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O que é a ARMANDO VILAS-BOAS Cultura Visual?

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Armando Vilas-Boas

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  • ARMANDO VILAS-BOAS Professor de Cultura Visual e Design Visual no IADE e investigador da UNIDCOM. doutorado pela Univer-sidade do Porto, com uma tese sobre cultura visual desportiva. As suas reas de investigao so a cultura visual e o design visual. A sua produo escrita tem-se repartido por livros, artigos e comunicaes em congressos. Sobre cultura visual publicou dois livros: A Cultura Visual Desportiva (2006) e O Estudo da Cultura Visual Desportiva (2009).

    Este livro foi inicial-mente pensado como um manual para alu-nos de Mestrado, nomeadamente de Cultura Visual e de Design Visual, mas tentou entretanto evoluir no sentido de poder cativar tambm os profissionais e os estudantes da rea visual, ou simples-mente quem se inte-resse pela temtica da cultura visual contempornea. A obra procura responder pergunta que lhe d ttulo, de um modo simples porm abrangente, com exaustividade suficiente mas no excessiva.

    O que a

    ARMANDO VILAS-BOAS

    O que a Cultura Visual?

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    O VILAS BO

    ASCapa: Armando Vilas-BoasIlustrao: Edgar Rgo Vilas-BoasFotografia do autor: Isabel Rgo

    www.culturavisual.eu Cultura Visual?

  • livro - 19 x 12,7 cm:Layout 1 7/7/12 16:50 Page 1

  • O que a Cultura Visual?

    Armando Vilas-Boas

  • O que a Cultura Visual?

    Armando Vilas-Boas

    Design e paginao do autor

    ImpressoMultitema

    isbn978-972-99876-5-6

    Dep. legal311125/10

    AVB, Porto, 2010

    www.culturavisual.eu

  • Sumrio

    Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5

    A funo da teoria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9Cultura visual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21Visualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34Alfabetos icnicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48Signos alfabticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56Escopolia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60Produo de signicado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67Literacia visual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75Percepo visual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81O olhar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87A mercantilizao da cultura . . . . . . . . . . . . . . . . . 92Corpos falantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101O mito da verdade fotogrca . . . . . . . . . . . . . . . . 116O canto da sereia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120

    Bibliograa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125ndice onomstico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130ndice de guras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

  • Imag

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  • Introduo

    No h muito tempo, o conhecimento era um bemprecioso: no havia disseminao global do conheci-mento atravs da Internet e os mass media, como seu costume, deformavam mais do que informavam.Os livros eram a fonte primordial de aquisio de co-nhecimento especializado, mas os circuitos de distri-buio estavam geralmente pouco oleados e as obraseram muitas vezes onerosas. No nosso pas, por faltade interesse popular as bibliotecas pblicas nuncaforam verdadeiramente fomentadas. Por tudo isto, o acesso ao conhecimento tendia a ser restrito.Mesmo depois da implantao global da Internet, podemos ainda pensar que o acesso informao dequalidade restrito: quem a tem ou a produz tentarentabiliz-la ao mximo. Mas a informao disponi-bilizada gratuitamente j no s a de fraca quali-dade. Com algum risco, pode-se hoje em dia armarque qualquer pessoa alfabetizada e com um mnimode acesso informao (em livro ou na Internet) po-der com relativa facilidade informar-se sobre qual-quer tipo de assunto. O que no implica que, portermos acesso a tanta informao, saibamos o quefazer com ela.

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  • O campo da cultura visual , neste mbito, um poucoparadoxal. Os estudos de cultura visual, sendo umarea que tudo menos nova (noutras realidades queno a portuguesa), carecem ainda de uma expansoque a ubiquidade do seu objecto de estudo justica.Ou seja, se desde que nascemos somos inundados deestmulos visuais, porque que as pessoas no se inte-ressam mais pelo estudo da cultura visual?Tais estudos tendem a restringir-se a uma meia dziade peridicos, de carcter mais ou menos acadmico ede difuso controlada, bem como a umas dezenas delivros (que circulam livremente no mercado). Textosqualitativos foram j escritos sobre o assunto, o quesignica que no escasseia produo literria de bomnvel. Porm, os estudos de cultura visual parecemcontinuar a enfrentar resistncia daqueles que deve-riam ser os mais interessados pela rea: os prossio-nais que produzem diariamente parte substancialdessa mesma cultura.Enquanto investigador e professor na rea da culturavisual, a ideia que tenho a de que pouca gente se in-teressa pela validade dos estudos de cultura visual.Fotgrafos, designers, arquitectos, crticos de arte,realizadores de cinema, publicitrios em suma,toda a gama de pensadores visuais responsvel pelonosso mundo crescentemente visual , parecem no

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  • achar necessria outra sistematizao cultural do fe-nmeno para alm daquela que eles prprios efec-tuam individualmente. No fundo, a atitude geraldestes prossionais quase se resume noo do sensocomum com que muitas vezes me tenho confrontado:se cada pessoa tem o dom da viso, para que serve al-gum sistematizar um fenmeno cuja descodicaoaparece perante os nossos olhos clara como gua?Em certa medida, o senso comum at tem razo. De facto, no se pode ensinar cultura visual a pessoasque colhem uma enormidade de estmulos visuais emcada dia das suas vidas. Mas ainda que no possamosdizer-lhes o que elas vem, podemos sensibiliz-lassobre como ver, guiando-as pela profuso de mensa-gens visuais quotidianas, na tentativa de desenvolverum esprito crtico criterioso, caracterstico de cida-dos plenamente formados. O estudo da cultura vi-sual no ensina, mas conrma. No se adquire sconhecimento, mas antes reconhecimento.Se para qualquer cidado esta uma questo de for-mao cultural, no caso dos prossionais da rea eudiria mesmo que se trata de uma necessidade de con-substanciao cultural: sobreviver no mercado sem-pre possvel, mas uma maturao cultural apuradaser tanto mais ecaz e consistente quanto melhorconseguirmos sistematizar o panorama visual que

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  • nos rodeia. o incio dessa viagem que este livro pre-tende instigar cada um a fazer.As citaes frequentes de outros autores, traduzidaspara portugus e devidamente referenciadas, visamprecisamente indicar fontes alternativas, que comple-mentaro e enriquecero grandemente a abordagem cultura visual, que este livro apenas introduz.

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  • 9A FUNO DA TEORIA

    H muitas justificaes sobretudo no campo dafilosofia para a necessidade de se teorizar. Wal-ker e Chaplin (p. 58) afirmam que em primeirolugar, a teoria crucial e incontornvel, porquesem teorias e hipteses seramos esmagados poruma massa de impresses, por quantidades imen-sas de dados empricos [...] Em segundo lugar, odiscurso verbal e escrito sobre cultura visual con-tm muitos conceitos e termos especializados/tc-nicos que colocam questes de definio, possuemmltiplos significados e tm histrias de uso. Ateorizao algo de cultural e duas culturas distin-tas no formulam necessariamente teorias idnti-cas. Walker e Chaplin entendem que no possvel dispensarmos a teoria, mas que no serpor isso que qualquer teoria serve, referindo quea multidisciplinaridade tpica dos estudos de cul-tura visual implica que muitos acadmicos adop-tem uma atitude eclctica e pragmtica em relaos teorias pedem emprestados conceitos e m-todos de um espectro de disciplinas (p. 60), subli-nhando que as teorias geradas pelos praticantesdevem ser tidas to em linha de conta quanto asoutras, uma vez que, por exemplo em relao

  • arte, no s h teorias sobre a arte, como teoriaspara a arte, arte moldada pela teoria e mesmo teo-rias como arte (p. 62).O objectivo ltimo de toda a pesquisa ser o deaju dar a (melhor) compreender o mundo. O Ho -mem curioso e guerreiro por necessidade, ten -do por conseguinte de entender, dissecar e sepossvel dominar a sua envolvncia. Que haverde mais envolvente do que a visualidade, a mi-rade de estmulos visuais que nos rodeia quoti-dianamente? O objectivo deste livro no poderiaportanto deixar de ser o de ajudar a ver o mundoe entender a forma como o vemos. A ideia queeste livro se revista de interesse para a comuni-dade visual, por via do fornecimento de ferra-mentas de interpretao da cultura visual e dofomento de um mais profundo entendimento doque a cultura visual, atravs da caracterizao eda exemplificao. Um estudo no mbito da cul-tura visual elege tipicamente a sua temtica detrs formas possveis: limitando-se a uma forma ou tipo especfico de

    cultura visual (por exemplo, logtipos); seleccionando os melhores exemplos de uma

    expresso ou suporte artsticos (por exemplo,as obras-primas da pintura);

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  • escolhendo exemplos tpicos ou representativos.Walker e Chaplin afirmam que a questo do sig-nificado da cultura visual [] complexa e proble-mtica [e] extrair significado pode envolver consi-dervel esforo mental e destreza interpretativa(p. 143). Como os autores notam, no entanto, o p-blico no aplica conscientemente os mtodos anal-ticos, sem que no cesse por isso de colher sig ni fi- cados a partir de todos os signos com que con -frontado. O ser humano tem uma profunda neces-sidade de significado e a busca do mesmo cumpreuma funo vital na nossa espcie. A interpretaode signos crucial para o ser humano, e compreen-der a forma como as pessoas os interpretam fun-damental para se estudar a cultura visual formadaa partir dos mesmos. Porm, por vezes (como v-rios autores tm defendido), a obsesso da inter-pretao pode levar a que o intelecto se sobrepo -nha a algo que remete predominantemente para aafectividade, correndo-se o risco de assim turvar-mos a nossa sensibilidade.Por uma questo de sistematizao, necessriopossuir-se uma estratgia de abordagem ao as-sunto da cultura visual. Da que tenham sido de-senvolvidas vrias modalidades de anlise, pelostericos da cultura visual, algumas das quais se

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  • centram na estrutura interna dos artefactos cultu-rais, enquanto outras so comparativas, colocandofrente a frente espcimes de teor similar. As mo-dalidades de anlise podem ser divididas em doisgneros estruturantes: as que se centram no contedo; as que se centram na forma.Existem duas fontes principais de contedo: even-tos, cenas e pessoas reais (contedos factuais) econtedos produzidos pela imaginao humana(contedos ficcionais). A mistura dos dois, nosendo integralmente real, ter de ser consideradaao nvel da fico. Esta bipolarizao , desde sem-pre, controversa, mas tem a virtude de catalogartodo o tipo de imagens.Vrios analistas distinguem entre contedo mani-festo e contedo latente. O primeiro refere-se re-presentao de objectos facilmente reconhec-veis, enqu an to o segundo designa os significadosmenos imediatos que um objecto possa espoletar.So, no fundo, a denotao (percepo literal, deprimeira ordem) e a conotao (percepo associa-tiva, de segunda ordem). Vejamos, de seguida, as modalidades de anlise deartefactos visuais mais utilizadas:

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  • a) anlise de contedo: operao quantitativa queenvolve medida e contagem (procedimentoemprico e quase cientfico, implantado porexemplo na anlise dos mass media). Os resulta-dos deste processo so unidades contveis,identificveis, que outros investigadorespodem usar para verificar a validade das conclu-ses. Os resultados da anlise de contedo con-firmam frequentemente a intuio, mas paraFiske so objectos, precisos e verificveis, po-dendo revelar contrastes entre a representaonos media e a realidade;

    b) iconografia e iconologia: a escrita das imagens e a cincia das imagens (a primeira descritiva eclassificativa e a segunda interpretativa). En-quanto a iconografia baseia o seu funcionamen -to nos moldes mais ou menos pragmticos quepodemos conferir no diagrama da pgina 14, aiconologia consiste na descoberta e interpreta-o dos valores simblicos contidos nas ima-gens (sejam eles intencionalidade do autor ouno), recorrendo a vrias disciplinas para a com-preenso do significado e funo social que ossignos visuais tinham para o pblico na alturaem que foram produzidos. Walker & Chaplin(pp. 131132) baseiam-se nas teorias de Panof -

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  • Estruturao da anlise iconogrfica (Panofsky, adaptado por Walker e Chaplin,

    pp. 131132 diagrama do autor).

