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4 Pensar A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 1º DE JUNHO DE 2013 Beatificado pelo papa João Paulo II, o padre José de Anchieta – o “Pai do Brasil” – tem sua imagem reconstruída em análise de historiador e psicólogo letras O QUE ERA ANCHIETA? A nchieta não era o santo humanista que desejariam o fosse, mas fez milagres de poeta perpetrados pela beleza de seus versos, ar- ma mágica. Anchieta, por ter sido transformado em metáfora sobrenatural, não era o homem que nasceu em San Cristobal de la Laguna, ilha de Tenerife, arquipélago espanhol das Canárias, em 19 de março de 1534, nem o que morreu em Reritiba, hoje Anchieta (ES), em 9 de junho de 1597. Magos, boatos e lendas não têm começo nem fim. Meio ou meios, sim. Teria sido ele Merlim? Anchieta não era, mesmo sendo, o que houve no meio: poeta adolescente que chegou ao Brasil aos l9 anos de tuberculose em busca da cura do pa- raíso tropical. Pois a mão divina já o havia curado antes mesmo de adoecer. Os nativos não foram abençoados com essa sorte: por não terem anticorpos contra doenças inofensivas para os europeus, morriam aos milhares de doenças transmitidas por eles. Anchieta não era o mago Merlim que invocou prodígios e rogou maldições na luta contra os franceses e os aborígines. E, de tanto se saber desumano, ofe- receu-se para permanecer como refém dos tamoios em Iperoig, ali ficando a plantar milagres até que foi conseguida a paz entre portugueses e silvícolas. Para maior encanto de todos, enquanto preso, criou do nada “De Beata Virgine dei Matre Maria” (“Da Meata Virgem Maria Mãe de Deus”). Conhecido como o "poe- ma à virgem", sua obra-primorosa narra a vida de Maria, mãe de Jesus, em 5.786 versos. Sem papel para si, escreveu-o nas areias da praia e o memorizou graças a sortilégios mnêmicos. Anchieta não era um defensor dos índios e, em “De Gestis Mendi de Saa”, narra os feitos de Mem de Sá, louvando o assassinato das tribos inimigas, a destruição de aldeias e a devastação de plantações. Seus versos demonstram e documentam a participação jesuítica na elaboração de uma ideologia jus- tificadora e apologética do extermínio dos aborígines e dos objetivos do pro- jeto colonial português. Anchieta não era o “língua” benévolo de que falamos. Melhor seria se o cha- mássemos de domador de idiomas. Es- colhidas como um dos principais pontos de ataque, os inúmeros dialetos indígenas foram substituídos por uma só “língua geral”, baseada no tupi, que foi reduzido a regras explicitadas na “Arte de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil”, publicada em 1595, de sua autoria. A gramaticalização do tupi se constituiu, de fato, em um aprisionamento da liber- dade de expressão linguística nativa em códigos opressores que os jesuítas se encarregaram de impor até mesmo às tribos que não empregavam o tupi. Comeu-se da árvore do bem e do mal e começou a haver o certo e o errado. Bem-sucedidos na im- posição de uma só língua geral, o trabalho de dissolução cultural pôde prosseguir com facilidade. Anchieta era o destruidor de deus e o apologista de falsos mitos. Porque o verdadeiro deus do gentio era Jurupari, ainda hoje uma entidade encontrável nos terreiros da umbanda bra- sileira. Os pajés, abominados pelos jesuítas, eram intermediá- rios entre Jurupari e os homens — e não entre Tupã e os homens. Compreendemos, então, as doze peças de Anchieta, oito das quais estrearam e se passam no Espírito Santo. São autos de circunstância — inspirados formalmente em Gil Vi- cente e, contextualmente, nos cos- tumes indígenas — a serviço de um teatro popular com finalidades ca- tequéticas. Embalados pela ideologia contrarreformista, seu objetivo era impressionar e deslumbrar sensorial- mente o público por meio do texto e dos truques da montagem, trans- formada em um grandioso show em que se empreendia a crítica dos cos- tumes indígenas e a apologia da vitória dos valores cristãos. O brilhantismo de Anchieta logo deve ter percebido o gosto indígena pelo canto, pela dança, pela festa e pela música. Como forma de atrair o gentio para as encenações catequé- ticas, introduziu coreografia, canto e música em seus textos, propositada- mente estruturados de modo a pa- recerem familiares aos nativos. Uma vez levados ao local da mon- tagem, porém, os costu- mes dos aborígines se transformavam em atos que, pratica- dos pelos diabos da peça, eram ve- ementemente condenados. Paralelamen- te, os mitos indígenas não desejáveis eram convertidos em personagens de- moníacos, destino que se reservava tam- bém para os invasores franceses e para os silvícolas hostis aos portugueses. Anchieta não era o dramaturgo, o diretor e o ator de seu eu que destruiu na lavagem cerebral dos “exercícios espirituais” inacianos. Apesar disso, foi o pai do teatro brasileiro. Anchieta não é o vazio do homem enterrado no Palácio Anchieta. O destino de seu corpo foi o de ser esquartejado pela eternidade até o pó do esqueleto alcançar a paz da ausência. Ele não era o santo humanista que a ideologia construiu. Toda sua obra se insere numa estética pré-barroca, nas- cida da contrarreforma, cuja função maior é infundir o temor a Deus, por meio de uma técnica que encanta hip- noticamente os sentidos e faz calar a racionalidade. O amor surge do temor e os inimigos da Igreja serão mortos ou na vida terrena ou pelas chamas do inferno. Jamais o gesto belíssimo de oferecer a outra face, pregado pelo verdadeiro Cris- to, é posto em prática. E quem era Anchieta, então? Nin- guém sabe. Nem ele mesmo, que nós desconhecemos. Se não sabemos quem somos nós, nem quem é o próximo com quem convivemos, como saber o que era ele? Em que coisa foi transformado? No histórico? Mas o histórico não é o real. O real é o impossível de todos os momentos e espaços e tempos justa- postos numa observação onipresente. Se o real fosse possível, qualquer coisa seria a mesma coisa para a onipresença, na variante renata. Há uma resistência ao tempo que a maturidade ensina. E ha- verá o mesmo espaço? Pois não é da matéria do século XX destruído que se construirá o século XXI futuro? E quanto ficará de real na memória? Era uma Outra, a História, tão impossível e inal- cançável quanto tocar as estrelas de uma só vez. E se a lenda soa melhor do que a história, imprima-se a lenda e esqueça-se a história. Sim, a história, pois a verdade é irresgatável a priori. Qualquer coisa é a mes- ma coisa. E quem me- lhor invencionar, melhor inven- cionado ficará. >

