a estética do oprimido ensaio de augusto boal a fundamentação

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A Estética do Oprimido Ensaio de Augusto Boal A Fundamentação Teórica 1. Conjuntos Analógicos e Conjuntos Complementares 2. Palavras São Meios de Transporte 3. Os Malefícios da palavra 4. O Processo Estético e o Produto Artístico 5. O Amor e a Arte 6. Arte e Conhecimento 7. Estética e Neurônios 8. Invasão dos Cérebros 9. A Metáfora Como Translação 10.Coroas de Circuitos Neuronais 11.Neurônios Estéticos 12.O Volume, o Território e as Insígnias do Poder 13.Três Níveis de Percepção 14.A Necessidade da Estética do Oprimido na luta pela Humanização da Humanidade 15.O Método Subjuntivo 16.Humanos e Hominídeos A Realização Prática: o Projeto Prometeu 1. A Palavra 2. A Imagem 3. O Som 4. A Ética

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A Estética do OprimidoEnsaio de Augusto Boal

A Fundamentação Teórica1. Conjuntos Analógicos e Conjuntos Complementares2. Palavras São Meios de Transporte3. Os Malefícios da palavra4. O Processo Estético e o Produto Artístico5. O Amor e a Arte6. Arte e Conhecimento7. Estética e Neurônios8. Invasão dos Cérebros9. A Metáfora Como Translação10.Coroas de Circuitos Neuronais11.Neurônios Estéticos12.O Volume, o Território e as Insígnias do Poder13.Três Níveis de Percepção14.A Necessidade da Estética do Oprimido na luta pela Humanização daHumanidade15.O Método Subjuntivo16.Humanos e HominídeosA Realização Prática: o Projeto Prometeu1. A Palavra2. A Imagem3. O Som4. A Ética1Conjuntos Analógicos,eConjuntos Complementares

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A Natureza jamais produz dois seres idênticos: nem dois grãos de areia,nem os fios da minha barba ou gêmeos univitelinos, nem impressões digitais ouduas gotas de chuva, nem as árvores da floresta, nem seus galhos e folhas, nemas estrias de cada folha... nada é absolutamente idêntico a nada. Todas as coisasinanimadas e todos os seres vivos são sempre únicos, irrepetíveis, mesmo seclonados.Para seres semoventes, humanos ou animais, com um mínimo de vidapsíquica, seria impossível viver dentro dessa infinita diversidade se nãopudessem organizar a sua percepção do mundo e simplificá-la.Ficaríamos paralisados se tivéssemos que ver e ter consciência de tudo queolhamos; escutar e ter consciência de tudo que ouvimos; tocar e ter consciênciade tudo que sentimos, cheiramos e gustamos - tal o acúmulo catastrófico etorrencial das informações recebidas. A Natureza é vertiginosa, mas nós nãopodemos viver essa vertigem.Felizmente, a Natureza permite a criação de aparências simples dasrealidades complexas, através da construção de Conjuntos Analógicos eConjuntos Complementares. Embora simplificações excluam complexidades,outro jeito não há, e somos forçados a realizar o processo psíquico da formaçãode Conjuntos para nos podermos guiar e viver neste mundo.Quando, pela primeira vez, o bebê abre os olhos, olha tudo que os seusolhos alcançam e, olhando tudo, nada vê: apenas a cor cinza. Aos poucos, na

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medida em que o seu nervo ótico começa a ser estimulado pela luz e pelasombra, organiza sua percepção visual distinguindo linhas retas e curvas,profundidades e cores. Quando deixa de olhar tudo ao mesmo tempo, é quandorealmente começa a ver – e vê Conjuntos.Nenhum peixe é absolutamente igual a outro peixe, mas os peixes seassemelham: eis o cardume. Nenhuma rosa é igual à outra rosa, mas todas separecem, vermelhas, brancas ou amarelas: eis o roseiral. Nenhuma cor é2homogênea em toda a extensão do objeto colorido, mas pode-se abstrair asdiferenças que, ao microscópio, existem, claras e profundas. 1Um astronauta disse que a Terra é azul; nós dizemos que a noite é negra,vermelho o sangue em nossas veias e plúmbeo o céu de chuva... Sabemos quenão é assim: nenhum milímetro é igual a outro.Por analogia, podemos perceber e formar Conjuntos Analógicos,homogêneos, que englobam seres semelhantes, mas não iguais – isto é,Unicidades - em um todo maior, como o coro de um balé, o coral de uma ópera,um batalhão de soldados ou a farinha de um mesmo saco.Podemos perceber, também, Conjuntos heterogêneos, feitos de elementosComplementares. Não existem dois rios iguais em seu percurso, mas em todoscorre água: no caudaloso Amazonas ou no riacho do Ipiranga. Suas margens sãodiferentes, mas todas oprimem a água que neles corre. As pedras, no leito do rio,são desiguais no peso e na forma, mas parecidas, mesmo quando feitas dematérias diferentes, orgânicas ou minerais.

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Margens, águas, pedras, plantas, flores e peixes formam um aglomerado decoisas inanimadas e de seres vivos, heterogêneos, mas que podem ser percebidoscomo Conjuntos: podemos ver este rio sem nos determos em cada um doselementos únicos que o compõem. Podemos nomear como rio todos osConjuntos que podem ser percebidos como semelhantes a este. Todos os rios têma identidade dos rios e sabemos de qual acidente geográfico estamos falandoquando falamos do Nilo egípcio ou do Arroyo de la Sierra2 de José Marti.Podemos perceber a floresta como um Conjunto de árvores semelhantes,mesmo sabendo que não são iguais; o rebanho, como Conjunto de animais damesma espécie, mesmo tendo cada um o seu feitio, seu focinho e sua fome;podemos ver a multidão como um Conjunto de seres humanos - embora nenhumdeles seja igual a nenhum de nós.Até mesmo cada indivíduo, ou cada coisa, é um Conjunto heterogêneofeito de elementos Complementares: temos cabeça, tronco e membros, artérias e1 A floresta não está contida em nenhuma das árvores que a compõem, mas não existiria semelas. A cidade não é nenhuma de suas ruas e praças, mas, sem elas, não haveria cidades.2 “El arroyo de la sierra me complace más que el mar” - (“O riacho da montanha me agradamais que o mar”) - versos de Guantanamera, poema de José Marti, poeta e revolucionáriocubano, herói da guerra de libertação nacional contra os espanhóis3veias, pelo e pele; uma pedra tem muitas cores, mesmo quando é cinza, e ricasvariações formais em sua superfície, mesmo quando roliças.

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Assim, simplificando a nossa percepção da Natureza, podemos viver semsobressaltos: Unicidades podem ser sistematizadas em Conjuntos Analógicos deseres e coisas semelhantes, ou em Conjuntos Complementares de coisas e seresdessemelhantes. Nessa simplificação, perde-se a riqueza das diferenças e dasidentidades únicas que, por infinita, é inacessível.Essa simplificação, obra do nosso imaginário e não da multifária Natureza,funciona como couraça que nos permite o acesso apenas às aparências do real3 e,sobre elas, podermos predicar.Para que nos possamos comunicar entre humanos, esses Conjuntos devemser nomeados: nomeamos montanha todas as protuberâncias da terra que beijamo céu, mesmo sabendo que nenhuma montanha é igual à outra montanha,nenhuma nuvem igual à outra nuvem, nenhum sonho igual ao meu. Nomeamosmar - mar de gente bêbeda no Réveillon, mar de flores ao vento, mar de ondasraivosas - todas aglomerações onduladas de água, girassóis ou gente.Nomear significa tentativa de imobilizar. O Nome é a fixação, no tempo eno espaço, do que é fluido, do que não pode parar nem ser parado, nem noespaço, nem no tempo.Tudo é trânsito, mesmo eu, quando me nomeiam Augusto Boal. Qual? Souquem era antes de escrever esta última linha ou aquele que ainda não escreveu apróxima?Sou um rio de Crátilo4: em mim, correm águas que não corriam, e outrascorreram e jamais voltarão rio acima: escondem-se no mar.

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3 Os Conjuntos se referem apenas à percepção sensorial do mundo e se organizam emEstruturas ficcionais, imaginárias, que se constituem através da intervenção da palavra e dossímbolos – da palavra gramatical, como Léxico e, sobretudo, como Sintaxe. Estruturas sãoConjuntos de Conjuntos inter-relacionados por analogia ou complementaridade: EstruturaMoral, Política, Social, Familiar, Ritual, Comportamental, etc.As Estruturas se sustentam pelas relações de Poder, que representam, no campo humano eanimal, o mesmo papel das forças do Universo (gravitacional, eletromagnética, e as chamadasinterações forte e fraca, que ocorrem nos núcleos atômicos.) Todas as relações humanas sãoestruturadas pelas relações de Poder em suas variadas formas - políticas, sociais, psicológicas,culturais, carismáticas, sexuais, etc. - que determinam valores. Estes valores, que sãoabstrações, determinam comportamentos concretos.4Ninguém pode me ver duas vezes como sou, em cada instante fugaz daminha vida, como fugazes são todos os instantes... e a vida. Jamais serei omesmo a cada segundo que me foge. Aqueles que me vêem agora, jamais serãoiguais a si mesmos em dois segundos sucessivos da trajetória dos seus caminhos.Não sou: estou sendo. Caminhante, sou devir. Não estou: vim e vou.Hesito: para onde? Escolho meus caminhos, se puder; sigo em frente, seobrigado!Palavras São Meios de TransportePalavras designam Conjuntos, mas ignoram Unicidades. Negros ebrancos, homens e mulheres, proletariado e campesinato... são Conjuntosimaginados, mas que não existem como concreção. São, mas não existem. O que

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existe, corporeamente, é este negro e aquela branca, esta mulher e aquelehomem, esta camponesa e aquele operário e, mesmo assim, em trânsito, emdevir, em tornar-se, em vir a ser e em deixar de ser. A cada instante, nenhumdestes é o mesmo no seu permanente devir.Os Conjuntos, dada a força que os unifica, podem reagir como seunicidades fossem: um comando militar ou um time de futebol, uma famíliaunida ou um sindicato em greve. Um Conjunto é sempre mais do que a soma desuas unidades – é sinergia.As palavras - os Nomes, sobretudo - são indispensáveis para que sejapossível a troca, o diálogo, porém são significantes polissêmicos que, ao serempercebidos pelo receptor, perdem grande parte dos significados que motivaramo emissor.Quando pronunciadas pelo emissor, as palavras são significantes comsignificados ricos das experiências desse emissor, das suas memórias, desejos eimaginações; no trânsito, esses significantes mudam seus significados, como4 Crátilo: discípulo de Heráclito, filósofo grego pré-socrático, século V-VI AC, que dizia queninguém pode entrar no mesmo rio duas vezes porque, na segunda, já serão outras águas quepor ele estarão passando, já não será o mesmo rio. Crátilo extremava Heráclito, dizendo queninguém pode atravessar o mesmo rio sequer uma única vez, pois que as águas estarão sempreem movimento: em que água estará entrando?Eu extremo Crátilo: quem sou eu, aquele que atravessa?5caminhão que, de uma cidade a outra, trocasse sua carga: ao chegar ao receptor,

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as palavras estarão carregadas das experiências deste e não daquele5. Mesmo quechegue ao seu destino a carga intocada, o receptor tem os seus próprios aparelhosde recepção-tradução, que traduzem e traem a mensagem recebida. Traduttore,tradittore – dizem os italianos: tradutor, traidor.As palavras são um meio de transporte, como ônibus e caminhões. Damesma maneira como os ônibus transportam pessoas e os caminhões carga, aspalavras transportam nossas idéias, desejos e emoções. Com a mesma palavrapode-se dizer – na frase escrita, com a sintaxe e, na falada, com a linguagem davoz: timbre, tom, volume, pausas, etc. – exatamente o contrário daquilo queafirma e jura o dicionário.6A primeira coisa que um meio de transporte transporta é a si mesmo:podemos apreciar a beleza de um avião a jato, de um trem maria-fumaça, ou deuma palavra inusitada: mas, para melhor compreende-los, é preciso examinar oque levam dentro.A palavra é um todo que não é nada. É um traço que riscamos na areia; umsom que, como delirantes escultores, esculpimos no ar. Um traço que as ondaslevam; um som que se dissolve na brisa.Areia, nós a sentimos na mão; o vento, no nosso rosto. E as palavras...onde estão? Em nenhum lugar, pois não existem: apenas são.As palavras não estão em nenhum lugar e estão em toda parte. Palavras sãoo vazio que preenche o vazio que existe entre um ser humano e outro.Nós, rasgando a areia ou cortando o ar, nesse vazio depositamos nossas