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  • sky para caracterizar a anlise iconogrfica (verdiagrama na pgina esquerda);

    c) anlise de gnero e tipo: agrupamento de artefac-tos visuais de acordo com certos elementos ico-nogrficos, temas e convenes estilsticas, capazde providenciar um contexto dentro do qual asimagens possam ser entendidas e comparadas. Osgneros ocorrem em muitas modalidades de pro-duo visual, como a pintura (retrato, paisagem,etc.), o cinema (musical, comdia, etc.);

    d) anlise de forma e estilo: baseia-se no estudo dascaractersticas formais dos artefactos culturais(materiais, cores, iluminao, estrutura, textu-ras, composio, etc.), pressupondo que o con-tedo ou o conceito criativo determinam aforma, e que a mesma evolutiva em conse-quncia de mutaes sociais e/ou tecnolgicas.Esta abordagem assume tambm que h valo-res que interpretamos, nas imagens, que so di-rectamente derivados de realidades do meca-nismo de percepo visual. A anlise de estiloencara este conceito muito complexo comosendo um conjunto de caractersticas formais,uma combinao especfica de forma e con-tedo, ou ainda uma fora espiritual (os estilospodem ser ideologias visuais);

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  • e) semitica: tem uma abrangncia mais ampla doque outras formas de anlise, na medida emque estuda a vida de todos os signos visuais nasociedade, assumindo que qualquer processocomunicacional ou experincia de significadoenvolve signos. Consequentemente, a pesquisasemitica aborda fenmenos to dsparesquanto gestos e expresses faciais, vesturio,diagramas, banda desenhada, fotografia, cine-ma, arquitectura, etc.

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    Sinais para WC. Exerccios acadmicos de PedroAfonso, Raquel Neves, Isabel Alcobia, Ana Paquete,

    Joaquina Faisco e Elsa Incio, respectivamente (2010).

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    Os signos so os elementos signicantes estrutu-rantes na comunicao visual. Na denio dePeirce, um signo qualquer coisa que substituialgo, sob qualquer relao ou a qualquer ttulo;na acepo de Humberto Eco, tudo um signo.Para Foucault, um signo um elemento cultural,porque no interior do conhecimento que osigno comear a signicar (1991, pp. 113114).Se um semforo ou um sinal de trnsito so signosrotineiros no nosso quotidiano, tambm um pl-tano ou uma rosa podero s-lo. Quando falamos designos no nos referimos s queles criados peloHomem, mas tambm aos que a Natureza gerou,porque todos possuem uma carga signicante. Ossignos naturais podero estar arredados da vivnciaurbana, mas hoje em dia a maioria das pessoas reco-nhece, por exemplo, o signo como signicandoplay (tocar, arrancar, accionar, desencadear, acti-var, etc.), fruto da convivncia com o mesmo, de-vido sua estandardizao e proliferao.Este um exemplo de um signo pragmtico, massignos h que se ligam directamente a atitudesideolgicas. Martine Joly dene os tipos de sinaiscom que somos confrontados e a forma como osinterpretamos, no diagrama seguinte:

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  • Joly prope uma tripartio do signo (2005, p. 46)em signicado (o conceito), signicante (a face ma-terial e perceptvel) e referente (a realidade psqui-ca ou conceptual). Para a autora, esta classicao extremamente clebre, ainda que cheia de im-perfeies [mas] continua contudo a ser muitotil para a anlise e melhor compreenso do im-pacto de certas imagens, na condio de no seraplicada cegamente.Quanto classicao de signos, e tomando comomodelo a proposta de Peirce, vastamente aceite,vejamos a descrio dos trs conceitos: cone: relao de similaridade entre o signifi-

    cante e o referente (por exemplo, um retrato dealgum em que as feies dessa pessoa sejamrepresentadas tal e qual como so), no queMollerup define como uma relao de seme-lhana (p. 85);

    ndice: relao de causalidade e contiguidade f-sica com o que representa (por exemplo, pegadasna areia, indiciando a passagem de algum pelolocal); Mollerup chama-lhe relao fsica (idem);

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    Intencionalidade e produo de significado dos si-nais (Joly, 2005, pp. 3940). Diagrama do autor.

  • smbolo: relao arbitrria e convencional (porexemplo, a bandeira de um pas, que se compede formas que por si ss no representam nemindiciam).

    Exemplos de tipos de signos: um cone (retrato tipopasse), um ndice (pegadas na areia) e um smbolo

    (a bandeira de Portugal). Arquivo do autor.

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    CULTURA VISUAL

    Importa clarificar a abrangncia do conceito cul-tura, no mbito deste livro. Sturken & Cartwright(p. 4) definem cultura como um processo, noum conjunto fixo de prticas ou interpretaes[...] um processo fludo e interactivo fundadoem prticas sociais, no somente em imagens,textos ou interpretaes. Esta definio no pa-rece compadecer-se com estratificaes rgidas denveis culturais, no que concordam com Lupton & Abbott Miller (p. 157), que afirmam que Nopodemos simplesmente traar uma linha entrebaixa e alta, ou entre o interior e o exterior da cul-tura, ou entre as experincias pblicas e privadasdos mass media. Baixa e alta um padro, umaconcha conceptual, cujo valor se desloca de situa-o para situao. O que alta num contexto baixa noutro.A globalizao cultural uma das caractersticasdo tempo presente, ainda que no seja uma novi-dade, como refere Alexandre Melo, que carac terizao processo de globalizao cultural como umatendncia notria da evoluo em curso e no [...]uma situao final, fechada e totalizada (p. 38).

  • O autor acrescenta que A dinmica da globaliza-o cultural produz, ao mesmo tempo, mais uni-formidade e mais diversidade (p. 42), explicando:A globalizao no um processo de supressodas diferenas segmentao, hierarquizao mas sim de reproduo, reestruturao e sobrede-terminao dessas mesmas diferenas. um pro-cesso dplice de simultnea revelao/anulaode diferenas, diferenciao/homogeneizao edemocratizao/hegemonizao cultural (p. 39).Miguel Furones, Worldwide Chief Creative Officerda Leo Burnett, acredita que estejamos na terceiragerao da globalizao (sendo a primeira tecnol-gica e a segunda econmica): a globalizao dos sen-timentos e das emoes, afirmando que A emoofoi convertida num vrus que navega atravs darede (Pincas & Loiseau, p. 313).Outra marca cultural da contemporaneidade a es-teticizao, que Bragana de Miranda (p. 202) definecomo a transformao do mundo em imagem, emaparelho produtor de imagens, que visam um enfor-mar total da matria numa imagem total. Mario Perniola (p. 32) caracteriza a sociedade ac-tual como sociedade do sentir, afirmando que daque a nossa poca pode ser definida como esttica:no por ter uma relao privilegiada e directa

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  • com as artes, mas mais essencialmente porque oseu campo estratgico no o cognitivo, nem oprtico, mas o do sentir, o da aisthesis (p. 11).Assim, o autor considera que o sentir antes repri-mido pela tica burocrtica, que o suspendia (p. 50), tornou vo o primado da actividade inte-lectual (p. 99). Para Perniola, o pensar converteu--se em sentir, tornando-se este ltimo quase numpoder (p. 16). Mas este sentir , segundo o autor,um sentir em segunda mo: os objectos, as pes-soas, os acontecimentos apresentam-se como algoj sentido, que vem ocupar-nos com uma tonali-dade sensorial, emotiva, espiritual j determi-nada (p. 12). Este fenmeno assim caracteri za- do: como se a experincia do sentir em pri mei- ra instncia fosse deslocada para fora de ns, paraaquilo que reflectimos, tacteamos, ecoamos, en-quanto para ns estaria reservado um sentir subs-tituto e que vem a seguir, reflexo, retoque e eco doprimeiro (p. 20).Falar-se de cultura visual no , no entanto, elabo-rar sobre um conceito imediatamente perceptvelou sequer consensual na sua acepo. O nazi Her-mann Gring dizia, nos anos 1930, que assim queouvia algum falar de cultura pegava logo no seurevlver. Barbara Kruger anunciava num dos seus

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  • trabalhos de stira cultural dos anos 1980, quesempre que ouvia a palavra cultura pegava no seulivro de cheques.Gring parecia interpretar a cultura como umempecilho, algo capaz de estorvar os desgniosmais elevados do pragmatismo. O que Gring fin-gia no saber que a noo de sociedade na qualas actividades produtivas so essenciais e a produ-o cultural dispensvel (por eventualmente nogerar retorno financeiro) est desactualizada (e jo estava nos anos 1930): a produo cultural uma indstria de direito prprio, sendo no s ge-radora de riqueza como cada vez mais responsvelpor moldar paradigmas vivenciais ou estticosque influenciam eles prprios o mundo produ-tivo, condicionando a sua actividade e talhandoo seu rumo.Ainda que os produtores de objectos possam deter-minar os hbitos dos consumidores, h um desviocrescente do poder para o lado do consumidor,cada vez mais empossado no livre arbtrio das suasescolhas, muitas vezes baseado em factores estti-cos. A cultura algo que nos intrnseco e no umcasaco que vestimos e tiramos e o mundo eco-nmico sabe disso.