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Page 1: O QUE ERA ANCHIETA? - ijsn.es.gov.br · ticas, introduziu coreografia, canto e ... construirá o século XXI futuro? E quanto ficará de real na memória? Era uma Outra, a História,

4PensarA GAZETAVITÓRIA,SÁBADO,1º DE JUNHODE 2013

Beatificado pelo papa João Paulo II, o padre José de Anchieta – o “Pai do Brasil” – tem suaimagem reconstruída em análise de historiador e psicólogo

letras

O QUE ERAANCHIETA?

Anchieta não era o santohumanista que desejariamo fosse, mas fez milagresde poeta perpetrados pelabeleza de seus versos, ar-ma mágica.

Anchieta, por ter sido transformadoem metáfora sobrenatural, não era ohomem que nasceu em San Cristobal dela Laguna, ilha de Tenerife, arquipélagoespanhol das Canárias, em 19 de marçode 1534, nem o que morreu em Reritiba,hoje Anchieta (ES), em 9 de junho de1597. Magos, boatos e lendas não têmcomeço nem fim. Meio ou meios, sim.Teria sido ele Merlim?

Anchieta não era, mesmo sendo, oque houve no meio: poeta adolescenteque chegou ao Brasil aos l9 anos detuberculose em busca da cura do pa-raíso tropical. Pois a mão divina já ohavia curado antes mesmo de adoecer.Os nativos não foram abençoados comessa sorte: por não terem anticorposcontra doenças inofensivas para oseuropeus, morriam aos milhares dedoenças transmitidas por eles.