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vidas, desejos, medos e coragem, sensações e emoções: eis a palavra.5 Os significados dos significantes (que são as palavras), são diferentes do significado dapalavra e do ato de significar. Quando significo algo a alguém, além dos significantes(palavras) que pronuncio, uso meu rosto, minha voz, meu olhar, meu corpo: este conjunto designificantes integra o meu significar que não está presente em nenhum dos elementos que ocompõem – apenas no Conjunto de todos eles. Os Conjuntos possuem qualidades de que suaspartes carecem.6 “Nunca eu tivera querido/ dizer palavra tão louca. / Bateu-me o vento na boca / e depois no teuouvido./ Levou somente a palavra / deixou ficar o sentido. /O sentido está guardado/ no rostocom que te miro, / neste perdido suspiro / que te segue alucinado, / no meu sorriso suspenso, /como um beijo malogrado.” – Canção, Cecília Meireles6Preenchemos o nada com o tudo que somos: somos as palavras que dizemos, e aspalavras somos nós, transformados em sons e traços.Para que as palavras adquiram um sentido mais preciso e menospermissivo, é necessário vesti-las: na tragédia grega, com máscara, coturno emanto; nos templos, com sua liturgia; no exército, com hierárquica disciplina; nocinema, com iluminação, ângulos e figurinos. Na vida cotidiana, com nossasroupas, gestos culturais, timbres, ritmos da fala, fisionomias...Para que sejamos capazes de apreender o Uno e não apenas os Conjuntosaos quais pertence, alguma outra mediação se torna necessária para evitarmos asimprecisões de darmos o mesmo nome, boi, a cada membro da boiada, pois essegado é feito de unicidades bovinas irrepetíveis, não de massa açougueira. Cada

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boi tem a sua personalidade própria: é Uno – Mimosa, Estrela... A boiada é umasinergia.Palavras são obra e instrumento da razão: temos que transcendê-las ebuscar formas de comunicação que não sejam apenas racionais, mas tambémsensoriais - comunicações estéticas. Atenção: esta transcendência estética daRazão é a razão do teatro e de todas as artes.Não podemos divorciar razão e sentimento, idéia e forma. São sólidoscasais, mesmo quando às turras, bicadas e cabeçadas.7

Os Malefícios da PalavraAs palavras são tão poderosas que, quando as ouvimos ou pronunciamos,obliteramos nossos sentidos através dos quais, sem elas, perceberíamos maisclaramente os sinais do mundo. Sua compreensão é lenta porque necessitam serdecodificadas, ao contrário das sensações, que são de percepção imediata – eis aprincipal diferença entre as linguagens simbólicas e sinaléticas, símbolos esinais.Se eu escuto uma palavra, seja qual for, necessito de um certo tempo paracompreender o seu sentido e as intenções do meu interlocutor. Mas, se ponho o7 A polissemia da palavra permite que, nestes tempos modernos, a palavra liberdade, por exemplo, sejausada para designar qualquer restrição que se faça à existência dos outros. Liberalismo significaausência de quaisquer limites que restrinjam o poder econômico e protejam os destituídos.Democracia significa que todos os candidatos a uma eleição têm o mesmo direito de comprar tempona TV e espaço nos jornais... se tiverem dinheiro para tanto.7dedo em um fio desencapado, o choque elétrico que recebo não precisa de

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nenhuma tradução especial. Grito!Os animais, que não falam nem trocam idéias entre si, mesmo quandonecessário – como as vacas a caminho do matadouro, como dizia Bertolt Brecht-, dependem exclusivamente dos seus sentidos para sua percepção do mundo.Quando os seres humanos, em épocas pré-históricas, começaram abalbuciar as primeiras palavras da Proto-Proto-Língua universal, começou alenta degradação dos seus sentidos.A suposta existência dessa língua universal primitiva, já mencionada naBíblia, foi cientificamente defendida pelos lingüistas norte-americanos JosephGreenberg e Merritt Ruhlen, a partir de 1980.Para eles, todas as línguas faladas no mundo, ontem e hoje, podem sersistematizadas e reunidas em diferentes famílias (como, por exemplo, a famíliaque reúne as línguas românicas, eslavas, germânicas...) Estas famílias são,hipoteticamente, originárias de uma única Proto-Língua, no caso, a assimchamada Indo-Européia que, talvez, tenha sido falada por uma populaçãonômade a três ou seis mil anos antes de nós. Juntando-se esta e outras Proto-Línguas, forma-se uma imensa árvore genealógica com um tronco comum: aProto-Proto-Língua, primeira língua universal. Tem sua lógica, mesmo paraquem não acredita em Adão e EvaUm trágico exemplo dos humanos sentidos esmaecidos pelo surgimento dafala aconteceu no dia 26 de Dezembro de 2004, quando poderosos tsunamis

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devastaram várias cidades da Ásia e da África, matando mais de trezentas milpessoas. No entanto, no Parque Nacional de Sri Lanka, povoado por animaissilvestres, nenhum deles morreu apesar da tremenda inundação provocada pelaspoderosas ondas de doze metros de altura. Salvaram-se elefantes e chacais,pássaros e roedores, e até os desajeitados crocodilos conseguiram escapar. Todosfugiram a tempo para regiões mais elevadas quando perceberam as primeirasvibrações sísmicas e os primeiros longínquos ruídos do fundo do oceano que seabria.Só morreram os animais domésticos... já contaminados pelas palavras queouviam, mesmo sem entendê-las.8Essa tragédia não tira o valor supremo da Palavra como refinado meio decomunicação, mas revela um deslocamento da fina percepção - dos sinais para ossímbolos - que traz consigo algumas tristes desvantagens.Asiáticos e africanos, enquanto subia o mar, esperavam por avisossimbólicos - palavras! -, através de telefones e megafones, TVs, rádios outelegramas, sem atentarem para os sinais sísmicos que os seus corposregistravam, mas que não chegavam às suas consciências – sensações que não setransformavam em mensagens.Processo Estéticoe Produto ArtísticoO Artista é aquele que, como qualquer de nós, é capaz de ver Conjuntosonde analogias ou complementaridades unificam desiguais; por isso, pode viver

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em sociedade. Porém, ao não se deter diante da visão conjuntiva que usamospara perceber a realidade, através dos Conjuntos Analógicos ouComplementares, ou diante das palavras que usamos para nos comunicar – poisque as palavras são símbolos que designam Conjuntos -, o Artista avança,penetra no real e revela, em seu fazer estético (a busca, o trabalho, a tentativa, oerro e o acerto) e no seu produto artístico (a obra de arte acabada), percepções easpectos únicos dessa realidade encouraçada, blindada: percebe e revelaunicidades escondidas pela simplificação da linguagem que as nomeia, e pelossentidos que as agrupam, sem percebê-las.9O Artista penetra na unicidade do ser8, como se buscasse o seucomplemento, ou como se buscasse a si mesmo: sua Identidade na Alteridade. OUno busca o Uno, busca a si mesmo no Outro9.Essa dinâmica percepção nunca se imobiliza, mas se intensifica oudiminui de intensidade, sempre fluida: tanto a percepção do artista ao perceberou a fabricar a Coisa, como a do espectador ao fruí-la, ou a do amante ao amar.Amores se conquistam e se perdem, ao sabor da vida... e do domínio que, sobreela, possamos alcançar. Como a Arte, que não é nunca a mesma.Embora apenas algumas pessoas sejam nomeadas com o adjetivo deArtistas, todo ser humano é, substantivamente, artista. Todos possuímos, emmaior ou menor grau, a capacidade de penetrar em unicidades, fazendo arte ouamor. Somos capazes de encontrar o Uno.

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É importante notar a distinção que aqui faço entre o fazer, isto é, o ProcessoEstético, e o já feito, ou seja, o Produto Artístico. Para que este exista, aquele énecessário; mas não é necessário que o Processo Estético dê origem ao ProdutoArtístico, que pode ficar inconcluso.Para a Estética do Oprimido, mais importante é o Processo Estético quedesenvolve as percepções de quem o pratica, embora seja bem desejável que sechegue ao Produto Artístico – a obra de arte acabada – pelo seu poder social,amplificador. O desejo de chegar à obra de Arte é estimulante – funciona como8 Ao encontrar o Ser em sua unicidade - o artista, o espectador, ou o amante - defrontam-secom o Infinito. O objeto do amor é sempre Uno, porém toda Unicidade é um Conjunto, comoveremos mais adiante: aí reside o Infinito, que é o encontro impossível em que cada Unicidadeé um novo Universo (Nota 9, pg 8). O amante busca o Uno, exceção feita ao patológico DonJuan que não ama ninguém: ama o amor, ama amar. Narciso, outro caso clínico, ama a simesmoAlgumas formas dessas estruturas psicológicas genericamente chamadas de Loucura fazemquase o mesmo: desintegram os Conjuntos e se perdem, desesperados, na percepção de cadaum dos seres e coisas que o compõem, sem que sejam capazes de formar novos Conjuntos.Doentes há que vêem os poros assustadores que nos tornam penetráveis, e são incapazes de vera pele que nos protege o corpo. Ou formam Conjuntos de autonomia própria, que não sãoreferenciáveis nem ao real, nem à nossa percepção coletiva.9 Nessa busca, encontra o Uno ou a maneira Una de criar novos Conjuntos que só o artista pôdeperceber – à moda do louco - mas que podemos todos, através da sua arte, fruir. E, nela nosencontramos a nós mesmos, como Fernando Pessoa: “Ninguém a outro ama, se não que ama o

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que de si há nele, ou é suposto!”10a busca do sonho, da utopia. Quando se chega a essa etapa, o seu autor recebe osbenefícios do reconhecimento dos outros, o que o leva a tentar mais vezes.O Processo Estético permite que o sujeito se exerça em atividades que lhesão habitualmente negadas, expandindo suas possibilidades expressivas eperceptivas.Cada estímulo cerebral em uma área de atividade humana estimula áreasadjacentes: o cérebro é um eco-sistema e não um disco duro de computador. Éelástico e plástico. O Processo Estético, por essa razão, é útil em si mesmo, emais útil se torna quando chega à produção de um Produto Artístico que possaser compartido com outros sujeitos, igualmente empenhados em seus própriosProcessos Estéticos.O Produto Artístico - a obra de arte - deve ser capaz de despertar, mesmonaqueles que não participaram do Processo Estético que lhe deu origem, asmesmas idéias, emoções e pensamentos que levaram o artista à sua criação.É preciso deixar claro que o Processo Estético não é a Obra de Arte. Suaimportância e valor consistem em estimular e desenvolver as capacidadesperceptivas e criativas que estão atrofiadas no sujeito. Consiste em desenvolver acapacidade, por menor que seja, que tem todo sujeito de metaforizar a realidade.Todos somos artistas, mas poucos exercemos nossas capacidades estéticas.O Amor e a Arte

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Arte é amor. A pessoa amada é o Ser Único, descoberto pelo amante e sópor ele. Amando, nós o vemos e sentimos como insubstituível, irreproduzível.Amando, nós penetramos na unicidade do ser amado que, por sua vez, é um unouniversocomplexo e em movimento constante. Justamente porque é constanteesse movimento, o amor não o é. Por isso, Swan, o personagem de Proust, podedizer, ao reencontrar seu antigo amor, já esquecido: - “Ela nem sequer é o meutipo...” Não é, agora, mas, no tempo em que se perseguiram, e no percurso quepercorreram juntos, foi!O amor, que é uma experiência estética, embora fundado na realidade, éobra do imaginário: ao amar, amamos não apenas a pessoa que concretamenteexiste, mas as projeções que sobre ela fazemos – projeções que são produto eparte de nós mesmos. Nosso imaginário projeta, sobre a pessoa amada, vícios e11virtudes que não lhe pertencem, mas que existem no nosso desejo ou no nossomedo.Amar é Arte, e Arte é Amor. Estes dois processos – amar, e perceberesteticamente a unicidade de outro Ser, vivo ou Coisa - são absolutamenteidênticos. Mais ainda: são a mesma coisa10.Sendo idênticos, no Amor como na Arte, a nossa percepção do Outro, ou daCoisa, não se congela nem se imobiliza: o Amor é fluxo de corrente alternada -como pode ser a eletricidade e são as marés, porém sem a garantia dos ritmosconstantes ou previsíveis - nunca igual a si mesmo, sempre ao sabor de constante