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  • O desejo de visualizar fundamental na maneiracomo pensamos e vivenciamos (Walker e Cha-plin, p. 208). Sturken & Cartwright (pp. 23), afir-mam que Os estudos culturais, no campo inter-disciplinar que emergiu no final dos anos 1970,tm oferecido muitas formas de pensar sobre o es-tudo, quer da cultura popular quer do aparente-mente uso mundano das imagens nas nossas vidasdirias. Um dos objectivos dos estudos culturais fornecer aos observadores, cidados e consumido-res, as ferramentas para obterem um melhor en-tendimento de como os meios visuais nos ajudama compreender a nossa sociedade.No incio da dcada de 1970 gerou-se um interessecrescente pelo que veio a chamar-se cultura visual.Desde logo, foram abertas linhas de investigaoum pouco por Frana e Inglaterra, ao que se seguiurapidamente a integrao dos estudos de culturavisual nos currculos universitrios, o que veio aoriginar a criao de cursos de cultura visual. Osintuitos dos estudos de cultura visual ficaram defi-nidos desde o incio: nas palavras de W.J.T. Mitchel,o objectivo de um curso de cultura visual [...]seria fornecer aos alunos um conjunto de ferra-mentas crticas para a investigao da visualidadehumana, e no transmitir um conjunto espe cfico

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  • de informaes e valores (citado por Walker eChaplin, p. 1).Os estudos em cultura visual autonomizaram-sedos estudos culturais em geral, bem como dos es-tudos dos media, em face da sua especificidade, aqual foi tornada numa evidncia pela crescente visualidade da civilizao contempornea. A con-cepo de cultura visual parte da constatao quediferentes formas de comunicao partilham carac-tersticas comuns. Por exemplo, um filme e um ro-mance podem partilhar o mesmo enredo (muitasvezes o primeiro criado a partir do segundo), masse contarmos o enredo a algum o qual pode serexactamente igual em ambos os casos , essa pes-soa no saber atravs de que forma essa histriachegou ao nosso conhecimento, se pela forma es-crita da literatura ou audiovisual do cinema.A partir de um certo ponto, os tericos da comuni-cao e da cultura aperceberam-se de que uma his-tria tudo menos igual quando transmitida emdiferentes media. No caso vertente, as caractersti-cas audiovisuais do filme so sobremaneira impor-tantes: ainda que as possamos ter imaginado ao lero romance, agora estamos perante elas, e essa pre-sena introduz uma variedade de factores naequao interpretativa. Teremos tambm de ter

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  • em considerao que toda a matria escrita, paraalm da imagem mental que dela criamos, possuitambm uma imagem material quando a lemos nopapel ou no ecr.Como dizem Walker e Chaplin, a cultura visual agora to importante em termos de economia, ne-gcios e nova tecnologia, e uma parte to vital daexperincia diria de todos, que tanto os produto-res quanto os consumidores beneficiariam em es-tud-la de forma objectiva (p. 3). De facto, osestudos em cultura visual cresceram assim que assimilaram a cultura de massas, o que tevecomo consequncias: a componente visual dos mass media passou a

    merecer um estudo srio e sistematizado; o carcter nico das artes passou a ser relativi-

    zado, porque os tericos assinalavam que todasas formas de cultura visual, mesmo as maisvernaculares possuem caractersticas estti-cas, e assim as fronteiras e interdependnciasentre as belas artes e os mass media, junto comos seus valores comparativos, tornaram-se ob-jecto de pesquisa e reflexo terica.

    Prossegui at agora a definio estereotipada decultura, que vulgarmente se refere ao universodas actividades ditas culturais. Esse tipo de cul-

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  • tura foi outrora sinal distintivo de uma classe pen-sadora privilegiada, mas actualmente o termocultura passou a ser empregue englobando qual-quer faceta da vida quotidiana que se relacionecom um determinado contexto social, tornando--se assim um conceito inclusivo que ajuda a expli-car e caracterizar as mudanas contemporneas.Mesmo aceitando a cultura como uma caracters-tica transversal a toda a sociedade, persiste aindaassim a distino, na literatura ou no senso co -mum, entre vrios nveis de cultura.Bourdieu afirma que as diversas classes sociais defi-nem outros tantos nveis de gosto, e que a fruioda arte se origina na vontade das classes mais eleva-das de marcarem a distncia em relao aos nveisinferiores. Walker e Chaplin (p. 157) esclarecemque o apreo pela arte moderna tende a ser limitado elite intelectual e que o gosto popular se regeainda por ideais renascentistas.Evidentemente que se trata de uma formulaoglobal que, como os autores admitem, rude e nofaz justia complexidade da sociedade contem-pornea. lacunar, no entanto, devido a ignorar asculturas alternativas, a vanguarda, a contracul-tura, por ser esttica, por estratificar as pessoas deacordo com o seu estatuto social e no com as suas

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  • preferncias, por no tomar em conta a despropor-cionalidade mutvel entre as classes, para alm deoutros factores.Esta estratificao anterior ignora a questo dastransferncias entre nveis culturais (pressupon-do que estes existem). Assim, como justificar a eu-foria colectiva que rodeou a campanha da selecoportuguesa de futebol no Euro 2008, a qual, emcerta medida, se havia verificado j dois anosantes, no Mundial da Alemanha e, em 2004, noEuro portugus? A mobilizao social em torno doEuro 2008 foi enorme. De tal forma a insistnciada imprensa e da mquina publicitria se fez sen-tir, que mesmo quem no se interessava peloevento teve de ficar a conhecer o perfil dos nossosheris, o resultado dos jogos e todos os porme-nores dos bastidores da competio.Estas manifestaes de baixa cultura tornam-seapetecveis, pela sua amplitude, para os estudos decultura visual. O alargamento do espectro que estesacontecimentos proporcionam, em relao altacultura habitualmente estudada e analisada nopassado, imenso e culturalmente revelador. Estanoo expandida de cultura gera um campo de an-lise to vasto que nenhum estudioso consegueabarc-lo sozinho. Da o surgimento de ramifica-

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  • 30

    es que se debruam particularmente sobre fen-menos especficos, como lentamente vo surgindo.Mathew Rampley define a cultura visual como o conjunto de ideias, crenas e usos de uma socie-dade e as formas como lhes dada expresso vi-sual (p. 12). Walker e Chaplin definem, grossomodo, a cultura visual como aqueles artefactosmateriais, edifcios e imagens, mais os media tem-porais e as performances, produzidos pelo labor eimaginao humanos, que servem fins estticos,simblicos, rituais ou ideolgico-polticos, e/oufunes prticas, e que se dirigem ao sentido daviso numa medida relevante (p. 3). Sendo, comoos prprios indicam, uma definio preliminar, um ponto de partida para comearmos a moldaruma percepo desta rea do saber. Os mesmos au-tores fornecem-nos uma listagem exaustiva dasdisciplinas que contribuem para o estudo da cul-tura visual, no esquema da pgina ao lado.Sendo a cultura visual um fenmeno simultanea-mente endgeno e exgeno em relao ao ser hu-mano, deveremos estud-la tendo em conta a suaexistncia material (fora de ns) bem como o seuimpacto ptico, cognitivo e emocional (dentro dens). Em relao existncia material, consubs-tanciada nos artefactos culturais que so a mat-

  • AntropologiaArqueologiaCrtica de ArteCrtica LiterriaDesconstruoEconomia PolticaEstticaEstruturalismoEstudos CulturaisEstudos do PatrimnioEstudo dos MediaEstudos tnicosEstudos FotogrficosEstudos e Teoria do CinemaFeminismoFenomenologiaFilosofiaFormalismo RussoHistria e Teoria da ArquitecturaHistria da ArteHistria do DesignHistria SocialLingusticaMarxismoPsicanlisePsicologia da PercepoPs-EstruturalismoSemiticaSociologiaTeoria CrticaTeoria da Recepo

    Objecto decontemplao

    Objecto deestudo

    ESTUDOS DECULTURA VISUAL

    reas que contribuem para os estudos de cultura visual.Diagrama adaptado de Walker & Chaplin (p. 3).

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    ria-prima da cultura visual (sendo um desses arte-factos o corpo humano), Walker e Chaplin (p. 65)entendem que a cultura visual se integra nocampo mais vasto da produo cultural, o qual porseu turno integra um campo de fabricao geral,associado a uma forma particular e histrica deproduo: a forma capitalista.Cada retrato que se faa desta rea do conheci-mento ser sempre caduco. Na figura da pgina aolado podemos observar a constituio do campo dacultura visual, segundo Walker e Chaplin. Os auto-res ressalvam que um diagrama mostrando o es-tado da cultura visual na Europa em 1500 incluiria,evidentemente, muito menos itens (p. 31).Pela heresia que parecia configurar contra a cul-tura verbal, a cultura visual foi desde logo atacadapor defensores da literatura, sobretudo em pasesde crtica fcil, como a Frana e a Inglaterra. Pas-sado o impacto inicial, e assimilada que foi a im-portncia dos estudos de cultura visual na desco-dificao da profuso de estmulos visuais comque a nossa sociedade nos confronta, a disciplinacomeou a assumir a sua vertente mais social epopular, secundarizando a importncia confe-rida s artes visuais e alargando o espectro das suas preocupaes histria social da arte, dos

  • O campo da cultura visual, segundo Walker & Chaplin (p. 33).

    negcios e do comrcio em geral. Os factores eco-nmicos, sociais e institucionais tornaram-se tan-to mais relevantes para o estudo da cultura visualquanto mais crescia o seu impacto colectivo, sen-do pilares no s da formao da contemporanei-dade como tambm da compreenso da mesma.

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  • VISUALIDADE

    A tendncia para uma comunicao cada vez maisbaseada nas imagens (fotogrficas) faz-se sentiracutilantemente na publicidade. Jonathan Cranin(Wiedemann, 2005, p. 262) confirma que As re-vistas esto cheias de anncios de poucas palavrase grandes imagens e explica porqu: possvelque as imagens no captem as emoes to bemquanto as palavras, mas certo que o fazem maisrapidamente. Assim, medida que a publicidade setornou mais emocional tambm a imagem aumen-tou a sua importncia. O director criativo mun-dial da McCann vai mais longe e atribui s imagensum papel fundamental: o facto de a publicidadeimpressa depender cada vez mais de imagens arro-jadas ajudou a cimentar a importncia das imagens[] Os leitores passaram a contar com afirmaesvisuais nos seus anncios (ibidem). Mas h tam-bm quem desconsidere as imagens: o director decriatividade da Euro rscg de Londres, Gerry Moira, peremptrio ao classificar o uso de imagens comochamariz sem contedo: no fundo, no mais doque uma estratgia tipo tiro e queda, uma espciede grafito comercial (ibidem, p. 378), acrescentan-do que a esmagadora maioria da publicidade temfalta de qualidade.

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    Factores convergentes como a globalizao, a in-tensificao das deslocaes internacionais e ofortalecimento das regras de segurana, tmvindo progressivamente a implementar uma lin-guagem sinalizadora de cunho pictogrfico. Essalinguagem icnica tem caminhado no sentido dese autonomizar da linguagem verbal, o que pos-svel graas ao aumento da cultura visual dos ci-dados. A capacidade de descodificar pictogramas hoje estimulada desde tenra idade. Paralelamenteaos processos de estandardizao e divulgaodeste tipo de linguagem visual, a proliferao tec-nolgica e o natural apelo humano pela imagemtm-nos conduzido a uma civilizao que cultivaas imagens por vezes quase como forma de estarna vida.A tendncia de afirmao da imagem como lingua-gem alternativa (e talvez progressivamente domi-nante) subscrita por vrios autores. Philip Meggs peremptrio: Num revs histrico relevante, otexto torna-se frequentemente numa mensagemde suporte para conotar e avivar a imagem (p. 41).James Elkins considera que chegada a altura deconsiderar a possibilidade de a literacia poder seratingida atravs das imagens, tal como atravs dotexto e dos nmeros (2008, pp. 45).

