-blemas que eles próprios terão que solucionar. Embora man-tendo a piedade religiosa (atitude de reverência ou de adora-ção), criaram leis e instituições políticas. Tudo isto levou aosurgimento de convenções entre os humanos para ser possí-vel a vida em comunidade. Desta forma, podemos dizer que Aconvenção funda a política.

3. Explicação inspirada nas teorias que afirmam que a políticadecorre da natureza, ou seja, de que ela é um fato natural. Oshumanos diferem dos animais pelo logos, isto é, pela palavracomo fala e pensamento. Por isto são naturalmente sociais. Oshumanos são seres de comunicação e esta é a causa da vidaem comunidade ou da vida política. Assim sendo, podemosdizer que A natureza funda a política.

O ideal político de Platão

Depois da derrota de Atenas na guerra contra Esparta, acondenação de Sócrates e as convulsões sociais que agitam a ci-dade, Platão segue com descrédito em relação à democracia ate-

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niense. Tudo isto o leva a conceber o que alguns denominam de“sofocracia” (o poder dos sábios), onde as pessoas comuns, víti-mas do conhecimento imperfeito, devem ser dirigidas politica-mente por aqueles que se distinguem pelo saber. Sua teoria polí-tica encontra-se registrada principalmente nas obras A Repúblicae As Leis. Em A República, ele expõe um sistema utópico de go-verno, dando diretrizes inclusive de como deve ser a formação dosnovos governantes.

Para Platão, os seres humanos e a polis possuem a mesmaestrutura tripartida.

Nos homens, nós vamos encontrar (A) a alma desejante(situada no baixo ventre), (B) a alma irascível (situada no peito) e(C) a alma racional (situada na cabeça).

Na Polis, respectivamente, nós vamos encontrar (A) a clas-se econômica dos proprietários, artesãos e comerciantes, (B) aclasse militar e (C) a classe dos magistrados.

Considerando estes nexos, o Estado, tal como a alma dohomem, terá suas virtudes. Será temperante, quando os artesãos-comerciantes souberem pôr um freio na própria avidez. Será co-rajoso, quando os guardas e soldados souberem moderar seu ím-peto. Será sábio, quando os governantes agirem em conformida-de com a razão.

A primeira classe (A) é constituída de homens nos quaisprevalece o aspecto concupiscível da alma, o mais elementar. Estaclasse é boa quando nela predomina a virtude da temperança,que consiste numa espécie de ordem, de domínio e disciplina.Segundo Platão, as riquezas e os bens pertencentes a esta classenão deverão ser nem muitos nem excessivamente poucos.

É claro, olha só o pensamento da elite aqui presente. Pla-tão era da aristocracia. O pensamento aristocrático pensa que devehaver aqueles que têm menos, caso contrário aqueles que que-rem ter mais terão que trabalhar.

Aqui também já podemos notar a periculosidade da filoso-fia em outro sentido. Uma coisa é alguém aceitar que existemhomens que preferem viver pela alma concupiscível, que serão

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os produtores da sociedade, outra coisa é, a partir deste conheci-mento que se tem, incentivar que haja homens deste nível, man-ter os homens neste nível, para que possa deles tirar proveito.

A segunda classe (B) é constituída de homens nos quaisprevalece a força irascível da alma, o aspecto volitivo da psiquehumana, composta de homens que tenham, ao mesmo tempo,mansidão e ousadia. Permanecerão vigilantes tanto em relaçãoaos perigos vindos do exterior quanto aos perigos originados nointerior da cidade.

A terceira classe (C) é constituída por aqueles que soube-ram amar a cidade mais do que os outros e aprenderam a conhe-cer e contemplar o Bem. Ou seja, aqueles em que predomina aalma racional, cuja virtude específica é a sabedoria.

Assim como o homem justo é aquele em que reina a almaracional sobre as outras duas, uma sociedade justa é aquela emque reina a igualdade pela razão. A cidade justa é governada pe-los filósofos, administrada pelos cientistas, protegida pelos guer-reiros e mantida pelos produtores.

O ideal político de Aristóteles

Aristóteles vai criticar a sofocracia apresentada por Platão,dizendo que a exclusão das demais classes acaba hierarquizandopor demais a sociedade. A proposta aristotélica acaba se tornan-do uma espécie de comunitarismo, fundada na philia (amizade),que quando se refere à cidade assume um sentido mais amplo: aconcordância entre as pessoas com idéias semelhantes e interes-ses comuns, resultando na camaradagem e o companheirismo.

A virtude da amizade não deve estar dissociada da vir-tude da justiça, a fim de que a sociedade se torne mais justae harmônica.

Para Aristóteles existem dois tipos de justiça: a justiça dis-tributiva e a justiça participativa.

A justiça distributiva refere-se aos bens econômicos e con-

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siste em dar a cada um o que é devido; sua função é dar desigual-mente aos desiguais para torná-los iguais. Justo é o que se apode-ra da parte que lhe cabe; é o que distribui o que é devido a cadaum. Deste modo, a distribuição justa é a que leva em conta osméritos das pessoas, não se podendo dar o igual para desiguais,já que as pessoas são diferentes.

Já a justiça participativa refere-se ao poder político; suafunção é a de igualar os desiguais dando-lhes igualmente os bens;esta função implica afirmar que numa cidade onde a diferençaentre os ricos e pobres é muito grande vigora a injustiça. A cidadejusta saberá distingui-las e realizar a ambas.

Há cidades que valorizam a honra, a hierarquia baseadano sangue, na terra e nas tradições, dando o poder a um só: Mo-narquia. Há cidades que valorizam a virtude como excelência docaráter (coragem, lealdade, fidelidade ao grupo e antepassados),dando o poder aos melhores: Aristocracia. Há cidades que valori-zam a igualdade (são iguais os que são livres), onde todos partici-pam do poder: Democracia.

Assim sendo, Aristóteles estabelece uma tipologia das for-mas de governo que se tornou clássica no pensamento político.

Tipo de Governo Quando em vista Quando em vistado bem público do interesse próprio

Governo de um só Monarquia TiraniaGoverno de poucos Aristocracia OligarquiaGoverno de muitos Política Democracia

JUSNATURALISMO

Jusnaturalismo é a teoria filosófica segundo a qual a orga-nização político-social e jurídica dos estados se dá de forma natu-ral e mediante o contrato, mediante o consenso entre os homens,

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por isto mesmo sendo também chamada de Contratualismo. Naverdade este estudo é um aprofundamento do que vimos no pontosobre a origem da vida política. Em nosso estudo nos ateremos atrês autores principais que fundamentaram esta teoria.

THOMASHOBBES

Eu sempre costumo dizer que o pensamento de um ho-mem tende a ser por demais influenciado pelo tempo e pela cir-cunstância em que vive. Com Thomas Hobbes não foi diferente.Formado como catedrático em 1608, Hobbes viveu em plena guerracivil na Inglaterra. Ele viu irmãos matando irmãos e a partir destefato, vai ter uma visão não muito positiva do ser humano.

Com Hobbes (e também com Maquiavel), a política deixade ser derivação da ética; deixa de ter conotação sábia (como eraconsiderada pelos gregos) e passa a ser técnica. Entre os gregos,por exemplo, vimos como Aristóteles escreveu sobre Ética e de-pois sobre Política, onde instruía como o Estado devia propiciar opleno exercício da Ética. Já com estes pensadores modernos (Ho-bbes e Maquiavel) a política se separa da Ética e passa a ser atécnica de conquistar e manter o poder. Nós sabemos muito bemo resultado desta separação cruel. Mas hoje estamos vivenciandouma reaproximação destes dois campos tão importantes para avida humana.

Para fundamentar o contrato social, Hobbes trabalha inici-almente com três conceitos-chave: 1) o estado de natureza, 2) odireito natural e 3) lei natural.1) O Estado de Natureza27 : para Hobbes é um estado de guerra

permanente. “O Homem é lobo do homem”. O homem se apre-senta como mau por natureza, fazendo com que ocorra umaluta de “todos contra todos”.

27 O que vem a ser o Estado de Natureza? É um estado hipotético que tenta explicarde onde o ser humano saiu para se organizar em sociedade.

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2) Direito natural: é o conceito que explica a liberdade que cadahomem tem de usar seu próprio poder para preservação davida; O único direito dado ao homem naturalmente é o direitoà vida.

3) Lei natural: consiste na concreção do direito de natureza paraa preservação da vida, em forma de regras prescritivas de modoque todo homem razoável esteja de acordo: buscar a paz e se-guí-la e defender a vida própria por todos os meios possíveis.

A razão, estabelecida por Hobbes como a capacidade decálculo, deve assinalar ao homem os meios para superar a situa-ção de medo e perigo em que se encontra, principalmente prote-gendo-se de uma morte violenta.

Como ocorre então o surgimento da sociedade politicamen-te organizada chamada Estado?

Ocorre mediante o Pacto/Contrato, que se realiza em doismomentos:1) Mediante um ato acertado, O Contrato Social, onde todos re-

nunciam a seus direitos de natureza ao mesmo tempo;2) Mediante a transferência desses direitos a uma pessoa ou ins-

tituição.Para Thomas Hobbes o que falta no Estado de Natureza é

um Estado forte que possa controlar o indivíduo, domá-lo em suanatureza perversa. Por isto que o Estado é apresentado por Hob-bes como um monstro em sua obra Leviatã, que é um monstromarinho da mitologia antiga. Mas recentemente foi traduzida parao português outra obra deste autor, Behemot, que apresenta umoutro monstro, que é o indivíduo. Alguns reinados absolutistasda Europa tiveram como inspiração a teoria de Hobbes, procuran-do realizar o Estado forte que controlará o indivíduo.

JOHNLOCKE

John Locke vai contra a legitimação religiosa do Estado mo-nárquico. Segundo ele não existe nenhuma garantia de que Deus

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legitima algum governo nesta terra. Na obra O Segundo Tratadodo Governo, ele diz que somente se houvesse um meio de pro-varmos que alguém seja o descendente direto de Adão, aí simpoderíamos legitimá-lo como monarca divino; mas como isto éimpossível, ele se recusa a aceitar tal legitimação.

Locke parte também de um Estado hipotético. Em relaçãoao Estado de Natureza, ele fica entre duas posições apresenta-das até a época: a posição de Hobbes (considerando-o comoestado de guerra) e a posição de Pufendorf (considerando-o comoestado de Paz).