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variação.É verdade que existem amores eternos – especialmente os que bem cedoterminam em espantosas tragédias sangrentas... - e obras de arte perenes, masnem a pessoa amada, nem a obra admirada, são admiradas e amadas com amesma intensidade constante, nem pelas mesmas razões a cada momento.No amor e na arte, a única constante é a inconstância.Ao contrário do que se diz, o Amor não é um encontro: é uma perseguição!Aquele ou aquela que está sempre mudando persegue aquela ou aquele quenunca é igual a si mesmo.O amor não oferece nenhuma garantia de estabilidade, como sabemos etemos provado. Da mesma forma que devemos cultivar a Arte com amor, ocultivo do Amor é uma arte.Arte e ConhecimentoPara encontrar o acesso a essas realidades últimas e únicas, existem osartistas, cujas atividades estéticas – isto é, sensoriais – surpreendem asunicidades e permitem conhecer a verdadeira realidade, sempre única. Na Arte,como Processo Estético, e na Obra de Arte, como coisa acabada, como ProdutoArtístico, o ser humano entra em contato com o real - como no orgasmoapaixonado ou no delírio.10 Da mesma forma que o amor não é “...imortal, posto que é chama...” (Vinicius de Moraes)também a fruição da obra de arte não é a mesma a cada vez que com ela nos encontramos.Podemos descobri-la a cada vez ou, para sempre, perdê-la.12Neste sentido, a Arte é uma forma especial de conhecimento, subjetiva,

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sensorial, não científica. Não é melhor que outras, mas é única. O artista, noexercício da sua Arte, viaja além das aparências do real e penetra nas unicidadesescondidas pelos Conjuntos11; na Obra de Arte, sintetiza sua viagem ao âmagodo real e cria um novo Conjunto - a Obra - que revela o Uno descoberto nessemergulho; este, por analogia, nos remete a nós mesmos.Quando escuto os primeiros severos acordes da Quinta Sinfonia deBeethoven, a trêmula ária Voi que sapete, do Querubim morzateano, ou a tristeDonna traviata verdiana, em cada caso são acordes únicos que escuto, naanárquica infinitude dos sons e ruídos que explodem à minha volta. Algumacoisa única, escondida em algum único lugar de mim, desperta e vibra, e me fazvibrar, como um todo, como ser humano – isto é a Arte.Vibramos como artistas ouvindo acordes únicos, estruturados de maneiraúnica. Através desta unicidade chega-se, por analogia, a um novo Conjuntoimaginário, ao qual chamamos platéia, formado por aquelas pessoas que algumaidentidade - não racional, mas racionalizável - sentem com tais acordes, comHamlet e Rei Lear, com o sorriso da Gioconda, os Santos do Aleijadinho ou coma Vênus de Milo que, necessariamente, não pode ter os braços que já teve. Se osainda tivesse, seria outra – a ausência de braços revela a presença do tempo, quetambém fruimos.O eu se transforma em nós – extraordinário salto. Em nós e em cada eu,descobrimos a descoberta que fez o artista. Quando somos capazes de dizer Nós,

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descobrimos o nosso mais abrangente Eu. Torno-me soma de todas as minhasrelações e algo mais, como em qualquer sinergia.Metaforicamente, sou sons e formas, sons e cores, sou Wagner eVelasquez... Mesmo se jamais cantei como Valquíria e jamais pintei bêbedos oumeninas.A Arte re-descobre e re-inventa a realidade a partir de uma perspectivasingular: a do artista, que é único, como é única a sua relação com o real, e o seucaminho de ver e sentir, do qual nasce a Obra de Arte, capaz de recriar, em cada11 A árvore não deve esconder a floresta, como disse o poeta, mas a floresta também não tem odireito de esconder cada árvore que nela se perde; nem cada arbusto, nem cada ramo de flores,nem cada pétala de cada flor.13um de nós, o mesmo caminho do artista. A realidade, tal como é vista peloartista, só pode ser observada a partir da sua Obra, também única. 12O cientista faz o mesmo, porém de uma perspectiva anônima que pertence atodos, e não depende da individualidade do solitário cientista. O Teorema dePitágoras revela que, em um triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa ésempre igual à soma dos quadrados dos catetos, e isso acontece em qualquerpaís, a qualquer hora do dia ou da noite, no verão como no inverno, seja lá quemfor o desenhista do triângulo ou a cor dos seus cabelos. Newton jurou que amatéria atrai a matéria na razão direta das massas e inversa do quadrado dasdistâncias, e isso é verdade, assim na terra como no céu, chova ou faça sol. Não

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importa que, mais tarde, Einstein tenha introduzido a idéia de que o espaço securva quando próximo da massa de qualquer matéria – para nós, que vivemoscom os pés na Terra, o melhor é nos afastarmos das macieiras...A Ciência é uma Arte, mas Arte não é Ciência. A Arte não dá conta detoda a realidade verdadeira, mas é uma verdadeira realidade.Estética e NeurôniosA Estética do Oprimido se baseia no fato científico de que quando, emcada indivíduo, são ativados os neurônios da percepção sensorial - células dosistema nervoso –, esses neurônios não ficam lotados de barriga cheia, comobytes de um computador, armazenando informações estáticas. Eles não se12 Quando, através do Amor ou da Arte, penetramos na unicidade de um Ser, penetramos noInfinito. Seria tolo imaginar que o Infinito seria apenas infinito para fora e para longe... Se éverdade que o Infinito é, ou existe, não pode tão-pouco ter limites para dentro: o Infinito não éapenas Infinito para além das estrelas e das Galáxias, mas também para dentro de cada átomodo nosso corpo. O infinitamente grande é exatamente igual ao infinitamente pequeno. OInfinito destrói os conceitos de grande e pequeno, longe e perto. Tudo está muito perto porquetudo é muito longe, e é pequeno por ser tão grande.Em cada fio dos meus cabelos existem trilhões de Vias Lácteas e de SistemasPlanetários, objetos siderais atraídos por vorazes buracos negros. Não podemos cair no mesmoerro que Parmênides (515 A.C. - ?), o filósofo grego que afirmava que o Universo era infinitoem todas as direções e, portanto, teria um ponto de partida, e seria esférico... Ora, se começavaem um ponto determinado e tinha uma forma precisa - a esfera - seria finito, pois a forma é olimite do Ser com o Não-Ser e, como sabemos, o Não-Ser não é... Não é mesmo?

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Toda unidade é múltipla, em todos os sentidos e em todas as direções – isso é o Infinito.Os Conjuntos conjugam Unicidades mas cada Unicidade é um Conjunto: cada á-tomo (o indivisível)divide-se em prótons, nêutrons, elétrons, etc. Cada próton... cada quark... cada antiquark...cada penta-quark... O Infinito é a vertigem do pensamento!14esgotam nem se repletam - o saber não ocupa espaço, diz a sabedoria popular!Ao contrário dos bytes solitários, os neurônios estimulados formam circuitos quese tornam cada vez mais capazes de receber e transmitir mais mensagenssimultâneas - sensoriais ou motoras, abstratas ou emocionais - enriquecendo suasfunções e ativando neurônios vizinhos para que entrem em ação, criando redescada vez maiores de circuitos conjugados que nos fazem lembrar outroscircuitos, estabelecendo relações entre circuitos que, entre si, mantenhamalguma semelhança ou afinidade, o que nos permite criar, inventar, imaginar.A imaginação é a memória transformada pelo desejo.Os neurônios começam a ser produzidos no feto, de forma acelerada, já naterceira semana de sua vida uterina São todos iguais, sem nenhumaespecialização. Dependendo do lugar onde se vão instalar, eles se especializamna função que devem ter onde se instalam: são plásticos. Se vão para o nervoauditivo, especializam-se em transmitir sons para o córtex cerebral; se no ótico,imagens; e assim por diante.As mensagens recebidas pelo Córtex – sons, imagens, cheiros, gostos,sensações cutâneas, idéias, fisionomias... - transformadas em circuitos

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neurônicos, relacionam-se com outros circuitos já existentes em camadas maisprofundas e estáveis do cérebro, e que são trazidos de volta ao Córtex, onde vãodialogar com as novas mensagens, diálogo do qual nascerão as decisões dosujeito.Todos esses circuitos modificados retornarão às camadas sub-corticais ondeirão influenciar a recepção de novas mensagens com as quais guardem algumarelação. Os primeiros sons influenciarão a recepção dos novos sons; as primeirasimagens, novas imagens; as velhas palavras serão confrontadas com novaspalavras; velhos conceitos, com novos conceitos; primeiros valores, com valoresnovos.Todos esses primeiros, arcaicos, não são imutáveis, e podem sermodificados, substituídos ou erradicados porque não são definitivos – nada noser humano é definitivo! Mas influenciam.A Invasão dos CérebrosSe o cérebro de um telespectador se enche de filmes de inspiraçãoholiudiana, vazios de idéias e repletos de força bruta, sua única forma de diálogo,15é claro que esses tiros, bombas, explosões, socos e rajadas de metralhadora vãoinfluenciar a posterior percepção do mundo desse infeliz espectador. Vãoinfluenciar suas decisões.Não é a violência em si mesma que causa danos aos espectadores, mas sim acarência de razões, de motivações para essa atividade física. No caso de Rambos

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e outros infra´heróis dessa subespécie, a Empatia13 torna-se uma relação de puraanimalidade irracional. O convívio com a brutalidade tende a formarbrutamontes. Uma pessoa que vivesse na selva em companhia de feraspredadoras, sem a presença humana, como se humanizaria?A violência, em si mesma, não é boa nem má. Será má quandodesacompanhada de razões, quando reduzida a socos e pontapés semsubjetividades. Mas poderá ser didática quando racionalizada e revelada suascausas e sua Ética.A mediocridade desse tipo de cinematografia não se deve à falta decriatividade dos seus autores, mas sim à deliberada intenção de, pela mecânicarepetição, bloquear o desenvolvimento intelectual metafórico das passivasplatéias.O maravilhoso filme de Stanley Kubrik, Full Metal Jacket, mostra comperfeição estética o processo ultramilitar de socavar, no cérebro dos recrutas,peremptórias ordens de obedecer e matar. O que o genial diretor demonstra, emum exemplo militar, é o mesmo processo que acontece na TV civil, que não écivilizada.Tememos a invasão da floresta amazônica por cobiçosas potênciasestrangeiras e por latifundiários autóctones que promovem queimadas edestruição. É certo: devemos temê-la! Muito mais perigosa, porém, é a invasãoda comercial cinematografia holiudense que já domina e dirige a maior parte dosnossos sonambúlicos espectadores.

