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o Que e Culttura Boal

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Page 1: o Que e Culttura Boal

“O que é a Cultura?”, por Augusto Boal

Publicado em 05/08/2013 por Instituto Boal

Reproduzimos o texto “O que é a Cultura?”, apresentado por Augusto Boal em mesa-redonda durante o FórumCultural Mundial, no dia 24 de novembro de 2006:

Palavras são meios de transporte, como o trem, a bicicleta e o avião; a palavra Cultura é um enormecaminhão que suporta qualquer carga. É necessário defini-la, para que saibamos do que estamos falando, quandodela queremos falar.

Cultura é o que estamos fazemos aqui, agora, neste instante, discutindo o que é a Cultura. Cultura é estemicrofone, esta mesa, esta sala. Nada disto existia – é fruto da mão humana, executora de nossos pensamentos edesejos.

Este encontro não é apenas “um” exemplo do que seja a Cultura: é o máximo exemplo, pois Cultura é areflexão do ser humano sobre si mesmo e sobre o mundo, e sobre o que faz neste mundo. É o feito e o fazer, é ocomo fazer o que se faz. É a criação de uma realidade não prevista nos desígnios da Natureza. Um Real objetivo,como a construção de casas e pontes, feitas de pedra; e um Real subjetivo, como a Moral, feita de valores.

A Cultura possibilita e engendra a Arte, que é o seu estado supremo e soberano.

Uma lenda antiga e distante – e tudo que é distante e antigo nos dá a impressão de verdadeiro – diz que aArte tornou-se necessária para completar a incoerente e desorganizada criação divina.

Deus, segundo a lenda, por mais perfeito, veloz e talentoso que tenha sido, tinha também seus limites, e nãofoi capaz de completar a Obra que havia planejado, no tempo que havia calculado. Calculou mal: seis dias mostrou-se curto prazo, mesmo para o Todo Poderoso, pois que o Poder, ao existir, fixa seus limites; se não os tivesse, seriatambém meu, nosso e vosso, seríamos todos divinos: o poder seria substância universal e não predicado dopoderoso. Até o Poder tem fronteiras.

Deus, cansado – toda força, na exaustão, encontra seus limites – desconsolado e triste, buscou merecidodescanso no domingo, mas não sem antes apelar para os Artistas que logo vieram em seu socorro para reorganizar omundo que ele mal havia – e havia mal – criado.

Os sons divinos andavam por aí, espalhados, notas, claves e bemóis – sonoridades ao vento, enlouquecidasna imensidão vazia… Vieram compositores para lhes dar estrutura e razão: eis a sonata, o samba e a canção. Amatéria prima era divina; mas a forma tinha os contornos de Villa-Lobos, Cartola, Dolores Durán e NelsonCavaquinho, para não citar nenhum presente.

As cores, espalhadas e sem rumo, andavam às turras com o traço, buscando perspectivas na vida e noespaço – vieram os artistas plásticos e pintaram quadros, esculpiram estátuas, grafitaram paredes, e nos fizeramentender o que Deus quis fazer, mas não teve tempo; quis dizer, mas não disse.

As palavras, esses seres estranhos que não existem – são riscos na areia que as ondas do mar apagam; sons,que a leve brisa dissolve com suas carícias -, as palavras eram vazias e tortas, desengonçadas – até que chegaram ospoetas para domesticá-las, dando-lhes sentido e destino.

Só os seres humanos são capazes de criar Arte e Cultura -que é a coerência com a qual o Artista vê omundo, corrige e completa a obra de Deus que, assim, se revela e resplandece. Vivam os artistas! Mas coerêncianem sempre é virtude, como nem sempre a Moral é Ética.

A Cultura, que faz existir o imaginado, que é invenção do novo, do necessário e útil – e do belo, tão útilcomo necessário -, pode-se extasiar diante de si mesma e mergulhar nas águas de Narciso. O Artista, inebriado,pode pensar-se Deus e parir a arte pela arte. Pode, ao contrário, congelar seus caminhos, e se estiolar na repetição.

A Cultura, no fio da navalha, cria, destrói e recria. Quando, querendo instaurar o novo, fixamos nossoscaminhos, a cultura se cristaliza na Técnica, que nos permite inventar e apressa o invento, mas que pode nosobrigar a segui-la, e servi-la – ajuda ou atrapalha. Quando fixamos nosso comportamento na sociedade, a Cultura secristaliza na Moral, tão necessária, mas que pode ser odiosa. Tudo, neste mundo em trânsito, transita.

Cultura, traduzida em Arte, deve ser criação permanente, revolucionária, conquista do novo, nuncaestratificação do conquistado. Pode-se transformar em Indústria, pode-se inserir na Economia, sim, mas desde queo criador seja o Artista, sempre o Artista, e não o produtor, que deve trabalhar com aquilo que foi criado, e não criar

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limites à criação. O artista cria o que não existia; o produtor, ao que existe, abre caminhos.