A solução encontrada por Locke foi a seguinte: o Estadode Natureza é um estado de paz, mas que pode tornar-se um es-tado de guerra.

Mas como tal coisa pode ocorrer?É que as leis naturais não bastam para organização do estado

natural, porque os homens não agem sempre de forma racional.Vamos entender melhor como pode ocorrer o estado de

guerra com o seguinte experimento mental:Analisemos a aplicação de um caso em que um indivíduo

é lesado por outro: se um indivíduo abusa de sua liberdade paracom outro, a igualdade implica que o indivíduo lesado (L) devefazer justiça por si. Problema: dificilmente o indivíduo lesado(L)será imparcial ao buscar fazer justiça com suas mãos, donde sur-girá o conflito. Ao buscar fazer justiça por si o indivíduo lesadopoderá cometer mais injustiças ainda que o indivíduo que o lesou.

A partir daí Locke vai estabelecer como ocorre o contrato/pacto: ele vai ocorrer da seguinte maneira: cada um renuncia aoseu poder de ser o juiz, delegando-o a uma pessoa ou instituição.

Para Hobbes, o que falta no Estado de Natureza é um Esta-do forte, para Locke, o que falta é um juiz imparcial.

ROUSSEAU

Nascido em Genebra, em 1712, Rousseau sofreu a “sín-drome de Benjamim”, isto é, sua mãe morreu durante o seu nasci-

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mento. Seu pai era do tipo carrasco que acabou por abandoná-lono mundo.

Nas primeiras linhas de sua obra principal, O contrato So-cial, declara o objetivo de seu pensamento político:

“O homem nasceu livre, e não obstante, está acorrentado emtoda parte. Julga-se senhor dos demais seres sem deixar de sertão escravo como eles. Como se tem realizado esta mutação?Ignoro-o. Que pode legitimá-la? Creio poder responder a estaquestão” 28.

Para ele o Contrato Social ocorre em três momentos: o Es-tado de Natureza, o Estado Social e o Contrato Social.

Quanto ao Estado de Natureza, Rousseau afirma que ele éum estado de paz e inocência. O homem neste estado se apre-senta como bom por natureza, a sociedade é que o corrompe.

Depois acontece o Estado Social: nele ocorrem forças an-tagônicas. Entre estas forças está, por exemplo, o surgimento dapropriedade particular. Em sua obra Discurso sobre a origem dadesigualdade entre os homens, Rousseau aponta que o fundadorda Sociedade Civil foi o primeiro que cercou um terreno e disse:“isto é meu”. Quer dizer que a sociedade politicamente organiza-da surgiu de um ato de egoísmo.

E por último temos o Contrato Social propriamente dito.Para Rousseau ele não é fundamentado na vontade do governan-te, mas na vontade geral. Cada cidadão, como membro de umpovo, concorda em submeter a sua vontade particular à vontadegeral. Mas cuidado! Muitos comentadores causam confusão quan-do tomam a vontade geral como sendo a soma de todas as von-tades. Se assim fosse, o pensamento de Rousseau realmentenão seria mais do que uma defesa da ditadura da maioria. Emqualquer decisão, venceria a maioria, porque sempre certa everdadeira.

Mas acontece que se lermos a obra de Rousseau com cui-

28 Rousseau, J. Jacques. O Contrato Social, p.37.

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dado, perceberemos que a vontade geral não é a soma de todas asvontades, mas o deixar as vontades individuais de lado para queprevaleça o bem comum. É uma renúncia dos desejos própriosem prol do coletivo.

Algumas Teorias Políticas

O Liberalismo

O fundamento filosófico do liberalismo tem início comLocke. Para ele, propriedade é definida pelo trabalho realizadosobre ela.

Mas como fazer do trabalho o legitimador da propriedadeprivada enquanto direito natural?

É que Deus, segundo ele, é um artífice, um arquiteto quefez uma obra: o mundo. No momento da criação do mundo e dohomem, Deus instituiu o direito à propriedade privada como fru-to legítimo do trabalho. Por isto, de origem divina, ela é um direi-to natural.

Desta forma, a burguesia se vê legitimada perante a reale-za e a nobreza, vendo-se como superior a elas, pois o burguêsacredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, en-quanto que reis e nobres são parasitas da sociedade.

O burguês se vê também superior aos pobres, pois se Deusfez todos os homens iguais, dando a todos a missão de trabalhare lhes concedendo o direito à propriedade privada, eles são cul-pados de sua condição inferior. São obrigados a trabalhar paraoutros por dois motivos: são perdulários, gastando o salário emvez de acumulá-lo para adquirir propriedades; são preguiçosos enão trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade.

Qual a concepção do Estado no Liberalismo?Ele tem uma tríplice função.O Estado liberal deve garantir o Direito Natural por meio

de leis e uso legal da violência (exército e polícia), sem interferir

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na vida econômica, pois não sendo o instituidor da propriedadenão tem direito de nela interferir.

Deve permitir a intercalação entre ele (o Estado) e o indi-víduo de uma esfera nova, a sociedade civil, sobre a qual o Estadonão tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor ede árbitro em conflitos.

Ele interfere na esfera da vida pública sem interferir naconsciência dos governados. O estado liberal se apresenta comorepública representativa constituída de três poderes. Considera-va-se como livres e independentes apenas os donos de proprie-dade privada. Lutas populares intensas desde o séc. XVIII força-ram o Estado liberal a se tornar uma democracia representativa,ampliando a cidadania política e dando ênfase à igualdade social.

Com esta de não interferir na economia, tese que vem peladoutrina de Adam Smith que prega o “princípio da mão invisí-vel”, segundo a qual a economia se ajusta sozinha sem a interfe-rência do Estado, o mundo se viu em maus lençóis com a crise de1929. A “mão invisível” não funcionou direito! Porque ela nãoexiste.

Mas a partir daí pregou-se o neoliberalismo, para o qual oEstado deve interferir na economia quando houver necessidade,em momentos críticos. O Ex-presidente do Brasil, o FHC (não con-fundir com o veneno pra formigas BHC) se intitulava neoliberalquando em exercício. Acontece que o neoliberalismo exige umEstado forte para fazer determinadas intervenções na economiaquando necessário. Porém, não vimos este Estado forte no Brasil.Foi efetivada a privatização do Vale do Rio Doce, e a primeira açãoda Companhia foi elevar o preço do aço: o governo não conseguiubarrar o aumento. Foi feita a privatização da rede de telefonia. Ospreços ficaram abusivos e se instalou uma taxa de serviços que éabsurda: o governo não conseguiu interferir nisto.

O Estado Democrático

Conforme Bobbio, podemos distinguir a democracia for-mal e substancial. O aspecto formal consiste no conjunto das ins-

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tituições características deste regime: voto secreto e universal,autonomia dos poderes, pluripartidismo, ordem jurídica consti-tuída, liberdade de expressão, etc. (são as regras do jogo). O as-pecto substancial diz respeito não aos meios, mas aos fins quesão alcançados: a efetiva igualdade jurídica, social e econômica.

O Estado Totalitário

Preconiza a absorção total e absoluta do homem em umaentidade: ou seja, em uma classe (no caso do comunismo), noEstado (no caso do fascismo) ou numa raça (no caso do nazismo).Nada fora destas entidades, tudo nelas, para elas e por elas.

O interessante é que todos estes sistemas totalitários sem-pre inventam uma desculpa para se instalarem no poder: para oNazifacismo, a desculpa era o perigo iminente do Comunismo naEuropa; para as ditaduras militares na América Latina, a descul-pa era o perigo do Comunismo na América. Para o Bushismo donosso século, o perigo se apresenta como o “demônio do Islã”. Eassim acabei me lembrando de uma frase excepcional de LordActon, atribuída muitas vezes a Voltaire:

“O poder corrompe. O poder absoluto corrompe absoluta-mente”.

O ideal político de Hegel

Hegel é inquestionavelmente o mais ambicioso e sistemá-tico filósofo desde o saudoso Aristóteles. Filho de um Pastor Pro-testante estudou Teologia e logo acabou por se embrenhar noscaminhos da filosofia. Mas eu tenho a opinião de que, não conse-guindo se desvencilhar totalmente da Teologia, Hegel tentou ex-por alguns princípios teológicos de forma racional e filosófica,como veremos logo a seguir com os três momentos de manifesta-ção do Espírito Absoluto.

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Hegel elabora um método para se entender o curso da his-tória. O curso da história sempre foi uma preocupação para al-guns pensadores: a história tem uma direção? Se tem uma dire-ção, qual é? Hegel é o último filósofo que considera que a históriatem algum sentido. De acordo com ele, a história tem um sentidoporque tudo o que vemos no universo é uma manifestação doEspírito Absoluto ou Weltgeist (literalmente, espírito do mun-do). A realidade final de tudo o que existe é a Idéia ou Mente quevai se conhecendo por meio do processo dialético. Desta forma omundo natural fica considerado como sendo racional; ele é raci-onal e imbuído de significados.

A verdade é o processo dinâmico da razão no tempo: quemestuda história sabe que a humanidade caminha rumo a um au-todesenvolvimento e autoconhecimento cada vez maiores.

Um pensamento surge com base em outros formuladosanteriormente; uma vez formulado, o novo pensamento será con-tradito por outro, e assim se prossegue sucessivamente median-te um processo Dialético.

Tendo considerado a realidade em si como um processodialético, Hegel coloca a dialética como um processo lógico peloqual a verdade pode ser conhecida. O processo é tese, antítese esíntese; sendo que a síntese é a maior forma de verdade, porqueé a unidade dos opostos de tese e antítese.

Vejamos:

A Tese>> é o momento do Ser em si. Ela põe, afirma umaparte da realidade negando implicitamente uma outra, vis-to que toda afirmação inclui uma negação.

A Antítese>> é o momento de contrapor, afirmando aparte negada pela tese.

A Síntese>> é o momento da união das partes postaspela tese e antítese num todo único, anulando as imper-feições delas, mas conservando a sua positividade.

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É fácil observar este processo no desenvolvimento da his-tória das idéias. Tomemos o exemplo da educação dos filhos pe-los pais. Nos tempos de nossos avós, a educação dos filhos eramuito rígida e havia pouco relacionamento amoroso entre pais efilhos, contudo, havia disciplina (Tese). Em nossos tempos há umcerto relacionamento amoroso entre pais e filhos, porém, a disci-plina está muito frágil (Antítese). Parece que estamos vendo osurgimento de uma era em que, embora havendo relacionamen-to amoroso entre pais e filhos, a disciplina estará presente (Síntese).