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Não estamos falando apenas da TV, histérica, mas também da música:mesmo os paises como o Brasil, em que cada região cria dezenas de fascinantesritmos, são invadidos pela música massificada inventada ou distribuída pelascompanhias transnacionais.13 Lembro que a Empatia em Aristóteles estava intimamente ligada à Anagnorisis, quando oProtagonista explicava as razões dos seus atos e admitia seus erros – a emoção estava semprevinculada à razão.16Da mesma forma que um sociólogo estadunidense quis decretar o fim daHistória, a industria fonográfica quer agora decretar o fim da Música – esse fimtrágico já foi inventado dez anos atrás, em Berlim: o techno, ritmo semelhante aode uma desajeitada versão dos bate-estacas ou britadeiras de pedra, sendo queestas duas máquinas da construção civil são mais musicais, delicadas e sensíveisdo que o monótono techno que, entre outros malefícios sanitários, descompassamarca-passos usados por doentes do coração, já tendo causado várias mortes emshows musicais ambulantes pelas ruas berlinenses.Além dos filmes e da música, o restante da mídia escamoteia fatos políticose econômicos de importância, dedicando-se ao supérfluo e ao insignificante.Além do fim da História, do fim da Música, do fim das Artes Plásticas, do teatro,do cinema e o fim dos movimentos sociais, os meios de comunicação queremdecretar o fim do Pensamento.Para que este desígnio se cumpra é necessário esvaziar as palavras, torná-las

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inócuas e, para isso, o primeiro passo consiste em surrupiar palavras comoLiberdade e Democracia, dando-lhes um sentido exatamente oposto ao queconhecemos. Invocando a Liberdade e a Democracia, um país invade outrospaíses, tortura e mata seus cidadãos, chama os resistentes de insurgentes,afirmando que assim o faz para restabelecer a ordem. Qual? Aquela pela forçaimposta.Essa apropriação indébita de significados e significantes, esse propositalesvaziamento de todos os conteúdos da Palavra - que, podendo significarqualquer coisa acaba não significando nada! – tem por objetivo destruir acapacidade metaforizante dos cidadãos, sua capacidade de raciocínio imagético.O envenenamento das palavras busca desorganizar a linguagem e impedir aformulação de pensamentos coerentes. Já não se sabe o que se diz quando sefala! Já não se sabe o que se escuta quando se ouve. A Língua, falada e escrita,torna-se misteriosa e inacessível – torna-se obstáculo à comunicação, exatamenteo oposto daquilo para o qual foi criada.Sem exageros catastrofistas, estamos mergulhados na Grande GuerraMundial da Des-comunicação, insidiosa e sub-reptícia, quinta-coluna onipotentee onisciente. O objetivo claro dessa nova modalidade de guerra é o domínio, nãode territórios geográficos, mas de cérebros.É neste campo de batalha que se deve situar a Arte Popular. Todas as Artes.Temos que ser Aliados nesta guerra contra o fascismo do discurso unívoco.17

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Os adeptos da globalização econômica desejam o monopóliocinematográfico, fonográfico e de todos os meios de comunicação para que nospossam impor suas idéias e desejos, fazendo-nos crer que são nossos desejos eidéias. Temos que lhes impor uma outra Globalização: somos Sujeitos!O teatro é também um meio de comunicação, embora mais complexo do queo simples noticiário radiofônico. Cada forma de comunicar possui seus própriosmeios – alguns esclarecem os interlocutores e o ajudam a desenvolver suaspercepções do mundo; outros, criam o medo.O medo é uma potente arma que torna vulneráveis os espectadores: diantedas telas, são incapazes de penetrá-la, agir, contra-atacar, defender-se. Sãoimobilizados como cangurus olhando um foco de luz.A violência nas telas não tem nada a ver com arte, e tem tudo a ver comterrorismo, cujo objetivo principal é criar a insegurança generalizada, criandoimaginários ou verdadeiros focos de perigo, e escondendo sua origem: de ondevirá o golpe mortal? De que trevas, de que esquina mal iluminada? Onde seesconde o algoz? Quem será a próxima vítima? Por que?No sistema trágico, a Empatia se dava através do binômio Medo e Piedade.Medo, porque a catástrofe poderia acontecer a qualquer um de nós - éramossemelhantes ao herói, cujo infortúnio compreendíamos e sabíamos previsível einelutável; Piedade, porque admirávamos suas virtudes. Na filmografiaholiudense, de natureza terrorista, a Empatia se dá pelo Medo e pelo Espanto: o

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inesperado, a surpresa, quando tudo é possível mesmo o impossível, mesmo semcausa. Através do Medo e do Espanto, as piores idéias maléficas podem serinoculadas na platéia inerte.A Empatia falsificada transforma-se em dócil Mimetismo.Na Tragédia, a violência física se realizava fora de cena: Édipo arrancavaseus olhos, fora de cena; Medéia jamais mataria seus filhos diante do aplausofrenético dos espectadores boquiabertos, comendo pipocas. Suas razões, essassim, bailavam diante das platéias gregas que eram respeitadas como pessoasinteligentes e não como fanáticos espectadores de uma sangrenta luta de boxetailandês.Mesmo sendo um sistema coercitivo, a tragédia grega respeitava ainteligência, estimulava o pensamento e podia, como em Eurípides, provocar o18debate e o questionamento da sociedade e seus valores. A tragédia grega era obalé das idéias, não o das balas perdidas!É verdade que, em Shakespeare, a violência física chega, em cena, aos braçoscortados e aos olhos furados, mas nunca desacompanhada de razões.Os filmes holiudenses têm uma só temática: o direito pertence aos mais fortesque estão sempre com a razão, que são o Bem em sua cruzada contra o Mal – quesão aqueles que pensam diferentemente.Com este lixo ético despejado nos seus inocentes neurônios, os vulneráveisespectadores vão, mais tarde, receber as novas informações. Não nos podemosespantar diante de crimes do tipo Columbine14, que foram prenunciados e

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promovidos por esse tipo de cinema, nem podemos esquecer que as TôrresGêmeas de Nova York foram destruídas em um filme de ficção, antes de seremfilmadas em chamas, na tragédia verdadeira15.Mesmo que os filmes não mostrem brutalidade explícita - no caso dascomedias ligeiras com final feliz - introduzem em nossas cabeças hábitos,costumes e até a maneira de falar dos cidadãos dos seus países: o vestir, o trabalhoe o lazer, as relações amorosas e o uso do dinheiro, as opções morais e a razão deviver.Na Organização Mundial do Comércio, alguns países defendem a chamadaexceção cultural, não porque defendam a Cultura, mas porque, através dela –cinema, música, vídeos, CDs, DVDs e outras indústrias - o comércio impõe seusprodutos através da imagem.Não falo contra aquele sadio comércio que satisfaz necessidades docomprador – como as gostosas feiras livres, das quais sou adepto incondicional! –mas sim do comércio malsão que cria necessidades desnecessárias, invadindonossas casas na tela, no rádio, nos jornais e na internet - criando adição.14 Famoso massacre em uma escola dos Estados Unidos onde um estudante, menor de idade,matou dezenas de colegas e professores.15 Em Novembro 2004, noticiou-se que nos Estados Unidos havia sido lançado um novovideo-game no qual o usuário se coloca na posição onde estaria Lee Oswald e atira no carro emmovimento de John Kennedy: quando acerta o alvo, o sangue se esparrama pelo asfalto virtual...Kennedy já foi assassinado, mas quem treina quer jogar... Outros políticos andam por aí em carroaberto...

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19Nunca o comércio foi tão invasivo e tonitruante, deixando longe o tempo emque me alegrava ouvindo a voz do peixeiro com cestas na cabeça, cantando asvantagens do camarão fresco e louvações à pescadinha...A necessidade de uma Estética do Oprimido faz parte de nossa luta contraessa invasão cotidiana.A Metáfora Como TranslaçãoA Metáfora, no seu sentido mais amplo de translação, inclui todas aslinguagens simbólicas, entre as quais a Palavra, a Parábola e a Alegoria. Incluitodas as Artes que representam - não reproduzem – realidades. As Artes Plásticasusam o traço, o volume e a cor; a música, os sons e os silêncios; a dança, o corpomusical em movimento.Ativando-se com novos estímulos os neurônios estéticos – aqueles queprocessam, conjuntamente, idéias e emoções, memórias e imaginações, sentidos eabstrações - ativa-se a criação de Metáforas, todas as Metáforas. Translações:criações de novas realidades.O ser humano é o único animal capaz de criar Metáforas. Quanto maismetaforiza, mais humano se torna. Todas as artes são Metáforas e só os humanossão artistas.Sem uma atividade metafórica autônoma – que é o que busca desenvolver aEstética do Oprimido – a inteligência se paralisa e o indivíduo se aproxima outravez da condição de hominídeo, aquela com a qual começou a sua evolução! Faztempo...16

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Quero insistir em que os animais e os hominídeos não são capazes deatividades metaforizantes; não são capazes de transcreverem a realidade que oscerca e na qual se inserem, em outras formas. Os meios de comunicação,imperativos, promovem esse retrocesso17.16 A evolução dos hominídeos que se transformaram no atual Ser Humano não foi retilínea e contínua. NaIlha das Flores, Indonésia, (Nature, Setembro, 2004) foi descoberto o esqueleto de um hominídeo que datada mesma época em que os homens e as mulheres de Neandertal desapareceram misteriosamente, vinteou trinta mil anos atrás, quando coincidiam na Terra com os Cro-Magnon e talvez com outras espéciesainda não descobertas. O Ser Humano pode ser o resultado de cruzamentos entre Neandertais, Cro-Magnons, Homo Floresiensis, e outros mais, ainda enterrados.20Coroas de Circuitos Neurônicos,Refratárias e Agressivas, mas não Indestrutíveis.As Coroas que aqui apresentamos são uma hipo-tese, isto é, menos que umatese. Não posso apresentar provas cabais da sua existência, mas nenhumneurocientista pode apresentar provas da sua inexistência.Si non é vero, é bene trovato!Nomeio Coroa a este sistema, inspirado nas Coroas Reais que, na IdadeMédia, unificavam feudos, estruturando Estados. O Rei submetia barões,príncipes, condes, e outros nobres ao seu domino, dentro de uma estrutura maiorque os condados, principados e baronatos: o Reino.A penetração de novas informações sensoriais no Córtex, através doTálamo, e a circulação cerebral de mensagens abstratas e emoções concretas,pode-se dar de forma fluida e harmoniosa, integrativa, permitindo-se que novos

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circuitos se formem, que se entrelacem, criando redes, ricas e complexas,contendo mais circuitos neurônicos.Pode acontecer que, dada à natureza das informações impositivas edogmáticas, e dos circuitos onde se movem, essas redes se cristalizem tornando-seopacas e compactas, estruturas coerentes que se recusam ao diálogo com novoscircuitos exteriores a essas estruturas, impedindo a chegada de novas informaçõesconflitantes com as já existentes no seu próprio sistema.Exemplos dessas Coroas são encontrados em todas as formas deextremismo religioso, fundadas da existência de um sistema coerente deRevelações e Dogmas que, mesmo absurdos e inverossímeis, jamais sãoquestionados. Elas se tornam agressivas e destruidoras em relação a outras Coroas– outros extremismos e fundamentalismos! - ou a quaisquer novas informaçõesque com elas discrepem.Elas impedem o livre fluir da Razão. São imperativas e recusamsubjuntividades.17 Metáforas existem, pelo menos, segundo três formas gramaticais: a Metáfora Adjetiva: “OCapitalismo é um tigre de papel”; a Metáfora Adverbial: “O carro voava na pista” (onde se usaadverbialmente o verbo voar, como um modo de correr, e onde o verbo correr, que é modificado, estáeclipsado); e as Metáforas Substantivas que são todas as obras de arte que transubstanciam arealidade.21O fanatismo esportivo, a adoração idolátrica de uma pessoa ou instituição, osectarismo político, as gangs do narcotráfico e os clãs como Montequios e

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Capuletos, - mesmo quando existam outras razões sociais e econômicas para isso -são exemplos concretos dessas Coroas formadas pela repetição constante dasmesmas informações com o mesmo conteúdo, e pela aceitação dos mesmos valoresjamais questionados.Se as orações de uma religião extremista - ou dos extremistas de umareligião - fossem feitas apenas uma vez cada três ou quatro meses, essas Coroasnão se formariam. Sendo realizadas várias vezes ao dia, sim. Se as partidas de umaequipe de futebol fossem travadas uma vez a cada meio ano, não existiriamhooligans – como se realizam duas vezes por semana, não deixam tempo aosujeito de pensar outros pensamentos. Se um enfrentamento entre gangues fosseacidental e esporádico, fortuito encontro de rua, o diálogo seria possível.As repetições constantes produzem as refratárias e agressivas Coroas. Essanão é uma condição bastante, mas é necessária!As Coroas integram várias regiões do cérebro. Na teoria de Hughlings-Jackson (1835-1911) algumas atividades cerebrais são bastante simples, como asdo nervo ótico, enquanto que outras, como o pensamento, estruturam uma imensaquantidade de elementos simples.Não esqueçamos que o cérebro é um sistema ecológico onde tudo estáinterligado, e não um disco duro de computador.Neurônios EstéticosQuando, sobre determinado assunto, a Ciência não tem uma respostaprecisa ou um saber inquestionável, abre-se o caminho para interpretações

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poéticas.Além dos neurônios especializados em apenas uma atividade, existem tambémos que, dentro dos circuitos que integram, acumulam diversas funções e sãocapazes de receber e transmitir sensações físicas e emoções profundas, idéiascomplexas, palavras e símbolos. Estes neurônios e estes circuitos se encontramprincipalmente no córtex e no tálamo, que são as partes mais humanas do cérebrohumano.22Pedindo antecipadas desculpas aos neurocientistas, quero batizá-los deNeurônios Estéticos porque é essa a função da Estética: através de estímulossensoriais, revelar razões e produzir emoções. Estes circuitos neurais são capazesde perceber o mundo na relação entre o Uno e o Conjunto, relativizá-lo e descobrirsua lógica.Dostoievski escreveu que “Só a Beleza salvará o mundo”, frase que nóspodemos traduzir por: “Só a Estética permite a mais verdadeira e profundacompreensão do mundo e da sociedade”.As sinapses são os pontos de encontro entre neurônios, através dos neuritos –Axônios, que transmitem, e Dentritos, que recebem: braços suaves que seabraçam, superfícies por onde circula a informação – a imagem, o som, a palavra,o prazer e a dor, a lembrança, os diálogos... - através de processos químicos eestímulos elétricos.As sinapses se multiplicam e se diversificam, na medida em que sãoestimuladas18. Quanto mais conhecemos, mais cresce nossa capacidade de