Se o produtor serve ao Mercado, deve ter claro que Mercado quer a repetição estéril, do já feito econhecido, sem sobressaltos; o Artista, quer inovar. O Mercado, eclético, mercadeja arte e sabão em pó, porqueambos são necessários e vendáveis, mas não é justo confundir artista e saponáceo.

É verdade que nós, artistas, queremos vender nossos discos, livros e quadros, queremos a casa cheia, masnão ao preço da renúncia daquilo que nos explica e justifica: a Arte, que será sempre revolucionária, ou nada será.

Repito, sempre, que não temos nada contra o comércio, como tal. Admiro mesmo os comerciantes quefazem do seu comércio uma arte, mas tenho pena dos artistas que fazem, da sua Arte, um comércio.

Cultura, traduzida em Moral, fixa a Tradição. A Tradição, em si, não é boa nem má, pois é criada porsociedades que não são eternas. Devemos cultivar as tradições humanísticas, mas, com energia, rejeitar as cruéis edesumanas.

No mês passado, eu estive na Índia com todo o meu Centro carioca, presidindo a fundação da FederaçãoIndiana de Teatro do Oprimido, na mesma semana em que foi promulgada uma lei autorizando o Estado a tentardissuadir os pais de forçarem o casamento de seus filhos crianças. A Lei dizia que, se esses casamentos já tivessemsido realizados, seriam válidos por respeito às tradições familiares. Casar crianças e obrigá-las à convivência, écrime, e nenhuma tradição pode justificar um crime!

Na mesma semana, foi promulgada, na mesma Índia, outra lei, a que protege as mulheres contra a violênciadoméstica. Está em vigor. Lei radical, exemplar, que condena e pune, não apenas a violência física e sexual, masaté mesmo o palavrão atirado contra a esposa ou namorada, a tia, a sogra, a filha ou a vizinha. Peço aoslegisladores, porventura presentes, que levem em conta a sugestão indiana: seja a mulher quem for, nem palavrão,nem com uma flor.

Exemplos de tradições culturais odiosas não nos faltam e, entre tantas, podemos citar os flagelos que são asguerras coloniais e as imperialistas, disfarçadas ou não; a pena de morte e a escravidão; o Cassino da Bolsa deValores que faz, do Mercado, um Deus, e o cinema de Hollywood, Deus do Mercado; os genocídios étnicos,passados e atuais; o mundo em chamas.

Contra essas tradições sempre se lutou. A Revolução Francesa, que representou um bem para aHumanidade, não respeitou as tradições da realeza; nós, se tivéssemos mantido nossas tradições monárquicas, hojenão seríamos República.

Cruéis tradições devem ser combatidas com vigor por serem contrárias à humanização do ser humano. Masdevemos recorrer às nossas boas e sadias tradições quando somos invadidos pela mídia globalizada, arte enlatada,notícias manipuladas, ódio racial, pensamento único.

Isto é a Cultura: acabar com as tradições malsãs criando novos caminhos, inventar uma Ética. Se, noBrasil, já foi tradição a fome no Norte e Nordeste, Cultura é dar de comer ao faminto. Se é tradição o latifúndioimprodutivo, Cultura é permitir que, quem sabe, pode e quer, que o faça produzir. Se foi tradição servil imitar a artealheia, surgiram os Pontos de Cultura para liberar a nossa criatividade, engenho e arte.

Os Pontos de Cultura vêm nos lembrar que não se pode privatizar a denominação de Artista, pois Artistassomos todos nós, seres humanos: somos os inventores do mundo. Todos nós somos capazes de produzir Arte, – nãouns melhor que outros, mas cada um melhor do que si mesmo.

Esta é, em Arte, a única competição que devemos aceitar: eu, comigo. Como escreveu o poeta quinhentistaportuguês, Sá de Miranda: “Comigo me desavim, sou posto em todo perigo, não posso viver comigo, nem possofugir de mim”. Isto é Arte: todos nós conosco nos desavimos e, como somos artistas, nos desaviremos sempre,conosco e com o mundo, até mudarmos o mundo que temos, e mudar o que faremos.

Se era tradição nortear nossos passos pelo que fazem os países do Norte, temos agora que usar oneologismo de um amigo meu, temos que “sulear” nossos caminhos, estendendo a mão amiga aos países que estãonesta mesa, e a outros que, nesta mesa, também têm assento e, no nosso coração, lugar.

Reconhecemos a nossa fraternidade com os países da América Latina, como o Equador; africanos, como aÁfrica do Sul; asiáticos, como a imensa Índia; e eu, como bom português trasmontano que também sou, de Justes eVila Real, saúdo a presença querida de Portugal.

Muito obrigado.