Sendo que o espírito universal ou razão universal é a forçaque impele a história para frente, Hegel prega que a autoconsci-ência deve se elevar da consciência ordinária (simples, comum).

O Espírito Absoluto desdobra-se para conhecer-se a si mes-mo. E a filosofia é a “idéia” que pensa a si mesma.

Para entendermos a idéia de Estado em Hegel, temos queanalisar o desenvolvimento da consciência.

Hegel expõe três momentos de desenvolvimento do Espí-rito Absoluto na história:

Como Espírito Subjetivo>> atuando nos indivíduos (aquivemos a ocorrência da consciência da individualidade, sa-indo da consciência ordinária para a autoconsciência). Está-gio 1.

Como Espírito Objetivo>> atuando nos vários povos(aqui já percebemos a ocorrência da consciência de se per-tencer a uma coletividade). Estágio 2.

Como Espírito Absoluto>> atuando nas obras artísticas,religiosas e filosóficas (aqui vemos a ocorrência da refle-xão racional e filosófica sobre a vida). Estágio 3.

Para Hegel o Estado surge como superação racional das li-mitações que bloqueavam o desenvolvimento do espírito huma-no: isolamento dos indivíduos na família (no estágio 1) e as lutasdos interesses privados na sociedade civil (no estágio 2). A supre-ma realização do Espírito Absoluto na história fica sendo o Esta-

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do. É o Estado quem determinará, por exemplo, a conduta morale ética, e é apenas dentro do contexto social do estado que oindivíduo pode ser livre.

As três manifestações do Espírito Absoluto no estágio 3(as obras artísticas, religiosas e filosóficas) são objeto de estudode outras tantas disciplinas:

A)Psicologia: estuda as atividades que se desenvolvem apartir do indivíduo espiritual.

B) História: estuda a relação espiritual realizada nas insti-tuições e na história.

C)Saber Absoluto: estuda as expressões da autoconsciên-cia do absoluto: a arte, a religião e a filosofia.

Quanto á arte: sua função é expressar o Absoluto em for-ma sensível.

Quanto à religião: por meio dela o Absoluto adquire cons-ciência de si mesmo.

Quanto à filosofia: por meio dela o Absoluto toma consci-ência de si mesmo em forma conceitual e reflexiva.

Há algo ainda na teoria de Hegel que é bom comentar. É adialética do Senhor e do Escravo. No início o Senhor é dono dosserviços e da liberdade do Escravo. Mas com o tempo, medianteo trabalho, o Escravo vai tomando mais consciência de si mesmo,tornando-se mais pessoa, enquanto que o Senhor, que não traba-lha, mantém-se em sua consciência ordinária. Hegel expõe que oSenhor é o mais infeliz desta história toda (é a consciência infe-liz). Para muitos marxistas a dialética do Senhor e do escravo ex-posta por Hegel, nada mais é do que uma forma de justificar aexploração dos menos favorecidos. Pois demonstra parecer quenão há problema em alguém ser explorado, visto que ele é maisfeliz que o explorador, que está tomando mais consciência de simesmo.

Agora uma palavrinha quanto à dialética hegeliana. Elapode auxiliar na compreensão da lógica da realidade, contudo,

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há um perigo neste conhecimento. Ele pode ser usado para pro-vocar mudanças em algumas situações sociais que favorecerãoalguns grupos.

Querendo acelerar algum processo, alguns líderes podemfazer com que a antítese seja rapidamente apresentada, a fim deque se consiga a síntese desejada.

Vamos supor que desejamos que outras culturas aceitem ademocracia norte-americana. Vamos então intensificar nestas cul-turas as atitudes de grupos antidemocráticos (terroristas), a fimde que haja uma reação da massa e possamos instaurar nossosistema democrático com o apoio da população mundial. Qual-quer semelhança com a dinastia Bush é mera coincidência.

O Ideal Político do Marxismo

O marxismo surge após a era do desenvolvimento do capi-talismo industrial, com a ampliação da capacidade tecnológica dedomínio da natureza pelo trabalho e pela técnica. Essa ampliaçãoaumenta também o campo de ação do capital, que passa a absor-ver contingentes cada vez maiores de pessoas no mercado da mão-de-obra e do consumo, rumando para o mercado capitalista mun-dial. Nesta esfera acabam acontecendo muitas injustiças sociais,como excesso de carga horária, exploração de mulheres e crian-ças, a robotização do operário mediante a produção em série, etc.

É neste contexto que surge Karl Marx. Ele foi acostumadoa algum tipo de perseguição, visto que seus pais eram de descen-dência judaica, mas haviam se convertido ao Protestantismo parasalvar o emprego de seu pai como advogado do governo. Sua tesede doutoramento versou sobre idéias materialistas em Epicuro, oque já demonstra uma certa tendência ao materialismo no jovemMarx. Mais tarde ele encontra um amigo, Frederic Engels, comquem vai escrever algumas obras.

Para eles a natureza é dinâmica em sua evolução. As con-dições materiais é que determinam as espirituais e não o contrá-

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rio, como Hegel diz. Por isto, o processo todo é chamado de mate-rialismo dialético.

Marx afirma junto com Hegel que a história é um proces-so dialético; contudo, esse processo não é guiado por um EspíritoAbsoluto, mas pelas forças econômicas e pelas lutas de classes dahumanidade.

O conceito “trabalho” é muito importante no pensamentomarxista. Diziam que o modo como trabalhamos modifica nossaconsciência e vice-versa; desta forma, a sociedade se organiza con-forme o modo de produção por ela utilizado.

O trabalho é algo positivo para Marx; só que no capitalis-mo o trabalhador perde-se, aliena-se, ou seja, ele não tem ligaçãocom o produto trabalhado por ele (como no caso dos fazendeiros,artesãos e camponeses). Temos pessoas em muitas indústrias dehoje que trabalham em produção em série e sequer sabem qual éo produto final daquilo que estão fazendo.

Trabalho é a relação dos seres humanos com a natureza eentre si, na produção das condições de sua existência. Para eles,os seres humanos são diferentes dos animais não por serem raci-onais (consciência), sociais ou políticos, mas porque são capazesde produzir as condições de existência. Os homens são produto-res: são o que produzem e são como produzem. São historicamen-te determinados pelas condições em que produzem suas vidas.

Para explicar a posição que o homem ocupa na naturezadevido ao trabalho que realiza, Marx elabora a metáfora do Arqui-teto/Tecelão e a abelha mais hábil: o tecelão mais preguiçoso ain-da é melhor que a abelha mais hábil, visto que o arquiteto a qual-quer instante pode projetar em sua mente o modelo que preten-de, enquanto que a abelha mais hábil segue fazendo a mesmacoisa conforme a sua natureza. Trabalho e Capital para Marx nãoeram meras categorias econômicas, eram categorias antropológi-cas, impregnadas de posição humanista.

Para Marx a sociedade civil é o sistema de relações sociaisque organiza a produção econômica.

Marx elabora também o seu conceito de ideologia. Antesdele, seguindo-se Antoine Destutt de Tracy no século XVIII, a ide-

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ologia era considerada como conjunto de idéias de uma socieda-de. Neste sentido, qualquer grupo tem a sua ideologia: as associ-ações, partidos políticos, grupos de Rock, grupos pastorais dasigrejas, etc.

Para Marx e Engels, ideologia se apresenta como uma “fal-sa consciência”, ou seja, um conjunto de idéias usado pela classedominante para manter a classe explorada na ignorância de suasituação. Não podemos negar que também neste sentido a ideo-logia está presente em nossa sociedade. Ou será que não?

Para o Marxismo, o Estado que se verifica existente noregime capitalista, não é uma imposição divina aos homens, muitomenos o resultado de um pacto ou contrato social, mas é umamaneira pela qual a classe dominante de uma época e de umasociedade determinadas garante seus interesses e sua domina-ção sobre o todo social. O Estado assim se manifesta como aexpressão política da luta econômico-social das classes, amor-tecida pelo aparato da ordem (jurídica) e da força pública (policiale militar).

É por isto que Marx vai pregar o fim do Estado em suastrês etapas para se chegar ao Comunismo. Na primeira etapa, ocor-re o Capitalismo, onde a classe explorada toma consciência desua situação e se organiza em grupos para politicamente chegarao poder. Na segunda etapa, o Socialismo, o proletariado está nopoder, mas tolera-se ainda a presença do Estado. E finalmentechega-se à terceira fase, quando o proletariado dissolve o Estadoe instaura-se a “ditadura do proletariado”, o Comunismo.

Alguns marxistas revisionistas (que reformularam algumasidéias de Marx) pregam de forma diferente as três etapas para sechegar ao Comunismo. Na primeira etapa temos o Capitalismo,onde ocorre a exploração. Na segunda etapa temos o Socialismo,onde a classe explorada toma consciência de sua exploração e seorganiza em grupos (associações de bairro, sindicatos, partidos)para chegarem ao poder democraticamente29 . Não conseguindo

29 Penso que o Brasil entrou para a história como exemplo disto no caso “LulaPresidente”.

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chegar ao poder, chega-se à terceira etapa com o Comunismo,onde o proletariado toma o poder à força.

As soluções que Marx deu aos problemas do Capitalismonão são bem vistas pela maioria dos intelectuais hoje, tanto por-que muitas de suas previsões não se deram, como por exemplo, oempobrecimento geral do proletariado. Contudo, ninguém podetirar o mérito da análise que Marx fez da sociedade capitalista desua época, e que muito desta análise pode ser aproveitada emnossos dias.

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CAPÍTULO7

AModernidade Racional

Modernidade é o nome dado ao conjunto que engloba omovimento cultural iniciado com Descartes e Bacon, acrescen-tando a isto o século das Luzes e as conseqüências da RevoluçãoFrancesa.