Anchieta não era o mago Merlim queinvocou prodígios e rogou maldições naluta contra os franceses e os aborígines.E, de tanto se saber desumano, ofe-receu-se para permanecer como refémdos tamoios em Iperoig, ali ficando aplantar milagres até que foi conseguida apaz entre portugueses e silvícolas. Paramaior encanto de todos, enquanto preso,criou do nada “De Beata Virgine deiMatre Maria” (“Da Meata Virgem MariaMãe de Deus”). Conhecido como o "poe-ma à virgem", sua obra-primorosa narraa vida de Maria, mãe de Jesus, em 5.786versos. Sem papel para si, escreveu-o nasareias da praia e o memorizou graças asortilégios mnêmicos.

Anchieta não era um defensor dosíndios e, em “De Gestis Mendi de Saa”,narra os feitos de Mem de Sá, louvandoo assassinato das tribos inimigas, adestruição de aldeias e a devastação deplantações. Seus versos demonstram edocumentam a participação jesuíticana elaboração de uma ideologia jus-tificadora e apologética do extermíniodos aborígines e dos objetivos do pro-jeto colonial português.

Anchieta não era o “língua” benévolode que falamos. Melhor seria se o cha-mássemos de domador de idiomas. Es-colhidas como um dos principais pontos

de ataque, os inúmeros dialetos indígenasforam substituídos por uma só “línguageral”, baseada no tupi, que foi reduzido aregras explicitadas na “Arte de Gramáticada Língua Mais Usada na Costa do Brasil”,publicada em 1595, de sua autoria. Agramaticalização do tupi se constituiu, defato, em um aprisionamento da liber-dadedeexpressão linguísticanativaemcódigos opressores que os jesuítas seencarregaram de impor até mesmoàs tribos que não empregavam otupi. Comeu-se da árvore do bem edo mal e começou a haver o certo eo errado. Bem-sucedidos na im-posição de uma só língua geral, otrabalho de dissolução culturalpôde prosseguir com facilidade.

Anchieta era o destruidor dedeus e o apologista de falsosmitos. Porque o verdadeiro deusdo gentio era Jurupari, aindahoje uma entidade encontrávelnos terreiros da umbanda bra-sileira. Os pajés, abominadospelos jesuítas, eram intermediá-rios entre Jurupari e os homens— e não entre Tupã e os homens.

Compreendemos, então, as dozepeças de Anchieta, oito das quaisestrearam e se passam no EspíritoSanto. São autos de circunstância —inspirados formalmente em Gil Vi-cente e, contextualmente, nos cos-tumes indígenas — a serviço de umteatro popular com finalidades ca-tequéticas. Embalados pela ideologiacontrarreformista, seu objetivo eraimpressionar e deslumbrar sensorial-mente o público por meio do texto edos truques da montagem, trans-formada em um grandioso show emque se empreendia a crítica dos cos-tumes indígenas e a apologia davitória dos valores cristãos.

O brilhantismo de Anchieta logodeve ter percebido o gosto indígenapelo canto, pela dança, pela festa epela música. Como forma de atrair ogentio para as encenações catequé-ticas, introduziu coreografia, canto emúsica em seus textos, propositada-mente estruturados de modo a pa-recerem familiares aos nativos. Umavez levados ao local da mon-tagem, porém, os costu-mes dos aborígines setransformavam ematos que, pratica-

dos pelos diabos da peça, eram ve-ementemente condenados. Paralelamen-te, os mitos indígenas não desejáveiseram convertidos em personagens de-moníacos, destino que se reservava tam-bém para os invasores franceses e para ossilvícolas hostis aos portugueses.

Anchieta não era o dramaturgo, odiretor e o ator de seu eu que destruiuna lavagem cerebral dos “exercíciosespirituais” inacianos. Apesar disso,foi o pai do teatro brasileiro.

Anchieta não é o vazio do homementerrado no Palácio Anchieta. O destinode seu corpo foi o de ser esquartejadopela eternidade até o pó do esqueletoalcançar a paz da ausência.

Ele não era o santo humanista que aideologia construiu. Toda sua obra seinsere numa estética pré-barroca, nas-cida da contrarreforma, cuja funçãomaior é infundir o temor a Deus, pormeio de uma técnica que encanta hip-noticamente os sentidos e faz calar aracionalidade. O amor surge do temor eos inimigos da Igreja serão mortos ou navida terrena ou pelas chamas do inferno.Jamais o gesto belíssimo de oferecer aoutra face, pregado pelo verdadeiro Cris-to, é posto em prática.