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conhecer. Quanto mais me ponho a pintar, mais invento como usar pincéis, comose fosse pintor. Quanto mais me ponho a cantar, mais conheço a extensão daminha voz, como se fosse cantor. Quanto mais fizer dançar minhas palavras, maisaprendo a amá-las, como se fosse poeta. Fazendo, serei pintor, poeta e cantor. Sou.O saber, o conhecer e o experimentar, expandem a minha capacidade deconhecer, saber e aprender. Expandem além da minha busca e me fazem encontraro que nem sequer procuro. – “Não busco: encontro!" – disse Picasso. Nós faremoso mesmo se, para isso, nos dedicarmos a ver o que olhamos, ouvir o queescutamos, sentir o que tocamos, escrever o que pensamos. Somos todos Picassos,cada um na sua medida... e ao seu jeito.Volume, Território,e as Insígnias do PoderA pedra, inanimada, ocupa no mundo um espaço idêntico ao seu volumecompacto. As plantas – seres vivos - crescem e necessitam de maior território do18 A extrema delicadeza e a complexidade das células chamadas neurônios obrigou a Natureza afazer uma exceção curiosa: todos os demais ossos do nosso corpo estão dentro do próprio corpo elhe dão sustento; na cabeça, porém, a ossatura envolve o cérebro e lhe dá proteção. Alguma coisade muito importante deve haver lá dentro.23que apenas o seu volume: mesmo imóveis, nutrindo-se de terra e chuva, as árvoresespalham sombras no chão onde não mais floresce a grama – chão que se tornaparte do território da árvore, maior que o volume do seu corpo. Em suas copas

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frondosas, seus galhos e folhas aprisionam o espaço; as raízes invadem maioressuperfícies de terra do que seus volumes somados.Os animais – seres vivos que se movem - lutam por espaço ainda maior.Alguns marcam seus territórios pelo cheiro, como cães e lobos que urinam paraque se saiba a quem pertence aquele espaço – poderiam urinar a bexiga inteira emum só poste, um só tronco de árvores, mas preferem usar vários para demarcaremseu espaço. Outros, pelo ouvido: leões urram, pois não ficaria bem um leãourinando em postes, com a perna levantada; tigres bramam, gatos bufam, o galoclarina o seu galicanto, o falcão crocita, a onça esturra, geme a juriti enquanto ri ahiena, silva a serpente e suspira a ema.Os animais privatizam o espaço que pertence a todos, e o espaço privatizado éexcludente: esta é a minha casa, meu quintal, meu latifúndio; não é a tua casa, oteu quintal, a nossa terra. Inicia-se a luta, feroz ou ardilosa, pelo espaço que setornou propriedade, extensões do corpo do dono, seja ele leão ou latifundiário. Oque acontece nas florestas e savanas com animais selvagens, acontece nos camposcom grileiros, e na Bolsa de Valores com a especulação financeira: dinheiro époder, e o poder tudo compra, a começar pelo espaço.O ser humano também usa seus sentidos para estender os limites do seuterritório. Dos três de longo alcance, mais do que o ouvido e o nariz, o ser humanousa os olhos: a Imagem. Todas as sociedades humanas são espetáculos visuais,secundados pelos demais sentidos19. O que varia, com o avanço da História, não é

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o seu caráter espetacular: são os meios de produzir o espetáculo.Nossas sociedades tecnológicas sofisticadas - que usam a luz elétrica, rádio,cinema, TV e computação - dão a impressão de que só elas são espetáculo, ou queo espetáculo com elas nasceu. Na verdade, para realizarem o seu espetáculo, cadasociedade usa os meios de que dispõe, como o cão a sua urina.As sociedades são espetaculares no sentido estético da palavra, porque sebaseiam em relações de poder, e o poder exige insígnias e rituais. Como é abstratoantes de ser exercido, pura potência antes do ato, exige concreções para serreconhecido à primeira vista e ao primeiro som, para ser temido e respeitado.19 Uma quermesse na igreja, por exemplo, estimula, além da visão, a audição (música ambiental), opaladar e o nariz, com suas guloseimas, e o tato com suas danças.24Necessita Insígnias evidentes - fabricadas com sinais, signos e símbolos20 - rituaisbem estruturados, conscientes ou não.O Rei Louis XIV acordava todas as manhãs diante de espectadores escolhidosentre os seus favoritos da Corte, que esperavam ansiosos para aplaudirem o seuprimeiro bocejo matinal, ao som de suave alaúde e cravo, em belas composiçõesde Lully.Esses nobres disputavam a preferência do monarca, vestindo-se de formaadequada para tal cerimônia, e aplaudindo com suaves palmas bem medidas. Oespetáculo mostra não apenas o seu titular principal, o protagonista, mas toda umahierarquia do poder, estruturada nos seus rituais específicos, desde o mais

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poderoso até o coadjuvante menos importante. Todos devem desempenhar seuspapéis. Mesmo nu, o Rei está sempre pomposamente vestido de seda e ouropéisimaginários.A carruagem foi inventada como meio de transporte, mas a carruagem quetransporta reis e rainhas – se fosse só essa a sua utilidade - seria bem mais eficazse fosse substituída por um carrinho popular de dois ou três cavalos de potênciamotora, ao invés dos quatro ou seis garbosos animais de carne e osso. Acarruagem é símbolo de poder, de vetusta hierarquia e tradição. Secundariamente,transporta pessoas.Hoje, já não se usam espetáculos tão artesanais e ingênuos como usavam osLuízes; ainda assim, os reis continuam exibindo suas coroas, o papa sua mitra, ogeneral suas estrelas, e as damas das burguesas cortes, jóias e cirurgias plásticas.Bocassa, ditador da Centro-África, apesar de ter um poder unipessoal ediscricionário, exercido através de um exército sanguinário, gostava de seapresentar paramentado de leopardo, ornado de pedras preciosas, fartas em seupaís. Exigiu ser coroado Imperador na presença de dignitários estrangeiros.Cobiçosos de tanta riqueza, muitos vieram à festança e partiram brilhantes.20 Sinal é um estímulo sensorial (som, imagem, etc.) convencionado entre pessoas, ou de automáticailação, e que carrega um significado preciso, limitado: isto quer dizer aquilo! É uma advertência. Já osímbolo, também convencionado, não tem limites. O verde no trânsito é sinal que permite a passagem,mas a cor verde é um símbolo de esperança. Pode-se dizer que uma árvore caída da estrada é sinal de

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que ventou forte, enquanto que a mesma árvore caída, pintada em uma tabuleta na beira da estrada, ésímbolo de perigo, embora seja sinal de trânsito. O sinal pode também ter adquirido seu significadopela memória: uma nuvem negra é sinal de chuva. Ao signo, atribui-se poderes mágicos, como aos doHoróscopo, ou mnemônicos, como aos heráldicos. Uma insígnia, reveladora de status, pode serfabricada com sinais, símbolos e signos.25Não só as festas de 15° aniversário de uma jovem que dança com o pai suaprimeira valsa, ou da plebéia Angélica com o Príncipe no Leopardo de Visconti,que lhe abre as portas da nobreza, ou uma cerimônia do seu casamento, a noivatoda de branco vestida; não só o presidente da República quando deposita coroasde flores no túmulo do Soldado Desconhecido, ou a inauguração de uma novaestrada - não só essas pompas são espetáculo, mas também o almoço ajantaradodos domingos familiares onde se come e fala segundo regras estabelecidas, comoem qualquer peça de teatro.O espetáculo tem a função de revelar quem é quem, como se pusesse umalegenda na testa de cada protagonista ou figurante!21A aparição de qualquer cidadão em capa de revista, coluna social ouesportiva, ou em um programa de TV – que são formas espetaculares, estáticas oudinâmicas - pode dar a qualquer pessoa, por mais insignificante que seja, o podercorrespondente a esse status que lhe confere a mídia, e que dura até a próximaedição do jornal. Mídia que é, a um só tempo, fonte de informação e de valoraçãodaqueles que nela desfilam: fontes de poder, como a coroa e a mitra.

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O extraordinário poder hipnótico da TV é levado ao paroxismo pelomovimento da imagem. Qualquer movimento é atraente por causa da suaimprevisibilidade – todo movimento cria suspense. Já no berço, o olhar do bebê éatraído por qualquer coisa que se mova: o movimento é uma das formas sadias dedesenvolver sua atenção.A TV utiliza esse fato biológico: suas imagens não demoram na tela, via deregra, mais que alguns segundos fugidios. Não permitir que os telespectadoresvejam a imagem que olham, esse é um princípio básico da hipnose televisiva.Outra imprevisibilidade é o som: surpreende e assusta.É curioso que o cinema, antigamente calmo e tranqüilo, já não permiteAntonionis: absorveu a vertigem da velocidade da TV. A pequena tela é vista nasala de jantar iluminada, onde espectadores realizam sonoras atividades paralelas(jantar, jogar cartas, conversar em voz alta...) Na grande tela, a histeria da imagem21 Alguns espetáculos, dada a sua natureza catártica, tornam-se rituais orgiásticos como, por exemplo, as grandesconcentrações musicais onde ninguém vai para apenas ouvir música, mas para simbólicas – ou nem tanto – orgias. Oaparente desdém e distância que os Beattles mantinham de suas platéias, como frios amantes, exacerbavam ainda mais adesesperada busca de paroxismos.26não seria necessária pois acontece na sala escura onde, quando muito, come-sepipoca e bebem-se insalubres refrigerantes.A TV é feita para vender produtos e idéias, isso através do mecanismoinsidioso da empatia, que nos faz suspender o nosso senso crítico e a nossanecessidade de atuarmos para, imobilizados no corpo e na alma, ficarmos a mercê

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dos ralos pensamentos, reles linguagem, chã e vazia, costumes consumistas eviolentas ações que nos impõe a tela. Até nas comédias o nosso riso é programadoe obrigatório: risadas, gravadas em background, nos informam que tal cena oufrase é engraçada e, mecanicamente, nos mostra quando devemos rir, mesmo semacharmos graça.Nem sempre a estrutura desses programas já os condena. A idéia dos realityshows, em si mesma, não é totalmente ruim: se, ao invés de pessoas vazias emedíocres, os produtores convidassem Noah Chomsky, Arthur Miller, SusanSontag e Michael Moore – para citarmos apenas intelectuais norte-americanos -para ficarem vinte e quatro horas em uma sala trocando idéias, eu não dormirianessas vinte e quatro horas – olhos vidrados na tela. Os próprios participantesimporiam seus limites comportamentais impedindo que tais shows setransformassem, como tem sido o caso, em permissivas sessões de repugnantevoyeurismo. Seria um encontro de inteligências e não de aberrações.Paradoxo: a TV torna-se a verdade absoluta e a realidade ficção, até que sejareferendada pelo Jornal da Noite.No fim da década passada, no centro do Rio de Janeiro, houve um assalto aum ônibus, com a tomada de reféns, que durou cinco horas e foi filmadointegralmente pela televisão. Uma jovem confessou que, ao passar pelasimediações e ao ver o que estava acontecendo diante dos seus olhos, voltou

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correndo para casa e ligou a televisão para ter certeza de que era verdade o quehavia presenciado.Os meios de se realizar o espetáculo mudam com a cultura de cada povo, massua função é a mesma. Menos tecnológicos, indígenas brasileiros usam plumagemcolorida que exibem em suas festas ou quando se preparam para a guerra. Algunsusam objetos redondos – sua mitra e sua coroa! - com os quais furam seus lábiosque lhes dão feições assustadoras. À sua volta, todos dançam respeitosos, embusca de um lugar na estrutura de poder que a proximidade do cacique oferece.Em um contexto diferente, é igual aos nobres de Louis, velando ao seu despertar.27As insígnias, ao mesmo tempo em que, com sua presença, individualizam oseu possuidor como alguém superior e potente, são também Imagens da Ausência.A coroa real nos faz perceber a nossa pequenez: somos cabeças não-coroadas! Asinsígnias mostram onde reside o poder, e nos denunciam como não possuidoresdesse poder: somos súditos, vassalos ou escravos.Isto é explicitado na estrutura de todos os espetáculos-rituais: ao vê-los,mesmo inconscientemente, tudo compreendemos e nos comportamos segundo aposição que neles ocupamos.A maior humilhação que pode sofrer um militar é que lhes retirem asmedalhas em frente à sua tropa de soldados sem medalha: retorno ao marco zero.Os Três Níveis da PercepçãoPara viver, exercer nosso poder e ocupar nosso território, nós, animais de todas