A razão pode ser considerada a personagem principal (àsvezes heroína, às vezes vilã) do projeto moderno. Seguimos, nes-te ponto, a idéia de modernidade de Alain Touraine:

“Na sua forma mais ambiciosa, foi a afirmação de que o ho-mem é o que ele faz, e que, portanto, deve existir uma corres-pondência cada vez mais estreita entre a produção, tornada maiseficaz pela ciência, a tecnologia ou a administração, a organiza-ção da sociedade, regulada pela lei e a vida pessoal, animadapelo interesse, mas também pela vontade de se liberar de todasas opressões. Sobre o que repousa essa correspondência de umacultura científica, de uma sociedade ordenada e de indivíduoslivres, senão sobre o triunfo da razão?” 30

É racionalmente que o homem vai intentar uma corres-pondência entre a ação humana e a ordem do mundo, animandoa ciência em suas aplicações, comandando a adaptação da vidasocial às necessidades individuais e coletivas, substituindo a ar-bitrariedade e a violência do Estado e do mercado, buscando,

30 TOURAINE, A. Crítica da modernidade, p.9.

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enfim, atingir a abundância, a liberdade e a felicidade.Como já apresentei o pensamento de Descartes no capítu-

lo dois e de Kant no capítulo três desta obra, vou apresentar ago-ra o pensamento de Francis Bacon (hum! Isto faz lembrar umtoucinho bem gostoso e chaga a dar água na boca).

O Ideal de Francis Bacon

É lugar comum a apresentação de Descartes como funda-dor da racionalidade moderna. Não há dúvida sobre a grande in-fluência que exerceu seu rompimento com a mentalidade medi-eval e sua preocupação com o método para o desenvolvimentocientífico posterior.

Contudo, há um outro autor muitas vezes esquecido peloscomentadores da modernidade, cujas palavras tiveram muita in-fluência, principalmente na racionalidade científica que se ini-ciou na época e que, passando pelo empirismo e positivismo, aindamantém seus traços até hoje: Francis Bacon. Bacon tinha umaidéia fixa à qual dedicou todas as sua forças:

“Consistia simplesmente em acreditar que o saber devesse le-var os seus frutos à prática, que a ciência devesse ser aplicável àindústria, que os homens tivessem o sagrado dever de organi-zar-se para melhorar ou transformar as condições de vida” 31.

Ele dizia ainda que a diferença entre os homens civiliza-dos e os selvagens é parecida com aquela que existe entre os deu-ses e os homens, e que esta diferença se encontra principalmen-te nas artes32 .

O projeto de Bacon tinha como meta o desenvolvimento

31 FARRINGTON, F. Francesco Bacone filosofo dell’età industriale, Einaudi, Turim,1952, p.23.

32 cf. BACON, Novum Organum, I, 129.

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de uma sociedade organizada sob parâmetros racionais, cuja ori-entação era fundada na ciência. Para ele, Conhecimento é poder.Entretanto, o próprio Bacon percebe que a ciência de sua épocaestá longe de se constituir em protótipo e referencial para estanova sociedade, precisando ser, contudo, reformulada.

Primeiramente, Bacon vai apresentar a crítica aos ídolos,ou seja, falsas concepções oriundas da condição humana enquantoespécie, na obra Novum Organum.

Ele vai criticar os ídolos da tribo. Estes ídolos estão funda-dos na própria natureza humana, na própria tribo ou espécie hu-mana. As percepções da mente humana guardam analogia com anatureza humana e não com o universo em si. Bom, isto entrabem naquilo que já apresentei sobre os “óculos pelos quais olha-mos a realidade”, lembra?

Ele vai criticar os ídolos da caverna. Estes são os ídolos doshomens enquanto indivíduos. Cada um, além das aberrações pró-prias da natureza humana, tem uma caverna que intercepta ecorrompe a luz da natureza. Isto ocorre seja devido à naturezasingular de cada um ou devido à educação ou conversação com osoutros.

Vai criticar ainda os ídolos de foro. São os ídolos proveni-entes do intercurso e da associação entre os indivíduos. Os ho-mens se associam graças ao discurso e as palavras que são cunha-das pelo vulgo. Estas palavras impostas de maneira imprópriabloqueiam o intelecto de forma espantosa, que nem mesmo asexplicações dos homens doutos restituem as coisas ao seu lugar.

E por final vai criticar os ídolos do teatro. Estes são os ído-los que imigraram para o espírito dos homens por meio das di-versas doutrinas filosóficas e científicas. São assim denomina-dos porque, segundo Bacon, as filosofias adotadas ou inventadasaparecem como sendo outras tantas fábulas inventadas que figu-ram mundos fictícios ou teatrais.

Segundamente, ele vai lançar seu projeto de reforma me-diante uma estrutura científica elaborada. Neste projeto o ho-mem deve ser o “ministro e intérprete da natureza”, aprendendo

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a dominá-la pela observação coletiva, mediante o uso de instru-mentos que possam melhor auxiliá-lo; deve haver a presença decrítica aos métodos adotados, localizando a causa dos erros co-metidos; deve haver análise apurada dos fatos e dados observa-dos.

O homem conseguirá o domínio total da natureza e o seurepouso sabático, mediante o refinamento do intelecto, desen-volvendo métodos de busca com o aumento das próprias desco-bertas, melhorando sua condição material. A idéia de bem-estarmaterial como busca obrigatória, mediante o aperfeiçoamento dasmáquinas, constitui-se num projeto emancipatório via racionali-dade.

Bacon propunha como antídoto o método indutivo de in-vestigação, seguindo as seguintes etapas:

A)Observação da natureza para a coleta de informações;B) Organização racional dos dados recolhidos empiri-

camente;C)Formulação de explicações gerais (hipóteses) destinadas

à compreensão do fenômeno estudado.Quem quiser ler uma outra obra de Bacon bastante inspi-

radora, leia A Nova Atlântida que, embora inacabada, retrata deforma interessante como ele imaginava uma universidade seme-lhante às que temos hoje.

AAnálise de Max Weber

A emergência da sociedade moderna ocidental é por We-ber explicada em termos de um processo de racionalização, noqual as religiões universais, em particular o cristianismo imbuí-do de concepções do judaísmo e de filosofias do helenismo, tive-ram um papel preponderante.

Ele não leva em consideração a história do mundo em ter-mos de estágios (como o fez Comte), em etapas, em blocos, ondetodas as diversidades se esvaem em torno de uma determinada

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característica tangencial a elas. Tampouco imaginou a históriacomo Marx e alguns de seus seguidores, de forma unilinear dotranscurso histórico. Weber a imagina de um ponto de vista pro-gressivo, onde os encantamentos e magias pouco a pouco dãolugar a uma forma mais “racional” de ver, compreender e expli-car o mundo. Poder-se-ia mesmo afirmar que os textos weberia-nos tratam do processo de desencantamento do mundo ou desa-pego a explicações de natureza transcendental ou mágica.

O desencantamento do mundo perpassa por tudo aquiloque representou e continua a representar a influência do ilumi-nismo. Originariamente, representa uma tomada de posição, umavisão de mundo, contrária a toda uma tradição medieval e tempor base ou fundamento a razão humana. Contra um mundo com-posto de entes sobrenaturais, o iluminismo significou uma apos-ta integral na razão humana, uma tentativa de dar fim à menori-dade do homem, a concretização do sapere aude kantiano. Ouainda, a saída da Matrix, não vamos nos esquecer dela.

Weber, em sua obra A Ética protestante e o espírito docapitalismo, inicia sua pesquisa com uma pergunta intrigante.

Por que na civilização ocidental, e só nela, apareceram fe-nômenos culturais que apresentam uma linha de desenvolvimen-to com valor universal, como a ciência e o capitalismo, só paracitar alguns exemplos?

Ele arrisca uma resposta: o fato de os líderes do mundodos negócios e proprietários de capital, assim como dos níveismais altos da mão-de-obra qualificada, principalmente o pessoalcomercial e tecnicamente especializado das modernas empresas,serem preponderantemente protestantes.

Weber descobre que valores do protestantismo – como adisciplina ascética, a poupança, a austeridade, a vocação, o devere a propensão ao trabalho – atuavam de maneira decisiva sobreos indivíduos desta confissão religiosa. No seio das famílias pro-testantes, os filhos eram criados para o ensino especializado epara o trabalho fabril, optando sempre por atividades mais ade-quadas à obtenção do lucro, preferindo o cálculo e os estudostécnicos ao estudo humanístico.

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Podemos sublinhar os pontos principais da análise webe-riana sobre os fundamentos religiosos do comportamento racio-nal na vida, aproveitando-se a consciência cotidiana das idéiascalvinistas, pietistas, metodistas, etc. Temos o abandono radicaldos meios mágicos (inclusive a ação dos sacramentos); o asila-mento do crente que diviniza as criaturas; o crente se acreditainstrumento de Deus através do cumprimento dos deveres pro-fissionais e o rigor metódico de vida regida por princípios e cen-trada no eu.

Assim sendo, Weber mostra a formação de uma nova men-talidade, um ethos propício ao capitalismo, em flagrante oposi-ção ao “alheamento” e à atitude contemplativa do catolicismo,que levam o fiel a se resignar diante dos problemas deste mundoesperando os benefícios do próximo.

O autor encontrou na Ética Protestante a explicação para ainfluência do elemento não econômico de maior abrangência navida econômica individual, qual seja, o conjunto de determina-das normas de comportamento que definem ser por meio do tra-balho e do não-esbanjamento em consumo desnecessário, estan-do o indivíduo crente em busca da graça divina. Segundo estaética, a perda de tempo é o primeiro e principal de todos os peca-dos, pois o trabalho, antes de tudo, constitui a própria finalidadeda vida, ficando claro que a falta de vontade de trabalhar é umsintoma de que não se está sendo contemplado com as graçasdivinas. A riqueza de alguém não o exime, de forma alguma, decontinuar trabalhando. Esta ética, sem dúvida, traz junto consigouma visão utilitarista, racionalizadora e calculista do mundo, queacabou servindo como uma luva às evoluções do capitalismo.

Para atingir o conceito de relação social, Weber distinguequatro tipos de ação social, cada qual denotando uma respectiva“racionalidade”, ou um tipo específico de racionalidade.

CONCEITOSDEAÇÃOEMWEBER:Ação Social para Weber refere-se ao comportamento que

se orienta pelo outro em seu curso. Estou escrevendo este livro.

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Ao escrevê-lo, estou me orientando para um tipo de público emespecial. Minha ação está sendo orientada pelo que se espera deum “outro”.

Segundo Weber, a ação social, como toda ação, pode ser:

1. Racional com relação a fins (Zweckrationalitat): determina-da por expectativas no comportamento tanto de objetos domundo exterior como de outros homens, e utilizando essasexpectativas como “condições” ou “meios” para o logro de finspróprios racionalmente calculados e perseguidos. Exemplo: vouescrever um bom livro a fim de ser bem visto pelo mundoacadêmico.