  • David Crow examinou a evoluo de uma culturaletrada para uma cultura iconogrfica. O autor de-fende que o processamento da linguagem verbal feito no lado esquerdo do crebro (mais linear e ra-cional, tipicamente masculino), enquanto o dalinguagem visual levado a cabo no lado direito(no linear, emotivo, tipicamente feminino). Oautor considera a cultura visual como sendo umdomnio eminentemente feminino e advoga que aliteracia subjuga as mulheres aos homens desdeque o alfabeto foi criado (p. 17).Crow baseia-se no princpio simplificado de que olado esquerdo do crebro l e o direito v imagens(p. 10). James Elkins (2001) clarifica esta noo, afir-mando que qualquer olhar suficientemente pr-ximo sobre um artefacto visual revela uma mesclade ler e ver, e que a leitura e a viso quotidianas (porexemplo, ler uma pgina e ver imagens na televi-so) no so actos puros e portanto a sua oposiono pode englobar um par binrio. Acrescenta quequalquer acto de leitura se apoia num nmero finitode hbitos e estratgias e estes entram frequente-mente em aco no acto de ver.Crow afirma ainda que A capacidade de as ima-gens comunicarem atravs de fronteiras lingusti-cas oferece um nvel de consistncia difcil de

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  • atingir doutra forma [...] As possibilidades ideol-gicas de uma linguagem pictrica so evidentes(pp. 1920). Admitindo que as novas geraes ad-quiriram j uma forma iconogrfica de comunicar,o autor afirma que O desvio do uso convencionaldo alfabeto como a nossa principal ferramenta decomunicao desafiou muitas das nossas institui-es culturais e aqueles que podemos chamar delanguage makers. Artistas, designers, autores,editores, escolas e universidades, todos tiveram dereformular a sua abordagem linguagem e encon-trar novas formas de falar para uma gerao quetem uma nova forma de ler (p. 19), sustentandoesta sua convico na constatao de que Numcenrio ps-moderno onde o mundo do comrcioe o mundo do design emprestam e trocam ideiasum com o outro, h um indcio evidente de quetudo isto empurra a nossa cultura visual crescen-temente em direco imagem (p. 21).Ellen Lupton (p. 74) desmente que os cones sejamum modo de comunicao mais universal do que otexto, afirmando que estes so fulcrais nos interfa-ces grficos dos computadores mas sublinhando queo texto pode frequentemente constituir uma pistamais especfica e compreensvel do que uma figura(como o prova a sinalizao de trnsito nos eua):

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  • Os cones na realidade no simplificam a traduodo contedo para mltiplas lnguas, porque eles re-querem explicao em mltiplas lnguas. A autoradefende que a quantidade infinita de cones usadosnos ambientes digitais serve mais para reforar aidentidade visual dos produtores do que para permi-tir acessibilidade, realando que: No sculo XX, osdesigners modernos louvaram as imagens comouma linguagem universal, porm na era do cdigoo texto tornou-se um denominador mais comum doque as imagens.Vandendorpe (p. 144) parece concordar: no nosenganemos: a leitura de uma imagem, no verda-deiro sentido do termo, no providenciar umasensao de concluso e de necessidade seno namedida em que ela se exera sobre uma sequncianarrativa ou sobre a relao com uma legenda evo-cativa. Porm, em relao ao futuro, o autordeixa-nos a sua convico: No de todo certoque as prximas geraes, enfrentando ambientesmistos, lero primeiro o texto como ns temos tofrequentemente tendncia a fazer (p. 152).David Crow atesta que a primazia da imagem sob -re o texto se havia iniciado j na dcada de 1950,devido ao acrscimo de cultura visual que tinhasido aportado pela televiso. O autor justifica a

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  • progressiva sintetizao do texto em favor da ima-gem: requer confiana do anunciante no facto dea audincia ter adquirido uma literacia visual quelhe permita dispensar pargrafos de informao(2006, p. 35), advogando que, desta forma, Oanncio no invoca uma deciso racional sobreporque que o observador deveria comprar o pro-duto, mas funciona muito mais volta do desejo(idem), operando atravs do que Scott Lash des-creve como a inverso do espectador no investi-mento relativamente no mediado do seu desejono objecto cultural.Crow entende que a nossa evoluo, no sentido denos basearmos tendencialmente numa linguagemvisual como meio predilecto de comunicao co-munitria, teve origem na televiso. Ele defendeque foi pela aco dos jovens que cresceram com ateleviso que os meios visuais vieram a estabele-cer-se como meios bsicos nos media de consu -mo (p. 35). Tanto assim que mesmo a msica, amais imaterial das artes, no resistiu necessidadede visualizao que os seus fs tinham e a partirdos anos 1970 iniciou-se a produo de videoclips,a qual veio a causar o surgimento da MTV (MusicTelevision). Hoje em dia, consumir msica umfestim visual e os videoclips abundam em muitos

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  • canais televisivos, tendo-se tornado j um meio deexpresso de direito prprio. Para Crow, os desig-ners grficos passaram a assumir um certo nvel deliteracia visual da parte da sua audincia, o quelhes ter dado confiana para comearem a recor-rer a signos abertos.Steven Heller, referindo-se publicidade, definea dcada de 1970 como aquela onde se operou aviragem da primazia da linguagem verbal para aicnica, na comunicao visual. No seu entender,o primado da imagem originou-se na afirmaoda televiso como meio de comunicao (e publi-citrio) por excelncia: conscientemente ouno, o ecr de raios catdicos, e no a pgina im-pressa, tornou-se o novo paradigma do design, e acurta ateno da sua audincia tornou-se a donovo leitor [] a sofisticao tipogrfica estavanum nvel elevado, mas depressa a imprensa setornou uma mistura das sensibilidades editorial eda TV (p. 4).Para o autor (2006, p. 5) esta dcada marcou tam-bm a passagem para uma iconografia de menorrequinte, prejudicada pelo ritmo de sucesso deimagens que a TV impunha, apesar de se manter aprtica da dcada de 1960 de imagens inventivas(frequentemente surreais). O objectivo era, para

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  • Heller, agarrar a ateno fosse por que meiosfosse [] transmitindo uma mensagem positiva(idem).A comunicao visual impressa inspirava-se naiconografia televisiva (nos anos 1970, a arte dosanncios televisivos foi brilhantemente afinada Myerson & Vickers, p. 15), usando enquadra-mentos muito prximos para causar impacto noobservador e nos anos 1970 fotografias de pginainteira enchiam a pgina e os ttulos eram pousa-dos minuciosamente sobre as imagens (Heller,2006, p. 5). Nessa aurora de uma nova prtica co-municacional, Heller insiste que a criatividade es-casseava e que poucos nomes, como George Lois,retiveram suficiente influncia criativa para su-perar o embrutecimento massivo com os produtoscom que lidavam (ibidem).Se olharmos retrospectivamente para a dcada de1970, parece existir um fosso imenso em relao nossa era. Fruto das evolues tcnicas, as ima-gens de ento surgem-nos toscas; consequncia daprogresso cultural, os conceitos e as mensagensparecem-nos quase pueris. A comunicao visualancorava-se ainda bastante nas referncias ver-bais, e muitas vezes a imagem mais no fazia doque ilustrar literalmente o texto ou o slogan.

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  • Para Crow, a partir dessa poca as revistas baseadasna imagem comearam a tornar-se comuns, e asdenominadas revistas de estilo de vida ofere-ciam aos leitores a possibilidade de adoptar umaidentidade guiada pela imagem e ancorada na m-sica, moda, interiores e cinema, tendo a separaoentre contedo editorial e publicidade, bem comoentre economia e cultura, sofrido um esbatimentoprogres sivo (p. 40).Esta evoluo ter vindo a desembocar na sensibi-lidade ps-moderna. Scott Lash defende que esta uma sensibilidade visual, em vez de literria, queno se ocupa de assuntos formais e celebra os signi-ficantes do quotidiano. Crow (p. 45) caracteriza asensibilidade contempornea como sendo icono-grfica (representada pela fotografia) e ope-na sensibilidade modernista, cujos signos eram com-postos por significado, significante e referente. Nasua acepo, o ps-moderno torna o referente nosignificante e atribui-lhe um significado: neste re-gime no h pesquisa de significados ocultos, ne-nhuma razo de ser, s uma imerso no momento.Podemos simplesmente apreciar a sensao deuma resposta esttica experincia. Bragana deMiranda (p. 11) sugere que a sensibilidade ps-mo-derna um abismo, baseada em algumas afec-

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  • es simpticas, nuns hibridismos, e muito plura-lismo. Nada que nos salve, nem que nos leve perdio. Tudo minsculas agitaes que dissimu-lam algo mais essencial.Vimos j que a televiso amplificou grandemente opoder das imagens e, como resultado, a informaoalfabtica foi suplantada por outros tipos de infor-mao simblica e icnica como fora dominante.Tal como a televiso, os designers de hoje reinven-tam o quotidiano e constroem novas relaes a par-tir de amostras do que j existia, usando o softwarepara criar espaos virtuais alucinognicos, cujas re-presentaes hiper-realistas infalveis esbatem afronteira entre a realidade e a fico. Esse poderest agora tambm na mo dos amadores.A prov-lo esto as gravaes de imagens feitas comrecurso a telemveis, que ilustram os telejornaissempre que algo de importante sucede sem que umoperador de cmara profissional esteja no local. Ocidado tornado reprter fica assim empossadopelo poder que a tecnologia lhe confere (a qual cabedentro do bolso). Como Crow refere, A adio deuma cmara ao telemvel tem tido um gigantescoefeito na disponibilidade das imagens. Tem-nosoferecido uma ferramenta para a produo das nos-sas identidades que tem todos os sinais de criativi-

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  • dade mas est impecavelmente embrulhada numacultura de consumo ps-moderna (p. 168).A clivagem em direco s imagens pode ser enten-dida como tendo tido origem em duas fontes intei-ramente diferentes, as quais originaram diferentestipos de imagens, cuja distino jaz nas sensibilida-des subjacentes.Assim temos, por um lado, o legado do modernis-mo, que moldou uma actividade publicitria quenos transmitia mensagens claras e inequvocas,idealmente monossmicas, que se constituamcomo exemplos de linearidade na prtica da leiturade imagens. medida que a indstria publicitriaatingiu a maturidade, cresceu o volume de ima-gens para consumo do pblico e, como a novapercepo do mundo direccionada tanto parauma (maioritariamente fotogrfica) representa-o do mesmo como para a prpria realidade, tor-nmo-nos crescentemente sensveis a questionaro que a realidade (Crow, p. 180). Esta tendnciaanaltica das imagens produzidas pela inspiraomodernista, guiou-nos na necessidade de encon-trar territrio lingustico comum e, assim, contri-buiu para ajudar a moldar o mundo da comunica-o visual tal como o conhecemos, tornando a aldeia global mais vivel.