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as estirpes, necessitamos perceber o mundo onde vivemos. Essa percepção dá-seem três níveis:1 – Informação - o nível receptivo: a luz se reflete sobre os objetos,atravessa o cristalino dos meus olhos, estimula minha retina que informa ao nervoótico, que faz circular essa informação eletroquímica até aquela região do cérebroque me fará ver o que está diante de mim. Recebo a mensagem. Essa informaçãonão fica arquivada mas, pelo contrário, inter-relaciona-se com outros circuitosneurais. Semelhantemente ocorre com os demais sentidos.2. Conhecimento e Tomada de Decisões - nível ativo: o indivíduo relacionaas novas informações com as que já havia recebido anteriormente, e toma decisõesreativas.Nestes dois níveis, humanos e animais se igualam: ambos decidem, reagem.Em alguns, as decisões são instintivas ou biológicas. Ratos criados em laboratório,que jamais viram a cor de um gato nem conhecem o seu mau caráter, fogemespavoridos quando sentem o cheiro do felino: mesmo sem conhecer o inimigo, orato reage biologicamente e repele o cheiro.No ser humano, o Conhecimento é acompanhado de uma avaliaçãosubjetiva, que pode induzir ao erro. Em nós, a Informação e o Conhecimento noslevam ao terceiro nível, como neste exemplo:28Abro a porta da minha casa e vejo umtigre, fugido do circo: meu nervo ótico registra sua presença – recebo ainformação! Excelente! Meus sentidos funcionam. Fico feliz.O tigre se aproxima e as informações continuam a chegar com

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eletroquímica precisão neurônica: vinte metros, dez, cinco. O tigre brama, e escutoo seu bramar: ativa-se o meu nervo auditivo, bravo! Continuo alegre com ofuncionamento perfeito dos meus sentidos.O tigre abre sua enorme boca - ativa-se o meu olfato e sinto o bafo quente!Fico contente; as informações são corretas, estou bem informado. O tigre abre agoela e arreganha os dentes! Maravilha: percebo tudo, tão perto estou dos seusdentes afiados.Se parasse aí o meu processo psíquico, eu seria engolido com apetite e semdelongas. Mas como, no nível do Conhecimento, eu já sabia que o tigre eraperigoso, sabia que posso trancar a porta e usar a chave, sabia que tenho pernas -posso correr e me refugiar no andar de cima. Sei que posso me salvar, como ratofugindo do gato.Como humano, porém, não me reduzo a fugir: posso tomar decisõescriativas, buscar outras soluções. Posso inventar, escolher o que fazer. Na gaveta,tenho um revólver e posso matar o tigre. Subo ao segundo andar, abro a gaveta,ponho a mão lá dentro e...3. Consciência Ética, o nível humano - este nível é exclusivo do serhumano: consiste em dar sentido e valor às decisões que tomamos. Eu meinterrogo - este é o nível da dúvida e da escolha eticamente justificada.Devo matar o tigre? Afinal, ele está desnutrido, faminto – a crise econômicadiminuiu sua ração! O tigre quer apenas me comer, saciando sua fome, sem

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aleivosia: comer gente ou bicho lhe é tão natural como à piranha devorar um boi.Eu posso me salvar mas, se o deixar livre, o tigre pode comer o filho do vizinhoque está brincando com o triciclo que ganhou de Natal - o menino tem a carnemais tenra do que a minha...Chamo os bombeiros? Jogo minha escrivaninha na cabeça do tigre para quefique desacordado? Grito?Este terceiro nível é Ético: dá valores a cada ato, e projeta o ser humano emsuas ações no futuro, não apenas em suas reações no presente.29É criativo: exige a invenção de alternativas. É neste nível ético que se devemover uma sessão de Teatro-Fórum: não bastam boas idéias, é necessário quesejam eticamente justificadas. Não basta trabalhar com as idéias que já existem: énecessário inventar.No nosso trabalho teatral, é importante ampliar e amplificar todos os níveisda percepção, especialmente o Ético, para que as nossas escolhas sejamconscientes – com ciência - das possibilidades que existem ou podem ser criadas,em cada situação: sempre existe escolha!A Necessidade daEstética do OprimidoA Estética do Oprimido - que desejo que se torne parte indissociável doTeatro do Oprimido - é necessária e essencial, na medida em que produz uma novaforma de compreender, ajudando a que o sujeito sinta e, através de suas sensaçõese não apenas de sua inteligência, compreenda a realidade social.

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A Estética do Oprimido é mais ampla que a simples percepção, produzindoestímulos emocionais e intelectuais, somando, à linguagem simbólica da palavra, alinguagem sinalética dos sentidos.O teatro é a forma mais natural de aprendizado, a mais arcaica, pois que acriança aprende a viver através do teatro, brincando, interpretando personagens –e, através das outras artes, pintando-se e pintando, cantando e dançando.É verdade que esse aprendizado utiliza estruturas sociais e valores éticosvigentes em cada sociedade; para evitar a aceitação passiva dessa sociedade talqual é, existe o Teatro do Oprimido - subjuntivo e não imperativo - questionandovalores e estruturas.A criança deve aprender a viver em sociedade e também a questioná-la.Os Jogos Teatrais sintetizam a Disciplina e a Liberdade. Todo jogo temregras claras que devem ser obedecidas; mas, obedecendo-se às regras, a invençãoé livre e necessária.30Todo jogo é um aprendizado de Vida; jogo teatral, um aprendizado de VidaSocial. Os Jogos do Teatro do Oprimido são um aprendizado de Cidadania. SemDisciplina, não existe Vida Social. Sem liberdade, não existe Vida.Como disse um camponês do MST: - “O Teatro do Oprimido é maravilhosoporque permite que a gente aprenda tudo aquilo que já sabia!”. Aprende,esteticamente – amplia o conhecer, e lança o conhecedor em busca de novosconheceres.Aprendemos a aprender!

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Temos que ativar nossos Neurônios Estéticos através do ensino subjuntivodas Imagens – olhar e ver -, do som e da música – ouvir e escutar -, da Palavra –poesia e narrativa – e, em toda essa atividade estética e social, buscar o seusentido ético, do qual o seu primeiro elemento é o de Multiplicar o aprendido.O estímulo que se faz em uma área cerebral propaga-se às áreascircunvizinhas: acordes de violão desenvolvem potencialidades visuais e nãoapenas auditivas. Campeões de xadrez estudam música clássica para melhorimaginarem criativas estratégias. Einstein tocava violino quando não conseguiaprosseguir no seu trabalho matemático, e voltava à matemática quando, nosacordes do seu violino, encontrava o estímulo necessário: a música é o som damatemática, é a matemática sublimada em sons.Os Neurônios Estéticos são os mais importantes do sistema nervoso,segundo a hipótese de que, neles, coexistem os sentidos com a razão, o concretocom o abstrato: a percepção estética incorpora a razão e a emoção, juízos evalores, e não apenas sensações!22Da mesma forma que o esporte expande as potencialidades do corpo, aArte expande as do espírito.As sementes deste Projeto Estético já estão no próprio Arsenal do Teatro doOprimido – as Técnicas e os Jogos de Imagem já são Artes Plásticas – falta22 Os neurônios motores que nos permitem mover o dedão do pé, são bem mais simples. Lulaperdeu o dedo mindinho da mão esquerda, foi eleito Presidente da República, e passa bem;

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Roosevelt perdeu a capacidade motora de suas pernas, mas continuou dirigindo o seu país; ocientista Stephen Hawking, imobilizado em uma cadeira de rodas, continua escrevendo livros.Mas, se algum deles tivesse perdido um pedaço de cérebro, o mundo estaria à beira de umacatástrofe... como de fato está.31extrapolá-las para a obra de arte concreta; as Técnicas e os Jogos de Ritmos já sãomúsica – falta transformá-los em canções e sinfonias; as improvisações jáproduzem literatura: falta concretizá-la em poemas e narrativas.Atenção: não se trata de ensinar Solfejo e Canto Orfeônico, nem obrigarninguém a cantar a segunda parte do Hino Nacional, como fui martirizado naminha infância, mas sim de desenvolver a musicalidade que já possuímos todos.Não se trata de organizar um Curso Supletivo de Arte que venha remediarcarências da infância. Não se trata de ensinar desenho, cor e traço, para quedesenhem estátuas gregas ou modelos nus, como na Faculdade, mas sim ajudá-losa ampliar suas sensibilidades, suas tendências artísticas e seus embrionáriosconhecimentos23.Buscamos o Belo, como qualquer artista. O Belo que, como escreveu Hegel,é o luzir da verdade através dos meios sensoriais. A verdade que se esconde atrásdas aparências. Mas não a verdade hegeliana que revela Deus, e sim aquela quepode ser inventada pelos humanos: uma Ética Humanística.Buscamos o Belo que se esconde no coração de cada cidadão, pois cadacidadão é um artista - cada qual ao seu modo: mesmo que alguns não sejam

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capazes de criar um Produto Artístico que nos ilumine, todos são capazes dedesenvolver um Processo Estético.23 Quando o CTO começou suas atividades no Rio em 1986, em comunidades pobres, erampoucas as ONGs que se dedicavam a tarefas similares: hoje, muitas se dedicam a realizarprogramas artísticos semelhantes aos que já existem para a classe média, preparando atores ebailarinos para a TV, teatro e cinema. São comuns as reportagens sobre jovens de excepcionaltalento, revelados nos morros, que vão fazer carreira em telenovelas, bailarinos selecionados paracontinuar seus estudos em Nova York e até no Bolshoi de Moscou. Isso tem acontecido, é ótimoque aconteça, porém não é nossa função, nem faz parte dos nossos objetivos.Essa aplicação, em comunidades pobres, dos mesmos programas e métodos que sãoutilizados pela classe média e alta, traz no seu bojo a mesma ideologia competitiva e o mesmoelogio ao mais capaz, ao excepcional: a ideologia do primeiro lugar, do campeão.Nossa função, ao contrário, é preparar os participantes dos nossos grupos para seremMultiplicadores de Arte, segundo a nossa máxima de que “Só aprende quem ensina!”, levandoem conta que nosso objetivo é atingir todo o tecido social e não apenas revelar talentosexcepcionais.32Buscamos a Cultura, não só para compreender e fruir a Cultura alheia – aErudição, que é o conhecimento de outras Culturas! - mas sim para desenvolver anossa própria identidade: somos o que fazemos! – e se fizermos apenas aquilo quefoi inventado pelos outros, seremos uma cópia dos outros e não nós mesmos.É importante para todos nós o conhecimento da cultura de outros povos e deoutras épocas, ou de estruturas artísticas completas e bem acabadas, mesmo

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quando afastadas de nós. Moças e moços de uma comunidade pobre que aprendama dançar Valsa com rigor austríaco, ou um bom Minueto com elegância francesa,algo aprendem e são esteticamente estimulados, mesmo que a “nobreza e oequilíbrio dos movimentos”24 desta dança nada tenham a ver com as suas vidascotidianas. Se, fielmente, encenam uma peça de Molière ou, com igual fidelidade,aprendem a tocar um Noturno de Chopin, claro que isso só poderá ampliar oshorizontes da sua percepção e esse aprendizado é maravilhoso.Nenhuma estrutura de dança, música ou teatro é inocente ou vazia: todascontêm a visão do mundo de quem a produz – contém a sua ideologia - que,através da forma artística, é assimilada e incorporada por quem as pratica.Camponeses europeus não dançavam Valsas nem Minuetos, que só eramcompatíveis com o lazer dos ricos. É ótimo que saibamos dançar Minuetos eValsas, e melhor ainda que descubramos a dança que o nosso corpo é capaz decriar25.Se não criarmos a nossa própria cultura, seremos obedientes e servis aoutras culturas. Criando a nossa própria, as outras culturas só poderão nos serbenéficas, expandindo a nossa sensibilidade. O fato de ser quem sou – quando seiquem sou! - não me impede de admirar o que fazem os outros. Se não sei quemsou... serei cópia.24 Definição do Dicionário Aurélio.25 Julián Boal, em seu ensaio A Dança do Trabalho, cita pesquisadores que mostram que os