2. Racional com relação a valores (Wertrationalität): determi-nada pela crença consciente no valor – ético, estético, religio-so ou de qualquer outra forma como se lhe interprete – pró-prio e absoluto de uma determinada conduta, sem relação al-guma com o resultado, ou seja, puramente nos méritos dessevalor. Exemplo: muitas pessoas optam pelo casamento religio-so não porque vão obter algo por esta ação, mas simplesmentepelo valor do ato religioso em si.

3. Afetiva, especialmente emotiva, determinada por afetos e es-tados sentimentais atuais. Exemplo: uma pessoa pode fazeruma campanha social para sanar o sofrimento das vítimas deuma calamidade.

4. Tradicional: determinada por um costume arraigado. Exem-plo: muitas pessoas casam no religioso só porque isto já é tra-dição, não vendo nenhum valor neste ato.

ACrítica da Escola de Frankfurt

Os pensadores da Escola de Frankfurt, principalmente The-

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odor Adorno e Max Horkheimer, procuraram desenvolver umateoria crítica do conhecimento e da sociedade, inspirados na obrade Marx e em suas raízes hegelianas. O principal aspecto dessacrítica diz respeito à racionalidade técnica e instrumental quedominou a sociedade moderna após a Revolução Industrial.

Na teoria de Adorno e Horkheimer, os conceitos de “racio-nalização” e “razão instrumental” são usados para descrever osprincípios de organização social, as orientações de valores da per-sonalidade, e as estruturas de significado da cultura.

O desencantamento do mundo, a perda do mágico, não éuma conseqüência que se inicia na modernidade. A passagem dosímbolo para o conceito com o surgimento da filosofia grega jásignifica desencantamento.

O próprio excesso de confiança no Esclarecimento e nopoder da razão já aponta uma patologia. O pensamento deve dei-xar de ser cegamente valorizado para continuar a ser crítico, es-clarecedor, sem perder sua relação com a verdade. Podemos veri-ficar isto ainda em nossas esferas atuais: quando as massas edu-cadas se deixam dominar tecnologicamente pelos encantos dostotalitarismos e outras formas sociais autodestrutivas, percebe-mos “a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teóri-co atual”33 .

Em seu Conceito de Esclarecimento, texto magistralmen-te escrito por Adorno e Horkheimer, afirma-se:

“No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o escla-recimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os ho-mens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas aterra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de umacalamidade triunfal” 34 .

É uma crítica dura, mas comovente e muito verdadeira.

33 Cf.ADORNO, T. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, p.13.

34ADORNO, T & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, p.19.

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Pensando em esclarecer, iluminar a terra por meio da razão, ohomem acabou por enterrá-la no infortúnio e na miséria.

Os autores ressaltam que o programa básico do Esclareci-mento era livrar o homem e o mundo do feitiço. Recordam deBacon, o qual denominam de “o pai da filosofia experimental”35 ,por ter desprezado os adeptos da tradição, ter combatido os “ído-los” que impedem o acesso humano ao verdadeiro conhecimen-to. Segundo estes autores, Bacon captou de forma satisfatória oespírito da ciência que se seguiu a ele, mesmo sendo um pensa-dor alheio à matemática. Contudo, salientam que esse saber jápreconizado por Bacon, serve aos empreendimentos vários, semdistinção de origem e de finalidades.

“Do mesmo modo que está a serviço de todos os fins da econo-mia burguesa na fábrica e no campo de batalha, assim tambémestá à disposição dos empresários, não importa sua origem” 36.

A técnica, a operation, acaba sendo a essência desse saber,não tendo mais como objetivo somente a felicidade humana e acontemplação, mas via método, objetiva a exploração do trabalhodos outros. Eles atacam diretamente:

“O que os homens querem aprender da natureza é como em-pregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nadamais importa” 37.

A partir deste projeto acaba ocorrendo o desenfeitiçamen-to do mundo com a erradicação do animismo. Mas este projetotambém já se fazia presente entre os gregos, desde a zombaria deXenófanes contra a multiplicação dos deuses até o logos filosófi-co que, desde as idéias platônicas, substituiu os deuses patriar-cais. A magia, os ritos xamanistas, já são para os autores formas

35 Ibidem. Este epíteto, eles retiram de Voltaire, Lettres Philosophiques XII, OeuvresComplétes, Ed. Garnier, Paris, 1879, vol. XXII, p.118.

36ADORNO, T & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento, p.20.

37 Ibidem.

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de dominação; eles eram usados para aplacar a fúria das tempes-tades, o vento, para favorecer a chuva, contra os animais ferozese contra as forças demoníacas. O mito, de forma idêntica, passatambém a fazer parte (como mecanismo) da esfera de domina-ção. O mito, como um antecedente do conceito, “passa a ser ilu-minação e a natureza, mera objetividade.” 38

A objetividade excessiva provoca uma distância, ou seja,os homens pagam um preço muito alto pela multiplicação de seupoder: a alienação daquilo que está sob seu domínio. Esta críticaeles estendem à razão iluminista, que para eles nada mais é doque Razão Instrumental. Porque a distância do sujeito em rela-ção ao objeto, pressuposto da abstração, leva inevitavelmen-te ao distanciamento do sujeito em relação a outro sujeito nocampo das relações.

Tudo isto pressupõe o que chamam de Ação Instrumental.A essência desse saber, desde Bacon, é o poder. Não visa esclare-cer conceitos e imagens, muito menos busca o prazer do discer-nimento, visa, isto sim, o método, a utilização do trabalho deoutros e o capital39 . A Ação Instrumental pressupõe como funda-mento a Razão Instrumental:

“O Esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditadorse comporta com os homens” 40.

O problema maior é que com o tempo o Esclarecimentocomeçou a comportar-se com os homens tal qual se comportacom as coisas.

E é bom também não esquecer que na maioria das vezes oditador se comporta com os homens fazendo uso dos meios dopróprio Esclarecimento. Na história muitos ditadores justifica-ram suas ações de forma racional.

38 Cf. id., p.7.

39 Cf. Idem, p.20.

40 Idem, p.24.

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Alguns pensadores reconhecem que mesmo já entre os gre-gos havia uma distinção na forma de uso que se pode dar ao lo-gos; havia a razão enquanto astúcia, identificada pela astúcia deUlisses nos poemas homéricos e havia a razão sábia, presentenos diálogos dos filósofos. Ulisses pode ser visto como a encarna-ção da astúcia que se rebela contra os deuses e consegue obterpela ação alguns resultados eficientes, mesmo que isto venhacustar a vida de todos os seus companheiros. Vide: só Ulissesretorna à sua casa com vida. Após ter revelado a idéia do cavalode Tróia, o presente de grego que permite que os poucos solda-dos restantes sejam introduzidos na cidade inimiga para massa-crá-la sem serem vistos, Ulisses orgulhosamente se insurge con-tra os deuses, esquecendo até que a idéia do cavalo de madeiraoco por dentro tinha sido inspiração divina.

A partir daí se inicia a grande saga de Ulisses. Poseidon,deus do mar, quer esmagá-lo, Palas Atena, deusa da sabedoria, oprotege. Ele oferece sangue humano como drink aos Ciclopes,dorme com Circe e escuta as sereias.

No episódio das sereias, astutamente consegue ouvi-lassem que seja devorado pelos monstros. Todos sabem que as se-reias atraem os homens com belos cantos, mas depois de bemperto deles mostram-se como monstros que devoram. Mas Ulis-ses é “esperto”, e este mundo, dizem os arautos da sociedadeocidental, é dos “espertos”. Ele tapa o ouvido dos marinheirosque continuam a cuidar do navio; pede que o amarrem no mastroe que não o libertem em hipótese alguma. Amarrado, somenteele escuta o canto melodioso das Sereias sem problema algum.

Assim se consegue ver que a astúcia muitas vezes tira pro-veito da alienação, do sacrifício, ou mesmo do sofrimento dosoutros.

Somente nos momentos em que Ulisses ouve a voz da sa-bedoria é que consegue aplacar a fúria dos deuses e vencer tantoas forças da natureza quanto a rebeldia dos homens. Somentenestes momentos é que ele vence a si mesmo. Na verdade, a sagade Ulisses pode ser vista como um ensinamento rumo ao equilí-brio entre a astúcia e a razão sábia, entre a teoria e a prática.

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Já o trabalho dos filósofos pode ser visto como a encarna-ção da razão enquanto sabedoria. Busca a contemplação das ver-dades não somente para si, mas também em prol de toda a hu-manidade.

JÜRGENHABERMAS

Sua Herança

Habermas é um filósofo ainda vivo (estamos em 2005), eneste exato momento enquanto digito estas linhas ele deve estarescrevendo algum artigo ou livro para ser estudado por outros.

Ele pode ser considerado a segunda geração da Escola deFrankfurt, visto que ele se distancia um pouco de seu projetoinicial. Contudo, ele mantém com esta Escola um ponto em co-mum: a crítica à sociedade.

Habermas se demonstra um pensador eclético, pois deno-ta inserção em vários ramos do Conhecimento: aproveita aspec-tos de Piaget, Escola de Frankfurt, Talcot Parsons (quanto à teoriados sistemas), Austin (sobre os atos de fala), Otto Apel (quanto àética do discurso) entre outros.

Ele critica a Escola de Frankfurt, afirmando que ela traba-lha com um conceito único de razão (a razão instrumental) e comum conceito de verdade herdado de Hegel que não se coadunacom o falibilismo da pesquisa científica. Afirma ainda que comAdorno, ela perde o nexo com as ciências, subestima as tradiçõesdemocráticas do Estado de Direito e não leva a sério a mudançade estrutura da esfera pública no interior da democracia burguesa.

Não obstante esta crítica feita, Habermas aceita da Escolade Frankfurt o seguinte: a individuação só é possível via sociali-zação.

Sua Análise do Sistema Social

A partir do inter-relacionamento da filosofia e da ciência

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para captar a sociedade, Habermas chega a dois conceitos-chave:Sistema e Mundo da Vida.

Sistema>> é o campo das funções de reprodução materi-al. É formado pela economia, elementos administrativos, campojurídico, militar e a ciência.

Mundo da Vida>> é o campo das funções de reproduçãosimbólica. É formado pela cultura, sociedade e personalidade dosmembros.