E quem era Anchieta, então? Nin-guém sabe. Nem ele mesmo, que nósdesconhecemos. Se não sabemos quemsomos nós, nem quem é o próximo comquem convivemos, como saber o que eraele? Em que coisa foi transformado? Nohistórico? Mas o histórico não é o real.

O real é o impossível de todos osmomentos e espaços e tempos justa-postos numa observação onipresente. Seo real fosse possível, qualquer coisa seriaa mesma coisa para a onipresença, navariante renata. Há uma resistência aotempo que a maturidade ensina. E ha-verá o mesmo espaço? Pois não é damatéria do século XX destruído que seconstruirá o século XXI futuro? E quantoficará de real na memória? Era umaOutra, a História, tão impossível e inal-cançável quanto tocar as estrelas de umasó vez. E se a lenda soa melhor do que ahistória, imprima-se a lenda e esqueça-se

a história. Sim, a história, pois averdade é irresgatável a priori.

Qualquer coisa é a mes-ma coisa. E quem me-

lhor invencionar,melhor inven-cionado ficará. >

Documento:AG01CP004;Página:1;Formato:(274.11 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:30 de May de 2013 18:19:22

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5PensarA GAZETA

VITÓRIA,SÁBADO,

1º DE JUNHODE 2013

por OSCAR GAMA FILHO

FOTOS: REPRODUÇÃO

O “Apóstolo do Brasil”, um dos fundadores de São Paulo, veio para o Brasilparticipar do extermínio cultural indígena a que deram o nome de evangelização

Daí que ele não era quem, e simque.

Não um santo: uma máquina desantificar.

Não um escritor: uma obra.Não um dramaturgo ou encenador:

uma peça vista por bobos sábios cientesde que não significa nada. E, portanto,peça fundamental da máquina da ideo-logia que o converteu em demiurgo.

Mas nem demiurgo: um milagre quetransforma nossos corações e nos elevaaos céus. Pela beleza que translucidescede seus gestos, não realizados, porémsobreviventes no inconsciente coletivoda nação que o acatou como grande pai

em sua paixão pela mãe-terra brasilis.Pois fomos transformados, no século

XVI que o habitava, em ilha de Vera-Cruz.Na ironia errônea dessas palavras in-sulares, a vera verdade é a cruz que todoslevamos, atlânticos, nos ombros.

Suportamos o mundo.Anchieta foi esculpido para ser o pai

espiritual — como diz o epíteto “Apóstolodo Brasil” — de uma nação inexistente.Que, nesse sentido, dele carecia para com-por seu papel fragmentário no mosaico dademanda social de um “pai da pátria”. Detanto não o ser, acabou sendo.

Voltemos ao momento do parto, donascimento do Estado brasileiro. Tudo fica

claro-sangue e o século XVI incha como oútero de uma mãe-terra prestes a dar à luza um monstro gerado sem a participaçãopaterna. Sim, o Brasil nasce por clonagem,sem o pai que caracteriza o surgimento dequalquer Estado: o povo.

Homem-mor do colonialismo portu-guês no Brasil, José de Anchieta foi umponto por onde todas as retas culturais doséculo XVI não podiam deixar de passar.Nenhum olhar de águia é necessário paraunir seu projeto catequético à guerra ocul-ta, subterrânea e não declarada de tomadado pré-Brasil aos índios. Anchieta tor-nou-se o principal articulador dessa guer-ra,noqueela tevedepsicológica,graçasao

poder de persuasão de suas peças, de suaspalavras e de sua conduta. Herói sim, masdo colonialismo português, não dos índios:“Infeliz do país que precisa de heróis”,alertava Brecht.

Na ausência do povo, pai do Estado,Anchieta foi um dos modelos/moldes deDNA escolhidos para a operação de clo-nagem que, preenchendo essa lacuna,procurou construir o herói-símbolo de suaera: foi um dos “pais da pátria”. Houveoutros. Nenhum como ele.

Anchieta foi o pai do Brasil. Anchietafoi o nosso pai!

Se queremos ser bons édipos,devemos matá-lo imediatamente!

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MARCELO FLORES CLAUDIO GABRIEL

Documento:AG01CP005;Página:1;Formato:(274.11 x 382.06 mm);Chapa:Composto;Data:30 de May de 2013 18:19:18