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movimentos realizados durante o trabalho foram, em muitos casos, a origem de dançasmundialmente conhecidas, como a claquete, que vem do som dos passos dos escravos norteamericanos,quando passeavam no chão de madeira das casas dos seus senhores, calçandosapatos com ruidosas “ferradurinhas”, ou os graciosos movimentos helicoidais das mãos dasbailarinas andaluzas dançando flamenco, originados nos movimentos de colher os frutos dasárvores.33A Estética do Oprimido é uma proposta que trata de ajudar os oprimidos adescobrir a Arte descobrindo a sua arte e, nela, descobrindo-se a si mesmos; adescobrir o mundo, descobrindo o seu mundo e, nele, se descobrindo.O Método SubjuntivoO teatro, usualmente, conjuga a realidade no tempo Presente do ModoIndicativo – “Eu faço!” A TV e a publicidade, no Modo Imperativo: - “Faça!” NoTeatro do Oprimido, a realidade é conjugada no Modo Subjuntivo, em doistempos: no Pretérito Imperfeito – “... se eu fizesse?” - ou Futuro – “... se eufizer?”No trabalho com camponeses que lutam pela terra para cultivá-la, ou com osjovens cumprindo pena em estabelecimentos correcionais; com comunidadespobres, com portadores de deficiências físicas ou mentais, com operários de umafábrica ou com empregadas domésticas, ou conosco mesmos! - temos que serSubjuntivos.Tudo será “se”, porque quase tudo pode vir a ser.Subjuntivo – eis a palavra! O Teatro Subjuntivo deve ser acompanhado pelo

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Teatro Legislativo26 para que se extrapolem, em leis e ações jurídicas, osconhecimentos adquiridos durante o trabalho teatral. Ou pelo Teatro Invisível,para que se intervenha diretamente na realidade. Ou pelas Procissões Laicas, paraque se chama a atenção da população para o tema que se quer tratar. Ou por umaAção Concreta, que a modifique em curto prazo, mergulhando-se de vez narealidade.O Método Subjuntivo é a instauração da dúvida como semente das certezas,é a comparação, a descoberta e a contraposição de possibilidades; não a de umacerteza estabelecida face à outra, que temos guardada. É a construção de diversosmodelos de ação futura para uma mesma situação dada, o que permite suaavaliação e estudo.Não devemos nunca dizer: - “Façam isto ou aquilo!”, mas sim: - “Sefizéssemos aquilo ou isto, como seria se fosse?” Mesmo que os participantes dosnossos programas façam qualquer coisa ótima e admirável, ainda assim devemospedir alternativas: se fosse diferente, como seria?26 Teatro Legislativo – forma do Teatro do Oprimido que busca inscrever na Lei os desejos dapopulação organizada. Livro de Augusto Boal editado pela Civilização Brasileira.34A Metáfora:Humanos e HominídeosNa Estética do Oprimido concentramos nossos esforços e nossas preocupaçõesem criar condições para que os oprimidos possam desenvolver plenamente o seumundo metafórico – seu pensamento, sua imaginação e sua capacidade de simbolizar,

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sonhar, criar parábolas e alegorias, que permitam ver, a certa distância, a realidade quese quer modificar – sem diminuir sua participação no mundo social, concreto. Nãopodemos ver o real se a ele temos o nosso nariz colado – é necessária certa distânciaestética.Ao lado do mundo sensível, significante, queremos desenvolver o mundo dossignificados.A transformação do artesão – aquele que criava a peça inteira - em operário, -aquele que realiza uma tarefa específica sem ter domínio sobre o produto final, comoum operário metalúrgico que enfia o parafuso na porca sem saber se o produto finalserá um automóvel ou um trator - tirou do artesão, transformado em operário, grandeparte da sua capacidade de imaginar: tirou o artista que existe em todo artesão.Os hominídeos se transformaram em seres humanos quando desenvolveram aimaginação, a linguagem simbólica, a metáfora – quando inventaram a palavra, apintura rupestre, a dança, o teatro. O ser humano criou o que Platão chamava de Mundodas Idéias Perfeitas, inexistente no mundo sensível e exclusivamente humano, emcontraposição ao existente mundo imperfeito das realidades sensíveis.Sócrates já havia estabelecido o conceito de Logos (não o fato isolado, mas o seusignificado, o conceito que abrange todos os fatos ou fenômenos da mesma natureza),no qual Platão baseou a sua teoria.Fazendo uso da licença poética, tão útil nestas circunstâncias, podemos dizer quea dança é o Logos do movimento, assim como a música é o Logos do som, e o teatro o

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Logos da Vida.Aristóteles defendeu a idéia de que a perfeição estava contida em cada ser – nãoera um mundo à parte, desconectado do real: era o real em movimento, era a busca dealgo perfeito, inexistente.35Os hominídeos, ao se transformarem em seres humanos, fizeram a diferençaentre o cérebro e a mente, a matéria e o espírito. O cérebro, anatômico desenvolveu oCórtex, pressionado pelas novas necessidades intelectuais desse mundo subjetivo,abstrato e metafórico. É assim que as coisas acontecem: a necessidade cria uma novarealidade.Isso me faz lembrar uma das frases mais ouvidas dos fisioterapeutas sobre o usoe o desuso: todas as partes do corpo, quando usadas, se desenvolvem; quando emdesuso, se atrofiam. O cérebro é parte do corpo e também a ele se aplica a regra do usoe desuso...A Arte é a característica mais humana do ser humano: é a sua capacidade derecriar o mundo. Quando os primeiros habitantes das cavernas começaram a pintarfiguras de bisontes e outros animais nas paredes de suas cavernas estavam procedendoa uma Metáfora pictórica. Nós não devemos vê-los com olhos modernos: não estavamdecorando seus apartamentos pendurando quadros nas paredes mas, ao contrário,faziam a Metáfora de recriar os animais, concretos e ameaçadores, em outro contexto: apintura. Poderiam, assim, estudá-los, pois necessitavam abate-los e comê-los.Poderiam, também, usar essas imagens para seus rituais encantatórios.

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Arte é Metáfora. Metáfora, no seu sentido mais amplo, é qualquer translação. É atransposição de algo, que existe dentro de um contexto, para um outro contextodiferente daquele em que se encontra na vida cotidiana. A pintura e a escultura sãometafóricas porque, pelos próprios elementos que utiliza – tintas, tela, ferro, barro, etc.– já se distanciam da realidade original, criando outra, igual e diferente. Com o cinemaacontece o mesmo: já é metafórico o próprio ato de filmar.O teatro moderno, quase sempre realista, tende a colar-se à realidade original.Alguns estilos, porém, pela sua própria apresentação como Imagem, promovem essevigoroso distanciamento estético metafórico: o Nô e o Kabuki japoneses, o Katakaliindiano, a Commédia del´Arte italiana, a Tragédia Grega, os Contadores de histórias donosso Nordeste, etc.Apenas nós, humanos, somos capazes dessas translações – somos o único animalmetafórico.Este salto, que vai do cérebro físico à consciência, é tão importante e tãomisterioso como aquele outro salto, que vai da matéria inanimada à vida. Tãomisterioso e tão importante é também o salto que vai da percepção sensorial à tristezaou alegria, das sensações à emoção. Tão misterioso como o processo de pensar, quesurge deste conjunto.36Estes saltos misteriosos contrariam Leibnitz, filósofo alemão do século dezoito,para quem “natura non facit saltus”. Faz sim.Estes mistérios, juntamente com a idéia dos dois Infinitos – o Infinito Maior e oInfinito Menor, o para fora e o para dentro -, são os mistérios supremos e últimos da

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existência que jamais entenderemos. Por enquanto.Em nossas sociedades, a fim de melhor oprimirem os oprimidos, os opressoresprocuram reduzir a vida simbólica dos oprimidos, sua imaginação, obrigando-os aotrabalho mecanizado no qual são substituíveis por quaisquer outros - seus nomestornam-se números: a qualidade torna-se quantidade, e o ser humano se robotiza.O lazer dos oprimidos, quando existe, é povoado de imagens - mediáticas eoutras - que visam a re-transformar humanos em hominídeos, contrariando a evoluçãoda espécie.Em cada ser humano, um hominídeo espreita: não nos deixemos cair emtentações. Sejamos metafóricos – sejamos gente!A Estética do Oprimido visa o fortalecimento, desenvolto e livre, da atividademetafórica, das linguagens simbólicas, da inteligência e da sensibilidade. Visa àexpansão da percepção que temos do mundo.Isso se faz através da Palavra, da Imagem e do Som, guiados por uma Éticahumanística.O PROJETO PROMETEUNo início deste ensaio falamos em nomear Conjuntos – nomeemos, pois,este conjunto estético: Projeto Prometeu, em homenagem ao Titã queensinou os humanos a fazer o fogo, que ele havia roubado aos deuses que sóo queriam para si mesmos.O Projeto visa desenvolver, nos integrantes de grupos de oprimidosorganizados com os quais trabalhamos, todas as formas estéticas depercepção da realidade. Nele, quatro são as vertentes principais:

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37A PALAVRANosso objetivo não é o de transformar todo cidadão em escritor de bestsellersde aeroporto, mas sim de permitir que todos tenham domínio sobre a maiorinvenção humana: a palavra, a linguagem simbólica.As palavras, por serem símbolos – uma coisa que está em lugar de outra -precisam ser preenchidas com as esperanças, desejos, necessidades, experiências devida de cada cidadão. A palavra é uma coisa, e o sentido que lhe damos é outra, nemsempre coincidentes.Sabemos que toda palavra vem carregada com os desejos do emissor. Sabemos,também, que cada receptor tem as suas próprias estruturas de recepção-tradução.Quando uma empregada doméstica ouve a palavra Maria, essa palavra vemassociada a uma ordem imperativa: Maria, faz o jantar; Maria, lava a roupa; Maria,varre a casa; Maria, faz isso, faz aquilo. Maria passa a ser o prenúncio de uma ordem.Um bater de continência em posição de sentido!Quando, porém, Maria escreve o seu próprio nome porque, sobre si mesma,muito tem a dizer, ela se re-descobre e pode associar seu nome, Maria, ao amor, aoprazer, à política. Assumir seu nome - e a ele dar seus próprios valores - é uma maneirade se assumir como sujeito. Escrever é uma maneira de dominar a palavra, aoinvés de ser por ela dominado.Neste Capítulo, são três as vertentes principais:O QUE MAIS ME IMPRESSIONOU NOS ÚLTIMOS ANOS – os participantes sãoconvidados a escrever uma curta narrativa sobre um fato pessoal, íntimo, ou, pelo

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contrário, de interesse nacional, impossível de esquecer. Ao contrário da Declaraçãode Identidade, voltada para o interior do sujeito, esta é uma oportunidade para serefletir sobre uma visão panorâmica que cada um tem do mundo em que vive. Nãobasta narrar o fato - deve-se revelar de que maneira única esse fato o impressionou.Algo pessoal. Se a primeira tentativa ficar na simples narração, deve-se insistir emque o participante vá fundo na sua memória e revele impressões mais subjetivas. Nodebate, sim, deve-se relacionar essas impressões pessoais ao significado social epolítico do evento.Sugestão - Uma prática interessante consiste em colocar na parede, ou fazer circularentre os presentes, os textos escritos, sem que conste a autoria da cada um.38Pergunta-se depois qual foi o texto que mais impressionou cada participante e porque razão. Só então se perguntará quem escreveu cada texto e se pedirá que o autorcomente os comentários feitos sobre sua escrita. Todos devem intervir narrandofatos da mesma natureza e tentando descobrir a conexão entre eles.DECLARAÇÕES DE IDENTIDADE: cada participante deverá, três vezes, declararem poucas linhas quem é, tendo, porém, destinatários diferentes: a pessoa amada, avizinha, o chefe do qual depende o seu emprego ou função, o presidente do país ououtra autoridade, o povo em geral... Alguns preferem se declarar ao gato, aocachorro, ao seu jardim, ou ao seu prato de comida: também serve.A cada vez que declara ser quem é, como a nossa identidade também nos é