Nas sociedades harmônicas, como aquelas civilizações dopassado, a característica integradora entre os dois campos são asestruturas formadoras do Mundo da Vida. Esta integração é me-diada lingüisticamente, via razão comunicativa.

Acontece que na modernidade estes dois campos se dife-renciaram, ou seja, tornam-se independentes e excludentes en-tre si. Vou dar um exemplo que penso ser bem esclarecedor quantoa isto.

Nada mais natural no mundo da vida do que dois jovensse encontrarem, se amarem e se decidirem pelo casamento comouma união estável. Eles se casam numa cerimônia religiosa re-pleta de símbolos e participam de uma festa que está cheia demomentos simbólicos a respeito de uma vida a dois que se inicia.Mas é claro que eles também devem se garantir um ao outromediante um contrato nupcial, para que não haja problemas como patrimônio caso haja divórcio mais tarde. Aí entra o Sistema,percebeu?

Também é o caso de considerarmos como algo natural duaspessoas que não vivem em união estável optarem pela dissolu-ção do casamento que realizaram. Mas saindo da esfera do mun-do da vida, muitas vezes ocorre que casais acabam optando porcontinuarem a vida juntos por causa do grande patrimônio queadquiriram. Pronto! O Sistema está dominando o Mundo da Vida.

Mas o que realmente é este Mundo da vida?Ele tem característica de um pano de fundo de vivências,

compartilhado pelos indivíduos e que serve de fonte para as de-finições que os envolvidos enfrentam.

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O Mundo da Vida contém 3 padrões de referência:

A)Mundo Objetivo>> uma realidade objetiva interpreta-da cognitivamente (por todos os processos possíveis deconhecimento).

B) Mundo Social>> uma realidade social interpretada nor-mativamente (pelas regras sociais e leis civis).

C)Mundo Subjetivo>> uma esfera subjetiva interpretadaindividualmente.

Segundo Habermas, em cada um destes domínios o quefoi perdido depois de combinado, pode ser restabelecido via ar-gumentação.

Para diminuir a força da dominação realizada pelo Siste-ma em cima do Mundo da Vida, Habermas propõe um processochamado de Descentração: uma compreensão ampla tanto doMundo Subjetivo, do Mundo Social e do Mundo Objetivo, queganha vigor pelo relacionamento intersubjetivo. Ou seja, umabusca de compreensão que os sujeitos realizam mediante a falaque leva a um consenso.

O mundo da vida contribui para manter a identidade soci-al e individual ao organizar a ação em torno de valores comparti-lhados, de modo a alcançar um acordo sobre aspectos de validadeque são passíveis de crítica. Em síntese, o mundo da vida se tra-duz através de mecanismos pelos quais os agentes sociais che-gam a uma compreensão compartilhada do mundo (“Visão demundo”).

A Modernidade

Habermas quer reconciliar a modernidade consigo mes-ma, pois identifica os elementos emancipatórios e implícitos narazão moderna.

O projeto do Esclarecimento ainda não esgotou suas pos-sibilidades. Os autores da teoria crítica da sociedade percebemque a idéia de libertação latente no projeto do iluminismo, ouseja, a idéia de emancipação, teria um duplo sentido: dominar as

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forças da natureza, colocando-as a seu serviço, e superar as escra-vidões que os homens mutuamente se impuseram, especialmen-te pela força dos dogmas, das crenças e das ideologias. Mas entreos mecanismos de poder inerentes à modernidade está a RazãoComunicativa, que teria sido liberada pela modernidade culturale foi soterrada pela dinâmica da modernização social.

De acordo com a análise destes autores houve um desen-volvimento desigual entre os dois sentidos propostos: os homensobtiveram um grande domínio tecnológico sobre a natureza, masnão souberam encaminhar devidamente os problemas da convi-vência da ética e da justiça social; a razão técnico-instrumentalfloresceu e subjugou a razão prática. A razão, em seu uso instru-mental, permitiu que no âmbito da modernidade ocorresse a co-lonização ou coisificação do Mundo da Vida, e com a justificaçãodo progresso fizesse vir à tona o domínio do poder e do dinheiro.

A reconciliação da Modernidade consigo mesma se darána multiplicidade das vozes da própria razão iluminista, quandoa razão comunicativa se apresenta como um conceito de razãoque realiza uma autocrítica.

A Modernidade liberou forças que conduziram à diminui-ção da liberdade (burocratização); mas também liberou forças queaumentaram a autonomia do homem.

Escolhendo a Razão comunicativa

Segundo Habermas41 , se tomarmos como modelo as açõesdo homem sobre a natureza, em que há a utilização de um saber(convicção) não comunicativo, estaremos optando por um con-ceito de racionalidade cognitivo-instrumental, que tende a auto-afirmar-se por meio do êxito no mundo objetivo, com capacidadede manipular informadamente e de adaptar-se inteligentementeàs condições do meio.

Mas se tomarmos como modelo as manifestações simbóli-

41 HABERMAS, TAC I, p.27. (a partir de agora usaremos TAC para abreviação de Teoriade La acción comunicativa)

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cas dos homens que encarnam saberes (convicções) intersubjeti-vamente partilhados, estaremos optando por um conceito de ra-cionalidade comunicativa. Esse conceito aponta para a capacida-de de agir sem coações e de produzir consensos mediante a falaargumentativa, com o que os sujeitos da comunicação assegurama unidade do mundo objetivo, a intersubjetividade do contextoem que desenvolvem suas vidas. Isto é, aqui já não há um sujeitofalando sobre objetos, mas sujeitos conversando sobre suas teori-as a respeito dos objetos.

Mas tanto as ações de caráter cognitivo-instrumental comoas ações orientadas ao entendimento são comuns e indispensá-veis no planejamento estratégico de uma organização. O agir es-tratégico não pode ser concebido simplesmente como uma mani-pulação instrumental.

Em busca da Ação Comunicativa

Habermas identifica – tal como faz a Escola de Frankfurt –a Ação Instrumental, que é a ação orientada ao êxito, consideradasob o aspecto de observação de regras técnicas de ação.

Identifica também – tal como faz Weber – a Ação Estraté-gica, que é a ação orientada ao êxito, considerada sob o aspectode regras de escolha racional, com intenção de influenciar emalter.

Contra estas ações Habermas vai opor a Ação Comunicati-va, que é ação orientada ao consenso, onde os participantes nãoficam coordenados através de cálculos egocêntricos de interes-ses. Sua marca principal é que só se pode alcançar também o pró-prio êxito quando buscado através de um entendimento consen-tido. Eu posso buscar o meu êxito com o auxílio de outrem, masesta minha busca deve ser transparente para ele; ele deve terconsentido com o meu êxito.

A Ação Comunicativa pressupõe como fundamento a Ra-zão Comunicativa. Esta é uma razão subjetiva no sentido que ex-pressa relações entre sujeito e objeto.

Para a Razão Comunicativa, o paradigmático não é um su-

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jeito solitário com algo no mundo objetivo, mas a relação inter-subjetiva que travam os sujeitos capazes de linguagem e de açãoquando se entendem entre si sobre algo no mundo.

É um conceito amplo de razão, visto que permite transpa-rência dos agentes e interlocutores.

Para melhor poder ser exercida a Razão Comunicativa eque o consenso seja atingido, Habermas propõe as condições ide-ais de fala.

Condições Ideais de fala

- primeiro, cada participante deve ter uma chance igual ao inici-ar e continuar a comunicação (A);

- segundo, cada um deve ter uma chance igual para fazer asser-ções, recomendações e explanações (B);

- terceiro, todos devem ter chances iguais como atores para ex-pressarem seus desejos, sentimentos e intenções (C);

- e quarto, os falantes devem agir como se (als ob) no contextoda ação existisse uma distribuição igual de chances para orde-nar e para resistir a ordens, para propor e refutar (D).

A teoria de Habermas é muito interessante. Colocá-la emprática já não é tão interessante assim. Em primeiro lugar, é pre-ciso haver um acordo sobre “o acordo”. Ou seja, antes de se inici-ar a tentativa de acordo, todos os envolvidos devem estar pro-pensos a ele.

“Vamos fazerumacordo?”“Não”.Pronto! Já acabou o acordo.Mas o ponto mais positivo desta sua teoria é que se real-

mente houver transparência das reais intenções por meio da fala,uma boa chance haverá de acordos em nossas convivências.

Você está de acordo?

A Ética Discursiva

A questão da moralidade em Habermas insere-se, pois, nocorpo de sua teoria da ação comunicativa. Enquanto “questão”

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ela é elaborada e repensada no contexto do discurso prático. Separa Kant o critério último da moralidade se condensava no “im-perativo categórico”, para Habermas ele se radica no “processoargumentativo”, desencadeado pelo discurso prático. Essa mu-dança de foco constitui a essência da “ética discursiva”.

Em sua essência, a ética discursiva procura substituir oimperativo categórico de Kant pelo procedimento da argumenta-ção moral. Dessa forma, o imperativo categórico é transformadoem um princípio universalizável, na situação dialógica ideal, per-dendo sua autoridade como critério moral absoluto “puro”, ouseja, vai ser obra e um consenso. A ética discursiva sugere quesomente podem aspirar à validade aquelas normas que tiverem oconsentimento e a aceitação de todos os integrantes do discursoprático.

Para que uma norma tenha condições de transformar-seem norma geral, aspirando validade universal enquanto máximada conduta de todos os participantes do discurso prático, os re-sultados e efeitos colaterais decorrentes da sua observância pre-cisam ser antecipados, pesados em suas conseqüências e aceitospor todos. Não é mais o sujeito moral kantiano que, seguindo seudever, define monologicamente o que possa ser considerado umprincípio generalizável, mas sim o grupo integrante de um dis-curso prático que dialogicamente elabora, à base do argumentomais justo, correto, racional, o que possa ser considerado um prin-cípio universalizável.

O novo princípio regulador, a norma universal que tam-bém será a máxima moral de cada um, não é um dado a priori,mas o resultado último de um longo processo argumentativo, vi-abilizado pelo discurso prático. A ética discursiva de Habermaspressupõe pelo menos três dados, ainda não suficientementeexplicitados: a competência comunicativa dos integrantes do gru-po; situações dialógicas ideais, livres de coerção e violência; e,finalmente, um sistema lingüístico elaborado que permita pôrem prática o discurso (teórico e prático).