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  • Por outro lado, temos a imagem sensorial que nos trazida pela abordagem ps-moderna, encarandoa vida como uma rede de significantes. A sua sen-sibilidade advm de uma gerao que sempre co-nheceu a vida com a televiso, o computadorpessoal, a consola de jogos e o telemvel. Eles tes-temunharam uma crescente fluidez entre estastecnologias e reconhecem o ecr, por pequeno queseja, como uma janela na qual o mundo se joga emRGB (Crow, p. 182).A tecnologia digital veio por conseguinte reforara democratizao da cultura, ao mesmo tempoque ajudou a baralhar a nossa noo de realidade,quer porque cada vez mais uma fatia importanteda nossa realidade, quer porque cada vez mais arealidade nos chega atravs da tecnologia (Lash).Tanto assim que h quem defenda, no mundo domarketing, que os noticirios so a nova forma depublicidade, contrariando vozes convictas de quehoje j no possvel enganar-se eficazmente opblico quando este no quer ser enganado (aindaque por vezes a questo resida exactamente emns querermos ser enganados: cada vez menos pa-rece interessar-nos o que verosmil, em prol doque entusiasmante). precisamente esta necessi-dade de lazer e divertimento, essa cultura da cons-

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    tante excitao, que nos leva a privilegiar a emo-o do momento e a aceitar tudo o que seja espec-tacular como vlido.A proliferao de imagens, causada pela democra-tizao dos meios tecnolgicos, molda a culturavisual. Cada indivduo um produtor de imagens,o que tem obrigado artistas e designers a reequa-cionarem o seu papel e a sua abordagem visual.Muitos artistas tm tomado como matria-prima apliade de imagens disponvel. Devemos desen-volver um entendimento histrico e crtico dastecnologias contemporneas. O bombardeamentodirio de material visual efmero poder vir a di-minuir seriamente a nossa capacidade de apreen-so e compreenso e corremos o perigo de perder odeslumbramento esttico. As tecnologias contem-porneas esfumam o encantamento com o quenos rodeia e as pequenas coisas do quotidiano, tor-nando-nos impacientes. A televiso e a publici-dade cada vez mais saturam os nossos sentidos,emitindo vrios tipos de informao em simult-neo. Como consequncia, ou a nossa competnciavisual entra em retrocesso, devido a um esvazia-mento da percepo, ou habituar-nos-emos a pro-cessar fluxos mais rpidos de imagens, tornandoantiquadas formas anteriores de cultura visual.

  • Duna, fotografia do autor: a polissemia e o poder evocativo fazem-nos ignorar a manipulao.

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  • ALFABETOS ICNICOS

    Tm existido diferentes tentativas ocidentais dese estabelecer linguagens visuais (escritas icono-grficas) capazes de eventualmente (ou pretensa-mente) substiturem a escrita alfabtica tal comoa conhecemos. J no sculo XVII, o filsofo Gott-fried Wilhelm von Leibniz sonhou com um siste-ma de escrita em que as imagens pudessem serusadas para descrever todas as comunicaes hu-manas. Apesar de todos os sistemas deste tipo vi-rem a padecer de insuficiente eficcia, a sua abor-dagem torna-se consequente no s pelo que osmesmos revelam da cultura que lhes subjaz, mastambm pelas possibilidades que auguram deefectiva comunicao iconogrfica (atravs daforma como os seus signos so construdos).David Crow mostra-se cptico quanto eficciadestes sistemas: A abordagem lingustica aceite a de que aos pictogramas falta algo e que esse algo o som. Os signos so de facto demasiado abertos.A justificao diz que eles so imprecisos e quelhes falta claridade e detalhe. A sua interpretao deixada sensibilidade e ao passado cultural do lei-tor e consequentemente o seu significado sus-ceptvel de mudar de leitor para leitor (p. 58).

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  • A primeira tentativa de comear a definir umalinguagem iconogrfica, em termos coerentes edevidamente implementados, foi levada a cabopelo austraco Otto Neurath, que em 1941 fundouem Oxford o Isotype (International System of Ty-pographic Picture Education) Institute . O pr-prio nome e a vocao internacional da sua grafiainglesa revelavam bem as intenes de Neurath:mais do que criar uma linguagem autnoma, o fi-lsofo e cientista social vienense pretendia antesde mais promover a educao visual, especial-mente dirigida s crianas e aos pases subdesen-volvidos. Para esse efeito, os designers do Iso ty- pe removeram qualquer referncia s sensibili-dades antigas do ofcio e qualquer trao de dia-lecto cultural individual. Isto reafirmou a demo-cracia e a natureza internacional da sua aborda-gem (Crow, p. 70).O Isotype Institute construiu uma coleco desmbolos de pessoas, locais, objectos e aces queforam usados para enriquecer manuais, cartazes eoutro material educacional. A convico subja-cente era a de que as palavras dividem mas as ima-gens unem: Otto Neurath ofereceu ao mundouma linguagem pictrica que era utpica no seudesejo de abolir hierarquias, as quais so inerentes

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  • ao uso da linguagem escrita e falada. O Isotype eraum antdoto escrita: uma alternativa ou um su-plemento comunicao verbal que iria eviden-ciar os nossos pontos em comum em detrimentodas diferenas (idem, p. 65). Um exemplo expres-sivo pode ser encontrado na figura abaixo.Em termos de composio, o Isotype era um sis-tema linear, seguindo as convenes formais daescrita na maneira como o significado formado.

    Signos para as cin -co raas humanas,segundo o IsotypeInstitute (imagensdo Isotype SocietyArchive, ReadingUniversity, Ingla-terra). Composiode Crow, p. 71.

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    Neurath compreendia a importncia dos signosicnicos e simblicos que estivessem o mais pro-fundamente possvel enraizados na nossa cons-cincia colectiva. Talvez por isso, o Isotyperecorria massivamente a registos fotogrficoscomo base de criao dos seus signos, em conse-quncia da capacidade que a fotografia teria deconstituir um signo sinttico e expressivo. Infeliz-mente, e como consequncia do carcter excessi-vamente figurativo dos signos, a inteno de Neu-rath de que os mesmos no se desactualizassemsaiu gorada: muitos deles esto agora quase imper-ceptveis, quer como consequncia de alteraesformais de vulto nos objectos que lhes deram ori-gem, quer devido alterao dos hbitos e prticassociais que os signos retratam. Esta uma conse-quncia possvel, quando se recorre linguagemvisual como nico meio de comunicao, devidoao facto de a contextualizao (neste caso, crono-lgica) ser uma caracterstica intrnseca, em maiorou menor grau, ao mundo das imagens.Outras mentes se dedicaram a propor sistemas vi-suais alternativos linguagem escrita, como KarlKasier Blitz (Bliss), que criou o BCI (BlissymbolicsCommunication International), tendo chegado aser nomeado para Prmio Nobel da Paz em conse-

  • quncia disso. Adrian Frutiger foi outro autor,ainda que s tenha desenvolvido uma linha depesquisa pessoal nesse sentido, a qual nunca quisimplementar como um sistema autnomo. Noobstante, em 1962 produziu uma srie de xilogra-vuras que publicou sob o ttulo de Genesis, criandoassim uma espcie de sistema universal de escrita.Imediatamente a seguir, Frutiger publicou Parta-ges, uma seleco de 26 xilogravuras que, ao con-trrio da obra anterior, no continha quaisquerpalavras, sendo um conjunto de signos de inter-pretao livre. Muita da nossa vida quotidiana , diz DavidCrow (p. 146), guiada e estruturada atravs douso de pictogramas que funcionam como orienta-es, ordens, avisos, proibies ou instrues.Para tal, de h dcadas para c tem proliferado alinguagem dos pictogramas, signos visuais comforte capacidade de sntese e eventual descodifica-o internacional. A linguagem Isotype, de OttoNeurath, foi para os pictogramas em geral o que ospictogramas de Otl Aicher para os Jogos Olmpicosde Munique, em 1972 (ver figura na pgina 54)foram para os pictogramas desportivos desdeento, estabelecendo cada um no seu campo prin-cpios fundadores que vigoram ainda hoje.

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  • O trabalho do Isotype Institute firmou, de acordocom Crow, um conjunto de princpios orientado-res que continuam a ser a base dos signos indus-triais de hoje (p. 146), como por exemplo os sinaisde trnsito, que so uma linguagem prpria cujosfins so altamente pragmticos. Este sistema designos, definido em 1949 atravs de uma conven-o da Organizao das Naes Unidas, tem umacodificao compreensi vel men te rigorosa.Basta olharmos nossa volta para constatarmosque estamos rodeados de pictogramas. Os nossoscomputadores esto recheados deles. Seja qual foro sistema operativo que possuamos, os pictogra-mas esto abundantemente presentes e so nal-guns casos o mais evidente interface visual narelao com o computador. O mesmo sucede naInternet, onde a rapidez dos processos, a econo-mia de espao e a internacionalizao, levam aque nas pginas abundem pictogramas, muitosdos quais praticamente estandardizados, tantoassim que o que seriam signos ilgicos (um enve-lope para significar correio electrnico, por exem-plo) esto hoje perfeitamente assimilados. Ospictogramas so econmicos, mesmo no sentidoliteral: basta vermos como algumas embalagens esistemas de distribuio de produtos usam picto-

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  • Pictogramas dos Jogos Olmpicos de Munique, criados por Otl Aicher.

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  • gramas para no terem de traduzir uma srie deinstrues ou especificaes em mltiplas ln-guas. O mesmo sucede com uma variedade de m-quinas e aparelhos e, por vezes, at com osrespectivos manuais de instrues (vejam-se osmanuais de montagem da IKEA, por exemplo).At o recrudescimento da linguagem escrita, emformato de notas, atravs das SMS, emprega umanotao icnica: os smileys, caracteres que, alinha-dos de determinada forma desenham expres-ses faciais como sorrisos, piscares de olho,tristeza, etc. De certo modo, esta abordagem ico-nogrfica parece ser a resposta da linguagem pre-dominantemente visual da juventude restriotecnolgica dos telemveis. Atentos a esta reali-dade, os fabricantes rapidamente comearam a in-tegrar na paleta de caracteres dos seus telefonesuma gama de smileys, que dispensam sequer o usode teclas alfanumricas.

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  • SIGNOS ALFABTICOS

    A partir do incio da dcada de 1990, a tecnologiadigital j estava a ser usada por qualquer utilizadorde computadores como forma de expresso pes-soal, e o software de criao e manipulao tipo-grfica inaugurou novas capacidades expressivas.Como afirma Crow, o design tipogrfico tornou--se numa arena para jovens designers se expressa-rem, manipulando o software para produzir mar-cas autogrficas altamente pessoais ou criarconstructos conceptuais de linguagem, de ummodo que devia muito ascenso da imagem e aocrescente interesse na teoria ps-moderna que seseguiu [...] Um novo plano estava a ser formadopara a tipografia atravs da reviso das relaes nocerne da linguagem (pp. 2021).No entanto, havia sido na Inglaterra de finais dosanos 1970 que a tipografia comeara a ser forte-mente questionada na sua aparente rigidez for-mal, sendo atacada e convertida num instru -mento de expressividade pictrica. A responsabili-dade foi do movimento Punk e da nova gerao dedesigners que a iniciou o seu trabalho tipogrfico.O carcter efmero que o Punk veio trazer cultu-ra foi um sopro libertador, e nomes como NevilleBrody, Malcolm Garrett, Peter Saville ou Vaughan

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  • Oliver definiram a as suas tendncias estticas.Na dcada de 1980 gerou-se uma espcie de est-tica industrial, em que os mecanismos de produ-o eram exibidos e claramente evidenciados,sendo a tecnologia explorada de formas inespera-das e nas suas mais variadas vertentes. Com o ad-vento do computador pessoal, perdeu-se o carc-ter manual da construo do texto como imagem,mas ganhou-se uma flexibilidade que permitiuaos designers questionarem a prpria noo de legibilidade, levando-a a extremos ou pura e sim-plesmente ignorando-a, dando primazia a compo-sies tipogrficas de forte cariz imagtico, usandoa tecnologia como instrumento de expresso arts-tica pessoal e arma de arremesso contra a anteriorlgica objectiva do modernismo.Apesar desta revoluo tipogrfica, cujo princpiofundador (apoiado na tecnologia digital) era que-brar as barreiras da materialidade, pretendendoconverter o texto em imagem, o panorama actualfica aqum desse entusiasmo. Aps todo o experi-mentalismo tipogrfico dos anos 1990, que foi ra-pidamente absorvido pelo mainstream (contor -es tipogrficas que desafiavam a conveno, ori-ginadas em media alternativos, tornaram-se rapi-damente cdigos visuais que os marketers usarampara atingir um pblico jovem Heller, 2002,

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  • pp. 206207), vemos hoje proliferar a criao tipo-grfica mais no sentido do rigor tecnicista do queem direco experimentao artstica. H, aindaassim, uma inquestionvel evoluo no trabalhotipogrfico, e a tecnologia digital pesou decisiva-mente nesse desenvolvimento de um discurso ti-pogrfico menos impessoal, mais personalizado:hoje em dia fcil podermos escolher entre cente-nas de famlias de tipos possveis para compormosum livro de texto, tendo cada uma delas no s ex-celentes caractersticas de legibilidade (e flexibili-dade no escalonamento em tamanho), como umavoz prpria e peculiar.O que creio que de algum modo se perdeu (apesarde no se ter desperdiado, porque essa aprendiza-gem foi incorporada na cultura mainstream) foi ouso da tipografia como imagem. Ela subsiste, nomundo globalizado, em nichos como as revistas e ossites de actividades desportivas radicais como osurf, o BTT ou o skating, onde esse tipo de linguagemvisual instigado pelo carcter subversivo das ac-tividades. Genericamente, no entanto, a imagemparece ter ganho ascendente sobre o texto, rele-gando assim um estudo tipogrfico srio mais paraos meios experimentalistas. Em termos de comuni-cao de massas, foi curiosamente tambm nosanos 1990 que anunciantes como a Nike sintetiza-

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  • ram toda a sua comunicao textual ao mximo (por vezes suprimindo-a por completo).