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dada pela relação com os outros – nenhum de nós está encerrado dentro de simesmo – o escritor descobre identidades que existem, são suas, porém em desuso ouinsuspeitadas. Descobre sua multiplicidade e riqueza.A Declaração de Identidade significa um mergulho dentro de si.- “É uma maneira de nos dar coragem para falarmos em voz alta o que escrevemosem silêncio” – disse um participante de um dos nossos grupos.POESIA - Cada participante deverá escrever um poema, seguindo sua intuição. Comoestímulo, não como regra, podemos propor etapas, o participante:a. escolhe um tema que o emocione – emoção é necessária. Pode ser os olhos dapessoa amada ou um buraco no sapato; o sorriso do recém-nascido ou os preços dosupermercado;b. escreve uma página com tudo que lhe desperta emoções e reflexões; as frases devemser menores do que a largura do papel;c. elimina as palavras inúteis como artigos e advérbios terminados em “mente”, quetornam as frases pesadas; a arte de bem escrever é a arte de saber cortar;d. organiza a frase de maneira a criar ritmo; deve ler o texto em voz alta, observandose a leitura é embalada por um ritmo interno;e. o poeta deve substituir, quando necessário, a última palavra de cada verso criandouma rima, se for seu desejo, mesmo sabendo que rimas não são necessárias à poesia.f. eis o poema.Se este processo não der resultados, inventem outros. Em arte, regras são apenassugestões e não leis imperativas.39

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A IMAGEMDevemos desenvolver nossa capacidade de ver e não apenas olhar. A criação deimagens produzidas por nós e não apenas pela natureza nem pelas máquinas, servepara mostrar que o mundo pode ser re-criado.O participante intervem para mudar a realidade, como quando os pintoresrupestres pintavam bisontes, ursos e mamutes em suas cavernas com a intenção, nãoapenas de admirar sua obra pictórica, mas para melhor estudar esses animais ferozes.Embora eu não seja testemunha ocular da História, juro que os demais cavernícolas sejuntavam em torno do pintor para estudarem formas de atacar as feras: a pinturaestimulava a mímica, o teatro, a dança...A pintura e a escultura são formas de se re-estruturar o mundo, de re-inventá-lo –é natural que pintores e escultores sintam-se deificados pois refazem e corrigem otrabalho da divindade...As atividades básicas de Imagem deverão ser:ESCULTURA E PINTURA – Cada grupo deverá produzir uma criação coletiva sob otítulo de Ser Humano No Lixo, utilizando os elementos do lixo limpo de suascomunidades ou locais de trabalho. Cada escultura deverá mostrar uma ou mais figurashumanas no trabalho, no lazer, no amor, em diálogo ou na solidão, como queiram.Além do lixo limpo, poderão usar cola, barbantes, arames, madeira, e outroselementos que sustentem a escultura. Deverão fazer também pinturas com omesmo tema. Este é o ponto de partida: outros temas devem ser buscados noâmbito de interesses do grupo: o trabalho, a casa, a rua, o futuro.

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FOTOGRAFIA – As mãos são, depois do cérebro, o que mais de humano existe emcada um de nós.Cada participante deverá fazer, ou pedir que façam, três fotos das suas mãos oudas mãos de pessoas que trabalham na mesma profissão, ou vivem na mesmacomunidade.Que fazem as mãos? Trabalham com a enxada, com o volante de um carro, avassoura ou um teclado de computador, ou com as teclas de um piano? Acaricia umrosto, um copo, um corpo? Lavam pratos, agridem, ou jogam cartas? Traduzem emgestos seus pensamentos? São expressivas ou mecanizadas?40O fotógrafo deve fazer o que o fotografado quer, e não o que gostaria de fazer. Ofotógrafo traz o seu conhecimento técnico de usar a câmera para que a foto reproduza odesejo do participante.Outros temas podem ser: opressão, a casa onde moro, família, o mundo, meutrabalho, meu lazer... O tema é importante; mais importante é o diálogo que se deveinstaurar sobre as imagens produzidas, as formas de percepção de cada imagem, asidéias que cada imagem provoca, lembranças, desejos...RE-FORMANDO A FORMA – Apresenta-se uma imagem bem conhecida, como abandeira nacional, a silhueta de uma garrafa de refrigerante ou a de um acidentegeográfico (Pão de Açúcar, Corcovado), o símbolo de um fast-food, a forma de umcampo de futebol, o perfil de uma cidade, um item publicitário em que se associa umcorpo de mulher a uma bebida alcoólica, etc. Os participantes deverão refazê-la outransformá-la – colorindo, re-estruturando suas linhas, eliminando ou adicionando

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linhas e cores -, de maneira a dar uma opinião sobre a figura e seu significado.O SOMA Música é a forma pela qual o ser humano se relaciona com o Universo,seus ritmos e sons aleatórios. É uma forma pela qual se relaciona consigo mesmo,com os seus ritmos cardíacos, respiratórios, circadianos (o sono, a fome...), e com amelodia do seu sangue nas veias.A Música é o contato do ser humano com o seu coração e com o Cosmos.Justamente por isso, o poder econômico encarcera a música em seus festivais,empresas fonográficas, distribuidoras, etc., favorecendo sempre ritmos padronizadosque podem ser dominados por esse poder. Oitenta por cento da música que se ouvepelas rádios tem a missão de entorpecer a mente dos seus ouvintes. Os ritmosalucinantes têm a missão de alucinar, que é uma das melhores formas de se escondera realidade opressiva.Na Estética do Oprimido o que se busca não é aprender os ritmos que andampor aí, à solta, mas sim redescobrir e conectar-se com os ritmos internos de cada umde nós, com os ritmos da natureza, do trabalho e da vida social.A partir dos jogos A Imagem da Hora, Jogo das Profissões, Máscaras eRituais, e outros, os participantes poderão escolher qualquer atividade repetitiva desuas vidas profissionais ou cotidianas, e transformá-las em dança.41a) os atores mostram os gestos mudos repetitivos, mecanizados –

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inconscientes, às vezes - do seu trabalho profissional ou de um segmento de suasvidas cotidianas; deve ser uma atividade que o seu corpo esteja habituado a executarde forma mecânica;b) ampliam esses gestos, eliminando os detalhes não significativos, emagnificando os essenciais. Forma-se, assim, uma seqüência de movimentosessenciais. Cada ator deve procurar ver aquilo que o movimento cotidiano esconde– ver como cada movimento atua sobre o seu corpo, como o excita, estimula ou fazsofrer. Penetrar do único e não apenas reproduzir o óbvio. Esse movimento deve sera espinha dorsal da dança a ser construída. Todos os demais a ele se referem. Ogrupo pode escolher apenas um, dois ou mais desses ritmos internos – o importanteé que os sintam.c) lentamente, transformam o movimento em dança, introduzindo ritmo; o grupo deveinventar a música que combine com essa dança usando, sempre que possível, instrumentosinventados a partir de objetos em uso nos locais de trabalho ou na comunidade do grupo. Todos osinstrumentos musicais que existem foram construídos, não se encontravam prontos na natureza:muitos outros podem ser inventados. Inventemos!d) depois de já terem a seqüência de gestos rítmicos, deve-se imaginar umacena da vida desses personagens: um encontro amoroso, um pedido de aumento desalário, um casamento, uma greve, uma reunião familiar... Os atores deverão contara história escolhida, utilizando os gestos e movimentos rítmicos de sua dança;e) como forma de ensaio que ajude os atores a criar a dança, o diretor deve

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pedir que ora tornem bem lentos seus movimentos, câmara bem lenta, ora bemrápidos; quando existir som, que seja o mais baixo possível, apenas audível, e omais alto que se possa ,– sempre fazendo com que a passagem de um extremo aooutro seja lenta e não aos saltos.Os participantes deverão criar ritmos e melodias a partir do que percebe no seucorpo em repouso e nas diferentes atividades diárias, nas relações entre o seu corpo e o mundo. Éimportante evitar ritmos conhecidos.SINESTESIA – É a percepção simultânea de sensações diferentes, ou a suatradução de uma em outra. Exemplo: sentimos o gosto do chocolate mesmo quandoo vemos à distância. Devemos pedir aos participantes que, ao verem um quadro ouuma foto, inspirando-se nela, escrevam um poema ou um texto. Ao ler um poema,pensem em uma música. Ao ouvirem uma música, pintem os sons que ouviram.42CULTURA E ERUDIÇÃO - Todas estas propostas visam a desenvolver acriatividade individual de cada participante e a sua capacidade de trabalhar emgrupos. No entanto, não é nossa proposta fazer tábula rasa da culturaacumulada pela Humanidade, como se de nada valesse do que até agora foifeito. Seria tolice .Por isso, devemos oferecer aos nossos grupos a possibilidade de conhecer asnossas fontes culturais, nacionais e regionais, bem como a de outros países e deoutras épocas.Na Palavra, temos, os nossos escritores posteriores às invasões portuguesas

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do século XV, pois muito pouco sobrou da literatura oral indígena anterior. Temostambém uma vasta produção literária de cordel. E temos excelentes escritoresmodernos.No Som, a música brasileira continua vigorosa, apesar do predomínio, nosmeios de comunicação, de ritmos importados de fácil assimilação e baixo custo.Cada uma das nossas principais regiões criou dezenas de ritmos e danças, algumassob a influência dos europeus, outras autóctones.Na Imagem, além dos extraordinários pintores modernos mais conhecidos,temos a arte dos escultores de barro - indígenas e gente pobre do Nordeste. Temosaté, para espanto da maioria, uma bela arte rupestre na região do Piauí: há vinte milanos já se pintava em nossa terra nas paredes de nossas cavernas.Além da nossa Cultura, devemos expor nossos grupos à arte Erudita: aquelacriada por outros povos em outras épocas, desde Beethoven e Bach, até à flautamágica e a flauta andina. Esse Diálogo também será fértil.A ÉTICAO Teatro do Oprimido é um teatro ético e, nele, nada pode ser feito sem quese saiba por que, e para quê. Os participantes do Projeto Prometeu devem saberporque fazem o que fazem. O significado ético de cada ação é tão importante comoa ação em si.A TEORIA – Não se trata de dar aulas sobre Ética, mas de estudar momentosessenciais da Humanidade quando decisões históricas ou interpretações do Mundo,éticas ou antiéticas, foram tomadas. Palestras, testemunhos, teses, diálogos, etc. Por

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exemplo, a época dos filósofos pré-Socráticos que revelavam a inquietude dos sereshumanos em relação ao sentido da vida, às relações humanas e à substância do43Universo; as Invasões Ibéricas no século XVI na América Central e do Sul, queresultaram no genocídio de civilizações indígenas; o acordo de Bretton Woods, queinstituiu o dólar como moeda universal; a guerra do Golfo e a do Iraque, o Vietnã.A PRÁTICA; A SOLIDARIEDADE – A superioridade moral dos Bombeiros emrelação aos PMs, no Brasil, deve-se a vários fatores, sendo um dos maisimportantes o conteúdo dos ensinamentos que recebem os soldados. PMsaprendem a atirar, prender, bater, destruir; bombeiros, além de apagar o fogo,aprendem os primeiros socorros, aprendem a salvar vidas, a prestar serviços àcomunidade. É no fazer que o ser humano se faz.Esta parte da Ética será constituída por ensinamentos práticos de solidariedade– e deverá ser posta em prática e não apenas aprendida!!! Cada participantedeverá colaborar concretamente para alguma obra ou ação coletiva de suacomunidade que esteja sendo feita.Hoje, muitos grupos que praticam TO na Índia, os Jana Sanskriti, logo depois decada espetáculo em uma comunidade, perguntam em que podem ajudar essacomunidade e o fazem: faz parte do seu fazer teatral.A MULTIPLICAÇÃO SOLIDÁRIA – Cada grupo deverá organizar outrospequenos grupos ao quais possam transmitir o aprendido, dentro da idéia de que sóaprende quem ensina, buscando o Efeito Multiplicador.

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Isto é uma verdade científica, neurológica: ao aprender, o indivíduo mobilizaos neurônios necessários à percepção e à retenção do que lhe é ensinado; ao ensinar,mobiliza circuitos neurônicos de muitas outras áreas, expande e fixa o seuconhecimento, re-avalia o aprendido ao tentar explicá-lo.Esta é uma proposta inicial. Para que seus resultados sejam avaliadosdeveremos, durante anos, realizar trabalhos e experiências nos mais diversoscampos, cidades e países onde é usado o Teatro do Oprimido.

44FOTOS DAS ESCULTURAS O SER HUMANO NO LIXOFOTOS DAS MÃOSFOTOS DAS BANDEIRASPOEMASOUTROS TEXTOS DOS PARTICIPANTES DO PROJETO PROMETEU45