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John Rawls

Questão Inicial

John Rawls já está em “saudosa memória”: morreu em2002. Deixou uma teoria que ainda é muito estudada pelos inte-ressados em teoria política.

Como os verdadeiros filósofos partem de problemas a se-rem respondidos (e não necessariamente resolvidos), ele parteda seguinte questão: como é possível que exista e mantenha-seao longo do tempo uma sociedade democrática, estável e justa,composta de cidadãos livres e iguais, que permanecem profun-damente divididos entre si por doutrinas religiosas, filosóficas emorais razoáveis, incompatíveis entre si?

A proposta de Rawls

Respondendo à pergunta inicial, Rawls quer fundamentarcontratualmente uma teoria da Justiça, levando a um nível con-ceitual mais alto a visão do contrato que supere as inconsistênci-as dos modelos formulados pelos modernos jusnaturalistas. Parasuperar as debilidades dos modelos anteriores, Rawls busca darum conteúdo ético-racional ao contrato social e caráter contratu-al aos imperativos morais kantianos.

As debilidades do contrato anterior baseiam-se na presen-ça de um contrato social que, assumido pela maioria, pode serarbitrário e na presença de imperativos morais que careçam danecessária deliberação coletiva.

Por isto o liberalismo de John Rawls na verdade é um neo-contratualismo. Ele segue o contratualismo antigo em alguns prin-cípios, quer dizer, principalmente quando procura responder àseguinte questão: como surge ou ocorre o acordo/consenso numasociedade politicamente organizada? A teoria neocontratualistade John Rawls procura solucionar o seguinte problema contem-porâneo: “de que maneira o contrato social pode ser moralmentelegítimo e ser aceito pelo cidadão sem atentar contra sua autono-mia individual?”.

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Rawls pretende também dar uma opção para se sair doutilitarismo. O utilitarismo é criticado por ele por permitir quehaja uma projeção ao coletivo dos interesses dos indivíduos queescolhem qual será “o maior bem para o maior número de pesso-as”. Ele concebe um procedimento de argumentação racional paragarantir que os princípios da justiça sejam escolhidos contratual-mente. Como? Este procedimento será feito por homens racio-nais e morais, com juízos livres da contaminação do egoísmo –imbuídos da imparcialidade.

Noções ou princípios que fundamentam a teoria

Posição original. Ele usa esta metodologia para descobrirum estado hipotético que garanta a imparcialidade dos acordosfundamentais. É algo semelhante ao Estado de Natureza dos jus-naturalistas. É uma posição imaginária em que todos estão des-providos de informação que possa afetar seus juízos sobre justi-ça, bem como do conhecimento das contingências que colocamos homens em posições desiguais, fazendo com que não sejamintroduzidos preconceitos na seleção dos princípios diretores. Estaposição introduz uma situação inicial de absoluta neutralidade,assegurando a imparcialidade dos princípios de justiça.

Esta imparcialidade será mais específica mediante o véude ignorância.

Véu de ignorância. É o mecanismo por meio do qual naPosição Original todos sejam tomados como iguais e tenham osmesmos direitos para escolher os princípios de justiça. Os mem-bros não devem saber a posição que vão ocupar após o acordo.Devem estar ignorantes de possíveis vantagens. As partes envol-vidas não podem conhecer informações que viciariam os conteú-dos dos princípios de justiça, como também sua posição social,seus talentos, as condições políticas, sócio-econômicas, etc. Estemecanismo é usado para garantir a neutralidade no procedimen-to de seleção de todos os agentes do contrato.

Rawls prevê e comenta uma possível objeção a estesprincípios: Mas o desconhecimento das particularidades de

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sua vida social, não faria com que as partes ficassem sem critéri-os sólidos para selecionarem os princípios de justiça mais ade-quados?

Aí entra a noção de Bens Primários.Bens Primários. São bens primários fundamentais para o

indivíduo que impõem limites de realidade à concepção e reali-zação dos princípios de justiça. Os Bens Primários são direitosbásicos e liberdades políticas; liberdade de movimento e liberda-de de escolher ocupação entre um espectro amplo de oportuni-dades; renda e riqueza; bases sociais de auto-respeito.

Princípios de Justiça

Derivados de sua teoria, os princípios buscam regular “aestrutura básica da sociedade” e dispõem a organização dos direi-tos e deveres sociais, assim como os parâmetros econômicos quepodem reger aos indivíduos que a compõem. O primeiro princí-pio, a liberdade, define o ordenamento constitucional da socie-dade; o segundo, a diferença, define a distribuição específica doingresso, riqueza e possibilidade de posição dos associados. Osdois princípios são:

Primeiro princípio: cada pessoa deve ter direito igual aomais amplo sistema total de liberdades básicas, compatí-veis com um sistema similar de liberdade para todos –igual liberdade.Segundo princípio: as desigualdades econômicas e soci-ais devem ser estruturadas de maneira que sejam para: a)maior benefício dos menos favorecidos, de acordo com umprincípio justo – o princípio de diferença – e b) unido aque os cargos e as funções sejam acessíveis a todos, sobcondições de justa igualdade de oportunidades – Princí-pio da justa igualdade de oportunidades (cf. id., p.48)42 .

42 Ou cf. p.64 da edição em português de 1997.

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Esta teoria só é possível quando há um anseio por justiça,com vistas a orientar todas as forças democráticas para a práticada justiça.

Ela vai respeitar o próprio senso de justiça cultivado pelarazão política ocidental. Este senso de justiça pode ser compre-endido como uma convicção do cidadão - enquanto ser racional -acerca da obrigação da cidade em que vive de colocar à sua dispo-sição os meios para que ele possa realizar sua estrutura de vida.

Equilíbrio reflexivo. É o mecanismo para o indivíduo as-sumir e interiorizar os princípios acertados, porém, com a possi-bilidade permanente de questioná-los e mesmo reintroduzi-los anovas circunstâncias. Na verdade é o uso privado da razão naintenção político-pública.

Razão Pública. Assemelha-se a uma projeção sócio-institu-cional equivalente ao que representa o equilíbrio reflexivo para oindivíduo do contrato. A cidadania deve conduzir suas discus-sões fundamentais sob os auspícios dos princípios de justiça, noponto em que o cidadão possa explicar suas propostas aos ou-tros e obter seu apoio para elas. Exemplo: A Suprema Cortedos Estados Unidos.

Consenso Sobreposto. Constitui o instrumento procedi-mental substantivo de convivência política democrática.

É através de uma sociedade democrática que as diferentesposições doutrinárias de caráter moral, religioso, político e filo-sófico podem lograr convergir num consenso sobre a estruturabásica da sociedade, sem abjurar de suas próprias posições.

A idéia básica do liberalismo político é a de lograr um con-senso sobreposto das doutrinas omni-compreensíveis razoáveis.

A concepção de justiça mais razoável para um regime de-mocrático é amplamente liberal. Quando um consenso sobrepos-to mantém esta concepção, ela não é vista como incompatívelcom valores básicos, sociais ou individuais.

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CAPÍTULO8

ASDINAMITESDENIETZSCHE

Gosto de dizer que Friedrich Nietzsche é um dos filósofosmais amplamente lidos e amados, principalmente pelas pessoasque não estão totalmente comprometidas com a filosofia mas quea ela são afins.

Mas por que todo este sucesso?Talvez porque Nietzsche escreve muito bem, poeticamen-

te bem. A maioria dos filósofos escreve mal, pois tentando mos-trar profundidade, tornam-se por demais prolixos. Nietzsche éuma das raras exceções no esquema. Outra razão também podeser pelo aspecto todo irreverente que ele usa em sua filosofia. Elemuitas vezes diz aquilo que gostaríamos de dizer sobre nossa hi-pocrisia e não temos coragem de fazê-lo.

Muitas vezes ele foi acusado de ser anti-semita. Ele mor-reu em 1888, e nesta época já havia cortado suas relações compessoas anti-semitas, notadamente seu amigo Richard Wagner.Mas na verdade esta culpa recai sobre sua irmã, uma ferrenhaanti-semita e nazista entusiasta que publicou suas últimas obrasde forma revisada. A obra Assim Falava Zaratustra, muito famo-sa, foi editada e distribuída gratuitamente pelo nazismo após umacordo da irmã de Nietzsche com os líderes do movimento. É quea obra fala da emancipação do homem, no surgimento de umnovo homem, entendeu agora o porquê do interesse nazista naobra?

Sua teoria filosófica se chama Niilismo, porque ela vai con-

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tra todos os valores da moral ocidental. Ela quer transformar emnada estes valores; daí o nome, que vem do latim nihil, que signi-fica nada.

Segundo Nietzsche, os antigos gregos consideravam “boa”toda ação que fosse nobre, poderosa, bela. Uma ação “má” erauma ação inexpressiva, sem grandeza. Os valores que afirmavama vida, este era o padrão apoiado por Nietzsche.

Mas isto mudou com a moral judaica e com os cristãos. Osvalores que não podiam ser negados em seus próprios termosforam atribuídos a um Deus distante, e o bem ficou identificadocom idéias como a piedade e humildade. A esta postura adotadaNietzsche vai chamar de a moral dos fracos.

Ele proclamou então a necessidade de uma mudança devalores. O primeiro passo neste processo era proclamar a “mortede Deus”, que iria nos libertar da moralidade escrava que é de-pendente dele. Alguns autores colocam que Nietzsche não foicontra Deus em si, mas sim contra a idéia que o homem fez deDeus.

Porque é fácil perceber o seguinte: como pode ser verda-deiro que Deus criou os homens à sua imagem e semelhança,pode também ser verdadeiro que os homens criaram o seu Deusà sua imagem e semelhança.

Vale quanto a isto a crítica já feita na Grécia por Xenófa-nes:

“Se os bois, cavalos e leões tivessem mãos ou se pudessem pin-tar e realizar as obras que os homens fazem com as mãos, oscavalos pintariam imagens dos deuses semelhantes aos cavalose os bois semelhantes aos bois, e plasmariam os corpos dosdeuses semelhantes ao aspecto que cada um deles tem” 43.

A moral dos escravos nega os valores vitais e disto resultaa passividade, a procura da paz e do repouso. Assim sendo, oindivíduo se torna enfraquecido e diminuído em sua potência. Aalegria é transformada em ódio à vida. A conduta humana, quan-

43 Xenófanes, fr. 15 Diels-Krans.

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do orientada pelo ideal ascético, torna-se marcada pelo ressenti-mento e pela má consciência.