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    Contraste e Manifestao, exerccios tipogrficos aca-dmicos de Rodrigo Feijo e Joo Gama Campos, 2009.

  • ESCOPOFILIA

    O voyeurismo um componente importante nacultura visual de hoje, nomeadamente atravs dafotografia, pelo seu carcter de representaofiel da realidade. O fenmeno Big Brother no de todo novo, na medida em que os seus pressu-postos (espreitar a vida dos outros, ansiando nelaver todos os pecados), se manifestam desde h d-cadas em fenmenos como a existncia dos papa-razzi, ou, mais recentemente, e com uma validadecultural conferida por editoras de prestgio, o fe-nmeno da photo trouve.O termo refere-se recolha de fotografias encon-tradas (de preferncia em stios onde se deposi-tem os escolhos annimos, como contentores delixo), que so seleccionadas para determinada ex-posio ou obra impres sa por comissrios ou edi-tores imbudos de uma determinada carga culturale com interesses conjunturais. Em termos artsti-cos, o pretexto da actividade o de encontrar ima-gens que, totalmente descontextualizadas da suagnese, remetam inequivocamente para a mesma,ou, por oposio, permitam leituras plenamenteabertas. Seja qual for o pressuposto, inevitvel que, no caso de fotografias efectivamente anni-

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  • mas e de autoria alheia, estamos perante uma manifestao de voyeurismo.O voyeurismo o prazer de olhar sem ser visto.Ope-se ao exibicionismo, que o prazer de servisto e confunde-se com a escopofilia, que a von-tade de olhar e o prazer geral de ver. Aumont (p. 57)afirma: Reconhecer o mundo numa imagem[pode] gerar um prazer especfico. indubitavel-mente verdadeiro que uma das razes principaispara o desenvolvimento da arte figurativa, maisou menos naturalista, a satisfao psicolgica de-corrente de reencontrar uma experincia visualnuma imagem, numa forma que simultanea-mente repetvel, condensada e capaz de ser domi-nada. Para Sturken & Cartwright (pp. 7273), ateoria psicanaltica a que melhor explica o prazerque temos em ver imagens, ligando os nossos de-sejos ao nosso mundo visual: podemos ter rela-es intensas com as imagens precisamente porcausa do poder que elas tm tanto de nos dar pra-zer como de nos permitirem articular os nossosdesejos atravs da observao.A etapa infantil denominada de fase do espelho(quando as crianas se apercebem de que so seresautnomos), fornece a base da alienao, que nospermitir entender o grande valor que atribuimos

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  • s imagens, encarando-as como ideais (idem, p. 75).Cada imagem coloca o observador num determi-nado ponto de vista (que poder ser fixo ou mut-vel, consoante o tipo de imagem). Como as ima-gens existem para ser vistas, ou nos so dadas aver, o facto de as observarmos nossa vontade,sem que sejamos observados, contribui para oapelo dos meios visuais. A nossa posio de voyeursde imagens permite-nos relacionarmo-nos com asmesmas de forma muito intensa, colocando-nosnuma posio crtica de superioridade, vendo nelas o que os outros vem e mesmo o que os per-sonagens retratados nas mesmas observam, criti-cando-os vontade sem que sejamos criticados.Esta a seduo, por exemplo, das revistas ditasmasculinas, onde habitualmente proliferammulheres seminuas e atraces tecnolgicas.Neste caso em concreto, a posio em que o obser-vador colocado pelas imagens claramente ori-entada pelo gnero, mas poderia s-lo por uma de-terminada religio, pela gulodice ou pela f numamarca; actividades como a publicidade usam e abu-sam desta abordagem voyeurista, dirigindo o maisinequivocamente a construo de uma determinadaimagem para uma categoria almejada de voyeurs.Em suma, De algo que mediava a nossa relao

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  • com o que nos escapava, a imagem alcana umaontologia absoluta, tudo remetendo para si pr-pria (Bragana de Miranda, p. 165).A viso, sendo o mais valorizado dos nossos senti-dos, reveste-se de uma importncia transversal. A inevitabilidade da visualizao a isso obriga a necessidade que temos, no s de interagir deforma predominantemente visual com tudo o quenos rodeia, como tambm a nossa tendncia paraconsumir imagens onde quer que estejamos: Avida moderna desenrola-se no ecr [...] ver maisimportante do que crer. No uma mera parte davida quotidiana, mas sim a vida quotidiana em simesma (Mirzoeff, p. 17). Alexandre Melo considera que estamos emersosnuma permanente orgia visual, ao ponto de j nonos apercebermos sequer da natureza da matriaque nos rodeia e envolve. A esse respeito sejamosclaros: so imagens. Imagens que so concebidas,produzidas e postas em circulao e que, na din-mica da sua circulao, do forma aos nossos mo-dos de imaginar, conceber, produzir, circular e ser(p. 60). Melo refere ainda que estas matrias-pri-mas so necessrias para vermos a prpria reali-dade em que vivemos, j que no h viso darealidade que possa ser independente da adopo

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  • de um determinado dispositivo de viso (p. 73).Walker & Chaplin (p. 147) consideram o prazercomo uma parte crucial do usufruto da visuali-dade (p. 150): A cultura visual providencia pra-zer esttico e vrios outros tipos de satisfao. Oshumanos no lhe prestariam qualquer ateno,ou sequer a produziriam, se assim no fosse(ocorrendo tambm desprazer quando [porexemplo] encontramos filmes grosseiros e muitomal concebidos).Segundo estes autores, a populao compelida asentir prazer atravs da aco de dois vectores: asindstrias cultural, de lazer e de turismo baseiama sua viabilidade no prazer e, para alm disso, mui-tos trabalhadores no apreciam o seu trabalho, bus-cando por isso satisfao no consumo dos temposde lazer.Para Walker & Chaplin, a mais relevante experin-cia de prazer a colectiva, como a que sucede emeventos desportivos ou concertos de msica Rock.A justificao reside no facto de as emoes seremcontagiantes em situaes colectivas: a sensaode fuso com outros que desejam o mesmo desfe-cho pode ser um escape bem-vindo do confina-mento de si prprio (p. 149).

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  • Questo relevante como se manifesta o prazeresttico. Os autores advogam que Alguns sinais deprazer esttico so fisiolgicos: um arrepio na espi-nha, pele de galinha, plos eriados. H tambmagitao mental, uma sensao de refinado entu-siasmo desencadeada pela convico de estarmosna presena de um artefacto ou performance degrande valor artstico e significado (p. 152).A imagem fotogrfica (fixa ou sequenciada) podetransmitir fielmente o prazer esttico da realidade.A fotografia, enquanto supor te comunicacional, propcia a um dos mais cativantes esquemas de fo-mento do prazer visual: a estranheza ou desfami-liarizao, como lhe chamam Walker & Chaplin(p. 156): medida que vivemos o dia-a-dia omundo nossa volta torna-se muito conhecido;consequentemente, perdemos o nosso olhar ino-cente e sentido de deslumbramento. Os autoresdefendem que a nossa percepo do mundo reno-vada sempre que o vemos sob novos prismas. Aimagem fotogrfica (fixa ou sequenciada), aceitecomo uma representao verdica do que nos ro-deia, tem a capacidade de atrair a nossa curiosidadeao mostrar-nos pontos de vista inusitados. Podetambm adulterar o tempo, dando-nos a conhecer,atravs da acelerao ou desacelerao extremas,

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  • fenmenos fsicos que nos so imperceptveis aolho nu. Para alm de nos proporcionarem umaviso renovada do que nos rodeia, estes processospodem tornar os seus motivos irreconhecveis,criando um lapso temporal entre a percepo e adescodificao dos mesmos e assim estimulando oprazer intelectual do observador. Um exemplo decontraco temporal o cinema, em cujos filmestudo comprimido e intensificado, a vida acele-rada (Walker & Chaplin, p. 157), proporcionandoespectculo, emoo e escapismo.

    Atelier, fotografia do autor sobre a desfamiliarizao.

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  • 67

    PRODUO DE SIGNIFICADO

    A cultura visual alicera-se no que vemos. Conhe-cer as imagens que nos rodeiam significa tambmalargar as possibilidades de contacto com a reali-dade; significa ver mais e perceber mais (Munari,pp. 1920). Ou, como afirmou o dramaturgo flo-rentino Feo Balcari em 1449: O olho a primeiradas portas / por onde o esprito pode aprender eprovar (citado por Le Goff & Truong, p. 155).Atentemos na fotografia seguinte: o que vemos lrepresentado?

    Texturas, fotografia do autor.

  • A resposta mais provvel ser: rvores. Ou arvo-redo. Ou floresta, ou algo similar. Pelo menos estaser a interpretao, normalmente expectvel, dapessoa urbana e informada que se supe estar a lereste livro. Nenhuma destas descries estar fac-tualmente errada. No entanto, assim como umafotografia de um relvado de futebol no nos mos-tra um jardim mas sim um recinto de jogo, um ob-servador conhecedor faria uma descrio precisada fotografia e, em vez de englobar todas as rvo-res sob um mesmo epteto, nome-las-ia uma poruma, como quem indica o nome dos seus parentesnum retrato familiar.A cultura visual no consiste s no que vemos, mastambm no que sabemos. Ver algo implica descodi-ficar esse algo, o que fazemos contextualizando-o.Esse contexto proporcionado pelo nosso conheci-mento prvio: como dizia Bruno Munari, Cadaum v aquilo que sabe (p. 19). Assim, a nossa cul-tura visual constri-se com base no s na nossacapacidade de ver, mas tambm apoiando-se nonosso saber. Na nossa mente, os estmulos visuaisgeram uma imagem mental, a qual ou tem origemno universo visual ou para ele remete. O conceitosubjacente o de que a cultura visual pode ser umprocesso mais cultural e menos visual, ou seja,

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  • pode ser mais consequncia de um enquadramen-to cultural do que resultado directo dos estmulosvisuais que lhe do corpo. Se, num determinadocontexto, virmos a cor vermelha (ou simplesmen-te a ouvirmos ser pronunciada ou pensarmos nela),poderemos associ-la ao Sport Lisboa e Benfica.Esta uma imagem mental, resultante da nossacultura. No entanto, vermelho por si s no umsignificado possvel do SL Benfica, mas somenteum estmulo cromtico (portanto, da ordem do vi-sual) que remete para o clube.Daqui decorre que uma parte importante dos es-tudos de cultura visual recai sobre os aspectos es-tritamente culturais (a percentagem em que issosucede varia consoante os autores, dependendo dasua formao, sensibilidade e interesses). A ques-to relevante neste ponto acaba por ser a tradicio-nal dicotomia forma/contedo, na qual se v aforma e se conhece o contedo. A cultura visual mais do que um conjunto de formas visveis: umprocesso que conjuga forma e contedo e cujo ca-rcter ora remete mais para a ordem do visual, orapara o cultural, ora para ambos.Sturken & Cartwright (p. 2) entendem que im-portante considerar a cultura visual como umtodo complexo e ricamente variado por uma razo

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  • importante [...] As nossas experincias visuais nodecorrem isoladamente; elas so enriquecidas pormemrias e imagens provenientes de muitos as-pectos diferentes das nossas vidas, acrescen-tando: O mundo que habitamos est cheio deimagens visuais. Elas so nucleares na forma comorepresentamos, produzimos significado e comuni-camos no mundo que nos rodeia [...] Os nossos va-lores, opinies e crenas tm sido crescentementemoldados de modos poderosos pelas muitas for-mas de cultura visual que encontramos na nossavida quotidiana (p. 1).As imagens fotogrficas so, por exemplo, fulcraisno estabelecimento de cnones corporais, os quaisso interiorizados por cidados que partilhamideologias sociais e que desejam estar integrados ecingir-se norma, o que sucede porque existe umavastido homognea de imagens nos mass mediaque produz o olhar perfeito, o corpo perfeito e apose perfeita. Porque ns enquanto observadoresde imagens publicitrias muitas vezes no pensa-mos nos modos atravs das quais elas operamcomo textos ideolgicos, estas imagens tm fre-quentemente o poder de afectar a nossa auto-ima-gem (Sturken & Cartwright, p. 98). As imagensmediatizadas, como as fotogrficas, ganham im-

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  • pacto social atravs da sua reprodutibilidade.A produo de significado, resultante do acto dever, origina-se em sistemas de representao (pin-tura, cinema, fotografia, televiso, etc.), os quais sefundam em convenes. Sturken & Cartwright (p. 12) referem que, ao longo da histria, se tem de-batido se estes sistemas de representao reflec-tem o mundo tal como ele , ou se de facto conce-bemos o mundo e o seu significado atravs dos sis-temas de representao que usamos. Concluemque construmos o significado do mundo materialatravs destes sistemas, os quais organizam, cons-troem e medeiam o nosso entendimento da reali-dade, emoo e imaginao (p. 13).A anlise de imagens considerada neste livro estdireccionada para o significado intencional dasmesmas: a forma como se dirigem a um observa-dor ideal, sendo recebidas por um observador real.Importa clarificar este princpio, porque uma simagem pode servir uma multiplicidade de prop-sitos, surgir numa variedade de enquadramentos esignificar coisas distintas para diferentes pessoas.O significado das imagens no lhe intrnseco,sendo produzido tambm pela interpretao e discusso: O significado no reside nas imagens,sendo antes produzido no momento em que as

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  • mesmas so consumidas (Sturken & Cartwright,p. 7). Em relao fotografia, Jeanloup Sieff (p. 11)declara que No existem bons ou maus motivos,existe apenas a qualidade da observao, justifi-cando: a qualidade do sujeito e do olhar queprevalece, em vez de informao propriamentedita. Por outro lado, as imagens mais emocionan-tes so, frequentemente, as desprovidas de infor-mao ou que no nos dizem nada.O significado de uma imagem nunca unvoco,devendo ter-se em conta no s o significado do-minante ou partilhado, mas tambm outros signi-ficados. Em vez de se dirigir globalmente, umaimagem fala para conjuntos especficos de ob-servadores que acontece estarem sintonizados emalgum aspecto da imagem, tal como estilo, con-tedo, o ambiente que ela define ou as questesque levanta. Quando dizemos que uma imagemfala connosco, podemos tambm dizer que nos re-conhecemos no grupo cultural ou pblico imagi-nado pela imagem. Tal como os observadoresextraem significado de imagens, as imagens tam-bm erigem pblicos (Sturken & Cartwright, p.45). Stuart Hall (citado por Sturken & Cartwright,p. 57) defende que existem trs posturas possveispara um observador, na recepo de uma imagem:

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  • IMAGEMInformao em bruto

    O significado no intrnseco,mas antes produzido no acto

    CONTEXTOPanorama cultural

    Influencia a imagem e apercepo do observador

    OBSERVADORViso, memria e emoo

    Projecta-se na imagem mastambm instrudo por ela

    Esquema de produo de significado das imagens.

    interpretao dominante/hegemnica: alinhandopela posio hegemnica e recebendo a mensa-gem sem questionar;

    interpretao negociada: negociando uma inter-pretao pessoal da imagem com a interpreta-o dominante;

    interpretao opositiva: assumindo uma posioantagnica, quer pelo desacordo total com a po-sio ideolgica da imagem, quer rejeitando aimagem de todo (por exemplo, ignorando-a).

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  • 74

    A produo de significado reside numa interacocomplexa entre imagem, contexto e observador.Decifrar uma imagem um acto simultaneamenteconsciente e inconsciente, evocando memrias,conhecimento e enquadramento cultural, paraalm das caractersticas da prpria imagem e dossignificados dominantes que lhe esto associados.

    O Grito (detalhe): esta minha fotografia tem colhido as mais inesperadas interpretaes,

    fruto da variao de contextos e observadores.

  • 75

    LITERACIA VISUAL

    Aparentemente, a noo de ler uma imagem po-der parecer desadequada: a leitura habitualmentepressupe a interpretao de uma sequncia designos alfabticos para a obteno de significado, e tradicionalmente acreditamos abarcar toda umaimagem com um s olhar, o que a tornaria no le-gvel. Porm, a banda desenhada, a fotonovela, ofilme ou o diaporama, solicitam um processo men-tal temporal semelhante leitura de um texto, emesmo uma imagem fixa constri o seu signifi-cado s depois de um trajecto do olhar pela mes-ma, numa sucesso de esgares que acumulam adescodificao dos diferentes signos visuais que acompem. A leitura linear aqui dispensada, por-que as imagens podem apresentar ligaes espa-ciais simultneas em qualquer direco.Kress & van Leeuwen entendem que a comuni-cao visual est a tornar-se cada vez menos o do-mnio de especialistas e cada vez mais crucial nosdomnios da comunicao pblica. Inevitavel-mente, isto conduzir a novas e mais regras e a um ensino normativo mais formal. No ser vi-sualmente letrado comear a suscitar sanessociais. A literacia visual comear a ser uma

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    questo de sobrevivncia, especialmente no localde trabalho (p. 3).Apesar de haver pases, como a Inglaterra, em queos respectivos ministrios da educao pretendemensinar a ler imagens, no so ainda visveis resul-tados, e a convico generalizada mantm que aleitura de imagens, por ser inata, dispensa apren-dizagem.Sempre que se ope a literacia verbal visual, asposies extremam-se e h autores, no universoda comunicao visual, que quase chegam a afir-mar que a nossa sociedade sobreviveria sem a lin-guagem verbal mas no sem a linguagem visual.Walker & Chaplin resumem a contenda: no narealidade uma questo de privilegiar um ou outro,porque uma vez que as formas dominantes de co-municao so multimedia, adequado estud-lasem conjunto (p. 113).O conhecimento do contexto em que uma ima-gem representada fundamental para a sua des-codificao. Ainda que algumas imagens, como asfotografias, sejam de percepo imediata em ter-mos quase universais (muito mais facilmentedo que as seis mil lnguas existentes), tal no sig-nifica que o observador consiga entender o signifi-cado de uma imagem s porque consegue v-la,

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    uma vez que cdigos, convenes e smbolos sousados na leitura de artefactos visuais, que podemno ser conhecidos dos observadores, e porque aosobservadores pode faltar o conhecimento contex-tual cultural e histrico que geralmente re-querido antes que o assunto e contedo das ima- gens possa ser apreendido (Walker & Chaplin, p. 113).Estes autores (pp. 114115), defendem inequivoca-mente o ensino para a literacia visual (evolutiva aolongo da vida, medida que os criadores visuaisquestionam cdigos e convenes), nomeada-mente pela explicao de cdigos, simbolismos,montagem, edio e retrica imagtica. Segundoos mesmos, tais conhecimentos tornariam, porexemplo, todos os observadores cpticos em rela-o s reivindicaes de veracidade das fotografiasde imprensa e de documentrios filmados em no-ticirios televisivos (p. 115). Citam Paul Messarispara alinhar quatro pontos de vista essenciaissobre literacia visual (p. 114): a literacia visual geralmente considerada co-

    mo sendo um pr-requisito para a compreensodos meios visuais; paradoxalmente, ela nor-malmente adquirida atravs da exposio cu-mulativa aos meios visuais;

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    acredita-se que a melhoria da literacia visualaumente as capacidades cognitivas gerais dascrianas, ajudando-as assim a resolver outrastarefas intelectuais;

    melhorar a literacia visual deveria aumentar acompreenso dos alunos sobre os mecanismosde manipulao mental e emocional atravsdos meios visuais, tornando-os assim mais re-sistentes ao poder persuasivo da propagandapoltica e da publicidade comercial;

    melhorar a literacia visual deveria aprofundar aapreciao esttica; apesar de o conhecimentode como certos efeitos visuais so conseguidospoder dispersar o seu mistrio, tal conhecimen-to claramente essencial se se deseja avaliar ahabilidade artstica envolvida.

    Temos que constatar que se misturam, quotidia-namente, nos crans do planeta, as imagens da in-formao, com as da publicidade e as da fico,cujos tratamentos e finalidade no so idnticos,pelo menos em princpio, mas que criam, sob osnossos olhos, um universo relativamente homo-gneo na sua diversidade (Aug, p. 39).Nos tempos que correm, grande a tentao detudo querer saber e de se estar sempre em cima doacontecimento, dominando a actualidade. Rapida-mente se constata que muitas vezes os soundbytes

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    (como corrente dizer-se agora nos meios queproduzem esses mesmos soundbytes) por vezespouco mais fazem do que distrair a mente.Comentando a vida moderna, James Elkins sus-tenta que, sendo a nossa noo de ns mesmos, in-dividual e colectivamente, produzida no carctervisual e atravs do mesmo, fundamentalmenteimportante aprender a compreender as imagenscomo construes sociais e no como reflexes darealidade (2008, p. 7). Alan Fletcher comple-menta: Cegos pelo hbito, ns divagamos com oolhar em vez de olharmos com acuidade. De facto,o olho dorme at que a mente o acorde com umaquesto (p. 178).O cinema de Hollywood , para Glyn Davis, umimprio sedutor de visualidade. Os filmes produ-zidos pelos estdios mais importantes constroemum mundo simulado, imaginrio, baseado nou-tros filmes, um mundo reconhecvel de outros fil-mes porm muito afastado do normal ou quoti-diano. Este domnio simulado de experinciapode consumir a verdadeira, suplantando-a,afectando directamente as nossas vivncias dosacontecimentos reais (p. 220). Esta uma dasconsequncias do que Bragana de Miranda ape-lida de natureza psicotrpica da cultura (p. 194):Independentemente de qualquer deciso sobre a

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    lgica do aparelhamento esttico, tudo indica queo seu funcionamento remete para uma nova es-trutura do alucinatrio, sem por isso ter de seentender nada de psicolgico. A alucinao actualidentifica-se com o prprio real, tal como se cris-talizou historicamente, baseada numa confianaque permitia distinguir real e fico, imaginao eexistncia, sonho e realidade.