Para Nietzsche a realidade é uma explosão de forças de-sordenadas. E a Razão não pode dar conta disto.

Em relação a este conjunto de forças desordenadas, o Ho-mem pode assumir então três estilos de vida: de fraqueza, deforça e de inocência. Estes estilos estão simbolizados em 3 ani-mais.

O Camelo: simboliza o homem medíocre, sujeito à religiãoe à moral.

O Leão: simboliza o homem forte, desmistificador da reli-gião e da moral.

O Menino: simboliza o homem inocente, que se comprazna exuberância da natureza. Ama a realidade em todas as suasmanifestações, sem subordiná-las a normas ou idéias projetadasnum mundo sobrenatural ou escatológico. Cria, porém, novossímbolos sacros, como por exemplo, Dionísio (deus grego da ale-gria e do vinho). Este é o homem-gênio que pode completar suatransformação de valores, que pode tornar-se o “Sobre-homem”(Übermensch).

Nietzsche estuda o surgimento da filosofia: explica queocorre uma mudança na forma de usar a razão. No período queantecede a filosofia, o espírito apolíneo e o espírito dionisíaco secontrabalançavam, completando-se dialeticamente. O surgimen-to da filosofia representa o predomínio do espírito apolíneo, ra-cional, da medida, da ordem e do equilíbrio. O espírito dionisía-co, o desejo, a afirmação da vida, será progressivamente reprimi-do. Nietzsche vai apresentar Sócrates como o primeiro inimigoda humanidade, porque pregou o domínio do corpo pela razão.

Nietzsche fala também da Vontade de Poder. Segundo ele,todo relacionamento humano é uma luta por poder. Os códigosmorais, por exemplo, foram criados para se exercer o poder sobreos outros. Para sairmos desta situação medíocre, ele sugeriu quenos concentrássemos menos no desejo de subjugar os outros emais em nossa necessidade de superar nossos instintos animais,

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reinventando a nós mesmos. Este é um processo de auto-realiza-ção, onde se exerce o poder de lapidar as paixões, impulsos ecaráter, enfim, de desbastar a “pedra bruta” que está em nós eimpede o aparecimento da “pedra preciosa”.

O objetivo de Nietzsche é revelar e criticar e ao mesmotempo restaurar os valores primitivos perdidos.

Ele retoma o tema do Eterno Retorno estudado pelos gre-gos. Segundo esta teoria o universo sempre retorna ao mesmoponto de antes (as coisas se repetem, tudo ocorrerá novamente).Mas ele reintroduz este tema com um novo significado: não é umevento cósmico que se processa fora do homem, mas que tempor centro o próprio homem. E ele pode tirar proveito disto.

Estude Nietzsche, leia-o, exerça seu pensamento com esteautor. Mas cuidado! Não se deixe levar pelo ímpeto de sua lin-guagem poética, que muitas vezes nos leva a aceitar tudo o queele diz de forma acrítica. Muitas vezes ele ataca o mundo levadopelos dissabores que a vida lhe aplicou. É o caso de suas idéiassobre as mulheres, por exemplo. Ele tem uma idéia péssima so-bre as mulheres. Mas é que ele foi rejeitado por uma dama pelaqual se apaixonou; ela o abandonou por um outro filósofo menosconhecido. Ele não conseguiu se libertar deste preconceito cria-do por uma “dor de cotovelo”.

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CAPÍTULO9

ANÁUSEADAEXISTÊNCIA

No período entre as duas grandes guerras, quando se per-cebeu o vazio de todos os sistemas filosóficos (idealismo, volun-tarismo, positivismo, espiritualismo) e havendo urgência de re-novação substancial da filosofia, surgiu o movimento chamadoExistencialismo.

É a corrente de pensamento que concebe a especulaçãofilosófica como uma análise minuciosa da experiência cotidiana,em seus aspectos teóricos, práticos, individuais, sociais, instinti-vos e aspectos irracionais da existência humana.

Para o ser que quer evoluir pelo pensamento correto, fazbem um pouco de reflexão sobre a existência humana. Tanto queo existencialismo é a corrente filosófica que mais está presentediante das pessoas do senso comum, através da literatura, damúsica e das artes. Cazuza, por exemplo, que tendo sido educadonos Estados Unidos (onde a filosofia é super valorizada), tinhaconhecimentos desta corrente e transmitiu idéias existencialis-tas em algumas de suas últimas músicas, como Cobaias de Deus,enquanto ainda lutava contra a Aids. Renato Russo, também edu-cado nos EUA e que travou luta com a mesma doença, transmitiumuitas idéias do existencialismo em suas músicas, principalmenteem Via Láctea.

O termo designa o conjunto de tendências filosóficas que,embora divergentes entre si, têm em comum a análise da exis-tência humana.

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A existência humana é apresentada como um impulso. Masimpulso em direção a que? Daí vem as diferenças das correntesdo existencialismo. Impulso em direção a Deus, ao mundo, aohomem, à liberdade e ao nada.

Podemos ainda verificar algumas fontes que levaram aosurgimento do existencialismo. A crise do hegelianismo, pessi-mismo de Shopenhauer, humanismo e ateísmo de Feurbach, Ni-etzsche e Kierkegard.

Apresento algumas características comuns a todas estascorrentes:

Ocorre a centralidade da existência: o homem é entendi-do como finito. Ele representa uma realidade imperfeita, aberta,inacabada, lançada ao mundo e vivendo sob riscos e ameaças. Ascoisas e os animais são o que são e permanecem o que são. Ohomem será o que ele decidir ser. A possibilidade é apresentadacomo modo de ser constitutivo da existência. Neste sentido, ohomem é um ser de possibilidades.

A Transcendência do ser é apresentada, às vezes identifi-cada com o mundo, às vezes com Deus ou com o Homem.

A existência é modo de ser finito, ou seja, um poder ser;ela não é essência, coisa dada por natureza, realidade predeter-minada e não modificável. A existência é um “sair para fora”, umex – sistire. A liberdade humana não é plena, mas condicionadaàs circunstâncias históricas da existência.

O filósofo existencialista mais conhecido é Jean-Paul Sar-tre. Para ele a existência precede a essência. Segundo a concep-ção tradicional, o ser humano possui uma essência, uma nature-za universal. Para Sartre, ao contrário das coisas e dos animais,no ser humano a existência precede a essência, significando queprimeiro o homem existe, se descobre, surge no mundo; e que sódepois se define.

Veja esta frase magnífica de Sartre:

“Não importa o que fizeram de você. O que importa é o quevocê vai fazer do que fizeram de você”.

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A diferença principal entre o ser humano e as coisas é quesó ele é livre, visto que nada mais é do que seu projeto (de pro-jeto, ser lançado adiante). A consciência distingue o ser humanodas coisas e dos animais, que são “em-si”, isto é, não são capazesde se colocarem do “lado de fora” para se auto-examinarem, poissomente o homem consciente é um ser “para si”, dotado de umacapacidade que pensa a si mesma.

Existência aqui não significa simplesmente “estar vivo”.As plantas e os animais também “existem” no sentido de queestão vivos, mas não são capazes de indagarem sobre o que istosignifica. O ser humano é o único ser vivo consciente de sua exis-tência. Sartre diz que as coisas físicas só são “em si”, ao passo queo homem também é “para si”. Ser uma pessoa é, portanto, dife-rente de ser uma coisa.

O homem precisa primeiro criar-se a si mesmo. Ele preci-sa criar sua própria natureza, sua própria essência, já que ela nãolhe é dada de antemão. É claro, pois quem a daria, se para Sartrenão existe Deus?

Para Sartre “o existencialismo é humanismo”, aliás, este éo título de uma de suas obras. Com isto ele queria dizer que oexistencialismo tem como ponto de partida única e exclusiva-mente o homem. Talvez possamos acrescentar que o humanismode Sartre vê a situação do homem de uma maneira diferente emais sombria do que o humanismo que conhecemos na época doRenascimento. Tudo porque, ao contrário de outros existencialis-tas que eram cristãos, Sartre estabeleceu-se como um pensadordeclaradamente ateu.

Quem já não se sentiu alguma vez na vida um pouco “de-prê”, desiludido ou angustiado?

É que o homem se sente alienado num mundo sem senti-do. Quando descreve a “alienação” do homem, Sartre retoma ospontos centrais do pensamento de Marx. Alienado vem do latimalienus, que significa estranho, daí que vem a palavra Alien doinglês. O homem se encontra como um estranho neste mundo.O sentimento do homem de ser um estranho no mundo, diz Sar-

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tre, leva a uma sensação de desespero, tédio, náusea e absurdida-de. Ele insistiu tanto nisto que escreveu um romance, A Náusea,que comecei a ler e não consegui acabar a leitura: fiquei com ná-usea do livro.

Sartre está descrevendo nada mais nada menos que o ho-mem urbano do século XX, que está a caminho, indo, mas não sesabe pra onde. Você vai se recordar de que o humanismo do Re-nascimento e do século das Luzes tinham propagado em tom detriunfo a liberdade e a independência do homem. Para Sartre, aliberdade do homem era como uma maldição. “O homem estácondenado a ser livre”, ele dizia. Condenado porque não se crioue, não obstante, é livre. E uma vez atirado ao mundo, passa a serresponsável por tudo o que faz.

Se isto for verdade, que desespero!É uma lástima constatá-lo, mas para a maioria das pessoas

o mundo se torna eminentemente “normal”. E para mim, as pes-soas que estão sob a falsa segurança da normalidade, simples-mente se parecem “mortas”, embora respirando e a esperar o diada sepultura.

Sapere Aude! Ousai saber. Ousai fazer uso do PensamentoLivre e autônomo!

Esta é a minha lacônica conclusão deste livro!

Quem quiser assistir um filme que tem tudo a ver com oque foi tratado neste livro, indico Waking Life. Mas é bom assis-tir mais de uma vez, visto que nele se encontram muitas infor-mações que a rapidez das cenas não nos deixam captar. O perso-nagem principal está tentando descobrir se está acordado ou seestá sonhando. Nesta sua busca acaba encontrando diversas res-postas sobre outras questões importantes da vida.

Outro filme que trata do mesmo tema que Matrix, e quetrata bem melhor por sinal, só que não teve milhões investidosnele e nem um galã bonitinho que pratica artes marciais, é ODécimo Terceiro Andar.

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Referências

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