    Morte sbita, exerccio acadmico de Nuno Dias, 2009.

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    PERCEPO VISUAL

    Jacques Aumont (p. 241), apesar de admitir quePodemos por vezes at ter a impresso na nossavida diria de que as imagens nos invadiram, de-fende que este sentimento nos impede de reco-nhecer que esta proliferao de imagens s umepifenmeno de uma convulso mais profunda.Aumont esclarece que ao longo dos sculos o esta-tuto das imagens se tem alterado de espiritualpara visual, ou seja, hoje as imagens perderam opoder de transcendncia e foram reduzidas a sim-ples registos (ainda que expressivos) de aparn-cias: Hoje em dia, a multiplicao massiva deimagens pode parecer assinalar um retorno daimagem, mas a nossa civilizao permanece, quergostemos quer no, uma civilizao de lingua-gem. Muitas imagens so ricas em efeito e pobresem sentido: Enquanto o sentido um produto dosistema cognitivo, o efeito mais vivenciadocomo uma transformao de estado sofrida porum sujeito: o primeiro activo, o segundo pas-sivo (Vandendorpe, p. 79).A rotina de contemplao que a imparvel prolife-rao de imagens acarreta uma de enorme velo-cidade e insacivel apetite, o que faz com que os

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    fotgrafos considerem natural apresentar cente-nas de imagens sobre um mesmo assunto, pas-sando o nus da triagem para o observador, naconvico de que este no s no se importa de serinundado com imagens como tambm o deseja, demodo a poder exercer o seu olhar predador. Os f-ceis meios de divulgao electrnica, imediatos equase grtis, como galerias on-line, e-mail, tele-mvel, instant messengers, entre outros, facilitama tarefa e estimulam emissores e receptores.No deixa de ser intrigante como a comercializa-o da msica, a mais abstracta das artes, dependehoje em dia tanto das imagens que lhe conferemvisibilidade. Na indstria Pop, sobretudo, os video-clips so instrumentos simultaneamente de visua-lizao e de promoo. So declaraes de estiloque, para Sturken & Cartwright, representamuma afirmao primordial do estilo ps-moderno,com a sua mistura de elementos narrativos varia-dos, muitas vezes desconexos, as suas combina-es de diferentes tipos de imagens e o seu esta-tuto simultaneamente de anncios publicitrios e textos televisivos (p. 259).Um tero do nosso crebro dedicado ao proces-samento de estmulos visuais, que representam70% da informao que nos chega do exterior

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    (Walker & Chaplin, pp. 1820). Este indicador d--nos a medida da importncia que o nosso orga-nismo atribui comunicao visual. Sabendo isso,artistas e designers tm adquirido conhecimentosespecficos sobre o funcionamento da viso e doprocessamento dos sinais visuais, e muitos produ-tos visuais tm reflectido esse estudo. O carctervisual do nosso imaginrio, no entanto, extrapolalargamente o mecanismo visual: h uma imensi-do de imagens mentais que se formam no cre-bro sem que tenham origem num estmulo visualdirecto.Bragana de Miranda (p. 81) define o imaginrio doseguinte modo: De forma ainda preliminar e, dealgum modo, brutal, diremos que imaginrio oarquivo das imagens e dos procedimentos da suaagilizao, tendo a ver com a transformao incor-poral do existente, ou seja, com o facto de que,para alm do fabrico de objectos ou de sujeitos, sefabricam relaes, com que se ligam e desligamos fragmentos que mobilam o mundo, que po-voam a existncia. o caso dos sonhos e das aluci-naes, mas tambm da memria e da imaginao.Da que existam noes populares contraditriascomo ver para crer (a viso no engana) e as apa-rncias iludem (a viso engana).

  • Nenhum destes extractos de sabedoria popular in-teiramente verdadeiro. Tanto assim, que o meca-nismo da viso est ancorado num processopsicolgico: como Walker & Chaplin apontam, aviso condicionada pelos vrios interesses e dese-jos do observador e pelas relaes sociais existentesentre este e o observado (p. 22). Os autores citam,como exemplo, as diferentes formas pelas quaisuma jovem camponesa (que se ocupasse do gado naInglaterra de finais do sculo XIX) teria sido percep-cionada por diferentes observadores, como turistas,antroplogos, o pintor Paul Gauguin, etnlogos, oseu apaixonado, os seus pais, os amigos, o emprega-dor e os colegas de trabalho. E, se neste caso de visono mediada (o termo com que alguns autores de-signam a recepo de comunicao no intencio-nal), poderia haver tantas interpretaes dacamponesa quantos os observadores, imagine-se aaco que teria uma viso no mediada de algumcomo Paul Gauguin, ou ainda Vincent Van Gogh.Se h pouco mais de 100 anos a observao directade uma camponesa ainda era fcil, tal como erafcil ter-se um conhecimento vasto do trabalho docampo, hoje em dia uma tal viso s se torna poss-vel, em muitas urbes do planeta, com a interme-diao dos mass media, os quais nos moldam cadavez mais a percepo do mundo real.

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  • No mundo actual, as actividades como a lavoura ouo pastoreio so provavelmente encaradas ora commera nostalgia ecolgica, ora com um aroma po-tico. No estranhas a este fenmeno sero as sensa-es como o odor ou o paladar de alimentos natu -ra is, que contribuiro activamente para definir anossa percepo de um retrato campestre. De facto,a nossa cultura visual fre qu en te men te in flu en ci -a da tambm pela aco dos outros rgos dos senti-dos: as sensaes tcteis (toque, textura, contorno)so relevantes, bem como as cinticas (o movimen-to ou o esforo muscular ou dos tendes).Estas sensaes tcteis so hoje em dia novamen-te valorizadas, desta feita celebrando o retorno aum carcter orgnico h muito perdido na nossacivilizao, na qual no plantamos os vegetais queingerimos e onde, asfixiados dentro de urbes debeto, temos no desporto uma das poucas vivn-cias fsicas que ainda nos so possveis, ao cor-rermos nos subrbios das cidades onde, como dizuma anedota, deitaram as rvores abaixo e atribu-ram s ruas os nomes delas.Neste cenrio de afastamento da vida mais org-nica de outrora, rodeamo-nos de molduras digi-tais que afixam em alternncia imagens de umanatureza longnqua, e de servios de pratos ilus-trados com cenas buclicas de antanho, ao mesmo

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  • Relevos, fotografia quase tctil de Isabel Rgo.

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    tempo que apreciamos o prazer de manusear umpapel spero, rugoso e irregular de fabrico manual.Como dizem Fiell & Fiell (p. 18), A tactilidadeinata de [certas] formas profundamente persua-siva, mesmo ao nvel do subconsciente.

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    O OLHAR

    Talvez somente as imagens de ns mesmos num es-pelho estejam esvaziadas do potencial voyeurista,na medida em que acusam a nossa prpria presenae o nosso envolvimento. Mas, como referem Wal-ker & Chaplin, sempre que encontramos um olhonuma imagem ou filme sentimos um efeito de es-pelho e somos lembrados que os nossos prpriosolhos esto empenhados no acto de olhar (p. 104).Da a importncia que o olhar dos retratados possui:na contemplao de uma imagem sentimos que omesmo se dirige a ns, e s a ns, e podemos aindapensar narcisicamente que aquele o olhar que de-volvemos a ns mesmos, o que nos confeririaalgum poder sobre o personagem retratado. Os olhares domesticados so o prato forte nas ima-gens que pretendem cativar-nos, seja para nos ofe-recer a contemplao de uma mulher em biquninuma revista ou para nos convencer a comprar umnovo dentfrico. Como sucede em muitos annciossensuais, uma mulher que abraada por umhomem no olha para ele mas para o observador,como que dizendo a ti que eu prefiro. A progra-mao televisiva est cheia de olhares domestica-dos, que so aqueles com que os(as) apresentado -

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    res(as) nos contemplam e que pretendem dizer sbem-vindo e este programa para ti. So olharesque no questionam nem ferem, so incuos nasua passividade e esvaziados de emoes negativas.So olhares que nos transmitem de forma imediatae inequvoca a segurana de sermos bem tratados. tambm por isso que modelos e manequins resul-tam bem neste papel: a maior parte das vezes mui-tos deles conseguem afixar um olhar to esvaziadode pensamento e atitude (sobretudo quando estoconcentrados no teleponto), que, junto com umcorpo minimamente invejvel, se tornam de ime-diato transmissores cristalinos, capazes de nos ligarfacilmente aos contedos que esto a ser divulga-dos. Basta pensarmos no que sucederia se um apre-sentador que fala para a cmara mantivesse osolhos fechados, para pensarmos no embarao queisso nos causaria (Sontag, pp. 3738): nem maisnem menos que a angstia e indeterminao deolharmos para os olhos de um cego. Para nos evitaresse embarao, os apresentadores olham directa-mente para a objectiva da cmara e os invisuaisusam culos de sol.O olhar domesticado no nos perturba na nossacondio de voyeurs ele autoriza-nos essemesmo estatuto. O olhar rebelde, pelo contrrio,

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    afirma-se na sua individualidade e questiona fron-talmente a nossa condio de observadores. Con-frontados com ele, ns prprios passamos a serpostos em causa, e um profundo incmodo ou umintenso fascnio podero surgir. Como o resultado inseguro, actividades de seduo como a moda e apublicidade preferem no arriscar e adoptam olha-res domesticados. O mesmo j no sucede na arte,onde a comoo gerada por pinturas como Olympia(1863), de Manet, reside precisamente no facto deuma personagem neste caso, a principal e quedeu nome ao quadro (uma mulher nua deitada) nos contemplar frontalmente com um olhar re-belde, um olhar que revela uma postura de incon-formidade com a situao passiva de modelo dcildestinada ao agrado ertico dos observadores mas-culinos. No caso de Olympia, a mulher parece que-rer deixar bem claro que encara a sua profissocomo um ofcio mundano, sem emotividade, e quese no o transmite pela pose expressa-o pelo olhar.No limite extremo do olhar rebelde (que no se im-porta com o que pensamos dele) encontramos oolhar imperativo, aquele tipo de olhar que se impesobre ns vigilantemente. o caso dos retratos deditadores, massivamente produzidos e distribudospor todos os edifcios pblicos e lares, e que Fou-

  • cault considerou prefigurarem um sistema de vigi-lncia, o qual seria eventualmente